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O COMPROMISSO LITERÁRIO de Eduardo Campos

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O COMPROMISSOLITERÁRIOde Eduardo Campos

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JOSÉ LEMOS MONTEIRO

O COMPROMISSOLITERÁRIOde Eduardo Campos

Fortaleza2001

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Para TÊMIS e TÉRCIA,minhas filhas

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SUMÁRIO

PREFÁCIO ........................................................................ 9

APRESENTAÇÃO ............................................................. 15

O TEATRO – A DENÚNCIA DA OPRESSÃO

1 Introdução...................................................................... 21

2 As situações dramáticas ................................................ 24

3 O destino dos favelados e flagelados................................ 34

4 Os conteúdos sociais ...................................................... 41

5 A organização textual ..................................................... 48

6 O confronto decisivo ....................................................... 57

O ROMANCE – O SENTIMENTO DA TRAGÉDIA

1 O Chão dos Mortos: o único direito dos oprimidos ........... 69

2 O dilúvio: o outro grande castigo .................................... 76

3 A unidade homem-natureza ........................................... 87

4 Em busca dos valores universais.................................... 92

5 Alguns recursos narrativos ............................................ 98

6 A derrota final do homem ............................................. 108

O CONTO – A PERCEPÇÃO DA EFEMERIDADE

1 Os instantâneos da realidade ....................................... 117

2 A visão determinista das coisas ................................... 120

3 A ironia diante do inevitável ........................................ 129

4 Procedimentos formais................................................. 134

5 Conclusão .................................................................... 150

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................157

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9O COMPROMISSO LITERÁRIO DE EDUARDO CAMPOS | JOSÉ LEMOS MONTEIRO

PREFACIO

Qualquer proposta aferitiva dos componentes deuma organização novelesca – uma só, mesmo – já repre-senta grande responsabilidade para o crítico, pelo quese possa exigir de sua capacidade exploratória. E, se aintenção judicativa abranger um conjunto de obras, degêneros diversos, a multiplicidade dos contextosficcionais implicará, necessariamente, num esforçomaior na exercitação do escafrandismo literário.

Se no primeiro caso, abre-se ao crítico a possibili-dade de uma abordagem mais audaciosa compreenden-do toda a organicidade da obra em sua dialética ficcional,no segundo lhe restará a opção da amostragem envol-vendo conteúdo e forma. E essa montagem deconceituações, por mais percuciente e afortunada, ha-verá de restringir-se ao enfoque dos aspectos mais re-levantes de cada estrutura narrativa estudada, sob penade o esforço critico transformar-se num volume de pro-porções agigantadas.

Para ambos os planos de abordagem, caberá aindauma indagação quanto ao mercado de leitores, ou me-lhor, com relação ao interesse da clientela intelectualpelos aspectos técnicos de uma obra de ficção. E a res-posta terá o próprio crítico, ao verificar que seu traba-lho, incluindo leitura, releituras, pesquisas, consultasbibliográficas e redação interpretativa, não consegueatrair nem o público ledor da mesma obra analisada,

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limitando-se ao manuseio de alguns alunos dos cursossuperiores de letras.

Correndo todos esses riscos inerentes ao exercícioda crítica, o Prof. José Lemos Monteiro tem posto a suavocação de ensaísta literário acima desses percalços, de-senvolvendo um trabalho da maior importância para adivulgação de grandes nomes da moderna prosa de fic-ção no Ceará. De sua convivência com a escritura artís-tica, já resultaram estudos e ensaios como O Puxadorde Terço e o Moderno Conto Brasileiro (1970), Estrutu-ra do Discurso Narrativo (parceria, 1972), Análise e In-terpretação do Texto Literário (1974), O UniversoMí(s)tico de José Alcides Pinto (1979) e O Discurso Li-terário de Moreira Campos (1980).

Optando pela análise pluritextual dirigida para oteatro, o romance e o conto, Lemos Monteiro encon-trou em Eduardo Campos o autor cearense que me-lhor poderia atender a este seu novo projeto deespeculação estética e existencial, pela diversidadeda produção literária desse escritor e pelo ques-tionamento que realiza envolvendo situações econô-micas, sociais e políticas.

Desenvolvendo sua análise em três planos, em OCompromisso Literário de Eduardo Campos, LemosMonteiro ocupa-se inicialmente da obra do teatrólogo,concentrando sua visão crítica nos textos de OsDeserdados, Morro do Ouro e Rosa do Lagamar. Nosegundo plano, dispõe-se a aprofundar a consciência dosproblemas que O Chão dos Mortos e A véspera do dilú-vio encerram. E, por fim, num close reading sobre O Tro-pel das Coisas, Lemos Monteiro procura decifrar osfundamentos do microrrealismo de Eduardo Campos.

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No estudo de uma obra dramática, ao crítico lite-rário reserva-se, obviamente, a análise dos valoresconteudísticos (mensagem, denúncia, enfoque da con-dição humana, etc.), atribuindo-se ao crítico de teatro aavaliação dos aspectos interpretativos e de cenarização.Consciente dessa limitação conceitual, Lemos Monteirodetém-se especificamente no exame dos estratos políti-cos e socioeconômicos, fazendo-o com segurança e luci-dez, ao ponto de estimular a releitura dos textos teatraisde Eduardo Campos.

O subtítulo “A Denúncia da Opressão” já sugere, departida, um questionamento audacioso. E isso efetivamenteacontece, pois Lemos Monteiro afere situações dramáti-cas, analisa a visão do teatrólogo face ao destino dosflagelados expulsos pela seca, confere aspectos existenci-ais de uma favela e dimensiona os acessos de intolerân-cia da burguesia às vizinhanças humildes, a formaremuma inquietante antítese entre a mansão e o casebre.Sua análise vai além disso, descendo aos estratos huma-nos em jogo e estabelecendo confrontos da maior im-portância sociológica.

Ao romancista é dedicada uma análise de muitaforça interpretativa que, habilmente conduzida, atingeo fulcro dos contextos de O Chão dos Mortos e À Véspe-ra do Dilúvio. Armado de percuciente visão crítica, Le-mos Monteiro aprofunda a denúncia da política daaçudagem, realizando colocações igualmente proceden-tes sobre a economia fundiária e seus reflexos negati-vos no meio rural.

A magnitude de nossos contrastes mesológicos étambém argutamente enfocada por Lemos Monteiro que,excedendo-se em sua função prospectiva, se dispõe a

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conferir as repercussões da seca e das grandes enchen-tes com a perspicácia de um estudioso dos fatalismosregionais. E o melhor é que, além de incólume nessearrazoado crítico, o romancista sai engrandecido de suaexperiência ficcional.

Em “A Percepção da Efemeridade” – terceira eúltima parte de O Compromisso Literário de Eduar-do Campos, o crítico esquematiza sua abordagem uti-lizando exclusivamente o texto de O Tropel dasCoisas. E tomando-o como amostra da vitalidade cria-dora do ficcionista, passa a identificar componentesdo seu universo temático, anotando suas preferênci-as por determinados estratos sociais, tipos de rea-ções humanas e maneira de armar situações e efeitos.Termina por ressaltar-lhe o domínio monocrônico daefemeridade, numa comprovação de sua intimidadecom a natureza do conto.

Pena que a proposta de uma crítica globalizante,formulada por Lemos Monteiro, haja inserido tão-so-mente as narrativas de O Tropel das Coisas, deixan-do de fora contos como “O Abutre”, “No Morro do MoinhoMorre um Menino”, “O Toca-dor de Bombo”, “Visitapara Explicações” e “A Venda das Mangas”, este verti-do para o alemão por Curt Meyer-Clason e incluído naantologia Die Reiher und Andare BrasilianischeErzaehlungen (Berlim, 1967). Mas, limitando seu cam-po de trabalho, Lemos Monteiro ganhava condições paraaprofundar suas observações sobre a técnica do contoem Eduardo Campos.

Exercendo a crítica sem radicalismos teóricos esem petulância vanguardista, Lemos Monteiro tem seesquivado de proclamar a sua modernidade. E assim

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procede, por entender que esta já se encontra implícitana própria consciência que possui das atuais correntesda estética literária. E é por isso que sua visãoperscrutativa alcança tão longe, abrindo discussões comoesta que se efetiva através de O Compromisso Literá-rio de Eduardo Campos. Que outros procurem acrescen-tar novas revelações sobre o mais fecundo e versátilficcionista cearense contemporâneo.

F. S. NASCIMENTO

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APRESENTAÇÃO

Eduardo Campos avulta entre os escritorescearenses pela versatilidade e significação de sua obra.Incursionando nos mais diversos gêneros literários,desde 1943 vem produzindo sem cessar, impressio-nando a todos pela capacidade de trabalho e posiçõesassumidas no trato com a problemática social, ângulopara o qual se voltam suas inquietações básicas. Se-ria, pois, uma tarefa de largas proporções realizar umestudo que abarcasse o universo de sua produção es-tética, nas mais diferentes facetas que ela encerra.Com efeito, quer no teatro, no conto ou romance, afertilidade do autor parece nunca esgotar-se. Para oteatro já escreveu O demônio e a rosa, O anjo, Opecado e a flor, A máscara e a face, O fazedor demilagres, A farsa do cangaceiro astucioso, Morro doOuro, Rosa do Lagamar, Nós, as testemunhas, Osdeserdados e a peça infantil O julgamento dos ani-mais. No domínio do conto, deixou os livros Águasmortas, Face iluminada, A viagem definitiva, Osgrandes espantos, As danações, O abutre e outrasestôrias e O tropel das coisas. Menos atuante temsido no romance, havendo até o momento publicado OChão dos Mortos e À Véspera do Dilúvio. E, afora osgêneros de prosa de ficção, opera constantemente nocampo das pesquisas folclóricas (Medicina popular,O folclore do nordeste, Estudos de folclore cearenseetc.) e no ensaio em geral, cuja obra mais significati-va talvez seja Complexo de Anteu.

Frente a tantos títulos, a melhor opção de umaanálise despretensiosa seria a de proceder à determi-nação de uma amostra capaz de fornecer deduções ougeneralizações, abrindo espaço para uma interpretaçãocoerente dos motivos que sem dúvida se repetem mes-

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mo nas obras não estudadas. E foi exatamente esta aatitude que norteou a execução deste trabalho.

Dessa forma, para a análise do teatro, três peçasforam submetidas à leitura: Morro do Ouro, Rosa doLagamar e Os Deserdados. Quanto ao romance, deci-diu-se pela interpretação conjunta de O chão dos mor-tos e À véspera do dilúvio, posto que, sob certos aspectos,um deles é a antítese do outro e assim ambos se comple-tam. Para o caso do conto, julgou-se suficiente a análisedas doze estórias insertas no livro O tropel das coisas.

É possível questionar a validade do procedimento,sob a alegativa de que cada obra literária é autônoma e,formando seu próprio sistema, enfeixa valoresintransferíveis. Não se duvida da força de tal argumento,porém é necessário admitir que este esboço de investi-gação não tenciona aprofundar-se nas potencialidadesque as manifestações artísticas sugerem. Quando mui-to, há o interesse de atinar para um dos múltiplos ele-mentos interpretativos, qual seja o de definir a concepçãoque o autor demonstra ter do fenômeno literário.

De fato, o problema da concepção de arte parecevariável de acordo com o espírito da época e com asidiossincrasias do escritor. Houve tempo, por exemplo,em que a literatura visava tão só ao deleite ou à trans-missão de conhecimentos e nessa pauta se situavam asfeições das obras literárias. Mas a complexidade do mun-do moderno passou a exigir que a arte, além de manteressas funções, se voltasse para a denúncia dos obstácu-los que agravam a condição humana. O escritor não deveser alienado em relação a seu momento histórico e à suarealidade ambiental, refugiando-se num hermetismo quesó aproveita ao agravamento de suas neuroses. Sua posi-

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ção terá que ser a de defesa dos valores postos constan-temente sob perigo pelos sistemas opressores que afe-tam a própria liberdade de expressão, pondo em riscoinclusive a existência e dignificação da arte.

Todavia, existem aqueles que se inquietam com afunção ideológica da literatura, crendo que o efeito ine-vitável seria a desvalorização do prazer estético em tro-ca de divulgações político-partidárias. Admitem que otrato dos problemas sociais compete a disciplinas liga-das à sociologia e que a pena dos poetas e prosadorestem que manter-se limpa, escrevendo apenas sobre te-mas que possam enobrecer o espírito com os sentimen-tos mais refinados. O medo de uma literatura de caráterpanfletário é o chavão que se ouve sempre que alguémtenta defender a necessidade do envolvimento social doescritor, sem prejuízo de seus objetivos estéticos, queestarão naturalmente em primeiro plano.

Eduardo Campos é bem uma demonstração segurade que esse medo é um sofisma insustentável, pois quesua obra é fortemente de cunho social e, entretanto,talvez por isso mesmo, atinge os melhores níveis deexpressividade. Seu compromisso é o de fazer da pala-vra uma arma contra as injustiças sociais, mas umaarma que sensibiliza porque toca bem fundo no coração.Angustiando-se com a situação das vítimas de um sis-tema que esquece a dignidade do homem, ele tem cons-ciência de que também a literatura deve propiciar umareflexão ou tomada de atitude. As vezes veicula umaconcepção trágica de sua realidade figurada, na idéiade que os atos humanos são vazios e decepcionantes.Mas, a despeito disso, crê na possibilidade de luta poruma sociedade mais justa e sabe que seu ofício de es-critor não pode arredá-lo do compromisso que mantémcom sua consciência, o compromisso de defender os opri-midos e de interpretar a vida em seu perene fluir.

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O TEATROA Denúncia da Opressão

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1 INTRODUÇÃO

ANALISAR uma peça teatral envolve inicialmenteum esforço de encontrar um enfoque ou método capazde determinar os aspectos a explorar, já que, como ma-nifestação artística, inesgotáveis devem ser os compo-nentes ou significados profundos que a configuram. Énecessário conceber, além disso, que o teatro se definecomo ambivalente, podendo ser estudado pelos seus re-cursos cênicos ou sua representabilidade e por sua or-ganização textual. Os recursos cênicos requisitam umasérie aberta de procedimentos técnicos e dependem,além do trabalho do produtor, da participação ou de-sempenho dos atores, das possibilidades do palco e atémesmo do público presente. Todavia, se de acordo com opensamento de Massaud Moisés,1 “a qualidade de umapeça não reside em sua representabilidade”, qualquertentativa de aferição do valor de uma composição tea-tral haverá de incidir sobre a construção do texto, con-siderando-a assim uma criação literária, emborapertencente a um gênero que se atualiza em geral peloconcurso de mecanismos extra-literários.

Entretanto, optar por uma descoberta das potencia-lidades do texto não resolve o problema da determinaçãodo esquema de abordagem. Há uma variedade crescentede posicionamentos críticos, muitos deles falhos pelo ex-

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cesso de fragmentação a que levam a obra analisada,quase chegando a destruí-la num labirinto terminológicoao invés de recriá-la. E o que parece mais sensato afinalde contas é deixar que a obra dite a sua própria leitura,como se as leis de organização se aplicassem a cadaestrutura literária, sem previsibilidade de que ocorramde modo semelhante em outras criações. Assim, DavidDaiches2 sugere que inexiste um método “certo” para tra-tar os problemas literários, uma atitude única capaz deproporcionar todas as evidências que lhe dizem respeito.Talvez o sonho de uma crítica integral possibilite umaleitura abrangente,3 porém será ilusório tentar fechar ocírculo do universo de significados comunicados pelo texto.Parece, ao contrário, que a acumulação dos elementosdesvendados e correlacionados numa visão totalizantepropiciará a multiplicação desses elementos e, em de-corrência disso, a interpretação se tornará extremamenteenriquecida.

Não será este o propósito aqui ambicionado. Osfatores que ingressam como motivos intrínsecos naconstrução de uma obra são tão vários que o analista,receoso de esquecer até os mais importantes, geral-mente é levado a uma seleção executada pelos filtrosde sua experiência e ditada pelo momento de realiza-ção da leitura. Com isto, sua contribuição será aproxi-mada à de um leitor qualquer mas demonstrará pelomenos seu esforço de participar na repercussão ou efei-tos que a obra possa vir a ter. Foi assim que estaInterpretação das peças de Eduardo Campos teve emmira sobretudo valorizar os componentes sociológicos,atinando com a função social que a arte deve adotar,principalmente na época de hoje. Se muitos ainda re-jeitam a idéia de que a literatura pode ter um compro-misso ou engajamento social, acatando ao contrário asconcepções filosóficas da arte como expressão da bele-

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za e da verdade, é porque não chegaram a refletir seria-mente sobre as injustiças e desigualdades que sufo-cam tantos seres humanos. O artista contemporâneo,em vez de estar angustiado apenas com a verdade oucom a beleza, terá que lutar por impor sua mensagemde justiça,4 crente de que sua obra repercutirá em be-nefício da humanidade a que ele pertence. É lógicoque a beleza, alçando o texto ao plano estético, deter-mina o poder apelativo ou capacidade de sensibilizaros receptores, sem o que a obra perderia sua eficácia.Contudo, não justifica por si, na época atual, o compor-tamento literário de um escritor, salvo se este estiveralienado do momento histórico e da realidade que gri-ta diante de seus olhos. O ideal de beleza se associaao ideal de justiça, imperativo do aqui-e-agora que, pordiversas razões, se tornou angustiante e opressivo paraa maioria dos seres humanos.

A atitude proposta aqui será, por conseguinte, a derefletir primacialmente sobre as denúncias de injusti-ça social transmitidas pelas peças de Eduardo Campos.Em Morro do Ouro, o drama dos favelados sem assis-tência alguma e sujeitos à exploração de políticos emépoca de eleição. Em Rosa do Lagamar, a desumanida-de da cidade que cresce sem nenhum espírito de soli-dariedade humana. Em Os Deserdados, a fome causadapela seca como arma de opressão sobre os sertanejos.

Afora esse objetivo, tentar-se-á uma penetraçãonas camadas dos significantes textuais, desvendandocertos aspectos formais vinculados à construção ou es-quema de organização das peças, incluindo as peculia-ridades lingüísticas na elaboração dos diálogos daspersonagens. Serão apenas esboços cuja finalidade tal-vez seja a de abrir caminhos para uma série de ele-mentos interpretativos, nem sempre percebidos portodos os leitores.

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2 AS SITUAÇÕES DRAMÁTICAS

TODA peça de conotações trágicas exprime um di-lema em que as personagens se envolvem, sem via deregra descobrir as causas profundas que o motivaram. Atensão resultante da luta para resolver o dilema, ge-rando um conflito aparentemente insolúvel, objetivamanter o espectador atento, levando-o a experimentarempaticamente o drama dos heróis que sofrem pressãoou injustiças.

O entrecho dramático não tem assim uma finali-dade em si mesmo. Pretende conduzir os assistentes auma mudança de atitude, à percepção dos significadoslatentes do sofrimento humano, numa afirmação de umconceito de liberdade, ânsia maior de todos os indivídu-os. Em se tratando de uma peça que aflore a questãosocial, a ação será um convite à participação do povo noprocesso de modificação das estruturas do poder, res-ponsáveis pela angústia dos que carecem dos mínimosdireitos às condições dignas de vida. Bertolt Brecht5 játinha essa concepção, ao insistir em que o teatro preci-sa educar o povo no intuito de que este seja capaz demudar a face da realidade. As platéias não devem ape-nas saber que Prometeu está acorrentado; elas “preci-sam familiarizar-se com a luta imprescindível paralibertá-lo”.6

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Tal idéia transpira em cada cena das peças teatrais deEduardo Campos. A exposição é feita com tamanha veemên-cia que os espectadores não podem permanecer impassí-veis, antes ficam revoltados contra as injustiças sociais ealertados para as táticas usadas pelos agentes do poder.

É hora de examinar alguns ângulos das situaçõesmostradas nas três composições escolhidas para estaanálise. Conforme se verá, elas delineiam um universoem que a existência parece mais um castigo do queuma dádiva. É a angústia de seres humanos persegui-dos, quase sem perspectiva de libertação.

Assim, em Morro do Ouro, tem-se a descrição davida numa favela de Fortaleza em seus aspectos depri-mentes, em que as taperas imundas localizadas no depó-sito de lixo da cidade contrastam com os edifícios deapartamentos vistos ao longe. As pessoas subvivem namaior promiscuidade e nesse ambiente surgem os tiposmais curiosos. É o bodegueiro Seu Patrício que sabe tudo oque se passa a seu redor, o aleijado que paga ao rondapara ter direito ao ponto onde recebe esmolas, a meretrizMadalena e seu amante Zé Valentão, malandro e contra-bandista, que fuma cigarro americano e bebe uísque im-portado. É ainda Seu Fortuna, cambista do jogo do bicho,que dorme debaixo das mesas do boteco de Seu Patrício einventa sonhos fantásticos para poder iludir os fregueses.E finalmente o Dr. Gervásio, demagogo que ousa apro-veitar-se da ignorância do povo para conseguir eleger-se.São todos representantes de um universo que reflete asconseqüências da miséria e do isolamento social.

É fácil deduzir que a intenção principal do autor foi ade ironizar esta realidade, criando cenas de humormachadiano, em que aos aspectos cômicos se mescla adenúncia do abandono e preconceitos. Tais cenas têm comoponto de convergência a participação de Madalena, perso-nagem que assume os mais diversos significados, num

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processo evolutivo que culminará com a sua regeneração.A ironia se revela com mais vigor na campanha política doDr. Gervásio, que envia ao Morro do Ouro uma máquinade costura a fim de conseguir os votos dos habitantes lo-cais. Os homens que transportaram a máquina afirmamque o Dr. Gervásio é um homem de bom coração, que jádistribuiu muitas outras, que tudo fará pelo povo. Se elei-to, irá residir no Morro do Ouro para sentir mais de pertoos problemas dos favelados. Mas estes percebem que tudonão passa de artimanha e uma lavadeira, diante da má-quina, chega a comentar: “Eu nem queria tanto. Para mimbastava ter água perto de casa.” (p. V).

Outros lances de fino humor se encontram nas ce-nas em que as assistentes sociais, na idéia de realizaruma pesquisa, vão visitar a favela e se escandalizam,sentindo-se feridas ante o que consideram falta de edu-cação. Elas, representantes da burguesia impiedosa, pa-recem pretender ignorar que o problema dos favelados éa fome e pensam que eles se acham naquela situaçãosimplesmente porque assim o desejam. Nesse sentido,as entrevistas consistem em perguntas verdadeiramenteestúpidas e acintosas. De uma humilde lavadeira elasquerem saber por que carrega água ou por que não sealimenta de verduras e frutas. Espantam-se também como estado de mancebia em que vive a mulher do aleijado edemonstram interesse em conhecer o número de pesso-as casadas. Tudo num clima de falso puritanismo e deausência de solidariedade humana.

É oportuno transcrever um trecho dessas entrevistas:

Monitora:Responda tudo. Não quero perder tempo. Veja queestou aqui, saindo do meu conforto, para cuidar devocês. (Olhando ao derredor). Que rua horrível!(Pausa) E esse mau cheiro? É sempre assim?

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Mulher:(Tomando o cheiro pelo nariz) Não, não sinto não.(Depois de um instante) Será essa catinguinha?(Explicativa) É do lixo! Todo o lixo da cidade é bota-do na rua.Monitora:Mau cheiro ou catinga, seja lá o que for, é insupor-tável! Não agüento mais.

Brigite:(A Lavadeira) Quantos filhos tem a senhora?

Lavadeira:(Contando nos dedos) Dez.

Brigite:Estudam todos? Têm livros? Lápis? Merenda?

Lavadeira:Moça, a senhora está debochando (p. VI)

Observa-se assim que a pretensa obra assistencial,já que ensejada por pessoas de espírito e mentalidadeburguesa, constitui mais uma prova da desumanidadede um sistema que permite um fosso enorme a separarmiseráveis e ricos. Estes, quando procuram o contatocom aqueles, tencionam antes de tudo ter um novo tipode experiência, como uma espécie de divertimento, edisso se aproveita o autor para expressar seu repúdio ecrítica social. A assistência prestada aos favelados nuncaatinge o cerne, jamais se orienta para solucionar deuma vez o problema da fome, pois de fato o que interes-sa ao sistema é a manutenção do “status quo” em quepoucos se vangloriam à custa da desgraça de muitos.Veja-se, por exemplo, que até a primeira dama, que de-

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veria ter uma visão menos individualista, ordena a reti-rada dos mendigos da Praça do Ferreira para um alber-gue. A mulher do aleijado comenta revoltada que suavida piorou bastante em razão dessa medida, tida comofilantrópica, mas que na realidade veio em prejuízo dosinválidos que assim perderam o único meio de conse-guir algum dinheiro para a família. Nota-se assim que aretirada dos mendigos objetiva de fato ocultar a misé-ria, para transmitir a impressão de que todo mundo estábem no regime vigente. Relembre-se a propósito que nasgrandes cidades do Brasil, em época de Natal, os inváli-dos são expulsos das ruas para que os turistas estran-geiros não levem uma imagem negativa de nossa terra.

A ironia de Eduardo Campos tem, pois, um tom dedenúncia de uma situação de injustiça. E por isso sereveste quase de um teor de tragicidade, gerando umsentimento de revolta por parte do espectador ou leitor.Entretanto, aqui e ali, apela para o cômico, tal o que severifica na cena em que os policiais se posicionam cara acara com o bandido Zé Valentão. A dança do bumba-meu-boi é um recurso para conferir vivacidade à peça, ali-mentando-a de motivos folclóricos, porém reflete o ladodo humor, quando se nota que dentro do boi estava todo ocontrabando procurado. O investigador, assim que deci-de examinar, vê que no bojo do boi se achavam sandáli-as, cigarros e tecidos. Mas Zé Valentão consegue fugir.

Alguns comentadores, entre os quais Adísia Sá,7

classificaram a cena como inverossímil, um fato fora dotempo. Contudo, talvez o objetivo do autor seja suficien-te para compensar o impacto de algo que parece forjado,pois que só a contribuição folclórica levada ao especta-dor, que assim tem a oportunidade de se deleitar comos encantos dos folguedos populares, em fase de francaextinção, já supera a suposta falha do texto. De resto, éuma falha discutível e já houve até quem, como Plinio

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Marcos,8 considerasse a dança do bumba-meu-boi “omelhor momento em termos de dramaturgia”.

Finalmente, a ironia adquire outros matizes e atin-ge o clímax nas cenas que preparam o desfecho. A mãede Madalena veio do interior visitá-la e julga que suafilha permanece pura, sem jamais suspeitar que a vidada favela poderia ser causa da prostituição. Madalena,em respeito à figura de sua mãe, quer dar a aparênciade donzela e muda totalmente seus hábitos de vestir ede falar. Todos começam a ficar impressionados, sementender bem, mas vão aceitando as novas regras dojogo, participando do novenário e demais atividades decaráter religioso incentivadas pela beata mãe deMadalena. Ao fim, quando as assistentes sociaisretornam ao Morro do Ouro com a idéia de colher no-vas informações, se surpreendem com a fé e piedadeque a todos ilumina.

Não muito diversa é a situação de Rosa doLagamar. Agora, porém, as cenas ocorrem no bairro maiselegante de Fortaleza, especificamente no prolongamen-to da Avenida Desembargador Moreira, em local aprazívelbem próximo ao mar. Lá, Rosa havia comprado uma casacom as maiores dificuldades, no firme propósito de es-capar da imundície do Lagamar, uma das favelas maisdesprotegidas da cidade. A casa é extremamente hu-milde e funciona também como botequim, de onde elaretira o sustento de sua família, inocente de que bemcedo irão tentar desalojá-la dali por causa das mansõesque já começam a ser erguidas nas proximidades. Umburguês adquiriu duzentos e cinqüenta palmos de terrae está edificando com todo orgulho uma residência dealto luxo, no intuito de aumentar o seu prestígio social.Em sua concepção, é inadmissível que a tapera de Rosapermaneça ali, enfeando a paisagem do local, em fla-grante contraste com a mansão que está sendo

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construída. Para ele, a solução parece fácil, desde queofereça à Rosa uma certa importância, suficiente o bas-tante para persuadi-la a vender-lhe sua nesga de terra.Assim sendo, acompanhado da esposa, propõe um acor-do, convicto de que, sem a mínima dificuldade, terá umjardim amplo e uma vista mais bela. Não obstante, parasua surpresa, Rosa resiste a todas as ofertas, o que oinduz a valer-se de seu prestígio para despejá-la de qual-quer maneira, sob a alegativa de que o terreno era daprefeitura. O desfecho esperado e temido será a expul-são brutal de Rosa, com a policia cumprindo a ordemjudicial, retirando às pressas os móveis improvisadosexistentes no barraco e ameaçando de prisão a quemtentasse pôr qualquer obstáculo à operação.

Ao longo da ação, Rosa se transforma na persona-gem mais angustiada das peças de Eduardo Campos.Marcada pela solidão, sente que o destino lhe traçou asmaiores agruras. Suas primeiras sensações de abando-no são em conseqüência da viagem de seu marido Crispim.Vários anos Rosa alimenta a esperança de que ele retornee, quando isso acontece, sobrevém a maior decepção:Crispim está mudado, trata-a com o desprezo total, des-faz-lhe os seus sonhos mais românticos. As desgraçascontinuarão a suceder e Rosa adquire o senso da fatali-dade. Quando o Oficial de Justiça transmite a notícia deseu iminente despejo, ela logo sentencia: “Se é notíciaruim, tinha que ser sempre para mim!” (p. 14). Rosa tam-bém não verá concretizado o sonho de casar honradamen-te a filha Maria Galante. Supersticiosa e fatalista, sabendoque Maria Galante vira o noivo antes da cerimônia docasamento, Rosa prevê que tudo acabará mal. E sua fi-lha, com efeito, terminou fugindo, após a cena tragicômi-ca em que foi flagrada com um vestido riquíssimoarranjado por uma engomadeira que costumava usar asroupas finas das clientes burguesas.

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A desolação de Rosa vai assim tomando conta doenredo e crescendo de intensidade a cada cena. Écomovente o seu reencontro com a filha Maria Galante,quando então percebe que todo o seu esforço maternaldeixou de ser recompensado.

É mais comovente ainda sua última reação diantedo Oficial de Justiça, suplicando-lhe:

Meu senhor, deixe eu ficar aqui... Por hoje.Amanhã, eu saio... Volto pro Lagamar. (Pausa)Quero dormir no meu canto, contar novamen-te os caibros, duas telhas... Só depois que euconto é que durmo, duas telhas... Só depois queeu conto é que turmo, É um velho hábito desolidão... (p. 17)

O drama vivido atinge assim o auge do desespero econstitui um atestado real do que ocorre ainda hojeconstantemente com as classes desprivilegiadas emqualquer parte do mundo em que o surto do progresso éacompanhado pela desumanização do homem e vitóriada injustiça como decorrência de um sistema de opres-são que só permite o gozo do direito a quem tiver di-nheiro e elevada posição social.

Mas, depois de haver tematizado essas situaçõesespecíficas do desenvolvimento urbano, Eduardo Cam-pos voltou-se para a problemática do sertão, onde o qua-dro da miséria chega às raias do absurdo. Explorando atemática da seca, o enredo que formaliza a peça OsDeserdados enfeixa basicamente os mesmos elementosaproveitados por escritores como Rachel de Queiroz,Graciliano Ramos e em geral por todos aqueles que seenquadram na corrente do regionalismo cujo objetivoprincipal é o de descrever a realidade do nordeste bra-sileiro, testemunhando a absoluta miséria e desamparoem que o homem, vítima da natureza, não consegue

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obter qualquer solução para um drama que se repeteciclicamente.

Em se tratando de uma peça teatral, é lógico que,por força de suas próprias dimensões, a ação se centra-liza num motivo suficiente para gerar toda uma série deinterpretações, necessárias ao envolvimento emocionaldo leitor ou espectador. Com efeito, a primeira cenamostra logo uma criança morta, envolta em lençol, emcima de uma mesa rústica. É o filho de Hortênsia quefoi soterrado dentro de um poço, ao tentar encontrarágua para que a mãe pudesse lavar roupa e assim fossecapaz de sobreviver até quando as circunstâncias adi-assem a emigração em busca de outros recursos. Ten-tam consolá-la, mas Hortênsia logo se firma como umapersonagem consciente de que a vida lhe é injusta eblasfema contra os céus desesperada. Argumentam queseu filho está no céu, porém ela quer uma prova disso ejulga a princípio ser impossível existir um anjo de cor.Se na terra há tanta discriminação, se os negros aquiestão condenados a uma vida de submissão, depois damorte talvez não seja diferente. Entretanto, de formainesperada, acontece o milagre da chuva e Hortênsiase reanima, evoluindo para uma fé inabalável nos de-sígnios de Deus. Tal crença é acrescida da idéia de queseu filho, o anjo negro, irá proteger a todos os que prati-cam o bem e castigar os maus. Estes serão simbolizadospor Augusto, comerciante perverso e aproveitador damiséria para seu próprio enriquecimento. Augusto ten-ta seduzir Esmeralda, oferecendo-lhe presentes de poucovalor e iludindo-a com promessas de felicidade. O pri-meiro ato finda com a decepção de todos diante da chu-va que logo passou. Hortênsia é relegada a uma solidãodeprimente, quando então percebe que detém nas mãosuma roupa de seu filho e, quase entrando em êxtase,sente novamente que não está desamparada.

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O segundo ato, num esquema de alternância devários lances, enfoca novas artimanhas de Augusto natentativa de seduzir Esmeralda. Ele chega ao ponto depropor a Xavier, pai da menina, um acordo de ajuda emtroca de interesses nefandos. Xavier preza a honra desua filha e esforça-se por livrar-se das propostasinescrupulosas, mesmo sofrendo as piores necessida-des. Em outro plano, Hortênsia persuade o aleijadoGedeão a vingar-se de Augusto, acusando a este de as-sassino e responsável pela seca que, numa concepçãode fanatismo religioso, é considerada um castigo de Deuspelos atos dos homens maus.

No último ato, a situação se torna grave, inclusivepara Augusto, que resolve dispensar seus trabalhadores.Hortênsia continua insistindo em que seu filho lá no céuestá zelando pelos famintos e prega que a seca é umamaldição de Deus. Segundo ela, se Augusto fosse liqui-dado, tudo voltaria ao equilíbrio, com as chuvas inundan-do as terras e enchendo os rios. A Gedeão teria sidoconfiada a missão de exterminar Augusto e, para refor-çar suas palavras proféticas, Hortênsia ordena que elejogue fora suas muletas e caminhe sozinho. Embora he-sitando, Gedeão começa a andar sem as muletas e imedia-tamente a multidão dos flagelados cria confiança nospoderes de Hortênsia, que se transforma numa figuracarismática, líder de numerosos fanáticos que incendei-am o barracão de Augusto, na certeza de estarem cum-prindo as determinações de Deus.

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3 O DESTINO DOS FAVELADOS E FLAGELADOS

AS PERSONAGENS moldadas por Eduardo Campospara preencher um universo regido por um sistema deproteção aos poderosos e de perseguição aos necessita-dos têm uma sorte comum: o sofrimento acrescido daconsciência de que são vítimas da injustiça social. Al-gumas vivem mais intensamente esse drama e por issopodem ser tomadas como símbolos de toda uma classe.Rosa e Hortênsia, protagonistas de Rosa do Lagamar eOs Deserdados, são os exemplos mais representativos.

Rosa é um modelo de personagem trágica, queencarna o sofrimento motivado pela injustiça e desam-paro. Caracterizada a princípio como mulher de pulsoforte, autoritária e voluntariosa, aos poucos esses tra-ços vão sendo postergados pela imagem da mulher an-gustiada e pronta a aceitar como fatalidade a sorte quelhe coube.9 Vítima da ironia de um mundo cruelmenteinjusto, seu sonho simples de viver numa casa, emborahumilde, longe do ambiente infecto da favela, é destruídode forma absurda pela força do poder. Severiano, o an-tagonista que representa essa força, a fim de tomar apropriedade de Rosa se utiliza de táticas idênticas àsdo lobo, quando pretendia devorar o inocente cordeiro,na célebre fábula de Esopo. Conforme já se fez menção,Severiano insiste primeiro num acordo de compra e ven-

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da mediante sucessivas propostas, todas rejeitadas por-que Rosa tem em vão a consciência da justiça e julgaque acima de tudo lhe assiste o direito de preservar oque lhe pertence, sem ser importunada por ninguém,mesmo com as melhores promessas de vantagenspecuniárias. Desiludido, Severiano apela para o argu-mento final de que o barraco houvera sido erguido emterreno da Prefeitura. E o raciocínio de Rosa é perfeito:“Se era proibido fazer casa aqui, por que a Prefeituranão fiscalizou antes?” (p. 17). Contudo, a coerência dojuízo nenhum valor tem diante da força do poder. Rosaé despejada, padece as mais graves humilhações, masmantém até o fim o sentimento de dignidade na derro-ta, não aceitando a ajuda final que Severiano lhe apre-senta a título de caridade. Rosa é por isso umapersonagem consciente de seu drama, que vive a fa-talidade à semelhança dos heróis de Racine ou deShakespeare, conquanto estes estejam envolvidos emoutras espécies de situação dramática.

Por outro lado, em Os Deserdados, Hortênsia é apersonagem que sobressai pela firmeza de caráter e cons-ciência de sua atuação, idealizada no sentido de funci-onar como um símbolo de uma luta do Bem contra oMal. De início ela é marcada por um sentimento de in-ferioridade, estigma de sua raça, que a seu ver parececondenada nesta e na outra vida a um padecimentoinarredável. Após a morte de seu filho, logo renuncia aidéia de que ele possa ser livre no céu, formulando umenunciado que resume toda a mágoa da discriminaçãoracial: “No céu não há lugar para um anjo negro comomeu filho. Os pretinhos quando morrem vão apavorar osoutros, como o negrinho do pastoreio...” (p. IX). Diantedessa concepção, Hortênsia resiste aos impulsos de acei-tar um consolo explicado por meio de razões inatingí-veis para a vida terrena. Ela é acima de tudo consciência

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e assim descarta o que não estiver a seu alcance. Ali-mentando o complexo de culpa pela morte do filho, amal-diçoa a terra, porém não tenta abandoná-la porque sevê enraizada nela. Dessa forma, Hortênsia simbolizamais um valor do homem sertanejo, o apego ao chão quesofre as intempéries da seca. Esse apego às vezes éinexplicável, mas Hortênsia percebe através de Xavierque homem e natureza formam uma unidadeindissociável, o que constitui uma outra espécie de fa-talidade. O sertanejo é parte integrante da terra e, de-pois de morrer, será consumido por ela (p. X).

Em outro ângulo, sente-se que Hortênsia é umapersonagem dinâmica, modelada para surpreender pe-las suas atitudes. Se é caracterizada pela convicção dainferioridade de sua raça, rebela-se diante do que con-sidera absurdo e protesta, erguendo as mãos contra oscéus, não suportando a dor de ver o filho morrer “comoum animal qualquer” (p. X). Por isso, ela é a imagem dodesespero e da solidão. Sozinha no mundo, sem maridoe sem filho, considerada louca pelo seu inconformismo,a Hortênsia caberá descobrir as causas do infortúnio elutar pela libertação.

O primeiro passo nesse sentido reside na inter-pretação do sofrimento como um castigo vindo do além.E se assim é, algum erro humano deve estar sendo pra-ticado, um erro tão grande que possa provocar a ira deDeus. É então que Hortênsia revela o outro lado de suafunção como personagem-símbolo. Percebendo que o povoé explorado por um comerciante impiedoso, vê nisso arazão de toda a desgraça e crê que só a extinção damaldade do homem é capaz de devolver à terra a fartu-ra e felicidade.

Torna-se evidente que o método adotado porHortênsia qual seja o de invocar os poderes de seu fi-lho, lhe confere o caráter de alienação, aliás perfeita-

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mente condizente com o ambiente analisado. Numa vi-são racional, o extermínio de Augusto não seria o pontochave para solucionar o problema da seca e esta a rigornão deve ser considerada uma maldição dos céus. En-tretanto, essa interpretação esconde uma simbologia oufundo ideológico que sem dúvida explica as agruras dohomem nordestino e fornece uma solução para as con-seqüências das injustiças sociais. Em outras palavras,a seca ainda é um castigo por força da maldade do ho-mem que explora seus semelhantes, por força da espo-liação a que é submetido o sertanejo, sem nenhumaassistência e relegado a um estado de completa aliena-ção. No dia em que e]e for alertado de sua capacidade etiver plena garantia de seus direitos, no dia em quedescobrir que as discriminações lhe foram impostas masque é possível libertar-se delas, a solução terá sido en-contrada. Esta parece ser a mensagem que subjaz àfocalização das cenas do despertar dos operários deAugusto para a certeza de que estão sendo espoliados eque podem exterminar o patrão, incendiando tudo o queeste possui. O incêndio do barracão, embora natural-mente não traga de imediato a redenção dos sertane-jos, inspira a idéia de que a partir de então será possívelenfrentar a seca e dominar a natureza. É, pois, bastan-te significativo o lance final da peça, em que os flagelados,já decididos a emigrar, realimentam a ânsia de perma-necer na terra, purificada pelo extermínio da injustiça.

Após essa interpretação, é conveniente insistir umpouco mais na tipificação das personagens, levando emconta as conotações sugeridas pela atribuição dos no-mes selecionados pelo autor e aplicados àquelas queforam criadas para exercer a função de símbolos. Dessaforma, a escolha dos antropônimos Rosa e Hortênsia,além de correlacionar as duas heroinas pelo drama quevivem, estabelece um sistema de valores que contribu-

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em para um enriquecimento do universo dramático. Comefeito, Rosa espelha a imagem da beleza interior e dainocência, à medida que vai sendo conduzida a umasituação de abandono. Se no princípio ela se mantémfirme em suas decisões, logo percebe sua fragilidadediante da força da impiedade humana. Reage contra ainjustiça, porém descobre a inutilidade de suas tentati-vas e se torna humilde como na cena em que deixa deassinar a notificação judicial, dizendo-se analfabeta, fatoque lhe assinala mais um traço de seu posicionamentotrágico. Ou então, como no instante em que suplica, noato do despejo, que tenham cuidado com os móveis rús-ticos que possuía.

Em Os Deserdados a heroína é designada por umtermo idêntico, pois Hortênsia é também nome de flor10

e planta cultivada pela beleza e colorido. Numa perspec-tiva de interpretação, esses valores positivos devem opor-se aos assumidos pelas personagens antagonistas, nosentido de configurar um esquema de contraste entre oBem e o Mal. Rosa e Hortênsia são os componentes danatureza ameaçados pela maldade e assim lutam pormanter a vitória do Bem. Rosa e Hortênsia, como partesda terra, desejam permanecer unidas à natureza, masa discriminação do homem tenta expulsá-las de todasas maneiras. Daí o sofrimento mesclado à noção de be-leza interior que ambas tipificam. Aliás, pelo mecanis-mo da parafantasia,11 é possível associar Hortênsia, porsugestão fonológico-semântica, a tensão ou horto, o queacresce a idéia de luta agônica e consciência da soli-dão, numa visão mística perfeitamente contextualizadapela temática explorada.

Se de um lado as duas personagens se ligam pelacapacidade evocatória dos nomes que possuem, de modoanálogo os antagonistas Severiano e Augusto vêm com-por o esquema binário de oposição de valores. Severiano,

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contracenando com Rosa, é um burguês egoísta, embo-ra ironicamente devesse estar a favor dos oprimidos,em vista da função política que exerce na sociedade. Otraço fundamental de seu comportamento é a perversi-dade, já sugerida no próprio nome: Severiano é severo eassume o papel do homem que vai até o fim de suasdecisões, sem ter remorsos de estar prejudicando osmais fracos. Augusto foi desenhado com os mesmos atri-butos e aqui o nome parece funcionar como ironia doautor,12 salvo se for possível estabelecer uma correlaçãocom o imperador Augusto da Roma Antiga, o que seriaum estereótipo usado para firmar-lhe o caráter de dita-dor, de alguém incapaz de admitir que todos não lheestejam submissos. De qualquer forma, quer por ironiaquer por outras motivações, é evidente a vinculação en-tre o nome da personagem e suas características, so-bretudo por figurar num esquema de oposição actancial.

Em vista disso, parecem mesmo intencionais daparte do autor os significados subjacentes que se po-dem obter numa análise dos nomes de seus heróis. Umíndice bastante esclarecedor dessa hipótese é forneci-do na peça Morro do Ouro, com a mudança do nome dapersonagem tão logo características atitudinais evolu-am para o lado oposto. Trata-se de Seu Fortuna, assimconhecido por atuar como cambista do jogo do bicho,homem que promete a riqueza a quem acreditar nossonhos por ele inventados e arriscar a sorte. Seu Fortu-na, depois de transformar-se em vendedor de imagens,não mais aceita ser tratado como antes, sentenciandoa Margarida: “Quando vai aprender que agora só deveme chamar de Ezequiel? Vendedor de santo é de regrater nome da Bíblia” (n. XV). Vê-se por essa passagemque as conotações bíblicas do nome de Ezequiel devemingressar como elementos interpretativos da peça, situ-ando mais fortemente o contexto místico-visionário no

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qual figura em primeiro plano a personagem Madalena,cujo nome traz igualmente sugerências intencionais,posto que em suma lhe foi doado o papel de pecadoraarrependida.

É fácil, por conseguinte, comprovar uma evidenteassociação entre os nomes designativos das persona-gens e o que simbolizam, sem necessidade de apelarpara interpretações fantasiosas. Outros casos poderiamser estudados, como o de Zé Valentão, ainda da peçaMorro do Ouro, que representa o contrabandista deste-mido e sem escrúpulos, o de Esmeralda, que relacionaduas personagens homônimas em papéis diversificadosem Morro do Ouro e Os Deserdados. Todavia, em qual-quer caso, é de crer que os valores inerentes aos nomesse transferem para o plano das ações, num processoconstante de novas simbolizações.

Vê-se então por essas breves alusões que as per-sonagens de Eduardo Campos são estigmatizadas, tra-zendo já nos próprios nomes o destino que devemsuportar. São favelados que nenhum ânimo receberãoda vida: é a fragilidade de Rosa. São flagelados que so-frem o castigo pela maldade dos homens: é a tensão deHortênsia.

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4 OS CONTEÚDOS SOCIAIS

OS TEMAS explorados nas três peças de EduardoCampos todos objetivam denunciar o lado injusto do po-der, que nada faz para minimizar a situação de desam-paro das populações desprivilegiadas mas, ao contrário,procura alimentar-se desse mesmo estado de misériapara fortalecer-se. O teatro é, então, um meio de desa-bafo ou protesto do autor, cônscio de que a arte devetambém exercer um papel de modificação das estruturassociais. Tal atitude parece coerente e necessária, pois,no entender de muitos ideólogos da arte, esta precisarefletir a decadência da sociedade e, a menos que pre-tenda ser infiel à sua função social, deve mostrar o mun-do como passível de ser mudado.13

Ernst Fischer,14 explicando a teoria de BertoltBrecht sobre a função social da arte, sentencia:

No mundo alienado em que vivemos, a reali-dade social precisa ser mostrada no seu me-canismo de aprisionamento, posta sob uma luzque devasse a “alienação” do tema e das per-sonagens. A obra de arte deve apoderar-se daplatéia não através da identificação passiva,mas através de um apelo à razão que requei-ra ação e decisão. As normas que fixam asrelações entre os homens hão de ser tratadas

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no drama como “temporárias e imperfeitas”,de maneira que o espectador seja levado a algomais produtivo do que a mera observação, sejalevado a pensar no curso da peça e incitado aformular um julgamento, afinal, quanto ao queviu: “Não era assim que devia ser. É estra-nho, quase inacreditável. Precisa deixar de serassim.

Ao escritor há de caber, portanto, uma “funçãoideológica”, reconhecida até mesmo pelos que não acei-tam a posição da crítica marxista. Assim, Antônio Cândi-do15 entende que essa função decorre normalmente daconsciência dos problemas que afligem a sociedade, pro-blemas que geram um momento de expectativa no recep-tor, face às denúncias que este anseia presenciar. Quasesempre, assinala ainda Antônio Cândido,16 “tanto os ar-tistas quanto o público estabelecem certos desígnios cons-cientes, que passam a formar uma das camadas designificado da obra. O artista quer atingir determinadofim; o auditor ou leitor deseja que ele lhe mostre deter-minado aspecto da realidade”. Por isso, compete ao es-critor utilizar o poder de persuasão que a língua possui,no intuito de figurar a realidade tal como existe nos diasatuais, sem que isto signifique uma simples transposi-ção ou decalque desprovido de qualquer criatividade. Nel-son Werneck Sodré17 chega ao ponto de afirmar que“aquele que não tem condições para enfrentar a verdadee para proclamá-la, sejam quais forem as conseqüênci-as, não tem condições para ser escritor”.

Essa advertência não atinge em nenhum ponto ocomportamento literário de Eduardo Campos. As denún-cias são tão contundentes que sobressaltam o especta-dor mais avisado, pela coragem e vigor do discurso queas transmite. Em Rosa do Lagamar, a heroína é despe-jada de sua humilde casa para satisfazer aos caprichos

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de um burguês. Eduardo Campos, aproximando-se aomáximo da realidade e dando um testemunho da cora-gem aludida por Nelson Werneck Sodré, não descrevede modo indireto a corrupção das autoridades que de-terminam a derrota de Rosa e a vitória esperada do Dr.Severiano. Ele vai muito além e localiza inclusive o pon-to exato da cidade de Fortaleza onde o fato pode teracontecido. Ora, referindo que a mansão estava sendoerguida no prolongamento da Avenida DesembargadorMoreira da Rocha, próximo ao mar, o autor quase convi-da o espectador a ir até lá e identificar “in loco” a resi-dência luxuosa que lhe serviu de inspiração. É verdadeque esse pode ter sido apenas um artifício para conferirmais autenticidade e verossimilhança, mas a alusão aonome da rua e ao trecho preciso onde a ação se desen-rola indica que o engajamento social do escritor se estri-ba em fatos concretos, insofismáveis. É como se dissesseque está apto a mostrar o palco das injustiças para quemquiser comprovar. Uma prova evidente de que está afavor das mudanças por uma sociedade mais equânimee menos torpe.

A mesma atitude se presentifica em Morro doOuro. A favela escolhida é real e sua descrição não ocultaos aspectos deprimentes de um local onde se deposita olixo da cidade. A crítica à sociedade é deflagrada nosmais diversos ângulos em que emerge a concepção demoral burguesa marcada por um falso puritanismo, ademagogia dos políticos oportunistas que em época decampanha eleitoral aparecem como redentores, a per-seguição da polícia ao contrabando de sandálias ou pe-ças de tecido para fazer de conta que sua atuação ésaneadora,18 a prostituição como forma de subsistênciae, enfim, tudo o que resulta do analfabetismo e da fome.

Finalmente, em Os Deserdados, a crítica socialenfoca o drama torturante dos flagelados da seca, reco-

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nhecendo os problemas e revelando a falta de solidarie-dade humana dos detentores do poder. Nesse contexto,define-se o preconceito social expresso pela submissãodo negro ao subemprego e a um tratamento injusto queo arrasta à marginalidade, surge a exploração sexualdos que se aproveitam da fome para seduzir jovensimpúberes, impõe-se o êxodo como única forma de fugirda morte por inanição. Toda a experiência trágica donordestino é denunciada como uma espécie de castigoque se reitera de vez em quando. E o castigo é fruto dadesigualdade social, assim compreendida pela percep-ção clarividente de Hortênsia:

Não tivemos inverno este ano porque os maustransformaram a terra no inferno. Deus, quan-do criou o mundo, não tinha pobres nem ricos!(p. XXXIX)

Tamanha desigualdade é a causa da injustiça e,por conseguinte, do martírio a que são subjugados osmais fracos. A seca em si é um problema solucionável,desde que inexista o interesse dos fortes em servir-sedela como meio de aumentar ainda mais a sua força,porque entendem que serão tanto mais fortes quantomais fracos forem os oprimidos. Estes vão sendo aniqui-lados progressivamente a um nível que lhes roubará aprópria condição humana. Serão animalizados, infe-riorizados como bichos e, pior que tudo, conscientes dessasituação, conforme desabafa uma das personagens:

Sim, mas eu devia ter um ferro. Quem sou euse não um bicho, um bicho seu? (p. XXXIX)

Aliás, essa consciência da animalização é um dadopercebido por outros escritores que operaram sobre otema da seca. Graciliano Ramos,19 por exemplo, cons-

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trói Fabiano como “gente-bicho”, em contraposição àBaleia, “bicho-gente”, numa crítica indisfarçável à con-dição de subvida a que são impelidos os sertanejos. Omassacre imposto a estes é duplo: a escravidão ditadapelos senhores de terra e a inclemência da própria ter-ra que os embrutece.

Por isso, em Os Deserdados, Eduardo Campos de-monstra sua preocupação com a condição subumana dosflagelados da seca, tratados ao nível dos irracionais,escravizados a um sistema de exploração do homem pelohomem e herdeiros de uma consciência submissa aopoder dos mais fortes.

A paisagem inóspita da caatinga, o céu isento denuvens, a terra estorricada constituem o depoimentoda falta de domínio do homem sobre a natureza aindaem pleno século XX, o que parece confirmar não a impo-tência mas a ausência de solidariedade humana, comcerteza a única explicação plausível para a presençacada vez mais assustadora da fome e da miséria, princi-palmente em época de escassez de chuvas.

Nesse quadro, o nordestino é vítima e, acima detudo, se posiciona às vezes numa atitude de alienação,julgando-se castigado por Deus, ao invés de perceber ainjustiça estabelecida pelo próprio homem como respon-sável direta pela sua miséria. Isto lhe aguça o temor esentimento de culpabilidade, fazendo-o enveredar por umfanatismo religioso que constitui o alimento básico paraseu estado de total submissão. Dessa forma, a seca éassociada ao inferno, conforme as palavras de Hortênsia:

O sol é o fogo! O fogo é o inferno em que todosseremos consumidos. (p. XXIV)

Essa concepção do estado de desamparo como umapenitência ou expiação pelos pecados figura em inúme-

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ras cenas de Os Deserdados, paralela ao profetismo dedias de felicidade para os homens bons. A visãoapocalíptica de Hortênsia define a cada passo o julga-mento das atitudes humanas:

Nada ficará sobre a terra. Seremos atingidospelas chamas, exceto os que estiverem isen-tos de pecado. E depois, Gedeão, as chuvas sedesatarão... (p. XXIV)

Todavia, a interpretação sobrenatural, se represen-ta uma fuga ou alienação, acena para a maldade do ho-mem, firmando o conceito de que todos pagam por algunsque pecam. Hortência percebe que tudo é uma questão deluta do Bem contra o Mal, aquele representado pelo serta-nejo faminto, este simbolizado pelo patrão aproveitador damiséria. Ela compreende que alguns “querem a misériado povo para se enriquecerem a si mesmos” (p. XI). Mas,como seu esquema de pensar o mundo é rudimentar, apercepção correta da realidade é transferida para um tra-tamento místico-visionário. Oscilando entre a loucura e aparanormalidade, Hortênsia fortalece a cada cena a con-vicção de que seu filho morreu para lá do céu comandar adestruição do Mal:

Agora vocês acreditaram no Anjo! Meu filho éaquele que nos protege dos perversos e dos in-vejosos. (...) O Satanás não morreu ainda. Estávivo entre nós, comprando o nosso suor com oseu sujo dinheiro! E meu filho, por meu inter-médio, manda-lhes esta ordem: é preciso afas-tar do nosso convívio os que nos roubam o pãode cada dia! (p. XXXIX)

O lance acima mencionado e muitos outros cons-tatam que o fundo místico age como um pretexto parauma pregação de caráter ideológico, assentada nos prin-cípios da justiça social. A rebelião dos flagelados, quedeixam de obedecer às ordens do patrão, é o sintoma do

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despertar da consciência das desigualdades sociais comocausa de todos os males e da necessidade de luta pelosdireitos de sobrevivência. Parece, pois, que o apro-veitamento do fanatismo religioso não tem apenas a fun-ção de denunciar a alienação do sertanejo ou firmar-lheo caráter de submissão. Ao contrário, como o fanatismoé capaz de produzir os mais fortes radicalismos, suafunção principal é a de propor uma nova ordem social,partindo de um princípio de erradicação das regras emque sempre se armou o sistema de escravização do ho-mem em qualquer de suas formas.

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5 A ORGANIZAÇÃO TEXTUAL

APÓS visualizar os ângulos que transformam ascomposições teatrais de Eduardo Campos em verdadei-ros libelos contra os abusos de um sistema político-eco-nômico fundado na livre iniciativa da corrupção, é oportunoverificar alguns aspectos da organização textual, com ofito de descobrir em que medida tais elementos partici-pam do apelo comunicativo dos valores objetivados.

Quanto à estrutura geral, percebe-se que as trêspeças obedecem ao esquema tradicional, apresentandocada uma delas três atos que guardam entre si um sen-so de proporção ou equilíbrio. Um ato pode seccionar-seem quadros, quando há alguma troca de figurantes,20 oque ocorre no sistema das três peças estudadas. Dessamaneira, em Mono do Ouro e Rosa do Lagamar, as ce-nas se arrumam na seguinte disposição:

1o ato

2o ato1o quadro

3o ato2o quadro

Esse esquema permite compreender melhor os trêsmomentos da ação: O primeiro ato, introdução da peça,

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informa sobre os aspectos gerais do ambiente e das per-sonagens, prevendo já uma situação dramática. O se-gundo, necessariamente a parte mais decisiva, eleva onível de tensão a um ponto que requer uma solução, oufavorável ou trágica. Esta será a matéria do terceiro ato.

Em Os Deserdados há uma leve mudança nestaseqüência e o primeiro ato, ao invés do segundo, é sub-dividido em dois quadros, talvez com o intuito de forne-cer maior parcela de dados da situação, retardando acomplicação e induzindo melhor o clima de suspense.Contudo, há o mesmo senso de simetria comprovado nafeição das outras peças, o que denota a familiaridade doautor com as técnicas de construção do teatro clássico.

Aliás, é útil perceber que os gregos formularamuma série de normas para a elaboração das tragédias,normas que atualmente não podem ser cumpridas rigi-damente, em virtude das peculiaridades do homem atual,bastante diversas das que definiam o comportamentohelênico. Dessa forma, a dramaturgia clássica preconi-zava como característica basilar de uma peça a obedi-ência à lei das três unidades: as unidades de ação, detempo e de lugar. Com isso, pretendia aproximar ao máxi-mo as cenas representadas pelas personagens das ver-dadeiramente ocorridas na vida real, de tal sorte quese expusesse uma quase fotografia ou imitação (mimesis)da realidade, uma vez que os fatos se ofereciam de modocoerente, sem apelar para a capacidade de imaginaçãoou extrapolação dos espectadores.

As três unidades se solidarizavam entre si numrelacionamento de implicação, já que, para se obter umaúnica ação, era necessário figurar um só espaço físico eo mínimo de tempo admissível. Convencionou-se queeste não deveria exceder os limites de um dia, mas oideal mesmo era o de ajustar a duração da encenaçãoao tempo decorrido da ação.

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É escusado insistir que essas normas de há muitodeixaram de ser observadas com o rigor pretendido enão podem nem mais constituir um elemento de afei-ção da estrutura do gênero dramático. David Daiches21

assevera que, se as peças modernas fossem julgadaspor esses requisitos, pouquíssimas suportariam a prova.O tempo excede normalmente as reduzidas horas deum dia, a ação única é substituída por um entre-laçamento de fatos às vezes de uma vida inteira, o lugarexclusivo que o palco deveria representar pode inclusi-ve multiplicar-se em alusões a mais países do que ummapa seja capaz de mostrar.

Todavia, malgrado essas ponderações, é preciso re-gistrar um certo equilíbrio das peças de Eduardo Cam-pos quanto ao seu posicionamento face aos preceitos doteatro clássico. Há, como não poderia deixar de ocorrer,a ausência de respeito rígido à lei das três unidades.Basta mencionar que, em Rosa do Lagamar, do primeiropara o segundo quadro do segundo ato decorre uma sema-na, conforme referência direta do próprio ator. Em Mor-ro do Ouro e Os Deserdados as marcações temporaistambém não se circunscrevem aos limites de um dia, oque se constata pela mudança das cenas. Em Morro doOuro as assistentes sociais estiveram realizando umainvestigação junto aos favelados quando Madalena eraamante de Zé Valentão e prostituta do bairro. Desseponto até o retorno das referidas pesquisadoras ao mes-mo local para novas entrevistas, quando então se sur-preendem com a regeneração de Madalena, éinverossímil que haja decorrido menos de um dia. EmOs Deserdados a quebra da unidade de tempo é maisacentuada ao fim do terceiro ato quando Esmeralda,anteriormente descrita como adolescente indefesa e su-jeita pela condição de miséria e fome aos galanteios epropostas pérfidas de Augusto, declara-se grávida dele,

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após a rebelião dos sertanejos fanáticos liderados porHortênsia.

Quanto à unidade de lugar, nota-se contudo quenas três peças houve a obediência integral à fixação deum só e mesmo ambiente geográfico: em Morro do Ouro,o cenário de uma rua sinuosa de uma favela de Fortale-za; em Rosa do Lagamar, um barraco situado no prolon-gamento de uma rua da Aldeota; em Os Deserdados, oambiente do interior cearense em época de estiagem.

Nesses limites não seria possível que cada peçaapresentasse uma multiplicidade de lances dramáticose, por isso, parece que a seqüência de cenas não chegaa comprometer na essência a unidade de ação.

Vê-se, pois, que em linhas gerais Eduardo Camposdeixou de realizar experiências em busca de novos mo-delos de organização textual, afastando-se muito poucodas regras estabelecidas milenarmente. Cabe mesmoindagar por que o autor retrocedeu em seu projeto departicipar das modernas tendências dramatúrgicas, de-pois de haver escrito O demônio e a rosa, integralmen-te um teatro de vanguarda, embora não tão avançadoquanto as peças de Ionesco ou Beckett, autores que tema-tizaram a angústia do homem num estado de solidãoegoística. Beckett22 elaborou textos de extrema densi-dade e em seu universo as personagens são símbolosque exigem bastante esforço de interpretação. EduardoCampos, em O demônio e a rosa, também apelou para acapacidade de percepção e participação emotiva dos es-pectadores, fazendo que Elga, protagonista da ação, setransformasse num símbolo a encerrar suas pretensõesde crítica à sociedade. Porque, como observa AluízioMedeiros,23 o propósito do autor foi o de mostrar que suapeça era uma condenação artística da época atual,marcada por dramas insolúveis num mundo em decom-posição, onde os problemas crescem e são resolvidos de

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maneira trágica. A feição vanguardista de O demônio ea rosa, se concede ao teatro uma riqueza de sugestões,pode distanciá-lo do povo, incapaz de perceber as men-sagens veladas. Sem dúvida por esse motivo, o autordesprezou essas experiências em troca de um maiorsenso de clareza e objetividade, elementos compro-vadamente eficazes para o sucesso de qualquer mani-festação artística.

Resta agora, ainda com respeito aos aspectos deelaboração textual, discorrer sobre a técnica do diálo-go. Correta é a opinião de Elder Olson,24 que definecomo componentes fundamentais de uma peça dramá-tica a ação, o cenário e o diálogo. Aqui já se fez umaanálise da ação, envolvendo necessariamente a atitu-de das personagens e influências ambientais. O cená-rio tenta reproduzir essas influências e, sob o ânguloda montagem ou execução, não oferece problemas queexijam tratamento especial. Em linhas gerais, pela rus-ticidade de que se revestem, tais cenários podem serfigurados em qualquer palco ou até mesmo ser impro-visados em qualquer lugar, sem que haja grande pre-juízo para a representação. Parece mesmo que da partedo autor houve a intenção de revelar de modo pe-remptório a miséria do homem por uma associação coma rusticidade dos figurinos. As peças de Eduardo Cam-pos não valem, pois, pela riqueza ou ostentação dosguarda-roupas, dos recursos visuais e sonoros. Elasvalem pela ação, pela intensidade dramática, pelo diá-logo das personagens.

Este é estruturado numa linguagem espontânea,que reflete com fidedignidade os hábitos lingüisticos dasclasses sociais representadas. É quando se infere bema maturidade literária de Eduardo Campos, expressa nodomínio de uma fala rica de conotações de toda ordem,quase sempre desconhecidas dos que não convivem com

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o povo. Por uma questão de coerência com o desenvolvi-mento dos núcleos temáticos, Eduardo Campos teria queusar essa espécie de linguagem. E usou-a semartificialismos, com a maior naturalidade.

É preciso convir que os elementos de maior contri-buição para o êxito ou fracasso de uma peça teatral seligam à forma de elaboração dos diálogos. Com efeito,distinguindo-se de outras modalidades de discurso, comoo romance ou o conto, o gênero dramático dispensa emmuito a participação do autor e se centra na fala ouatitude das personagens. No romance existe o aprovei-tamento da linguagem para fins descritivos em que onarrador pode fazer uso de toda uma gama de procedi-mentos estilísticos capazes de conferir o máximo deexpressividade, retardando a intriga e mantendo umaatmosfera de total envolvimento do receptor. Já no tea-tro, o que conta é a articulação do diálogo, suficientepor si mesmo para, com os recursos cênicos apropria-dos, manter essa atmosfera. Por isso, é necessário ha-ver completa adequação entre os tipos de construçãolingüística elaborados e o papel exercido pelas persona-gens, sem o que se perceberá a falta de autenticidadeou espontaneidade.

No caso de Morro do Ouro e Rosa do Lagamar,vê-se que esse requisito foi observado plenamente. Aspesquisas de Eduardo Campos na área do folclore es-tenderam-se à linguagem típica do povo nordestino esuas peças valem também como um repositório de ele-mentos dialetológicos de largo interesse para estudi-osos da sociolingüística. Encontram-se assimvocábulos, expressões ou frases feitas com acepçõesvia de regra não indicadas nos dicionários. Acrescen-tem-se os ditos ou provérbios populares que refletemde modo inconteste a capacidade e a experiência decaptar os aspectos mais sutis da existência humana,

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formalizando-os em linguagem de transmissão asse-gurada entre diversas gerações, sobretudo devido àestrutura rítmica que tais enunciados encerram.

Eis alguns exemplos colhidos de Rosa do Lagamar:

“Cobra que na o anda não engole caçote...” (p. 5)“Um dia a casa cai” (p. 5);“Quem avisa amigo é” (p. 6);“O que se faz de gosto regala o peito” (p. 9)Entre as expressões ou torneios sintáticos privati-

vos do registro popular há alguns bem curiosos, comoestes extraídos ainda de Rosa do Lagamar:

“um bocado de vez” (p. 4);“ando carecida” (p. 4);“ele está caidinho por sua filha” (p. 5);“que saimento é um?” (p. 5);“não carece não” (p. 5);“a casa dele tem de um tudo” (p. 7);“estou desde de tarde numas e noutras” (p 11);“pensa que bota banca comigo?” (p. 11);“dobre a língua” (p. 11);“menino, como ele está nos trinques!” (p. 13)“tirar o pé da lama” (p. 4).

Em Morro do Ouro, de forma análoga, abundam osexemplos:

“não tem graça não” (p. II);“arre égua!” (p. II);“está sacaneando” (p. II);“não durmo no ponto” (p. II);“onde já se viu mulher mais pai dégua’ (p. II);“arre diabo” (p. III);

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“você caiu na vida” (p. IV);“fazer fé na centena” (p. IV);“não se aporrinhe” (p. IV);“esse pau tem formiga” (p. V);“que despropósito é um?” (p. VII)“sua lambisgóia” (p. VII);“suas serigaitas” (p. XIV); “cafute” (p. XV)

O exemplário se tornaria extenso,25 caso houvessea preocupação de analisar detidamente as composiçõesteatrais de Eduardo Campos sob o ângulo estreito dosprocedimentos lingüísticos. O que por ora se quer res-saltar, entretanto, é a habilidade de adequar as situa-ções armadas às formalizações da linguagem,possibilitando, além da coerência interna do discurso,mais vivacidade e realidade. O espectador, ouvindo asconstruções de cunho tipicamente popular, que deverãoser enriquecidas pela entonação dos atores, é conduzi-do a uma réplica fiel dos ambientes representados, comose estivesse presenciando situações reais e vividas. Istosó é possível mediante o esquecimento dos registros dalinguagem culta e conseqüente adoção dos plebeísmosou traços dialetais vigentes nos ambientes descritos.

Nesse ponto, Eduardo Campos demonstra mais umavez a consciência dos segredos que regem a estrutura dasobras bem sucedidas. O que se observa freqüentemente éque os autores se traem e põem na boca de personagensincultas torneios fraseológicos herdados da sintaxe dosclássicos lusitanos. O fato, quando não se deve ao escrú-pulo de reproduzir a fala autêntica do povo (“língua certado povo”, como dizia Manuel Bandeira), decorre mesmo dainaptidão ou desconhecimento dos princípios sobre os quaisse assenta a obra de arte. Diga-se de passagem, ela antesde tudo se define pela sua configuração formal, fator maispertinente que os componentes temáticos.26

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Aliás, esta recriação da linguagem facilmente seconecta com o aproveitamento do repositório da sabedo-ria popular, expressa através das tradições folclóricas,traços que acompanham de perto a vocação literária deEduardo Campos. Dessa forma, em Morro do Ouro, jáse fez notar, o clímax da intriga é embelezado pela re-presentação do bumba-meu-boi, ocasião em que se mis-tura a ingenuidade da dança do Boi Surubi aos aspectoshumorísticos da apreensão em flagrante do contrabandode Zé Valentão. Na mesma peça, a mãe de Madalenadifunde o sentimento de religiosidade com a prática donovenário e devoção ao Padre Cícero Romão Batista, omito do Juazeiro. Em Os Deserdados, de modo seme-lhante, as manifestações folclóricas se traduzem nasrecitações das “incelenças”, bem como em diversas su-perstições que delineiam a percepção popular da exis-tência sob o prisma do misticismo profético. Mas istoseria material para um outro estudo, que escapa às pre-tensões deste trabalho.

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6 O CONFRONTO DECISIVO

AO FIM deste esboço de análise, talvez se pudessepensar em um julgamento axiológico, no propósito desituar a peça mais bem sucedida sob o ângulo dacriatividade literária. Assim, embora se trate de umatarefa de difícil consecução em virtude do problema dasubjetividade imanente ao gosto ou preferências pesso-ais de cada leitor, é exeqüível apontar alguns elemen-tos de ordem crítico-valorativa, o que pode nortear umadefinição, se não de todo objetiva, pelo menos fun-damentada e coerente.

Na realidade, levando em conta critérios diversos,é quase certo um nivelamento das peças em estudo,porque aquilo que uma delas deixa de apresentar é re-compensado por ângulos novos que permitem melhorequilíbrio entre seus elementos estruturais. Entretan-to, considerando-se a repercussão diante do público, quenão se cansa de aplaudir reiteradas vezes,27 Rosa doLagamar e Morro do Ouro parecem manifestar melhoresqualidades expressivas. Este não é obviamente um dadoavaliativo, sobretudo porque falta ao povo um conheci-mento acurado da arte e da técnica do teatro e suasrespostas são via de regra de base impressionística. Mas,fazendo-se um confronto dessas duas peças com OsDeserdados, identifica-se de imediato nas primeiras,

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principalmente em Rosa do Lagamar, um nível maiselevado de intensidade dramática, aliado a espontanei-dade do discurso das personagens e maior senso detragicidade. Em Os Deserdados há por outro lado maisapuro técnico na estruturação dos quadros, com recur-sos de “mise-en-scène” que revelam da parte do autorum perfeito conhecimento das possibilidades que umpalco pode oferecer para reproduzir a simultaneidadedas ações, seqüenciadas em esquemas de alternância.Este é sem dúvida o traço distintivo por excelência: areprodução autêntica e espontânea da linguagem daspersonagens e uma enorme carga de envolvimentoafetivo, verificadas em Rosa do Lagamar e Morro doOuro, se antitetizam ao discurso mais bem planejado etalvez a melhores possibilidades visuais de encenaçãoexistentes em Os Deserdados.28

Quanto à apresentação da trama, constata-se porigual nas três peças um perfeito equilíbrio entre aspartes, em moldes quase clássicos, sem rupturas ouutilização de processos tumultuários em que o fio nar-rativo corre o risco de desfazer-se. Essa linearidade edistribuição das cenas em quadros e atos devidamenteproporcionais mostra não só o domínio das regras deestruturação do teatro clássico como fornece clareza esimplicidade, necessárias à reflexão da mensagem pro-posta. Qualquer espectador, sem que isto dependa deseu nível cultural, estará apto a estabelecer empatiacom as personagens que vivem o drama do abandonosocial. Este em última análise é o melhor efeitoesperável de uma obra dramática e se torna difícil afir-mar qual das peças se destaca em relação às demais.

Ainda há que levar em consideração a criação daspersonagens e, nesse aspecto, é irrecusável dizer que Rosase firma como uma das mais belas construções de Eduar-do Campos, não só pela forma como assume o trágico mas,

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e sobretudo, por todos os valores que encarna. SeHortênsia, em muitos lances, a ela se equipara por atri-butos semelhantes, é de notar que a sensação de solidãoe abandono ao fim de tudo parece sensibilizar mais. Porisso, conquanto já se tenha declarado que a peça OsDeserdados constitui a obra-prima de Eduardo Campos naárea teatrológica,29 cabe ponderar que Rosa do Lagamarsob alguns aspectos requisita a melhor posição.

Finalmente, no afã de essencializar os motivos cen-trais da produção teatral de Eduardo Campos, é neces-sário fazer uma reflexão acerca dos valores subliminaresque tecem seu sentimento do mundo ou percepção dovir-a-ser existencial. Sua concepção do teatro, confor-me já se salientou, condiz com a teoria de que a artepode também, além de outras funções evidentes, seruma arma de protesto contra os absurdos cometidos pe-los homens. Um protesto que resume o desejo de lutapor uma sociedade mais humana, menos cruel. Segun-do a cosmovisão de Eduardo Campos, existe essa possi-bilidade de redenção, mas sempre entravada pelosistema de opressão. Trata-se de uma cosmovisão queconcebe a vida como um confronto entre as forças doBem e do Mal, que afinal sintetizará toda a mensagemou apelo aos espectadores.

Em Morro do Ouro, o Bem é posto em evidênciapela atitude de Madalena, prostituta que se regenerapara o espanto de falsas puritanas representantes daburguesia. Estas simbolizam o Mal, a falta de espíritohumanitário. O Bem é a população inteira da favela,sujeita a invasões da polícia, dos políticos. dosaproveitadores da miséria. O Mal são esses que nadafazem para melhorar as condições de vida do ambientemas, ao contrário, decidem que o lixo da cidade sejalançado lá, para infectar as crianças subnutridas quevão catar alimentos deteriorados.

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Em Rosa do Lagamar, o Bem é a pureza e inocên-cia de Rosa que, no confronto com as forças da opres-são, termina derrotada, sozinha, sentada no chão, comose fosse um móvel abandonado. O Mal é o sistema polí-tico organizado como falsa democracia,30 pronto a exter-minar os frágeis direitos dos pobres. O Bem é ahumildade e resignação, o direito de ter uma habitaçãosingela que seja. O Mal, a arrogância e crueldade inca-paz de reconhecer esse direito.

Em Os Deserdados, o Bem é a consciência de quea seca resulta da perversidade do homem. Não é mais ahumildade e subserviência que Rosa representou, po-rém o protesto de Hortênsia, que acredita na redenção.O Mal são aqueles de como Augusto, se valem da misé-ria e se tornam latifundiários, adquirindo por pouco di-nheiro as terras dos flagelados. São os que mandamcercar os açudes a fim de que os sertanejos sedentosse curvem mais ainda aos seus propósitos. O Bem é ajustiça vitoriosa, quando as causas das desigualdadessão destruídas pelo próprio povo.

Em suma, em qualquer situação, o Mal é repre-sentado pelo abuso do poder, pela riqueza concentradanas mãos de poucos, e o Bem, pela inocência dos sub-missos. Como naturalmente se trata de uma luta desi-gual, é de esperar que a maldade mantenhacontinuamente o seu império, aumentando o sofrimen-to dos pobres e multiplicando a força dos poderosos. Daíum necessário teor de pessimismo que ressuma dacosmovisão de Eduardo Campos.

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NOTAS

1. MOISÉS, Massaud. Guia prático de análise literária. São Pau-lo, Cultrix, 1970, p. 252.

2. DAICHES, David. Posições da crítica em face da literatura. Riode Janeiro, Liv. Acadêmica, 1967, p. 379.

3. A contribuição de Manfred Kridl, idealizador de um “métodointegral” para a análise literária, ecoou no Brasil graçasinicialmente ao aplauso de Afrânio Coutinho. Ressalte-seque entre nós o método foi aplicado com êxito por F. S. Nas-cimento em A estrutura desmontada, trabalho que secentra no estudo meticuloso das obras de Durval Aires.

4. LYRA, Pedro. Utiludismo – a socialidade da arte. Rio de Janei-ro, Tempo Brasileiro, 1976, p. 67.

5. Apud FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 3a. ed. Rio deJaneiro, Zehar, 1971, p. 14.

6. Apud FISCHER, Ernst, op. oit. p. 14.7. SÁ, Adisia. “Morro do Ouro”. Tribuna do Ceará, Fortaleza, 7

ago.8. Cf. O Povo. Fortaleza, 22 set. 1977.9. Braga Montenegro (Cf. Correio retardado II. Fortaleza, Se-

cretaria de Cultura e Desporto do Ceará, 1974, p. 58) assi-nala que as personagens de Eduardo Campos manifestamsempre o mesmo comportamento psicológico na convivên-cia social e doméstica, a mesma atitude de resignação eaceitação passiva do destino. Conquanto a referência seaplique precipuamente à análise da coletânea O abutre eoutras estórias, vale comentar que Rosa foi traçada com osatributos acima aludidos e talvez mais que em qualquer cri-ação do autor nela se acentuam as marcas de uma concep-ção determinista da vida. Mas é necessário um reparo naobservação de Braga Montenegro, que generaliza todas aspersonagens num molde único. Há em verdade algumas quelutam contra a força do destino e assim a resignação é subs-tituída pelo desespero.

10. Há uma curiosa tendência de Eduardo Campos para desig-nar suas personagens femininas com nomes dessa espé-

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cie. Além de Rosa e Hortênsia, encontra-se Margarida emMorro do Ouro; em O chão dos mortos podem ser lembra-das as personagens Rosita, Rosaura, Rosinha e Margarida.Com certeza, não se trata de pura coincidência e um inven-tário nesse sentido forneceria material para muita especu-lação.

11. M. Rodrigues Lapa, ao explicar os campos afetivo e imagina-tivo-sensorial do significado, menciona dois processos bási-cos de associação: a fantasia e a parafantasia. Pelo primeiro,as imagens sensoriais provocadas por um termo se ligamdiretamente ao objeto representado, tal como sucede com ovocábulo “chuva” que pode conotar, entre outras coisas, o chei-ro da terra, a poeira escura levantada, os arrepios de frio, oruído abafado ou a imagem visual das cordas de água. Quan-do, porém, as associações transcendem o campo semântico eoferecem representações que pouca ou nenhuma relação têmcom o vocábulo, ocorre o fenômeno da parafantasia. Assim, apalavra “avião” se conecta por exemplo com um selo postal.(Cf. LAPA, M. Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. 6a.ed. Rio de Janeiro, Liv. Acadêmica, 1970, p. 12).

12. Neste sentido, é curioso constatar que, também no roman-ce O Chão dos Mortos, a personagem José Cândido, cujonome deveria expressar valores positivos, simboliza a mes-ma maldade de Augusto.

13. FISCHER, Ernst. op. cit. p. 58.14. Cf. loc. cit. p. 15.15. CÂNDIDO, Antônio. Literatura e sociedade. 2a. ed. São Pau-

lo, d. Nacional, 1967, p. 55.16. Cf. idem ibidem, p. 55.17. SODRÉ Nelson Werneck. Ofício de escritor. Rio Brasileira,

1965, p. 120.18. Enquanto isso, os contrabandos de vulto nunca são desco-

bertos e participam do quadro de corrupção que nutre o sis-tema do “laissez-faire/laissez-passer”, desde que embenefiício dos mais fortes. Mas o povo não está tão alienadoem relação a isso e muitas vezes o autor faz que suas perso-nagens se manifestem conscientes da verdade. Assim,

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Esmeralda replica que “o contrabando só dá resultado mes-mo para deputado e gente rica” (p. X). Analogamente, acorrupção é denunciada também em Rosa do Lagamar, fir-mando-se a tese de que a riqueza em síntese é obtida medi-ante processos espúrios. O vigia da construção do Dr.Severiano raciocina a esse propósito: “Doutor, o senhor medesculpe, mas me disseram que essa fartura de casa bonitana cidade é por causa de uma tal sonegação do imposto derenda” (p. 16).

19. RAMOS, Graciliano. Vidas secas. a. ed. São Paulo Liv. Mar5, 1964.

20. MOISÉS, Massaud. op. cit. p. 214.21. Cf. op. ci p. 185.22. Para uma melhor compreensão do teatro de Beckett, veja-

se BERRETTINI, Cália. A linguagem de Beckett. São Paulo,Perspectiva, 1977.

23. MEDEIROS, Aluízio; “O tempo e alguns símbolos drama-túrgicos”. In: Critica. Fortaleza, Edições Clã, 1956, p. 173.

24. OLSON, Elder. Tragedy and the theory of drama. Detroli WayneUniversity Press, 1966, p. 32.

25. Embora esta talvez não seja a ocasião apropriada, a título decomparação podem ser indicados exemplos semelhantes,colhidos dos romances escritos pelo autor. De O Chão dosMortos: “sirigaitas” (p. 28): “tendo de um tudo” (p 31); “veiover que despropósito era um” (p. 46); “que danação era uma”(p 55); “que mania é uma!” (p 56); “passa os dias assuntan-do” (p. 56); “andavam nos trinques, derretidas!” (p 98); “eguan-do dentro da mata” (p 98); “futrica” (p 104); “dava de um tudo”(p. 129); “trinta e seis bagarotes” (p. 130); “desamarrava asenfias” (p. 132); “ela vai nos trincos” (p 167): “não pode sujigar”(p 183); “que despotismo é um?” (p. 184); etc. etc. De À Vés-pera do Dilúvio: “que desespero é um?” (p 27); “tempodanisco” (p 36); “tem sido um caé danado” (p 27); “não fossemamparrear (p. 104); “desembuche, seu diabo!” (p. 105); “pro-curava não intrujar” (p 215): “sortira a casa dela de um tudo”(p. 222); “vamos seguir mesmo nesse torô” (p. 228) etc. etc. Épreciso ressaltar que nesse acervo de vocábulos e expres-

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sões populares há vários casos de cearensismos, como “paidégua”, “eguar”, “arre égua”, “cafute”, “enfias”, “caé” etc. Deoutro lado, verifica-se a ocorrência de variações morfológicasou talvez puramente gráficas, como “sirigaita” ou “serigaita”,“trincos” ou “trinques” etc. Há, porém, casos de evidenteultracorreção, conforme se dá em “bozerra” (À Véspera doDilúvio, p. 172), cujo registro real deveria ser “bozera”.

26. Não será radicalismo inconseqüente conceber a criação esté-tica sob este prisma, posto que um mesmo conteúdo temáticopode ou não ter formalização literária conforme o discurso uti-lizado. Os relatórios de pesquisas aplicadas no Lagamar, noMorro do Ouro ou nas caatingas secas do sertão, conquantopudessem estampar exatamente os mesmos dados assinala-dos nas peças de Eduardo Campos, nem de longe seriam ma-nifestações artísticas. Em suma, será pois a organização dodiscurso o traço definidor da especificidade e do valor estéticoda obra produzida. Aliás, até mesmo alguns pensadores da li-nha marxista, que obviamente deveriam centralizar no con-teúdo o mérito das criações literárias, entendem que “avitalidade e a duração de uma obra e dos tipos nela figuradosdependem, em última análise, da perfeição da forma artísti-ca.” (Cf. LUKÁCS, Georg. Introdução a uma estética marxis-ta. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 288).

27. A Prefeitura Municipal de Fortaleza, em justa homenagem,fez apor no Teatro José de Alencar uma placa de bronze co-memorativa da centésima apresentação de Rosa doLagamar. E quantas outras encenações já não houve depoisdisso?

28. É preciso lembrar que, apesar dessa observação, já foramfeitas adaptações para a peça Morro do Ouro, como a querealizou Haroldo Serra, dotando-a de enorme plasticidade emusicalidade. Com a devida autorização do autor, HaroldoSerra procedeu a uma reformulação cônica, distanciando-se da versão original por meio do recurso a uma trilha sono-ra de autoria de Jorge Melo e Belchior, em que seintensificou a mensagem de escárnio e condenação às in-justiças sociais. Efeitos musicais, iluminação, projeção de

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“slides” e inclusive grandes rampas erguidas do palco paraas frisas, ampliaram consideravelmente o colorido e belezado cenário, cujo efeito maior foi o de aproximar o sentimentodos espectadores às expressões dos atores, tal como anseiao discutido teatro de participação.

29. O próprio autor, em diversas entrevistas a jornais, assim semanifesta.

30. Ressalte-se que os políticos, cuja missão deveria ser a deestarem ao lado do povo, defendendo-o e promovendo o bem-estar social, são os principais agentes da opressão. Aqui seexpõe a ironia do autor quando escolhe um representantedo povo no governo para encarnar o anti-povo, aquele que sóaceita os seus próprios direitos e aparece cinicamente comoo defensor dos desfavorecidos. São palavras do Dr. Severiano:“Eu sou democrata progressista. Sei compreender o povo, osseus problemas de ordem social.” (p. 12)

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O ROMANCEO Sentimento da Tragédia

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1 O CHÃO DOS MORTOS:O ÚNICO DIREITO DOS OPRIMIDOS

O OBJETIVO maior de Eduardo Campos, aoestruturar o seu romance O Chão dos Mortos, foi semdúvida o de fazer uma crítica do sistema político que, aoinvés de resolver os problemas da coletividade, é umaarma nas mãos de oportunistas que só pensam em au-mentar o prestígio e a riqueza. Logo na primeira páginajá se constata essa preocupação de denunciar as imora-lidades do poder público. O órgão responsável pelas obrascontra a seca só elabora projetos que tenham a marca dointeresse particular. Assim, quando um açude vai serconstruído, o governo sabe que dispõe de uma moedavaliosa com a qual terá eleições garantidas e fará com-pensações em seus esquemas políticos (Cf. p. 10). Poroutro lado, muitos reservatórios ficam apenas em proje-tos que servem para enriquecer os proprietários de ter-ra. Na realidade, nunca serão executados. E há os quevisam somente à danificação de áreas que poderiam pro-duzir mais alimentos para os sertanejos. O governo sevale da ignorância do povo para ludibriá-lo, viabilizandoprojetos de conveniências individualistas.

Em todos os setores impera a corrupção total. É oempreguismo alicerçado no prestígio dos deputados.1 Éa sonegação dos impostos,2 o desvio de verbas destina-

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das às cidades do interior que, em conseqüência, ficamestacionadas no tempo com um povo miserável e mal-trapilho.3 É a inutilidade da Justiça que só defende asambições dos vinculados à estrutura do poder. A Justi-ça desmoralizada, a serviço dos políticos.4 E é sobretudoa indústria da seca5 da qual se aproveitam aqueles quemais deveriam praticar a solidariedade humana.

Por tudo isso, o narrador não esconde sua repug-nância e, seja diretamente, seja através do discurso desuas personagens, condena os atos de abuso do poder eprega seus anseios de uma sociedade mais justa e evo-luída. Embora o quadro reinante produza um sentimen-to de pessimismo e descrença, de vez em quando háreflexões sobre os caminhos que deverão ser tomadospara que esta sociedade exista de fato:

É mesmo verdade que o povo está subnutrido.Pobre Ceará! Somente quando existirem mi-lhares de açudes, garantindo água e irrigaçãopara as mais diversas culturas, poderão os ho-mens desfrutar a fartura e o bem-estar. Serãotodos, então, gordos e sadios como as pessoasque aparecem nos anúncios de fortificantes.(p. 12)

As soluções são, por conseguinte, óbvias e conhe-cidas de todo mundo. Mas os que poderiam facilitá-lasnão têm senso humanitário, apodrecem em suas cobi-ças e só lhes apetece a ruína do povo, com medo de quequalquer mudança na situação possa prejudicá-los. Ali-ás, a primeira impressão é a de que o narrador crê im-possível uma regeneração dos costumes políticos econseqüente melhoria das condições de vida dos desas-sistidos. Não obstante, acha que os bem-intencionadosdevem reagir, pondo entre parênteses o risco do fracas-so, mantendo aceso o ideal de revalorização do homem.

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E para símbolo desse ideal o narrador cria umadas personagens mais fortes do romance O Chão dosMortos. Como não poderia deixar de ser, o leitor chegaa identificá-la em seus propósitos com o próprio autor,pela convicção do compromisso da literatura expressono seguinte enunciado:

Se ele tivesse estudo, soubesse português, iaescrever um romance... meter num livro todaa história da luta dos bem intencionados, foca-lizando a influência desastrosa da política, acorrupção... (p. 25).

Esta personagem se chama Francisco do Carmo.Exerce a função de humilde desenhista, que peleja paraconservar impoluta sua consciência, atrasando-se comisso em suas promoções, enquanto outros menos capa-zes e mais novos no serviço atingem posições de desta-que. Tem o dever de traçar o projeto de um açudegigantesco, de propriedade de um coronel do sertão, tãoperverso que só visa com a construção da represa a inun-dar as terras de um sítio vizinho, prejudicando grandeparte da população da cidade. Francisco do Carmo per-cebe pela orientação que lhe foi dada que aquele açudenão pode ser construído e reluta em finalizar o dese-nho, raciocinando que, se por um lado continuará sempromoções, por outro terá a sensação de não ter vendi-do a sua própria consciência. Sofre pressões inclusiveda esposa, que o considera um tolo. Mas é o chefe Dr.Roberto quem mais procura convencê-lo a deixar de tan-tos escrúpulos e a concluir o projeto conforme as ins-truções, porque há interesses políticos envolvidos epressa de ser executado. O desenhista resolve entãoencontrar um meio que o impossibilite de ser coniventecom atos tão repelentes e se fere com uma lâmina debarbear. O Dr. Roberto faz-lhe ver que suas reações são

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inúteis e o recrimina com veemência: “Se você fossemais inteligente veria que já perdeu excelentes oportu-nidades de subir na repartição.” (p. 22)

Francisco do Carmo é acima de tudo um idealista.Revoltado, nutre o sonho de um dia galgar um posto derelevância, quando então semeará açudes por todo oCeará e punirá os homens acostumados à trapaça (p.24). Em casa, não é compreendido pela esposa e ignoraque o coronel José Cândido terminaria por visitá-lo como fim de conseguir o seu intento. José Cândido é calcu-lista, frio, ardiloso. Ao chegar, mantém-se solícito ealheio, como se o traço que faltava no desenho deixassede constituir algum mal. Francisco do Carmo tenta ex-por-lhe suas razões, mas o coronel mostra que o projetojá está assinado pelo Dr. Roberto e, por esse motivo, dequalquer maneira seria viabilizado. Nenhuma respon-sabilidade tinha agora o desenhista, porém o espantofaz crescer o dilema que aos poucos experimenta, quan-do o coronel usa de estratégias infalíveis, como a doconvite para umas férias em sua fazenda. A esposa e ofilho de Francisco do Carmo se motivam na ânsia dedesfrutar dessas férias e assim o dilema chega ao pontomáximo de exigir uma decisão:

Todos três acompanhavam os seus gestos,aguardando que ele acabasse de limpar aque-la ridícula mancha, desfazendo, uma vez portodas, a sua inócua atitude de herói. Bastavaaquilo, completar o projeto para que a famíliapudesse desfrutar quinze ou vinte dias numafazenda no interior... Não, – arrependia-se –não estava direito! Era preciso fazer força,agüentar firme diante das tentações. Mas, ou-tra vez, Pedrinho avultou em sua frente. Ma-gro, que menino magro! Bem que podiamelhorar se fosse para o sertão. (p. 41)

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Que se poderia esperar senão a anuência e resul-tante sentimento de derrota e vergonha? Francisco doCarmo a partir de então perde a sua paz de espírito e sóa recupera quando, disposto a ser exonerado do empre-go, viaja ao município onde estava sendo erguida a bar-ragem do açude. Lá, depois de tomar conhecimento deque a fazenda a ser arrasada pelas águas pertencia aoDr. Leandro, vai entender-se com ele e expõe toda atrama do coronel José Cândido. Dr. Leandro já tinha acerteza de tudo, já fora até averiguar o andamento dasobras e agora, ao encontrar-se com o projetista, decideque o único recurso é uma ação judicial. Mas José Cân-dido tem prestígio político e qualquer esforço no sentidode obstaculizar os seus intentos será inútil.

Dr. Leandro é descrito com os atributos contráriosaos do coronel. Enquanto este remunera desumanamenteseus operários e pouco liga para o progresso do municí-pio, aquele se preocupa com a questão social e quer quea produção de sua fazenda reverta também em benefíciode seus trabalhadores. Um deles, chamado Frederico,ambiciona ter sua própria terra e propõe que um dia,quando conseguir o dinheiro suficiente, comprará umapequena parte da fazenda em que trabalha. Dr. Leandroaquiesce prontamente. Entretanto, depois de juntar aimportância estipulada, Frederico não pode concretizar osonho. Seu patrão, dando uma lição de honestidade, ex-plica que a terra fatalmente será destruída pelas enxur-radas e, dessa forma, não poderá vendê-la.

O sertanejo humilde se revolta. E uma vez, quandoo pároco na homilia questiona os motivos da falta dechuvas, dirigindo-se dramaticamente aos fiéis, Fredericoresponsabiliza em voz alta o coronel José Cândido pelaseca que ameaça o sertão. Somente a ruína do coroneltraria ao povo o progresso e bem-estar.

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Aqui é possível traçar um paralelo entre persona-gens do romance O Chão dos Mortos e da peça OsDeserdados. Conforme ficou estudado, a seca em OsDeserdados é explicada como um castigo pela existênciada maldade, simbolizada pela figura de Augusto, comer-ciante aproveitador da miséria dos flagelados. Hortênsiaé que, em seu poder de clarividência, percebe que só adestruição de Augusto trará a redenção dos sertanejos.Em O Chão dos Mortos o procedimento é análogo:Hortênsia é substituída por Frederico e Augusto, pelocoronel José Cândido. Tal como Hortênsia, Frederico en-tende que a falta de chuvas é um castigo de Deus:

Adivinha em tudo isso a mão de Deus, por ca-minhos de muito sofrer, de muita provação,querendo experimentar os homens. Ele estácerto de que Deus não mandou o inverno por-que não quer o Catoré cheio, cobrindo a terraque seria sua. (p. 181)

E admite que lhe foi confiada uma missão na ter-ra, a missão de exterminar o demônio. Se Hortênsiaafirma que Augusto é o satanás, Frederico exclama queJosé Cândido é o demônio e decide que o povo deve lu-tar para tornar-se livre. Todavia, ao passo que Hortênsiacomanda um grupo de sertanejos e incendeia a proprie-dade de Augusto, Frederico só o realiza em seu estadode alienação. Ele enlouquece e crê que todos os amigosestão de seu lado, prontos para agir:

– Você precisa ver, mulher! Então, os meusamigos ouvem meu apelo, correm para cá, evocê quer que eu não me alegre? Isso, nunca!– Baixando a voz, que quase sumia na gargan-ta: – Nós vamos abrir a parede do açude! En-quanto a maldita barragem estiver de pé, nãochove! Mas não chove mesmo não! (p. 184)

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A loucura de Frederico aponta para um sentido mai-or de tragédia em O Chão dos Mortos do que em OsDeserdados. É a convicção de que a luta é impraticável,tal o estado de despojamento de direitos em que seacham os sertanejos, escravizados por um regime quepremia a corrupção e pune a honestidade. É verdadeque ao longo do romance se esboçam tentativas de rea-ção, mas todas sufocadas pelo poder dos mais fortes.Até o esforço de Zeca Paulino termina em tragédia. Eleadquire um ônibus que levaria operários mal remune-rados a tentar uma melhoria de vida em outras cidadesdo Brasil, principalmente em Brasília. José Cândido sejulga insultado e arquiteta um plano para ver-se livreda ameaça de Zeca Paulino. Coincidentemente, o ôni-bus, depois de algumas viagens, é destroçado por umdesastre. Finda em tragédia também a miragem deFrederico, crente de que porá um termo aos desmandosdo coronel. De enxadeco sobre o ombro, ele vai em dire-ção da fazenda de José Cândido, e sua esposa, desespe-rada, sucumbe acometida por um ataque. Terá direitoapenas ao Chão dos Mortos, pois esta é a sina dos serta-nejos massacrados pelo sistema político.

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2 O DILÚVIO: O OUTRO GRANDE CASTIGO

SE O Chão dos Mortos tematiza de alguma manei-ra a problemática da seca no sertão cearense, À Véspe-ra do Dilúvio explora o extremo oposto ou, como o titulolá sugere, as cheias arrasadoras que liquidam planta-ções, criações e famílias inteiras de nordestinos. Assimé o Ceará: uma terra de contrastes inesperados em que,após um longo período de sol causticante, com animaise homens morrendo à míngua por falta de água, podesobrevir uma enchente das proporções de um dilúvio. E,tal como a seca, o dilúvio lá ocorreu diversas vezes, duasdas quais ficaram indelevelmente gravadas na memó-ria do povo, pelas conseqüências desastrosas que o ar-rombamento de açudes veio causar. Com efeito, em 1960repetiu-se com intensidade redobrada o fenômeno de1924. Todo o Brasil se estarreceu ante a gigantescaenxurrada que levou o Jaguaribe, “uma artéria abertapor onde escorre e se perde o sangue do Ceará”, a inva-dir as casas dos sertanejos, deixando-os desabrigados ecarentes de tudo, porque o que possuíam foi arrastadopela fúria da correnteza. Eduardo Campos descreveuexatamente esta tragédia, escolhendo para ambientede seu romance uma vila localizada no município deRussas, um dos mais sinistrados de todos. Aguavaçu é onome do povoado e, embora possa ser criação do autor,

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não deixa de adaptar-se bem à toponímia brasílica,6 for-mada de nomes de origem indígena em grande parte,muitos dos quais findos pelo sufixo açu. Ora, este sufi-xo tem valor aumentativo e assim o nome da vila, naverdade um composto híbrido, traz o signo da desgraçaque fatalmente haveria de suceder.

A população do lugarejo é humilde e, tirante a fi-gura do coronel Sabino, fazendeiro típico do Nordeste,todos são indivíduos de poucas posses e ambições limi-tadas. Alguns trabalham para o coronel e fazem o queele ordena, seja certo ou errado. É o vaqueiro ChicoJusto, é o tirador de leite Miguelino. Outros queremlevar uma vida independente, mas são por isso perse-guidos. É o protestante Zé do Egito, é a amante deFrederico, a dona da casa do oitão preto. E, fiscalizandoo comportamento geral, aparece o vigário, um velho sa-cerdote que, perdido naquelas brenhas, sofre os maio-res recalques, sentindo-se alquebrado e desprestigiado,com todos os sonhos fracassados, inclusive o de chegara bispo ou monsenhor. Agora, aos setenta anos, vê quenenhuma perspectiva existe a não ser a de continuar“simples vigário de anônima e desprotegida freguesiadestinada a albergar um ou outro sacerdote depauperadode saúde” (p. 8). Por sua idade e alienação a que forço-samente chegaria longe dos centros desenvolvidos, Pe.Firmino teria que ser um conservador radical. E dessaforma, mal soube das reformas por que estava passandoa liturgia da Igreja Católica, logo entrou a se consumirno sofrimento, inaceitando por precipitadas e incabíveisas mudanças propostas pelo Concílio Ecumênico doVaticano.

Neste ponto, é necessário refletir sobre o segundomotivo em que se baseou Eduardo Campos para a cons-trução de seu romance. Conhecendo os costumes dosertão, sabendo interpretar o sentimento místico dos

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cearenses, afeitos a explicar os fenômenos naturais pelaóptica do sobrenatural, de imediato percebeu o autorque as decisões emanadas do Concílio iriam chocar-secom a mentalidade retrógrada do povo nordestino e difi-cilmente seriam assimiladas pelos padres antigos, acos-tumados a celebrar em latim, a usar a batina e a seguirrigidamente os preceitos de uma religião que combatiaos que dela não fizessem parte. Na realidade, até bempouco tempo o catolicismo se definia a si mesmo como oúnico meio de redenção do homem e eliminava, conde-nando, qualquer outro caminho. As seitas protestanteseram duramente atacadas nas prédicas dominicais e osfiéis eram alertados pela ameaça de maus dias para avida terrena e possibilidade do fogo do inferno para avida eterna.

A simultaneidade dos dois eventos, isto é, a deci-são dos bispos no Vaticano em favor de uma religiãomenos punitiva e a enorme cheia do Jaguaribe fez que onarrador articulasse um meio de interpretar conjunta-mente os fatos, como se um dependesse do outro. Emúltima análise, bastaria explicar o dilúvio como uma in-satisfação de Deus pelos atos dos homens, punindo-osseveramente, à semelhança do relato bíblico. E assim afigura do Pe. Firmino se movimenta como eixo central,amaldiçoando os impuros e prevendo a catástrofe quehaveria de sucumbir sobre eles.

Pe. Firmino, a princípio, enfrenta o dilema entremanter-se fiel às suas tradições eclesiásticas e atuali-zar-se às novas normas emanadas de seus superiores.Como dizer a seus paroquianos que as rivalidades entreas igrejas haviam sido extintas, “que padres e ministrosprotestantes estavam dispostos a empreender um tra-balho sem ressentimentos, cada qual por seu caminho?”(p. 10) Em sua paróquia havia um protestante por quemcultivava um ódio muito forte e agora deveria curvar-se

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a ele, conceder-lhe liberdade para pregar o evangelho,sem receio de ser importunado pelos católicos. Não. Se-guramente, para Pe. Firmino e seus seguidores, só ha-via uma estrada da salvação. E a desgraça que ocorressena terra devia ser motivada pela militância dos que sedesviassem da rota.

Pe. Firmino resolve então entender-se com seu su-perior hierárquico e escreve uma longa carta aoMonsenhor Rocha em que define sua posição. Declaraentre outras coisas que não tem forças bastantes paraestender a mão aos inimigos da igreja, para o “repelen-te José do Egito, protestante abjeto” que vem tentandoconturbar o trabalho que desenvolve em Aguavaçu. (p.71) Situa-se entre os que “acreditam na respeitabilidadeda batina, que não se conformam, de modo algum, coma excessiva modernização da igreja, de modo abrupto,sem dar tempo a que os fiéis entendam” (p. 70). E insi-nua que prevê maus dias para o mundo, com a glória daigreja seriamente ameaçada, tido por culpa da negli-gência ao cumprimento rígido à palavra de Deus.

Sente-se, portanto, que o retrato do Pe. Firminovai sendo traçado paulatinamente para desempenhara mesma função de Hortênsia e Frederico.7 Se a estasduas últimas personagens cabe o papel de lutar contrao mal, firmando a concepção da seca como um castigodos céus, de modo análogo o dilúvio iminente é inter-pretado pelo vigário como o resultado da ira de Deusface à presença ignominiosa dos impuros. Aos primei-ros sinais da enchente, Pe. Firmino já se percebe cla-rividente como Hortênsia e divulga que dias terríveishaverão de vir. Alarmando ao máximo os efeitos inici-ais da cheia, tenta providências junto ao governo, quelogo designa um funcionário para inspecionar as áreasatingidas. O funcionário, ao apresentar-se, é surpre-endido pelas palavras do vigário: “Estamos sendo cas-

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tigados porque o mundo está atochado de pecadores.Os homens cada vez se distanciam de Deus...” (p. 99).

Assim, a atitude visionária do Pe. Firmino vaiengendrando um processo de loucura, tal como suce-deu a Hortênsia e Frederico. Do mesmo jeito que estesdizem combater contra o demônio encarnado na figurados aproveitadores da miséria, ele sente que deve arre-meter-se contra o satanás, presente no espírito dos pe-cadores:

É preciso vencer as manifestações do demô-nio! O demônio está ao derredor de nós! Forte!(p. 134).

E o padre conclama aos fiéis em procissão, paraque expulsem da vila não apenas o protestante Zé dosBodes mas todos os que pecam:

O mundo está cheio de pecados! Os que vivemda desgraça e fraqueza da carne estão trans-formando o paraíso terrestre numa sementei-ra do demônio. A prostituta Zulmira respondepela nossa intranqüilidade! Esta mulher terrí-vel, que vive emaranhada na luxúria... (p. 135)

José do Egito, o Zé dos Bodes como era conheci-do pejorativamente, sente as ameaças que pesam so-bre sua família e compreende que deve sair deAguavaçu. Homem de bom coração, por ironia do des-tino foi quem se prestou a levar ao Monsenhor Rochaa carta do Pe. Firmino. Agora, forçado a abandonarsua terra, ele, sem guardar a menor queixa do reve-rendo, apenas lamenta perder a paisagem que ficavae que tanto o arrebatava (p. 138). Durante o tempo emque residiu naquele povoado, teve que isolar-se porcausa das perseguições dos outros moradores. Até seufilho Samuel estava sendo julgado como um menino

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de mau olhado e responsável pelas desgraças dos agua-ceiros. José do Egito não teve, pois, a felicidade deser beneficiado pela aplicação das normas do ConcílioEcumênico. Estas, em vez de ecoarem positivamenteno coração do vigário, terminaram acelerando suainsanidade mental.

Por isso, sem temer as conseqüências de umaexcomunhão ou pelo menos de uma suspensão de or-dem, Pe. Firmino passou a adotar uma atitude intransi-gente de interpretação dos fatos, atribuindo a tudo amarca da penetração do demônio, como se a todo ins-tante estivessem aparecendo os sinais do tempo:

Deus está preparando o nosso sacrifício. Vejaesse tempo que tem caído ultimamente sobreo Ceara. Vá reparando. Veja o amor pecami-noso das criaturas. (...) Há uma onda de desa-gregação varrendo o mundo, homem falandofino, virando mulher, mulher querendo serhomem, gente sem moral que dia a dia perdea fé... (p. 175)

E a angústia do velho pároco não o deixa mais dor-mir. De noite, é sobressaltado pelos mais terríveis pe-sadelos e crê-se, assim como Hortênsia, possuidor depoderes. Ele recebe os avisos de Deus e, na sua óptica,julga ter a missão de salvar os justos no momento dagrande hecatombe. Em seus delírios, não se cansa declamar:

– Não! Não! Eu tenho uma missão histórica.Eu vou salvar os filhos do Senhor! (p. 189)

Dessa forma, quando o temporal desaba sobre a vilae a água começa a cobrir o telhado das casas, Pe. Firminonão se espanta e tem convicção de que a hora do juízofinal está próxima. Ele experimenta, além do sentimento

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de responsabilidade pelos verdadeiros seguidores de Cris-to, uma espécie de satisfação ao perceber que “aquelaságuas barrentas em breve estariam alcançando as ca-sas, afundando os pecadores, os falsos cristãos” (p. 221).E assim, na frente de todos, sua voz vitoriosa alerta in-sistentemente:

Somente os fortes, os que não foram domina-dos pelo pecado, se salvarão. (p. 221)

O clima do misticismo fanático finalmente dominaos habitantes da região. E logo alguns confessam publi-camente os seus pecados, na esperança de merecer aproteção do enviado de Deus. E quando avistam umabarca, providenciada pelo governo para resgatar as víti-mas, todos se crêem diante de Noé e pensam que oepisódio bíblico se repete. O padre continua gritando, jácom a voz rouca, dando ordens para todos, cônscio deque, como Noé, terá o privilégio de escolher os que fica-riam para semente de uma nova raça de homens puros.“Haveriam de o compreender um dia, pensava consigomesmo, quando a frágil arca que a enviara Deus, pou-sasse outra vez na terra firme e os que se salvarem eele, semeassem a semente isenta do pecado...” (p. 250)

É nesse contexto místico-visionário, no ato da con-fissão pública dos pecados, que cresce a figura de Alice,tornando-se uma das criações mais surpreendentes donarrador. Alice se transforma com efeito em uma per-sonagem esférica, por suas imprevisíveis tomadas deatitude. Existindo em função das circunstâncias, a prin-cipio é caracterizada como mulher de elevada formaçãomoral, esposa do velho coronel Sabino, homem de maiorprestígio na região. Aos poucos, a incipiente decrepitudee anulação dos apetites sexuais do fazendeiro em con-traste com a jovialidade e fúria uterina de Alice condu-

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zem a tentação do adultério. Ela começa por encher ospensamentos de desejos pelo capataz, o homem de con-fiança do coronel. E submerge na angústia de sufocaros ímpetos afrodisíacos para não destruir as bases desua consciência:

Sentia-se inexplicavelmente nervosa, como seestivesse a desejar algo de estranho a seus há-bitos de mulher compenetrada dos deveres ma-trimoniais. Trêmula, sente que a presença dofeitor, naqueles poucos instantes, despertara emsi a sensação de abandono em que vivia, semter quem, tão rijo e tão forte como aquele ho-mem, a apertasse de encontro ao peito. (p. 48)

Alice tenta em vão sublimar a ânsia de afeto, aca-riciando o marido para ver se consegue algum resulta-do. E sempre a situação finda de modo cômico: elecomeça a tossir e, a pretexto dessa tosse interminável,desgarra-se da mulher e vai ficar à janela, buscando oalento. E ante o corpo sequioso da esposa a provocá-lo,“desanda até a cama, nervoso, e se esconde debaixo dolençol sem mais querer vê-la” (p. 53)

O feitor, por sua vez, percebe as intenções de Ali-ce, sabe que ela lhe mostrava o “branco sem sol dascoxas” de propósito (p. 91). E passa a olhá-la de outromodo, esperando pela primeira oportunidade. Mas nãoserá ele quem possuirá Alice. Será um rapaz de Forta-leza, encarregado de verificar as proporções da enchen-te e prestar a ajuda do governo aos desabrigados. Logoque se conhecem, vêem-se presos por uma atração re-cíproca. João Paulo admira os gestos da mulher, “o an-dar macio acentuado por um requebrar de quadris quelhe parecia feito de propósito” (p. 103). Alice se encantacom as palavras e olhares que lhe são endereçados e atodo instante seus passos nervosos denunciam o inte-

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resse de contemplar o rosto do futuro amante (p. 111).Agora já se veste com malícia, estudando o decote a serusado, deixando displicentemente um pouco desabotoa-do o vestido à altura dos seios para chamar a atenção.Até que finalmente surge o encontro sonhado por am-bos: João Paulo e Alice se amam demoradamente, apro-veitando a ausência do coronel.

Prenuncia-se que o caso dos dois amantes se torna-rá duradouro pela própria evolução dos sentimentos deJoão Paulo. Se no início ele apenas imaginara aproveitar-se, logo concebe que Alice não era leviana e de repentefirma a vontade de levá-la para Fortaleza. Amam-se maisuma vez romanticamente no mato, “sob um apaziguanteverde que lhes penetrava a alma” (p. 159), fortalecendo aspromessas de uma paixão inquebrantável.

Entretanto, logo os murmúrios tomam conta do povo-ado e a notícia do adultério de Alice é transmitida de bocaem boca. O primeiro a suspeitar foi o feitor Chico Justo,que não se conteve e, movido pelos ciúmes, decidiu reve-lar todos os indícios ao próprio coronel Sabino, quase exi-gindo-lhe em troca uma providência contra João Paulo.Assim, o pistoleiro Miguelino, de há muito decidido a nãomais assassinar quem quer que fosse, teve que cumpriras ordens do coronel, embora este jamais se convencessede que sua esposa realmente o havia traído.

Depois de tudo, Alice experimenta a sensação dedesamparo e medo. Quando contempla a vila imersa nacorrenteza do Jaguaribe, ela crê nas palavras proféticasdo Pe. Firmino e julga-se culpada pelo castigo dos céus.A dúvida cresce em seu espírito, o terror do juízo final asufoca mais do que a paixão que tinha por João Paulo. E,numa cena pungente, tal a Madalena das Sagradas Es-crituras, resolve pedir o perdão de Deus.

Não há quem não se espante com o gesto de Alice.O coronel, vendo-a trêmula, ajoelhada naquele chão sujo

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de lama, tenta em vão tolher-lhe os movimentos, naimpressão de que ela havia enlouquecido. Mas Alice estádisposta a redimir-se diante de todos. O Pe. Firmino,pronto a interpretar qualquer evento como um aviso deDeus, regride ainda mais em seu conservadorismo eexige que ela se submeta a uma prova humilhante, paradecidir pela verdade ou falsidade de sua confissão. Acena, em que a figura marcante do Pe. Firmino já ad-quire o tom de um líder carismático, pelo aspecto inusi-tado e dramático deve ser aqui reproduzida:

A voz de Firmino erguia-se forte, imperativa,para Ambrósio:– Traga a água da amargura, de que fala a Bí-blia. Está no altar. D. Alice vai submeter-se àprova do adultério...Sabino desesperou; não se podia conter:– Louco! É um despropósito!Trêmula, a mulher jazia ajoelhada aos pés deFirmino, cabisbaixa, submissa. Que lhe impor-tava enfrentar aquela situação? Não lhe adi-antava o que podiam os outros pensar de seucomportamento; o fim estava à vista.O padre recebeu do sacristão o copo d’água.Quando o estendeu à Alice, a sua voz era clara:– Beba! Se tiver em falta, a água crescerá den-tro de seu corpo, inchará em seu ventre e as-sumirá uma de suas coxas. A mulher que assimsofrer será castigada. Se a senhora não esti-ver contaminada, eu a declararei livre, econceberá.Sabino vociferava: – Doido! Você não sabe oque faz!Partiu sobre ele, certo de esbofeteá-lo. Masempacou ao ver a mulher sorver o líquido quelhe ofereciam. E agora? Que aconteceria a Ali-ce? – perguntava-se a si próprio.Assaltava-o a impressão de que o ventre damulher ia crescer, e isso sabia ele como febre

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que irrompe sem se querer. Uma sensação dehumilhação o invadia ante a gente toda que ocontemplava atônita. Mas nada de anormalocorreu nela. Fogo algum consumiu-lhe a coxa.E Sabino, que por um instante imaginou fosseficar comprovado o procedimento da esposa,aproximou-se dela, empolgado, a fim de erguê-la. (p. 247-8)

A cena talvez expressa um excessivo teor deteatralização, facilmente justificado pelo temperamen-to do autor, em essência um homem de teatro, mesmoquando escreve romances ou contos. De fato, não é sóaqui que se percebe esse arrebatamento ou intensifica-ção do nível dramático. Em O Chão dos Mortos pode-serecordar, por exemplo, a cena da morte de Margarida,assassinada pelo próprio marido. Mas esse tom é queeleva o texto ao plano da beleza poética, beleza invaria-velmente mesclada às conotações da tragédia.

Assim, as personagens de Eduardo Campos se en-volvem na angústia a um nível que transborda para opatético. Vítimas de forças incontroláveis, agem às vezesde acordo com os impulsos, quais fantoches nas mãos dodestino. São seres que pasmam diante da vida, sem com-preender os desígnios do além, mas crentes de que todosos atos são apenas a expiação de uma culpa. A água,entendida como um castigo aos pecadores, é também osímbolo da purificação. Alice, ao bebê-la, tem a consciên-cia de estar sendo castigada e purificada. E por isso, emmeio a todo sofrimento, ela transmite a sensação de liber-dade aos olhos espantados das vítimas do dilúvio.

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3 A UNIDADE HOMEM-NATUREZA

O SERTANEJO, habituado a conviver com a seca,é levado a estudar a natureza, tentando conhecer-lheos segredos a fim de capacitar-se a prever os períodosde chuva e de sol. Desenvolvendo o poder de observa-ção e de intuição, suas inferências via de regra sãomais exatas do que as obtidas por meio do conheci-mento científico. É que, acima de tudo, existe umaespécie de integração homem e natureza, de tal formaque os comportamentos de ambos se refletem mutua-mente, denunciados pelos sentimentos humanos e cor-respondentes impressões da paisagem. Se o chão estáressequido, as árvores transformadas em garranchos,os rios completamente mortos, a postura do homem edos animais também reveste o aspecto de desolação earidez. Se, porém, a terra está molhada, as matas den-sas do verde repousante, os rios volumosos cheios depeixes, a alegria toma conta da fisionomia do sertane-jo, que não consegue esconder o prazer de arar, numgesto de quase adoração. Mas também aqui há os ex-cessos e a chuva, sempre desejada como benfazeja,pode causar destruições tão irreparáveis como as daseca. E o homem vive bloqueado por dois grandes pâni-cos, procurando cada vez mais amalgamar-se à natu-reza para não sucumbir sozinho.

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Eduardo Campos percebeu essa integração e, tan-to em O Chão dos Mortos como em A véspera do dilú-vio, analisa as reações atitudinais do nordestino diantedas inconstâncias climáticas, perquirindo os traços dainstabilidade emocional causada pela incerteza do in-verno ou pela ameaça das enchentes. Em O Chão dosMortos, esse sofrimento é assumido em maior grau porFrederico, o símbolo do homem que ama a terra e dese-ja sempre mais fundir-se nela, julgando-se com direitode merecê-la não apenas depois da morte. Ele sonhaem possuir a terra, fixar-se no chão como uma árvoresem nunca ser forçado a emigrar em busca da sobrevi-vência. Em sua visão, crê que seu trabalho fará a natu-reza transformar-se e produzir as melhores colheitas,porque ela lhe permite a revelação de seus segredos eassim ele poderá dominá-la, prevendo com segurançaquais os dias em que haverá chuva. Frederico é entãoum profeta à semelhança de inúmeros sertanejos. Ou,como o interpreta Costa Matos,8 é uma espécie de SãoFrancisco de Assis rústico, estigmatizado por umpanteísmo intuitivo no seu aprendizado com a Mãe Ter-ra. Capta e decifra os sinais da natureza, porque a amaverdadeiramente. E os sinais freqüentemente são trans-mitidos pelos animais que agem de acordo com os ins-tintos. É a rã que canta imóvel no beiral da casa, são asformigas-de-roça que procuram novo refúgio, os tetéusque cantam sem parar (p. 45). É o jumento preto quelevanta o pescoço, de supetão, como se empancasse aosusto de uma cobra (p. 54). É também o alvoroço doscalangros e tijubinas debaixo das pedras e dos seixos docaminho (p. 55). Mas, além disso, há sinais que não sãoinformados por seres viventes. É o sinal do trovão e dosol que corre a se esconder sob as nuvens (p. 54). Sãoas próprias nuvens que constroem um céu de chumbo,pesando sobre o sertão, avisando que vão desabar.

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Frederico conhece bem esse código. E fica felizquando vê as formiguinhas vermelhas carregando os fi-lhinhos, umas atrás das outras. Quando carregam osfilhos, é indício de chuva (p. 182). E o sertanejo se en-che de apreensão quando uma barata, estalando as asas,surge de repente no terreiro e atira-se para dentro decasa. Ele sabe que quando a barata bate na parede e saicorrendo, as possibilidades de bom inverno estãoameaçadas. Para haver chuva, é preciso que a barata,depois de bater na parede, permaneça imóvel no lugarem que caiu (p. 46)!

Em A véspera do dilúvio, de modo análogo, há tam-bém uma personagem que representa essa integraçãohomem e natureza. Trata-se de Zé do Egito, uma répli-ca de Frederico pelo amor à terra e esforço em desven-dar a linguagem misteriosa das plantas e animais. Talvezpor isso, ambos são heróis de conotações positivas, sim-bolizam o Bem na perene luta contra o Mal. Ambos que-rem enraizar-se na terra e são injustiçados por umdestino igual, sem obter o direito a que aspiram. Fre-derico, quando consegue o dinheiro, não pode adquirir anesga de terra que lhe estava prometida. Zé do Egito,quando o Concílio Ecumênico decide extinguir a perse-guição aos protestantes, também por ironia é forçadopelos atos do vigário a abandonar sua propriedade. Emuitos outros traços fazem que as duas personagens seassemelhem. Todavia, é o domínio da natureza que unee conduz os passos de ambas, levando-as a funcionarcomo símbolos de toda uma raça de sertanejos apegadosao chão, castigado alternadamente pelo fogo do sol epelas cheias arrasadoras. Assim, em A véspera do dilú-vio, Zé do Egito demonstra captar os sinais das plantasque pressentem as iminentes tempestades. Ele observao silêncio da paisagem sombria e entende que, quandoas folhas do sabiazal estão imóveis e nem as palmas da

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palmeira mais alta se movimentam, as chuvas cairãosem cessar (p. 17). E é capaz de predizer as proporçõesdas enchentes que sobrevirão.

Símbolos de uma raça exposta ao contínuo sofrer,Frederico e Zé do Egito identificam o telurismo do autorpela exaltação e amor a um chão que, apesar de muitasvezes ingrato, por direito líquido deveria pertencer a to-dos quantos nele habitam. A realidade, porém, é a con-denação a um estado de errância, empurrando ossertanejos para fora de seus ambientes nativos. O dra-ma dos retirantes é mais um ângulo da crítica vorazexercida por Eduardo Campos, principalmente em O Chãodos Mortos.

Neste ponto, interpõe-se uma digressão. É que al-guns comentadores, como João Clímaco Bezerra,9 ou-sam diminuir o valor do romance O Chão dos Mortos,arrolando entre as possíveis falhas a imaginação de umaçude construído em pleno inverno. Na realidade, se écerto que a ação não se processa por inteiro em épocade seca, o que retira do autor o caráter de romancistanordestino da linha de Rachel de Queiroz e Gracilianoe o aproxima de Antônio Sales,10 é também verdadeiroque a intensidade das chuvas mencionadas não seriasuficiente para prejudicar as obras de edificação de umabarragem. Há inclusive maior freqüência de alusões aofenômeno da estiagem, preocupando a população da ci-dadezinha e forçando os sertanejos a buscar a sobrevi-vência em outras terras. Cabe ainda raciocinar que aação se circunscreve a um mesmo ano e termina empleno estado de calamidade produzida pela seca. Ora, acalamidade só se verifica quando o inverno é tão escas-so que não chega a produzir safra compensatória. Porisso, se ao fim do livro se registram as cenas tristes dosretirantes, as obras do açude não podem sequer ter sofri-do solução de continuidade. De resto, não seria o es-

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quecimento de um detalhe técnico que empanaria amensagem de O Chão dos Mortos. Ela vale por si, peloseu conteúdo social, pelo telurismo, pela profundidadecom que interpreta o homem do sertão, castigado pelanatureza mas ao mesmo tempo integrado nela, pronto anão sucumbir sozinho. O homem e o chão formam umaunidade indissolúvel e o desrespeito a essa indisso-lubilidade gera o desequilíbrio. A natureza seca protes-ta por não ser possuída eqüitativamente, vendo-se nasmãos de uns poucos que não a amam e, em vez depreservá-la, vivem a danificá-la. São açudes planejadoscom objetivos espúrios ou desmatamentos que chegama afetar o equilíbrio ecológico. A natureza protesta tam-bém com os dilúvios, mas mesmo assim o egoísmo per-siste. E o homem oprimido sofre as conseqüências,ansiando por um dia em que a terra será sua, para serarada e cuidada com o maior desvelo. E, como não che-ga esse dia, o martírio é tamanho que ele deserta outomba morto no chão. Como ainda acontece diariamente.

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4 EM BUSCA DOS VALORES UNIVERSAIS

ALGUNS ideólogos da literatura concebem que atemporalidade e anespacialidade devem ser as ambi-ções primordiais do escritor, já que sem isto a obra pe-recerá por falta de significação. Perde sentido, porconseqüência, o trabalho crítico que tente julgar o valorda criação literária se realizado na época em que estasurge. Só o tempo dirá com precisão o real valor de umamanifestação artística, dotando-a de imortalidade e atu-alidade. Quem, ao ler um soneto camoniano, não tem aimpressão de que o texto lido soa tão atual quanto umpoema moderno? Quem, ao traduzir os versos de Virgílio,não se comove diante da beleza e perfeição obtida? Quem,em suma, não se deixa enlevar pelos cantos universaisdo homem, já expressos na Bíblia ou em outros livrossagrados? Na realidade, parece que a arte, quando tocaas mais profundas zonas da essência humana, tende apermanecer como um monumento a ser enriquecido porgerações sucessivas. Talvez porque, conforme entendeC. N. Coutinho,11 “a arte fornece a unidade fenômeno eessência, ou seja, um fenômeno (singularidade) intei-ramente penetrado pela essência (universalidade) e aptoa expressá-la evocadoramente.”

Mas isto não significa de modo algum que o escri-tor decida esquecer o ambiente que vivencia, julgando

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que por esse caminho não atingirá o universal. É preci-so convir, como sugere Georg Lukács,12 que a criaçãoartística, além de tentar descobrir o núcleo da vida,deve realizar uma crítica da vida. E por isso assumeuma atitude correta o autor que analisa o seu tempo esua realidade ambiental.

No caso de Eduardo Campos, já se comprovou o pro-pósito de representar a contemporaneidade de um dadosetor da sociedade brasileira, acusando os problemas queentravam o aperfeiçoamento do homem e melhoria desuas condições existenciais. Fixando o tema de seus ro-mances na opressão do sertanejo em época de seca oude enchente, ele realiza uma espécie de depoimento realde uma situação que é passível de estar ocorrendo nesteexato momento. Talvez por esse motivo freqüentementeele confunde o leitor, empregando os verbos no tempopresente, ao invés de usar sempre as formas do pretéritoconvenientes à feição dos discursos narrativos. Esseprocedimento lembra a advertência de A. A. Mendilow13,asseverando a propósito que muitos leitores se vêem per-turbados por esse jogo do presente da ficção para o pre-sente real e chama a atenção para o fato de que um dosprocedimentos utilizados com essa finalidade é o de onarrador dirigir-se pessoalmente ao leitor.1' Conquantoisso não ocorra nos romances de Eduardo Campos elepode ser considerado um “autor intruso”, penetrandofreqüentemente no locus do tempo real do leitor. É pro-vável até que seu descaso pelo pretérito imperfeito sejaconseqüência de uma postura anti-romântica,15 já que amaior soma de traços estilísticos e temáticos leva a con-siderar O chão dos mortos e À Véspera do Dilúvio comonarrativas de fortes tendências realistas. O autor pode-ria ter optado exclusivamente pelo pretérito perfeito, po-rém preferiu arquitetar seu discurso com a alternânciareiterada do presente, como a indiciar um desejo de

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contemporaneidade, a afirmar que os quadros descritosestão ocorrendo agora, neste exato instante, uma vezque o destino do Ceará tem sido sempre o mesmo: secasprolongadas ou enchentes abruptas.

Pode-se também evocar para o insistente uso dopresente uma explicação relativa à estrutura do roman-ce como gênero distinto do conto. Herman Lima,16 re-produzindo os conceitos de Ramón Fernandez e ÁlvaroLins, entende que este é um traço pertinente para dis-tinguir as duas modalidades de narrativa. Segundo osautores citados, o caso do conto se dispõe em torno dopassado, do “era uma vez”, enquanto o caso do romancese passa agora mesmo. Contudo, apesar de bem en-gendrada, não se deve generalizar esta explicação, poisque há muitos romances cuja ação se situa em tempospretéritos e contos modernos semelhantes a crônicas.

Ainda se deve observar que o tempo cronológico ouconceitual guia a feição linear dos livros ora em análise.Conforme se sabe, há duas modalidades de encarar o tem-po no romance:17 ou se tenta estabelecer uma correspon-dência entre o curso dos fatos e a percepção objetiva dotempo ou se quebra essa correspondência pela projeçãode uma duração psicológica. Eduardo Campos se ateveestritamente ao tempo conceitual e é possível até datar oseventos que narra diante dos indícios sócio-culturaisrelembrados em diversas passagens. Com efeito, em OChão dos Mortos, há alusões a datas e fatos verídicos18

que situam a ação em torno da década de 1960. Em Avéspera do dilúvio, mais claramente ainda, o enredo ar-quitetado aproveita a calamidade ocorrida durante a cheiado Jaguaribe em 1960. Mas, além disso, há contínuas mar-cações temporais ligadas às descrições dos costumes daconstantes referências ao Concilio Ecumênico.

Outro dado a ser comentado concerne à duraçãoda ação. Há romances que, mesmo alicerçados num tem-

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po cronológico parecem não mais findar, conduzindo aação por anos inteiros e até por séculos. No caso de OChão dos Mortos e À Véspera do Dilúvio, é fácil desco-brir que tudo se passa num tempo exíguo, não atingindoa duração de um ano. Em O Chão dos Mortos, é só operíodo de construção de um açude. Em A véspera dodiluvio, talvez pouco mais de uma semana em que partedo interior cearense sofreu debaixo das águas.

Depois de analisados esses elementos, cabe refle-tir que, intimamente associada ao tempo, existe a no-ção de espaço, tornando-se difícil imaginar uma narrativacuja ação deixe de ocorrer num dado ambiente. O máxi-mo que se pode obter é, tal como no tratamento da di-mensão temporal, projetar a percepção do espaço para oplano subjetivo. Todavia, mais uma vez se sente queeste não é o caso dos romances de Eduardo Campos.Adotando os modelos consagrados, o narrador busca dara impressão de verdade ou verossimilhança, men-cionando os contextos físico-sociais em que se desenro-la a ação. Em O Chão dos Mortos, conforme já semencionou, trata-se de uma cidade do interior cearensenão muito distante de Fortaleza, com todos os traçosculturais de uma época em que jazem ainda alguns res-quícios de coronelismo e patriarcaísmo. É uma regiãoquente, árida e poeirenta, distribuída em latifúndios per-tencentes a poucos proprietários. Em A véspera do di-lúvio, a exatidão dos dados é bem maior: trata-se deuma vila localizada nas circunvizinhanças da cidade deRussas, com características semelhantes às existentesno romance O Chão dos Mortos.

É de pensar que essa fixação do espaço físico, alia-da ao enfoque dos problemas do nordeste, enquadre oautor na corrente do regionalismo. E na realidade elepode assim ser julgado, apesar de pretender a amplia-ção da temática explorada pelos escritores que se sen-

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sibilizaram com a dor dos flagelados nordestinos. Poroutro lado, cumpre esclarecer que essas tendênciasregionalistas só valem como pontos de referência para oencontro com os valores universais, já que os temasfocalizados acabam por analisar as facetas mais tortu-rantes do homem, em seu vão esforço de sobreviver numestado de injustiça ou de tragédia. A marca local serveapenas de background, acrescentando a esses elemen-tos o toque de cenas e paisagens típicas. Não custa ima-ginar que essas angustias existem sempre e emqualquer lugar mas a causa delas pode ser extirpadacom a evolução do homem ou mudança do sistema polí-tico. Contudo, mesmo nessa hipótese, os temas não es-tariam comprometidos quanto ao universalismo, porquevaleriam como um depoimento das afrontas ao ser hu-mano e suas mais terríveis conseqüências.

Dessa forma, se é verdade que o drama do serta-nejo se reveste de peculiaridades decorrentes do meioe do momento histórico, peculiaridades que deixariamde existir se houvesse uma ação benéfica e restaurado-ra da dignidade humana, é também certo que o propósi-to de descrever esse drama não é suficiente paradescaracterizar a esteticidade de uma obra. Muito aocontrário, se o objetivo é alcançar o atemporal e univer-sal, a criação literária terá que basear-se exatamentenas situações físico-sociais e no momento vigente à épo-ca de seu aparecimento. As leituras posteriores se en-carregarão de redimensionar as coordenadas de tempoe espaço, atualizando-as para cada experiência huma-na. É nesta linha de idéias que podem ser entendidasas palavras de Ernst Fischer19:

Toda arte é condicionada peio seu tempo erepresenta a humanidade em consonânciacom as idéias e aspirações, as necessidades e

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as esperanças de uma situação histórica par-ticular. Mas, ao mesmo tempo, a arte superaessa limitação e, de dentro do momento histó-rico, cria também um momento de hu-manidade que promete constância nodesenvolvimento.

Para não citar exemplos de escritores estrangei-ros que realizaram esse desígnio, vale citar o caso deGraciliano Ramos entre outros regionalistas brasilei-ros cujas obras se desgarram do tempo e do espaço eatingem uma dimensão universal. Com efeito, o ro-mance Vidas Secas, embora possa engendrar in-terpretações diversificadas consoante a mudança depadrões culturais, sensibilizará leitores de todas aseras e regiões. É que, denunciando a opressãoGraciliano Ramos aflora e aprofunda a questão dosdireitos humanos, da luta urgente pela liberdade, danecessidade de revalorização da vida. E estes foramtambém os objetivos de Eduardo Campos.

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5 ALGUNS RECURSOS NARRATIVOS

A ESTRUTURA de qualquer narrativa, e em parti-cular do romance, requisita a presença de diversos in-gredientes que se articulam num feixe de relações tãocomplexo que disso depende o êxito do discurso. Basica-mente, toda narrativa se esteia em dois planossuperpostos e solidários, um formado pelas seqüênciasfáticas ou microações (o eixo horizontal) e outro decor-rente dos dados descritivos (o eixo vertical)20 res-ponsáveis pela interpretação ou valores conotativoscaptados numa leitura. Situando-se esses dois planos,é possível analisar a configuração dos elementos es-senciais, tais como a ação, as personagens, o tempo eespaço e certos procedimentos formais que definirão aspreferências estilísticas ou atitudes estéticas donarrador. Entre esses procedimentos figuram as técni-cas de condução ou apresentação de cenas e persona-gens e natural elaboração dos diálogos, a escolha doléxico e inúmeras possibilidades de combinações sintá-ticas, no nível que se quiser estudar.

Quanto à ação, pelos enredos já sumariados para osromances O Chão dos Mortos e A véspera do dilúvio, nãorestam dúvidas de que Eduardo Campos mantém-se maisuma vez fiel aos esquemas tradicionais, pouco se distan-ciando deles, sem pretender perfilhar as inovações em-

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preendidas por alguns escritores modernos que, no afã deproduzir o máximo de abertura, conseguem desnorteartotalmente os leitores, já por deixarem suspenso ouinacabado o fio narrativo, já por alterarem a linearidadedos fatos, mencionando-os tumultuariamente. Isso não sepercebe em nenhum dos livros de Eduardo Campos. Tal-vez a preocupação com a clareza e objetividade, traços deuma orientação realista, hajam impedido o autor de ensaiarexperiências novas nem sempre de êxito assegurado.

Entretanto, é oportuno considerar que a linearidadede apresentação foi habilmente trabalhada, uma vez quea estória central é com freqüência seccionada por estó-rias secundárias ou catálises, quase sempre objetivandoretardar o processo, criando o suspense. É incontestá-vel que, pelas suas proporções, o romance não se cons-titui de uma única ação: há um fio central ramificadopor inúmeras situações que às vezes podem mesmo serdestacadas, sem grande prejuízo para a compreensãodo todo. A técnica de apresentação obedece ao esquemade alternância, em que de vez em quando a ação princi-pal é deixada em suspenso para retornar somente de-pois de fornecidos os elementos que comporão as estóriassecundárias. Na realidade, o narrador percebe essasestórias simultaneamente, mas tem que submetê-las acortes sucessivos em razão da linearidade do discursonarrativo e do intento de gerar um maior nível de ten-são e suspense. Em O Chão dos Mortos há alguns cor-tes bastante significativos:

1) A ação se inicia em Fortaleza com o dilema dodesenhista Francisco do Carmo até o ponto emque este se rende aos objetivos do coronel JoséCândido. Desloca-se então para uma cidadezinhado interior e algumas personagens entram emcena, como o Dr. Leandro, Frederico e Fragoso.

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2) Há um retorno para a descrição da viagem devolta do coronel José Cândido a esta cidadezi-nha, onde construirá o açude Catoré.

3) Nova quebra da seqüência fática para focalizaros ímpetos libidinosos de Fragoso, o hoteleiro,por uma empregada. A ação agora é apresenta-da lentamente, numa evidente intenção de cri-ar uma atmosfera de expectativa.

4) Inúmeras cenas são armadas, todas ocorridasna cidade onde se constrói a barragem, no in-tuito de retardar o desfecho da ação.

5) Só bem próximo ao fim do romance é que Fran-cisco do Carmo reaparece. Ele deseja limpar suaconsciência, relatando ao Dr. Leandro a verda-de sobre os planos maléficos do coronel JoséCândido.

Em À Véspera do Dilúvio encontram-se cortesanálogos, dos quais é necessário registrar os dois maisevidentes:

1) Quando o coronel Sabino decide ir à casa do oitãopreto onde morava Zulmira, mal ele começa afalar termina o capítulo e o seguinte já trata dacarta que o Pe. Firmino endereçou à Cúria Me-tropolitana. Só após dois capítulos é que o coro-nel aparece exigindo que Zulmira se retire deAguavaçu, sob o pretexto de que estava corrom-pendo os costumes do povo.

2) A narração do encontro de Sabino e Chico Justocom o ex-pistoleiro Miguelino é suspensa assimque o coronel vai propor o homicídio de João Pau-lo. Passam-se três capítulos para o narrador des-crever a relutância de Miguelino em cumprir comas solicitações que lhe são confiadas.

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É preciso reiterar que esses cortes não prejudicam aunidade e coerência, pois são dosados com muito equilí-brio e senso de racionalidade. Até os recuos no tempo nãoconstituem óbices à clareza do discurso e apenas atestama onisciência do narrador, desejoso de abarcar toda a rea-lidade figurada, transportando-se para qualquer tempo elugar ou trazendo estas coordenadas para junto de si.

Aliás, a técnica do flash-back não chega a ser usadacom a intensidade dos romances que exploram os fluxosde consciências apelando para um labirinto de enuncia-dos soltos, num mergulho às mais íntimas camadas doser. Por incrível que pareça, é em alguns contos de OTropel das Coisas que isto é ensaiado com mais interes-se, conforme será examinado. Quanto aos romances, es-tes se situam mais na esfera sociológica e, se analisamas reações psicológicas do indivíduo, mostram que essasreações dependem de motivações sócio-culturais. Toda-via, não deixa de haver belos lances rememorativos emque cenas vividas por uma personagem são trazidas àtona, conduzindo-a a um alheamento momentâneo darealidade. Eis um exemplo de À Véspera do Dilúvio:

Novamente ela distante da outra, no tempo.Está-se vendo a si mesma na casa do padrinhoConrado, em Itapipoca... Numa noite em que aesposa fora à igreja, assistir às novenas, in-sistiu para que ela se deitasse com ele.... “Dei-xe, menina, é só um instante. Me alivio logo...”Que bom, –, torna a imaginar, olhando outravez o rosto da empregada alheia ao seu pensa-mento safado – Frederico ter apreciado oelefantezinho de porcelana!... (p. 65)

Facilmente se constata que, em virtude de a narra-tiva ser doada em terceira pessoa, o recurso se conectacom a onisciência do narrador, sem dúvida uma cons-

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tante da prosa ficcional de Eduardo Campos. Em O Chãodos Mortos essa “visão por trás”, melhormente explicadana análise dos contos, se instala logo no segundo pará-grafo da narrativa, quando a personagem é descrita emseus mais recônditos pensamentos. Desde aí, o narradorassumirá a postura de um analista não apenas capaz deprever as reações de seus heróis mas também de julgá-los pelos atos cometidos. O mundo interior de suas per-sonagens, os conflitos mais íntimos, as ambições efrustrações, tudo é do conhecimento prévio do narradorque, é o que se presume, deseja mostrar-se sabedor detudo para que suas denúncias sejam tidas como teste-munho de autoridade, de alguém que estudou a fundo asituação e descobriu realmente as mais torpes injusti-ças e indecências do poder público. Dessa forma, onarrador não é só onisciente; ele também é onipresentee sobrepaira a todos os lances que descreve, como sefosse dotado de ubiqüidade. São comuns enunciados se-melhantes ao seguinte: “No momento em que José Cân-dido pensava nos amigos, estes, indo esperá-lo naestação, paravam a meia distância.” (p. 79)

De maneira idêntica, em A véspera do dilúvio. Aânsia de abarcar a totalidade dos eventos, descrevendoas nuances da paisagem do sertão no mesmo compassoem que se adentra o mundo emocional das personagensé tão insistente que não raro são antecipadas cenas,como se o narrador tivesse a capacidade de predizer ocurso dos acontecimentos. Já o primeiro capítulo do ro-mance termina com o parágrafo abaixo:

A história do beija-flor, a partir desse instanteseria a de um certo pássaro sem nome que,abalroando a alva parede do templo, caíra aochão anunciando os dias, muito sombrios, queinfelizmente haveriam de sobrevir a Agua-vaçu. (p. 14)

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Lances semelhantes existem em profusão. Assim,a análise da evolução dos sentimentos das personagensé feita mediante sugestões que levam o leitor a preveros desenlaces, sem que isto diminua o suspense do ro-mance. Ao contrário, a morosidade com que os eventos,já do conhecimento do leitor, vão sendo focalizados fazespicaçar o clima de expectativa. Neste raciocínio, deve-se dar razão a David Daiches21 que afirma que o verda-deiro suspense não depende da ignorância do eventualdesfecho, mas sim da expectativa da ocorrência do ine-vitável. Desde o título do romance, já se sabe que have-rá uma tragédia em virtude das enchentes mas, porisso mesmo, a cada página cresce a ânsia, a espera e atensão. De igual modo o adultério de Alice é pressenti-do a partir de sua caracterização comportamental, poiso narrador se preocupa em apontar-lhe os gestos maisdiscretos, em penetrar em seus desejos e conflitos. Asreações de Alice diante do fracasso do esposo sãoreferenciadas como se houvesse um observador prontoa captar e interpretar os sinais, mesmo os inconscien-tes. As vezes, o narrador consente que Alice esteja nopleno domínio dos fatos e perceba com ele cenassupervenientes:

Ouve a empregada encostar a porta, desejar-lhe boa-noite e caminhar para o fim do corre-dor onde dorme. Sabino logo chegará da casado vigário. Entrará por aquela porta, a respirarcom dificuldade até que ela pergunte:– Está cansado? Que há com você, meu bem?(p. 50)

É quando então se instala a técnica do chamadoestilo indireto livre, um dos procedimentos mais bemaproveitados por Eduardo Campos em seus romances econtos. O leitor nunca saberá ao certo quem é o respon-

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sável pelos enunciados emitidos, uma vez que se operauma participação simultânea do discurso do narradorcom a fala ou pensamento da personagem. Veja-se, en-tre muitas, a passagem seguinte em que o narrador fazde conta que assume as dúvidas da personagem. Narealidade, essas interrogações podem ser compreendi-das como frases declarativas do discurso do narradoronisciente:

Ah, como Chico Justo desejava saber o que Ali-ce fizera dentro do mato! Estaria com o vesti-do amarrotado? E os cabelos? Pregava-seneles algum cisco, folha de mato ou semen-te de trepadeira? E o sem-vergonha do JoãoPaulo? Porventura não estaria fechando abraguilha? (p. 171)

Em O Chão dos Mortos atesta-se a mesma prefe-rência pelo estilo indireto livre, sempre no sentido decorroborar a onisciência ou conhecimento prévio dos fa-tos. É bastante citar um exemplo:

Abarcou o veículo com um olhar apaixonado,refreando a exaltação que sentia nascer den-tro de si. O ônibus – não se enganassem osamigos – seria um ótimo negócio, um exce-lente emprego de capital. Melhor do que tersitio na serra ou plantar em baixio... Haveriade vender todos os lugares para a primeiraviagem. O povo andava insatisfeito (p. 70)

Mas a onisciência não se configura só através des-ses recursos. É ainda nos lances descritivos que se fazsentir essa atitude do narrador, observador a quem nãoescapa o mínimo detalhe fiel à orientação realista queadota para todas as suas obras literárias. As descriçõesassumem um papel decisivo no estabelecimento da at-

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mosfera narrativa e o autor disso se vale para semprecompor o quadro de referência antes de situar a ação,possibilitando a integração de personagens e ambientes.É como se fizesse para o leitor não apenas a pintura deuma tela mas também a própria moldura. Assim, O Chãodos Mortos inicia com a descrição de uma manhã clarae cheia do sol que penetra no ambiente de um escritó-rio. Somente quando tudo já foi visualizado é que seinsere a personagem em ação. E, à medida que vão sen-do comunicados alguns traços morais ou psicológicos,novos aspectos ambientais são sugeridos num processode fusão ou de contraste. Igual procedimento se verificaem À Véspera do Dilúvio: primeiro a apresentação dapaisagem, a mata que crescia por todos os lados, cheiade tufos de sabiás floridos e diversas árvores altanei-ras; depois, a penetração nos sentimentos e hábitos dapersonagem.

Releva notar que as personagens nem sempre sãocaracterizadas a priori. A imagem que delas se faz é fru-to da ação que desenvolvem mais do que dos atributosfocalizados diretamente. São traços preferencialmentede ordem moral os que são escolhidos para compor umtipo ou personagem. Mas às vezes o narrador forneceelementos de caracterização somática, como naidealização do filho de Zé do Egito:

Não teria ele mais que dez anos. Seus traçosfisionômicos aproximavam-se bastante dos damulher e havia uma graça feminina, um quêde delicadez possivelmente naquele arquea-do de sobrancelhas sobre o nariz curto, juve-nil. Os lábios eram grossos e despertavam emtodos o comentário de que o menino, do narizbaixo, era “a cara do pai”. (À Véspera do Dilú-vio, p. 19)

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Entretanto, convém insistir, os traços físicossingularizantes freqüentemente não conseguem firmarna mente do leitor a imagem pretendida. Sem dúvida,da parte do narrador o objetivo maior gira em torno deperfis morais, facilmente transmudados em símbolos,sempre relembrados pelas atitudes que evocam. Assimé, por exemplo, o coronel José Cândido, de O Chão dosMortos. Há logicamente, espalhados em diversas pági-nas, atributos físicos que lhe compõem o retrato. Toda-via, a análise de suas reações é engendrada comtamanha profundidade que ao fim o símbolo do homemperverso e oportunista domina o quadro geral das im-pressões. E para cada criação de Eduardo Campos épossível aplicar um raciocínio semelhante.

Cite-se mais apenas o caso de Fragoso, o dono dohotel da cidade em que se passa a ação de O Chão dosMortos. Fragoso é um velho frustrado por ter perdido asesperanças de uma vida fácil. Vindo do Amazonas combastante dinheiro, imagina que, ao estabelecer-se comoproprietário de um hotel, estaria fazendo um grandeinvestimento. Seus sonhos, porém, não funcionam eFragoso se torna amargurado, decepcionado com a vida.Talvez em função disso, e1e é tido como pusilânime,bajulador,22 e passa o tempo divulgando boatos, figuran-do-se como um dos tipos mais encontradiços nas cida-des e vilas perdidas no interior do nordeste brasileiro.É uma personagem extremamente rica em suas atitu-des. Para ilustrar, cumpre lembrar o episódio em que seapossa de desejos libidinosos pela empregada do hotel.A chuva da madrugada o incita a procurar Rosaura. E,embora com muito receio, ele caminha devagarinho emdireção do quarto dela, enquanto sua mulher ressona.Em toda a cena, a imaginação do contraste entre a jovi-alidade provocante da empregada e a falta de atrativosda esposa.

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Aqui cabe uma digressão. Alguns capítulos do ro-mance são quase autônomos, de modo que destacadosvalem como verdadeiros contos. É o caso da cena emque Fragoso não se controla e vai ao encontro da em-pregada. Trata-se de um conto perfeito e acabado,construído com bastante laivo de ironia. É curiosa in-clusive a semelhança dos motivos e do tratamento des-ta cena com a estrutura do conto “O banho”, inserto emO Tropel das Coisas. Em “O banho” o narrador focalizao desejo de encontro fortuito de Pedrão com uma em-pregada. Agora, porém, a chuva é o grande obstáculo epor isso o encontro não se realiza. De modo ridículo,Pedrão termina junto da esposa. Ela se sente muito fe-liz ao lado dele. Tal a Sinhá, mulher de Fragoso, quesente o corpo quente do marido e o aperta em seus bra-ços, ansiosa por confessar-lhe a sua felicidade (p. 90).

Bem se vê que muito haveria ainda a comentarsobre as peculiaridades de estruturação dos romancesO Chão dos Mortos e A véspera do dilúvio. Fica, po-rém, a certeza de que as linhas gerais foram aquidemarcadas, traçando as constantes técnicas mais tra-balhadas pelo autor. Com efeito, os recursos narrativosinterpretados se repetem com maior ou menor intensi-dade em outros modelos da prosa ficcional de EduardoCampos, seja o conto ou o teatro.

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6 A DERROTA FINAL DO HOMEM

EM AMBOS os romances, a filosofia da tragé-dia. O Chão dos Mortos é o inconformismo do homemque luta por dias melhores e vê-se injustamente massa-crado, sem direito de efetivar seus planos. A véspera dodilúvio parece ainda mais trágico. É o homem afogadoem suas angústias, surpreso diante do terror inevitável,como se experimentasse um momento apocalíptico. Todoo romance está impregnado de sugerências bíblicas. É afigura do velho pároco a assumir a função patriarcal deNoé, a visão da arca, a confissão de Alice, mais umaMadalena do universo de Eduardo Campos. É sobretudoZé do Egito, cujo nome repete o destino do pai adotivo deCristo, obrigado a emigrar pelo amor à família. Até o Judasarrependido e enforcado pode ser entrevisto na figura deMiguelino, mais um herói trágico que comove por não serdono de suas decisões.

Em ambos os romances perpassa uma concepção algofatalista da vida, como se o esforço humano fosse inútil etudo ao fim redundasse em desgraça. O trágico é a notaque subsiste a qualquer tentativa de luta e o homem, emface disso, finda reconhecendo sua impotência, resignan-do-se ou enlouquecendo. É a existência que se esbatenum jogo de contrastes violentos. O contrate da seca comas enchentes. Ou dos sonhos com a realidade.

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Tudo se consuma em desgraça. Frederico não rea-liza o ideal simples que cultivava e sufoca sua angústiana demência. A longa depressão do Pe. Firmino tambémo arrasta para a loucura. Margarida morre brutalmenteassassinada por Antônio. Miguelino se suicida por nãoconseguir manter-se honrado. Fragoso termina na fa-lência completa, vendo arruinados os seus planos deprosperidade. O mesmo destino cabe a Zeca Paulino,tendo o ônibus destroçado por uma capotagem. Dr. Le-andro percebe a nulidade de sua ação e sofre a derrota.O casamento de Sabino e Alice torna-se um fracasso. Eacima de tudo o idílio de João Paulo e Alice é cortadotragicamente.

Que se poderia de mais claro apontar como indíci-os da mundividência do autor? Ele parece conceber avida como uma sucessão de atos desprovidos de signifi-cação, pois que sempre esbarram no mesmo ponto. Ohomem caminha invariavelmente para a destruição, paraum abismo que o derrotará.

Não obstante, a fim de viver esse absurdo, aimpassibilidade não deve ser o melhor recurso. Impõe-se a luta sem trégua contra as causas dessas tragédi-as, até que sejam totalmente eliminadas. Aí está oaspecto que absolve o franco pessimismo de EduardoCampos. Reconhecendo que as causas das tragédias sãopolíticas e sociais, ele aponta os caminhos da luta paraa redenção dos oprimidos, quando então o homem dei-xará de ser derrotado e viverá em comum acordo com asforças da natureza.

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NOTAS

1. A admissão de servidores públicos depende exclusivamentedos pedidos feitos pelos deputados situacionistas (Cf. p. 17).E a promoção, analogamente, não leva em conta o desempe-nho profissional ou os méritos do funcionário. É premiadosempre o servidor conivente com a corrupção.

2. Sobre o coronel José Cândido, uma das personagens que seaproveitam da situação de desmandos administrativos, diz-se o seguinte: “O ano passado abiscoitara a metade da cotado imposto de renda. E os dez por cento dos impostos que oMundinho recolhia, para melhoramentos, e vinham para seubolso?” (p 166) Em outro lance, Zeca Paulino, um dos antago-nistas mais corajosos, denuncia: “Dez anos vive esse figu-rão como dono do município. Papa a quota do imposto de renda.interfere na dignidade da justiça, manda no agente da esta-ção, mete e dedo em tudo. É mesmo engraçado! E ainda sediz que o Ceará tem governador.’ (p. 68)

3. Cf. p:134.4. Conforme se verá adiante, o coronel José Cândido ordena a

construção da barragem de um enorme açude com o fitoúnico de que as águas represadas inundem áreas da propri-edade vizinha, pertencentes ao Or. Leandro, fazendeiro ho-nesto que tenta reparar o estado de abandono de suas terrasmediante empréstimos para o plantio de cereais que rever-teriam em benefício dele e da população. E quando tem acerteza de que as águas destruirão suas plantações, ele apelapara a Justiça com uma ação que embargue as obras doaçude. A atitude dos advogados contratados pelo Dr. Leandrochega a ser quase imoral. Um deles quer apenas ganhartempo, protelar as providências, já que está comprometidocom o coronel. Um outro logo inventa uma viagem e deixa acausa suspensa. Do mesmo jeito, o juiz faz tudo pela moro-sidade do processo. E assim o esforço do Dr. Leandro é total-mente nulo: “O açude, afinal, foi concluído, anunciado sobum estalar de foguetes, que mais parecia festa da padroei-ra.” (p. 162)

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5. Eis as palavras do coronel José Cândido: “Antigamente, secaera transtorno. Morria o gado, os homens passavam fome,perdia-se tudo. Mas agora a estiagem é negócio, e dos bons!Já ouviu falar na indústria da seca? Pois é... (p. 179). E maisadiante, tentando persuadir o velho Fragoso: “Estive a se-mana passada em Fortaleza e conversei com o pessoal dasituação. O governo vai abrir uma frente de trabalho aqui edois fornecimentos. Você cuidará de um deles. Seremosencarregados do atendimento aos flagelados. – Pôs-se a rir.– O Ceará não podia ficar esquecido. E a hora é esta da gen-te se aproveitar.” (p. 179).

6. CARDOSO, Armando Levy. Toponímia brasílica. Rio de Janeiro,Biblioteca do Exército, 1961.

7. Entenda-se, todavia, que as semelhanças do Pe. Firmino comHortênsia e Frederico não vão além da concepção da tragé-dia como um castigo vindo do além. Quanto ao fundo ideoló-gico, há uma distância enorme a separar a ação do vigárioda atitude dos dois líderes sertanejos. Enquanto estes iden-tificam como a causa do castigo a perversidade dos homensque se aproveitam da miséria, aquele, por preconceitos re-ligiosos, vê no bom e puro Zé do Egito a presença do demônioe o incrimina pelas desgraças que sobrevirão. Esse erro devisão parece desviar o autor da crítica que poderia exercercontra os verdadeiros responsáveis pela situação dos opri-midos. É que agora ele se volta para o estado de alienaçãoem que esteve a Igreja Católica até a época do ConcílioEcumênico. A loucura do padre é a alienação da própria Igrejada época, que levava as populações das vilas a uma fuga dasorigens dos problemas sociais.

8. MATOS, José Costa. ‘O Chão dos Mortos”. Unitário. Forta-leza, 25, 1964, p. 6.

9. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 18 fev. 967, cad. 2, p. 2.10. Jáder de Carvalho (O lugar de À Véspera do Dilúvio entre os

romances do Ceará. Fortaleza, s/ed., 1967, p. 11) identificaentre as influências literárias sofridas por Eduardo Camposas de Aves de arribação e Dona Guidinha do Poço. De fato, oromance de Antônio Sales, em vez de apresentar um nor-

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deste seco, retrata o Ceará verde, o Ceará molhado. Se istose verifica apenas parcialmente em O Chão dos Mortos,em À Véspera do Dilúvio já se constata em excesso. Há, poroutro lado, a exploração do patriarcalismo rural, presentenos livros de Antônio Sales e Oliveira Paiva. Jáder de Car-valho, fundamentando essas influências. estabelece inclu-sive uma associação entre o homicídio narrado em Avéspera do dilúvio com o crime exposto em Dona Guidinhado Poço. Antônio Olinto, (“Mundo do romance”. O Globo. Riode Janeiro, 24 dez. 1966, p. 11) é outro analista que aproxi-ma Eduardo Campos de Oliveira Paiva, ressaltando-lhe alargueza de concepção, a verossimilhança e coerência desuas descrições.

11. COUTINHO, Carlos Nelson. Literatura e humanismo. Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1967, p. 108.

12. Apud COUTINHO, Carlos Nelson. op. cit. p. 15.13. MENDILOW, A. A. O tempo e o romance. Porto Alegre, Glob

1972, p. 112.14. Foi o recurso de que se valeu insistentemente Machado de

Assis, como se estivesse dialogando com seus leitores.15. O imperfeito é o tempo verbal mais adequado para expres-

sar a fantasia e o sentimentalisto, carregando os enuncia-dos de misteriosa imprecisão e comunicando uma impressãodo interminável. (Cf. LAPA, M. Rodrigues. op. cit. p. 160).

16. LIMA, Herman. Variações sobre o conto. Rio de Janeiro,Tecnoprint, 1967, p. 12.

17. Cf. MENDILOW, A. A. op. cit. p. 69ss.18. Por exemplo, as alusões ao asfaltamento da rodovia BR. 13.

O narrador menciona às vezes datas como a de 1950 (p. 73),quando o governador se hospedou na casa de Fragoso. E emtodo canto remete o leitor para o ambiente de corrupção deuma época em que as autoridades políticas deixaram de tero menor escrúpulo. Logo no início, já depõe que “o exemploda corrupção, afrouxando condições, dando vantagens aosprotegidos do governo e da política, tomava aos bem intenci-onados as oportunidades de êxito e de competição” (p 14). Éevidente que, embora esse quadro possa repetir-se ao longo

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da História do Brasil, a integração de todos os informantesda narrativa conduz com facilidade ao estabelecimento deuma data precisa para a ação.

19. Cf. op. cit. p. 17.20. Roland Barthes explica que esses dois eixos são constituí-

dos de funções classificadas em duas unidades: asdistributivas (núcleos e catálises) e as integrativas (índicese informantes). Enquanto as primeiras correspondem ao “fa-zer”, à ação propriamente dita, as segundas dizem respeitoao “ser” e, por isso, são valores de caracterização das perso-nagens, do ambiente e da atmosfera narrativa. (Cf.BARTHES, Roland et alii. Análise estrutural da narrativa.Petrópolis, Vozes, 1971).

21. Of. op. cit. 232.22. Covardemente Fragoso conta ao coronel José Cândido que

Francisco do Carmo tinha ido encontrar-se com o Dr. Lean-dro para inteirá-lo sobre os propósitos da construção do açu-de. José Cândido fica enfurecido e aplica uma surra emFrancisco do Carmo, que comenta: “Minha maior decepçãoé do senhor, seu Fragoso. Numa terra em que os velhos nãotêm vergonha, não sei o que se deva esperar dos outros.Mas eu o perdôo pela sua fraqueza” (p. 160). Entretanto, nofinal do romance, Fragoso estampa um novo comportamen-to, não aceitando o convite indecente de José Cândido paraaproveitar-se do fornecimento às vítimas da seca. Aos ses-senta e dois anos decide iniciar vida nova, “os passos fir-mes, a cabeça erguida” (p. 181).

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CONTOA Percepção da Efemeridade

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1 OS INSTANTÂNEOS DA REALIDADE

O COMPROMISSO Literário de Eduardo Camposnão se esgota na exploração dos problemas sociais quefazem da vida humana uma tragédia. Ele, além de em-preender uma crítica aos sistemas opressores, procuradar uma interpretação das metas que se abrem para ohomem, resvalando para o domínio das perquiriçõesontológicas. Não chega a questionar as razões da exis-tência, porém tenta compreendê-la ou intuí-la, como senesse ato pudesse encontrar a raiz de todo o mal.

Desta sorte, suas incursões no conto vão expres-sar a mesma cosmovisão pessimista, num esforço deapreensão do momento que passa, trazendo a certezade que a impermanência caracteriza a totalidade dosquadros que se sucedem. Agora, coerente com as di-mensões do conto, narrativa curta por excelência e rigi-damente apoiada numa restrição temporal, o autor setorna mais direto e objetivo, flagrando sem arrodeios osinstantâneos do dia-a-dia.

A unanimidade da critica reconhece que neste gê-nero Eduardo Campos revela o melhor de seu talentoliterário. Herman Lima1 é um dos que o consideram umagenuína vocação de contista, destacando-lhe “O Abutre”como um dos textos mais belos e originais jamais escri-tos no Brasil. Aqui, porém, este esboço de análise versa-rá sobre o livro O Tropel das Coisas, sem nenhuma

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pretensão de explorar todos os motivos ou facetas que oscontos encerram. Objetivou-se ao contrário demonstrarque para cada ângulo estudado surgem novas perspecti-vas de interpretação, num multiplicar incessante de ele-mentos que aparecem à medida que outros sãodesvendados. Nesse ponto, para não produzir um labirin-to de informações, é conveniente proceder a um cortemetodológico que concentre a análise apenas em algunsdos elementos norteadores da leitura, em detrimento deoutros que talvez possam ensejar até interpretações maisricas e coerentes.

Admitindo esse risco, aqui serão observados apenasos pontos que parecem contribuir para uma visão, emborasuperficial, pelo menos globalizante dos contos lidos. Taisaspectos se relacionam ao universo temático explorado ea certos procedimentos formais que orientam esse uni-verso, definindo as técnicas usadas pelo autor para a suacriação literária.

É possível que o enfoque escolhido, semelhante aoadotado para o estudo do teatro e do romance, proporci-one marginalmente considerações para outras leiturase até mesmo contribua para um julgamento axiológicoda obra de Eduardo Campos. Na realidade, um simplesconto de sua autoria já revela toda a sua habilidade emarmar situações capazes de prender o leitor mais exi-gente. E dessa sua habilidade é que nascem talvez asdificuldades em ser analisado, porque ela soa como umsegredo. E, sendo assim, parece até impenetrável emmuitos pontos.

Não é demais insistir que sobressalta a maneira comoo autor consegue captar o instante em sua pureza eespontaneidade, agindo como um retratista fiel das rea-ções humanas, colorindo as cenas do cotidiano com umaconstante dose de humor. Por paradoxal que pareça, essehumor intensifica o senso do trágico e é uma espécie de

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racionalização, atestando a impotência do ser em sua par-ticipação existencial.

Basicamente é nessa linha que se esteia a leiturade O Tropel das Coisas. Uma leitura de simples apre-ensão dos contos, observando-os como quadros, momen-tos fugidios que por isso tornam quase inútil qualquerarremetida de luta. Mas pelo menos a certeza daefemeridade constitui um consolo para a própria tragé-dia humana.

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2 A VISÃO DETERMINISTA DAS COISAS

HÁ que considerar inicialmente que os valorestransmitidos em uma obra podem não espelhar todo ocomportamento literário de um escritor.2 Por isso, fala-se que cada obra apresenta seu próprio estilo,3 seusmotivos intransferíveis, tornando-se capaz de por simesma estruturar seu universo passível de ser conhe-cido, sem a necessária remissão para outras obras doautor. Aliás, deve fazer parte da atitude crítica a abstra-ção de quaisquer elementos exteriores ao material ana-lisado, mesmo que possam ratificar ou repetir os traçosencontrados.

De fato, entendendo-se o discurso literário comouma leitura da realidade, é bastante lógico que os da-dos explorados consigam dimensionar um plano de valo-res inerentes ao próprio discurso considerado como umtodo. Tais valores preenchem o espaço literário de for-ma a compor uma visão da realidade, variável de acordocom a época, o ambiente físico-social e a individualida-de do autor ou da obra. Para o caso do livro em análise,o próprio título já encerra uma visão determinista dascoisas, num incessante acontecer, figurando uma ati-tude fenomenológica de perceber a realidade em seucontínuo fluir.4 Captando a essência das coisas no aqui-e-agora existencial, conforme já se ressaltou, o narrador

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sente que a efemeridade é a marca de tudo e, assimsendo, as coisas parecem até certo ponto destituídas desentido. Em face dessa constatação, posiciona-se numaatitude irônica diante do inevitável e encara o fluxo dovir-a-ser como a única certeza da vida.

Parece, por conseguinte, que esses aspectossumarizam O Tropel das Coisas e merecem estudadosmais pormenorizadamente. Em linhas gerais, transparecemem qualquer um dos contos, subjazendo à trama ou se-qüência narrativa, que sempre enfoca o lado decepcionantee trágico da vida humana.

O livro se organiza em duas partes, compreendendocada uma contos que se ligam pelos mesmos motivos. Naprimeira, são os dramas da infidelidade, estudados dediversas maneiras. Na segunda, intitulada “Os desas-tres do homem”, acentua-se o fatalismo pela exploraçãodo tema da morte,5 vista sob um prisma de tragédia. Emambas as partes, segue um fio único de tratamento dostemas, o que transmite a cosmovisão do narrador, geral-mente preocupado apenas em flagrar a realidade, o mo-mento que passa e que, por isso mesmo, dimensiona aexistência nos limites estreitos do acontecer perene, parao qual pouco poderá interferir a vontade do homem.6

Isso é o que se pode perceber de uma primeira leitu-ra. E, para comprovar essa atitude fenomenológica de cap-tação do momento, do aqui-e-agora, é necessário observarque todos os contos se assemelham pelos tratamentos emotivos expostos. Na primeira parte, o adultério é analisa-do sob a forma de desejos insatisfeitos que redundam emfrustração ou decepção (“O banho”, “Adultério para cegover”), sob o ângulo da tragédia (“Aquelas cartas”) ou sob aforma de caprichos femininos (“O papagaio do vizinho”, “Umcaso de amor”). Na segunda parte, o tema da morte éassociado ao sentimento de fundas depressões (“Agentede primeira classe” e “A cabeça do Capitão”), à falta de

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solidariedade humana (“A longa espera de quem sofre”) eao grotesco (“O menino que tinha fome”. Em tudo, a mes-ma nota de quase fatalismo, como se as coisas estivessemdefinidas por forças alheias à vontade do homem e se-guissem um curso interminável de acontecimentos queem essência se repetem.

O que menos parece surpreender é o fato em si,uma vez que retrata o cotidiano, o constante vir-a-serexistencial. Mas o fato se alicerça sobre um conjuntode elementos que, se não questionam a presença dohomem, fornecem motivos de reflexão acerca do devir,situando a fragilidade ou imperfeição como caracterís-ticas básicas de qualquer relacionamento social. Tal-vez por isso, com o objetivo de apreender melhor essesaspectos do determinismo sugerido em toda parte, umaleitura horizontal, orientada para a delimitação dasseqüências fáticas, se justifica plenamente. De resto,pelo caráter monocrônico e unívoco que define o contomoderno,7 essas seqüências se resumem a poucos lan-ces, estabelecidos por um esquema de três funções.Tais funções visam a abrir, manter e fechar um circui-to, estruturando o que T. Todorov8 denominou de “gra-mática da narrativa”.

Nesse sentido, para cada conto em análise, é pos-sível essencializar esses três movimentos da seguinteforma:

1. “O Banho”a) Pedrão se apronta para um banho de mar, quando

se encontraria com uma empregada de um super-mercado, e inventa uma desculpa para a esposa.

b) Enquanto ele espera a chuva passar, sua mu-lher se maldiz da vida.

c) A contragosto, vendo seu plano frustrado, Pedrãotoma um banho de bica, ao lado da esposa.

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2. “Adultério para cego ver”a) Paulino conhece a mulher do cego e a acompanha.b) Paulino passa a manter carícias libidinosas com

a mulher do cego, na presença deste.c) Sentindo remorsos, Paulino resolve resistir às

tentações da mulher do cego e vai embora, dei-xando-a decepcionada.

3. “O papagaio do vizinho”a) Amelinha é uma mulher exigente que deseja

possuir um papagaio falador, pertencente a ummerceeiro.

b) O marido tenta de todas as maneiras satisfazeraos caprichos de Amelinha, mas não consegue.

c) Ela resolve uma noite ir à casa do merceeirocom o firme propósito de obter o papagaio atra-vés da prática do adultério.

4. “Aquelas cartas”a) Liduína, mulher adúltera, recebe uma carta anô-

nima ameaçadora.b) Outras cartas se seguem e ela procura ex-

plicações junto ao amante.c) Ela e o amante são assassinados pelo marido que,

depois de preso, revela ser o autor das cartas.

5. “Um caso de amor” (“A separação frívola”)a) Ana tenta exasperar o marido de todas as ma-

neiras, mas não o consegue.b) Ela vai ao apartamento do amante, revoltada pela

frivolidade do marido que lhe deposita inteiraconfiança.

c) Em vez de cumprir o propósito de separar-se doesposo, ela volta para o convívio dele, deixandosurpreso o amante.

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6. “E a máquina de pregar botão em cueca?”a) Balduíno se apaixona por uma mulher, crendo-a

honrada e tenta alcançá-la.b) Por ocasião do Natal, cedendo às insistências

dele, ela aceita um convite para jantar.c) Depois de tudo, Balduíno se decepciona ao ouvir a

revelação transmitida pela própria mulher: era se-parada do marido, que a flagrara com outro homem.

7. “A mão de ouro”a) Ela foi obrigada a mudar o nome para Gertrudes,

depois que se empregou como cozinheira numacasa de luxo.

b) Adquiriu fama de boa cozinheira e por isso teveque preparar um banquete na casa de uma dasamigas de sua patroa.

c) Os elogios à comida feitos por todos os convidadosprovocaram o despeito de sua patroa, que resol-veu despedi-la.

8. “Agente de primeira classe”a) Armando é um agente orgulhoso de seu cargo e

o exerce com toda a proficiência.b) É convidado a trabalhar numa empresa de ôni-

bus, que entraria em concorrência com a estra-da de ferro, mas não aceita nenhuma proposta.

c) Ao sentir a falência do transporte ferroviário, Ar-mando atinge a um estado de delírio ou quaseloucura.

9. “A cabeça do Capitão”a) As volantes policiais estavam à procura do Capi-

tão, chefe de um grupo de cangaceiros.b) Ele reúne o seu bando e afirma estar cercado

pela polícia, que pretendia cortar-lhe a cabeça.c) Depois de instruir um jovem cangaceiro sobre o

que deveria fazer, o Capitão se suicida.

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10. “A longa espera de quem sofre”a) Ele adoeceu de repente e está inválido, numa

cadeira de rodas.b) Os filhos aos poucos se enfastiam do tratamento

que lhe devem dispensar e, por isso, resolvemcontratar uma enfermeira.

c) Ele morre desprezado pelos filhos.

11. “O menino que tinha fome e era guia do cegoque morreu”

a) O cego, ao tentar deglutir uma banana, é aco-metido de um ataque e morre.

b) Enquanto providenciam o enterro, o menino-guia chora interminavelmente e alguém pro-mete ajudá-lo.

c) Depois de receber várias humilhações, o me-nino é finalmente amparado.

12. “Velório de amigo”a) Francisco Antônio é um pedreiro que volta do

velório de um amigo, quando é agredido por poli-ciais.

b) É levado à delegacia, preocupado com o serviçoque deveria executar no dia seguinte, mas nin-guém crê em suas desculpas.

c) Na presença do delegado, depois de torturadovárias vezes, é obrigado a confessar um crimeque não cometeu.

Depois dessas esquematizações, é fácil perceberque todos os contos se ligam pela visão particular donarrador, caracterizada pelo senso de determinismo emrelação aos fatos, pela convicção de que eles apenasacontecem, sem que o homem possa exercer um outropapel senão o de mero paciente. Disso advém por certo

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um sentimento de frustração e decepção que marca aspersonagens envolvidas nas seqüências, sentimento queacentua mais ainda a consciência da impossibilidadehumana diante dos fatos.

No conto “O banho”, é um fenômeno natural (a chu-va) que frustra a personagem diante de seu intento. Emoutros, são também acontecimentos alheios à vontade queestabelecem o clima de decepção. Tal o caso do conto “Alonga espera de quem sofre”, em que a vítima é umparaplégico, condenado a viver em uma cadeira de rodas,desprezado até de seus próprios filhos, que aos poucosdeixam de ter qualquer sentimento de solidariedade. Talo caso de “Velório de amigo”, em que um pedreiro se vê deuma hora para outra, à semelhança de uma personagemkafkaniana, metido em problemas com a polícia, sem nadater feito. Na realidade, “Velório de amigo” é um conto-denúncia sobre as arbitrariedades e violências praticadaspela polícia. O realismo do autor atinge um plano de ta-manha correspondência com os fatos do cotidiano que oleitor é levado a sensibilizar-se com a sorte dos presosinocentes, forçados a confessar crimes não praticados.Outro conto que estampa de modo impressionante e sutilo senso de determinismo é, sem dúvida, “A cabeça do Ca-pitão”, considerado com justa razão por Francisco Carva-lho9 “um dos momentos mais altos da ficção do autor”. E asutileza reside no fato de que, embora o Capitão tenhacometido ao fim o suicídio, o que lhe daria a inteira res-ponsabilidade pelo seu gesto, esse suicídio já é fruto deum estado de delírio diante do acontecer. É o gesto deprotesto contra o que estava traçado, mas ao mesmo tem-po é o gesto que tinha que acontecer.

De forma análoga, o delírio como fuga ou protestoinconsciente é a nota característica do conto “Agente deprimeira classe”. A semelhança de Rubião, personagemde Machado de Assis,10 Armando experimenta o delírio

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ao fim de sua vida, atacado por um forte sentimento defrustração. Se Rubião, antes de morrer, executa o gestode pôr a coroa em sua própria cabeça, Armando veste atúnica de agente de primeira classe. Em ambas as per-sonagens, a sensação de orgulho e de defesa dos brios.Em ambas, o símbolo da impotência humana, como sepode ver pelas descrições de suas atitudes:

– Delírio de RubiãoAntes de principiar a agonia que foi curta, pôs a

coroa na cabeça, – uma coroa que não era, ao menos,um chapéu velho ou uma bacia, onde os espectadorespalpassem a ilusão. (Quincas Borba, p. 228)

– Delírio de ArmandoA sua respiração entrecortava-se, e agora, como

se fosse ter um ataque, principiou a tremer. Depois deum momento, ante os homens perplexos que o cercavamno quarto, pediu:

– Quero minha túnica. (O Tropel das Coisas, p. 93)

– Delírio de RubiãoO esforço que fizera para erguer meio corpo não

durou muito; o corpo caiu outra vez; o rosto conservouporventura uma expressão gloriosa.

– Guardem a minha coroa, murmurou. (QuincasBorba, p. 229)

– Delírio de ArmandoAinda delirou por minutos e, em dado momento,

quis levantar-se da cama, pedindo que não se sentassemem cima de sua túnica, já passada para vestir. (O Tropeldas Coisas, p. 91)

Não se pretende aqui encontrar nenhuma influênciaestética de Machado de Assis sobre Eduardo Campos, ape-

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sar do testemunho de alguns analistas, um dos quais Ge-raldo Sobral de Lima,11 Entretanto, dado o caráter simbológicoda obra literária, é possível interpretar com valores idênti-cos as descrições do delírio de Rubião e de Armando. Pare-ce que ambas as personagens podem ser tomadas comosímbolos da impotência humana em face da vida. A loucuraou delírio seria a única forma capaz de levar o homem auma atitude de superioridade diante dos fatos. Por isso,tanto a coroa como a túnica representam o poder, mas umpoder irreal, que redunda na maior de todas as frustra-ções: a da própria nulidade dos atos humanos.

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3 A IRONIA DIANTE DO INEVITÁVEL

A PERCEPÇÃO do determinismo existencial gerasem dúvida a atitude de ironia na consideração dos fa-tos que sucedem. E aqui se encontra uma das caracte-rísticas mais marcantes do estilo do autor, que a todoinstante sobressalta o leitor com expressões e enuncia-dos ricos de sutileza e capazes de provocar o riso ouacentuar o sentimento de amargura e decepção.

É oportuno analisar alguns lances em que o autorevidencia bem a capacidade de ironizar as situaçõesapresentadas. Leia-se, por exemplo, o desfecho do con-to “O banho”, em que a expressão “seios chupados” res-ponde pelo humor, caracterizada que é por um poder devisualização suficiente para bem marcar a frustraçãodo protagonista:

Havia nele um sentimento de frustração, de ar-rependimento, sobretudo de arrependimentopela cena de traição que, a manhã toda, maqui-nara, e que percutiu mais dolorosamente quan-do Anita, metida numa combinação velha, emque transpareciam os seios chupados, veio jun-tar-se a ele para se banhar também. (p. 17)

Em “Adultério para cego ver” ocorrem igualmentediversas descrições em que o humor é a constante. O

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narrador arma uma situação em que um cego fica sen-tado diante da esposa que acaricia um outro homem,tendo este último o dever de conversar com o cego sobreos assuntos mais díspares. A situação, pelo caráter inu-sitado, apela para dois ângulos da ironia: a postura damulher diante do marido traído e a confiança que elenela deposita. A mulher é ardilosa e escreve num papeluma mensagem que mostra para o rapaz:

Você pode fazer tudo o que quiser comigo, mastem de falar o tempo todo, senão meu maridodesconfia. (p. 22)

E com isso a situação se torna quase ridícula. Orapaz, enquanto passava a mão nos seios dela ou lheacarinhava as coxas grossas, tinha de falar do últi-mo pronunciamento do Papa, do aumento do preçodas passagens de ônibus, da moda dos cabeludos,etc. etc.” (p. 22). Observe-se que a falta de correlaçãológica entre “acariciar as coxas grossas ou os seiosda amante” e “falar do último pronunciamento doPapa”, confere um tom de comicidade, já definida pelapostura do cego.

Outro ângulo da ironia é explorado no conto “Opapagaio do vizinho”, quando mais uma vez as perso-nagens masculinas são tipificadas como ingênuas, aocontrário das femininas, sempre marcadas pela astú-cia ou falsidade. Mas essa falsidade curiosamente nãopode nem ser suspeitada pelo homem, que assim se-ria maldoso. A mulher, por causa de um papagaio quedeseja possuir, resolve doar o seu corpo para alcan-çar o seu intento. A ironia maior aparece no desfechoquando o merceeiro, temendo que alguém fosse capazde importunar a mulher àquelas horas da noite, deci-de levá-la de volta.

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Encabulado, o merceeiro não sabia o que fa-zer. Queria só disfarçar ou evitar um pensa-mento maldoso por parte de seu Zeca, que,nu da cintura pra cima, vinha pelo interiorda casa arrastando os chinelos, para abrir aporta. (p. 32)

Como se vê, o adjetivo maldoso concentra uma enor-me carga de ironia. O homem, além de ter sido traído,nem mesmo pode suspeitar do comportamento de suaesposa, que antes havia saído com um vestido bem pro-vocante e agora volta, dona do papagaio, dezenas de ve-zes negado. E volta protegida pejo merceeiro.

As atitudes das personagens são, pois, freqüente-mente descritas de forma irônica. Em “Agente de pri-meira classe”, tem-se a caricatura de Armando, o tipodo servidor escrupuloso de seus deveres, que por issose angustia com os destinos de sua repartição. Depoisde uma companhia de ônibus entrar como concorrenteda estrada de ferro no transporte de passageiros, Ar-mando se sente no dever de tomar algumas medidas eescreve diversas cartas a seus diretores, chegando in-clusive a propor que os trens apresentassem um serviçode ar-condicionado para os passageiros de primeira clas-se. Diante de tanta ingenuidade, conclui o narrador iro-nicamente: “Dessa vez nem ao menos recebeu a visitado inspetor.” (p. 89).

A ironia se relaciona quase sempre com a apre-sentação do drama humano e, em muitos pontos, acen-tua o sentimento de amargura marcado por situaçõestrágicas. É o que se vê no conto “A longa espera dequem sofre”, em que o protagonista passa o fim de suavida numa cadeira de rodas, sendo aos poucos despre-zado pelos próprios filhos. Quando recebia a visita dealgum filho, “sentia doer-lhe mais ainda o coração, prin-cipalmente porque escutava no interior do quarto contí-

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guo ao seu, em que existia um lavatório, a avidez comque era despejada a garrafa de álcool.” (p. 125) O do-ente percebia que todos tinham nojo de sua velhice,dos maus cheiros, e essa convicção ampliava a dor eangústia em que vivia.

A falta de solidariedade é assim revelada sutil-mente como um dos traços da personalidade humanae o narrador se vale dessa percepção para construirseu quadro de ironia. Chega até ao ponto de descre-ver o lado grotesco, consciente de que uma associa-ção do grotesco com o irônico é capaz de produzir forteapelo estético. É este um dos procedimentos usadosno conto “o menino que tinha fome e era guia do cegoque morreu”. O menino, após a morte do cego, tomauma decisão de chorar, a fim de obter algum senti-mento de compaixão por parte dos presentes. Suafisionomia é repugnante, mas Dona Margarida, “sópara se exibir, passava-lhe a mão pelos cabe-los du-ros.” (p. 131) Com efeito, era puro exibicionismo e ne-nhum sentimento autêntico de solidariedade poderiafirmar-se, mesmo num quadro de total desproteção.Todos pareciam antes incomodados com o aconteci-mento e desejavam livrar-se do morto e da criança omais cedo possível. “O bodegueiro somava o prejuízodas vendas, amaldiçoando o cego por ter-lhe vindo cairlogo ao pé do estabelecimento.” (p. 131) E um alíviotomou conta dos presentes quando Dona Margaridaresolveu doar uma rede velha para o sepultamento.Ela, para merecer elogios, desculpou-se dizendo quea rede era “velhinha, mas limpinha”. E as amigasenalteceram o seu desprendimento: “Credo, criatura,quem é que tem por aqui rede melhor?” (p. 132)

Pelos exemplos colhidos, percebe-se que a ironiaé de fato um dos atributos do narrador e tem comoobjetivo principal o de acentuar o drama humano, en-

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volvendo-o nas situações mais adversas, mas ao mes-mo tempo demonstrando que a falsidade, o egoísmoou falta de solidariedade são elementos que definemo relacionamento entre as pessoas. Na realidade,consciente de que a existência é o momento que pas-sa, sem que o homem possa deter as coisas, a atitudedo narrador é coerente por si mesma. Ao ser humano,diante do inevitável, só restam dois caminhos: ou acei-tar ironicamente as situações ou fugir delas pelo de-lírio da loucura, como fizeram o Capitão e o Agente dePrimeira Classe.

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4 PROCEDIMENTOS FORMAIS

SE o que define uma narratva literária não é oassunto sobre o qual se embasa, mas a forma comoele é descrito,12 é necessário a tarefa analítica veri-ficar os aspectos que estruturam o discurso donarrador com vistas a um melhor conhecimento dostraços definidores de seu estilo. Com efeito o assun-to pode mesmo ser o aproveitamento de um fato real,de um fait-divers, e só atingirá o plano da esteticidadese o discurso caracterizar-se pela literariedade ousoma de procedimentos específicos das mensagensliterárias.

Aqui, de modo idêntico ao que ocorreu na análisedos romances, não se fará um levantamento exaustivode todos esses procedimentos nem muito menos elesserão estudados em profundidade. Serão apenas dis-cutidos alguns pontos referentes às técnicas deestruturação narrativa, ao nível das descrições e apre-sentação das personagens, ao foco narrativo e à elabo-ração dos diálogos. Por fim, algumas considerações deordem lingüístico-estilísticas serão tratadas, sem queno entanto se chegue a uma descrição precisa das cons-tantes estilísticas do autor, tarefa que reclama um es-tudo minucioso de todas as suas publicações

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4.1 A ESTRUTURA NARRATIVAEm linhas gerais, Eduardo Campos parece repetir

no conto o esquema tradicional de apresentação dasfunções que organizam o eixo horizontal da narrativa jápercebido na leitura de seus romances e peças teatrais.Conforme se salientou, as três funções básicas estãopresentes em cada conto e perfazem uma seqüêncialinear de princípio, meio e fim bem definidos.

Além disso, é oportuno ressaltar que sua consci-ência dos limites que conceituam o conto13 como gêneroliterário lhe confere um poder de síntese capaz de eli-minar todas as digressões. Geraldo Sobral de Lima14 jáenfatizou que essa contenção da linguagem é uma desuas virtudes essenciais, tornando-o hábil no domínioda estória curta. O fato é mostrado por si mesmo, semcomentários impertinentes, sem alternâncias de outroseventos que apenas tumultuariam o processo. O nar-rador só deseja flagrar uma cena, sem questionar osmotivos remotos, e deixa muitas vezes para o leitor apossibilidade da abertura de novos desfechos. Aliás, atotalidade dos contos possui essa característica: o lei-tor ao fim se pergunta sobre o que poderá ter acontecidoa partir do instante em que o acontecimento se cum-priu. Em “O banho”, Pedrão teria depois marcado umnovo encontro com a empregada do supermercado? Em“Adultério para cego ver”, o cego descobriria finalmenteque sua mulher não procedia com honestidade? E as-sim, após a leitura de qualquer um dos contos, o leitortem a oportunidade de formular as mais variadas ques-tões, o que sem dúvida enriquece o texto de múltiplasaberturas interpretativas.

4.2 O DESCRITIVISMOHá uma tendência ou orientação estética da litera-

tura atual para a valorização do sensorial, talvez em con-

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sonância com as próprias características da comunica-ção moderna, mais voltada para o apelo instantâneo, nãosó visual mas também táctil, o que passou a definir umanova postura do homem diante da realidade. No campoespecífico das manifestações literárias, Alam Robbe-Grillet15 já preconizava com a sua teoria do nouveau romanuma série de princípios capazes de definir uma “literatu-ra do olhar”, alicerçada no registro das puras impres-sões. O escritor deve assumir uma atitude de alguémque simplesmente estampa o que “vê”, sem nenhum ob-jetivo de julgar as coisas ou de nelas interferir. As coisasfalam por si e estão aí para serem observadas.

Veja-se o comentário do próprio Alam Robbe-Grillet16:

Ora, o mundo não é significante nem absurdo.Ele é, simplesmente. Em todo caso, é isso queele tem de mais notável. E de repente essa evi-dência nos atinge com uma força contra a qualnão podemos mais nada. De um só golpe toda abela construção se esboroa: abrindo os olhospara o imprevisto, experimentamos mais umavez o choque dessa realidade obstinada quepretendíamos ter dominado. A nossa volta, de-safiando a matilha de nossos adjetivosanimistas ou protetores, as coisas estão aí.

Eduardo Campos, se não se enquadra nessa postu-ra estética, pelo menos é cônscio da capacidade de apelosensorial que as descrições apresentam. E talvez por issoseus contos possuem um caráter às vezes predominan-temente descritivos, já que via de regra o fio narrativo seresume a simples instantâneos da realidade. Esse cará-ter se firma em referência às personagens e cenas, es-tabelecendo para o leitor imagens nítidas pelos traçosdelineados e sobretudo imagens que se associam pelosmesmos procedimentos que as transmitem.

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Freqüentemente o gosto pelas minúcias ou deta-lhes marca os enunciados descritivos e a impressão ob-tida permanece pelo aspecto de aparente insignificância.O detalhismo é assim uma das preocupações do narradorque parece seguir uma atitude realista, identificada eminúmeras situações.

Eis alguns exemplos:

O conto “A mão de ouro” é uma seqüência de im-pressões e mostra todos os aspectos de um banquete,detalhes vistos às vezes sob uma perspectiva de ironia.

Em “Aquelas cartas”, até as mínimas atitudes daspersonagens são fixadas, como se vê na seguinte passagem:

Servido, ele ergueu-se arrotando. Meteu o pa-lito na boca, esgaravateou o dente cariado.(p. 36)

Mas o que sobressai em tudo é a organização dostraços ou impressões que posicionam o observador comoum analista acurado dos elementos que aos poucos vaidelineando. Tirando partido do senso de ironia, ele des-creve o comportamento das personagens de forma real-mente marcante. Leia-se a titulo de ilustração oseguinte excerto de “Agente de primeira classe”:

Já vestido, andou diante do espelho, a ver senão lhe escapara algum detalhe, se abotoaracorretamente a túnica, se o vinco das calçasnão se amarfanhara na ida até o banheiro.Achando-se aprumado no uniforme, apanhouum lenço e inventariou os vidros de perfume eo do remédio para combater a halitose, que es-tavam sobre a cômoda. (p. 70)

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O teor descritivista que se instaura na maioria doscontos acarreta uma densidade17 maior das ações, de talmodo que se observa uma lentidão do encadeamento daspoucas funções que compõem as seqüências fáticas. Issose constata mais fortemente nos contos “A cabeça doCapitão” e “A longa espera de quem sofre”. Essa densida-de narrativa não gera monotonia, conquanto formule defato cenas firmadas pelo tom de melancolia e angústia.

Por outro lado, a impressão do macabro ou do gro-tesco é apresentada numa linguagem em que os vocá-bulos de caráter sensorial são capazes de transmitir aimagem do horror. Observe-se o poder de visualizaçãoque as palavras grifadas no enunciado abaixo forne-cem à mente do leitor:

Os olhos grudavam-se na banana meio deglu-tida, na baba viscosa, numas borbulhas quepareciam continuar espocando da boca mur-cha, podre. (p. 130)

Uma análise da capacidade sensorial dos termossublinhados revela um acúmulo de impressões visuais(olhos, boca), tácteis (grudavam, baba, viscosa, murcha),gustativas (deglutida, baba), auditivas (borbulhas,espocando) e olfativas (podre), o que provoca a imagemviva do grotesco. O exemplo é suficiente para demons-trar a acuidade perceptiva do narrador e caracterizá-locomo autor consciente de que as imagens estão aí mes-mo e se deixam retratar em sua autenticidade pelo há-bil manejo da palavra.

4.3 A APRESENTAÇÃO DAS PERSONAGENSPosto que os contos em estudo têm um caráter

prevalentemente descritivo, lugar de especial relevocabe sem dúvida à apresentação das personagens. Qua-

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se sempre, o autor situa logo de início as personagensem ação e aos poucos vai compondo o perfil doscaracteres psicossomáticos que as organizam.

É evidente que a criação de personagens, sobretu-do de tipos, se torna bastante difícil para as dimensõesde um conto. No romance, uma vez que há possibilidadede um desempenho mais eficiente em face de uma in-triga complexa, a elaboração de tipos ou personagenspode engendrar as mais diversas situações. Todavia, écurioso como, nos limites estreitos de uma narrativamonocrônica, consegue o escritor refletir personagensque permanecem vivas, como o tipo do agente ferroviá-rio, o cangaceiro ou o delegado. Esses tipos são descri-tos às vezes de forma caricatural, o que lhes acentua ostraços singularizantes, abaixo exemplificados:

Diante do espelho, o homenzinho consertououtra vez o bigode. Em cima do lavatório, a cor-tiça queimada na ponta. Apanhou-a. O gestosaiu-lhe natural, à força do hábito. Escureceuos fios brancos que lhe prejudicavam a apa-rência. Recuou então dois passos para perce-ber que, sem os óculos, não enxergava osuficiente para a avaliação do bigode, retocadohavia pouco, e que caía desgracioso, escuro,sobre o lábio grosso. Apanhando as lentes,retornou ao espelho. Abriu a boca. – Ah, ah! –Verificou os dentes. (p. 69)

Assim, a maioria dos contos obedece à técnica deiniciar com uma descrição dos traços individualizantesda personagem e aos poucos a ação se desenrola, sem-pre entremeada de lances impressionísticos que vão acres-centando novos detalhes físicos ou comportamentais atéo ponto que o retrato obtido possa realmente condizer

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com a situação armada. Por isso, conquanto o desfechovia de regra seja surpreendente, é perfeitamentecorrelacionado aos atributos fornecidos para as persona-gens envolvidas. Nesse sentido, todos os elementos des-critivos funcionam como índices, capazes de contribuirpara uma interpretação mais profunda, já que, associa-dos uns aos outros, conferem aos motivos tratados umacoerência interna, requisito fundamental para a valori-zação do discurso literário.

4.4 O FOCO NARRATIVOO foco narrativo diz respeito ao ângulo de observa-

ção pelo qual a ação é informada ao narratário. É a ma-neira como no seu discurso procede o narrador: ou demodo impessoal (narrador-ausente) ou se confundindocom uma das personagens (narrador-personagem). As-sim, de acordo com a perspectiva adotada, a ação serátextualizada em primeira ou em terceira pessoa.

Tzvetan Todorov,18 ao deter-se neste assunto, con-cebeu um esquema de três espécies de “visão”. A “visãocom” é aquela em que se processa uma identificação donarrador com a personagem (narrativa em primeira pes-soa) ou em que, no caso de inexistir tal identificação(narrativa em terceira pessoa), seu conhecimento a res-peito dos fatos é o mesmo que o das personagens e, porisso, não tem a capacidade de predizer o destino delas. A“visão por trás” coloca o narrador numa atitude de onis-ciência e onipresença e assim ele conhece a estória maisdo que qualquer personagem, podendo dizer tudo, mes-mo o que se passa no íntimo de cada uma delas. A “visãode fora” faz do narrador um simples observador que captaapenas aquilo que está ao alcance de seus sentidos, ja-mais penetrando no mundo interior das personagens.

Diferentemente do que se percebeu na leitura dosromances,19 os contos em geral denunciam uma atitude

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de imparcialidade (“visão de fora”) diante dos fatos. Oautor apenas deseja apresentar o que está ao seu al-cance, sem penetrar subjetivamente em consideraçõesque pudessem desvirtuar o caráter narrativo-descritivode sua mensagem. Apenas em uma ocasião utiliza otratamento em primeira pessoa, transformando-se emnarrador-personagem. Entretanto, logo alterna para ou-tro procedimento, organizando seu discurso em dois pla-nos associados pela técnica do encadeamento.

Trata-se do conto “Um caso de amor ou A separaçãofrívola”. A primeira parte do texto é doada em primeirapessoa, quando o narrador-personagem descreve as difí-ceis relações entre ele e sua esposa Ana, sem quererapresentar-se como um marido traído, nem ao menossuspeitando da honestidade de sua mulher. Na segundaseqüência, deixa o papel de narrador-personagem e oconto passa a tratar em terceira pessoa do encontro deAna com o amante. Ana se sente revoltada pela indife-rença ou frivolidade do marido, que a aceita sem questi-onar em instante algum se ela lhe é fiel. O leitor, emface da utilização desse recurso narrativo, fica em dúvi-da quanto à reação posterior do esposo traído que, à se-melhança das personagens masculinas de outros contos(por exemplo “Aquelas cartas”), podia estar sabendo detudo. Com efeito, os índices formulados deixamtransparecer amplas possibilidades de um acordar re-pentino para a realidade dos fatos. Mas a mudança dofoco narrativo foi um recurso hábil para provocar a ambi-güidade e conferir ao fim do conto a ironia que marca oestilo do autor: a esposa volta para o convívio do marido.

Há pouco se afirmou que em regra o narrador ape-nas retrata o que está ao alcance de seus sentidos,sem penetrar no mundo íntimo de suas personagens.Não obstante, é oportuno esclarecer que às vezes elerepete o procedimento utilizado nos romances e adota

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a “visão por trás”. Exemplos desse procedimento po-dem ser colhidos em “A longa espera de quem sofre”.Neste conto, o narrador participa efetivamente do uni-verso intimo da personagem e relata o que se passa namente angustiada dela, refletindo-lhe os sentimentos,imaginações e anseios:

Ao se afastarem dali, o homem sentia doer-lhe mais ainda o coração, principalmente por-que escutava no interior do quarto contíguo aoseu, em que existia um lavatório, a avidez comque era despejada a garrafa de álcool. Imagi-nava com acerto que Rodrigo, Clotilde e Zeneidase livraram, depois de vê-lo, do contacto infectode sua velhice de maus cheiros. (p. 125)

A onisciência do narrador se faz marcante de modoanálogo em “Agente de primeira classe”, quando todosos gestos e reações do anti-herói são descritos, desdeos mais recônditos desejos e pensamentos. Em dadoinstante o narrador afirma que o agente estava comvontade de que lhe fosse esclarecido se usaria farda nonovo emprego que lhe ofereciam. Em outra ocasião, ana-lisa o pensamento da personagem com uma descriçãode extrema ironia:

Pôs-se diante do vaso sanitário, achando aqui-lo paulificante, pensando, constrangido, depoisde ver a urina esbranquiçada, que estava per-dendo fosfato... (p. 70)

Todavia, é com a técnica do monólogo interior, ensaiadaprincipalmente no conto “A cabeça do Capitão”, que o narra-dor define melhor a atitude de onisciência e onipresença.

Não – remoía o homem, mastigando um si-lêncio grosso, sentindo o vento roçar a folha-

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gem da mataria entretecida de sol – não erafrouxo, homem submisso ao azar! Se a suahora soar, estatalando-se no chão quente, seucorpo vai encontrar o solo, manchado de san-gue, de ventres e peitos lacerados por esto-cadas certeiras, que tanto ele como o seubando sabiam manejar o facão, cortavammão, cortavam vidas, como quem apara ca-pim em beira de lagoa. Não – e o vento reco-meçou outra vez a balançar as árvoresdistantes, altanadas, até se aproximar dele,envolvendo-o de calor – não seria defunto co-mum, dos que os mais apiedados encruzam-lhe as mãos, chorando. Nem pensava ir-sede crucifixo no peito e morte de fêmea, ven-cido, com aquele cheiro de incenso ou aovozerio de falsas rezadeiras. Defunto have-ria de ser, mas dos de rede, que morrem lu-tando de pé, e que, no final, mãos caridosassó podem recolher um resto de gente, não sesabendo onde parou a cabeça. A cabeça? Porque vinha o diabo fazê-lo outra vez pensar nacabeça decepada? Teria sido por lhe teremfalado os homens, à hora de distribuir a mu-nição que restava, ao bando, que era esse ovocal corrente naquele pé de serra? (p. 106)

É digno de nota que, paradoxalmente, em nenhumde seus dois romances o autor haja conseguido essenível de penetração. Aqui, ao contrário, em várias pas-sagens se abre o abismo da angústia, propício ao fluxode consciência, o que gera a impressão de algo intermi-nável, até certo ponto incongruente com os requisitosapontados para a tipificação do conto. Por esse e outrosmotivos de ordem estrutural, “A cabeça do Capitão” as-semelha-se mais a uma novela ou embrião de romance,se bem que o conceito de novela como gênero interme-diário esteja perdendo dia a dia a sua eficácia. Não é

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imprudência assegurar que, pelo menos no Brasil, asnovelas são em sua maioria rotuladas quer como ro-mances quer como contos, segundo a preferência dospróprios autores ou críticos.

4.5 A TÉCNICA DO DISCURSO INDIRETO LIVREAo estruturar os diálogos, Eduardo Campos atin-

ge um plano de verdadeira autenticidade e coerência,reproduzindo com fidelidade de torneios fraseológicose vocábulos específicos a fala das personagens, em per-feita consonância com os hábitos lingüísticos das clas-ses a que elas pertencem. Quase sempre utiliza ochamado discurso direto, deixando que as próprias per-sonagens se manifestem e conferindo por esse recur-so uma certa vivacidade às situações. Assim, não parecedemonstrar preferência pelo estilo indireto, técnicamediante a qual o narrador fala pelas personagens.

Mas o que sobressai mesmo em sua prosa narrativaé o emprego hábil do discurso indireto livre, procedimen-to que, conforme se fez referência na análise dos roman-ces, envolve a um só tempo narrador e personagem numasimbiose tão estreita que o leitor é incapaz de dizer se osenunciados pertencem a um ou a outro. Na realidade,em meio a um lance descritivo, de vez em quando sur-gem algumas considerações perfeitamente transformáveisem discursos diretos ou indiretos. Contudo, elas se mis-turam no processo narrativo e/ou descritivo e, tirandopartido dessa ambivalência, contribuem como índices va-liosos para a interpretação ou análise estilístico-textual.

A fórmula mais bem sucedida talvez seja encon-trada na utilização do monólogo interior, em que o flu-xo de consciência da personagem é explorado numdesencadear de impressões, que ora parecem trans-mitidas pelo narrador, ora se definem como autênticasreflexões da personagem em delírio ou estado de fun-

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da angústia. No conto “A cabeça do Capitão” espalham-se exemplos em diversas páginas, semelhantes ao quejá foi aqui comentado.

Mas, independente do monólogo interior, o discursoindireto livre se encontra em qualquer um dos contos doautor, traduzindo-se em mais uma das constantes deseu estilo. Veja-se como aquilo que pode ser consideradofala ou pensamento das personagens se imiscui no dis-curso do narrador em lances bastante expressivos:

• A mulher voltou para a cozinha, resmungando,proclamando-se a criatura mais infeliz do mun-do. Se pudesse tornar ao passado, não mais secasaria com ele. Levava vida de escrava, osvizinhos tinham pena dela, o tempo todo nacozinha, sem vez de passear. Ia a alguma par-te, ia? (“O banho”, p. 16)

• O silêncio se abatia sobre eles. Só lhes restavaverificar a munição, esperar o momento decisi-vo. E se incendiassem o capão? (“A cabeça doCapitão”, p. 107)

• O Capitão sorriu de modo claro, de quererdemonstrar alegria. Não fosse tolo! Era ver; nãochegariam à meia encosta, morreriam todos.A metralhadora do Serrote Azul estava dirigidapara aquele lado. (“A cabeça do Capitão”, p. 108)

Por vezes, o autor sinaliza que o enunciadoestruturado sob a forma de discurso indireto livre re-produz de fato a fala da personagem. Os recursos queutiliza comumente são as aspas ou uma oração interca-lada com verbo “dicendi”20:

• Francisco Antônio já não sabia o que fazer. “Comoera mesmo? Não falando, ficava preso, ia apa-

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nhar, ter a vida manchada, acabar prejudicadonas promoções. Mas falar o quê? Que podia di-zer àqueles homens?” (“Velório de amigo”, p. 141)

• Como bom funcionário de primeira classe, Ar-mando só falava de acordo com os termos técni-cos, o que, às vezes, gerava incompreensões. Nemtodo mundo tinha obrigação de entender a lin-guagem das comunicações ferroviárias – descul-pava sorrindo – principalmente os que nãotinham a sua tarimba (“Agente de primeiraclasse”, p. 72)

Muitos outros exemplos de discurso indireto livrepoderiam ser mencionados e mesmo analisados os seusefeitos estilísticos por meio do confronto com as trans-formações para os demais procedimentos. Em realidade,por seu caráter de ambivalência, o estilo indireto livre ésem dúvida a técnica mais refinada para expressar afala ou pensamento das personagens e dela os autoresconscientes dos princípios estéticos que orientam a pro-dução de um texto literário têm feito largo uso. EduardoCampos não fugiu à regra.

4.6 OS TRAÇOS LÉXICO-ESTILÍSTICOSUm levantamento estatístico das freqüências de cer-

tos tipos de expressão seria um método viável para definircom relativa precisão os componentes básicos do universovocabular de Eduardo Campos. Não se levou a termo estatarefa por uma questão de coerência metodológica com osdemais aspectos já estudados, mais em termos de im-pressão de leitura do que sob a forma de um rigorismocientífico. Por isso, os traços que agora são comentadosparecem escassos diante da abundância de outros omiti-dos. Mas servem para demonstrar o lado vernaculista doescritor, cônscio de que a literatura se faz realmente com

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as palavras, devendo por causa disso manipulá-las da me-lhor forma.

De princípio, nota-se a mesma tendência para oaproveitamento da fala autêntica do homem do povo atra-vés do registro de inúmeros termos de cunho nitida-mente regionalista, tendência que, como se viu, estápresente nas peças teatrais e nos romances do autor.Mas é no emprego da linguagem trópica que EduardoCampos mostra seu pleno domínio dos recursosestilísticos. As vezes, toma um adjetivo e o trabalha emfunção de substantivo, conferindo uma intensificaçãodo poder sensorial dos enunciados. Leia-se a frase:

Tinha na mão o quente da moça. (“O banho”,p. 14)

É evidente que o derivado “quentura”, por sua na-tureza abstrata, deixa de provocar o apelo imaginativo-sensorial que o adjetivo quente, em função substantiva,é capaz de produzir. E o uso de um sinônimo, como “ca-lor”, não sobressalta o leitor e consequentemente secarrega de menor expressividade.

Aliás, já se ressaltou que Eduardo Campos explorao campo sensorial no intuito de fixar bem as imagensdescritas. E por isso despreza a adjetivação grandilo-qüente e vazia, característica de alguns escritores ro-mânticos, apegando-se a um uso moderado de adjetivos,quase sempre escolhidos pelo poder de gerar valoresafetivos ou imaginativos. Tome-se como ilustração o se-guinte lance:

Era noite, medonha noite. Sem ruído algum, anão ser o vento roçando na mataria e nas som-bras, opressivas e abrasadas, de um dia queficara noite irrespirável. (“A cabeça do Capi-tão”, p. 97)

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Percebe-se que a descrição transmite fortemente aidéia de medo e sobressalto. No primeiro período, a repe-tição do vocábulo noite instaura logo o quadro de pavorpela intercalação do adjetivo medonha. E logo em segui-da, o silêncio, associado à escuridão, intensifica o qua-dro conotando todo um momento de angústia e apreensão.Para tanto, vale-se o narrador não só do poder evocatóriodas expressões sombras, opressivas e abrasadas e noiteirrespirável, mas inclusive de uma sugerência fonológicaque ilustra o ambiente descrito. Esse apelo fonológicosubliminar21 é estruturado na base de fonemas nasais esibilantes, alternados com os grupos de oclusivos e vi-brantes em aliterações indiciadoras da inquietude doestado de espírito. Leia-se novamente a passagem aten-tando-se para os fonemas sublinhados: o vento roçandona mataria e nas sombras, opressivas e abrasadas.

Aliás, a utilização da capacidade de ilustraçãosonora que os fonemas apresentam, se combinadosadequadamente, é marcante em diversas passagens dolivro. Veja-se apenas mais um exemplo que por si é su-ficiente para comprovar essa habilidade do escritor:

Tinha seios discretos – ele reparou –, mãos fi-nas, dedos alongados, e o enchimento do corponão só parecia, enlarguecia deveras abundan-te, à altura dos quadris. (“E a máquina’ pra pre-gar botão em cueca”, p. 53)

A descrição acima destaca os atributos físicos fe-mininos e está eivada de erotismo e sensualidade. Osmotivos e sugestões tácteis se referem aos seios, mãose dedos partes do corpo reconhecidamente símbolos doerotismo Mas o que de fato define o máximo devisualização é o apelo fonológico do adjetivo abundanteque no contexto adquire um caráter de ambigüidade.22

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É válido afirmar, por outro lado que as conotaçõeseróticas são exploradas através de recursos mais dire-tos, como o emprego de imagens, e constituem um am-plo domínio a ser o emprego de imagens, e constituemum amplo talvez pelo interpretado. Até nas situaçõesmais dramáticas, seu poder de ironia, o narrador forma-liza esse aspecto:

Calaram-se. O Capitão largou o rifle. Nascia-lhe agora a vontade de meter a mão na areia,naquele solo solto, areiúsco, que ele começa-va a remexer como quem passeia, carinhoso,os dedos na recatada intimidade de uma mu-lher. (p. 108)

Está aí um campo a ser detidamente analisado naobra de Eduardo Campos. Deverá sem dúvida ser objetode uma microanálise em que se prescrutem as maisdiversas conotações que suas imagens provocam numesquema de relacionamento associativo com outras ima-gens, o que estabelecerá os traços léxico-estilísticos desua linguagem. Essa tarefa, contudo, requer umaprofundamento nos vários níveis de organização de seudiscurso, desde a camada rítmico-sonora até a explora-ção dos procedimentos morfossintáticos e componentessemânticos.

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5 CONCLUSÃO

O TEXTO literário, por sua natureza polifônica, re-presenta um desafio às limitações perceptivas do leitore sempre exige novas leituras sob os mais diferentesângulos. Dessa forma, nenhum trabalho analítico podeser fechado nem muito menos é capaz de abarcar amultiplicidade de aspectos que caracterizam as mani-festações estéticas.

Essa convicção, se frustra as aspirações dos críti-cos, aponta-lhes as prerrogativas de uma atualizaçãoperene das mensagens literárias em termos de tentati-va de interpretação da realidade. Afinal, qualquer aná-lise textual caminhará para uma reflexão sobre osmotivos mais recônditos que fazem o ser humano acom-panhar a dinâmica de seus próprios valores.

Tais considerações justificam três lacunas desteesboço de análise. Em primeiro lugar, a pequenaabrangência dos aspectos enfocados e omissão de diver-sos outros, possíveis de ocorrer em novas leituras. Emsegundo plano, uma preferência por uma análise muitomais impressionista do que propriamente apegada aosaparatos técnico-metodológicos que as correntes da crí-tica moderna têm estabelecido. E por fim, uma série deinferências que talvez representem mais a visão do ana-lista do que a mensagem pretendida pelo narrador.

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Quanto a este último aspecto, é válido aceitar a opi-nião de diversos estudiosos do fenômeno da comunicaçãohumana, entre os quais se situa M. MacLuhan, segundo aqual nenhum leitor lê o que o texto realmente está dizer,senão que projeta o que tem dentro de si. Assim sendo,tudo o que sobressalta para o analista é aquilo que fazparte de sua própria visão e, quando muito, esta pode iden-tificar-se com os valores efetivamente fixados pelos com-ponentes do texto.

De qualquer forma, um conhecimento mais estreitocom o autor é capaz de elaborar um mecanismo de “feed-back” e estabelecer um trabalho de recriação literáriadesvinculado das fantasias e projeções do leitor. Mas nes-se ponto a análise perderia muito de sua finalidade que éexatamente a de possibilitar o enriquecimento do texto apartir das descobertas do que lhe é subjacente, sujeito àsadaptações com as vivências e aspirações dos mais diver-sos intérpretes.

No caso dos contos de Eduardo Campos, pela atua-lidade dos temas explorados e principalmente pela per-cepção fenomenológica do “aqui-e-agora” em constantevir-a-ser, essas vivências parecem derivar da atmosferacultural do homem contemporâneo, angustiado por des-cobrir o estado de derelicção ou abandono completo emque se encontra, mesmo em relação a seus semelhan-tes. Diante disso, só lhe resta mesmo ironizar a suaprópria sorte.

NOTAS

1. Cf. op. cit. p. 128.2. Registre-se, porém, que Eduardo Campos mantém-se cons-

tante em seus motivos, conforme já entreviu BragaMontenegro (op. cit. p. 58) ao analisar dois contos escritos em

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épocas distintas com um hiato de tempo considerável ,ou seja,de 1946 (“A roseira”) a 1965 (“A venda das mangas”). Em am-bos esses contos há o mesmo tom narrativo e até a organi-zação léxico-sintática deixa de oferecer variações.

3. Raciocinando que uma obra literária é a resultante de umasérie de fatores relacionados às influências sócio-culturaissofridas pelo autor, o problema da definição do estilo individualdo escritor se agrava bastante. E possível constatar que duasou mais obras, de características inteiramente diversificadaspodem pertencer a um mesmo autor e, talvez por isso, hajatentativas de operar com o chamado estilo da obra, deixando-se à margem as preocupações com os traços pertinentes doestilo do autor. Essa orientação crítica não é recente, tendosido defendida entre outros por Wolfgang Kayser.

4. O tratamento fenomenológico dado á percepção da realida-de, se de certa forma retoma a atitude dos filósofos seguido-res de Heráclito, atinge novas perspectivas sobretudo quandoassociado a uma visão existencialista, como parece ocorrercom Eduardo Campos, o que talvez lhe explique o sentimen-to ou inclinação pela temática do absurdo. Para uma pene-tração nesse domínio, veja-se o estudo de Merleau-Pontysobre a fenomenologia da percepção e as obras dos filósofosexistencialistas.

5. No universo temático de Eduardo Campos, a morte ocupaseguramente um dos terrenos mais férteis de suacriatividade. O próprio autor, em entrevista à escritora Eneida(Cf. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 19 jul. 1964, p. 2)reconhece-se portador de uma intensa obsessão pela mortee a isto deve as suas mais belas páginas literárias.

6. Essa impotência do homem diante das coisas sem dúvida esta-belece a visão determinista, mas certamente não é bastantepara enquadrar o autor numa orientação estética de cunhonaturalista, embora seu realismo o pudesse levá-lo a tanto.

7. Um estudo pormenorizado dessas características é apresen-tado por Massaud Moisés em seu livro A criação literária.

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8. Os formalistas russos contribuíram de modo significativopara a compreensão da literatura em termos de tipificaçãodo discurso estético e empreenderam uma simplificação dosesquemas que organizam uma narrativa. Citem-se comofontes de pesquisa as obras de Elkhenbaun, Roland Barthese Todorov, referenciadas ao fim.

9. CARVALHO, Francisco. O Tropel das Coisas: mais uma con-quista da ficção brasileira”. Correio do Ceará. Fortaleza, 17jun. 1970, p. 6.

10. ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo, Cultrix, 1963.11. Ct. Revista Interamericana de Bibliografia, 4 (XXIII), out./

dez. 1973, p 469.12. Veja a nota 26 do estudo sobre o teatro de Eduardo Campos

aapresentado neste ensaio.13. Embora alguns autores, entre os quais Frank O’Connor, afir-

mem que a concepção do conto como uma narrativa breve sejainerentemente falsa, parece que esse requisito é fundamen-tal para distinguir o conto do romance e da novela. Apenas sedeve ressaltar que a brevidade não pode ser considerada o únicotraço distintivo entre os três gêneros de prosa narrativa.

14. Cf. loc. cit., p. 470.15. ROBBE-GRILLET, Alain. Por um novo romance. São Paulo,

Ducomentos, 1964.16. Cf. op. cit. p. 16.17. A densidade se opõe à intensidade narrativa. Enquanto esta

se define por uma acumulação de movimentos ou ações quepreenchem o eixo horizontal, aquela se caracteriza, entreoutras coisas, por uma espécie de lentidão do processo, o quesobrecarrega o discurso de elementos descritivos ouindiciais.

18. TODOROV, Tzvetan. “As categorias da narrativa literária”.In: BARTHES, Roland et alli. Análise estrutural da narativa.Petrópolis, Vozes, 1971, p. 239.

19. É provável que a mudança de perspectiva se explique emparte pela natureza dos temas explorados. Como aqui o obje-

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tivo do narrador é apenas o de flagrar o momento em seuperene fluir, sua atitude o transforma em mero observadorneutro. Já com referência aos romances, o que se nota éum desejo franco de envolvimento completo do escritor, re-forçado pela segurança do conhecimento pleno da realidadeque ousa expressar. Sua meia é a de repercutir na estrutu-ra da sociedade, comprometendo-se com uma função ideo-lógica da literatura, e para tanto julga que se deverepresentar um testemunho de autoridade, a fim de persu-adir melhor os leitores. Um testemunho de alguém que sabetudo, inclusive elementos imperceptíveis que em última ins-tância são as causas primeiras da condição humana.

20. A função precípua do verbo “dicendi” é indicar o interlocutorque está com a palavra. Pormenores a respeito do assunto seacham em GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moder-na. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1969, p. 110 ss.

21. Tzvetan Todorov (apud RAMOS, Maria Luiza. Fenomenologiada obra literária, Rio de Janeiro, Forense, 1972, p. 45 55)classifica os fenômenos de motivação sonora em três tipos:imitação sonora, ilustração sonora e simbolismo sonoro. Há,porém, outras nomenclaturas, como a de Walter Porzig (apudCÃMARA Jr., J Mattoso. Contribuição à estilística portu-guesa. Rio de Janeiro, Ao livro técnico, 1977, p. 10) que de-nomina de imitação sonora, transferência sonora ecorrespondência articulatória os três aspectos da associa-ção entre um significante e a capacidade de manifestaçãopsíquica e apelo imanentes ao significado.

22. O sentido dúbio aqui interpretado facilmente liga esta pas-sagem com a ambigüidade de um lance existente em A vés-pera da dilúvio. A cena registra em discurso indireto livreas inquietações do coronel Sabino, já sem nenhuma virili-dade, ante o jeito provocador de sua esposa. O enunciado ésuspenso pela expressão “bunda larga” que, num processode encadeamento, se prende à frase seguinte proferida ino-pinadamente por outra personagem. A superposição dos dois

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enunciados, principalmente reforçada pela interjeição, qua-se chega a gerar o sentido de que a água abundante saía dabunda larga. Não custa conferir:

O jeito provocador de Alice o incomodava pro-fundamente! Se ao menos a tivesse enchidode filhos! Agora estaria deformada, gordona,sem aquele fogo de exibir-se, de mostrar aosoutros os peitos e a bunda larga...– Que coisa! Nunca se viu tanta água! Assus-tou-se. A voz despachada era do feitor, o ChicoJusto, que dava aquela noticia à empregada.(À Véspera do Dilúvio, p. 29)

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