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INTERLETRAS, ISSN Nº 1807-1597. V. 4, Edição número 22, de Outubro/2015 a Março,/ 2016 - p
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O CASAMENTO NAS PROPAGANDAS: UMA ANÁLISE DISCURSIVA
Márcia Elena de Brito*
Célia Bassuma Fernandes **
RESUMO: O presente trabalho teve por objetivo analisar, sob o aporte teórico da Análise de Discurso
de linha francesa, como vem sendo representado o casamento, bem como os sujeitos masculino e
feminino no seu interior, em uma propaganda comercial que circulou na internet, no ano de 2004.
Buscou, ainda, verificar que redes de memória são mobilizadas no discurso publicitário para representar
essa instituição secular, bem como que efeitos de sentido delas decorrem.
ABSTRACT: This study aimed to analyze, under the theoretical framework of French view of Discourse
Analysis, how marriage is being represented, as well as the male and female subjects inside it in a
commercial advertisement which circulated on the Internet on 2004. We sought also to check which
memory networks are mobilized in advertising discourse to represent this secular institution as well as
which meaning of effects they entail.
PALAVRAS-CHAVE: Casamento, Discurso, Memória.
KEYWORDS: Marriage, speech, memory.
INTRODUÇÃO
A publicidade está hoje em todos os lugares, tanto em revistas como em outdoors,
televisão, internet, entre outros. Tem por finalidade persuadir, informar, vender,
induzindo o consumidor ao desejo de obter produtos para sua satisfação. Dessa forma,
há anúncios de todos os tipos, desde aqueles que promovem produtos de extrema
necessidade, até aqueles que tentam convencer que algo supérfluo, é extremamente
necessário.
Nessa sociedade capitalista, consumidores buscam status social, comprando produtos
por vezes desnecessários, mas que produzem o efeito de sentido desejado. Contudo,
atualmente, propaganda não constitui apenas um meio de persuadir o consumidor,
levando-o a compra, mas funciona também de modo a disseminar valores e atitudes,
determinando até mesmo o estilo de vida dos sujeitos. Portanto, constitui um discurso,
por meio do qual certos valores e representações são reafirmadas ou até mesmo
modificadas.
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Trata-se, portanto, de uma relação assimétrica, desigual, pois o discurso produzido pelo
sujeito-enunciador tem um efeito de sentido de autoridade sobre o sujeito consumidor.
De acordo com a AD, o discurso publicitário funciona como um discurso doutrinário ou
autoritário1, em que não existe a reversibilidade, ou seja, o sujeito enunciador não
possibilita ao sujeito-consumidor questionamento. Segundo Orlandi (1996.p 240), o
discurso autoritário tende a estancar a polissemia, porque “[...] todo discurso é
incompleto e seu sentido é intervalar: um discurso tem relação com outros, é constituído
pelo seu contexto imediato de enunciação e pelo contexto histórico social, e se institui
na relação entre formações discursivas e ideológicas.” De acordo com essa noção, não
se pode fixar o locutor no lugar do locutor e o ouvinte no lugar do ouvinte, pois ao
serem afetados pelo simbólico da língua, eles podem perfeitamente transpor o seu lugar
de origem.
Além disso, no discurso publicitário se entrelaçam a linguagem verbal e a não verbal.
Para Orlandi, o sujeito está sempre interpretando, não se restringindo apenas ao verbal,
e há diferentes modos de significar, que afetam os gestos de interpretação. Segundo a
autora, “[...] os sentidos não são indiferentes à matéria significante, a relação do homem
com o sentido se exerce em diferentes materialidades, em processos de significação
diversos: pintura, imagem, escultura, escrita, etc.” (ORLANDI, 2007, p.12).
Desse modo, não há como delimitar a compreensão do não verbal e do verbal, pois
como Orlandi (2002, p. 32) salienta cada discurso possui a sua “especificidade”. Trata-
se, portanto, de observar que efeitos de sentidos decorrem da relação entre a imagem e o
gesto de interpretação. Com base nisso, este trabalho tem por finalidade verificar como
o casamento é representado em uma propaganda comercial que circulou na internet,
observando se há nela, o entrecruzamento de discursos provenientes de diferentes
domínios do saber. Pretende-se verificar também, como são representados os sujeitos
masculino e feminino dentro dessa instituição secular.
O aporte teórico a partir do qual analisaremos os dados obtidos é a Análise de Discurso
de linha francesa, que busca observar os processos discursivos e os efeitos de sentido
desencadeados em discursos efetivamente realizados. Com isso, verifica-se o trabalho
da língua na história e são estabelecidas redes com outros já-ditos, que retornam, pelo
trabalho da memória discursiva, no fio do discurso.
1. ANÁLISE DE DISCURSO
1 De acordo com Orlandi (1996, p. 154), há três tipos de discursos: o discurso lúdico, o discurso polêmico
e o discurso autoritário. O critério adotado para a distinção desses discursos é a relação entre o referente
(objeto do discurso) e os interlocutores (locutor e ouvinte), e nessa distinção, é fundamental a noção de
reversibilidade.
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A Análise de Discurso de linha Francesa (AD) nasce em 1969, com o intuito de,
inicialmente, analisar discursos políticos. Seu objeto de estudo, como o próprio nome
indica, é o discurso, em sua relação com a ideologia e os sujeitos. Logo, não trata da
língua, nem da gramática, embora elas sejam de grande importância na produção dos
sentidos. Analisar o discurso significa observar, portanto, a língua em movimento. De
acordo com Orlandi (2010, p. 15)
a AD, como seu próprio nome indica não se trata de língua, não se trata de
gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E
a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, percurso, de
correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática
de linguagem: com o discurso observa-se o homem falando.
De acordo com a teoria proposta por Pêcheux, nenhum discurso é "novo", mas
estabelece sempre relações com outros, isto é, um discurso nasce do entrecruzamento do
interdiscurso – eixo vertical, no qual se encontram os dizeres já-ditos e esquecidos –
com o intradiscurso, eixo no qual os enunciados são sintagmatizados, linearizados, e
que corresponde, portanto, àquilo que o sujeito diz em determinado momento e sob
dadas condições de produção, que conforme Orlandi (2010, p.30), “compreendem
fundamentalmente os sujeitos e a situação”. Em sentido estrito, dão conta do contexto
imediato da enunciação; e em sentido amplo, incluem o contexto sócio histórico e
ideológico em que os discursos são produzidos.
Também a memória faz parte das condições de produção do discurso. Para a autora
citada, a memória é entendida como “o saber discursivo que torna possível todo dizer e
que retorna sob a forma do pré-construído2, é o já-dito que está na base do dizível,
sustentando cada tomada da palavra”. É a memória discursiva ou interdiscurso que
sustenta os dizeres, ou seja, ela é o lugar onde estão todos os discursos já ditos e
esquecidos que retornam no eixo da formulação, sob o efeito do “a se dizer”
(ORLANDI, 2010, p.31), embora o sujeito tenha a ilusão de que aquilo que diz nunca
foi dito antes.
Esse efeito ocorre porque ele é afetado por dois esquecimentos: um de ordem ideológica
e outro da ordem da enunciação. Pelo esquecimento ideológico, o sujeito tem a ilusão
de ser o primeiro a proferir um discurso, quando na realidade, apenas retoma discursos
já existentes. Já o esquecimento da ordem da enunciação, produz a impressão da
realidade do pensamento – também denominada ilusão referencial – e faz com que o
sujeito acredite que há uma relação direta entre o pensamento e a linguagem, ou seja, de
2De acordo com Pêcheux (1997a, p.164, grifos do autor), *..+ o “pré-construído” corresponde ao
“sempre-já-aí” da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da universalidade (o “mundo das coisas”)
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que o que ele diz só pode ser dito com aquelas palavras e não com outras. Todavia, é
necessário frisar que os esquecimentos são constitutivos dos sujeitos e dos sentidos
(PÊCHEUX, 1997a, p.173).
As condições de produções que constituem um discurso funcionam ainda, de acordo
com a relação de forças, tendo em vista que a sociedade é dividida hierarquicamente.
Assim sendo, de acordo com Orlandi (2010, p. 39), “o lugar a partir do qual fala o
sujeito é constitutivo do que ele diz”. A relação de sentidos diz respeito ao fato de que
todo o discurso estabelece relações com outros já ditos e outros que ainda estão por vir.
Por fim, o mecanismo da antecipação funciona como regulador da argumentação, pois
diz respeito à capacidade de o sujeito ocupar o lugar do seu interlocutor, antecipando
assim, os efeitos de sentido.
As formações imaginárias (FI) são mecanismos discursivos que não se manifestam em
sujeitos empíricos. São representações que o sujeito faz do lugar que ele e seu
interlocutor ocupam no discurso, ou do objeto sobre o qual falam. Para Orlandi (2010,
p.40) as FI são mecanismos que fazem com que os discursos funcionem nesse jogo de
imagens. Desse modo, não são os sujeitos físicos, nem os lugares empíricos que
funcionam no discurso, mas as imagens que resultam de projeções sustentadas pela
história, pelo social e pela ideologia.
Para compreender um discurso, além de analisar suas condições de produção e
estabelecer relações com os já-ditos, é necessário também remetê-lo a uma formação
discursiva, pois o sentido não existe por si mesmo. Pêcheux enfatiza que,
[...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc, não
existe “em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a literalidade
do significante), mas, ao contrário é determinado pelas posições ideológicas
que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões
e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). (Pêcheux 1997a, p.160
grifos do autor)
Isso significa que “[...] as palavras. Expressões, proposições, etc., mudam de sentido
segundo as posições sustentadas por aqueles que as empregam”, isto é, “[...] é a
ideologia que fornece as evidências [...] que fazem com que uma palavra ou enunciado
„queiram dizer o que realmente dizem‟ e que mascarem, assim, sob a „transparência da
linguagem‟, aquilo que chamaremos o caráter material do sentido das palavras e dos
enunciados (PÊCHEUX, 1997a, p.160, grifos do autor).
Dessa forma, os sentidos não estão pré-determinados na língua. Eles sempre são
definidos ideologicamente, e no discurso representam as formações ideológicas,
definidas como “um conjunto complexo de atitudes e representações que não são nem
„individuais‟ nem „universais‟ mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições
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de classes em conflitos umas com as outras” (PÊCHEUX, 1997b, p. 166, grifos do
autor).
Para a teoria materialista do discurso, a noção de ideologia “é a condição para a
constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia para que se produza o dizer”, e tem por finalidade “produzir evidências,
colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência”
(Orlandi, 2010, p. 46). Conforme a autora,
Atravessado pela linguagem e pela história, sob o modo do imaginário, o
sujeito só tem acesso a parte do que diz. Ele é materialmente dividido desde
sua constituição: ele é sujeito de e é sujeito à. Ele é sujeito à língua e à
história, pois para se constituir, para (se) produzir sentidos ele é afetado por
elas (ORLANDI, 2010, p. 48-49).
Contudo, ao mesmo tempo em que produz evidências, a ideologia, enquanto estrutura-
funcionamento, “dissimula sua existência a partir de seu próprio funcionamento”
(Orlandi 2010 p. 46), criando assim, a ilusão da transparência dos sentidos a partir do
apagamento da determinação da formação discursiva e mesmo do interdiscurso. Desse
modo, na AD, a ideologia não é considerada mascaramento/ocultação da realidade, mas
constitutiva do sujeito e dos sentidos,
No discurso, as formações ideológicas comportam, como um de seus componentes, uma
ou mais formações discursivas (FD), que determinam aquilo que pode/não pode ou
deve/não deve ser dito numa conjuntura sócio- histórica dada. De acordo com o
fundador da AD, uma FD é definida como:
[...] aquilo que, em uma formação ideológica dada, isto é, a partir de uma
posição dada em uma conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de
classes, determina o que pode e o que deve ser dito (articulado sob a forma de
uma alocução, de um sermão, de um panfleto, de uma exposição, de um
programa, etc.). (PÊCHEUX, 1997a, p. 160, grifos do autor).
Portanto, as FD representam, no discurso, as formações ideológicas. Isso significa que e
o sentido é determinado ideologicamente e passa a existir por meio do interdiscurso,
caracterizado por “algo que fala sempre antes, em outro lugar e independentemente”,
isto é, sob a dominação do complexo das formações ideológicas” (PÊCHEUX, 1997a,
p.162) .
“Para o autor, “toda formação discursiva dissimula, pela transparência de sentido que
nela se constitui, sua dependência com relação ao “todo complexo com dominante” das
formações discursivas, intrincado no complexo das formações ideológicas” e propõe”
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[...] chamar interdiscurso a esse „todo complexo com dominante‟ das formações
discursivas, esclarecendo que também ele é submetido à lei de desigualdade-
contradição-subordinação que [...] caracteriza o complexo das formações ideológicas"
(PÊCHEUX, 1997a, p. 162). Conforme ele,
“[...] uma palavra, uma expressão ou uma proposição não tem um sentido que
lhe seria “próprio”, vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se
constitui em cada formação discursiva, nas relações que tais palavras,
expressões ou proposições mantêm com outras palavras, expressões ou
proposições da mesma formação discursiva. De modo correlato, se se admite
que as mesmas palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao
passar de uma formação discursiva a uma outra, é necessário também admitir
que palavras, expressões e proposições literalmente diferentes podem, no
interior de uma formação discursiva dada, “ter o mesmo sentido” [...]
(PÊCHEUX, 1997a, p. 161, grifos do autor).
Com relação à imagem Pêcheux enfatiza que ela funciona como um dispositivo que
opera a memória social, porque ela comporta em seu interior “[...] um programa de
leitura, um percurso escrito discursivamente em outro lugar.” (PÊCHEUX, 2010, p.51).
Na AD a questão da imagem se dá pelo viés da opacidade atravessada e constituída por
um discurso, possui uma discursividade própria, não é mais uma imagem transparente,
pois é afetada por um discurso. Pêcheux evidencia que
A questão da imagem encontra assim a análise de discurso por um outro viés:
não mais a imagem legível na transparência, porque um discurso a atravessa
e a constitui, mas a imagem opaca e muda, quer dizer, aquela da qual a
memória “perdeu” o trajeto de leitura (ela perdeu assim um trajeto que jamais
deteve em suas inscrições). (PÊCHEUX,2010, p 55)
Vejamos como esses conceitos, que trabalham em rede, funcionam nas materialidades
selecionadas. Conforme já mencionado, para fins de análise, dividimos o corpus em
sequências discursivas (SD), entendidas por Courtine (2009, p. 55), como
“procedimentos de segmentação” de “dimensão superior à frase”.
2. ANÁLISE
O casamento existe desde os primórdios da história. Contudo, com o passar do tempo,
essa instituição foi sofrendo inúmeras transformações, que culminaram no modelo que
temos hoje. Pelos registros, já na Roma Antiga, o casamento tinha por objetivo gerar
filhos legítimos, que herdariam a propriedade e o estatuto dos pais. Nas classes mais
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prestigiadas, servia também para selar alianças de natureza política ou econômica.
Na França, o sujeito masculino tinha superioridade absoluta sob o sujeito feminino,
considerado incapaz, isto é, a partir do casamento o sujeito-feminino deixava de ser um
sujeito responsável3 pelos seus atos, não possuía direitos, mas somente deveres. Se
abandonasse o lar, era “obrigado”, pela força pública, a voltar para casa e cumprir seus
“deveres matrimoniais”.
O sujeito-feminino adúltero poderia ser condenado à morte, pois ameaçava o que havia
de mais importante na constituição da família: “a filiação legítima”. Em contrapartida,
se a traição viesse do sujeito masculino não lhe acontecia nada, pois ele não era passível
de “castigo”.
No Brasil colônia, fortemente influenciado pela igreja católica, não existia amor ou
paixão, porque o casamento era considerado, antes de tudo, um “negócio” e uma forma
de união indissolúvel, que condenava o sujeito feminino a ser um escravo doméstico,
totalmente submisso à vontade do seu outro. O sexo, por exemplo, só tinha a finalidade
de procriação, já que a contracepção era proibida, sendo “pecado” negar-se ao marido,
pois o sujeito feminino deveria estar sempre disponível. (DEL PRIORE, p. 26-32,
2011b).
No início do século XX, o casamento continua sendo considerado indissolúvel e o
divórcio imoral, somente podendo ocorrer “em casos excepcionais e depois de
rigorosíssimo processo” (DEL PRIORE, p.246,2011b). O sujeito feminino continuava,
portanto, sendo considerado incapaz e sustentando a posição de dependência e
inferioridade perante o marido.
Atualmente, tanto os sujeitos masculinos como os sujeitos femininos, possuem a
liberdade de escolher se querem se casar ou não. Além disso, os sujeitos femininos,
dadas às conquistas das últimas décadas, em sua grande maioria não são submissos e
nem dependentes tanto emocionalmente como financeiramente do seu outro.
A materialidade que compõe o corpus desse trabalho se refere a uma marca de cerveja
nacionalmente conhecida, e circulou no ano de 2004, na televisão e, atualmente,
encontra-se disponível somente na internet. Nela ressoa o discurso religioso,
discursivamente compreendido como um tipo de discurso autoritário, baseado na
contenção da reversibilidade. Caracterizado como aquele em que fala a “voz de Deus” –
seja um padre, pregador ou outro representante dele na terra – de acordo com Orlandi
(1996, p.243), nesse tipo de discurso fala um ser “imortal, eterno, infalível [...]”, e os
humanos ocupam a posição de ouvintes “mortais, efêmeros, falíveis, finitos dotados de
poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens”.
Ainda de acordo com a autora citada,
3 De acordo com Michele Perrot (2009, p.108), essa incapacidade, expressa no artigo 213 (“O marido
deve proteção à sua mulher e a mulher obediência ao seu marido”) é quase total.
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O discurso religioso não apresenta nenhuma autonomia, isto é, o
representante da voz de Deus não pode modificá-lo de forma alguma [...]. Há
regras estritas no procedimento com que o representante se apropria da voz
de Deus: a relação do representante com a voz de Deus é regulada pelo texto
sagrado, pela igreja e pelas cerimônias (1996, p. 245).
Dessa forma, o discurso religioso é aquele em que o sujeito é totalmente obediente e
submete-se às regras que lhes são impostas por essa FD. Ele reconhece o seu lugar e o
lugar de Deus.
Na SD1: “Eu, Antônio, prometo ser fiel, prometo ser [...]” faz ressoar, pelo trabalho da
memória na língua, o discurso religioso, que prega sentidos relacionados à fidelidade no
casamento. Na presença do padre – representante de Deus na terra – os sujeitos
feminino e masculino “prometem” serem fiéis um ao outro.
Contudo, de acordo com Del Priore (2011a, p.59), desde o Brasil colônia, a fidelidade
no casamento sempre foi mais cobrada do sujeito feminino, que caso traísse, estaria
arriscando a própria vida, pois “achando o homem casado sua mulher em adultério,
licitamente poderá matar assim a ela como o adúltero”.
A traição do sujeito masculino era desculpável e sempre relacionada ao sujeito-
feminino, único responsável por ela, já que, ele supostamente não estaria cumprindo seu
“papel” corretamente. Outro motivo para justificar a traição bastante alegado pelos
sujeitos masculinos era o de que “os homens tinham necessidades sexuais diferentes e
bem maiores se comparadas com as mulheres – uma característica natural masculina”.
Esse sentido é reforçado, na materialidade em questão, pelo fato de quem faz o
“juramento” é o sujeito-masculino, isto é, aquele a quem é “permitido” trair.
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Na SD 2: “É.... peraí, eu preciso saber de uma coisa antes: se ela promete ficar gostosa
para sempre”, ressoa, no fio do discurso, pelo trabalho da memória discursiva, sentidos
relativos ao fato de que a traição masculina resulta do suposto “desleixo” feminino, pois
circulam, frequentemente, na nossa sociedade, discursos relacionados ao fato de que
quando casam, as mulheres perdem as formas, como se isso fosse regra geral e também
não acontecesse com os homens.
A quebra de expectativa gera o humor e leva ao riso, pois essa pergunta foge do que
seria “normal” dentro da cerimônia do casamento. Além disso, a “culpa” pela
possibilidade de traição é atribuída ao sujeito-feminino, que para evitá-la deve manter-
se dentro dos padrões, tidos como ideais para a sociedade, fazendo circular nitidamente,
um discurso machista, pois ao sujeito masculino só importa a aparência da esposa, como
se ela só lhe pudesse oferecer isso e nada mais.
Assim sendo, nessa propaganda, o sujeito-feminino é representado como apenas um
“corpo” sexualmente desejável e perfeito, colaborando para sedimentar o imaginário
coletivo de que ele seria o único responsável por uma possível traição. Colabora ainda,
para reforçar a representação que os sujeitos-femininos têm de si próprios dentro do
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casamento, isto é, aquilo que elas devem ser/parecer para serem felizes dentro do
casamento.
A SD 3 “ Não...é porque e sou fiel a Skol, a Skol é gostosa e não muda nunca”, reforça
esses sentidos, já que conforme o sujeito-masculino, assim como a cerveja, a esposa
deve continuar “gostosa”, pois uma suposta “mudança” no seu corpo avalizaria a
traição. O contrário acontece com a cerveja. O fato de “não mudar nunca” garante a
fidelidade. Sendo assim, ressoam pela memória discursiva, novamente sentidos
relacionados à aceitação da infidelidade masculina dentro do casamento e a
responsabilidade do sujeito-feminino diante dela.
Esses sentidos podem ser o resultado de uma representação de fidelidade dentro do
casamento e do “lugar” ocupado por cada um desses sujeitos no seu interior, que
permeia há muito tempo o imaginário coletivo, resultante do discurso da igreja, já que,
historicamente, até bem pouco tempo atrás, conforme Del Priore (2011, p.194b), “As
mulheres ocupavam-se da casa e iam à igreja: os homens bebiam, fumavam charutos e
divertiam-se com prostitutas.” Isso significa que ao sujeito-feminino cabia os afazeres
domésticos e a devoção à igreja, a qual atuava de maneira a controlar seus impulsos e
desejos. Já a infidelidade masculina era tolerada – homens que matavam adúlteras eram
desculpados e vista como um “mal necessário”, como uma forma de o sujeito-masculino
ter na rua aquilo que lhe era negado em casa. Ecoam, novamente, nesta SD, discursos
machistas fortemente cristalizados na nossa sociedade, segundo os quais, “homem que é
homem trai” e de que o único “culpado” por essa traição é o sujeito-feminino.
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Na SD 4; “Peraí gente, só tô perguntando se vai ser gostosa. A mãe, por exemplo, ficou
um bucho”, diante da reação do sujeito-noiva e também dos demais presentes na
cerimônia do casamento, o sujeito-noivo tenta explicar a sua pergunta e faz circular
sentidos relacionados ao imaginário coletivo sobre o sujeito-sogra, bem como as
relações estabelecidas entre ele e o sujeito-genro.
Reverberam, nessa SD, portanto, além dos sentidos já citados, discursos relacionados à
Figura do sujeito-sogra e muito comum nos discursos humorísticos, especialmente em
piadas, cujo fim é a dizer aquilo que não poderia ser dito em outras circunstâncias.
Nesses discursos, o sujeito-sogra é frequentemente representado como sendo feia
(“bucho”) e má, como um ser indesejável, que constantemente se intromete na vida do
casal. Também aqui a propaganda colabora para a manutenção e reforço de sentidos já
existentes no imaginário coletivo.
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A SD 5 “Quando a situação é quadrada, Skol a cerveja que desce redondo” produz o
efeito de sentido de fechamento, pois uma “situação difícil” (quadrada) como a de falar
o que não pode/deve em dadas circunstâncias, nesse caso, durante a cerimônia religiosa
do casamento, pode ser contornada pela ingestão da cerveja.
Criado em 1997, o slogan – cuja finalidade, além de convencer o sujeito consumidor a
comprar o produto por ela anunciado, é ser conhecido e repetido incansavelmente – “A
cerveja que desce redondo”, com certeza, foi um dos melhores já criados no mundo
publicitário, tornando-se uma representação da marca. De acordo com o site mundo das
marcas, pesquisas indicam que 80% das pessoas utilizam esse slogan voluntariamente,
ou seja, ele tornou-se parte do discurso dos brasileiros. “Quando algo dá certo no Brasil,
ouve-se a expressão desceu redondo, um sinal concreto da força do slogan”. (Mundo
das marcas, 2006).Contudo, na propaganda em questão, e contraditoriamente, o
desenlace do casamento parece não ter sido muito feliz, porque, na tela, o sujeito-noivo
surge, num plano inferior ao da garrafa de cerveja anunciada, em um bar, acompanhado
por um amigo.
A SD 6 “Não...Falou pouco, mas falou bonito” e o fato de o sujeito- noivo e o amigo
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brindarem com a cerveja da marca anunciada, ao final da propaganda, faz ressoar pela
memória, a ideia de que os homens são corporativistas e mesmo que façam/falem o que
não podem/não devem têm sempre o apoio e dos outros. Ecoa, portanto, o discurso do
corporativismo masculino, isto é, o discurso machista, que, aliás, prevalece em toda a
propaganda, reforçando sentidos de que é mais fácil ser fiel a uma marca de cerveja do
que a uma mulher.
Essa sedimentação do discurso machista fez com que, no ano de 2011, um grupo de
mulheres entrasse com uma ação no CONAR (Conselho Nacional de
Autorregulamentação Publicitária), solicitando que a propaganda – atualmente somente
encontrada no You Tube –fosse retirada do ar, por ser considerada desrespeitosa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve por objetivo analisar, sob o aporte teórico da Análise de
Discurso de linha francesa, como o casamento, bem como os sujeitos masculino e
feminino são representados em uma propaganda comercial que circulou na internet, no
ano de 2004. Buscou ainda, verificar que redes de memória são mobilizadas no discurso
publicitário para representar essa instituição secular, bem como que efeitos de sentido
delas decorrem.
Tal escolha decorre da observação de que, na mídia brasileira, mais especificamente nas
propagandas de cervejas, o sujeito-feminino é frequentemente envolto por forte apelo
sexual. Assim sendo, é considerado um objeto de satisfação masculino e quase sempre
submisso.
Na materialidade analisada, a cerimônia religiosa do casamento é representada como
uma brincadeira, pois não é o padre – representante de Deus na terra – quem fala, mas o
sujeito-noivo, o que produz o efeito de estranhamento, uma vez que foge daquilo que
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seria o “normal”.
Os sujeitos-femininos são representados negativamente. O sujeito-sogra é representado
como feio e desagradável, enquanto o sujeito-noiva – passível de ter o corpo modificado
pelo casamento ou pela carga genética da mãe – é comparado à cerveja da marca
anunciada, cabendo-lhe apenas o estranhamento diante da situação e a submissão.
Ecoam, portanto, no eixo da formulação, discursos referentes à infidelidade masculina,
ou seja, um discurso machista, dissimulado pelo humor e pelo riso. Há ainda, no
discurso publicitário, o embricamento de discursos provenientes de outros campos do
saber, como o discurso religioso, o discurso humorístico, bem como das campanhas de
prevenção de acidentes no trânsito, que se cruzam e interpõem de modo a constituir um
“novo” discurso, que colabora para a manutenção de representações já sedimentadas no
imaginário coletivo.
Isso ocorre porque, no discurso, os sentidos não são literais, mas sempre são
determinados ideologicamente, ou seja, tudo aquilo que é dito tem um traço ideológico
em relação a outros traços ideológicos, e isso não está na estrutura das palavras, mas na
discursividade e na historicidade. Segundo Orlandi (2001, p.14), “o discurso é um
processo contínuo que não se esgota em uma situação particular. Outras coisas foram
ditas antes e outras serão ditas depois. O que temos são sempre „pedaços‟, „trajetos‟,
estados do processo discursivo”.
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*Graduada em Letras Português e literatura, Universidade Estadual do Centro Oeste-
UNICENTRO, Guarapuava-PR. Mestranda em Interfaces entre língua e literatura,
Universidade Estadual do Centro Oeste-UNICENTRO, Guarapuava-PR. Email:
Orientadora, Linha de Pesquisa: Linguística – Análise de Discurso. Doutora em
Linguística – Universidade Estadual de Londrina, UEL.