o candomblé no olhar fotográfico de Pierre Verger e José Medeiros

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    Erivam Morais de Oliveira

    As diferentes formas do olhar:

    O candombl de Pierre Verger e Jos Medeiros

    Pesquisa apresentada Faculdade

    Csper Lbero, como exigncia do CIP -

    Centro Interdisciplinar de Pesquisa,

    como resultado do trabalho Memrias

    do Fotojornalismo Brasileiro, vinculado

    Linha de Investigao Comunicao:

    Meios e Mensagens.

    So Paulo

    Dezembro de 2008

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    Faculdade Csper Lbero

    Diretora:

    Professora Doutora Tereza Cristina Vitali

    CIP Centro Interdisciplinar de Pesquisa

    Coordenador:

    Professor Doutor Jos Eugenio Menezes

    As diferentes formas do olhar:

    O candombl de Pierre Verger e Jos Medeiros

    Palavra chave:

    Fotojornalismo Verger Medeiros memria - candombl - religio

    Projeto

    Memria do Fotojornalismo Brasileiro

    Professor Mestre Erivam Morais de Oliveira

    Reviso

    Professor Mestre Edson Santos Silva

    Participao das alunas do Curso de Jornalismo:Daniela de Angelo Moras

    Luisa Pollo de Oliveira

    So Paulo - Brasil

    Dezembro - 2008

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    Agradeo a ajuda ilustre das alunas do

    Curso de Jornalismo da Faculdade Csper

    Lbero, Daniela de Angelo Mors e Luisa

    Pollo de Oliveira.

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    Jos Medeiros no era de ajeitar ningum.

    O trabalho dele no se via, jamais ele iria

    dizer: vamos botar isso aqui ou ali que o

    efeito fica melhor". Mas estava de olho em

    tudo, at conseguir o momento fotogrfico

    dele.

    Jean Manzon

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    "Pierre Verger um homem livre. Livre de

    compromissos rigidamente acadmicos. Livre

    de ligaes burocraticamente universitrias.

    Livre de obrigaes para com esta ou aquela

    ortodoxia cientfica. Da a frescura de suas

    pginas de divulgador e, s vezes, revelador

    de culturas exticas. Da o seu encanto

    artstico que, nas suas fotografias, se junta

    exatido - exatido que lhes d categoria de

    documentos cientficos - sem os prejudicar ou

    comprometer."

    Gilberto Freyre, 1955

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    Sumrio

    Agradecimentos ______________________________________________________ 7Introduo ___________________________________________________________ 81. O ponto de ruptura: divergncias entre o Candombl e a Umbanda ________ 101.1. As diferentes correntes Afro-religiosas _______________________________ 121.2. Sincretismo entre entidades do Candombl e do Catolicismo _____________ 152. Lendas e Mitos ____________________________________________________ 162.1 Caractersticas dos Filhos-de-santo __________________________________ 193. O sagrado e o profano ______________________________________________ 244. Deuses sagrados do candombl e umbanda _____________________________ 275. As diferentes formas do olhar ________________________________________ 295.1. Pierre Verger ____________________________________________________ 295.1.1. O Candombl de Pierre Fatumbi Verger __________________________ 325.2. Jos Medeiros ____________________________________________________ 365.2.1. O Candombl de Jos Medeiros e as noivas dos deuses sanguinrios _____ 396. Concluso ________________________________________________________ 496.1. Pierre Verger versus Jos Medeiros. _________________________________ 497. Anexo ____________________________________________________________ 688. Glossrio _________________________________________________________ 70Referncias Bibliogrficas _____________________________________________ 93

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    Agradecimentos

    Ana Beatriz Knig de Oliveira

    Daniela de Angelo Mors Aluna de Jornalismo Faculdade Csper Lbero

    Cinthia Aparecida Knig Morais de Oliveira

    Esmeraldo Feitosa

    IMS Instituto Moreira Salles

    Ivanaldo Succar - Laboratrio fotogrfico da Faculdade Csper Lbero

    Juliana Pereira - Laboratrio fotogrfico da Faculdade Csper Lbero

    Luisa Pollo de Oliveira Aluna de Jornalismo Faculdade Csper Lbero

    Fundao Pierre Verger

    Pai Bila

    Professor Doutorando Edson Santos Silva USP

    Professor Doutor Jos Eugenio Menezes Csper Lbero

    Professora Mestre Vania Silva Uni SantAnna

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    Introduo

    O objetivo desse trabalho no fazer qualquer tipo de anlise antropolgica ou

    temporal dos ritos do candombl, apenas uma anlise de imagens, com bases

    jornalsticas e informativas. As diferentes formas de olhar o candombl apresentadas

    por Pierre Verger e Jos Medeiros so evidenciadas pela prpria formao cultural dos

    fotgrafos.

    Pierre Verger, alm de estudioso, era tambm integrante do candombl, ao qual

    fora iniciado em 1953 e no qual galgou posies importantes. Embora afirmasse que

    no acreditava em cultos africanos, porque era muito racionalista para crer, tinha, ao

    mesmo tempo, um respeito profundo pelo lado esttico da religio, pela dinmica

    desenvolvida entre a crena e a vida cotidiana, pela esttica das divindades e sua

    representao atravs da pintura e da escultura. Para Verger, a incorporao dos

    espritos uma condio transacional do indivduo, que anula todos seus pensamentos e

    transporta a imaginao para o ritual.

    Verger seria incapaz de desrespeitar as regras e os ensinamentos do candombl,

    e como fotgrafo, emprestava seu olhar religio, retratando-a com respeito e

    encantamento.Para Jos Medeiros, essas limitaes no existiam, e sua nica preocupao era

    com a informao jornalstica, cujas regras e ensinamentos religiosos deveriam ficar em

    segundo plano. Na condio de reprter-fotogrfico, seu dever era retratar os

    acontecimentos, mesmo que contraditrios ou secretos, desmistificando situaes at

    ento jamais vistas por um leigo.

    Os trabalhos realizados pelos dois fotgrafos contriburam para o

    enriquecimento da cultura religiosa do candombl e para a desmistificao desociedades secretas. Pierre Verger trouxe luz a beleza dos ritos e da cultura popular,

    por meio de suas imagens, e Jos Medeiros trouxe ao mundo o respeito para com a

    informao jornalstica, transgredindo as convenes e se aprofundando em tema

    absolutamente secreto do ritual religioso, tornando-o acessvel ao pblico, preocupando-

    se primeiramente com a arte de informar.

    O trabalho de Pierre Verger e de Jos Medeiros aproximou o pblico dos

    mistrios da religio africana, com seus ritos sagrados para os seguidores da religio e

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    os profanos para os leigos, envoltos nas razes populares e, consequentemente, na

    cultura brasileira.

    A complexidade do tema obrigou-me a aprofundar a pesquisa nas diferenas

    entre candombl, verdadeiramente africano, e na umbanda, miscelnea brasileira, e

    tentar aproximar o leigo dos ensinamentos oferecidos pelas duas religies.

    O material produzido por Pierre Verger acerca do candombl, comparado ao

    produzido por Jos Medeiros, infinitamente maior e com carter iconogrfico.

    Portanto, para concluso desse trabalho, limitei-me em selecionar imagens

    produzidas na Bahia, tanto por Verger como por Medeiros, que tivessem o mesmo

    contexto para fazer uma anlise das diferentes formas de olhar dos dois fotgrafos.

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    1. O ponto de ruptura: divergncias entre o Candombl e a Umbanda

    O candombl e a umbanda so cultos popularmente conhecidos como africanos,

    no Brasil, e, de maneira geral, relacionados ao universo maligno. Ou seja, sofrequentemente confundidos e estereotipados. No entanto, tais esteretipos podem ser

    desconstrudos, revelando a face singular de cada religio.

    De fato, a crena de que candombl e umbanda so nomes diferentes para o

    mesmo culto a orixs possui uma explicao bastante plausvel: ambas possuem razes

    comuns; o passado africano est contido na realidade das duas religies. Dessa forma, o

    elemento negro/africano facilmente identificvel no cosmo religioso umbandista e no

    candombl.Apesar da raiz comum, a anlise histrica e sociolgica permite delimitar os

    universos e as distines entre esses cultos. De maneira metafrica, pode-se identificar o

    candombl com a frica, e a umbanda, com o Brasil.

    O candombl, apesar de no poder ser considerado como um culto africano puro,

    representa a perpetuao da memria africana. um produto da bricolage1das

    recordaes africanas nos elementos nacionais brasileiros, inserido no contexto da

    escravatura negra. J a umbanda identifica-se com o Brasil; o resultado da

    incorporao das prticas afro-brasileiras moderna sociedade industrial, que surge no

    Brasil dos anos 30.

    Observa-se, ento, que, enquanto o candombl idealiza a frica como a Terra-

    Me que emana sacralidade e na qual residem os deuses negros, a umbanda concebe e

    reconhece toda uma brasilidade. Ou seja, apesar da raiz negra (a qual no de forma

    nenhuma negada), a umbanda no se v como produto de um sincretismo religioso entre

    a tradio afro e a tradio brasileira: concebe-se como uma sntese endgena e

    brasileira.

    Portanto, a ruptura entre o cosmo umbandista e o do candombl se apresenta no

    instante em que a umbanda deixa de considerar a frica como fonte sagrada de

    inspirao, tornando o que afro-brasileiro em brasileiro, apenas.

    1 O termo bicolageprovm da definio lvi-straussiana, apresentada por Vagner Gonalves da Silva:

    deslocamento de termos de um sistema classificatrio para outro construindo significados diversos emfuno dos novos arranjos obtidos. (http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77011999000100006), acessado em 06 de maio de 2007.

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    Alm da anlise terica, ocorrem exemplos prticos, observveis na

    formalizao e na ritualstica tpicas do candombl e da umbanda. Tomemos como

    exemplo o transe: a dramatizao dos mitos que envolvem os orixs/deuses, as danas e

    os ornamentos que recriam a simbologia africana desaparecem nas prticas

    umbandistas. Ao invs disso, as divindades no descem, elas se configuram como

    espritos que cavalgam no corpo dos mdiuns.

    Analisando em termos econmicos, o candombl se mostra uma crena bem

    mais cara, se comparada umbanda: nos rituais de iniciao, as comidas, os animais a

    serem sacrificados e todos os outros componentes da cerimnia devem ser pagos pelo

    novo iniciado. J a umbanda apresenta um carter econmico, de gratuidade, uma vez

    que no so necessrios sacrifcios e o pai ou me-de-santo utilizam-se apenas daquilo

    que foi trazido pelo filho-de-santo para a realizao de determinado ritual. Segundo

    perspectiva umbandista a partir desse aspecto que se observa uma crtica em relao

    ao candombl, que desperdia dinheiro com as oferendas.

    Tambm a separao entre bem e mal se encontra sob prismas diferentes

    nos dois credos. No candombl, tal separao no ntida. J a umbanda caracteriza

    seus orixs como seres de luz, guardies do sagrado, levando o que est fora desse

    conceito a se configurar como negativo. Assim, os deuses da umbanda assumem certo

    carter plano, agindo sempre de acordo com sua posio espiritual. por esse motivo

    que a umbanda apresenta dois ramos distintos: a umbanda, propriamente dita, que

    representa a esfera do bem, e a quimbanda, que seria o universo do mal. Podemos,

    aqui, tecer uma reflexo: o sacrifcio de animais, ritual caracterstico de algumas

    linhagens do candombl, as quais consideram o sangue o elemento de ligao entre o

    sagrado e o profano, condenado pela prtica umbandista. Tal negao seria fruto dessa

    diviso rgida da umbanda entre bem e mal, a qual veria na prtica uma tendncia

    ao universo dos espritos menos evoludos?Talvez a resposta para tal questo seja difusa, uma vez que ambos os credos

    apresentam-se to prximos pela origem e to distantes ao mesmo tempo, em relao a

    alguns dogmas. No entanto, sabe-se que apesar de serem cultos enquadrados pela

    sociedade em geral como obscuros, brbaros, ignorantes e ligados macumba e tratados

    de maneira ofensiva e preconceituosa, a umbanda e o candombl consolidam-se em

    diversos pases como religies do povo, com um nmero muito grande de seguidores.

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    1.1. As diferentes correntes Afro-religiosas

    O candombl chegou ao Brasil com os escravos africanos na poca do Imprio,

    vindos do Congo, Angola, Moambique e Sudo, originrios das tribos Nags, Jejes,

    Keto, Bantu, Male, Mina, entre outros. Rapidamente a cultura trazida pelos escravosafricanos se espalhou pelo litoral e interior do Brasil, por conta da comercializao dos

    negros para todas as provncias brasileiras. Essa diviso provocou uma ruptura entre os

    adeptos das religies africanas, originando a miscigenao cultural entre as diversas

    tribos que acabaram aderindo cultura e os costumes oriundos do continente africano.

    O termo Jejes identifica os negros vindos do Daom; Nag e os Iorubas,

    vindos da Nigria; os Male, adeptos do islamismo, vindos de Angola; os Bantu e

    os Mina que detinham dois grupos bem grandes, os Fanti e os Ashanti, sotribos do centro oeste e sul de Moambique e de Angola.

    Os negros escravizados no Brasil viviam em senzalas onde a liberdade para

    cultuarem seus orixs no era permitida pelos fazendeiros e donos dos engenhos.

    O confinamento em condies subumanas imposto aos escravos fez com que os

    negros adaptassem a adorao aos seus orixs, agregando cultura e costumes de tribos

    diferentes. Para ampliar ainda mais essa miscigenao estabelecida compulsoriamente

    aos negros africanos no Brasil, os escravos tiveram contato com a pajelana,religiosidade praticada pelos ndios em todo o territrio brasileiro e o catolicismo

    praticado pelos colonizadores portugueses.

    Da mistura dos negros com os ndios surgiu o catimb no Nordeste, xang,

    em Pernambuco, e o batuque no Sul, e devido combinao com o catolicismo,

    surgiu a umbanda no Rio de Janeiro e em So Paulo, prevalecendo o candombl na

    Bahia.

    Durante a escravido, para os negros praticarem livremente sua religiosidade,

    acabaram adotando as imagens e os nomes dos santos catlicos, em clara aluso aos

    orixs; dessa forma, fugiam das perseguies impostas pelos coronis e pela igreja

    catlica. Desse consrcio surgiu o sincretismo dos orixs africanos, que a forma

    utilizada na umbanda at hoje. Esses orixs dominavam particularmente um ponto da

    natureza, lugar de fora comum a todas as naes africanas, mesmo que seus orixs

    fossem adorados de formas diferentes. Cultuavam-se, ainda, deuses das pedreiras, das

    cachoeiras, das matas, dos rios, do mar, entre outros, dos quais podemos citar:

    Olorum - (Nag), Zambi - (Bantu), criador de tudo; Oxal cujo nome sofre

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    variao: Oxaluf o Oxal velho e Oxagui o moo; Xang orix da justia,

    dono das pedreiras; Oxosse orix da caa, dono das matas; Iemanj orix das

    guas salgadas, que conta com a ajuda das sereias, dona dos oceanos; Ogum orix

    da guerra, sendo amplo o seu domnio; Oxum orix dos rios; Ians (Inhans)

    orix dos ventos raios e tempestades, em algumas naes cultuam Ianscomo deusa

    dos Eguns, Omulu orix das doenas, Nana a mais velha das Iabsdona

    da lama; Osse orix das folhas, atuando tambm nas mata; Oxumar (Oxum-

    Mar) orix de dois sexos, representa o arco-ris; Exu mensageiro dos orixs.

    Enfim, esses orixs representam o povo Ioruba (Nags e Jejes) e Bantu (Angola, Congo,

    Moambique).

    H uma diferena bsica entre a umbanda e o candombl: na umbanda, foram

    incorporadas entidades, como os pretos velhos, caboclos, crianas; e no candombl, os

    orixs se manifestam atravs dos filhos-de-santo.

    No candombl, imputa-se ao tomador de conta, pai-de-santo, babalorix,

    ialorix ou outro nome qualquer, que seja o mentor espiritual dos filhos e filhas que

    frequentam um terreiro. Espera-se do lder religioso dignidade para conduzir e orientar

    a seus filhos, alm de cultura e conhecimento para dar o exemplo no falar e no

    compreender as pessoas. Outro ponto importante dentro do candombl ter bons

    colaboradores, como me ou pai-pequenos e bos, que observem e organizem uma lista

    infinita de pequenos itens imprescindveis para a execuo dos trabalhos, como uma

    cozinha organizada, acessrios como velas, fumo, marafos, vinhos, cafs, champagnes,

    conhaques, alguidares, quartinhas, fsforo, etc. J aos filhos-de-santo, mdiuns ou em

    desenvolvimento, cabe o respeito ao seu lder, mentor ou qualquer outro nome devendo

    comparecer a todos os dias de trabalhos vestidos adequadamente, geralmente de branco,

    os homens, de calas compridas, camisa ou jaleco e as mulheres, de bermuda, saia

    rodada e camisa ou jaleco. permitido, a critrio do mentor ou dirigente, o uso deroupas coloridas em dias de festejos, nas cores do santo ou guia determinado.

    O terreiro pode ser composto de altar, com os santos da preferncia, dependendo

    da linha espiritual adotada pelos filhos-de-santo, salo com definio de lugares

    especficos para os preto-velhos, as crianas, e os atabaques, tocados pelos Ogns da

    casa.

    Na umbanda, religio que mais cultuada entre o povo brasileiro, necessita-se

    de um grupo de irmos com a mesma finalidade e afinidade religiosa. Satisfazendo suaprtica, este grupo utiliza ritos, cerimnias, atos e procedimentos prprios que julgam

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    adequados para a harmonia com os seus guias e deles obterem proteo. Cada integrante

    deste grupo, chamado de mdium, sensitivo, aparelho, burro, dever cumprir algumas

    obrigaes para agradar a seus protetores e ter a simpatia e a fora para o auxlio nas

    lutas do dia a dia.

    A manifestao do guia acontece quando o mdium est sendo preparado; neste

    momento, a incorporao acontece. O guia passa a utilizar o mdium para ajudar aos

    outros ou a si prprio, aumentando sua energia e fora espiritual.

    Este grupo de mdiuns dirigido por um orientador, chamado pai ou me de

    santo, babalorix ou ialorix, chefe de terreiro, babala ou bab. Os trabalhos so

    realizados em dias estipulados pelos seus responsveis, em terreiros devidamente

    licenciados pelas autoridades competentes e reconhecidos pela Federao do Estado

    respectivo, contendo um altar ou congar (gonga, peji), assistncia, vestirio.

    So utilizados, durante as sesses, vrios objetos e utenslios como: velas,

    defumadores, flores, gua, pemba, bebidas, caf, plvora, entre outros. A sesso pode

    ser dividida em doutrina, magia e mista. A doutrina o que acontece nos terreiros e

    centros de mesa branca, com palestras, sendo dirigidas por um responsvel, em que os

    mdiuns se manifestam com guias e com a finalidade de amenizar as agruras das

    pessoas que procuram ajuda. Nos terreiros de umbanda tambm se pratica a linha

    branca. So os famosos atendimentos com os pretos velhos, com sua fumaa, sua

    pemba, suas mirongas, que atuam nas mentes dos interessados, fazendo com que essas

    pessoas aumentem a auto-estima e segurana em resolver seus problemas.

    Por sua vez, as sesses de magia, exaltadas com rituais complexos, de muita

    vibrao, os mdiuns preparados no precisam ter nenhum conhecimento de magia ou

    alta magia, pois os guias fazem todo o trabalho.

    A magia, praticada antigamente por feiticeiros, magos, bruxos, pajs, tinham

    como finalidade a manifestao de espritos. H que se diferenciar, todavia, a magiabranca e a negra. A magia branca, utilizada nos terreiros pelos pretos velhos, caboclos,

    exus, so realizadas para o bem. J a magia negra, com rituais macabros, requerida

    para o mal.

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    1.2. Sincretismo entre entidades do Candombl e do Catolicismo

    Dependendo da regio ou Estado em que so praticados os cultos do Candombl

    e do Catolicismo, obtm-se diferentes resultados para a identificao entre os santos

    cristos e os orixs africanos. Sendo assim, a relao abaixo rene o resultado desse

    sincretismo aplicado Bahia, uma vez que tanto Verger, quanto Medeiros, fotografaram

    rituais de Candombl nesse estado.

    Orix Entidade catlica

    Xang So Jernimo

    Exu Diabo, Anjo Rebelde ou So Gabriel

    Ogum Santo Antnio

    Oxossi (Od) So Jorge

    Omolu (Xapan, Obaluai, Abaluai) So Roque, So Lzaro ou So Bento

    Oxal (Orixala) Senhor do Bonfim ou Pai Eterno

    Oxum Nossa Senhora das Candeias (segundo o

    prprio Verger), Nossa Senhora da

    Conceio

    Iemanj Nossa Senhora do Rosrio, Nossa Senhora

    das Candeias, Nossa Senhora da

    Conceio

    Ians (Aloi) Santa Brbara

    Nana SantAnna

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    2. Lendas e MitosAs lendas que constituem, por assim dizer, a mitologia do Candombl so

    recheadas de magia e folclore, geralmente envolvendo temticas bastante humanas,como traio, cobia e amor. Pode-se dizer, portanto, que, a partir delas, criou-se um

    universo imaginrio de Deuses sagrados ou profanos, os quais, atravs de suas aes

    nos mitos, acabam por demonstrar a origem de algo tpico religio, ou lecionar uma

    conduta de comportamento para os seguidores.

    Um dos orixs que mais aparece nos mitos do Candombl Bara (Exu). A

    maioria deles trata de alguma excentricidade da entidade, que aparenta gostar de criar

    intrigas e problemas, representando o caos, o lado negativo da religio. Segundo a

    crendice, Bara era filho do rei do Congo, assim como Xang e Ogum, seus irmos.

    Aps a morte de Bara, todas as preces, festas e sacrifcios dirigidos aos Deuses no

    surtiam nenhum efeito; os rebanhos foram dizimados, as colheitas secaram e os homens

    caam doentes. O rei pediu ao Babala que consultasse os obis, a fim de descobrir qual a

    causa de tantas desgraas. A resposta obtida foi a de que Bara estava com cimes e

    queria sua parte nos sacrifcios. Dessa forma, convencionou-se que os sacrifcios e

    oferendas devem ser primeiramente servidos a Bara.

    Outra explicao para o fato de Bara ser sempre o primeiro a receber os

    sacrifcios a seguinte: conta-se que este orix fazia arruaa nas ruas e, ento, o rei

    resolveu prend-lo. Logo aps a priso, Bara fugiu e depois de alguns anos em

    liberdade, morreu. Em seguida, quando se faziam axs, morriam vinte e um negros.

    Consultado, o Babala, ao ler os bzios, escutou Bara dizendo: Se me derem o

    sacrifcio primeiro, no desaparecero mais os pretos da seita.

    H outras lendas que tambm ilustram muito bem as atitudes de Exu (Bara).

    Exu descobriu que certa rainha havia sido abandonada pelo esposo. Ele, anto,

    prometeu rainha que traria seu marido de volta, mas que para isso, ela deveria cortar,

    com a faca que lhe dera, um fio da barba de seu esposo para que fizesse um amuleto.

    Em seguida, Bara procurou o filho do rei, dizendo-lhe que seu pai estava partindo para a

    guerra e que exigia que o prncipe comparecesse em seu castelo, levando seu exrcito.

    Por fim, Exu procurou o prprio rei e o alertou de que a rainha estava profundamente

    magoada com ele e que por isso, iria mat-lo naquela noite.

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    O rei, prevenido por Bara, deitou-se e fingiu dormir; quando a rainha entrou em

    seus aposentos com a faca na mo, iniciou-se intensa luta entre os dois. Quando o

    prncipe chegou ao palcio com seus guerreiros, ouviu os gritos e se dirigiu aos

    aposentos do pai. O prncipe encontrou seu pai com a faca na mo, que havia tomado da

    rainha durante o embate, e pensou que sua me corria perigo.

    Por seu lado, o rei, ao ver o filho chegar com seus guerreiros, acreditou que eles

    desejavam mat-lo. Gritou por socorro e logo seus guardas o acudiram, travando grande

    luta com os guerreiros do prncipe, resultando num massacre generalizado.

    Os mitos que envolvem Ians (Oi), tratam, frequentemente, de seus filhos e dos

    Eguns. Conta-se que Ians chefiava uma sociedade secreta de mulheres, as quais

    mantinham seus maridos sob domnio. Porm, um dia, essas mulheres se rebelaram

    contra a divindade, e Oi fugiu para onde vivem os mortos, os Eguns, e l se tornou

    rainha. Isso explica o carter destemido e guerreiro da deusa. Alm disso, outra lenda

    nos conta que os Ojs subjugavam os Eguns, fazendo-os aparecer e desaparecer,

    obrigando-os a satisfazer todos os seus desejos sem o consentimento de Oi. Sabendo

    disto, Oi resolveu pregar uma pea nos Ojs; vestiu-se de Egum e saiu pela floresta.

    Ao ver o Egum, que na verdade era Ians, os Ojs pegaram seus ixs e

    comearam a persegui-la. Na fuga, Ians disfarada avistou um buraco na terra, e nele

    se escondeu. Os ojs ficaram esperando que sua presa sasse do orifcio at o

    anoitecer, quando ouviram o il de Ians no alto de uma montanha. Quando olharam,

    Oi estava tirando seu disfarce de Egum, e desde aquele dia, s se faz um pedido a um

    Egum se antes pedir o consentimento de Ians.

    J as lendas que tratam da concepo e do nascimento dos filhos de Ians

    possuem duas verses bastante trgicas. Relata-se que Ians tinha dificuldades para

    gerar filhos, por isso, procurou um Babala para que ele pudesse mostrar uma sada.

    Segundo os bzios, para realizar seu desejo, Ians deveria fazer um eb que deveriaconter carne de carneiro, panos coloridos e 18 mil bzios.

    Oi deu, ento, ao Babala os bzios, a carne e os panos, sendo que a carne fora

    utilizada para o preparo de um remdio e os panos serviram como oferenda. Feito isso,

    Ians deu luz a nove filhos e por isso a deusa dos ventos e tempestade conhecida

    como Oi Mesan Orun.

    A outra verso conta que para ter direito maternidade, Ians foi possuda

    fora por Xang, com quem teve nove filhos. Desses filhos, oito eram mudos e umpossua uma voz indecifrvel, quase animal. Ians abandonou a todos.

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    Ainda segundo as lendas, Ians, Oxum e Ob eram mulheres de Xang. Desse

    regime de poligamia, nasceram diversos mitos. Relata-se que das trs esposas, Oxum

    era a preferida e Ob vivia abandonada. Ob, para seduzir Xang, pediu ajuda a Oxum.

    Muito astuta, a deusa da gua doce, disse possuir um feitio mgico, ou seja, cortara a

    orelha para cozinh-la no amal de Xang.

    Assim que Xang ps uma colherada na boca, chamou Ob para saber o que

    havia na comida, pois o gosto era ruim. Ob, em prantos, chegou com o rosto

    desfigurado, ainda ensanguentado. Xang explodiu de raiva e a expulsou de casa.

    Conta-se, tambm, que o carneiro estava difamando Ians, dizendo que ela era

    infiel a Xang. Assim, Ians virou motivo de chacota, mas suportava as fofocas e,

    sempre que podia, subia a colina para se queixar para Orixal (Oxal). Ele a

    aconselhava a beber gua para se acalmar, coisa que ela sempre fazia.

    Certa vez, ao descer a colina, Ians no aguentou os comentrios e, assim que

    ouviu cochichos e risadas, olhou para a aldeia e soprou seus ventos, destruindo tudo. O

    carneiro foi a Xang e contou sua verso do ocorrido; Xang ficou furioso.

    Indignada, Ians viu passar uma carroa carregando palhas. Ali se escondeu e,

    ao passar pelas terras de Omulu, saiu coberta de palhas, idntica ao orix, e todos lhe

    deram passagem. Em seguida, invocou os mortos e ordenou que fossem atrs de Xang.

    Ao ver o exrcito, Xang fugiu.

    Outro mito relata um dia, Bara, dono da encruzilhada, veio para um cruzamento

    que ficava em frente ao palcio de Xang. Ao ver Oxum chorando, perguntou-lhe o

    motivo de tanta tristeza. Ela contou seu sofrimento e Bara, mais do que imediatamente,

    passou a informao a Orumil. If mandou avis-la para que deixasse a janela aberta.

    Ele soprou um p, que ao entrar pela janela, transformou-a em uma Pomba. Assim, ela

    pde voar para a casa de seu pai e voltou a sua forma. por esse motivo que Oxum no

    come pomba.Oxum era rainha de um grande e rico territrio. Este foi invadido pelos Ionis,

    que triunfaram sobre a rainha e apoderaram-se da capital, saquearam o pas e tomaram

    conta da fortuna da soberana. Oxum, para no ser aprisionada, foi obrigada a fugir,

    aproveitando a escurido da noite. Subiu em uma jangada e dirigiu a Olorum uma

    orao fervorosa. Depois, sob inspirao divina, pediu para seus sditos que

    preparassem abars e os deixassem nas margens do rio. Quando os invasores chegaram

    beira da praia, estavam famintos e avanaram sobre os abars.

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    Dentro deles no havia veneno, mas fora divina ax. Todos os invasores

    caram mortos, deixando o caminho livre para que Oxum retomasse seu reino. Deste dia

    em diante, devido vitria, atribuiu-se a Oxum o nome de Oxum-Ioni.

    Outra lenda que envolve Oxum trata de seu casamento com Od (Oxossi), cuja

    delicadeza e educao cativaram a divindade. Porm, aps os festejos do casamento,

    Oxum comeou a conhecer mais profundamente os pensamentos e desejos do marido:

    Od pretendia construir uma cidade para abrigar odadis ealakuats (homossexuais

    masculinos e femininos).

    Existem vrias outras verses para as lendas que envolvem as divindades do

    candombl e da umbanda.

    2.1 Caractersticas dos Filhos-de-santoPode-se dizer que os Filhos-de-Santo so uma espcie de personificao de seus

    Orixs de cabea. Dessa forma, esses indivduos apresentam diversas caractersticas

    peculiares ao comportamento e, inclusive, ao porte fsico os quais so atribudos aos

    Orixs pelo folclore afro-brasileiro.

    A seguir, esto relacionadas as caractersticas fsicas e comportamentais dos

    diferentes filhos-de-santo.

    Comecemos pelos Filhos de Oxal, considerado o pai dos Orixs e, portanto, de

    toda a humanidade. Aqueles que possuem Oxal como Orix de cabea so,

    frequentemente, calmos e tranqilos, inclusive em momentos de dificuldade, mas nunca

    subservientes. Dessa forma, ganham o respeito de todos, mesmo quando no se

    esforam para obt-lo. So reservados e argumentam de maneira eficiente, mas no se

    tornam orgulhosos por causa disso. Porm, o defeito mais aparente daqueles que vivem

    sob a bno de Oxal a teimosia; dificilmente se deixam convencer de que h

    diferentes solues para um problema e no admitem errar.

    Como se sabe, Oxal possui diferentes idades: quando se trata de Oxal mais

    velho, diz-se Oxaluf, o qual confere a seus Filhos uma tendncia intolerncia e ao

    mau-humor. Quando se trata do Oxal mais novo, d-se o nome de Oxagui, o qual

    apresenta certo gosto pelo debate e pela argumentao. Quanto s caractersticas fsicas

    dos Filhos de Oxal, estes apresentam porte majestoso, principalmente quando se nota a

    maneira de andar. s vezes, porm, tal vigor para caminhar se transforma em um certo

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    pesar, deixando o indivduo curvado, como se o peso de toda uma vida recasse sobre

    seus ombros, mesmo se tratando de algum muito novo.

    J os Filhos de Ogum se mostram muito mais enrgicos do que os de Oxal.

    Ogum confere a seus Filhos um comportamento arrebatado e passional, que d espao

    para exploses, obstinao e teimosia frequentes. De maneira geral, so indivduos

    bastante conquistadores e inquietos, ou seja, so incapazes de permanecer em um

    mesmo lugar por muito tempo; a rotina os chateia em demasia. Por isso, so

    apreciadores de viagens, mudanas e assuntos novos. Alm disso, gostam de novidades

    tecnolgicas, so curiosos e resistentes, concentrando-se firmemente no objetivo em

    pauta e, s vezes, so corajosos e francos demais, podendo ser considerados rudes.

    Os Filhos de Oxssi apresentam em seu arqutipo as mesmas caractersticas do

    Orix: ambos representam o homem imprimindo sua marca no mundo, mas sem alter-

    lo; dessa forma, os Filhos de Oxssi necessitam de independncia e de liberdade.

    Normalmente, comportam-se como caadores espera da presa, ou seja, so

    observadores, silenciosos e, ao mesmo tempo, so pessoas jovens e geis. Tambm

    apresentam alto grau de concentrao e determinao, alm de uma pacincia tpica

    daqueles que esperam o melhor momento para agir. Da mesma forma que o Orix, os

    Filhos de Oxssi so guiados pela necessidade de sobreviver e, por isso, no so

    ambiciosos ou sonhadores, apenas sabem quando e onde agir para alcanar seus

    objetivos. Complementando o perfil de caador, os Filhos de Oxssi so bastante

    discretos e reservados, no fazendo juzo de valor sobre terceiros.

    Por esses motivos, so pessoas que preferem trabalhos individuais aos em grupo,

    porm sempre se mostrando muito responsveis, uma vez que se identificam com o

    provedor, no sentido de ser aquele que trabalha para que nada falte. Na vida social e nos

    relacionamentos, so alegres e extrovertidos, mas sempre primando por sua

    individualidade e buscando se relacionar com um grupo pequeno de pessoas.Os Filhos de Xang so facilmente identificveis por seu porte fsico: indivduo

    forte, com estrutura ssea bastante desenvolvida e tendncia obesidade. As mulheres

    Filhas de Xang apresentam um caminhar masculinizado e certa falta de elegncia, o

    que no as atrapalham, j que so consideradas boas amantes. J os homens sob a

    proteo de Xang so bastante mulherengos. Os filhos de Xang so enrgicos e

    possuem grande auto-estima, tornando-se um pouco egocntricos a ponto de se

    julgarem importantes. Por isso, suas opinies sempre so tidas como decisivas; quandoopinam, do o veredicto e terminam o impasse. Dessa forma, quase sempre interferem

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    de maneira violenta, resolvendo os problemas de maneira rpida e demolidora e, aps o

    consentimento de todos, retoma seu comportamento usual.

    Os Filhos de Omulu caracterizam-se pela discrio e, em certos casos, pela

    autopunio, principalmente quando se trata de casamentos. Normalmente, apaixonam-

    se por pessoas extrovertidas e sensuais, como, por exemplo, as Filhas de Oxum e Ians.

    Apesar de gostarem de ver seu amado (a) brilhar, os Filhos de Omul sentem certa

    inveja de seu parceiro, vivendo com uma insegurana constante. Assim como os Filhos

    de Oxssi, preservam sua individualidade, mas so mais austeros e provocam medo nas

    pessoas; so tambm irnicos e secos.

    J os Filhos de Ossanhe (Ossaim ou Osse) possuem temperamento equilibrado;

    so capazes de controlar seus impulsos emocionais, no permitindo que suas opinies

    pessoais interfiram em suas decises a cerca de pessoas e fatos. Por esse motivo,

    desinteressam-se por falatrios e so mais reservados, o que no significa que sejam

    introvertidos.

    Alm disso, aqueles que possuem Ossanhe como seu Orix de cabea so

    atrados por assuntos religiosos e ritualsticos. Dessa forma, os rituais, costumes e

    tradies fascinam esses indivduos, uma vez que possuem algo de mstico e teatral e

    no pela simples repetio da cerimnia. Consequentemente, so bastante caprichosos e

    meticulosos, no deixando que a pressa ou a ansiedade os atrapalhe. Devido a essa

    ligao ao que mstico, os Filhos de Ossanhe com frequncia apresentam o dom da

    vidncia.

    Os indivduos que vivem sob a proteo de Oxumar apresentam carter de

    mutao, de transformao, uma vez que o Orix muitas vezes representado como

    mulher durante metade do ano, e na outra metade, por uma figura masculina. Dessa

    forma, os Filhos de Oxumar modificam, de tempos em tempos, tudo em suas vidas:

    cidade, casa, emprego e amigos; ou seja, metaforicamente, abandonam o que ultrapassado em busca do novo. Por esse motivo, so delicados e silenciosos quando se

    locomovem, no dando pistas para qual direo pretendem seguir, artifcio que se torna

    muito eficiente contra seus inimigos.

    J aqueles que possuem Nan como Orix de cabea, constituem o arqutipo da

    av, ou seja, carinhosa em excesso, mas igualmente ranzinza, estando propcio a criticar

    todos e tudo, uma vez que no aceita que nem todos pensem da mesma forma que

    ele(a). Somado a isso, no possuem grande senso de humor, o que os fazem valorizarpequenos incidentes, a ponto de transform-los em grandes dramas. Para contrabalanar

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    tal trao de personalidade, costumam ser bastante compreensivos, uma vez que parecem

    ter vivido mais tempo do que realmente viveram, e conseguem perdoar aqueles que

    erram e oferecer consolo queles que sofrem. Como as avs, possuem decises

    equilibradas e pertinentes, mostrando sempre que primam pela sabedoria e pela justia.

    No que diz respeito aos aspectos fsicos, os Filhos de Nan envelhecem

    rapidamente, aparentando sempre ter mais idade do que realmente tm.

    Nan, atravs de seus filhos-de-santo, vive voltada para a comunidade, sempre

    tentando realizar as vontades e necessidades dos outros.

    Diferentemente de Nana, Ians (Oi) reconhecida como guerreira, ou seja, a

    mulher que troca o lar pela guerra. Dessa forma, os Filhos de Ians preferem os desafios

    ao cotidiano repetitivo. Devido a esse gosto pela guerra, costumam ser bastante

    competitivos e agressivos, geralmente tendo ataques de raiva, alm de serem

    individualistas, acreditando que so capazes de vencer todas suas batalhas apenas com

    sua coragem e energia.

    Da mesma forma que so intensos na guerra, tambm so intensos na busca do

    prazer, mesmo que a busca por esse elemento envolva riscos. Em consequncia disso,

    so ciumentos e possessivos, incapazes de perdoar traies, e, obviamente, costumam

    ser muito fiis aqueles que escolhem como ntimos. Quando rompem com uma

    ideologia e se envolvem com outra, ignoram e repudiam a primeira, entregando-se

    plenamente a sua nova crena. Por esse motivo, os Filhos de Ians possuem um

    temperamento instvel e dramtico, sendo protagonistas de atitudes sbitas e

    imprevisveis, alm de se mostrarem diretos e extrovertidos, o que faz com suas

    intenes sejam prontamente reveladas.

    Apesar de sua objetividade e energia, os Filhos de Ians possuem uma viso

    inconstante sobre seus relacionamentos. Dessa maneira, no costumam ter

    relacionamentos duradouros, pois possuem vocao para a guerra e para a destruio.Os Filhos de Iemanj se caracterizam pela fora e determinao, assim como

    pela amizade e o companheirismo. Por esse motivo, Iemanj frequentemente

    identificada ao arqutipo da me, uma vez que a famlia e os filhos tm grande

    importncia em sua vida, mostrando-se carinhosa, mas nunca esquecendo a relao de

    respeito e hierarquia existente entre eles. Por esse motivo, no gostam de viver sozinho,

    e costumam se casar cedo. No so pessoas muito ligadas carreira, com exceo nos

    casos em que o futuro de seus parentes depende de seu sucesso profissional. Porm,assim como as mes, possuem a tendncia de concentrar a vida dos outros em suas

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    mos, tomando para si a responsabilidade sobre o futuro dos que o cercam. Alm disso,

    os Filhos de Iemanj demoram a adquirir confiana em algum, porm, quando o fazem,

    passam a proteg-lo e defend-lo tanto nos erros, como nos acertos, conseguindo

    perdoar falhas. No entanto, podem se tornar rancorosos e remoer antigas questes.

    Finalmente, os Filhos de Oxum. Da mesma forma que Oxum representada pelo

    rio, tambm o so seus filhos: apesar de parecerem calmos, escondem em seu interior

    correntes, pedras, buracos e grutas. Assim, os Filhos de Oxum preferem contornar

    habilmente os obstculos a encar-los de frente, escondendo, por trs de sua aparncia

    doce, grandes determinao e ambio. Fisicamente, possuem tendncia a engordar,

    uma vez que apreciam a vida social, festas e prazeres em geral.

    Inclusive, o sexo fundamental para aqueles que possuem Oxum como seu

    Orix de cabea. Possuem uma vida sexual intensa e ativa, mas so narcisistas demais

    para gostarem de algum; no entanto, sua doura e sensualidade fazem-nos parecer

    apaixonados e dedicados. Da mesma forma que apreciam o destaque social, tambm

    temem escndalos que possam ruir com sua imagem inofensiva, cautelosamente

    construda por eles.

    Somado a isso, os Filhos de Oxum adoram jias, perfumes e roupas caras, o que,

    apesar de se constituir como superficialidade e, portanto, um defeito, neles se apresenta

    como a expresso de seu interior mais profundo. So indivduos incompreendidos, mas

    de tendncias fortes e atitudes agressivas, alm de serem bastante ciumentos, o que

    encontra cura no seu sucesso material.

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    3. O sagrado e o profano

    As definies dadas aos fenmenos religiosos proporcionam uma oposio entre

    o sagrado e profano. Estes paradigmas evidenciam a sua maneira, uma caractersticacomum entre a oposio do sagrado e a vida religiosa; e o profano e a vida secular. Para

    buscar estabelecer limites na esfera do sagrado exatamente onde comeam as

    dificuldades, tanto de ordem terico como prticas. Isto porque ao se pretender dar uma

    definio do fenmeno religioso, esbarramos na busca dos fatos, em especial aqueles

    que podem estar relacionados aos estados mais simples ou mais prximos s origens.

    Infelizmente, esta uma tarefa extremamente difcil, porquanto, quase sempre, nos

    encontramos diante de fenmenos religiosos complexos, cuja histria supe uma longa

    trajetria evolutiva e, consequentemente, tais fatos no se apresentam acessveis em

    nenhuma parte, nem entre os chamados primitivos e nem mesmo, entre as sociedades

    cuja histria se pode seguir.

    Vemos, portanto, em que medida a descoberta ou revelao do espao sagrado

    tem seu valor existencial para o homem religioso. Porque nada pode comear ou fazer

    sem uma orientao prvia, que implica aquisio de um ponto fixo. por essa razo

    que o homem religioso sempre se esforou por estabelecer-se no centro do mundo.

    A estudante de doutorado de Meio Ambiente Natural e Humano de Cincias

    Sociais da Universidade de Salamanca, Espanha, Nelcina Cairo do Amparo, ao citar na

    pgina 3 do artigo O sagrado e o fenmeno religioso na pr-histria, o autor Eliada

    Mircea, para justificar a religiosidade do homem, refora essa crena.

    Na ontologia arcaica, o real se identifica essencialmente com uma fora, uma vida,uma opulncia, com tudo que existe plenamente ou manifesta um modo deexistncia excepcional; pelo fato de tambm se identificar com o estranho, o

    singular, etc. Quanto mais religioso o homem mais se separa da irrealidade, de umvir a ser sem significao, razo porque tende sempre a consagrar sua vida inteira.Neste aspecto, todo ato possvel de se converter em um ato religioso, da mesmaforma que um objeto csmico pode se converter em uma hierofana (Eliade,1974)p.3.

    A tarefa mais complexa est em compreender e se fazer compreensvel na

    manifestao do sagrado. Conhecer as diferentes modalidades do sagrado

    precisamente uma das maiores capacidades que apresentam os povos das sociedades

    primitivas, em que o homem entra em conhecimento com o sagrado porque este se

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    manifesta, se mostra como algo completamente diferente do profano. Todavia, o

    homem tem conquistado no Cosmos, uma vez que sagrado e profano constituem duas

    situaes ou modalidades de estar no mundo. (Eliade, 1974)-p.3.

    Ao longo da histria, sempre se tm encontrado objetos ou seres considerados

    sagrados ao lado daqueles considerados profanos, uma vez que o que converte um

    objeto em sagrado a revelao ou incorporao dele mesmo; a nova dimenso de

    sacralidade que se adquire. A dialtica da sacralidade de um objeto supe uma

    separao clara deste em relao aos demais objetos que lhe rodeiam, em razo de uma

    singularizao mais ou menos manifestada.

    Desta maneira, quando algo se manifesta sagrado, (Eliade, 1967:19) passa a ser

    visto completamente diferente de uma realidade que no pertence a nosso mundo,

    materializado em objetos que formam parte integrante do nosso mundo natural, profano,

    como por exemplo, uma pedra sagrada ou uma rvore sagrada. Estas, em verdade, no

    so sagradas em si mesmas; sua sacralizao se define pelo fato de conter e ao mesmo

    tempo mostrar algo que j no se constitui apenas no que lhe caracteriza

    essencialmente como pedra ou rvore, mas pela sacralidade que lhes foi incorporada.

    Ao manifestar o sagrado, um objeto qualquer se converte em algo diferente, sem

    contudo deixar de ser ele mesmo pelo fato de continuar participando do meio csmico

    circundante. Uma pedra sagrada segue sendo uma pedra: Nada a distingue das demais, a

    no ser a relao que estabelecida com aquela pedra.

    O sagrado pode se manifestar de qualquer forma, mesmo quelas que dentro donosso ponto de vista, poderiam ser consideradas aberrantes, vez que o paradoxo, oininteligvel, no o fato do sagrado se manifestar em rvores ou plantas, e sim, ofato mesmo da manifestao que, por conseguinte, o limita e o torna relativo frenteaos demais. Alm disto, a ambivalncia do sagrado no se apresenta somente noaspecto psicolgico, atuando como algo que atrai ou repele, mas, tambm deordem axiolgica, porquanto o sagrado ao mesmo tempo sagrado e

    imaculado. O que se torna imaculado, e, portanto consagrado, ainda que mantenhasuas caractersticas essenciais, se distingue de tudo que pertence a esfera do profanoe, acabam por se tornar praticamente proibidos existncia profana. Ningum podese acercar impunemente de um objeto imaculado ou consagrado quando est emcondio profana, ou seja, sem que tenha sido ritualmente preparado para tal (Eliade,1974). Nelcina Cairo do Amparo. O sagrado e o fenmeno religioso na pr-histria - p. 3.

    Na verdade, para um homem religioso o que caracteriza um objeto esfera do

    sagrado o fato de haver sido criado pelos deuses. Pelo contrrio, tudo o que os homens

    fazem por sua prpria iniciativa, e que no tem um referencial mtico, pertence esfera

    do profano e portanto uma atividade v e ilusria, na verdade irreal. Pode-se dizer

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    que, quanto mais religioso o homem, maior o acervo de modelos exemplares que

    dispe para referenciar seus modos de conduta e suas aes. (Eliade,1967).

    Para os povos primitivos, a fora e a vida no so mais do que manifestaes da

    realidade ltima. Os atos que o homem das culturas arcaicas executa so apenas

    repeties de um gesto primordial que foi executado no incio e na formao dos tempos

    por um ser divino ou por uma figura mtica. Adquire sentido a partir da repetio de um

    modelo transcendente, repetio esta que lhe assegura a normalidade do ato e lhe

    concede um status ontolgico, uma vez que apenas se torna real pelo fato de repetir um

    arqutipo. Consequentemente, os atos elementares se convertem em um ritual que lhe

    ajuda a acercar-se realidade, a inserir-se no ser, libertando-se assim dos automatismos

    do vir a ser, do profano, do nada, que no possuem contedo ou sentido.

    Por outro lado, no desejo do homem religioso se perder neste mundo, sentir-

    se esvaziado de sua substncia ontolgica e se dissolver no caos que o levar a

    extinguir-se. Por esta razo procura viver o sagrado com a mesma intensidade com que

    busca se situar na realidade objetiva, no se deixar paralisar pela realidade sem fim das

    experincias puramente subjetivas e, sobretudo, viver em um mundo real e eficiente e

    no em uma iluso. Ele est vido de ser, de viver num mundo que exista realmente,

    para fugir ao terror ante o caos que rodeia o mundo habitado ou o mundo do nada. A

    forma de configurar isto para o homem primitivo realizar sempre os ritos que se

    caracterizam pela repetio de um gesto realizado no comeo da histria pelos

    antepassados ou pelos deuses.

    Os atos mais triviais e mais insignificantes, at mesmo aqueles fisiolgicos, em

    cerimnias, conseguindo atravs da sacralizao, ontific-los e com isto faz-los

    transpor e se projetar para mais alm do tempo at a eternidade. (Eliade, 1967) p.3.

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    4. Deuses sagrados do candombl e umbanda

    De acordo com o Dicionrio de Cultos Afro-Brasileiros de Olga Cacciatore, os orixs

    so divindades intermedirias entre Olorum (o Deus supremo) e os homens. Na fricaeram cerca de 600 para o Brasil vieram talvez uns 50, que esto reduzidos a 16 no

    Candombl: Ess, gun, Ososs, Osanyin, Obalaye, smr, Nn Buruku, Sng,

    Oya, Oba, Ewa, Osun, Yemanj, Logun Ede, Osguian e Oslufan, dos quais s 8

    passaram para a Umbanda: Oxal, Ogum, Oxossi, Xang, Ians, Iemanj, Nan, Oxum.

    Muitos deles so antigos reis, rainhas ou heris divinizados, os quais representam as

    vibraes das foras elementares da Natureza raios, troves, tempestades, gua;

    atividades econmicas, como caa e agricultura; e ainda os grandes ceifadores de vidas,as doenas epidmicas, como a varola, etc.

    No Brasil, porm, pode-se notar um culto predominante do ritual e das

    concepes iorub - um povo sudans da regio correspondente atual Nigria, que

    dominou e influenciou poltica e culturalmente um grande nmero de tribos. Esse culto

    se estendeu por toda a Amrica Latina e com um nmero reduzido na Amrica do

    Norte.

    Quanto origem dos orixs, uma das lendas mais populares diz que Obatal (o

    cu) uniu-se a Odudua (a terra), e desta unio nasceram Aganju (a rocha) e Iemanj (as

    guas). Iemanj casou-se com seu irmo Aganju, de quem teve um filho, chamado

    Orung, que apaixonou-se loucamente pela me, procurando sempre uma oportunidade

    para possu-la, at que um dia, aproveitando-se da ausncia do pai, violentou-a. Iemanj

    ps-se a fugir, perseguida por Orung. Na fuga, Iemanj caiu de costas, e ao pedir

    socorro a Obatal, seu corpo comeou a dilatar-se grandemente, at que de seus seios

    comearam a jorrar dois rios que formaram um lago, e quando o seu ventre se rompeu,

    saiu a maioria dos orixs. Por isto, Iemanj chamada a me dos orixs.

    Ao analisarmos os cultos afros, uma das primeiras coisas que observamos a

    impossibilidade de se fazer uma avaliao objetiva a cerca da origem dos orixs. H

    muitas lendas que tentam explicar o surgimento dos deuses do panteo africano, e estas

    histrias variam de um terreiro para o outro e at de um pai-de-santo para o outro. No

    h possibilidade de se fazer uma verificao cientfica ou arqueolgica; que leve a

    concluir se os fatos aconteceram mesmo ou que se trata apenas de mitologia, sendo

    difcil uma avaliao histrica dos eventos relatados.

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    Um fato que devemos considerar a posio tradicionalmente dada aos orixs

    nos cultos afros como intermedirios entre o Deus supremo (Olorum) e os homens.

    Para os crticos do candombl, no pode ser esquecido que os filhos-de-santo,

    uma vez comprometidos com os orixs, vo viver em constante medo de suas

    represlias ou punies. Alm do constante medo de punies em que vive o devoto do

    orix, ele deve ainda submeter-se a rituais e sacrifcios nada agradveis, para o leigo, a

    fim de satisfazer os deuses.

    Para a pesquisadora Nelcina Cairo do Amparo em artigo publicado pela

    Universidad de Salamanca, com o ttulo O sagrado e o fenmeno religioso na pr-

    histria, falta consenso entre os pesquisadores sobre o as questes polmicas

    relacionadas aos culto-afros.

    Embora muitos estudiosos tenham j se debruado sobre o fenmeno religioso,especialmente no que se refere aos povos primitivos, h que se considerar que no fcil dar uma definio exata sobre o que entendemos por religio. Para alguns ofato religioso abarca temas como magia, o totemismo, o tabu e inclusive a bruxaria,ou seja, tudo o que pode ser englobado dentro do que se considera mentalidadeprimitiva ou que resulta irracional ou supersticioso. No fazem diferena entremagia e religio, falam do mgico-religioso ou as consideram geneticamenteaparentadas; outros, quando distinguem, as explicam de forma quase similar. Enfim,sobre este tema muito j se investigou e muitos livros j foram publicados mas no

    se chega a consenso (E.Evans-Pritchard,1991).

    Nos culto-afros necessrio conhecer tambm o significado do termo eb. De

    acordo com Cacciatore, eb a oferenda ou sacrifcio animal feito a qualquer orix. s

    vezes chamado vulgarmente de despacho, um termo mais comumente empregado

    para as oferendas a Exu (um dos orixs, sincretizado com o diabo da teologia crist).

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    5. As diferentes formas do olhar

    5.1. Pierre Verger

    O fotgrafo francs Pierre Verger nasceu no dia 4 de novembro de 1902, em

    Paris. Com boa situao financeira, aos 30 anos se interessa pela profisso de fotgrafo,

    e logo trata de aprender as tcnicas bsicas com seu amigo Pierre Boucher. Aps o

    falecimento de sua me, decide colocar em prtica seu sonho de viajar pelo mundo,

    unindo a paixo pela liberdade com a fotografia, que seria sua principal fonte de

    captao de recursos. Sua nica companheira nessas viagens era uma Rolleiflex,

    primeira mquina fotogrfica do aventureiro francs, que durante 14 anos (dezembro de

    1932 a agosto de 1946) viajou por diversos pases, comercializando suas fotografias e

    histrias para diversos jornais, agncias, centros de pesquisas e empresas espalhadas

    pelo mundo.

    Fundao Pierre Verger

    Fotgrafo e pesquisador francs Pierre Verger

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    Segundos dados publicados no site da fundao Pierre Verger,

    http://www.pierreverger.org/br, o fotgrafo francs estava sempre pronto para partir.

    Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos - os surrealistas

    ligados a Prvert e os antroplogos do Museu do Trocadero - e fazia contatos

    para novas viagens. Trabalhou para as melhores publicaes da poca, mas

    como nunca almejou a fama, estava sempre de partida: "A sensao de que

    existia um vasto mundo no me saa da cabea e o desejo de ir v-lo me

    levava em direo a outros horizontes".

    Em 1946, em clima de ps-guerra na Europa, Pierre Verger desembarca na

    tranquila Bahia, aps viagens por diversos pases. O clima tropical, a hospitalidade do

    povo e a riqueza cultural foram atrativos decisivos na escolha do viajante francs em

    estabelecer residncia na terra de todos os Santos ou Orixs.

    O pesquisador francs, mesmo vindo de uma classe social elevada, sempre se

    identificou com o provo mais humilde dos lugares por onde passou, e no foi diferente

    ao chegar Bahia. Acabou alugando um quarto no centro da cidade, prximo ao

    Pelourinho e ao elevador Lacerda, onde poderia desfrutar da companhia do povo mais

    humilde, muitos deles personagens de suas imagens.

    Os negros monopolizavam a cidade e tambm a sua ateno. Alm depersonagens das suas fotos, tornaram-se seus amigos, cujas vidas Verger foibuscando conhecer com detalhe. Quando descobriu o candombl, acreditouter encontrado a fonte da vitalidade do povo baiano e se tornou um estudiosodo culto aos orixs. Esse interesse pela religiosidade de origem africana lherendeu uma bolsa para estudar rituais na frica, para onde partiu em 1948.http://www.pierreverger.org/fpv/index.php?option=com_wrapper&Itemid=176- acessado em 02/01/2009.

    Pierre Verger tinha um fascnio pela cultura negra e em especial pelo

    candombl, e por isso dedicou-se a estudar a cultura afro-brasileira, chegando a receberem 1953 o nome de Fatumbi, que no candombl significa "nascido de novo graas ao

    If".

    Segundo o dicionrio de Yorub (Umbanda - Candombl) e Dicionrio de Keto,

    http://yle.iya.nom.br/yleiya/glossario.html#o- acessado em 04/05/2007, If, dentro da

    cultura do candombl, o Deus dos orculos e da adivinhao, o Senhor do destino. H

    quem afirme ser sua representao a cabaa, envolvida por uma trama de fios de bzios.

    Sua cor o branco. Seu dia a quinta-feira. Conhecido tambm como rnml,"somente-o-cu-sabe-quem-ser-salvo". Saudao "Epbb/".

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    Foto: Pierre Verger/FPV

    Dona Maria Bibiana do Esprito SantoMe Senhora do Ax Op Afoj

    A proximidade com os dirigentes da religio possibilitou a Verger desenvolver

    pesquisas muito mais aprofundadas acerca do candombl, com o apoio do Instituto

    Francs da frica Negra (IFAN), que no se contentou com os dois mil negativos

    apresentados pelo pesquisador francs como resultado da sua pesquisa fotogrfica e

    exigiu que Pierre Verger escrevesse sobre o que havia presenciado; dessa forma,

    praticamente a contragosto, surgiu um dos trabalhos mais espetaculares sobre cultura

    afro-brasileira.

    A histria, costumes e principalmente a religio praticada pelos povosiorubs e seus descendentes, na frica Ocidental e na Bahia, passaram a seros temas centrais de suas pesquisas e sua obra. Ele passou a viver como ummensageiro entre esses dois lugares: transportando informaes, mensagens,objetos e presentes. Como colaborador e pesquisador visitante de vriasuniversidades, conseguiu ir transformando suas pesquisas em artigos,comunicaes, livros. Em 1960, comprou a casa da Vila Amrica. No finaldos anos 70, ele parou de fotografar e fez suas ltimas viagens de pesquisa frica. http://www.pierreverger.org/fpv/index.php? - acessado em02/01/2009.

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    A grande preocupao de Pierre Verger nos ltimos anos de vida passou a ser

    disponibilizar as suas pesquisas e imagens a um nmero maior de pessoas e garantir a

    sobrevivncia do seu acervo. Aps publicar alguns livros na dcada de 80, pela Editora

    Corrupio, em 1988 criou a Fundao Pierre Verger (FPV), da qual era doador,

    mantenedor e presidente, assumindo assim a transformao da sua prpria casa num

    centro de pesquisa.

    Pierre Verger faleceu no dia 04 fevereiro de 1996, um dia aps conceder

    entrevista ao cantor e compositor Gilberto Gil, que deu origem ao documentrio

    produzido por Lula Buarque de Holanda, Pierre Verger, mensageiro entre dois

    mundos, que descreve a trajetria do fotgrafo e pesquisador francs em solo brasileiro

    e africano.

    5.1.1. O Candombl de Pierre Fatumbi Verger

    Foto: Pierre Verger/FPV

    Filhos de Ghandi

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    Verger era muito curioso, paciente e observador, atributos recomendados a um

    bom fotgrafo e pesquisador, que gerou uma forma singular na captao, coleta e

    catalogao dos materiais. Verger no impunha limites em suas pesquisas, investigando

    todos os seguimentos possveis da cultura iorubs, na Bahia e na frica.

    Sem formao acadmica, nem vnculos institucionais duradouros, Verger foiautodidata, o que o deixou livre para desenvolver a sua forma particular detrabalho. Ele anotava tudo o que via e dedicava a mesma ateno a fontesescritas, relatos orais, cultura material e rituais, alm de ter a vantagem de serum experiente e hbil fotgrafo. As pesquisas que geraram maior produoforam aquelas relacionadas com a religio dos iorubs e seus descendentes,na frica e no Brasil; o estudo das conseqncias sociais, econmicas epolticas do trfico de escravos para o Brasil e o uso medicinal e litrgico dasplantas.http://www.pierreverger.org/br/pierre_verger/pesquisas_candomble.htmn -

    acessado em 28/01/2007.

    Verger demonstrou respeito pela cultura africana, e principalmente pela religio,

    que podem ser percebidos em seus textos, em que descries minuciosas sobre dados e

    fontes evitam distores e conduzem os leitores aos arquivos coletados. Esse respeito e

    paixo pela cultura africana ficam evidentes nas pesquisas que Pierre Verger realizou

    sobre as plantas medicinais e litrgicas do candombl, catalogando aproximadamente

    3.500 espcies de plantas usadas pelos iorubs africanos e que no Brasil cerca de 200

    delas so conhecidas pelos seus nomes de origem.

    O interesse principal de Verger eram as plantas usadas como revigorantes e

    calmantes, e que de alguma maneira ajudam na incorporao e desincorporao dos

    Orixs e nas combinaes de espcies usadas para criar a sinergia necessria para essa

    incorporao.

    Verger criou um horto com mudas de plantas de origem africana e como o

    espao de que dispunha era pequeno, acabou doando vrias espcies para instituies

    especializadas no estudo das plantas, como podemos perceber no texto coletado abaixo.

    Como no dispunha de muito espao, Verger reunia as plantas, estudava-as edepois doava. Em 1969, mandou 1.210 exemplares para Paris. Em 1976,doou 150 plantas da flora baiana ao Instituto de Biologia da UniversidadeFederal da Bahia. Na reunio e classificao dessas plantas, ele contou com aajuda de instituies como o Servio Botnico de Ibadan, de pesquisadorescomo o bilogo Alexandre Leal Costa e de sacerdotisas como Me Senhora eOlga do Alaketu. Os primeiros textos sobre o assunto comearam a serpublicados no final da dcada de 60, tratando de aspectos como amemorizao do uso das plantas atravs de versos, o sistema de classificao

    de plantas criado pelos iorubs e outros.http://www.pierreverger.org/br/pierre_verger/pesquisas_candomble.htmn -acessado em 28/01/2007.

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    Pierre Verger procurou ser paciente e cuidadoso no que se refere ao trato com o

    candombl, e acabou conquistando amigos, afeto, proteo e conhecimento, requisitos

    fundamentais e necessrios para embarcar no misterioso mundo dos cultos afros. Para

    retribuir essa confiana, Verger acabou tornando-se um assduo frequentador dos

    terreiros de candombl, registrando suas lendas, liturgias e procedimentos em fotos e

    livros. Esse respeito para com a cultura negro-africana era to intenso que Verger

    acabou adotando o candombl como religio.

    "O candombl para mim muito interessante por ser uma religio deexaltao personalidade das pessoas. Onde se pode ser verdadeiramentecomo se , e no o que a sociedade pretende que o cidado seja. Para pessoas

    que tm algo a expressar atravs do inconsciente, o transe a possibilidadedo inconsciente se mostrar"http://www.pierreverger.org/br/pierre_verger/pesquisas_candomble.htmn -acessado em 28/01/2008.

    Foto: Pierre Verger/FPV

    Rio de Janeiro

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    Essa longa paixo pelo candombl proporcionou a Pierre Verger viagens a vrias

    regies e terreiros brasileiro e tambm a alguns pases, como Haiti, Guiana Holandesa,

    Cuba e por alguns pases do continente africano. Em cada uma dessas viagens, Verger

    adquiria mais experincias e angariava novos amigos, como a Me Senhora do Il Ax

    Op Afonj, que se ofereceu para consagrar a cabea do francs a Xang, um pouco

    antes de seu embarque para frica.

    Na frica, esteve com descendentes dos antigos soberanos que originaram osmitos; conheceu os locais sagrados, assistiu e participou de rituais. Quandoestava na Bahia, continuava o aprendizado: "O interessante voc conviver,fazer as mesmas coisas e participar sem inteno de entender. Participando, acoisa fica completamente diferente. Foi o que aconteceu comigo aqui. Euconvivia no terreiro do Op Afonj, fazia as mesmas coisas das pessoas daCasa, sem saber o porqu, nem como. Vivia em comum tomando parte daspreocupaes, das crenas".http://www.pierreverger.org/br/pierre_verger/pesquisas_candomble.htmn -acessado em 28/01/2008.

    Pierre Verger frequentou vrios outros terreiros, como a Casa Branca, as casas

    de Joozinho da Gomia, Joana de Ogum e Catita, onde tinha muitos amigos e, depois

    de alguns anos, o Aganju, fundado com a sua ajuda pelo sacerdote e amigo Balbino

    Daniel de Paula. Entretanto, Verger se declarava um "francs racionalista" que no tinha

    "sentimentos religiosos muito fortes", ainda que talvez no fosse to ctico assim.

    Foto: Pierre Verger/FPV

    Filhas de Santo de Obaluay em gua de Meninos

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    Verger muitas vezes era acusado por integrantes de outras religies de se

    aproveitar da condio de pesquisador e fotgrafo para divulgar as crenas e mitos da

    cultura africana, sem os questionamentos dos sacrifcios de animais e apologia aos

    rituais de magia negra, que algumas correntes religiosas fazem nos cultos afros.

    O fato que a riqueza cultural e a credibilidade em suas pesquisas fazem de

    Pierre Verger a principal referncia da cultura e da religio afro-brasileira para todas as

    pessoas de todas as religies.

    5.2. Jos Medeiros

    Acervo/Instituto Moreira Salles

    Jos Medeiros na redao de O Cruzeiro anos 50

    Jos Medeiros costumava dizer que sua intimidade com a fotografia comeou

    ainda criana, em sua casa, onde a sala era uma enorme cmera obscura princpio

    bsico de uma mquina fotogrfica e quando menino ficava deitado com as janelas

    fechadas e, por um buraco que entrava luz, observava as pessoas que passavam na rua

    eu as via, invertidas, projetadas numa parede e aquela cmera escura me encantou

    demais. O piauiense Jos Arajo de Medeiros (1921-1990) era filho de fotgrafoamador que aos domingos adorava montar seu equipamento fotogrfico em um trip e

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    fazendo uso do disparador automtico da cmera, programava uma fotografia com toda

    a famlia na praa principal de Teresina. O menino arteiro e alegre fazia alguma

    peraltice para que todos rissem na fotografia, que para ele, na poca, seria uma

    profisso menor.

    Durante a 2 Guerra Mundial a famlia Medeiros se transferiu para o Rio de

    Janeiro, com uma escala em Salvador, onde Jos Medeiros apaixonou-se pela Bahia de

    todos os Santos, sem imaginar que aquela cidade lhe proporcionaria uma das principais

    matrias de sua vida, como fotgrafo da revista O Cruzeiro. Alis, Z Medeiros

    no se imaginava exercendo a profisso de seu pai.

    O jovem Medeiros prestou vestibular para o curso de arquitetura no Colgio

    Juruena e no foi aceito, e acabou virando postalista dos Correios e Telgrafos e depois

    trabalhou no Departamento Nacional do Caf. Segundo Flvio Damm, o destino lhe

    reserva outra profisso, e por sua habilidade em fotografar, acabou sendo aceito para

    trabalhar na revista Tabu, Rio e Sombra, publicaes de pouca expresso dentro do

    jornalismo, mas lhe proporcionaram boas amizades, e por meio delas chegou revista

    O Cruzeiro.

    Como j fotografava razoavelmente foi trabalhar nas revistas Tabu, Rio edepois na Sombra, publicaes mundanas. Tornou-se amigo de milionrios,recebia telefonemas de Stela Marinho e Elisinha Moreira Salles, conviviacom Sanchez Galdeano, Nehemias Gueiros, Clemente Mariani, DraultErnanny e Spitzman Jordan. Cantava nas boates Sachas, Night and Day e noClube da Chave. No Bar Alcazar varava madrugadas com HumbertoTeixeira, Ben Nunes, Marcelo Machado, Mrio Saladini, Haroldo Costa, asirms Marinho, Cacilda Becker, Andrzinho Spitzman Jordan, MaraAbrantes, Jardel Filho, Vera Barreto Leite, Aracy de Almeida e de umpolicial boa pinta,o Celso Copacabana. Pela mo de Jean Manzon entrou paraa (ento) pequena equipe de O Cruzeiro, coincidentemente, na mesmaocasio em Chateaubriand entregava a revista para que seu sobrinho, ojornalista Frederico Chateaubriand, o Fredy, a modernizasse.http://photos.uol.com.br/materia.asp?id_materia=1700 acessado em

    28/10/2008.

    Durante 15 anos foi um dos mais importantes nomes da fotografia no Pas;

    esteve na revista O Cruzeiro, imprimindo sua marca como um dos mestres do

    fotojornalismo brasileiro.

    Por ser um jovem contestador, o interesse de Medeiros sempre foi pelos setores

    mais oprimidos da sociedade. Adorava fazer reportagens sobre negros e ndios, valendo-

    se do prestgio adquirido, fazia a prpria pauta, dava uma idia na redao. Embora

    obtivesse algumas informaes adquiridas com seu pai, Medeiros costumava assinar

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    publicaes especficas de fotografia e revistas eminentemente de reportagens

    ilustradas, comoLook,Life eMatch. Como era um timo observador e aprendiz, acabou

    recebendo influncias dos trabalhos de Henri Cartier-Bresson, Walker Evans, Paul

    Strand, Berenice Abbot, Eugene H.Smith e George Platty. Segundo Flvio Damm,

    Medeiros sempre afirmou que Cartier-Bresson foi muito importante para mim, apesar

    de eu no ter aquela maluquice de andar permanentemente com a cmera na mo.

    Quantas vezes vejo a foto se armar na minha cabea e eu no fao porque estou sem

    mquina, de qualquer jeito sinto a fotografia acontecendo, o momento chegando.

    Jos Medeiros tambm foi o primeiro brasileiro a fazer parte do seleto grupo de

    fotgrafos da revista O Cruzeiro, que, at ento, s contratava estrangeiros, dessa

    forma abrindo caminho para tantos outros profissionais importantes para o

    fotojornalismo brasileiro, como Walter Firmo e Jos Pinto. Os profissionais da revista

    O Cruzeiro, eram tratados como verdadeiras celebridades, no pelo reconhecimento

    de sua relevncia artstica, mas pela popularidade que suas imagens alcanavam numa

    revista que era lida por grande parte da populao brasileira.

    Foto:Jos Medeiros/IMS

    Os fotgrafos se tornaram dolos to populares que, no tradicional baile de fantasias do HotelGlria, o folio se veste de Jean Manzon, companheiro de profisso de Medeiros em O Cruzeiro.

    Hotel Glria. Rio de Janeiro / Brasil. 1958.

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    Em 1962, Jos Medeiros, Flvio Damm e Yedo Mendona fundaram a agncia

    Image e trs anos depois Medeiros teve sua primeira experincia em cinema: assinou a

    direo de fotografia de obras clssicas do cinema nacional, como A falecida, Xica

    da Silva e Memrias do crcere chegou a dirigir um longa, Parceiros da

    aventura, que acabou lhe dando status para lecionar na Escuela Internacional de Cine

    de Santo Antonio de los Baos, em Havana, Cuba.

    Medeiros deixou um legio de admiradores, como o cineasta Cac Diegues, que

    dizia: Jos Medeiros era um fotgrafo do cotidiano. Seu acervo inclui registros da

    burguesia nacional, do mundo artstico e da poltica, cenas de futebol, praia, ndios e

    candombl. Talvez o mais engajado dessa legio de seguidores de Jos Medeiros tenha

    sido seu scio Flvio Damm, que nunca perdeu a oportunidade de divulgar o trabalho

    do amigo, como podemos perceber em material publicado no portal

    http://photos.uol.com.br/materia.asp?id_materia=1700 acessado em 28/10/2008.

    um dos nossos mais brilhantes, modernos e inteligentes fotgrafos. Saltoupor cima de sua gerao de fotgrafos corretos e acadmicos, inventando umestilo pessoal, cheio de poesia, inspirao e improvisao, criando umaestrutura tcnica absolutamente livre de dogmas, perfeitamente adaptada sdificuldades reais do cinema brasileiro. Nesse sentido, ele um precursor

    solitrio, cujos ensinamentos vo fertilizar muito a fotografia do cinemabrasileiro.

    Recentemente, a Editora Aprazvel lanou o livro Olho na rua O Brasil nas

    fotos de Jos Medeiros, que conta a histria do fotgrafo e tem texto de Leonel Kaz e

    apresentao de Arnaldo Jabor.

    5.2.1. O Candombl de Jos Medeiros e as noivas dos deuses sanguinrios

    Jos Medeiros, contemporneo de trs fotgrafos franceses, que deixaram para

    trs uma Europa devastada pela guerra e chegaram ao Brasil nos anos quarenta, Pierre

    Verger, Marcel Gautherot e Jean Manzon, conforme relato de Flvio Damm publicado

    no stio http://photos.uol.com.br/materia.asp?id_materia=1700 acessado em

    28/04/2004.

    Verger havia estado aqui de passagem e trazia uma bagagem cultural fixadana antropologia e tinha amplo conhecimento de prticas religiosas de origemafro. Gautherot, um grande documentarista, mergulhou na paisagem humana

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    brasileira e deixou uma memria fotogrfica incomparvel, em qualidade equantidade. Jean Manzon j veio profissional da Europa e, ao chegar noBrasil, foi trabalhar no DIP, o rgo de propaganda da ditadura Vargas. Aoassumir um lugar na Revista O Cruzeiro implantou um fotojornalismocapenga, fazendo fotografias posadas usando uma, to preciosa quanto falsa,iluminao. A revista estava numa fase de crescimento, desenvolvendo um

    programa de distribuio por todo o pas. Manzon veio a calhar, fazendo umjornalismo sensacionalista. O pblico leitor no conhecia uma publicaoilustrada com fotos de impacto, em grande formato e por isso O Cruzeirovirou coqueluche, era disputada em bancas no dia do lanamento e formavaopinio. E Manzon com David Nasser, formaram uma dupla de sucesso comreportagens inventadas que derrapavam na falta de seriedade, numsensacionalismo primrio.

    Foi nesse cenrio que surgiu Medeiros, vindo de revistas de acontecimentos

    sociais, e que despertou o interesse de Jean Manzon pelo seu trabalho e acabou lhe

    convidando para trabalhar na revista O Cruzeiro. Essa era a oportunidade que

    Medeiros necessitava para mudar a cara do fotojornalismo praticado pela Revista,

    conforme relato de Damm, http://photos.uol.com.br/materia.asp?id_materia=1700

    acessado em 28/04/2004.

    E este comportamento vingou na imprensa brasileira a partir dos anoscinqenta. Muito jovem, simples por natureza, fotografava como via a vida,se possvel usando a luz existente ou usando o flash de maneira que suasfotos pareciam feitas sob luz ambiente. Rpido, sem posar seus motivos, faziaa reportagem pela reportagem. Sabia escolher o melhor ngulo, era de fcilconvivncia, boa conversa, um brasileiro sem retoque. Fez o primeirofotojornalismo srio no Brasil, autntico, sem retoque nem artifcios, noalterava nada na cena que tinha que fotografar. Sem pretenso alguma tinhaconscincia do seu grande talento. Tinha faro jornalstico e uma grandefacilidade em se identificar com minorias, ndios, negros e com o povo emgeral.

    Z Medeiros era o que podemos chamar de tempo bom, sapateava, cantava,

    escrevia bem, era irreverente, corajoso, tinha bom humor e dele qualquer um ficava

    amigo na hora; sempre procurou deixar evidente sua predileo pelas classes menos

    favorecidas. Adorava estar entre os ndios, fez parte de muitas expedies lideradas

    pelos Irmos Villas-Boas. Tinha livre acesso entre as minorias negras; na Bahia,

    transitava entre a Rampa do Mercado e a Feira de gua de Meninos, o restaurante de

    Maria de So Pedro, e os terreiros de candombl, as rodas de malandragem da Praa

    Cayru, a manso milionria de Clemente Mariani e os estdios dos artistas baianos.

    Cultuava uma grande amizade por Pierre Verger, de quem recebeu grande influncia

    pelo gosto refinado da cultura afro.

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    O sertanista Orlando Villas-Boas, aps uma expedio da qual Medeiros

    participou, relatou que numa aldeia indgena margem do Rio Kuluene, na tribo

    Kalapalos, ouviu um som caracterstico da linguagem dos nativos, mas com a melodia

    um pouco diferente. Resolveu sair em direo ao som, naquele final de tarde, e

    encontrou o fotgrafo Jos Medeiros deitado em uma rede, e como maestro, ensinava

    meia dzia de ndios a cantarNature Boy, em ingls.

    Foto: Jos Medeiros/IMS

    Jos Medeiros entre ndios xavantes. Brasil. 1952.

    De todos os fotgrafos da revista O Cruzeiro, Jos Medeiros foi o que mais

    viajou com Assis Chateaubriand, dono dos Dirios Associados, que editava a revista.

    Figura folclrica, Chat como era conhecido, tinha um carinho especial pelo jeito

    sereno de seu Zmedeiros, como o chamava. Certa ocasio, Medeiros foi escalado, a

    pedido do patro, para a cobertura de uma festa, e displicentemente acabou levando um

    nmero menor de filmes em relao s lmpadas do flash. Ao perceber que o filme

    acabara, continuou a virar a manivela de sua mquina fotogrfica Rolleiflex, fazendo

    com que a lmpada acendesse como se estivesse fotografando. Foi quando Chat o

    abordou perguntando, seu Zmedeiros, quantas chapas tem esse seu filme que

    parece feito de borracha... j fez dezesseis fotos e no trocou o rolo... Medeiros ficou

    com a cara no cho, pois o filme 120 daRolleiflex, tinha apenas 12 fotogramas.

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    Foto: Jos Medeiros/IMS

    Campanha de Chateaubriand para o Senado, fazendo uso do meio de comunicao -a televiso - que ele fundara. Brasil. 1958.

    Por trs do jeito despojado, todos tinham a conscincia do enorme

    profissionalismo que Medeiros sempre teve pelo seu trabalho; quando no meio de uma

    matria na Paraba, o fotgrafo recebeu uma carta de seu chefe que questionava uma

    matria publicada pela revista francesa Paris Match, cuja a reportagem sobre o ritual

    de iniciao no candombl, intitulada As possudas da Bahia, publicada em maio de

    1951, trazia fotografias do cineastaHenri-Georges Clouzot, que deixou o todo poderoso

    magnata da comunicao brasileira Assis Chateaubriand irritadssimo, e com sede de

    lavar a honra nacional.

    Para Chat era inadmissvel que uma revista estrangeira chegasse no quintal

    da revista O Cruzeiro e lhe impusesse um furo de reportagem. Ainda para piorar a

    situao, a revista Paris Match, alm da matria Les Possdes de Bahia (As

    possudas da Bahia), alardeava em seu subttulo que o material da reportagem era um

    extraordinrio documento etnogrfico. A abertura da matria, vendida como uma

    amostra exclusiva de um livro que Clouzot lanaria posteriormente sobre o tema, Le

    Cheval de Dieux [O Cavalo dos Deuses], dizia ainda que pela primeira vez um

    branco entrara num santurio de deuses negros, conforma matria da Unicamp,

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    www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2004/ju259pag06.html - acessado em

    17/08/2008.

    Reproduo Paris Match

    Matria publicada na Paris Match - As possudas da Bahia - maio de 1951Fotografias do cineasta Henri-Georges Clouzot

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    A carta recebida por Medeiros, cheia de provocaes e sigilo, foi encontrada

    pelo professor Fernando de Tacca (Unicamp) na Casa de Cultura de Teresina, cidade

    natal do fotgrafo, conforme relato de lvaro Kassab, publicado no endereo do stio da

    http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2004/ju259pag06.html acessado

    em 01 de agosto de 2004.

    Mais que um documento histrico, a correspondncia revela a temperatura deO Cruzeiro depois da reportagem de Clouzot, e dimensiona a missosecreta imposta a Medeiros pelo ento diretor de redao da revista, AcciolyNeto. Ao colocar o jornalista de texto em segundo plano, valorizou-se afotografia como principal elemento de comunicao pretendida, avaliaTacca. Detalhe: Arlindo Silva, o autor da reportagem, leu a carta pelaprimeira vez em 2002, 51 anos depois de escrita, ao ser entrevistado porTacca. Segundo depoimento de Silva, Jos Medeiros deve ter recebido apauta quando ambos estavam em Cabedelo, na Paraba, preparando umareportagem sobre a pesca da baleia. Ainda de acordo com o reprter, o chefemencionado por Accioly era Leo Gudim, diretor responsvel de OCruzeiro e primo de Assis Chateaubriand, dono dos Dirios Associados.Odorico Tavares, outro nome citado, ocupava a chefia da sucursal deSalvador.

    Jos Medeiros manteve-se muito discreto a respeito da carta recebida de seu

    chefe (a qual transcreverei nos anexos), e nunca revelou nada a ningum. Mas tratoulogo de preparar terreno para sua investida no candombl.

    O professor Fernando de Tacca entrevistou Jos Medeiros no Rio de Janeiro em

    1988, quando o fotgrafo relata alguns detalhes da reportagem.

    O fotgrafo revelou que parte das fotos reunidas no seu livro havia sidousada na reportagem As noivas dos deuses sanguinrios, publicada pela O

    Cruzeiro em setembro de 1951. Segundo Medeiros, a reportagem feita emSalvador em parceria com o reprter Arlindo Silva sobre o ritual de iniciaono candombl (epilao), teve uma repercusso muito grande, a tal ponto quea me-de-santo fora assassinada e que as filhas-de-santo acabaram no sendolegitimadas e reconhecidas pelos adeptos da religio. Pela verso dofotgrafo, diz Tacca, a matria foi feita para que os estrangeiros conhecessemo verdadeiro candombl. Medeiros no fez, porm, nenhuma meno matria da Paris Match, publicada quatro meses antes.http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2004/ju259pag06.html acessado em 01 de agosto de 2004.

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    Reproduo O Cruzeiro

    As noivas dos deuses sangunrios publicado pela revista O Cruzeiro em 1951Texto de Arlindo Silva e fotografias de Jos Medeiros

    A matria de Medeiros ficou famosa porque, pela primeira vez, um reprter teve

    acesso ao ritual de iniciao das Ias e segundo os iniciados no candombl, essapermisso para fotografar partiu da me de santo, e no dos orixs, conforme texto

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    abaixo publicado no blog http://patriafc.blogspot.com/2007/02/as-noivas-dos-deuses-

    sanguinrios-1951.html - acessado em 17/09/2007.

    O confinamento que precede a festa de apresentao das novas filhas de

    santo. Mas tambm ficou polmica justamente por conta desse fato: ocandombl, como qualquer outra religio, tem seus regulamentos. Apublicao das imagens foi considerada gravssima pelos seguidores docandombl e as duas Ias no tiveram sua iniciao reconhecida. Aocontrrio, ficaram marginalizadas dentro da religio. Uma delas se suicidoumeses depois; outra foi internada com srios problemas psiquitricos. Nomenos trgico foi o destino da me de santo Me Riso da Plataforma: foiassassinada um ano depois de ter aceitado o dinheiro oferecido pelo jornalistadO Cruzeiro que praticamente "comprou" o direito de violar um ritualsagrado.

    A verso sobre a perseguio contra a me de santo e as filhas de santo que

    aparecem na reportagem da revista O Cruzeiro no passa de lenda, como

    perceberemos a seguir no relato de lvaro Kassab publicado no endereo do stio da

    http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2004/ju259pag06.html acessado

    em 01 de agosto de 2004.

    O texto da revista O Cruzeiro no ressoou entre a intelectualidade, mascaiu como uma bomba nos meios religiosos baianos, cujos representantesabominaram a idia de os segredos do candombl serem revelados. A cordaarrebentou no lado mais fraco. No caso, sobrou para a cidad RisolinaEleonita da Silva, me-de-santo mais conhecida como Me Riso daPlataforma, protagonista da reportagem. O resgate de sua histria e das trsfilhas-de-santo reportadas na matria consumiu boa parte da pesquisa deTacca, que comeou seu levantamento no bairro da Plataforma, em Salvador.Embora hostilizada por seus pares, Risolina no foi assassinada e tampoucoteve de sair corrida de Salvador, como rezava a lenda. Estabeleceu-se nacidade fluminense de Nilpolis, no final da dcada de 1950, onde exerceuintensamente suas atividades de me-de-santo at morrer, em 1995.Descobri que seu terreiro em Salvador foi demolido para a construo deuma avenida. Ela foi inclusive indenizada. Mesmo saindo de Salvador,constatei que Me Riso manteve um intercmbio intenso com o candomblbaiano, revela Tacca.

    As matrias publicadas pelas revistas Paris Match e O Cruzeiro acabaram

    provocando diversos protestos a favor e contra as reportagens. O mais significativo

    protesto foi publicado pelo professor francs da Faculdade de Filosofia da Universidade

    de So Paulo, Roger Bastide, que j havia chamado a matria da Paris Match de

    sensacionalista, levantou sua voz e fria contra a reportagem da revista O Cruzeiro,

    em artigo da revista Anhembi, edio de novembro de 1951, intitulado Uma

    Reportagem Infeliz. Roger Bastide foi o nico intelectual com coragem de criticar

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    aberta a reportagem, conforme texto publicado no endereo do stio da

    http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2004/ju259pag06.html acessado

    em 01 de agosto de 2004.

    No texto, o intelectual francs menciona o silncio sepulcral que se seguiu matria dos brasileiros. Fiquei espera do protesto dos que se haviamvoltado contra Clouzot, a saber os Cavalcanti, os Edison Carneiro e outros.Porm, passam-se os dias e este prolongado silncio me assusta. Desconfia-se, avalia Tacca, que a sombra de Assis Chateuabriand, o todo-poderoso donodos Dirios Associados, grupo publicador de O Cruzeiro, tenha pairadoacima do bem e do mal.

    Foi criada uma grande expectativa em torno da matria de Jos Medeiros; os

    jornais do grupo publicavam chamadas sobre o assunto e consequentemente obrigavam

    outras publicaes a entrarem na discusso, sendo amplamente usada pela direo dos

    Dirios Associados, que aumentaram em 10% a tiragem da revista, pois previam que

    aquela matria iria puxar as vendas da revistas, como puxou.

    Para apimentar mais a matria, Medeiros deixa vazar a histria de que a mquina

    quebrou na hora de fazer as fotos, confor