3
1 O BURACO - conto - 2007 CAMILA APPEL * todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional

O buraco

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: O buraco

1

O BURACO

- conto -

2007

CAMILA APPEL

* todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório de

Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional

Page 2: O buraco

2

Ela acordou como sempre, mas nem tanto.

Levanta-se da cama difícil, sentindo algo de estranho e

novo. Olha quarto, tudo normal, como antes. Abre cortina,

dia veio, sol irradia, árvores chacoalham, céu continua lá

em cima.

Abaixa-se no tapete, nada de novo, embaixo da cama,

nada de novo. Vai ao banheiro, privada no mesmo lugar,

chuveiro com mesmas torneiras, espelho ainda lá. Seu rosto

pálido-cansado diz descontentamento e frustração. Olhos,

ainda inchados, pesam. Abaixa-se na pia e não precisa abrir

a torneira. Olhos derretem. Pode se lavar com essa água,

usar lágrimas para tirar marcas da noite. É o que faz. Lava

rosto com água que sai dela mesma. Olha para pés sem meias e

sem vontade de andar. Continuam lá, dez dedos, todos no

lugar. Pode lavar até pés, mas decide represar para escovar

dentes depois do café da manhã, se tiver um. Sente-se

flutuando, estado de limbo, em lugar algum, perdeu seu lugar

no mundo. Só que o mundo continua lá, e isso é o que a

intriga mais.

Senta-se na beira da cama, pensa em deitar e dormir,

ligar para quem deve satisfação e anunciar que hoje não sai

de casa. Nem isso. Continua a reparar no quarto, alguma

coisa tinha mudado. É então que passa mão pelo próprio

corpo. Pernas fracas, barriga tímida, sem interesses. Isso é

anormal, mas não o que de errado tem neste acordar

obrigatório. Sobe dedos palpitando pele, e sente coisa

estranha na textura do braço. Algo molhado e doído.

Olhos encontram a ferida, aberta e pulsante, asa

quebrada. Chora em cima da carne viva. De nada adianta. Não

são lágrimas de cura, são de desespero. Vermelha e nua, a

Page 3: O buraco

3

pele berra. Não coloca curativo, deixa ferida viva, olhando

o mundo que ela vê.

Passa dias reparando, encarando braço exposto. De tanta

atenção, gera carinho pela intrusa. Fica amiga da ferida, a

acaricia com amor e certo receio, domesticando animal

selvagem.

O braço vai cicatrizando, camada fina e escura nasce ao

redor do buraco, contornando até se fazer por inteira. Tapa

carne, mas sente saudades e aperta a camada, de onde brota

sangue quente. A camada cede, vermelho volta. Deixa metade

sangue e metade cicatriz, dia após dia, faz o mesmo.

Buraco percebe espaço e vai ocupando, até engolir a

dona. Orgulha-se do crescimento rápido, um filho parasita,

de atitude. Com pele toda exposta, ela vira do avesso. Sai

na rua assim, carne vermelha berrante, quem olha pensa: lá

vai a mulher do açougueiro. Comentários terminam quando ela

deixa de percebê-los.

Essa mulher está agora sentada na praça, lê jornal. Seu

cheiro denuncia, pombas se aproximam, as espanta com caderno

de economia. Irrita-se com a atração que gera. Bicho gosta

de dor, pensa. Leva uma bicada, grita pela praça. Malditas

pombas, elabora plano de extermínio, é raiva. Volta para

casa atingida. Quando senta na cama, hora de dormir, sente

algo de estranho e seco. Conta os dedos em dejavú, até ver o

pequeno buraco na carne exposta, a nova ferida, sua pele

volta.