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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
MILENA DE OLIVEIRA FARIA
O bom conselheiro: poesia e poltica nAs Rs de Aristfanes
So Paulo
2016
MILENA DE OLIVEIRA FARIA
O bom conselheiro: poesia e poltica nAs Rs de Aristfanes
Tese apresentada ao Departamento
de Letras Clssicas e Vernculas da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Cincias Humanas da
UNIVERSIDADE DE SO
PAULO, par obteno do ttulo de
Doutora em Letras Clssicas
Orientadora: Profa. Dra. Adriane da
Silva Duarte
So Paulo
2016
Dedico este trabalho aos meus pais e ao meu irmo, meus guias
e minha fortaleza, pelo amor, sabedoria e pacincia que me inspiram a
cada dia.
AGRADECIMENTOS
Escrever uma tese de doutorado um trabalho muito rduo e que exige muita pacincia,
no somente do doutorando, mas tambm das pessoas prximas de si. Estudar durante anos,
muitas horas por dia, um determinado assunto, tornou-me, por vezes, obsessiva sobre um
determinado assunto e, por isso mesmo, nem sempre fcil de se conviver. Alm disso, o
isolamento necessrio para que o trabalho seja feito s possvel graas ao respeito e
compreenso dessa necessidade por parte dos meus familiares e amigos. A eles vo meus
agradecimentos.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer quela que no foi somente a minha
orientadora, mas uma amiga e conselheira durante todos esses anos, a professora Adriane da
Silva Duarte. Ela esteve ao meu lado desde o primeiro ano da graduao. Orientou-me ainda
quando eu estava aprendendo o alfabeto grego e, mais do que isso, colocou dentro de mim a
semente da paixo pelas letras clssicas. Durante a iniciao cientfica, ela teve muita pacincia
em me ensinar os primeiros passos para a vida acadmica, principalmente no que diz respeito
organizao do material de pesquisa. No mestrado, ela foi o meu forte, foi quem me deu
liberdade para pensar, quem me corrigiu de maneira amorosa, mas precisa, foi quem me abriu
as portas para pensar sobre Aristfanes. Quando eu pensava que j a conhecia o suficiente e
que no havia mais espao para admirao, dei-me conta de que a Adriane no somente uma
excelente orientadora, mas um ser humano desses raros, que tm a sensibilidade de olhar nos
olhos dos outros e perceber que ali esto pessoas, com suas inseguranas, com seus medos e
com suas limitaes. Foi assim que ela me orientou durante esses anos todos de doutorado:
ouvindo, cobrando e compreendendo. A ela, meu mais profundo agradecimento.
Agradeo tambm aos professores que estiveram na minha banca de qualificao: o
professor Daniel Rossi Nunes Lopes e Christian Werner. Muito obrigada pela leitura atenciosa
da minha tese ainda incipiente, por todos os comentrios e indicaes bibliogrficas que foram
muito importantes para a estruturao do meu trabalho.
Aos meus amigos das Letras Clssicas, meu agradecimento sincero pelo
companheirismo, pelo incentivo e pelas discusses acaloradas. Agradeo especialmente Lucia
Sano, que sempre me apoiou e aconselhou nessa trajetria, Beatriz Paoli, companheira fiel de
eventos acadmicos e grupos de estudos, que me incentivou nos momentos em que eu mais
estive desacreditada de mim e Cristina Franciscato, querida amiga que sempre esteve me
dando apoio e torcendo por mim.
Agradeo tambm a dois professores que, embora no faam parte do meio acadmico
e nem das Letras Clssicas, foram fundamentais para que eu chegasse at aqui: ao Valter
Mendes, meu companheiro de palco, e Emlia Rinaldi (in memoriam), que me apresentaram
arte que me moveu e me move durante todos esses anos, que plantaram dentro de mim a
paixo profunda e o respeito sagrado que eu tenho pelo teatro e que me inspiraram a buscar a
compreenso mais profunda desta arte.
No poderia deixar de agradecer jamais queles que so os principais responsveis pelo
meu sucesso: meus pais, que so meu escudo e minha espada, sempre ao meu lado, nos
momentos de frustrao e nos momentos de alegria. So eles que me do fora para buscar o
constante crescimento, eles que, mesmo de origem pobre e simples, deram-me a base para
superar os desafios dirios e chegar aonde, infelizmente, poucos chegam. Eles so meu orgulho,
minha paz e minha felicidade, sem os quais eu jamais seria quem eu sou. Ao meu irmo, doce
companheiro, que me ajudou sempre, ouvindo minhas angstias, celebrando comigo as minhas
vitrias e, tendo pacincia em arrumar o computador a cada problema, meus mais sinceros
agradecimentos.
Por fim, agradeo FAPESP, pelo apoio financeiro sem o qual esta tese de doutorado
no seria possvel.
Ns agora temos generais os quais no escolheramos nem para ser
inspetor de vinho. cidade, cidade, voc mais sortuda do que
sensata.
(upolis, frag.219, Marikas)
RESUMO
FARIA, M.O. O bom conselheiro: poesia e poltica nAs Rs de Aristfanes. 2016.
Tese (doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So
Paulo, So Paulo, 2016.
O objetivo deste trabalho analisar como se d a ligao entre poesia e poltica nAs
Rs, de Aristfanes. O poeta estrutura a pea de modo que esses dois temas esto presentes o
tempo todo, pois, desde o incio, Dioniso est em busca de um bom poeta, para que ele salve a
cidade. Assim, ao longo da pea, Aristfanes associa Eurpides nova gerao de polticos,
demagogos cuja cidadania muitas das vezes contestada e que so retratados como bajuladores
e corruptores do povo. Esses, por sua vez, so contrapostos a Alcibades, nico dentre os
polticos da nova gerao citados na pea que tem origem aristocrata e justamente o escolhido
por squilo para governar a cidade, tragedigrafo que ganha a competio no Hades e recebe o
prmio de voltar vida e a misso de salvar Atenas.
Palavras-chave: Comdia Antiga, Aristfanes, Eurpides, poltica.
ABSTRACT
FARIA, M.O. The good adviser: poetry and politics in AristophanesFrogs. 2016.
Tese (doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, Universidade de So
Paulo, So Paulo, 2016.
This work aims to analyse the connection between poetry and politics in Aristophanes
Frogs. In The Frogs, the poet structures the play in such a way that both themes are present at
all times. An example of this is found in the beginning of the play when Dionysus, looking for
a good poet that can save the city, journeys to Hades to bring Euripides back from the dead.
Throughout the play, Aristophanes associates Euripides with a new generation of politicians,
demagogues who have their citizenship questioned many times and are portrayed as flatterers
and corrupters of people. These politicians are set against Alcibiades, a politician of a new
generation that comes from an aristocratic background and is the one chosen by Aeschylus to
lead the city. Aeschylus, on his turn, is the tragedian who wins the competition in Hades and is
granted the prize to go back to life and receives the mission to save Athens.
Keywords: Old Comedy, Aristophanes, Euripides, politics.
Sumrio Introduo .................................................................................................................................1
Captulo 1: Aristfanes, Comdia e Poltica .......................................................................... 3
1. Consideraes gerais: da arte de compor tragdias e comdias.................................. 3
2. Aristfanes e a Comdia Poltica .............................................................................. 11
3. Vises modernas sobre a poltica em Aristfanes.....................................................17
3.1 Autores que defendem que Aristfanes no tinha inteno de apresentar
conselhos prticos cidade.................................................................................18
3.2 Autores que defendem a inteno de Aristfanes de apresentar conselhos
prticos cidade..................................................................................................31
Captulo 2: Termenes .......................................................................................................... 44
1. Introduo..................................................................................................................44
1.1 Golpe oligrquico dos Quatrocentos e restaurao da
democracia...........................44
1.2 Batalha de Arginusas...........................................................................................46
2. Termenes: uma personalidade polmica..................................................................50
2.1 Termenes em Tucdides.....................................................................................50
2.2 Termenes em Aristteles...................................................................................53
2.3 Termenes em Xenofonte....................................................................................56
2.4 Termenes em Diodoro Sculo............................................................................60
3. Termenes nAs Rs..................................................................................................62
3.1 Termenes: o elogio do Coro..............................................................................62
3.2 Confuso na identidade de Dioniso.....................................................................64
3.3 Dioniso/Hracles no Hades.................................................................................66
3.4 Termenes: discpulo de Eurpides.....................................................................72
Captulo 3: Parbase...............................................................................................................77
1. Introduo: o desenvolvimento e declnio da parbase.............................................77
2. Reapresentao dAs Rs...........................................................................................78
2.1 Possveis dataes da reapresentao da pea.....................................................79
3. Morte de Cleofonte: palavras profticas ou manipulao poltica............................84
3.1 Cleofonte: contexto e fontes histrico-literrias.................................................85
3.2 Cleofonte em Aristteles.....................................................................................86
3.3 Cleofonte em squines........................................................................................87
3.4 Cleofonte em Lsias.............................................................................................90
3.5 Retrato cmico de Cleofonte...............................................................................93
4. Aristfanes: conspirador oligarca ou democrata radical?.......................................101
5. Frnico e Clgenes....................................................................................................110
5.1 Frnico...............................................................................................................110
5.2 Clgenes.............................................................................................................115
5.3 Compreenso da Parbase dAs Rs enquanto estrutura narrativa....................118
5.3.1 Narrativas nas parbases........................................................................120
Captulo 4: Alcibades...........................................................................................................126
1. Estilo de vida de Alcibades........................................................................................126
2. Textos suprstites sobre Alcibades............................................................................129
2.1 Oradores do sculo IV a.C. ..................................................................................130
2.2 Plato e Xenofonte................................................................................................131
2.2.1 Xenofonte..................................................................................................133
a) Apologia..............................................................................................134
b) Ditos e feitos memorveis de Scrates................................................134
2.2.2 Plato.........................................................................................................136
a) Alcibades I e Grgias.........................................................................136
b) Repblica e Banquete..........................................................................140
2.3 Tucdides...............................................................................................................146
2.3.1 Expedio Siclia....................................................................................147
2.3.2 Alcibades em Esparta...............................................................................151
2.3.3 Breves notas ao livro oitavo......................................................................155
3. Alcibades na comdia................................................................................................157
3.1 Acarnenses............................................................................................................157
3.2 Vespas...................................................................................................................161
3.3 As Rs....................................................................................................................161
3.3.1 Primeiros conselhos de Eurpides e squilo.............................................162
3.3.2 Segundos conselhos de squilo e Eurpides.............................................167
Captulo 5: Os outros e Alcibades......................................................................................171
1. Chrstoi X Ponroi......................................................................................................171
1.1 Chrstoi e pneroi na comdia aristofnica..........................................................174
2. Cleo, Hiprbolo e Arquedemo nAs Rs...................................................................179
2.1 Cleo e Hiprbolo.................................................................................................179
2.2 Arquedemo............................................................................................................181
2.2.1 Fontes histricas........................................................................................181
2.2.2 Comdia....................................................................................................183
Captulo 6: O bom conselheiro: poesia e poltica...............................................................187
1. Aristfanes e Eurpides...............................................................................................187
1.1 Eurpides em Acarnenses e nAs Tesmoforiantes.................................................188
1.2 Eurpides nAs Rs................................................................................................196
2. Disputa entre squilo e Eurpides no agn dAs Rs..................................................211
2.1 Querela..................................................................................................................212
2.2 Sacrifcios e Oraes.............................................................................................213
2.3 Oraes..................................................................................................................213
2.4 Ode........................................................................................................................213
2.5 katakeleusms.......................................................................................................214
2.6 Discurso de Eurpides...........................................................................................214
2.7 Pnigos...................................................................................................................216
2.8 Antode...................................................................................................................217
2.9 antikatakeleusms.................................................................................................217
2.10 Discurso de squilo.........................................................................................217
2.11 antipnigos........................................................................................................220
2.12 sphrgis...........................................................................................................221
3. Concluso....................................................................................................................221
Referncias Bibliogrficas....................................................................................................224
1
INTRODUO:
O objetivo deste trabalho analisar como Aristfanes articula questes polticas
ao longo dAs Rs e como o papel do poeta, enquanto educador da cidade, tambm
fundamental nessa discusso. Para isso, farei uma anlise de cada indivduo zombado
nesta comdia que tenha tido alguma participao ativa, como lder poltico em Atenas,
associando, ao fim, cada tipo de poltico a um dos poetas trgicos que disputam o trono
no Hades: Eurpides ou squilo.
O propsito desta breve introduo situar o leitor acerca do contedo de cada
captulo e do todo deste trabalho, pois, as consideraes introdutrias acerca da poltica
e da comdia aristofnica sero desenvolvidas no primeiro captulo desta tese. Este
captulo, ento, contm uma apresentao do tema, feita por meio de uma reviso crtica
das referncias bibliogrficas especficas.
O segundo captulo analisa a funo de Termenes dentro da pea. Depois de
analisar brevemente as fontes histricas em que o poltico retratado, passo ao estudo
dAs Rs, verificando, que o coro, em um primeiro momento, elogia a qualidade de
Dioniso saber escapar das situaes que lhes so inconvenientes, comparando-o a
Termenes. Em um segundo momento, o poltico retratado como um dos discpulos de
Eurpides. O que se verificar que a uma personagem cmica, utilizar-se da esperteza
para safar-se das situaes algo aceitvel e at mesmo esperado, porm, quando os
ensinamentos das tragdias geram, dentre o corpo de cidados, indivduos vis, que s
pensam em seu benefcio prprio, como Termenes, existe um problema.
No terceiro captulo, partindo da anlise de trs indivduos, quais sejam,
Cleofonte, Clgenes e Frnico, fao uma anlise da parbase enquanto estrutura central da
pea, que apresenta, pela primeira vez na pea e de forma direta, conselhos polticos
prticos: a restituio do direito queles que participaram do golpe oligrquico de 411
a.C. A parbase tem suas estruturas formais ligeiramente modificadas, para que a trama
se torne fluente a partir dela que o argumento poltico central da pea ganha fora, ou
seja, que voltem ao poder os lderes de origem aristocrata, bem-nascidos e bem educados.
Esse tema, como verificar-se-, ser desenvolvido at o momento em que Dioniso fizer a
pergunta aos tragedigrafos acerca de Alcibades.
2
No captulo 4, portanto, discuto como se d o retrato de Alcibades. A partir de
uma breve anlise de como ele descrito em fontes outras que a cmica, passo ao estudo
das respostas de cada tragedigrafo acerca do poltico e da escolha de Dioniso.
Compreender a ambiguidade da sua figura e a ameaa que ele representava democracia
ateniense, ao mesmo tempo que ainda era um dos poucos restantes de uma origem
aristocrata, fundamental para que se compreenda, no somente a escolha de Dioniso,
mas o motivo de Alcibades ser mencionado somente no final da pea, pois, para uma
figura polmica como ele, era necessrio construir na audincia uma linha de raciocnio,
de modo que ficasse evidente que, mesmo sendo uma figura controversa, ele ainda era a
melhor soluo para Atenas.
No captulo 5, portanto, discuto como mesmo os polticos mencionados de modo
mais breve e que, aparentemente, no tm ligao com a trama da pea, servem para fazer
uma contraposio com Alcibades e retratam a faco dos ponroi homens de baixa
educao, que obtiveram suas riquezas por meio de atividades comerciais, bajuladores do
povo e, portanto, inaptos para governar a cidade oposta a de Alcibades, que pertencia
aos chrstoi, a elite aristocrata ateniense.
O captulo 6 dividido em duas partes: na primeira, fao uma breve anlise de
como Eurpides retratado nas demais peas aristofnicas em que ele personagem:
Acarnenses e As Tesmoforiantes. Tendo em vista a crtica aristofnica a ele, analisarei o
agn da pea, para demonstrar que os critrios polticos que fazem com que Dioniso tome
a sua deciso esto diretamente ligados ao estilo literrio de cada tragedigrafo e que,
portanto, literatura e poltica no podem ser desvencilhadas. Embora, ao final dessa seo,
Dioniso ainda no esteja decidido, existem indcios de que ele j estava mais tendencioso
a escolher squilo, pois os ensinamentos euripidianos geram indivduos tais quais aqueles
que so atacados na parbase por sua incapacidade de governar a cidade, enquanto que
os esquilianos so capazes de despertar o esprito viril e blico e retomar os valores
aristocratas de que a cidade estava carente. Assim, poesia e poltica so temas diretamente
associados nAs Rs.
3
CAPTULO 1: ARISTFANES, COMDIA E POLTICA
1. Consideraes Gerais: da arte de compor tragdias e comdias
Diferentemente da tragdia, o mito de inspirao pica, de cunho tradicional, no
era o principal elemento constitutivo da comdia, de modo que os comedigrafos podiam
criar suas prprias personagens e tramas sem se atrelarem mitologia. Mas, justamente
devido a isso, os autores deviam ser ainda mais cautelosos quanto elaborao de seus
enredos, para, uma vez que o pblico no os conhecia previamente, nada ficasse obscuro
e desse margem a incompreenses da parte do espectador. Esse problema fica evidente
no fr. 189 de Antfanes de Poesia, em que ele justamente reclama as vantagens que tem
um compositor trgico, na medida em que o conhecimento prvio do mito por parte do
pblico supriria eventuais falhas na composio da tragdia:1
Arte afortunada a tragdia,
em tudo! Para comear, o enredo
conhecido dos espectadores
antes mesmo de se abrir a boca, de modo que ao poeta
basta apenas recordar. Se falar dipo, somente, [05]
1 Traduo de Adriane da Silva Duarte (2012)
4
tudo o mais eles sabem: o pai Laio;
a me, Jocasta; quem so as filhas e os filhos;
o que sofrer e o que fez. E se, por sua vez,
disser Alcmeon, tudo as criancinhas
j acabaram de recitar: que, tomado de loucura, matou [10]
a me, e que Adrasto, agastado,
logo chegar e de novo partir.
E, depois, sempre que no tm mais nada a dizer
e se exaurem inteiramente em suas peas, [os poetas trgicos],
como quem pede gua, erguem o deus ex-machina [15]
e isso satisfaz os espectadores!
Para ns, [poetas cmicos], no assim, mas, ao contrrio, tudo
preciso inventar: nomes novos,
e, em seguida, a ao pregressa,
a situao presente, o desfecho, [20]
a introduo. Caso omita uma dessas partes
um Cremes ou um Fdon, ele expulso pelas vaias,
mas a Peleu ou Teucro tudo se permite fazer.
Mesmo se postos de lado os exageros cmicos, o fragmento citado torna manifesta
uma das principais diferenas entre tragdia e comdia e a relao que os poetas de cada
gnero devem ter com a sua plateia.
Em primeiro lugar, como se viu, uma vez que a composio das tramas trgicas
dava-se a partir dos mitos tradicionais, conhecidos da plateia, isso facilitava a sua
compreenso, j que, sabendo-se o nome da tragdia, sabe-se ao menos sobre qual mito
o tragedigrafo ir falar. Por isso, Antfanes diz, nos vv. 4-5, que mesmo antes de as
personagens comearem a dialogar, a plateia j conhece o enredo.
Deve-se lembrar, entretanto e isso no foi salientado pelo poeta, j que ele
pretende valorizar a arte cmica pela dificuldade em se criar tramas inditas ao pblico
, que um dos elementos mais interessantes da tragdia justamente a habilidade de cada
tragedigrafo em recortar o mito e traz-lo de modo que seduza a plateia j conhecedora
daquela histria. Assim, de fato, no interessa tanto saber que dipo era filho de Laio e
que seria um homem amaldioado a matar seu pai e dormir com a sua prpria me, mas
mais instigante verificar como o tragedigrafo manipula aquela histria, cria suspense,
discute questes que lhe interessem a partir desse mito.
importante ainda notar que os prprios comedigrafos aproveitavam-se da
familiaridade que a plateia tinha com a trama trgica, e assim a parodiavam ou
mencionavam, como se v diversas vezes em Aristfanes. A ttulo de exemplo, somente
n As Rs, encontram-se 30 referncias a diversas tragdias e, no agn, a discusso sobre
a Antgona de Eurpides, nos versos 1182-1196 deixa evidente que a histria da famlia
dipo era bem conhecida da plateia.
5
Ademais, preciso observar que, nos versos 13-15, o poeta faz uma crtica ao uso
do deus ex-machina, recurso de que o prprio Aristfanes se vale em A Paz (vv.173ss),
quando o besouro voador aparece em cena, como um deus, em uma possvel pardia ao
Belerofonte de Eurpides2. O uso desse recurso para a resoluo de uma trama difcil de
se resolver acontece de modo frequente, como nota Antfanes e, mais tarde, vemos em
Aristteles a referncia a ele como algo que diminui a qualidade do tragedigrafo, sendo
uma soluo arbitrria, e no necessria trama (cf. Potica 1454a 16 - 1454b14).
Dane (1988:22), estudando as pardias trgicas que ocorrem na comdia
aristofnica, observa que outros tipos de maquinaria utilizados nas tragdias so
documentados em Aristfanes, como o caso dos versos 404-408 de Acarnenses, em que
h a referncia ao uso do ekkyklema.
Portanto, o fragmento de Antfanes citado interessante para que se possa
compreender melhor no somente a questo da trama cmica, mas tambm porque aponta
para elementos da tragdia que eram criticados pelos comedigrafos uma vez que este
um fragmento cmico e, portanto, espera-se que espelhe as crticas da comdia
tragdia como o uso da maquinaria para a soluo arbitrria da trama.
Assim, no seguindo as histrias dos mitos, os comedigrafos tinham liberdade
para desenvolver seu prprio enredo e personagens, para tratar de assuntos cotidianos e
discutir de maneira mais explcita os problemas da cidade3. Podiam, assim, apresentar em
suas peas personalidades conhecidas pelos espectadores, como o caso de Scrates ou
dos tragedigrafos squilo e Eurpides (em As Nuvens, As Tesmoforiantes e As Rs, de
Aristfanes), alm de inmeras menes a cidados annimos ou famosos, polticos,
demagogos, artesos, comerciantes, nas suas invectivas pessoais.
Essa diferena fundamental entre tragdia e comdia tambm se reflete no modo
como assuntos referentes ao funcionamento da plis a que chamo neste trabalho de
questes polticas so discutidas em um e outro gnero. Das tragdias suprstites,
com exceo de Os Persas, de squilo que so uma tragdia inspirada em um evento
histrico, ou seja, as Guerras Mdicas e, portanto, apresenta personagens histricos, como
o rei persa Dario, seu filho Xerxes e sua esposa Atossa no encontramos nenhuma
2 A pardia das tragdias euripidianas, portanto, no se davam somente no nvel textual, mas tambm no
que diz respeito ao uso dos recursos cnicos utilizados pelos tragedigrafos, no caso de Eurpides, o uso
excessivo da maquinaria para a resoluo das tramas e os figurinos em farrapos dos reis sero os
principais alvos de crtica de Aristfanes, por meio da pardia.
3 preciso ressaltar que os autores devem respeitar as convenes do prprio gnero cmico e, ao mesmo
tempo, tambm uma caracterstica da Comdia Antiga a referncia s situaes contemporneas s
encenaes, ao aqui e agora.
6
tragdia que lide com pessoas histricas, mas somente com mitos. Entretanto isso no
significa que a tragdia no apresente referncias a questes polticas, somente o modo
como isso feito difere do da comdia, por exemplo.
Citarei, portanto, um breve exemplo, para que fique clara a diferena em relao
a um aspecto fundamental sobre o tratamento das questes polticas dentro da tragdia e
da comdia. Uma vez que a tragdia lida com o mito tradicional e no est em sua
conveno fazer referncias diretas ao cotidiano da plis ateniense, muito menos aos
polticos que a regem, preciso uma ateno redobrada, para que se encontre alguma
aluso indireta ao dia a dia da cidade.
Havendo um corpus delimitado de mitos com os quais os tragedigrafos
normalmente trabalhavam4, natural que, diante das repeties, existissem referncias
intertextuais ou, melhor dizendo, referncias deliberadas a tragdias que foram
apresentadas anteriormente.
Pensando, portanto, que essa plateia fosse minimamente capaz de reconhecer as
referncias a peas que lidavam com o mesmo tema5 como o caso da representao do
mesmo mito dos filhos de dipo Etocles e Polinices em Os Sete Contra Tebas, de
squilo e em e As Fencias, de Eurpides quais eram os efeitos dessas referncias para
os espectadores? Quando essas histrias, j to conhecidas da plateia, so representadas
de maneira diferente diante dela, o que se sobressai justamente aquilo que difere entre
uma representao e outra, forando o espectador a repensar aquele mito.
Ambas as tragdias concordam na verso do mito em que dipo, aps descobrir-
se assassino do pai e esposo de sua prpria me, cega-se e lana uma maldio contra
seus prprios filhos, Etocles e Polinices, de que eles morreriam um nos braos do outro
em uma luta pelo trono paterno. H diferenas, entretanto, em relao ao modo como o
destino se cumpre, pois, os dois tragedigrafos baseiam-se em diferentes fontes do mito
para justificar a causalidade da disputa entre os irmos. squilo menciona somente a
maldio (cf. vv. 655) de dipo, enquanto que, na verso de Eurpides, a quebra do acordo
4 Segundo Peter Burian (1997:184), o contedo das tragdias foi repetido desde a sua origem e os
fragmentos que temos e alguns ttulos das peas deixam evidente essa repetio. Das cerca de 600 tragdias
registradas nas didaskaliai e mencionadas nas hipteses, h uma dzia delas intituladas dipo, oito Tiestes,
sete Medeia. No total, ao menos metade das peas tem ttulos repetidos. Desse modo, Burian diz que Do
ponto de vista da trama, a histria da tragdia grega reside em continuamente reapresentar mitos j
conhecidos da audincia, que j fazem parte do que ns podemos chamar de um sistema do discurso
trgico. (From the point of view of plot, the history of Greek tragedy is one of continuously recasting
tales already known to the audience, already part of what we may call a system of tragic discourse.)
(Traduo minha) 5 Em relao competncia da audincia, vide Revermann (2006).
7
de alternncia no poder entre os irmos mencionada (cf. vv. 69ss, 475ss). justamente
a diferena dessa escolha feita pelos tragedigrafos que interessa ao meu exemplo.
Ao se comparar As Fencias a Os Sete Contra Tebas, trs elementos distintivos
sobressaem, em relao tragdia de Eurpides: 1) o fato de Etocles e Polinices se
encontrarem antes do duelo fatal; 2) o fato de Jocasta ter sobrevivido notcia de que era
me de seu prprio marido e participar da discusso entre os irmos e 3) a causa da disputa
entre os irmos ser mencionada: ambos haviam feito um acordo prvio de alternncia no
poder, o qual Etocles se recusa a cumprir. Esses trs fatos so fundamentais para a
construo do agn e para a crtica que Eurpides far ao imperialismo ateniense.
Como bem nota Michael Lloyd (1992:84), na tragdia euripidiana, o agn o
primeiro grande clmax da pea e ele adiado por 350 versos, com o intuito de trazer
materiais que falem em favor de Polinices. Jocasta deixa claro que Etocles est
completamente errado (vv.69-76) e isso reforado pelo Pedagogo (vv.154ss) e pelo
Coro (vv.268-60). Alm disso, a simpatia por Polinices construda, na medida em que
a sua situao penosa de exilado descrita, bem como as agonias da me em estar longe
de seu filho.
Como o meu objetivo no fazer uma anlise exaustiva do agn d As Fencias,
mas somente mostrar como a manipulao do mito tradicional pelo tragedigrafo era um
dos recursos utilizados para se fazer referncias indiretas a questes polticas, exemplifico
o caso apenas com o discurso de Jocasta, personagem que, como foi dito, na verso de Os
Sete Contra Tebas, j havia morrido e, por isso mesmo, torna o seu discurso um objeto
de anlise mais interessante na tragdia euripidiana em questo.
Se em Os Sete Contra Tebas o coro interferia no dilogo entre Etocles e o
mensageiro, para trazer sua opinio sobre a justia ou injustia da fala do heri, em As
Fencias a figura de Jocasta como mediadora do agn possui esse papel.
Jocasta inicia seu discurso dizendo a Etocles que tambm respeite os mais velhos,
pois a idade traz experincia (vv.529-31). A partir desse argumento que lhe confere
autoridade, ela censura o filho por idolatrar a pior das deusas, a Ambio (v.531-2 -
). Note-se
que a deusa ainda qualificada de injusta. Em seguida, diz ser melhor honrar a
Igualdade (vv.535-6 - , , / ).
Este pedido de igualdade de Jocasta aos filhos remete ao contexto da alternncia
do poder, porm, como nota Lloyd (1992:90-1), ela no menciona explicitamente esse
8
assunto, o que significativo, na medida em que Polinices havia trazido abertamente essa
questo em seu discurso.
Deve-se lembrar que, no contexto da plateia do sculo V, essa alternncia de
pessoas no poder remete democracia. Jocasta faz um discurso de defesa democracia
contra a tirania, o que, segundo Lloyd, s tem uma relevncia superficial nesse contexto.
Por que o estudioso afirma isso?
Jocasta traz a sua recomendao pensando na igualdade como um princpio
csmico. O autor nota que a ordem natural e a ordem social foram associadas desde o
pensamento grego mais arcaico e que a palavra (dke)6 significava ordem do
universo. Essa associao tornou-se problemtica quando comearam as distines entre
(nmos)e (phsis)7, mas argumentos morais e sociais continuaram a ser
usados em apelos para a ordem natural.
Deste modo, trazendo conceitos tradicionais de que o universo constitudo por
foras divinas que do aos homens o que eles necessitam para se organizar, ela
exemplifica, dizendo que a Igualdade um elemento que traz ordem para os homens e
para a natureza. Assim, por exemplo, a alternncia entre dia e noite mantenedora da
ordem do universo, das estaes, o que traz benefcio ao homem.
preciso notar que o uso dos termos (philotima)e (isotes)8
no so arbitrrios, mas, ao contrrio muito bem pensados por Eurpides. O primeiro
termo () tem um significado ambguo, podendo ser pejorativo ou no. tanto
a ambio positiva, que leva a algum ganho coletivo, quanto a ambio negativa, que no
v os interesses pblicos, mas os individuais somente. Segundo Mastronarde (1974:299,
n.552) nota e realmente claro pelo contexto em que o termo usado nessa passagem
Jocasta utiliza como um sinnimo para (tyranns tirania), o
que fica evidente pela associao que ela faz entre (tyrannen), no verso 561,
e (philtimos), no verso 567.
Mastronarde tambm nota que h uma associao entre a noo de e
(pleonexa)9. Ambos os termos, no final do sculo V, foram utilizados para se
6 dke uma palavra muito encontrada nos textos gregos antigos, para a qual h diversos significados:
norma costume direito, justia e equidade, punio, condenao, julgamento, sentena
(Cf. Dicionrio Grego-Portugus, 2006). 7 nmos significa uso, costume lei conduta, norma e phsis significa natureza, ordem
natural (Cf. Dicionrio Grego-Portugus, 2006). Assim, a contraposio entre nmos e phsis diz respeito
quilo que criado pelo homem, pelos seus costumes e aquilo que ele recebe por natureza. 8 isotes significa igualdade, igualdade poltica. (Cf. Dicionrio Grego-Portugus, 2006). 9 Aqui, a palavra usada em sentido pejorativo, significando ambio excessiva de poder.
9
referir tirania, muitas vezes com um valor negativo. Segundo Guthrie (1969: 69), tais
conceitos seriam uma oposio a um (nmos) lei superior da qual os gregos
tinham orgulho em respeitar e esto diretamente relacionados ao governo de um
tirano.10
O uso dos termos torna-se ainda mais curioso, caso se tenha em mente a associao
que h entre e no livro oitavo da Histria da Guerra do
Peloponeso, de Tucdides (8.89.3), no qual ambos os termos so apontados como causa
da dissoluo da oligarquia de 411.11
Tendo em mente, portanto, o uso desses termos no final do sculo V,
principalmente no perodo de 411, momento em que a oligarquia estava sendo instaurada
de maneira fortemente violenta, entende-se melhor o que Michael Lloyd quis dizer sobre
o fato de essa discusso sobre alternncia de poderes ter apenas uma relevncia superficial
ao contexto mitolgico da pea.
Ou seja, para o contexto de monarquia tebana, na qual Jocasta vivia, trazer uma
discusso que remete democracia parece algo de menor importncia, e justamente por
isso que ela no fala em momento algum sobre essa alternncia de poder, mas sobre a
necessidade de alternncia de modo mais filosfico e genrico. Porm a plateia do final
do sculo V estava acostumada com o uso dos termos supracitados em um mbito mais
restrito de significao, que remete contraposio entre o governo democrtico e o
oligrquico. Jacqueline de Romilly, segundo Mastronarde (1974:300, n.532), nota que o
uso de como um valor destrutivo da democracia surge apenas em 411 e que
Eurpides faz um uso tpico desse termo nesta tragdia.
Assim, Michael Lloyd resume bem essa questo, dizendo que (1992:92):
O desejo de Etocles por ocupar sozinho a tirania despertou
em Jocasta uma defesa irrelevante da democracia. Seu elogio por
igualdade apropriado o suficiente, mas a sua justificativa dela ab
initio, ignorando o fato crucial do acordo dos irmos, d a impresso de
que ela est mais preocupada com a democracia do que com a tirania
compartilhada. Essa impresso reforada pela prxima seo do seu
10 Essa oposio fica evidente, por exemplo, nos versos 429ss de Suplicantes de Eurpides, em que Teseu
diz que no h pior inimigo da cidade do que o tirano, pois este no se submete s leis comuns, o que
injusto. Tambm na Orao Fnebre, em Tucdides (2.37), h semelhante associao. 11 Para outras referncias de passagens em que esses termos so usados com essa conotao, vide
Mastronarde (1974: 299-300) e Guthrie (1969: 69-70).
10
discurso (vv.549-57), uma crtica geral tirania de um tipo claramente
tradicional.12
Uma leitura comparativa de Os Sete Contra Tebas e As Fencias elucida como a
escolha de uma determinada vertente do mito importante para a caracterizao das
personagens. Nas peas em questo, essa escolha determinou a justia da luta fratricida:
em squilo, Etocles, mesmo agindo de modo a causar espanto ao coro e aos
espectadores, est do lado da justia, pois escolhe guerreiros que representam a prudncia
e a reverncia aos deuses para combaterem os argivos e coloca os valores da cidade e seus
valores guerreiros acima da sua vida. O fato de ele matar o prprio irmo deve-se,
portanto, a uma aceitao do cumprimento maldio do pai e da vontade divina.
Em Eurpides, por outro lado, o fato de escolher outra verso do mito, em que o
acordo entre Etocles e Polinices pela alternncia do poder explcito, d ao
tragedigrafo a possibilidade de discutir a justia da invaso argiva sob outro ponto de
vista. Eurpides condena a figura do tirano que coloca seus interesses pessoais acima dos
interesses pblicos, condenao essa muito vigente no final do sculo V, especialmente
no perodo de crise de 411.
Se o que Tucdides afirma no livro oitavo correto e Atenas neste perodo
encontrava-se sob forte represso13, tendo inclusive polticos que fossem contra o projeto
oligrquico assassinados, a escolha de Eurpides torna-se ainda mais interessante, na
medida em que desloca para um passado mtico e na distante Tebas, porm de modo sutil,
questes que so pertinentes sua plateia.
O exemplo de como Eurpides utiliza o mito para levantar questes referentes ao
seu cotidiano, mesm que de modo menos explcito, importante para que se possa
contrapor como essas referncias se do de modo diferente, em muitas das vezes, nas
comdias aristofnicas. As invectivas pessoais, aluses diretas ao governo democrtico e
aos seus lderes, s escolhas do dmos diferenciam, nesse sentido, a comdia da tragdia,
12 Traduo minha. Eteocles' desire for sole tyranny has thus prompted Jocasta to a rather irrelevant
defence of democracy. Her praise of equality is appropriate enough, but her ab initio justification of it,
ignoring the crucial fact of the brothers' agreement, gives every impression of being more concerned with
democracy than with shared tyranny. This impression is reinforced by the next section of her speech (549-
57), a general criticism of tyranny of a fairly traditional kind.
13 Em 411, Atenas passava por uma das maiores crises de sua histria. Tal crise foi decorrncia da tentativa
de implantao da oligarquia em 412, por Pisandro. Nessa poca, a democracia ateniense estava sendo
ameaada pelas foras militares oligarcas que controlavam o contedo do que seria dito nas Assembleias e
quem seriam os seus oradores, havendo uma sria represso queles que apresentassem desvios nos
discursos e qualquer tentativa de opor-se aos oligarcas. Cf. Tucdides (8.63-70).
11
mas, ao mesmo tempo, isso no significa que suas referncias sejam mais facilmente
compreendidas, principalmente por leitores to afastados do contexto em que foram
encenadas, como ns.
2. Aristfanes e a Comdia Poltica
Em primeiro lugar, para que se faa uma leitura adequada do que chamo de
comdia poltica, preciso fazer algumas consideraes gerais sobre o que entendo por
essa expresso e, mais especificamente sobre poltica.
Em portugus, o termo poltica pode ter diversas acepes, como: arte ou
cincia de governar, orientao ou mtodo poltico, arte de guiar ou influenciar o
modo de governo pela organizao de um partido, prtica ou profisso de conduzir
negcios polticos e at mesmo cerimnia, cortesia, urbanidade e habilidade no
relacionar-se com os outros, tendo em vista a obteno de resultados desejados14. Esses
dois ltimos usos do termo sero imediatamente descartados da minha discusso. As
demais conotaes sero utilizadas de acordo com a necessidade do meu argumento e, se
preciso, esclarecerei especificamente qual o meu entendimento de poltica em cada
caso.
Para os gregos, entretanto, o termo tem um significado mais especfico, que ser
til discusso do que entendo por comdia poltica. (t politik), deriva
de (plis), termo a que comumente se traduz por cidade ou cidade-estado.
Assim, portanto, significa os assuntos relacionados plis, ou, como
tem-se a indicao no dicionrio a vida da cidade.
O uso do termo comdia poltica, portanto, pode ser entendido de duas
maneiras. Carter (2007:4), falando no somente especificamente sobre a comdia, mas
acerca do drama grego, explica que h dramas cujos principais personagens so figuras
polticas, como rei, prncipes etc a que se pode chamar de drama poltico, porm
normalmente se entende por essa expresso que o drama tem uma funo poltica na
sociedade, independentemente de retratar figuras de autoridade. Geralmente os
comentadores da tragdia referem-se a ela como um drama poltico neste segundo sentido.
Se, como Carter afirma, o drama poltico aquele que tem uma funo poltica
na sociedade, preciso entender melhor qual essa funo e, para isso, necessrio
14 Cf. a entrada poltica do Dicionrio Houaiss.
12
considerar o contexto no qual as apresentaes dramticas ocorriam originalmente, ou
seja, o festival dramtico em honra ao deus Dioniso, pois, no se pode ler as tragdias e
as comdias como pautas polticas ou como discursos dos oradores na assembleia, uma
vez que, em primeiro lugar, so textos literrios inseridos num contexto cvico-religioso.15
Entretanto o carter poltico nos vrios sentidos que esse adjetivo carrega do
festival das Grandes Dionsias do qual h mais informaes do que as Leneias, por
exemplo permite que sejam feitas inferncias acerca da funo poltica dos dramas
nele representados.
Embora fosse um ritual de cunho religioso, como se sabe, em honra a Dioniso, as
Grandes Dionsias tinham tambm um cunho fortemente poltico: como bem aponta
Storey (2009:14), o festival, que foi institudo por Pisstrato16 em 535 a.C., tinha o
objetivo de criar um senso de unidade nacional e de identidade cultural. Os rfos de
atenienses que morreram em combate, por exemplo, tinham assentos especiais, e honras
eram atribudas a estrangeiros que prestaram bons servios a Atenas, alm disso, como
observa Pickard-Cambridge (1953:59), o momento do festival era propcio para a
propaganda poltica diante dos embaixadores que visitavam a cidade. Em suma, esse era
o momento de Atenas mostrar a grandiosidade cultural e poltica do seu imprio.
preciso notar, ademais, que a instituio do festival dramtico deu-se
praticamente junto com o surgimento da democracia, cujo principal pilar era a liberdade
de expresso. Como bem nota Carter (2007: 19)
Os atenienses estavam conscientes da sua tendncia em
exercer a parrehsia, que literalmente significa discorrer sobre tudo.
O comportamento deles, em todos os aspectos da vida na cidade, era
caracterizado pela fala. Assim, parece ter havido algo distintivo em
relao aos atenienses no que diz respeito a um gnero no qual diversas
vozes que competiam eram ouvidas de uma vez s.17
Alm disso, o festival era organizado pelo Estado, como uma instituio que fazia
parte das atividades da plis tendo um carter poltico, nesse sentido, portanto. As
15 Na Grcia clssica, essas duas esferas no esto dissociadas. 16 Tirano de Atenas de 561 a 527. Aps Slon deixar o poder, membros da aristocracia disputavam o poder
e, contra eles, apoiado nos camponeses pobres, Pisstrato apoderou-se da Acrpole. No aboliu a legislao
de Slon e tomou medidas em prol dos pequenos camponeses, permitindo-lhes contrair emprstimos.
Cobrou impostos dos mais ricos, o que lhe permitiu desenvolver a frota ateniense e embelezar a cidade.
Para mais informaes, vide MOSS, Claude. Dicionrio da Civilizao Grega (2004). 17 Traduo minha. The Athenians were conscious of their tendency to exercise parrhsia, which literally
means saying everything. Their behavior in all aspects of city life was characterized by talk. So there
seems to be something distinctively Athenian about a genre in which several competing voices are heard at
once.
13
despesas para a manuteno e ensaio do coro, por exemplo, eram pagas por meio de uma
liturgia, espcie de imposto que competia aos cidados mais abastados pagar, chamados
chorgoi. E uma assembleia era convocada, aps o festival, para avaliar a conduta
daqueles que estavam responsveis por sua gesto (PICARD-CAMBRIDGE, 1953:68-
69). Assim, possvel dizer que os festivais dramticos tambm faziam parte de um rgo
poltico, ou seja, uma instituio da plis, organizada por ela, em que a plateia tinha uma
conduta de reflexo poltica (sobre questes relacionadas plis), mas no era o momento
em que decises eram tomadas.
Entretanto, como j mencionei anteriormente, as Grandes Dionsias, mesmo sendo
uma boa ocasio para o enaltecimento de Atenas diante de estrangeiros e um momento
de reflexo acerca de questes relacionadas plis e, portanto, nesse sentido, polticas,
eram, acima de tudo, um festival dramtico no qual peas de teatro eram apresentadas e
onde os poetas competiam entre si pelo ttulo de melhor poeta cmico ou melhor poeta
trgico.
Assim sendo, no algo simples compreender como as questes polticas so
apresentadas nas tragdias e nas comdias e como elas eram recebidas pela plateia.
Primeiramente, preciso notar que quando se fala de plateia, pensa-se em uma massa
homognea e que responde de uma maneira igual aos estmulos apresentados pelos
poetas. preciso verificar mais profundamente essa questo, pois compreender o
interlocutor destes textos trgicos e cmicos fundamental para o entendimento das
discusses polticas que ocorrem nessas peas.
No o meu objetivo, neste trabalho, discutir extensivamente sobre a composio
da plateia e, sobre isso, portanto, apoio-me somente nos estudos de Pickard-Cambridge
(1953) e Martin Revermann (2006) para esta seo do meu captulo.
Para os padres modernos, certamente a plateia das Grandes Dionsias era muito
grande. Embora seja um consenso atualmente de que o nmero de 30 mil espectadores
apresentado por Plato no Banquete no deve ser aceito como real, uma plateia que tinha
entre 14 e 17 mil espectadores era ainda assim muito grande. A presena de estrangeiros
era restrita, mesmo no festival das Grandes Dionsias, de modo que a grande maioria da
plateia era constituda por atenienses. Quanto presena de mulheres dentro desse
pblico, essa uma questo mais polmica, pois as fontes para tal constatao no so
decisivas18.
18 Pickard-Cambridge aponta os versos 962-67 de Paz, como uma possvel evidncia de que as mulheres
faziam parte da audincia, que sugere que as mulheres estivessem sentadas ao fundo, de modo que no
14
O preo do ingresso no teatro, que no sculo V era de dois bolos, poderia ser uma
forma de afastar os cidados mais pobres do festival. Entretanto a criao do
(theorikn), fundo institudo por Pricles, garantia, teoricamente, a presena
de todas as classes sociais no teatro, pois subsidiava a entrada dos menos favorecidos.
Assim, portanto, possvel afirmar que a plateia era vasta e bem heterognea, no
que diz respeito s classes sociais, mas, no que diz respeito sua competncia, tanto no
que concerne apreciao das obras apresentadas quanto em relao s discusses
polticas nelas trazidas, como demonstrarei, o mesmo no ocorre.
Revermann, em seu artigo de 2006, questiona a competncia da plateia, ou seja,
se ela era capaz de distinguir uma pea boa de uma pea ordinria. Como, no entanto,
medir a capacidade dos espectadores? Para ele, a melhor maneira de se estabelecer a
competncia do pblico por meio da pardia tragdia, que um fenmeno complexo
que opera no apenas no plano lingustico da palavra falada, mas envolve elementos
paralingusticos e sinais visuais, como ritmo, gestos, figurinos, melodia, tons, falsetes etc.
Seu principal objetivo criar uma atmosfera reminiscente da tragdia.
A pardia da tragdia algo importante, embora no seja a nica forma, de indicar
a competncia do pblico. Sua primeira funo a de unir o pblico na sua habilidade
generalizada de reconhecer a atmosfera trgica. Se bem-sucedida, o reconhecimento da
pardia de elementos trgicos, dentro do contexto cmico, gera o riso na audincia, mas,
ao mesmo tempo, preciso notar que tal reconhecimento no se dava de modo
homogneo e, desse modo, feito de acordo com os diversos nveis de entendimento da
plateia.
O mtodo que Revermann usa no se centra apenas no texto, mas parte da prpria
plateia, para tentar estabelecer o nvel bsico de competncia requerido do pblico para a
compreenso da pardia trgica.
Dentro dessa proposta, ele destaca dois aspectos que aumentam a compreenso da
plateia: 1) o fato de haver um intercmbio entre a plateia e o coro da pea, j que, no
principal festival, nas Grandes Dionsias, o coro era composto por cidados atenienses;
2) e o fato de as peas serem estruturadas segundo convenes do seu gnero, o que
fossem atingidas pelos gros jogados na audincia. E tambm aponta os versos 1050-51 dAs Rs, em que
se diz que as mulheres teriam cometido suicdio por conta do retrato que delas feito nas tragdias de
Eurpides. Eu apontaria a guardi de As Tesmoforiantes, que no acompanha a pardia da recente Helena,
como evidncia em contrrio. Quanto aos suicdios, alm de exagero claro, no precisariam derivar da
experincia da tragdia como espectadoras, mas do conhecimento do enredo.
15
facilita o reconhecimento quando, na comdia, esses elementos formais da tragdia so
trazidos.
Segundo os clculos de Revermann (2006: 108), de 2% a 4% dos cidados
atenienses faziam parte do coro; e no ano de 411, possivelmente 4% dos cidados estavam
atuando em alguma orquestra do festival das Grandes Dionsias. Para o autor, todas as
classes de atenienses participavam do coro e no s o fato de serem de diferentes classes,
mas principalmente o fato de atuarem ora como espectadores ora como coristas, teve um
efeito significativo sobre a aquisio de competncia como espectador e corista.
A interface entre aqueles que atuam nos corais e aqueles que os assistem deveria
ser grande, se for considerado que a capacidade (segundo estudos mais recentes em que
Revermann se apoia) do teatro de Dioniso era de sete mil espectadores, ou menos, uma
boa porcentagem de espectadores das Grandes Dionsias que j participaram dos coros
alguma vez deve ser alta. Dessa forma, mesmo com todas as diferenas sociais e
educacionais que havia dentre os espectadores, eles eram unidos pela experincia teatral
de j terem atuado no teatro de Dioniso.
Deve-se tambm ter em mente que provavelmente esses cidados que atuavam em
Atenas tambm deveriam participar de coros em outros festivais da cidade, como as
Leneias, o que lhes conferia uma grande experincia como coristas. Assim, isso explicaria
porque h casos em que a plateia bem mais crtica em relao a pequenos erros que,
hoje em dia, seriam relevados, como o caso de Hegloco, o ator que pronunciou errado
um verso de Orestes, de Eurpides (cf. As Rs, v.304).
Revermann nota que os autores deveriam ter um senso do limite da competncia
da sua plateia, para no se perder em desafios intertextuais muito maiores do que ela
poderia suportar. Assim, possvel crer na hiptese de que o agn d As Rs no foi
maante para o pblico da poca, devido ao seu grande sucesso, mas preciso notar que
um pouco aps tal agn, Aristfanes elogia a plateia, de modo a garantir a simpatia do
pblico.
Do mesmo modo que a plateia do sculo V, embora heterognea, possua
proficincia mnima para a compreenso das referncias intertextuais apresentadas pelos
comedigrafos, como bem demonstrou Revermann, certamente a participao ativa que
o povo tinha dentro da vida da plis garantia-lhe ferramentas suficientes para
compreender as invectivas pessoais que ocorriam na comdia bem como discusses mais
amplas, como aquelas sobre a paz, sobre o modo como as cortes funcionavam aps o
pagamento dos juzes etc.
16
Entretanto um dos maiores problemas existentes sobre a comdia poltica est
justamente no modo como essa plateia recebia essas referncias e, tendo em vista essa
recepo, como o poeta lidava com as expectativas da mesma.
A fim de iniciar essa discusso, parto de duas premissas: a primeira trata-se da
percepo de um dos primeiros estudiosos da tragdia, Aristteles, acerca do que seria o
contedo prprio da comdia e da tragdia. Em sua Potica (1448b 33-7), ele afirma que
a tragdia trata daquilo que srio (ta spoudaia), enquanto que a comdia trata daquilo
que risvel (to geloion). A segunda premissa a alegao do coro nAs Rs, de que
comdia fala tanto aquilo que srio quanto aquilo que risvel (vv.389-91).
Assim, tendo em vista a afirmao de Aristfanes nAs Rs supracitada, faz-se
necessrio relativizar a afirmao de Aristteles e analisar, caso a caso, se a passagem
tem a inteno somente de fazer rir o espectador ou se, mais do que isso, ela tem a inteno
de causar algum tipo de reflexo mais profunda na plateia e, de algum modo, causar uma
transformao nela.
A partir disso, ento, entendo que possvel haver duas definies para a
comdia poltica: 1) aquela que simplesmente apresenta personagens ou ento que se
refere a personalidades relacionadas administrao da plis; ou 2) aquela que
politicamente engajada, na definio de Henderson (2013:252), que so aquelas
comdias que sustentam a temtica ao longo da pea, envolvendo o poeta mesmo ou a
sua persona como um partidrio. Assim, por exemplo, o fato de uma pea satirizar um
determinado indivduo ou grupo poltico no suficiente para classific-la como
poltica e o mesmo ocorre com o contrrio.
Portanto, tendo em vista os aspectos discutidos, passo apresentao dos
principais estudos sobre a temtica poltica em Aristfanes, trazendo tanto estudiosos que
defendem a tese de que a comdia aristofnica politicamente engajada e, portanto, tem
a inteno de produzir alguma transformao em sua sociedade, como estudiosos que
defendem a tese de que as comdias de Aristfanes tm como nico objetivo ganhar o
festival dramtico no qual so apresentadas e, portanto, no possvel verificar
seriedade nas invectivas pessoais ou demais referncias polticas nelas apresentadas.
17
3. Vises modernas sobre a poltica em Aristfanes
No incio do sculo XX, a crtica moderna passou a discutir mais sistematicamente
as implicaes polticas da comdia aristofnica. Gomme, em um artigo de 193819,
apresenta-se de modo contrrio ao que pensavam os estudiosos de sua poca, como
Maurice Croiset (1909) e Murray (1933), por exemplo, que defendiam a tese de que a
comdia aristofnica tinha a funo de apresentar conselhos prticos cidade, conselhos
esses de cunho conservador. A partir de ento, surge um debate acalorado sobre isso, para
o qual at hoje ainda no existe um consenso e nem to somente dois tipos de
posicionamento, mas uma variedade deles.
A minha inteno, nesta seo do captulo, apresentar, em linhas gerais, como
se desenvolveu essa discusso, desde os trabalhos de Croiset e Murray, passando pela
refutao de Gomme, at trabalhos mais recentes sobre a questo, como o de Henderson
(2013), estabelecendo os pontos de contato e de afastamento entre as teorias, de modo
que se possa ter uma viso panormica dessa discusso que fundamental para o
desenvolvimento do meu trabalho.
Dois so os principais posicionamentos entre os estudiosos modernos: h aqueles
que refutam a tese de que as peas de Aristfanes tinham a inteno de apresentar
conselhos prticos cidade como o caso de Gomme (1938), Heath (1982), Silk (2002)
e Olson (2010) e h aqueles que, ao contrrio, defendem que suas peas tinham
proposta, como Croiset (1908), Murray (1933), de Ste Croix (197220), Henderson (199221
e 2013), Sommerstein (1996 e 2009) e Sidwell (2009).
Entretanto, dentre os estudiosos de um mesmo grupo, h divergncias acerca de
outras questes que so evocadas por esse tema principal: Heath, por exemplo, embora
no acredite que as peas de Aristfanes tivessem a inteno de propor conselhos polticos
prticos, ainda assim enxerga que todas elas trabalham em favor do dmos, condenando
aqueles que enriquecem s custas do dinheiro pblico, concordando com de Ste Croix e
Olson em que no h indicao de que Aristfanes fosse um oligarca, mas que ele
19 O artigo de Gomme foi publicado pela primeira vez em 1938, porm cito, nas referncias bibliogrficas,
o artigo como fora publicado em 1996 por Erich Segal. 20 O artigo de G.E.M. de Ste Croix foi publicado pela primeira vez em 1972, porm apresento nas
referncias bibliogrficas a edio de Erich Segal, de 1996. 21 O artigo de Henderson foi publicado, primeiramente, em 1992, porm trago aqui a edio de Erich Segal,
de 1996.
18
possusse uma atitude paternalista, conservadora, com uma viso de democracia em que
o governo para o povo, no do povo. (OLSON: 2010, 66).
J Sommerstein e Sidwell, embora pertenam a um mesmo grupo, que acredita
na influncia esperada de Aristfanes sobre as questes polticas embora Sidwell
apresente este posicionamento com certa cautela, indicando que quase nunca os conselhos
aristofnicos eram ouvidos , divergem completamente nas concluses a que chegam com
os seus estudos, pois, enquanto Sommerstein defende que a alternativa democracia
proposta por Aristfanes em suas comdias coincidia com o projeto dos oligarcas
(SOMMERSTEIN: 2009, 207-11), Sidwell, pelo contrrio, defende a tese de que uma
leitura metacmica das parbases e das personagens pode indicar que Aristfanes fosse
um democrata.
Assim, passarei a apresentar o posicionamento desses estudiosos, agrupando-os
conforme a primeira indicao, embora sempre seja necessrio estar atento s
divergncias entre eles j apontadas.
3.1 Autores que defendem que Aristfanes no tinha a inteno de apresentar
conselhos prticos cidade
Conforme aponta Olson (2010:46), Gomme foi um divisor de guas no que diz
respeito aos estudos da poltica em Aristfanes, muito embora no tenha sido o primeiro
a discutir este assunto, como demonstrarei, por exemplo, com os estudos de Croiset
(1909) e de Murray (1933). Entretanto, durante muitos anos, suas teorias foram aceitas
sem maior contestao at o incio dos anos 70, como ser visto, com o artigo de G.E.M.
de Ste Croix, e por isso que de fundamental importncia, a qualquer estudioso desse
assunto, ter conhecimento dos pressupostos de Gomme.
O autor parte do princpio de que h um equvoco em se buscar nas comdias
evidncias do posicionamento poltico do poeta, j que obras de fico no tm valor
documental e no estariam comprometidas, portanto, com a verdade do indivduo que as
comps. Assim, um erro procurar quais seriam suas ideologias, como se ele fosse um
poltico, um militante, pois isso certamente leva os estudiosos a contradies.
Assim, Gomme defende que preciso analisar a obra em si, se ela apresenta
contradies internas trama ou no desenvolvimento das personagens, e no buscar
coerncia em vista das demais comdias desse mesmo autor. Entretanto ressalta que, se
Aristfanes est fazendo um retrato de uma pessoa ou de uma situao que existem na
19
vida real, ento natural que se espere alguma coerncia entre as peas que retratam esse
mesmo objeto. preciso, porm, ter em mente que essas incoerncias talvez sejam apenas
aparentes, uma vez que podem somente representar as diferentes faces ou fases de um
mesmo objeto ou evento, que assim apresentado, cada vez, sob um outro ngulo ou sob
efeito de um novo contexto.
Embora soubesse que Aristfanes possua opinies polticas (GOMME: 1996,
35) principalmente se pensarmos na relao que tinha o cidado ateniense com os
problemas pblicos , Gomme diz que se fosse possvel, de alguma forma, descobrir qual
era essa opinio, isso s teria valor para a sua biografia, e no para a anlise de sua obra.
O autor cita dois exemplos, falando sobre Acarnenses e, em seguida, sobre
Cavaleiros e explica que, embora o contexto histrico de Acarnenses pea que fora
composta em um momento em que Atenas encontrava-se em uma situao de pestilncia
e sem conquista alguma significativa determinasse o seu tom pacifista, no faria a menor
diferena saber se, de fato, Aristfanes votou pela paz, na assembleia ou se apenas refletiu
em sua pea a necessidade geral de Atenas de que a guerra fosse posta a um fim.
Entretanto, sobre a mudana de tom que ocorrera de Acarnenses para Cavaleiros,
Gomme admite (1996: 38-9) que ela se deu provavelmente porque a pea foi escrita logo
aps a captura de Pilos e isso gerava um otimismo na cidade. Mas ressalta que no
preciso se perguntar se Aristfanes mudou de opinio, mas somente se essa mudana de
tom na pea era algo provvel. Porm ele mesmo reconhece que o modo como se d a
apario dos cavaleiros jovens aristocratas seja algo digno de nota, devido sua
singularidade na obra de Aristfanes e por tal caracterizao ter sido feita de um modo
muito simptico. Deste modo, Gomme admite que pode ter havido uma aliana
extradramtica entre Aristfanes e os cavaleiros, porm, ainda assim, o estudioso no
acredita que saber deste fato afete a qualidade do trabalho e a nossa apreciao dele.
O autor problematiza algumas consideraes acerca de Aristfanes que so
consideradas senso comum em sua poca. Por exemplo, Gomme questiona a
generalizao feita pelos estudiosos de que o comedigrafo sempre enaltece em suas
comdias aquilo que est relacionado a um passado glorioso de Atenas, tanto no que diz
respeito ao modo como as pessoas viviam suas vidas, quanto no que concerne cultura
especificamente as manifestaes literrias e poltica. Sendo assim, para esses
estudiosos, Aristfanes eleva tudo que diz respeito ao tempo mais remoto de Atenas,
como a batalha de Maratona, os poetas mais antigos, como Frnico e squilo, e at mesmo
os polticos de outrora so melhores e mais nobres do que os demagogos e a nova gerao.
20
Mas essa , obviamente, uma viso genrica, que pode at mesmo dar conta das
peas, se no se levar em conta as suas especificidades, porm, deve-se notar que uma
obra de arte, como a comdia aristofnica, no est limitada a uma diviso maniquesta,
em que um lado est correto e o outro errado e, sendo assim, Gomme diz que algo muito
claro nas peas de Aristfanes (1996:34):
(...) a gerao mais velha, onde quer que ela aparea sendo
expressa como tal, quando descrita como aquela dos homens
corajosos de Maratona, est invariavelmente do lado errado ou so o
lado errado, o lado que Aristfanes est atacando. 22
Assim, vemos que, em Acarnenses, aqueles que se opem paz, e, portanto, a
Dicepolis, pertencem a uma gerao de velhos fazendeiros. Do mesmo modo, em
Cavaleiros, quando Cleo est prestes a ser atacado (vv.255-7), tem o suporte de uma
gerao mais velha23 e, em As Nuvens, no o pai representante da gerao mais velha
que consegue resolver os problemas financeiros da famlia, mas sim o filho
representante da nova gerao que, aps estudar no Pensatrio, sob a gide do mestre
Scrates, consegue resolver o problema financeiro de Estrepsades.24 Tambm em As
Vespas, encontramos os jurados, que gostam de Cleo, como representantes da gerao
mais velha. Filocleo, por exemplo, nos versos 269-70, recita versos de Frnico.
Esses exemplos deixam clara uma contradio que s existe para quem procura
ver Aristfanes como um poltico25, e no como artista. Portanto, se Aristfanes fosse um
poltico, argumenta Gomme, ele, que defende os valores tradicionais da plis e rechaa
aquilo que representa o novo, no deveria apresentar personagens simblicas dessa antiga
gerao como pertencentes ao lado politicamente repreensvel, menos ainda, poderia
22 Traduo minha. (...) the older generation, whenever they appear expressly as such, when. they are
described as brave old men of Marathon, are invariably on the wrong side or are the wrong side, the side
which Aristophanes is attacking. 23 Gomme, ao citar a passagem compreendida entre os versos 255-7, no menciona uma questo
fundamental para a compreenso do motivo que leva essa gerao antiga suportar Cleo: o demagogo os
chama de companheiros dos trs bolos ( , ), pois esses ancios
servem como dicastas no tribunal, recebendo essa quantia em dinheiro pelo servio. Tal pagamento foi
institudo por Cleo e, como se pode perceber mais amplamente discutido em As Vespas, Aristfanes critica
essa iniciativa, pois ela aumenta a possibilidade de manipulao nos julgamentos. 24 Gomme tambm no nota isso, mas necessrio ressaltar que os problemas financeiros de Estrepsades
so resolvidos sob um preo bem alto, pois, corrompido moralmente, agora Fidpides espanca o prprio pai
(vv.1303ss) e que a escola de onde ele retira essas lies, o Pensatrio, representa tambm a nova gerao
intelectual ateniense. 25 Aqui o termo poltico utilizado por Gomme como um sinnimo de um propagandista, que usava o
seu teatro para fins prticos (1996:32), o que coincide com a minha definio para conselhos prticos
cidade.
21
trazer solues criativas para os problemas da plis nas mos da nova gerao, como os
pensadores da casa de Scrates, por exemplo. Assim, quando Murray (1933:107) estranha
que Filocleo seja tratado com simpatia, Gomme diz que o estudioso no atentou ao fato
de que todas as personagens, se o comedigrafo quiser o sucesso de sua obra, devem ser
construdas com simpatia. E acrescenta (1996:32):
No claro que seja insustentvel a tese de que Aristfanes
era um conservador, um defensor das coisas antigas e, ao mesmo tempo,
um propagandista que usava o teatro para um fim prtico, quando a
gerao mais antiga est consistentemente do lado errado, quando ela
representa com regularidade o sistema ou a poltica contra a qual ele se
opunha?26
preciso notar, entretanto, que os exemplos citados por Gomme no contemplam,
at ento As Rs. Ademais, o estudioso ainda admite que possvel captar alguns dos
posicionamentos polticos do comedigrafo devido constante repetio de um mesmo
objeto em suas comdias, principalmente aqueles que esto fora do contexto. Por fim,
mesmo sem achar que seja importante para a leitura das peas saber qual era a opinio
pessoal de Aristfanes, Gomme, particularmente acerca de Lisstrata e As Rs aponta que
no h dvidas sobre a seriedade do desejo do comedigrafo em que haja paz e unio,
expresso nas parbases e nota que o contexto poltico influenciou no tom supostamente
srio dessas passagens (1996:41):
A posio desesperadora de Atenas naquela poca27 teria feito
qualquer um, at mesmo Aristfanes, tornar-se srio; e ele srio
apenas em pequenas passagens, especialmente n As Rs, nas quais suas
exortaes esto distantes do contexto da pea e parecem, portanto,
superficiais e sem inspirao, ao invs da sua escrita refinada.28
26 Traduo minha. Is it not clear that the view is untenable that Aristophanes was a conservative, an
upholder of older things, and at the same time a propagandist who used the theatre for a practical end, when
his older generation is consistently on the wrong side, when it regularly represents the system or the policy
to which he was opposed? 27 Em 405, ano em que As Rs foram encenadas, Atenas passava por um momento de perigo e de incertezas.
O exrcito espartano havia acampado na Deceleia, o que compelia os atenienses a viverem dentro dos
limites da cidade at o Pireu. Os atenienses, tentando ainda manter a superioridade de sua frota, venceram
a batalha de Arginusas no ano anterior, entretanto, houve mais prejuzos do que ganhos na ocasio. Mais
tarde, eles sentiram que foram iludidos por lderes que os coagiram a lutar na batalha que, de fato, mais os
fragilizou do ajudou. 28 Traduo minha. The desperate position of Athens by then would have made any one, even
Aristophanes, serious; and he is only serious for short passages, especially in Frogs, in which his
exhortations are remote from the context of the play and appear therefore perfunctory, in spite the fine
writing, and uninspired.
22
O estudo de Gomme muito importante, na medida em que o seu ceticismo
refora que Aristfanes, acima de tudo, era um poeta, no um orador ou um poltico; e
deveria abordar os temas em funo de suas comdias e do efeito que causaria em seu
pblico. Discordo, entretanto, de Gomme e concordo com Olson (2009: 47), nesse
sentido, que no porque Aristfanes seja um poeta que ele deva ser imparcial, pois a
ideia de que uma obra de arte deve ser algo imparcial contestvel.
Ademais, como demonstrarei ao longo deste estudo, as exortaes e menes a
indivduos nAs Rs no esto distantes do contexto da pea, como quer Gomme, mas, ao
contrrio, formam uma base para a escolha final de Dioniso.
Anos mais tarde, em 1982, Heath, apesar de utilizar-se do contexto poltico em
que Aristfanes est inserido como ponto de partida para a sua anlise e de no acreditar
na insignificncia da questo poltica o que o distancia, nesse aspecto, de Gomme ,
defende a tese de que a comdia aristofnica no poltica, no sentido de que tem o
objetivo de exercer alguma influncia sobre as decises tomadas na cidade.
evidente que, para o leitor moderno, que est to distante da poca de
Aristfanes, como estrangeiro que olha de fora o que restou de um espetculo, torna-se
muito difcil a compreenso de muitos dos textos. Mesmo onde seria possvel detectar
alguma aluso, segundo Heath, uma entonao diferente da esperada, que s se pode
perceber na performance, j seria suficiente para nos enganar. Ironia, fantasia e distores
podem significar uma barreira intransponvel queles que no so familiares com o
gnero e, eu acrescentaria, queles que no puderam assistir performance, como ns.
Para Heath, uma das formas de resgatar esses elementos perdidos seria buscar evidncias
sobre o poeta, sobre sua plateia e sobre o contexto histrico das peas analisadas, de modo
que se possa supor melhor qual tom seria esperado em cada momento.
Ele reconhece, entretanto, a dificuldade de se fazer essas inferncias e que, em
relao ao prprio texto aristofnico, preciso ter conscincia de que trata de uma obra
de arte. Aristfanes trabalha de modo a dialogar com a sua plateia, ora refletindo os seus
preconceitos, ora atendendo s suas expectativas. At mesmo os momentos de invectiva
contra a plateia devem ser interpretados de modo muito cuidadoso, pois podem ser apenas
piadas prprias do gnero cmico, que agradavam os espectadores, e no,
necessariamente, trazer alguma mensagem sria.
Para analisar essa questo da suposta seriedade de Aristfanes, Heath discute os
momentos em que a voz do poeta poderia ser reconhecida. Em Acarnenses, por exemplo,
23
isso acontece no momento em que o heri Dicepolis, afastando-se de sua persona
dramtica, identifica-se com o prprio poeta (vv.377-82), dizendo:
'
.
' 380
, '
.
Eu mesmo sei o que nas mos de Cleo sofri,
por causa da comdia do ano passado.29
Porque ele, levando-me ao tribunal, 380
caluniou-me e despejou sua lngua mentirosa sobre mim
e bradou qual Cicloboros e me xingou, tanto que por muito pouco
eu no fui destrudo nessa querela suja.30
Para Heath, preciso compreender que essa passagem no deve ser retirada do
seu contexto. Assim, o autor nota que a identificao entre Aristfanes e Dicepolis
feita em um momento em que o heri cmico est preparando-se para o seu discurso de
defesa diante de uma plateia hostil. Para isso, ele ir, em seguida, utilizar-se de recursos
euripidianos, para ludibriar o seu pblico. Heath, ento, acredita que essa identificao
entre poeta e personagem se d como uma desculpa para trazer a piada com Eurpides e
que no deve ser entendida como um indcio da seriedade do comedigrafo. Diz ainda
que, na continuidade do seu discurso (vv.440-45), Dicepolis admite que ir fazer de bobo
a sua plateia, o que, para Heath, anularia o intuito supostamente srio da referncia a
Cleo.31
Sobre o fato de o comedigrafo clamar para si o status de conselheiro da cidade
(vv.655-8), Heath, acredita que tudo no passe de uma grande brincadeira do
comedigrafo e que no significava que Aristfanes defendesse de fato uma poltica
pacifista. Assim, o autor pensa que esse papel de bom conselheiro da cidade algo de que
o comedigrafo se utiliza tipicamente na parbase,32 de modo a mostrar a sua excelncia
como poeta cmico.
29 Olson (2002: 173) diz tratar de uma referncia a Babilnios, comdia perdida de Aristfanes. 30 Traduo minha. 31 No irei discutir essa questo, mas no acredito que o fato de o discurso de Dicepolis voltar-se para um
tom mais jocoso, a partir das pardias euripidianas, invalide a seriedade da reclamao de Aristfanes aos
ataques feitos por Cleo, na ocasio da apresentao de Babilnios. Concordo com Olson (2002:xlvii-xlix)
que a identificao entre Dicepolis e Aristfanes deve ser vista com cautela e seja limitada pelas prprias
convenes da comdia, mas que, ainda em um certo nvel, exista. 32 A parbase uma estrutura formal da Comdia Antiga, no qual o coro dirige-se ao pblico, seja mantendo
a sua persona seja assumindo a persona do poeta. Possui nove estruturas formais: kommtion, anapestos,
24
Nas parbases, algo comum as invectivas dirigidas contra a plateia, mas Heath
pensa que mais interessante que sejam analisadas aquelas que acontecem fora dela.
preciso ressaltar que a plateia deveria gostar das zombarias dirigidas a ela e que essa
relao de desrespeito era j esperada, pelo riso que causaria. Uma exceo que o autor
aponta a essa tendncia geral justamente o caso da parbase d As Rs, que, no verso
698, aconselha os espectadores a trazerem de volta eles e seus pais que lutaram
batalhas no mar e pertencem mesma raa (
) e sejam perdoados, o que Heath interpreta como um conselho para que fossem
devolvidos os direitos aos participantes do golpe oligrquico de 411 a.C.
Excetuando essa situao, entretanto, o autor ainda acredita que haja esteretipos
e que s se pode assumir uma ligao entre essas referncias polticas e a realidade muito
superficialmente. At mesmo em relao ao fato de Aristfanes sempre defender os
valores tradicionais da cidade, Heath no acredita que a exaltao dos tempos de ouro e
das velhas condutas polticas, que so encontradas em diversas peas de Aristfanes, seja
uma crtica ao povo ateniense contemporneo a ele, mas apenas mais uma frmula, um
modo de arrancar o riso nos momentos oportunos.
Por fim, conclui que Aristfanes um autor poltico, na medida em que se utiliza
dos acontecimentos contemporneos a si para a construo de suas tramas, mas ao mesmo
tempo no o , na medida em que no espera que suas peas surtam algum efeito prtico
na vida da cidade.
O estudo de Heath importante, na medida em que, embora ctico acerca da
inteno poltica de Aristfanes, ele discute passagens em que esse aspecto poderia estar
presente. Mais do que isso, o fato de admitir a necessidade de se estudar tambm o
contexto histrico, literrio e poltico das obras de Aristfanes um avano em relao a
Gomme, pois acredito que esses elementos de fato possam enriquecer e aumentar a
capacidade de compreenso da obra aristofnica.
Silk (2002:303-4) concorda com a tese Heath de que as peas de Aristfanes no
tinham inteno poltica de apresentar conselhos prticos cidade. E, nesse sentido,
mesmo com alegao renitente nas obras aristofnicas de que comdia fala tambm aquilo
que srio, o autor pensa ser difcil acreditar em uma real seriedade da comdia, na
pnigos (que compem a chamada parte simples ou no composta) e a ode, epirrema, pnigos, antode e
antepirrema. Duarte (2000: 38) diz que tecnicamente, a parbase opera uma pausa na ao dramtica,
propiciando condies para que haja um avano temporal importante. (...) A pausa parabtica tambm diz
respeito aos atores, que dispem de mais tempo para trocas de mscaras e vestimentas.
25
medida em que h nela diversos paradoxos, nos quais as realidades podem ser
emblemticas e pretextos para as tramas (2002: 304) e as personagens aristofnicas e
suas aes esto distantes da realidade, dos horrores e problemas da Atenas
contempornea ao comedigrafo.
Assim, Silk admite que a comdia aristofnica tenha as suas animosidades e as
suas preferncias, sendo apresentadas de modo explcito, como o caso do ataque a
Scrates, n As Nuvens; a Cleo, sob o codinome de Paflagnio, em Cavaleiros, enquanto
que, de Acarnenses a Lisstrata, a paz triunfa sobre a guerra e nAs Rs a velha gerao
de squilo vence a nova gerao de Eurpides.
Falta, entretanto, consistncia entre esses pontos de vista e preciso verificar qual
a consequncia disso, no que diz respeito s escolhas polticas. Assim, o esprito e o
significado dessas animosidades e preferncias so muito disputados entre os
comentadores. Para alguns, Aristfanes (e outros poetas da Comdia Antiga) teria
simpatia implcita pelos oponentes dos democratas radicais, como Cleo;33 para outros, a
exaltao dos velhos e ureos tempos, representada por sua depreciao dos polticos
contemporneos, no nada mais do que um oportunismo cmico.34
Silk acredita que tanto os argumentos de Heath quanto os argumentos de
Henderson contenham falhas, embora sejam provocativos e tenham o seu valor. Isso se
d porque, embora discordem na concluso e no modo de se aproximar do objeto,
compartilham de uma srie de premissas, para ele, problemticas: 1) assumem que a
questo da seriedade em Aristfanes se d em relao s intenes do poeta (hostil,
maliciosa etc.), sendo que o que ns temos a comdia, e no as intenes dele. Nem
sempre as obras de arte correspondem necessariamente s intenes dos seus criadores.
2) as interpretaes das peas de Aristfanes e o seu apelo seriedade so feitas a partir
de fatores externos como o tratado do Velho Oligarca (Henderson); ou como
Aristfanes e Scrates so representados por Plato (Heath) ou o que Cleo ou a cidade
fez contra ou por Aristfanes (Henderson e Heath). Assim, Silk ressalta a necessidade de
serem observadas mais atentamente as prprias peas, ao invs de buscar evidncias fora
do texto. No caso de Henderson, nota Silk, h ainda um problema maior, que o fato de,
a partir do Velho Oligarca, ele assumir uma postura sobre Aristfanes e generaliz-la para
a toda a Comdia Antiga, sendo que, como se sabe, Aristfanes era apenas um
representante de uma pequena parte dela. 3) ambos estudiosos assumem que a seriedade
33 Silk refere-se queles que seguem os argumentos apresentados por Henderson (1996). 34 Conforme viso de Heath (1982).
26
algo mais valoroso do que a no seriedade. Eles podem estar certos ou no, isso depende
do que eles entendem por seriedade. 4) Apresentam a tendncia em assumir que
seriedade e humor esto sempre dissociados. Embora Henderson assuma que isso no
o caso, a sua diferenciao entre zombaria e xingamento (jesting and abuse), artstico
e poltico, pe isso em questo.35 5) Acima de tudo, eles falam sobre a seriedade sem a
preocupao de uma definio sobre o significado do termo, pois para eles, o que importa
saber se Aristfanes tem ou no tal seriedade.
Silk, por outro lado, acredita que o primeiro desafio do leitor moderno seja
compreender a noo de seriedade por si s. Aps discutir as diversas conotaes do
termo, em ingls, passa a analisar a seriedade da comdia aristofnica no que diz
respeito ao seu engajamento poltico.
Pensando, portanto, a obra aristofnica sob essa perspectiva, especificamente em
relao ao conselho que Aristfanes apresenta na parbase d As Rs, Silk acredita que
ele no tenha conexo nenhuma com o resto da pea. E afirma (2002: 317-8):
Em um sentido ordinrio (mesmo no ordinrio de Aristfanes) ele [o conselho] no extrapola a pea ou retoma nenhum
de seus temas, mas est (como, de fato, Heath apropriadamente insiste)
isolado dela: , em sentido imediato, gratuito.36
Para Silk, os estudiosos so impelidos a pensar enfaticamente a questo poltica
por causa dos prprios apelos de Aristfanes em suas comdias e tambm por causa das
fontes externas, como o Velho Oligarca e outros comentadores que salientam esse aspecto
da Comdia Antiga e, especialmente, de Aristfanes. Entretanto, para o autor, as
comdias de Aristfanes, politicamente srias ou no, no tm uma relao to
profunda com a poltica como os