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O arquivo vulnerado ou as ruínas da fotografia Maria Angélica Melendi Pompéia só esta em ruínas agora, depois que foi desenterrada. Freud Não se via quase nada, isto é: já se via algo além de um nada nesse quase. Via-se, portanto, de fato algo. Didi- Huberman O arquivo (Os arquivos mantém uma existência discreta. Por mais que os invoquemos, dia apos dia, por mais que se publiquem livros e catálogos sobre eles, eles permanecem silenciosos, quase ocultos nas suas moradas sombrias. Até que, de repente, algo acontece. O que acontece é sempre uma catástrofe: natural - inundação, incêndio, soterramento - ou provocada - vandalismo, descuido, roubo. Paradoxalmente o acidente tira o arquivo de sua inércia. Se, quando íntegro, vivia uma vida precária, agora que foi atingido, renasce cheio de honra, como um mutilado de guerra que não oculta suas feridas nem disfarça suas cicatrizes. O arquivo vulnerado parece

O Arquivo Vulnerado

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Roubo e recuperação de algumas fotos da Coleção do Imperador, D. Pedro II

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O arquivo vulnerado

O arquivo vulnerado ou as runas da fotografia

Maria Anglica Melendi

Pompia s esta em runas agora, depois que foi desenterrada.

Freud

No se via quase nada, isto : j se via algo alm de um nada nesse quase. Via-se, portanto, de fato algo.

Didi- HubermanO arquivo

(Os arquivos mantm uma existncia discreta. Por mais que os invoquemos, dia apos dia, por mais que se publiquem livros e catlogos sobre eles, eles permanecem silenciosos, quase ocultos nas suas moradas sombrias. At que, de repente, algo acontece. O que acontece sempre uma catstrofe: natural - inundao, incndio, soterramento - ou provocada - vandalismo, descuido, roubo. Paradoxalmente o acidente tira o arquivo de sua inrcia. Se, quando ntegro, vivia uma vida precria, agora que foi atingido, renasce cheio de honra, como um mutilado de guerra que no oculta suas feridas nem disfara suas cicatrizes. O arquivo vulnerado parece sempre estar mais vivo que o arquivo intocado: um arquivo ntegro e improvvel onde os rastros da memria perfilar-se-iam perfeitos e imveis, cada qual no seu lugar, na calma vigilante dos cemitrios.)

Em 1840, o abade Compte chega ao Rio de Janeiro onde faz alguns daguerretipos que oferece como presente ao Imperador. O fotgrafo francs no sabia que no s estava introduzindo a fotografia no Brasil, como despertando em D. Pedro II uma afeio que o levaria a comprar, em primeiro lugar, uma cmara de daguerreotipia e logo apos a iniciar uma vasta coleo de imagens fotogrficas.

Nos lbuns do Imperador, como num inventrio do universo, recolhiam-se fotos de escavaes arqueolgicas e estudos antropomtricos, retratos de homens famosos e de homens annimos, florestas, plantas e animais, cidades e monumentos, vistas areas e imagens da lua. A descoberta do Chac Mool em Yucatn e a viagem da famlia imperial ao Egito. La yerra nos pampas argentinos e a extrao de petrleo no Allegheny River. As pirmides de Sakkara, as velas de Argel, as torturas da China, as mulheres tatuadas e nuas de Madagascar. O Brasil desvelado pelos viajantes estrangeiros e pelos brasileiros: as cidades, as igrejas, as pontes, os navios; as fazendas e os mocambos, os escravos e os senhores.

Antes de partir para o exlio, aps a proclamao da Repblica em 1889, D. Pedro II doou sua biblioteca particular, a Coleo D. Thereza Christina Maria, Biblioteca Nacional.

Do museu flutuante da humanidade viva proposto por George Caitlin em 1850 ao museu imaginrio de Andr Malraux, 1947, passando pelo Bilderatlas de Aby Warburg, 1925, toda coleo de fotografias aponta claramente para o redimensionamento da experincia produzido pela reproduo tcnica, mas tambm, e sobretudo, um repertrio de imagens possveis, um arquivo do imaginrio, que elimina as fronteiras do espao e do tempo e consegue fazer vislumbrar o inventrio do mundo. O museu imaginrio, como queria Malraux, animado por uma dialtica arquivstica que prov meios para rearmar, com os fragmentos dispersos da tradio, uma metatradio global, um museu sem paredes cujo eixo organizador a famlia do homem. Nesse museu, as pastas dos frenologistas, os arquivos das penitencirias ou dos hospcios, os lbuns dos naturalistas, os lbuns dos viajantes, os lbuns da famlia convivem e proliferam.Kurt Forster sinaliza uma mudana gradual na ordem do arquivo e das funes mnemnicas da imagem fotogrfica que comea a se desenvolver desde meados dos anos 20 e culmina no final do sculo XX. A partir dessa data, o lcus e o topos do arquivo, a concretude material do arquivo como lugar de custdia e exibio (prdio, gavetas, pastas, fichas, fotografias, cartas, etc.) , comearam a se destacar como prticas da arte contempornea.

A preocupao de Rosngela Renn com o arquivo vem desde seus primeiros trabalhos. Tal vez, possamos encontrar sua possvel origem no Arquivo Universal, que Renn seleciona e organiza desde 1992, constitudo por textos de revistas e jornais que narram histrias ordinrias sobre gente e fotografia. Antes, porm, vinha utilizando negativos que provinham de arquivos familiares os da sua prpria famlia ou profissionais. A utilizao das imagens, restauradas e organizadas por ela mesma, do Arquivo da Acadepen, no Carandiru, a pe em contato com arquivos em runas onde o arquivado se desintegra e se anula.

Os lbuns de famlia que coleciona durante anos at montar a instalao biblioteca tambm conduzem a uma reflexo dolorosa. Tanto esforo, tanto amor para fazer as fotos, para montar o lbum e, no final, todas as imagens se confundem nas bancas empoeiradas de um mercado de pulgas. Esse amor pelos amores desprezados a faz se debruar sobre as fotografias esquecidas, descartadas. Sem ter uma conscincia clara disso, talvez Renn acredite, como Benjamin, que a aura acena pela ltima vez das s velhas fotografias, dos rostos annimos, das ruas desertas.

Nos ltimos anos, a artista envereda por trabalhos silenciosos, nos quais os arquivos so salvos por um gesto alternativo de reconhecimento ou de contra-memria, que prope novas ordens de associao afetiva, parcial e provisria. Nessas obras os arquivos privados esto a desafiar os pblicos, pois nas instituies se descortina e cresce uma ordem perversa que disturbar e carcome a ordem simblica.

O furto e a devoluo

Durante uma greve de funcionrios da Fundao Biblioteca Nacional, entre 2 de abril e 14 de julho de 2005, 946 peas, entre elas 751 fotografias, foram furtadas da Sala Alosio Magalhes, local conhecido como Diviso de Iconografia da FBN.

No havia sinal de arrombamento. Os autores do furto trabalharam com sutileza, escolhendo autores e temas, esvaziando lbuns, substituindo fotografias, para que o crime s fosse descoberto algum tempo depois. O inqurito criminal, de nmero 2005-510117385-5, ainda no foi concludo e os mentores do furto no foram punidos.

Alguns meses antes da greve e do furto, outro setor da FBN foi vtima de um golpe de outra natureza: do Laboratrio de Fotografia e Digitalizao da FBN foram furtados os principais discos rgidos dos computadores, nos quais vinham sendo arquivadas todas as reprodues digitais do acervo da Diviso de Iconografia. Da mesma maneira, nenhum vestgio foi deixado na cena do crime, os autores do furto no foram encontrados e ningum foi punido. Os dois crimes nunca foram oficialmente relacionados.

O livro, intitulado 2005-510117385-5, como o inqurito policial, contm as reprodues dos versos das 101 fotografias recuperadas, em tamanho real, ordenadas segundo a data de sua reinsero no acervo da Diviso de Iconografia da FBN.

O arquivo vulnerado, fatalmente ferido, foi, ento, reconhecido por todos. Todos os jornais, todas as revistas, todas as redes deram notcias do desaparecimento das fotos. A partir da ferida a Coleo D. Thereza Christina Maria passou a fazer parte do imaginrio brasileiro, abandonando a obscuridade das salas clausuradas. Passados quatro anos foram recuperadas exatamente 101 fotografias. Quem roubou as fotografias sabia exatamente o que estava roubando e por isso todas as marcas de registro patrimonial da FBN foram apagadas, as imagens foram descoladas dos seus suportes, rasgadas e mutiladas.

O livro

O livro de artista 2005-510117385-5, cujo ttulo o numero do inqurito criminal - ainda no concludo - instaurado para investigar o furto, contm as reprodues do reverso das 101 fotografias recuperadas, em tamanho real, ordenadas segundo a data de sua reinsero no acervo da Diviso de Iconografia da FBN. 2005-510117385-5 possui dois formatos: um deles, de tiragem limitada uma caixa forrada com couro natural onde as imagens esto em pranchas soltas de papel de algodo, e o outro um livro impresso em offset, com tiragem de 500 exemplares, para distribuio nas bibliotecas do pas.Alm das imagens, so poucas as informaes que encontramos nas pginas do livro; apenas a agrupao das imagens nos lotes em que foram devolvidas; a ordem e o elenco dos agentes das devolues. Esse inventrio no esclarece muita coisa. Afinal, quem so Rui Souza e Silva e Jos Luis de Sampaio? Como chegaram posse das fotografias? Porque as devolveram? Estiveram envolvidos no furto? Qual a procedncia das fotos entregues por Sedex, quem estava com as imagens devolvidas pelo Ministrio Pblico Federal e quem as entregou l, de onde arribaram as fotos entregues pela Delegacia de Represso a Crimes Contra o Meio Ambiente e o Patrimnio Histrico ou pela Procuradoria da Repblica do Estado do Rio de Janeiro? As perguntas persistem, no h respostas. Llia Berenice Noppi, que tambm devolveu um lote de fotografias, vende fotos velhas no Troca-Troca feira de usados da Praa XV.

Renn no est preocupada em propor solues, ela apenas apresenta os fatos. Das fotos recuperadas somente teremos o autor, o ttulo, a data e a imagem do verso da cpia. O avesso dessas fotografias no ser mais a placa sensvel, o negativo - origem para sempre perdida -, mas a plida superfcie manchada do verso do papel. O reverso da cpia que, destacada do seu lbum, da sua moldura, do seu passe-partout, no deixa ver nada ou quase nada. Temos, ento, a partir dos escassos dados que nos so oferecidos, imaginar o imaginvel.

As imagens colecionadas pelo imperador, sobreviventes de um tempo remoto, arquivadas por muitos anos na biblioteca republicana, recuperadas do furto, mutiladas, rasgadas, esto interditadas para nossa viso. Delas s nos resta uma imagem da materialidade do papel sobre o qual foram copiadas. O testemunho da existncia dessas fotografias reside somente na imagem fotogrfica desse suporte amarelado, rabiscado, manchado, rasgado. Muito tempo atrs, tinham sido depositadas sobre ele, por um sofisticado procedimento qumico, imagens de coisas que j no existem mais. Onde esto aqueles navios e como no Livro II da Ilada, o catlogo dos navios ressoa majestoso: Andrada, Aquidabam, Audaz, Cananea, Itaipu, Javary, Maraj, Meteoro, Orion, Sabino Vieira aqueles navios que lutaram na Guerra do Paraguai ou na Revolta da Armada? Existem ainda os lugares onde foram tomadas as vistas de Ouro Preto, de Rio de Janeiro, de Petrpolis, de So Paulo, de Bahia, de Pernambuco, de Paraba? Que resta das colheitas de caf e dos garimpos de diamantes, dos palcios, das fazendas, das bibliotecas, das pontes, das ilhas? Ainda existe a Urucurana (Hieronymia alchornioides) de 150 ps de altura, cujos frutos se usam como redes de pescar?

Se algo ou algum morre realmente quando morre a ltima pessoa que lembra dele, morre definitivamente quando desaparece sua ltima imagem fotografada. Tudo isso navios e cidades, paisagens e rvores, escravos e lavradores, princesas e imperadores perderam-se no esquecimento. Renn indaga a fotografia, o arquivo e a memria e os confronta com a sua prpria finitude. Em muitos dos seus trabalhos - Realismo fantstico, Cicatriz, Vulgo, Apagamentos -, a artista ressignifica arquivos descartados por desdia ou por esquecimento. Os novos arquivos Realismo fantstico, Cicatriz, Vulgo, Apagamentos -, so obras de arte instveis, efmeras, parciais, incompletas.

2005-510117385-5 tambm um arquivo. Mltiplo e disseminado, mas tambm instvel, efmero, parcial, incompleto, o livro conserva e propaga as devolues do acervo furtado, mas as nega visibilidade ordinria. 2005-510117385-5 um livro que um arquivo que se constitui como um monumento perecvel, (mas no so todos os monumentos e todos os documentos perecveis?) um monumento que denuncia, pelo avesso, o atrabilirio do roubo e o irremedivel da perda.A fotografia (o avesso da fotografia) fora do arquivoUma fotografia encontrada na Sala Alosio Magalhes, do acervo da Diviso de Iconografia da FBN, com as margens mutiladas pelos autores do furto, na terceira semana do ms de julho de 2005.

Henschel & Benque

Fazenda da Cachoeira

Coleo D. Thereza Christina Maria

A fotografia esquecida pelos ladres. a maior de todas: no cabe na pgina do livro. Vemos uma superfcie ocre plido, manchada pelo tempo e rasgada nas bordas, com a etiqueta da Coleo D. Thereza Christina Maria ainda aderida. Vmse algumas anotaes feitas com lpis: + diap digit, no canto superior esquerdo; no inferior: una inscrio cortada ... 69 AA e Fazenda da Cachoeira. No canto inferior direito, tambm cortada: CEH... e embaixo FOTOS- ArmQuatorze fotografias devolvidas direta e pessoalmente Diviso de Iconografia da FBN, por Llia Berenice Noppi, em 23 de maro de 2007.

Escolhemos uma. Os ngulos superiores da fotografia esto cortados, no lado direito da imagem aparece uma inscrio manuscrita Ferrez, M., o que confirma a identificao completa na pgina ao lado: Marc Ferrez: Apprendiz Marinheiro

[Navios da Marinha de Guerra e Mercante do Brasil, 189?]

Na foto, no verso da foto, no vemos quase nada alm dessa anotao feita a lpis sobre o papel amarelado, umas poucas manchas do tempo, algumas sombras. Mas guiados pelas misteriosas palavras Apprendiz Marinheiro procuramos algo mais naquela imagem a imagem do verso de uma foto algo que faa sentido. E assim, porque acreditamos que veremos algo conseguimos criar a partir das sombras. Como se olhssemos num daguerretipo, movimentamos na tela do computador a pgina do livro, buscamos a imagem que no est, que no deveria estar, at conseguir organizar as manchas, o arquiplago de manchas, numa figura.

Vemos, ento, conseguimos ver um navio: a proa, os altos mastros, as redes, as bandeirolas, os marinheiros no convs. Vemos, ento, a sombra de um navio, um espectro plido que emerge do papel da tela de cristal lquido mas que logo comea a se afundar, a ser, outra vez, mais uma sombra, mais uma mancha no mar da pgina.

Renn sabe que as fotos so signos que no prosperam bem, que 'coalham' como o leite. Seja o que for o que ela d a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto sempre invisvel: no ela o que vemos. A dificuldade de acomodar a vista fotografia provem dessa aderncia do referente. Assim, como numa janela ou num espelho, a fotografia desaparece.Em princpio, tudo o que se apresenta como uma exibio, como um espetculo adquire o estatuto da fico. Mas a fotografia, ao se constituir como uma prova do real, desmente a ficcionalidade e oferece sempre um "a mais" de experincia esttica. A fotografia fornece uma prova de existncia. Porem a fotografia mente, porque o que se v na fotografia no a verdade, seno a reiterao de um cdigo cultural. Cada uma das infinitas fotos tiradas a cada instante reproduz interminavelmente os modelos dados. Assim, quanto mais simples, quanto menos "artstica" for uma foto, mais se aproximar de certa inocncia ou autenticidade da viso. O mesmo acontecer com as fotos cientficas, identificatrias ou classificatrias do passado que, no tendo nenhuma pretenso artstica, alcanam o estatuto da arte, na medida em que vm evaporar-se o sentido primeiro de determinar identidades, criar categorias e estabelecer tipos, classes e subclasses.

Nos ltimos anos, com o proliferar da fotografia digital, as fotografias vernculas descobrem o poder evocativo de sua incompletude e se contaminam em prticas hbridas que atravessam os campos da arte e da literatura contempornea. Escritores como Winifried Sebald e Paul Auster ou artistas como Sophie Calle, Christian Boltansky, Gerahrdt Richter, Hans Peter Feldman e Rosngela Renn, aproximam, intercalam, substituem imagens fotogrficas e textos. As fotos no mais subsistem como provas nem como testemunhos ou constataes. Esto l, onde se espera que estejam: na pgina, no livro, na parede; mas apontam para um alm espectral, ao mesmo tempo longe e perto desse lugar e desse tempo no qual se materializam ou se atualizam.

No livro 2005-510117385-5, os fantasmas que aparecem no reverso das fotos imagens produzidas pelo tempo, pelo procedimento qumico, pelo descolamento do suporte, pelo enfraquecimento da folha de papel alcanam, provavelmente, a aura que tantas imagens perderam. A apario nica de uma coisa distante por mais perto que ela esteja, a descrio de Benjamin impregna essas imagens que o trnsito, o arquivamento, o furto, a devoluo e finalmente, o ingresso precrio no livro rasuraram uma e outra vez. Cada uma dessas passagens apagou alguma coisa dessas imagens e contribuiu para lan-las no comum olvido. A cobia de alguns e o medo da lei resgataram uma possvel existncia; o trabalho de Renn as devolve ao convvio sem lhes restaurar nada. Ou apenas uma coisa: sua materialidade, e o faz exibindo o avesso, o que nunca seria visto, o que no vale nada, o que se perde no trnsito e na translao. O que desaparece na foto digital.

Nesse processo, a artista no somente amplia as possibilidades de ver o que pode ser visto, mas denuncia a existncia de mais um desaparecimento, o do suporte material da imagem e explicita, por outro lado, a dialtica que flui entre a fotografia qumica e a opacidade do papel que a suporta. Nesse confronto, a imagem de prata persiste, impregna o papel, o vara, o contamina, o corrompe. Um fora de campo que afeta o espao da enunciao e o estende alm dos seus limites.

A fotografia - o avesso da fotografia est nesse fora de campo, nesse fora da imagem que a artista nos oferece no seu livro. Um estar sem estar, pois no todas as fotografias permitem decifrar o que se esconde no arquiplago de sombras, que um estar no verbo, na palavra, na legenda que reconstri a imagem e mostra.

Assim, como os navios que no mais existem, como a fazenda que h muito tempo foi loteada, as fotos que o imperador colecionou no esto mais onde deviam estar. Elas aparecem, porm, neste livro. Mculas e sombras que aparecem como aparece o rosto de Cristo no sudrio de Turim , ressuscitadas pelo trabalho da artista que, a pesar de tudo deixa insaciado o nosso desejo de ver o que no pode , nem deve, ser visto outra vez.

As runas da fotografia

O lanamento do livro 2005-510117385-5 foi noticiado em reportagens e matrias variadas nos jornais, revistas e televiso do eixo Rio / So Paulo. Numa delas se informava que uma foto de Marc Ferrez poderia chegar a custar trinta mil reais. Esse dado, e a nfase dada pela mdia, deram ao furto tal vez se explique a preocupao pelos repetidos ataques ao patrimnio durante os ltimos anos aos acervos patrimoniais: Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo do Itamaraty, Museu Chcara do Cu, no Rio de Janeiro, o MASP e o Museu do Ipiranga, entre outros, foram invadidos na primeira dcada deste sculo.

um livro sobre o furto das fotografias e no sobre fotografias declara a artista numa das tantas entrevistas. Ela no quer, disse, mostrar a imagem por respeito ao fotgrafo que a fez, seu objetivo seria focalizar a fragilidade do objeto, da coleo e do patrimnio. O paradoxo que a fotografia, roubada e devolvida, de novo furtada por Renn que, ao nos oferecer o verso da foto, escamoteia a imagem, a interdita e, praticamente, a faz desaparecer.

Um arquivo de palavras e de manchas, algumas imagens precrias, resduos, restos, rasgos, rasuras. O que a artista coloca no livro so as runas das fotografias devolvidas. Vrios jornalistas no aceitaram ou no quiseram reproduzir as imagens do livro e foram atrs das imagens fotogrficas guardadas no setor de restauro da Biblioteca. Ao mostrar a fotografia, os reprteres no quiseram acreditar ou no entenderam o entenderam bem demais que, outra vez, as fotos estavam sendo subtradas.

Se, para quem comprou as fotos roubadas, elas eram fetiches, peas que faltavam na sua coleo, para ns as imagens que aparecem em 2005-510117385-5 so relquias. Como aquele leno que enxugou aquele sangue, como a carta com letras borradas pelas lgrimas, esses papis que vemos reproduzidos no livro, amarelados, manchados, rasgados, falam mais de existncia que de desapario. Argnteos cadveres ainda insepultos, que sobrevivem num limite entre a memria e a amnsia, so os ltimos testemunhos materiais de um imaginrio, de uma tcnica, de uma era. Tal vez a runa da fotografia seja tambm a runa da modernidade.

Nas pginas da Web encontramos o site de Vintageworks Fine Photography, 19th and 20th and 21st-Century Photography Masterworks, uma empresa norte-americana que comercializa imagens vintage ou seja copias fotogrficas feitas no tempo em que a fotografia tomada.

Ao procurar nos seus arquivos descobrimos uma foto de autor annimo; Mulher argelina com trs crianas, de c1880, a imagem e a cpia. O site nos da a descrio: uma mulher velada sentada num tapete rodeada pelos seus trs filhos. Os dois meninos dormem (uma nfora entre eles), a filha mais velha olha distancia. As figures esto envoltas em panos, as crianas se apiam na me que est no centro da imagem numa agradvel composio piramidal como as usadas na pintura. A fotografia uma cpia de albmen de um negativo de vidro mido, de 95 x 133 mm) Uma dobra que cruza a borda inferior e uma pequena gota no meio podem ser facilmente reparadas. O preo de US$250,00.

Uma carte de visite de Julia Margaret Cameron - Summer Days (May Prinsep, Freddy Gould, Lizzie Koewen, Mary Ryan) custa US$25000,00. A foto tirada em 1866 e copiada em c1870 no Reino Unido. A minscula cpia de albmen (83 x 57 mm) descrita como sendo muito refinada e escura com o largo borde dourado que lhe caracterstico. Destaca-se que uma cpia dessa imagem no mesmo tamanho foi vendida por mais US$23, 000 na Sotheby's London, em Maio de 1999.

Poderamos multiplicar os exemplos deste mercado afluente, mas o que nos interessa a procura pela materialidade da foto, por seus caracteres fsicos, a preciso dos materiais, os estragos do tempo, as possibilidades de restauro. Entre o fetiche e a relquia, as velhas fotografias persistem como mquinas de imaginar. Dispositivos de sonhos sobre os que se desencadeiam histrias no narradas, contos perdidos. Relquias redobradas, pois se o que resta a deposio de prata nas sombras da imagem, essa prata o resduo da luz que iluminou ou no os corpos ausentes. So tambm relquia de elas mesmas, das mos que arranjaram a composio piramidal como as usadas na pintura, dos dedos que apertaram o disparador e revelaram o negativo.

Annimos ou no, o obscuro fotgrafo e a triste mulher argelina existiram como existiram os dias de vero e Julia Margaret Cameron e seus belos amigos. Mas tambm desapareceram, ou esto prestes a desaparecer, a no ser que...

Rosangela Renn faz tambm desaparecer as fotos roubadas e devolvidas, e na sua rasura nos perdemos, pois percebemos que delas no sabemos nada. Na Srie Vermelha podemos perceber uma herana de sangue, em Imemorial nos aproximamos da histria de excluses que define nossa modernidade tardia e que nos define, Biblioteca nos aproxima de nossas genealogias arruinadas.

As fotos roubadas no podem ser evocadas, porque no fazem parte de nosso museu imaginrio. Quanto sabemos da Guerra do Paraguai ou da Revolta da Armada? Ate que ponto temos imagens mentais como quem diz repertrio visual das lavouras de caf, dos garimpos de diamantes, das rvores da Amaznia? Por isso a surpresa, por isso a rasura dupla, por isso o roubo, ningum se lembrava dessas fotos nem desses eventos: um arrasto contra a memria, disse Renn.

O livro, ento, espcie de arquivo finito de fotografias latentes, traduzidas em palavras e em mculas, no devolve o que perdemos, mas fala de perdas. O livro no lastima e denuncia apenas a perda das mais de 700 fotografias do acervo da FBN, mas tambm a desapario da velha fotografia argntea, dos negativos, dos papis de fibra, daquelas tcnicas de cpia e revelao que se podiam fazer (ainda podem) num quartinho nos fundos da casa ou no laboratrio improvisado no banheiro. De tudo isso a artista tinha falado em A ltima foto, de tudo isso continua a falar, do esquecimento, da runa, da morte, em fim, do tempo perdido. Herkenhof. 224-240

Renn, 1997. p.159.

Barthes, 1984. p.16.

(Dubois, 195.)

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