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Setembro, 2011 Tese de Doutoramento em Filosofia Especialidade em Ontologia e Filosofia da Natureza Identidade e Vida em Virginia Woolf Uma Análise da Expressão Literária de um Problema Filosófico Nuno Miguel Marques da Silva

Nuno Miguel Marques da Silva - run.unl.pt£o definitiva PHD em... · Nuno Miguel Marques da Silva Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau

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  • Setembro, 2011

    Tese de Doutoramento em Filosofia

    Especialidade em Ontologia e Filosofia da Natureza

    Identidade e Vida em Virginia Woolf

    Uma Anlise da Expresso Literria de um Problema Filosfico

    Nuno Miguel Marques da Silva

  • Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessrios obteno do grau de Doutor em

    Filosofia (especialidade Ontologia e Filosofia da Natureza), realizada sob a orientao cientfica

    do Professor Doutor Mrio Jorge Pereira de Almeida Carvalho

    Apoio financeiro da FCT e do FSE no mbito do III Quadro Comunitrio de Apoio.

  • Em memria deDaniel Josu

  • Os agradecimentos profundos tm qualquer coisa de definitivo naquele que agradece; derivam de algo que se inscreve para sempre em ns, faz parte de ns e jamais se pode apagar (e muito dificilmente passvel de ser reproduzido em palavras). Nesse sentido, com enorme dificuldade que procuro os adjectivos que possam expressar toda a gratido que tenho para com o Professor Doutor Mrio Jorge de Carvalho, sob cuja orientao se desenvolveu esta tese. Abstenho-me de o fazer e remeto para o silncio onde essa gratido completa.

    Ao longo dos anos em que este trabalho se foi desenvolvendo, foram muitos os nomes que por ele passaram e que, de forma indirecta, contribuiram em muito para o seu resultado. Alguns foroso dizer, outros foroso ocultar. Mas, em particular, quero evocar o Diogo Alvim, o Thierry Decottignies, a Snia Teixeira, a minha me, o meu pai e, sobretudo, aquele que me deu a conhecer V. Woolf: Daniel Josu.

    FCT agradeo o co-financiamento que tornou possvel este trabalho. Resta-me ainda um obrigado Fundao Calouste Gulbenkian pelo apoio

    financeiro que me permitiu proceder recolha de elementos bibliogrficos na Staatsbibliothek zu Berlin.

  • RESUMO

    Identidade e Vida em Virginia Woolf Uma Anlise da Expresso Literria de um Problema Filosfico

    Nuno Marques da Silva

    PALAVRAS-CHAVE: V.Woolf, Leibniz, Bergson, Identidade, Identidade Pessoal, Experincia, Significado, Mnada, Totalidade, Pars Totalis, Smbolo, Narrativa, Fico, Elegia, Personagem, Biografia, Momento de Ser, Momento de Viso.

    Esta dissertao tenta fazer uma anlise filosfica do problema da Identidade e da Vida no pensamento de Virginia Woolf. Situa-se no cruzamento entre as estruturas do conceito, prprias da filosofia, e as estruturas do significado, prprias da literatura. O que se procura determinar at que ponto possvel encontrar no pensamento de Woolf qualquer coisa como uma ontologia literria e, em especial, uma ontologia que leve a cabo o projecto filosfico de captao da identidade das coisas.

    Na introduo, desenha-se o percurso geral do problema a partir dos cortes e continuidades entre as diferentes formas de olhar para o problema do territrio da identidade. Comeamos por analisar como que o ponto de vista natural tem sempre j constituda uma compreenso da identidade: uma rede de identidades e diferenas das coisas. Em seguida, considera-se o modo como o ponto de vista cientfico se afasta da perspectiva natural, mas ao mesmo tempo mantm a mesma estrutura fundamental de reconhecimento das coisas. Em terceiro lugar, considera-se o ponto de vista filosfico, enquanto ponto de vista crtico, que assume a tarefa de detectar os equvocos e inconsistncias das outras formas de olhar para a identidade das coisas. Foca-se em especial o complexo de problemas que enfrenta e o facto de no conseguir levar inteiramente a cabo o projecto de dizer a identidade das coisas. aqui que entra em cena o ponto de vista literrio, enquanto ponto de vista que lida com significados e que pode completar o projecto filosfico.

    Na primeira parte, em dilogo entre a tradio filosfica sobre a questo da mnada (em especial Leibniz) e o pensamento de Woolf, procura-se traar o territrio da identidade prpria, da identidade mondica, determinar quais so as suas fronteiras e o que fica para l delas. O que constitui a identidade mondica , por um lado, ser uma nfima parte no meio de tudo o mais e, por outro, ser j esse mais de que se diferencia, de tal forma que a sua identidade prpria se atravessa em tudo o mais, omni-englobante e tem o carcter daquilo a que Leibniz chama pars totalis. Neste sentido, procura-se determinar as diferentes formas em que a identidade se atravessa no mundo, nos outros e no tempo.

    Na segunda parte, analisa-se a forma como se acha constitudo o acesso identidade. Estuda-se o problema da distncia da pars totalis em relao a si mesma, a diferena woolfiana entre being e non being, o duplo carcter da experincia enquanto experincia dos factos e experincia do significado e o acontecimento da mnada como totalidade de significado em demanda de si.

    Na terceira parte, considera-se a forma como o nosso olhar (e tudo isso a que chamamos realidade) est constitutivamente atravessado por contedos de fico. A partir daqui procura-se perceber at que ponto a nossa viso habitual semelhante

  • narrativa ficcional e se ou no possvel constituir qualquer coisa como uma biografia integral, i.e., se ou no possvel dizer a vida (a totalidade da vida).

    ABSTRACT

    Identity and Life in Virginia Woolf An Analysis of the Literary Expression of a Philosophical Problem

    Nuno Marques da Silva

    KEYWORDS: V. Woolf, Leibniz, Bergson, Identity, Difference, Personal Identity, Experience, Meaning, Monad, Totality, Pars Totalis, Symbol, Narrative, Fiction, Elegy, Character, Biography, Moment of Being, Moment of Vision.

    This dissertation aims at performing a philosophical analysis of the Identity and Life problem in Virginia Woolfs thinking. It is situated at the crossroads between concept structures, typical of philosophy, and meaning structures, typical of literature. What we try to determine is to what extent one can find something like a literary ontology in Woolfs thinking and, in particular, an ontology accomplishing the philosophical project of capturing the identity of things.

    The introduction includes a description of the problems general trajectory, starting with the interruptions and continuities between the different ways of looking at the problem of the territory of identity. We start by analysing how the natural viewpoint always contains an understanding of identity already constituted: a network of identities and differences between things. We then consider how the scientific viewpoint distances itself from the natural one, although at the same time maintaining the same fundamental structure for recognising things. Thirdly, we consider the philosophical viewpoint as a critical viewpoint, which takes on the task of detecting the ambiguities and inconsistencies of the other ways of looking at the identity of things. We focus in particular on the set of problems it faces and the fact that it does not manage to entirely accomplish the project of describing the identity of things. It is here that the literary viewpoint enters on stage, in that it is a viewpoint that deals with meanings and is able to complement the philosophical project.

    In the first part, in a dialogue between the philosophical tradition regarding the monad question (especially Leibniz) and Woolfs thinking, we try to outline the territory of ones identity or monadic identity, and determine its frontiers and what lies beyond them. What constitutes monadic identity is, on the one hand, being a tiny part in the midst of everything else and, on the other, being already that else from which one differentiates oneself, in such a way that ones own identity is come across in everything else, is all-encompassing and has the character of what Leibniz calls pars totalis. In this context, we try to determine the different ways in which identity is come across in the world, in others and in time.

    In the second part, we analyse the form in which the access to identity is constituted. We study the problem of the distance that separates the pars totalis from itself, the Woolfian difference between being and non being, the double character of experience as experience of facts and experience of meaning and the occurrence of the monad as a totality of meaning in search of itself.

  • In the third part, we consider how our seeing (and everything we call reality) is constitutively traversed by fictional contents. Starting from here we try to understand to what extent our habitual vision is like fictional narrative and if it is possible or not to constitute something like a complete biography, i.e., if it is possible or not to describe life (the totality of life).

  • Abreviaturas

    The Voyage Out VO

    Night and Day ND

    Jacobs Room JR

    Mrs Dalloway MD

    To the Lighthouse TL

    Orlando O

    A Room of Ones Own ROO

    The Waves W

    The Years Y

    Three Guineas TG

    Roger Fry RF

    Between the Acts BA

    The Common Reader CR

    The Diary of Virginia Woolf, (vol.1-5) Diary

    Moments of Being MB

    The Essays of Virginia Woolf, (vol.1-5) Essays

    The Captains Death Bed and Other Essays CDB

    Virginia Woolf The Waves: The Two Holograph Draft HD Waves

    Virginia Woolf Jacobs Room: The Holograph Draft HD Jacobs Room

    A Haunted House: The Complete Shorter Fiction SF

    The Death of the Moth and Other Essays DM

    Granite and Rainbow GR

  • INTRODUO

  • 1 A evidncia natural da identidade das coisas

    Each tense, said Neville, means differently. There is an order in this world;

    there are distinctions, there are differences in this world, upon whose verge I step. For

    this is only a beginning. (W, 14)

    1.1 O tecido da apresentao e a trama base de identidades e diferenas

    A vida apresenta-se como um tecido em cuja composio se evidenciam

    multiplicidades. A prpria marcao destas multiplicidades resulta de qualquer coisa

    como uma estrutura de identidade e diferena que se encontra na base de tudo aquilo

    que se distingue. Assim, a estrutura de identidade e diferena aquilo que nos permite

    falar da identidade de si, da identidade do outro, da identidade de tudo o que nos rodeia.

    Esta mesma estrutura manifesta-se como uma evidncia no nosso ponto de vista

    evidncia essa que natural, porque lhe inerente, i.e., porque diz respeito ao modo

    como a prpria apresentao que se tem sempre j se acha constituda sobre a base de

    uma estrutura de identidades e diferenas. Como refere Neville em The Waves, existem

    na nossa apresentao distines e diferenas que nos permitem reconhecer uma

    ordem no mundo em que damos connosco. A apresentao do tecido da vida assenta,

    assim, na estrutura fundamental de um regime de identidade e diferena, de distino de

    identidades, sendo tal estrutura aquilo que nos permite reconhecer uma ordem na

    multiplicidade e, consequentemente, aquilo que permite tambm uma organizao e

    orientao natural do ponto de vista no meio daquilo que h. Deste modo, a identidade

    algo cujo reconhecimento no se manifesta naturalmente como um problema, porque

    aquilo que constitutivamente permite uma orientao no tecido da apresentao da vida.

    A estrutura de identidade e diferena uma estrutura omnipresente tudo se

    encontra enquadrado nesta forma de orientao do ponto de vista, tudo se encontra

    claramente vincado por esta forma de apresentao. Podemos mesmo dizer que existe

    uma correlatividade e inseparabilidade nuclear entre a identidade e a diferena. No h

    identidade sem diferena nem diferena sem identidade. Sempre que est em causa uma

    identidade, a fixao dessa identidade est constitutivamente referida diferena (ou a

    diferenas), recorre a este operador, assenta nele. Inversamente, sempre que est em

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  • causa uma diferena, a fixao dessa diferena est constitutivamente referida

    identidade (ou a identidades), recorre a este operador, assenta nele. A identidade e a

    diferena pressupem-se reciprocamente. A diferena aquilo que nos permite falar de

    identidade e, correlativamente, a identidade aquilo que nos permite falar de diferena.

    Neste sentido, a identidade no tem primazia ontolgica sobre a diferena (-lhe

    correlativa nuclearmente). S podemos pensar a identidade atravs da diferena (no

    podendo a diferena ser pensada em si mesma) e s podemos pensar a diferena pela

    identidade (no podendo a identidade ser pensada em si mesma). No podemos falar de

    identidade se no existir um mecanismo de contraste entre identidades, nem podemos

    falar de diferena se no existir, de cada vez, um territrio demarcado em relao a

    outros onde a diferena ganhe corpo. A estrutura em causa implica por isso, na sua

    base, a marcao de contrastes, de diferenas, sendo essa mesma marcao correlativa

    da fixao de identidades: a identidade de A diferente da identidade de B e diferente

    da identidade de C. Neste sentido, a diferena ope, separa, distingue e, nisso,

    identifica, porque circunscreve um territrio especfico e prprio da identidade (das

    identidades que ope). Ou seja, apenas existe o diferente porque, simultaneamente,

    existe circunscrio do prprio. Da que a diferena seja correlativa da identidade e

    vice-versa, no apenas porque B, C e D se situam fora do territrio de A, mas tambm

    porque o prprio A no se define pura e simplesmente a partir de si mesmo, em relao

    consigo mesmo e com nada mais para alm de si. Quer dizer, poderia pensar-se que a

    identidade se constitui s por si, independentemente de qualquer relao com o

    diferente (i.e., independentemente da diferena). Nessa ptica, cada identidade de um A

    consigo estaria constituda na esfera de A. E a diferena teria, por assim dizer, um

    carcter superveniente e s entraria em cena com a entrada em cena de um B, de um C,

    de um D, etc.1 Em suma, se assim se pode dizer, a diferena teria um carcter como que

    comparativo e s se estabeleceria com base na identidade. Mas na forma como est

    montada a apresentao de que dispomos no isso que se passa. A prpria

    identidade est constituda de tal modo que tem no seu cerne a demarcao em relao

    esfera do outro-que-no-ela quer dizer, a diferena. Cada identidade passa

    centralmente pela marcao dessa oposio a tudo o mais por esse efeito de excluso

    1 O mesmo se passaria na relao inversa, a partir de B, a partir de C, etc. B constituir-se-ia s por si e assim tambm C e s a partir dessa constituio primria, na sua prpria esfera, constituiria a diferena em relao a A ou a B, etc.

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  • total, afirmando a sua irredutibilidade a tudo o mais (i.e., ao que quer que seja). Por

    outras palavras, a diferena encontra-se no ncleo da prpria identidade.

    devido a este duplo estatuto inalienvel da diferena que se pode falar em

    multiplicidades, i.e., identidades que se distinguem entre si pelo facto de que cada

    identidade tem uma espcie de territrio que se distingue em si e que, por isso, pode

    contrastar com tudo o mais.

    1.2 A multiplicidade de diferenas externas entre identidades e a

    multiplicidade de diferenas internas na identidade

    Reconhecemos desta forma o modo como se d o apresentado no tecido da

    apresentao em multiplicidades, i.e., em identidades cujos territrios se diferenciam

    entre si e em si mesmos. E isto assim na evidncia natural que temos dessa mesma

    multiplicidade. O regime de identidade e diferena , portanto, extensvel a todo o

    tecido da apresentao em que estamos constitudos e aplicvel a tudo o que est

    articulado em contrastes territoriais, estejamos ns a falar do contraste entre o livro e

    a estante, a porta e a casa, o azul e o amarelo, a noite e o dia, a tristeza e a alegria, o

    presente e o passado, etc. A tudo transversal o regime estrutural de identidade e

    diferena. H como que uma solidez na fixao de cada um destes territrios das

    identidades que se destacam e apresentam no seu contraste com as outras. Quer dizer, h

    uma impenetrabilidade e impermeabilidade que distingue a identidade do que quer

    que seja e que envolve estruturalmente a marcao de diferenas e, assim, domina toda

    a fixao do teor daquilo que nos aparece.

    Mas a multiplicidade em que se constitui a apresentao de que dispomos, na

    sua evidncia natural, essa multiplicidade montada sobre a base estrutural da identidade

    e da diferena, no diz meramente respeito marcao de um contraste exterior entre as

    diferentes identidades. Ou seja, a diferena no se reduz ao contraste entre a cadeira e a

    mesa, entre o livro e o candeeiro, entre o passado e o presente, entre a alegria e a

    tristeza, etc. A estrutura de identidade e diferena ainda mais complexa. Pois as

    prprias coisas que assim esto organizadas numa rede de identidades e diferenas

    correspondentes organizao da sua multiplicidade (v.g., da multiplicidade mesa,

    livros, estantes, cadeiras, paredes, cho, etc.) envolvem, por sua vez, tambm uma

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  • multiplicidade de diferenas (uma rede de identidades e diferenas) internas. O que isto

    significa que qualquer identidade do tipo anteriormente referido (mesa, livro, etc.) se

    encontra internamente marcada por uma multiplicidade. Ou seja, a diferena (um

    complexo de identidades e diferenas) constitui-se no apenas externamente (na sua

    relao com as outras coisas ou as outras identidades nesse sentido), mas tambm

    internamente (na sua relao com a prpria multiplicidade que a constitui). Por

    exemplo, ao olhar para um livro, na sua aparente simplicidade, reconheo que este

    composto por uma multiplicidade interna de diferenas e identidades; o livro tem folhas,

    as folhas so compostas por um material especfico, tm palavras impressas, tm cor,

    peso, cheiro, textura, etc. Ou seja, o livro no se encontra sujeito apenas a esta trama de

    identidade e diferena externa (que o diferencia daquilo que o rodeia). Acontece antes

    que tambm h uma trama de identidade e diferena que pode ser j identificada no

    interior do prprio livro onde cada parte e cada determinao constitutiva do livro

    afirma a sua identidade e a sua diferena relativamente s outras. Assim, a trama que

    constitui o tecido da apresentao de que dispomos, na sua estrutura de identidade e

    diferena que nos permite reconhecer multiplicidades, evidente no apenas nas

    diferenas exteriores entre as coisas, mas dentro das prprias coisas. E isto de tal

    forma que, se avanarmos na multiplicidade interna das identidades correspondentes s

    diferentes coisas, podemos reconhecer essa trama como sendo cada vez mais fina. Ao

    destacarmos a folha do livro percebemos que internamente a prpria folha implica ainda

    esta trama de identidade e diferena nela destacamos, por exemplo, as duas superfcies

    maiores, as outras superfcies que perfazem a superfcie externa do slido que a

    folha, aquilo que preenche o seu interior, diferentes palavras numa das superfcies

    impressas, etc. Se destacarmos ainda a identidade de uma palavra, percebemos que esta

    composta por diferentes letras (a trama torna-se cada vez mais fina). Se focarmos o

    interior de cada letra impressa apercebemo-nos de que esta ainda uma mancha de cor

    na qual podemos identificar diferentes momentos da sua apresentao. E basta ampliar

    com uma lupa para verificarmos que essa mesma mancha se diferencia ainda

    internamente, que a prpria textura do papel em que se inscreve se revela como uma

    superfcie rugosa onde se destacam pequenos montes e vales, etc.

    Mas isto, por sua vez, ainda no tudo. Se considerarmos um momento, o mais

    simples que conseguirmos isolar, no mbito desta multiplicidade por exemplo, um

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  • momento ou um quase-ponto na superfcie de uma folha do livro, verificamos que no

    est de modo nenhum fixado por uma nica determinao. Acontece, pelo contrrio,

    que est fixado, no apenas por uma multiplicidade mas por uma multiplicidade

    relativamente numerosa de determinaes diferentes, tambm ela montada sobre a

    base da mesma trama de identidades e diferenas. Um quase-ponto da superfcie da

    folha tem uma determinada cor, mas tambm visto como algo slido que oferece

    resistncia (no um fantasma), que ocupa um determinado lugar no espao (mas no

    idntico ao lugar que ocupa), que ocupa um determinado lugar no tempo (mas no

    idntico ao lugar que ocupa no tempo). Alm disso, cada momento da folha visto

    como sendo na sequncia de um existncia contnua (no visto como algo que se

    acaba de constituir nem visto numa ptica completamente neutra em relao questo

    de saber se acabou de se constituir ou no). Por outro lado, cada momento da folha

    visto de tal modo que se antecipa a sua continuao no tempo subsequente (antecipao

    que se expressa na surpresa que eu teria se, de repente, ele simplesmente

    desaparecesse). Acresce que no s visto nessa continuidade como algo de

    equivalente ao tempo que precede e algo de equivalente ao tempo subsequente: visto

    como o mesmo (com identidade diacrnica). Mas mais. Cada momento da folha de

    papel visto como tendo uma existncia independente da apresentao que o d, mas ao

    mesmo tempo como algo que est adequadamente captado nessa apresentao.

    Se considerarmos estas determinaes (que aqui enumeramos apenas a ttulo

    exemplificativo), verificamos o seguinte. Por um lado, tm um papel decisivo na forma

    como cada momento da superfcie de uma folha do livro se apresenta (tm um papel

    decisivo na fixao da identidade do livro). De tal modo que, se suprimirmos qualquer

    uma destas determinaes, o aspecto daquilo que est em causa (um quase-ponto da

    superfcie de uma folha do livro como alis o aspecto ou a determinao prpria do

    livro) muda significativamente. Em regra, no penso especificamente em nenhuma

    destas determinaes. Mas, mesmo que no pense nelas, elas esto l (e, se no

    estivessem, eu no veria o que vejo, mas algo com um teor diferente). Mas, sendo

    assim, para exercerem as funes de determinao que exercem (e o momento da

    superfcie de papel aparecer com o teor que aparece), estas diferentes determinaes

    tm ao mesmo tempo de convergir no momento da superfcie de uma das folhas do livro

    (como, alis, em todos os outros), com a sua trama de identidade e diferena (quer dizer,

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  • de tal modo que uma coisa a cor, outra a resistncia, outra o espao que ocupa e

    este diferente de outros espaos , outra coisa o tempo que ocupa e este diferente

    de outros tempos , outra coisa a existncia que possui no(s) tempo(s) que

    precede(m), outra coisa a existncia no(s) tempo(s) subsequente(s), outra coisa a

    existncia independente, outra coisa a apresentao que se tem da existncia

    independente, etc.).

    A trama do tecido de identidade e diferena , como tal, uma trama estrutural

    que reconhecemos naturalmente na superfcie da apresentao (aquilo onde se

    marcam as identidades e diferenas correspondentes s coisas). Mas, vendo bem,

    segundo o que acabmos de focar, esta trama est tambm presente como estrutura de

    fundo da realidade mais escondida ou menos bvia, que compe internamente aquilo

    que est posto em destaque superfcie. Apesar de mais fina, a estrutura continua a

    ser a mesma.

    1.3. A unidade interna da identidade como fuso das diferenas

    Sendo assim, importa ter presente que no estamos aqui a lidar apenas com uma

    homogeneidade estrutural a mesma trama formal a trama de identidades e diferenas

    que se estende desde a prpria organizao das diferentes coisas que me aparecem at

    mais fina composio daquilo que est envolvido na respectiva composio. No

    menos importante do que esta homogeneidade estrutural tambm a diferena de

    acentuao. As diferenas internas das coisas, apesar da sua evidncia, tendem a

    permanecer como que silenciadas. Quer dizer, a diferena entre o livro e a mesa

    mais evidente ou tende a encontrar-se mais vincada, mais acentuada, do que a diferena

    entre as diferentes pginas do livro (e estas, por sua vez, tendem a apresentar-se mais

    acentuadas do que a diferena entre as suas componentes). H portanto uma diferena

    na prpria acentuao das diferenas; diferena essa que faz que as diferenas internas

    tendam a passar mais despercebidas do que as diferenas externas (e que umas

    diferenas internas tendam a passar ainda mais despercebidas do que outras).

    Vejamos um pouco melhor que que isto quer dizer. O que expusemos configura

    justamente qualquer coisa como uma trama ou uma rede: complexos de identidades

    e diferenas que servem de base a complexos de identidades e diferenas de tal modo

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  • que as identidades e diferenas menos finas compem ou entretecem identidades e

    diferenas mais finas (identidades e diferenas entre elementos eles mesmos

    internamente compostos por identidades e diferenas). Mas, por outro lado, este sistema

    de identidades e diferenas montado sobre identidades e diferenas no homogneo

    nas suas diferentes estruturas e no homogneo no que diz respeito acentuao.

    Pois bvio que, como apontmos, se considerarmos o complexo A diferente de B,

    diferente de C, diferente de D que corresponde aos prprios momentos que compem,

    por exemplo, a superfcie de uma folha de um livro, percebo que aquilo que tenho

    apresentado como que implodiria se no estivesse presente esse complexo. Mas, por

    outro lado, no menos bvio que esse A diferente de B, diferente de C, diferente de

    D, etc., no est imediatamente acentuado na forma como est imediatamente

    acentuado o livro diferente de outros livros, diferente da parede, diferente do cho,

    etc.. Estas ltimas diferenas (ou, o que o mesmo, o complexo destas identidades

    das identidades desta ordem) que avultam na apresentao de que dispomos. E a

    diferena entre os diferentes momentos do livro (os diferentes momentos da estante, das

    paredes, da mesa, etc.) no est vincada como (quer dizer, est muito menos vincada do

    que) a diferena entre as prprias coisas. Se me perguntarem que que h nesta sala,

    digo: estantes, livros, paredes, uma mesa, uma cadeira, etc. No digo: um primeiro

    momento de branco, um segundo momento de branco, um terceiro momento de branco,

    e assim sucessivamente.

    Mas aqui importa perceber que no se trata s de uma diferena de acentuao

    ou que essa diferena de acentuao tem que ver com um fenmeno que j est

    implicado naquilo que dissemos, e que preciso agora focar: o fenmeno da fuso. Sem

    dissoluo da trama de base de identidades e diferenas que os constituem, os diferentes

    elementos da estante esto fundidos ou amalgamados entre si a formar a estante, os

    diferentes elementos da secretria esto fundidos ou amalgamados entre si a formar a

    secretria. E isto de tal modo que as identidades que imediatamente avultam e a que

    imediatamente nos reportamos (quer dizer tambm: as diferenas que imediatamente

    avultam e a que nos reportamos) so aquelas que tm que ver com o resultado dessa

    fuso a trama de identidade e diferena entre as coisas (e no a trama de base

    correspondente aos elementos que as compem). Mas aqui importa ter em conta o

    peculiar carcter das identidades emergentes deste fenmeno de fuso (ou melhor, que

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  • constituem este fenmeno de fuso). A fuso tem que ver com a constituio de

    identidades colectivas (como cadeira, mesa, estante, livro, etc.). O que caracteriza estas

    identidades , em primeiro lugar, que no so vistas como algo inteiramente simples

    (uma cadeira absolutamente simples, uma mesa absolutamente simples, um livro

    absolutamente simples so uma contradictio in terminis). Identidades deste tipo s so

    possveis no quadro de multiplicidade, supem multiplicidade, so identidades da

    multiplicidade. Nesse sentido, podemos falar de qualquer coisa como identidades

    colectivas. Mas, por outro lado, sendo assim, as identidades colectivas desta ordem no

    se reduzem mera soma de elementos que as compem. O decisivo justamente uma

    determinao que, por um lado, colectiva (engloba os elementos da multiplicidade)

    mas, por outro lado, no se limita a conjugar ou a reunir os elementos, antes os conjuga

    ou rene numa determinao que englobante junta ou rene a multiplicidade na

    medida em que original relativamente a ela, irredutvel multiplicidade que conjuga.

    Este o ponto decisivo. Trata-se de algo que s possvel como sntese ou conjugao

    da multiplicidade, mas que sintetiza ou conjuga a multiplicidade (pode conjugar ou

    sintetizar a multiplicidade) precisamente na medida em que no igual a ela (e tambm

    no igual a nenhum dos seus momentos, nem tem o modo-de-ser de nenhum dos seus

    elementos)2. Este silenciamento da multiplicidade interna das coisas d-se porque as

    diferenas internas sofrem uma peculiar forma de fuso. Isto , existe uma trama de

    base da identidade em que as diferenas internas se fundem (ainda que no se

    indiferenciem em absoluto) para dar a ver uma unidade e no a multiplicidade que a

    constitui. Assim, ao olharmos para a mesa, podemos identificar partes distintas dela

    (tampo, pernas, gavetas, puxadores, etc.), e, dentro destas partes podemos ainda

    identificar diferentes momentos ou partes. Ou seja, podemos ainda reconhecer

    diferenas na prpria constituio das partes, por exemplo, um primeiro momento do

    castanho do tampo da mesa (C); o momento C, o momento C, o momento C, etc.

    Todavia, aquilo que se evidencia primeiramente a identidade mesa e no a identidade

    das partes ou dos diferentes momentos que a compem. As diferenas encontram-se

    fundidas numa unidade colectiva, sendo essa unidade aquilo que determina a prpria

    identidade, ou melhor, a identidade prpria. As diferenas no desaparecem, apenas se

    silenciam e ficam a constituir como que um fundo interno, em apagamento relativo da

    2 Pois, se o tivesse, constituiria apenas mais um elemento da multiplicidade em causa e no algo que a conjuga ou sintetiza em si.

    8

  • prpria mesa que constitui, neste sentido, a forma, e no a soma das partes. A mesa

    uma identidade prpria. A determinao mesa uma determinao como que

    intersticial, que s pode ter lugar entre as componentes da multiplicidade que a

    constituem por assim dizer, no intervalo entre elas. Mas isso no impede de

    representar como que um valor acrescido como dissemos, algo de prprio, irredutvel,

    diferente da mera soma ou justaposio das partes. Uma mesa composta por tampo,

    pernas, gavetas, puxadores, etc. Mas da mera relao de justaposio arbitrria destes

    elementos no resulta a identidade mesa3.

    1.4 A relao de subordinao das diferenas ao mesmo

    Mas aqui importa ter em conta um outro aspecto sem o qual no se percebe bem

    o que est em causa. Acabmos de dizer que a identidade colectiva no menos uma

    identidade do que as outras identidades mais elementares. Importa agora ver um

    fenmeno decisivo em virtude do qual, em certo sentido, at mais.

    Com efeito, no acontece apenas que h uma sntese entre os diferentes

    elementos da mesa e a identidade colectiva mesa, como se se tratasse de uma mera

    sntese de coordenao (onde, como diz Kant, a relao entre os redutos recproca e

    homnima)4. No. Vendo bem, o que se passa na relao entre as identidades colectivas

    aqui em causa e as identidades que entram na sua composio tem um carcter muito

    diferente. Como dissemos, as identidades colectivas constituem-se como tais

    precisamente na medida em que, sendo originais em relao multiplicidade que

    3 Isto no impede que o marceneiro reconhea com grande nitidez e destaque prprio as partes que compem a mesa. Alis, precisamente por reconhecer as partes que a compem que pode construir uma mesa e atribuir unidade das diferenas nela presentes uma ordem especfica da qual resulta um valor que por si mesmas, isoladamente, elas no possuem. Isto por um lado. Por outro lado, mesmo admitindo que o marceneiro (ou cada um de ns) v a mesa decomposta nas suas partes, isso no corresponde total ausncia do registo da identidade colectiva que aqui estamos a descrever, mas apenas a uma outra organizao desse mesmo registo: as partes da mesa tambm so identidades colectivas (apenas relativamente mais pequenas) constitudas exactamente do mesmo modo.4 Recproca no sentido em que, se A est posto em relao com B, tambm inversamente B est posto em relao com A; homnima no sentido em que a relao de A com B exactamente da mesma natureza que a relao de B com A. Cf. Kant, De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis, 2, in : Kant's gesammelte Schriften, hrsg. von der Berlin-Brandenburgischen Akademie der Wissenschaften, II, Abt. 1, Vorkritische Schriften II 1757-1767, Berlin, de Gruyter, 1968, 390: FORMA, quae consistit in substantiarum coordinatione, non subordinatione. Coordinata enim se invicem respiciunt ut complementa ad totum, subordinata ut causatum et causa, s. generatim ut principium et principiatum. Prior relatio est reciproca et homonyma, ita, ut quodlibet correlatum alterum respiciat ut determinans, simulque ut determinatum, posterior est heteronyma, nempe ab una parte nonnisi dependentiae, ab altera causalitatis.

    9

  • integram, no se limitam a acrescentar-se a essa multiplicidade como mais um elemento

    justaposto a ela (quer dizer, como mais um elemento dela), antes integram a

    multiplicidade em causa na prpria determinao colectiva (ou na identidade colectiva).

    Ora, esta integrao significa qualquer coisa como um nexo de subordinao

    (subordinao dos elementos integrados na identidade colectiva) em relao

    identidade colectiva em que se integram5. Por outro lado, na compreenso das coisas

    enquanto unidades colectivas de determinaes, h subordinao da trama interna de

    identidades e diferenas ao mesmo, i.e., identidade colectiva uma subordinao que

    faz dos elementos integrados a instncia determinada e da unidade colectiva a instncia

    determinante. Trata-se da relao de subordinao em virtude da qual o castanho que

    da mesa (ou o tampo que da mesa, ou a gaveta que da mesa) e no a mesa que

    do castanho (ou do tampo, da gaveta, etc.). Se assim se pode dizer, cada uma das

    diferenas internas da mesa, por exemplo tampo, pernas, gavetas, etc., abdica da

    sua identidade prpria a favor da identidade de determinao colectiva mesa. Cada

    diferena interna tem a sua identidade prpria. Mas o que a define ser parte de e, neste

    sentido, subjuga ou subordina o que lhe prprio identidade da qual faz parte,

    passando a ser propriedade de. Da que, ao olharmos para a mesa, o olhar no exija a

    discriminao dessa multiplicidade que a constitui e suporta; apesar de tais diferenas se

    encontrarem presentes e serem determinantes, no precisam de ser vincadas para dar a

    ver a identidade a que pertencem. Pelo contrrio, as diferenas tendem, de algum modo,

    a desaparecer ou a apagar-se a favor da preponderncia da identidade colectiva6.

    1.5 Unidades colectivas mais abrangentes

    Mas isto ainda no tudo. E no tudo porque o fenmeno de fuso e de

    transferncia da tnica (sc. do registo em que fundamentalmente fica definida a

    identidade) pode continuar para l da constituio das prprias unidades colectivas de

    que falmos. Quer dizer, se h diferenas que se esbatem de forma a acentuar a 5 A relao de subordinao tambm recproca, mas no homnima e no homnima porque h ascendente de um dos termos sobre o outro (quer dizer, no caso, h preponderncia da identidade colectiva sobre os elementos que integra em si). 6 Tudo isto de tal modo que o registo em que habitualmente se move o nosso olhar justamene o registo destas identidades colectivas. Algo muito diferente daquilo que corresponderia a ter os diferentes elementos daquilo a que chammos a trama bsica de identidade e diferenas em presena atomizada, postos exactamente no mesmo registo de contraste ou acentuao do contraste que habitualmente marca a relao entre coisas ou identidades colectivas.

    10

  • identidade colectiva, esta fuso e subordinao no acontece apenas com a

    multiplicidade interna de diferenas que compem a identidade da coisa; acontece

    tambm no quadro daquilo a que chammos a multiplicidade das prprias coisas. Ou

    seja, h identidades colectivas que, na sua apresentao, esbatem as suas diferenas em

    relao a outras identidades colectivas, passando a integrar unidades colectivas mais

    abrangentes. Assim, a identidade colectiva sala pode aparecer de tal modo que a

    tnica fica posta nesta identidade colectiva de segunda ordem, se assim se pode dizer, e

    todas as identidades colectivas que se encontram no seu interior (mesa, estantes, livros,

    candeeiros, tapetes, etc.) ficam postas numa posio tona. Essas mesmas coisas

    que se diferenciam entre si esto dentro da identidade colectiva de segunda ordem.

    Surgem por isso, em certa medida, desfocadas nas suas diferenas e subordinadas

    prevalncia da identidade colectiva mais abrangente a sala (de tal modo que a sua

    identidade se define primeiramente pela identidade colectiva de segunda ordem). Mas a

    prpria sala pode ser silenciada por uma unidade colectiva mais abrangente, por

    exemplo, a casa. A sala parte da casa, i.e., parte integrante da multiplicidade de

    diferenas internas da casa e esta trama de identidades e diferenas aparece ento

    subordinada identidade casa. Podemos assim progredir indefinidamente nesta trama

    de identidade e diferena em que identidades colectivas mais abrangentes absorvem,

    em si, outras identidades. Por exemplo, a casa funde-se na identidade mais

    abrangente rua, a rua funde-se na identidade mais abrangente bairro, etc.

    Consoante as circunstncias, as identidades colectivas que funcionam como referente

    vo mudando de tal modo que so identidades colectivas de primeira, segunda,

    terceira ordem, etc.

    1.6 A flexibilidade da trama de identidades e diferenas

    Assim, aquilo que verificamos que o tecido da apresentao, na sua trama

    bsica de identidade e diferena, um tecido elstico ou plstico. Ou seja, h uma

    flexibilidade na focagem das unidades colectivas, sc. na forma como se apresentam.

    Essa trama pode tornar-se mais fina e descer ao prprio interior de uma unidade

    colectiva. Mas tambm pode tornar-se mais grossa, quando se focam unidades

    colectivas mais abrangentes. Tal como as letras se encontram na folha e a folha se

    11

  • encontra no livro (enquanto unidade colectiva), o livro encontra-se na sala e a sala

    encontra-se na casa (enquanto unidade colectiva mais abrangente). A trama bsica de

    identidade e diferena caracteriza-se, de cada vez, por esta espcie de elasticidade,

    constituda de tal modo que a focagem de determinada identidade implica,

    simultaneamente, a desfocagem das diferenas quer internas quer externas que a

    constituem e s quais se encontra ligada. Quer dizer, a focagem de determinado

    territrio da identidade implica sempre uma forma de abstraco em relao a um

    territrio mais abrangente e, simultaneamente, implica o silenciamento de territrios

    internos. Sendo a identidade constituda por uma multiplicidade interna, sempre

    possvel que determinada identidade se encontre presente como momento interno de

    uma identidade colectiva mais abrangente. Em The Voyage Out, Virginia Woolf ilustra

    esta trama elstica do tecido da apresentao mediante um exemplo de proximidade e

    distncia:

    The people in ships, however, took an equally singular view of England. Not only did it appear to them to

    be an island, and a very small island, but it was a shrinking island in which people were imprisoned. One

    figured them first swarming about like aimless ants, and almost pressing each other over the edge; and

    then, as the ship withdrew, one figured them making a vain clamour, which, being unheard, either ceased,

    or rose into a brawl. Finally, when the ship was out of sight of land, it became plain that the people of

    England were completely mute. (VO, 29)

    O tecido da apresentao, na sua trama bsica de identidade e diferena, um tecido

    flexvel onde as coisas se implicam umas nas outras, misturam, dissolvem, absorvem,

    penetram, ocultam, etc. Mas o que interessante notar que, apesar de existir uma

    flexibilidade na focagem das unidades, o registo normal de identificao de identidades

    tende a manter-se. Ou seja, a aproximao ou o distanciamento focal no tendem a

    desconstruir as unidades colectivas bsicas. Apesar da flexibilidade da focagem, existe o

    que podemos descrever como uma estabilidade ou rigidez na considerao das

    identidades. Essa estabilidade constitutiva da prpria apresentao que habitualmente

    temos e impede que o desdobramento chegue a entrar a fundo na prpria composio

    das unidades colectivas bsicas que, no fundamental, corresponde quilo a que

    chammos coisas. Mesmo que possamos focar partes de coisas, o desdobramento

    em regra pra a e no desce a uma decomposio dessas partes e das partes dessas

    12

  • partes, etc. E, por outro lado, as pessoas de Inglaterra podem tornar-se mudas

    distncia, mas a grande unidade ou identidade colectiva Inglaterra remete j para as

    suas partes (at a um registo prximo do das identidades de primeira ordem) de uma

    forma que as identidades colectivas de primeira ordem no remetem para as suas

    componentes. Finalmente, a fuso de identidades colectivas para identidades colectivas

    mais abrangentes ou a transferncia do foco para estas ltimas tende a no continuar

    para l de um determinado limite ou a desenvolver-se numa perspectiva difusa. Em

    suma, a actualizao das possibilidades que esto implicadas na referida elasticidade ou

    flexibilidade da trama de identidades e diferenas tende a produzir-se s dentro de um

    certo intervalo e a no sair dele. De sorte que, ao mesmo tempo que falamos de uma

    flexibilidade estrutural, podemos tambm falar de uma inflexibilidade em relao

    trama flexvel: se assim se pode dizer, o nosso ponto de vista poderia viajar dentro da

    trama e essa viagem corresponderia a uma extraordinria margem de metamorfose do

    aspecto com que tudo se apresenta; mas, na verdade, em relao trama de que falmos,

    tende a deslocar-se s dentro de uma margem relativamente reduzida. E isso que

    confere uma certa estabilidade ao reconhecimento que habitualmente fazemos do

    quadro de realidade no meio do qual nos encontramos.

    2 O Axioma de Contradio

    Our flesh is firm and cool. Our differences are clear-cut as the shadows of rocks

    in full sunlight. (W, 106)

    2.1 O mecanismo do ponto de vista natural no reconhecimento da

    identidade das coisas

    Dada a flexibilidade do ponto de vista na considerao do territrio da

    identidade que permite reconhecer no tecido da apresentao a identidade do que quer

    que seja (ora como resultado de uma sntese da multiplicidade interna de diferenas, ora

    como parte de uma unidade colectiva mais abrangente), natural que nos interroguemos

    acerca do territrio prprio da identidade de cada coisa; daquilo que faz que uma coisa

    seja aquilo que e no outra. Neste sentido, aquilo que importa agora investigar o

    13

  • mecanismo inerente ao prprio ponto de vista que permite distinguir coisas, que

    permite estabelecer diferenas entre as identidades e, consequentemente, reconhecer a

    unidade do territrio prprio de cada identidade.

    O ponto de vista natural caracteriza-se pela evidncia com que surge a

    identidade das coisas. As coisas simplesmente surgem como sendo aquilo que so.

    Podemos eventualmente no saber muito bem a que corresponde determinada

    identidade (no sabemos, por exemplo, se algo que de repente aparece um pssaro, um

    avio ou outra coisa qualquer). Mas aquilo de que o ponto de vista no duvida, mesmo

    nesses momentos, que algo se destaca, algo se diferencia com uma identidade prpria.

    Assim, podemos dizer que, independentemente do que uma coisa seja, o facto que ela

    aquilo que e isto traduz-se na simples expresso A=A; ou seja, a identidade igual

    a si mesma recortando-se daquilo de que se diferencia. Por outras palavras, embora

    possa existir indefinio relativamente quilo que uma coisa seja, a identidade das

    coisas , desde logo, evidente na sua diferena relativamente quilo que no (ou seja,

    ela contrasta com tudo o mais). A primeira evidncia do ponto de vista natural, no que

    respeita ao destaque que faz da identidade das coisas, diz portanto respeito atribuio

    de limites territoriais identidade o que faz que esta seja si mesma e no outra

    coisa qualquer e, por isso, faz que as coisas no se encontrem todas misturadas,

    co-fundidas.

    Mas h outro aspecto determinante, tambm ele presente no mecanismo do

    ponto de vista natural, no que concerne ao reconhecimento da identidade das coisas.

    Esse aspecto diz respeito ao reconhecimento da estabilidade e continuidade do prprio

    territrio (ou do territrio prprio). Quer dizer, o mecanismo que assegura a

    evidncia e consequente distino da identidade implica, simultaneamente, a presuno

    de uma certa estabilidade dessa mesma identidade. No acontece que as coisas deixem

    repentinamente de ser aquilo que so para passarem a ser algo completamente diferente.

    Alis, se assim fosse, no existiria possibilidade de reconhecimento do que quer que

    fosse, porque no existiria a estabilidade necessria continuidade do mesmo7.

    Reconhecemos, por isso, naturalmente, uma estabilidade na identidade das coisas que

    faz que estas permaneam idnticas a si mesmas8. Isto no significa que o prprio

    7 No deixaria de reinar a lgica da identidade (segundo a qual cada A o que ou seja, igual a A), mas a mudana vertiginosa estaria sempre a pr em cena outra coisa e j outra coisa, etc. De sorte que faltaria algo de fixo e definido que desse corpo a esse A formal.8 Quer dizer: mesmo que no tenha uma aguda conscincia disso, o registo em que habitualmente

    14

  • mecanismo no assegure a possibilidade de alterao do mesmo. Simplesmente essa

    alterao d-se, precisamente, no mesmo, i.e., no prprio. Uma rvore de folha caduca

    perde e renova as suas folhas todos os anos, mas no deixa de ser a rvore que ; A

    permanece A, apesar de poder sofrer alteraes internas nas suas determinaes, ou seja,

    A=A, independentemente de se reconhecerem alteraes em A. Sendo assim, a margem

    de instabilidade no territrio prprio da identidade (dada a sua possibilidade de

    alterao) corresponde a uma instabilidade prevista pela estrutura do prprio ponto de

    vista. E trata-se de uma instabilidade circunscrita, relativa e no absoluta. Faz parte do

    reconhecimento natural da identidade das coisas (se assim se pode dizer, faz parte da

    sintaxe do reconhecimento natural das coisas) a possibilidade de estas sofrerem

    alteraes relativas, quer dizer, no deixarem de ser aquilo que so, embora sejam

    passveis de se alterarem ou modificarem. Na verdade, tambm faz parte desse

    reconhecimento a possibilidade de as prprias identidades surgirem ou cessarem (aquilo

    a que Aristteles chama a e a ). Acontece que essa possibilidade est

    circunscrita e, enquanto circunscrita, compatibilizada com uma significativa margem de

    estabilidade. Por um lado, no tem um carcter vertiginoso e, por outro lado, ocorre, por

    assim dizer, vez, no meio de um quadro de realidade marcado pelo facto de

    enquanto algumas coisas vo e outras vm, haver um macio de realidade estvel,

    que assegura a continuidade, e d corpo quilo que podemos descrever como a prpria

    identidade global a identidade colectiva daquilo que vai, daquilo que vem e daquilo

    que continua. Se assim no fosse, se as alteraes fossem absolutas, a lgica natural

    da identidade perderia toda a sua estabilidade; no saberamos nunca o que esperar, as

    coisas perderiam a sua identidade prpria, sendo, de cada vez, algo de inteiramente

    diferente, podendo, por isso, ser qualquer coisa. Ora, no isto que acontece. O ponto

    de vista natural no prev (e habitualmente tambm no surpreendido por) um

    qualquer capricho das coisas, em virtude do qual perdem a sua estabilidade estrutural,

    passam a ser instveis e, na mutabilidade, de cada vez algo completamente diferente,

    etc.9

    compreendemos a identidade no o puro registo formal de A=A (que, por assim dizer, constitui a base), mas um registo correspondente quilo que na tradio filosfica se chama a identidade diacrnica.9 Entra aqui em jogo um aspecto que importante para se compreender este quadro de estabilidade, que o nexo da afinidade ou homogeneidade que existe mesmo no quadro da diferena. A estabilidade que se acha presumida na ptica habitual no apenas a estabilidade do mesmo (a estabilidade das identidades em sentido estrito ou relativamente estrito), mas tambm a estabilidade do tipo ou seja, a estabilidade do gnero (dessa peculiar forma da identidade na diferena).

    15

  • 2.2 Aristteles e o axioma de contradio

    Por razes que j se tornaro claras, o complexo de fenmenos que aqui estamos

    a considerar pode ganhar contornos um pouco mais definidos a partir da considerao

    de alguns aspectos daquilo que Aristteles foca quando discute isso a que chamamos a

    10 ou o axioma de contradio11 o princpio que a tradio posterior a

    maior parte das vezes designou como princpio de no-contradio. No este o lugar

    para descortinar o significado destas designaes nem para analisar em todas as suas

    implicaes o contexto das pginas que Aristteles dedica a esta matria, o sentido dos

    enunciados que produz, etc. Trata-se apenas de focar alguns aspectos que podem ser

    particularmente elucidativos a respeito dos fenmenos e problemas que aqui

    procuramos examinar.

    So diversas as formulaes a que Aristteles recorre para expressar o axioma:

    impossvel que o mesmo, ao mesmo tempo, inira e no inira ao mesmo, no mesmo

    respeito; impossvel dar por assente ao mesmo tempo que o mesmo e no . Pelo

    menos em parte, estas formulaes j reflectem o facto da predicao, as estruturas da

    predicao (quer dizer, a possibilidade de uma determinao ser de outra: a

    possibilidade de um B que no-A pertencer, ainda assim, a A). E o que Aristteles

    apresenta como impossvel a simultnea afirmao e negao do mesmo contedo,

    independentemente de esse contedo envolver ou no aquilo que podemos chamar

    transgresso da identidade quer dizer, justamente tudo aquilo que corresponde a A

    ter o que quer que seja que ver com algo que no A, B ter o que quer que seja a ver

    com algo que no B, etc.

    Contudo, se virmos bem, verificamos que a discusso do prprio axioma (deste

    que , diz Aristteles, o mais firme e seguro de todos os princpios12) acaba por pr na

    pista de algo que, por sua vez, pe em causa o prprio envolvimento de determinaes

    umas nas outras (quer dizer, a prpria predicao do no-idntico).

    10 Cf. Metafsica, 1005 b 3311 Observa-se que, quando Aristteles fala do axioma de contradio e usa o termo , o que est em causa no pura e simplesmente que os dois termos / no podem coincidir, se excluem reciprocamente, mas tambm que a excluso de um leva inevitavelmente ao outro ou seja, aquilo que prprio da , diferentemente do que sucede quando a relao de mera contrariedade, no admitir um terceiro termo (tertium non datur!).12 Cf. op.cit., 1005.

    16

  • Vejamos um pouco melhor que perspectivas se desenham na discusso

    aristotlica do axioma de contradio, tal como se apresenta em Metafsica .

    O que est em causa a questo da possibilidade ou impossibilidade de

    coincidncia entre o sim e o no, entre ser A e no ser A (e, em ltima anlise isso quer

    dizer tambm, como j veremos, entre o ser-o-mesmo e o ser-outro)13. Mas,

    precisamente, o que est em causa no axioma de contradio e na discusso que

    Aristteles desenvolve a seu respeito a impossibilidade dessa coincidncia aquilo

    que poderamos, talvez, descrever como a territorialidade do sim e do no, da

    mesmidade e da alteridade, da identidade e da diferena; uma territorialidade em virtude

    da qual tm fronteiras de excluso recproca.

    Ora, diz Aristteles, h quem negue o axioma de contradio e a questo est em

    saber se esta negao tem algum cabimento e que que se pode contrapor a quem o

    nega. Aristteles reconhece que o axioma insusceptvel de prova ou demonstrao,

    pois tem o carcter de uma assuno primeira (uma espcie de proto-fixao que est

    suposta em todas as fixaes, sc. uma espcie de proto-assuno que est suposta em

    todas as assunes)14. Mas, se assim (se no insusceptvel de prova ou

    demonstrao), o axioma pode, ainda assim, ser objecto de qualquer coisa como uma

    prova ou demonstrao refutativa15 quer dizer, de uma refutao daqueles que o

    negam. Para esse efeito, diz Aristteles, basta que produzam algum enunciado, digam

    alguma coisa16.

    Observe-se que esta clusula no significa de maneira nenhuma que aquilo que

    est em causa s colha quando chega a haver alguma assero (como se se tratasse de

    algo que s se aplica esfera do discurso). Vendo bem, Aristteles no se est a reportar

    apenas esfera do discurso17. Est-se a reportar esfera da de qualquer assuno

    13 Usando a terminologia que aqui temos adoptado (e que no segue a terminologia de Aristteles: entre o ser-o-mesmo e o ser diferente).14 Quer dizer, o axioma (ou aquilo que nele se expressa) est envolvido na prpria forma de qualquer fixao, condio de possibilidade de qualquer fixao, de qualquer de qualquer assim. De sorte que toda e qualquer fixao de um assim, seja qual for o seu teor, o pressupe o mesmo acontecendo, portanto, tambm com qualquer demonstrao ou tentativa de demonstrao do axioma, que em ltima anlise acaba por redundar em petitio principii.15 Cf. op.cit., 1006 a 12-15.16 Cf. op.cit., 1006 a 25.17 A relevncia da produo de algum enunciado tem que ver com a eficcia da refutao no plano, se assim se pode dizer, intersubjectivo. Se os que pem em causa o axioma de contradio no dizem nada, no h base para a refutao. Mas, por outro lado, aquilo que est em causa na refutao no depende da existncia de enunciados, tem que ver com a prpria fixao de qualquer coisa ou seja, com qualquer assim no prprio modo como se v, na prpria apresentao que se tem das coisas.

    17

  • de um assim, independentemente de se achar ou no expresso nesse enunciado.

    Trata-se de qualquer coisa que tem que ver com o significado quer seja para si mesmo,

    quer seja para outrem quer dizer, trata-se do significado no sentido de qualquer acto

    ttico ou de constituio de uma tese, independentemente de ser proferido ou no, de

    ser expresso ou no expresso, explcito ou implicado.

    E o que Aristteles diz a respeito de qualquer acto ttico (de qualquer tese, de

    qualquer , de qualquer assim) , em primeiro lugar, que tem de ser definido,

    tem de pr definidamente aquilo (de facto) que pe. Mas, em segundo lugar, acrescenta

    tambm que, para ser definido, tem de pr algo de uno (podemos talvez dizer, para

    sermos mais exactos: tem de pr uma coisa justamente aquela que pe e no outra).

    Pois, como se diz em Metafsica 1006 b 7: o no significar algo de uno (uma s coisa)

    no significar nada.

    Ora, justamente este o nervo da demonstrao elnctica ou negativa. A

    partir do momento em que se pe em causa o axioma de contradio e se admite a

    coincidncia do sim e do no, do ser e do no-ser, de A e de no-A, a tese (qualquer tese

    que se sustente, incluindo a prpria tese de negao do axioma ou da coincidncia do

    sim e do no, etc.) destri-se por completo destri-se por completo a unidade sem a

    qual o no tem um contedo definido: ao mesmo tempo pe-se e tira-se

    aquilo que se pe de tal modo que acaba por no se pr nada (por no haver nenhuma

    tese) nem sequer a prpria tese sobre a coincidncia do sim e do no, do e do

    , etc.

    Para exprimir este peculiar resultado, Aristteles recorre frase atribuda a

    Anaxgoras para expressar o estado inicial em que tudo ainda se encontrava

    indiferenciado (em que todas as coisas ainda estavam umas nas outras, ainda no

    estavam separadas): 18.

    2.3 A que corresponderia a supresso do axioma de contradio

    Mas que que significa isto que a negao do axioma de contradio equivale

    ao de Anaxgoras? Por um lado, o que est aqui em causa a

    coincidncia do sim e do no, do A e do no-A, se assim se pode dizer, uma forma de

    18 Cf. op.cit., 1007 b 26.

    18

  • tese que, se efectivamente aplicada, leva pura e simples supresso de qualquer tese

    (de qualquer pr, de qualquer assim). Pois, como dissemos, ao mesmo tempo tira

    aquilo que pe, anula aquilo que estabelece. Pe o sim, mas ao mesmo tempo admite

    o no que o anula; pe A, mas ao mesmo tempo pe no-A, que anula A e que, por

    sua vez, anulado pela posio pela tese dele. Numa palavra, segundo Aristteles, a

    negao do axioma de contradio redunda em algo de equivalente ao

    (o que significa o um-no-outro o tudo a monte, algo que ao mesmo

    tempo todas as determinaes e que, por consequncia no nenhuma), e, acaba por

    corresponder total falta de determinao. E aqui toca-se o ponto decisivo. Como

    Aristteles diz, a conjugao de tudo no , enquanto significa que

    no h nada de definido, significa tambm que pura e simplesmente no h nada19.

    Em ltima anlise esse o sentido do e tambm o sentido

    do que correlativo da admisso de coincidncia entre o sim e o

    no, o e o , etc. Ou seja, o resultado de uma tese ou que ao mesmo

    tempo pe o sim e o no, o e o , pe-na em causa a ela mesma e a todas as

    outras teses e equivale pura e simplesmente total ausncia de qualquer tese, de

    qualquer assim quer dizer, total ausncia de qualquer fixao, de qualquer

    apresentao das coisas, de qualquer . Aristteles tenta pr em evidncia que o

    axioma de contradio no um axioma que se pode homologar ou no homologar,

    seguir ou no seguir, mas antes um axioma que est implicado na prpria forma da tese

    (na forma ttica) do nosso ponto de vista na forma do acto ttico e sem a qual no

    chega a haver nada de facto, no chega a haver nenhuma tese (quer dizer, ento, no

    chega a haver nenhum ponto de vista nem sequer um ponto de vista que ponha

    definidamente a prpria indefinio).

    Por isso, Aristteles diz que aqueles que negam o axioma de contradio so

    como vegetais ou melhor, seriam como vegetais, se efectivamente chegassem a

    neg-lo na prpria forma como vem (no apenas naquilo que dizem)20.

    Mas o que isto significa que em ltima anlise, a estrutura da prpria tese (do

    19 Ibidem.20 Veja-se Metafsica, 1008 b 10-12. De facto, no vem assim (pois, se vissem, isso significaria justamente a anulao do prprio ver enquanto , quer dizer, enquanto adopo de um determinado assim, de uma determinada verso das coisas). Acontece que a esfera do dizer (do ) mais extensa e mais flexvel, de tal modo que se podem dizer coisas que no correspondem verso das coisas que se adopta. Nesse sentido, segundo Aristteles, a negao do axioma de contradio apenas uma coisa que se pode dizer, no uma tese que se possa ter efectivamente adoptada.

    19

  • haver tese) a estrutura de fixao do que quer que seja de definido a estrutura

    daquilo que a tradio doxogrfica relativa a Anaxgoras apresenta como o oposto do

    a separao ou a . Por outras palavras, a estrutura

    formal da prpria tese (o haver tese, enquanto tal) a estrutura da fixao do que quer

    que seja de definido a estrutura formal de um-no-o-outro (A = A no-A e,

    portanto, B, C, D, E, etc; B = B no-B e, portanto, A, C, D, E, etc.).

    E percebe-se a partir daqui a importncia daquilo que Aristteles quer dizer com

    o conceito de ( de x, isso mesmo que x ). No se trata de um

    conceito entre muitos outros ou de um conceito que se pode ter ou no ter, mas de uma

    estrutura fundamental inerente a qualquer acto ttico enquanto tal ou a qualquer fixao

    de estados-de-coisas enquanto tal para pr e ser definido (para pr definidamente

    algo) tem de pr justamente algo que isso mesmo que (algo em identidade consigo

    mesmo e em no-identidade, diferena relativamente a tudo o mais quer dizer,

    excluindo da esfera de si mesmo, da sua identidade tudo aquilo a que no idntico).

    Ora, vendo bem, aquilo que Aristteles assim procura pr em evidncia como a

    estrutura formal de toda a tese enquanto tal (a negao do )

    precisamente aquilo para que formalmente aponta toda a estrutura do que descrevemos

    como a trama de base. Por outras palavras, essa estrutura fundamental que aparece

    consagrada no modo de composio da apresentao que temos: em ltima anlise, h

    elementos que correspondem a esta estrutura que so definidamente aquilo que so, e

    no so definidamente no so aquilo que no so. E sero precisamente esses

    elementos que fazem que no se esteja na situao de indefinio (de indeterminao,

    de tudo misturado em tudo quer dizer, nada definidamente posto) que seria a do

    .

    2.4 Aristteles e a transgresso controlada daquilo que est em causa no

    axioma de contradio

    Acontece, entretanto, que toda esta anlise deixa escapar um ponto decisivo

    um ponto a que, vendo bem, Aristteles tambm no atende. Podemos ganhar a pista

    dele a partir do nervo da demonstrao refutativa ou negativa do axioma de contradio:

    a questo do . Se tentar fixar um cavalo que um penedo, que o mar, que um

    20

  • espelho, que um sapato, que uma nuvem e tambm a lua, etc., o que acaba por

    resultar que h, sem dvida, uma frmula de sentido, mas essa frmula no se resolve

    em nada de determinado. As diferentes determinaes que compem a frmula de

    sentido em causa anulam-se umas s outras e anulam-se umas s outras porque, se

    considerar cada uma delas, ela pertence esfera do no-a-outra (B no-A e A no-B,

    C no-A e no-B, etc.). De sorte que o que assim se produz qualquer coisa como um

    caso particular de coincidncia do sim e do no, de A e de no-A. Quer dizer, produz-se

    qualquer coisa como um (tendo aqui o em relao

    multiplicidade das determinaes em causa), com o resultado antes descrito: o

    acaba por significar anulao de qualquer tese (acaba por no se pr nada). Mas, por

    outro lado, se dissermos que um cavalo castanho, resistente e que existe num

    determinado tempo e que ocupa um determinado lugar e que se move ou est imvel,

    etc., j parece no haver problema nenhum. Quer dizer, j parece no haver qualquer

    espcie de (de tal modo que no h dificuldade quanto constituio de uma tese

    pelo contrrio: essa precisamente a forma que habitualmente tm as teses, as verses

    das coisas que habitualmente temos constitudas e por que nos regulamos no prprio

    curso da nossa vida). Mas ser mesmo assim? Acontece mesmo que este envolvimento

    recproco de determinaes diferentes no oferece nenhum problema, no implica

    nenhuma espcie de ? Vendo bem, implica e envolve na verdade o mesmo tipo de

    dificuldade que est no cerne da discusso aristotlica do axioma de contradio.

    Consideremos ento o problema com um pouco mais de ateno. Se focarmos

    uma qualquer determinao A e se inquirirmos qual a sua relao com qualquer

    determinao B, verificamos que B se caracteriza precisamente pela sua no pertena

    esfera de A. essa no-pertena que constitui B como B (quer dizer, como no-A). E

    esta exterioridade ou esta alteridade em relao a A que constitui a condio de no

    haver (com tudo o que vimos que isso implica). Quer dizer, de todo o modo, ao

    fixar um cavalo que castanho, que resistente, que existe num determinado tempo,

    etc., cada uma destas determinaes est e tem de estar constituda de tal modo que A

    B (B = no-A), A C (C = no-A), B C (C = no-B), etc. Expressamo-lo dizendo que

    no h que h extraposio. Mas, por outro lado, ao ver o cavalo como

    castanho, como resistente, etc., a estrutura da tese que assim fica constituda envolve

    justamente a negao daquilo que acabmos de chamar extraposio, quer dizer,

    21

  • envolve , envolve coincidncia de A e de no-A. isto que Aristteles expressa no

    De Anima quando, falando da (quer dizer, da sntese do no-idntico), diz que

    a sempre tambm ao mesmo tempo uma 21. Quer dizer, mesmo que

    tendamos a no notar, toda e qualquer predicao mesmo aquelas que nos parecem

    livres de qualquer problema e no entrarem em qualquer espcie de conflito com o

    axioma de contradio implica, de facto, uma coincidncia do sim e do no, do e

    do e tem, por isso, no seu cerne um momento de , de conflito de

    determinao (de curto-circuito de identidade) que, vendo bem, no estamos em

    condies de deslindar. um facto que tendemos a ver os dois casos citados (o caso

    do cavalo, que um sapato, que o mar, etc. e o caso do cavalo que castanho e

    resistente, etc.) como muito diferentes. Isso ter as suas razes. Mas, vendo bem, essas

    razes no passam por s num caso haver coincidncia do sim e do no (do A e do

    no-A). H coincidncia dessa ordem nos dois casos e, na verdade, em nenhum deles

    menos do que no outro.

    Aristteles, que chama a ateno para a questo do , tambm no foca este

    ponto que acaba por pr em causa todo o modelo de fixao das identidades e

    diferenas (na verdade, todo o modelo, toda a sintaxe de determinaes que

    habitualmente vigora na apresentao de que dispomos). Mas, seja como for, o prprio

    Aristteles pe em evidncia que a prpria estrutura de um acto tctico tem de ter a

    forma da tese de um e fica posta em causa pela intromisso do . E,

    mesmo que Aristteles no chame a ateno para isso (e tente canonizar as formas da

    sntese do no-idntico que esto consagradas na estrutura da apresentao em que

    damos connosco), na verdade, a estrutura formal daquilo que corresponderia plena

    observncia do axioma de contradio e completa eliminao do seria,

    justamente, algo como uma multiplicidade de determinaes constitudas de tal modo

    que cada uma fosse aquilo que e nada mais. Por outras palavras, um complexo de

    determinaes em completa consonncia com o axioma de contradio, e efectivamente

    correspondente a uma completa eliminao do , equivaleria a um complexo de

    fixaes puramente tautolgicas de identidades simples (ou atmicas: de realidade

    constituda por um simples A que no seno A, de um simples B que no seno B, de

    um simples C que no seno C, etc.)22.

    21 Aristteles, De Anima, cf. 430 b 3.22 Nesse sentido, h algo de muito peculiar na forma como habitualmente reconhecemos a verdade do

    22

  • Contudo, se compararmos este modelo formal com a estrutura da apresentao

    em que estamos constitudos, verificamos que esta fica muito longe de corresponder a

    este modelo. E fica muito longe de corresponder a este modelo porque, mesmo supondo

    que, no mbito daquilo a que chammos a trama bsica de identidades e diferenas

    haja efectivamente unidades constitudas no modo do , toda a apresentao de

    que dispomos est, como vimos, montada a partir da constituio de unidades

    complexas de segunda, terceira e quarta ordens, etc., que se caracterizam por

    envolverem constitutivamente a presena de (transgresso da no-identidade,

    um-no-outro do no-idntico precisamente aquilo que est implicado no fenmeno da

    sntese)23.

    Ora, sendo assim, percebem-se melhor os contornos daquilo que se acha

    desenhado por Aristteles em Metafsica e tambm daquilo que caracteriza a estrutura

    fundamental da fixao das identidades e diferenas, tal como est em vigor na

    apresentao de que habitualmente dispomos (de tal modo que o que desenhado por

    Aristteles corresponde, no fundamental, ao recorte dessa mesma estrutura). O que

    caracteriza a trama em vigor na ptica habitual (e que retratado por Aristteles na sua

    discusso do axioma de contradio) situa-se, por assim dizer, a meio caminho entre o

    plano das puras identidades-que-so-isso-mesmo-que-so-e-mais-nada (o )

    ou o complexo de identidades puramente tautolgicas que corresponderia total

    eliminao de qualquer e o total (o no sentido estrito

    da expresso). E o que caracteriza este a-meio-caminho ou esta posio intermdia

    qualquer coisa como uma transgresso contida, controlada, disciplinada do princpio de

    excluso de que est em causa no axioma de contradio.

    justamente algo deste gnero que encontramos na trama de identidades e

    diferenas que procurmos focar e tambm no desenvolvimento da discusso

    aristotlica do axioma de contradio em Metafsica : por um lado, a suposio de uma

    forma geral da identidade e da diferena, em virtude da qual tudo o que aquilo que

    axioma de contradio. Formalmente aceitamos que A no pode ser no-A. Mas, por outro lado, pelo menos uma grande parte das identidades em relao s quais reconhecemos a validade deste axioma, corresponde a identidades colectivas (e de segunda, terceira, quarta ordens, etc.) que esto internamente constitudas por . E, por outro lado, o ponto de vista em que reina esta homologao da impossibilidade de A ser no-A est montado sobre (e perpassado por) uma rede de nexos sintticos em cada um dos quais um A compreendido como algo a que pertence um B (quer dizer, algo que pertence esfera de no-A).23 Onde A e B, apesar de no-idnticos um ao outro, esto, ainda assim, um-no-outro (um no prprio curso do outro, a determin-lo, etc.).

    23

  • e no aquilo que no (ou seja, aquilo que podemos descrever, na linguagem de

    Aristteles, como a trama do ); por outro lado, esta grelha de admisso

    controlada do (de determinadas formas de , que se tornam, por assim dizer,

    cannicas e que, por isso mesmo, no so percebidas como uma sintaxe do

    admitido24). Esta grelha de admisso controlada do faz que, por exemplo, um

    cavalo que seja ao mesmo tempo um pato e uma sombrinha, etc. ou algo que seja azul e

    ao mesmo tempo (no mesmssimo ponto) tambm vermelho, amarelo ou verde sejam

    imediatamente percebidos como (e, portanto, como nada) e fiquem excludas,

    como inadmissveis, ao passo que um cavalo que castanho e resistente, etc. (ou um

    cavalo que, enquanto cavalo quer dizer, enquanto identidade colectiva ao mesmo

    tempo e no as diversas componentes que o constituem) parea perfeitamente

    admissvel e no suscite qualquer espcie de problema.

    3 O ponto de vista cientfico e o ponto de vista natural

    3.1 A dupla constituio da estrutura da identidade na apresentao natural

    Dos pontos antecedentes resulta que a apresentao que temos das coisas est

    como que montada sobre a dupla estrutura do regime de identidade e diferena. Por

    um lado, para que a identidade do que quer que seja se manifeste, necessrio que se

    diferencie (A no B). Por outro lado, a prpria diferena no faz sentido sem

    referncia s identidades que ope. Mas, sendo assim, acontece tambm que isto no

    significa de modo nenhum que aquilo que temos apresentado corresponda a uma mera

    multiplicidade de identidades blindadas. Sucede, pelo contrrio que, tal como as

    coisas nos aparecem, a identidade se encontra, em certa medida, atravessada por isso

    mesmo de que se diferencia. Ou seja, a determinao da identidade de A inclui tambm

    determinaes pertencentes a no-A (h algo de B, isto , de no-A, que se encontra

    presente em A) o que corresponde, como vimos, a qualquer coisa como uma

    transgresso (controlada) do axioma de contradio. tambm isso que permite a

    constituio de identidades colectivas de primeira, segunda, terceira e quarta ordem, etc.25. Como vimos, este duplo plano de constituio de identidades e diferenas permite ao

    24 Insiste-se: que, por isso mesmo, no percebido como .25 Como tambm permite todo o sistema de nexos de determinao correspondentes predicao.

    24

  • ponto de vista natural uma certa elasticidade na forma como se move no tecido da

    identidade e da diferena e reconhece identidades e diferenas. A trama desse tecido

    pode tornar-se ora mais fina (com marcao de unidades colectivas mais

    diferenciadas), ora mais grossa (com marcao de unidades colectivas mais

    abrangentes). Mas, vendo bem, tende a nunca abandonar o plano das unidades

    colectivas, ou seja, nunca se reduz a uma apresentao simples em regime de

    determinao puramente tautolgica (tal que A = A e mais nada). Quer dizer, estando

    o tecido da identidade como que estabilizado no quadro de identidades colectivas, h

    a possibilidade de o desdobrar, revelando no seu interior a mesma estrutura de teia e

    trama de identidade e diferena e fazendo aparecer complexidade onde parecia estar

    algo quase simples; mas, por outro lado, este tecido de identidades e diferenas tambm

    passvel de ser dobrado, dissolvendo no seu interior as diferenas e reduzindo-se a

    um momento no quadro de uma unidade colectiva mais abrangente onde se verifica a

    mesma estrutura de identidade e diferena. Qualquer identidade aparece enquadrada

    nesta forma de evidncia natural. O que temos de averiguar agora : qual o estatuto

    dessa evidncia?

    3.2 A evidncia natural uma captao que se tem como transparente

    As coisas existem e encontram-se expostas a na sua visibilidade. O ponto de

    vista natural acede directamente s coisas, quer dizer, capta as coisas que se encontram

    a sem que, para isso, tenha de fazer algum esforo e isto porque basta abrir os olhos

    para que estes levem imediatamente s coisas e para que estas se imponham na sua

    visibilidade. Ver entrar em contacto directo com isso que est a, captar no imediato

    o que se apresenta sendo que essa captao das coisas na apresentao implica a

    delimitao de territrios. Quer dizer, a estrutura de identidade e diferena correlativa

    da marcao de territrios e, desde logo, em dois sentidos: por um lado, estabelece a

    diferenciao entre o territrio daquele que percebe e o territrio das coisas percebidas;

    por outro lado, estabelece uma compartimentao do territrio das coisas na sua relao

    umas com as outras.

    Isso que est a algo que se reconhece como sendo independente de mim, ou

    melhor, que se estabelece numa diferena relativamente a mim. Reconhecemos nas

    25

  • coisas uma existncia que lhes prpria, porque tm um territrio prprio que

    independente do meu, i.e., um territrio que em-si, e que, por isso, subsiste

    para-l-de-mim. em virtude deste reconhecimento da diferena do em-si da identidade

    das coisas que aceitamos a subsistncia independente das mesmas, subsistncia essa que

    lhes confere uma continuidade no espao e no tempo, um para-l independente de mim.

    Mas as coisas no se diferenciam, na sua independncia territorial, somente em relao

    a mim. As coisas diferenciam-se tambm entre si, i.e., so independentes umas

    relativamente s outras. Quer dizer, as coisas no se arrastam umas s outras de

    modo que podem, por exemplo, ser movidas umas independentemente das outras,

    podem existir umas independentemente das outras, etc.

    Mas, sendo evidente para o ponto de vista natural a estrutura de identidade e

    diferena das coisas (e a consequente marcao de territrios), aquilo que temos de

    averiguar o seguinte: de que modo se encontra constitudo o prprio ponto de vista no

    seu contacto imediato com as coisas?

    O que verificamos que se encontra constitudo numa forma de transparncia.

    O ponto de vista natural um ponto de vista dominado pela apresentao imediata de

    coisas sua volta. Ou seja, reconhece que as coisas que se encontram a lhe esto

    imediatamente dadas sendo essa imediatez correlativa do facto de estarem dadas como

    evidentes. Trata-se, por isso, de um estar-dado que no se tem como problemtico,

    antes supe uma transparncia ou concordncia entre o ponto de vista que v a coisa e a

    coisa vista. Quer dizer, a coisa tal como se apresenta no ponto de vista e a coisa tal

    como em si mesma so, pelo menos no fundamental, um e o mesmo26. Desta

    transparncia, correspondente imediatez e evidncia de concordncia entre o ponto

    de vista e as coisas que se lhe apresentam, resulta que a identidade das coisas no se

    apresenta naturalmente como um problema. As propriedades que o ponto de vista

    natural reconhece nas coisas so, pelo menos no fundamental, propriedades que ele

    encontra nas prprias coisas e que, por isso, lhes pertencem, no existindo assim

    26 Note-se o peculiar sentido da restrio que aduzimos para tentar ver to exactamente quanto possvel a ptica espontnea que estamos a tentar descrever. Fizemos questo de acrescentar pelo menos no fundamental para exprimir que espontaneamente no se reclama que a correspondncia ou a concordncia seja total. Admite-se alguma margem de desvio ou de discordncia. Acontece que, por um lado, essa margem deixada em indeterminao quanto aos aspectos que lhe podem corresponder (no se precisa exactamente quais), mas, por outro lado, no deixado em indeterminao a relao entre essa margem de desvio e a eficcia global do acesso de que se dispe. Sucede antes que est decididamente dado por assente que essa margem no significativa e no compromete globalmente a eficcia (a transparncia ou adequao) do acesso que, no fundamental, transparente no sentido referido.

    26

  • diferena significativa entre as propriedades das coisas e as propriedades que o ponto de

    vista reconhece nelas. Em suma, no ponto de vista natural, o verde da folha e o verde

    que eu vejo so uma e a mesma coisa.

    3.3 A territorializao da evidncia natural baseia-se no aspecto funcional

    da identidade

    Mas, sendo assim, por outro lado a trama de identidade e diferena que se

    encontra na base da transparncia e da evidncia natural uma trama que tem em conta

    o aspecto funcional das coisas em relao a mim. As coisas no apenas se distinguem

    umas das outras. Para alm disso, a sua diferena prpria considerada segundo o seu

    enquadramento num plano pragmtico, no sentido em que tudo aquilo que aparece

    exerce uma determinada funo. Tal funo diz respeito a uma tenso de uso ou de lida

    que tem como pano de fundo um desempenho vital (o desempenho vital de quem est

    posto no meio das coisas e a quem todas elas se apresentam). Note-se que o uso no

    implica necessariamente a restrio da identidade das coisas a meros utenslios. A noo

    de utenslio privilegia a nossa aco sobre as coisas e no contempla um outro aspecto

    essencial da forma como estas podem interferir no campo da vida. A funo das coisas

    encontra-se determinada num duplo sentido, no apenas pelas aces que me

    possibilitam (essas aces de que as coisas so objecto), mas tambm pela aco que

    podem exercer sobre mim (ou seja, pelo modo como as prprias coisas me podem

    afectar, i.e., pelo modo como posso ser sujeito passivo da aco delas sobre mim).

    Nestas circunstncias, tanto a marcao de fronteiras entre as coisas quanto a fixao da

    sua identidade regula-se pela forma de interferncia (n.b. do referido duplo modo de

    interferncia) que exercem numa tenso de no-indiferena de mim mesmo

    relativamente a mim27. Assim, a identidade das coisas enquadra-se numa cartografia

    de proximidade ou distncia segundo o interesse que por elas tenho. E faz parte dessa

    mesma identidade elas ocuparem um lugar (de relevo ou, pelo contrrio, de indiferena

    ou melhor, de uma multiplicidade de graus de relevo at indiferena) em virtude da

    funo que desempenham. De facto, o olhar que lanamos sobre as coisas est

    27 Este ponto decisivo: o que d o mote a todo este sistema de funes vitais a no-indiferena de mim mesmo em relao a mim a forma como quem est posto a assistir a tudo geralmente no se limita a assistir, antes est tomado por uma dedicao a si, por uma no-indiferena a si mesmo, em virtude da qual solidrio consigo mesmo, cuida de si.

    27

  • silenciosamente habitado por uma gramtica de o que ?. Dito por outras palavras,

    o olhar portador de quesitos que procuram delimitar e determinar o que o qu e,

    neste sentido, fixar identidades. Ora, estes quesitos de delimitao e identificao so

    fundamentalmente quesitos pragmticos, relativos a uma identidade funcional. Isso

    reflecte-se justamente no tipo de resposta que tendemos a dar quando temos de exprimir

    a identidade das coisas e dizemos isto algo que serve para. Em suma, a pergunta

    acerca da identidade de qualquer coisa requer, na sua resposta, um enquadramento

    funcional. De tal forma que a definio da identidade, ao procurar dar conta das

    propriedades categoriais, no se fica pela descrio das determinaes coisais, antes

    implica tambm (e de facto est fundamentalmente regulada por) determinaes

    funcionais28.

    Assim, a transparncia da apresentao natural reveste as coisas de

    determinaes excessivas em relao a elas mesmas (ao que so e tm

    independentemente da sua relao com a tenso pragmtica de lida de quem lida com

    elas). Isto , o ponto de vista deposita nas coisas algo que no lhes pertence, mas que,

    no entanto, ele v como fazendo efectivamente parte delas (e fazendo to efectivamente

    parte delas quanto as determinaes categoriais no sentido estrito do termo). Por

    exemplo, o cheiro de determinada planta, que nos faz sentir atrados ou repelidos e que

    est marcado por essa propriedade relativa a quem o experimenta, algo que o ponto de

    vista natural reconhece como pertencendo ao territrio prprio da identidade da planta e

    no ao ponto de vista. Uma cadeira tem uma identidade relativa possibilidade que

    oferece de uma pessoa se sentar nela e no h nenhuma possibilidade de ver uma

    cadeira seno a partir da compreenso dessa possibilidade de uso que a do sentar-se.

    Um animal com que nos cruzamos tem uma identidade marcada pela relao de foras

    entre ele e o prprio que o v (de tal modo que faz parte da sua identidade o ser

    perigoso ou no perigoso, etc.)29.

    28 As propriedades categoriais so determinaes a que o ponto de vista natural recorre na fixao da identidade das coisas. No entanto, necessrio diferenciar ainda (no interior das propriedades categoriais) determinaes coisais de determinaes funcionais. Aquilo que as diferencia o facto de as determinaes coisais dizerem respeito a propriedades das prprias coisas (em si mesmas, na sua prpria posio), enquanto que as determinaes funcionais dizem respeito a propriedades pragmticas propriedades especficas da relao que se tem com as coisas ou da relao que elas tm com a tenso de no-indiferena e o desempenho vital de quem se v no meio delas, a ter de levar a cabo entre elas (com elas, sob interferncia delas), as tarefas da sua prpria vida. 29 Como alis sucede com todas as coisas uma das determinaes essenciais com que sempre nos deparamos precisamente aquela que tem que ver com o grau de perigo (ou da ausncia dele) de que cada realidade se reveste. Todavia, este aspecto tende a ficar esbatido porque a generalidade das coisas

    28

  • Assim, a identidade com que as coisas aparecem na minha vida est

    subrepticiamente marcada por uma atribuio s prprias coisas de determinaes

    funcionais que excedem as suas definies coisais. Essas determinaes

    funcionais tm que ver com aquilo que podemos descrever como toda uma rede de

    relaes comigo. Mas essas determinaes no estritamente coisais esto to

    integradas no aspecto com que as coisas se apresentam que parecem pertencer-lhes a

    elas mesmas (e no resultarem de uma ligao com a tenso de no-indiferena de que

    eu prprio sou portador). Ou seja, existe uma evidncia da identidade das coisas que

    toma como evidente o prprio facto de que a identidade das coisas se encontra co-

    determinada por determinaes funcionais que eu mesmo deposito nelas.

    Isto percebe-se facilmente, por exemplo, no caso da determinao das dimenses

    das coisas no espao quer dizer, naquilo a que habitualmente chamamos o seu

    tamanho. A fixao da dimenso real da identidade das coisas correlativa de um

    fenmeno de proximidade ou distncia das coisas relativamente ao meu corpo3