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Nietzsche : sujeito moral e cultura cristã

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NIETZSCHE: SUJEITO MORAL E CULTURA CRISTÃ

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ChancelerDom Dadeus Grings

ReitorJoaquim Clotet

Vice-ReitorEvilázio Teixeira

Conselho EditorialAna Maria Lisboa de MelloBettina Steren dos SantosEduardo Campos PellandaElaine Turk FariaÉrico João HammesGilberto Keller de Andrade Helenita Rosa FrancoIr. Armando Luiz BortoliniJane Rita Caetano da SilveiraJorge Luis Nicolas Audy – Presidente Jurandir Malerba Lauro Kopper FilhoLuciano KlöcknerMarília Costa Morosini Nuncia Maria S. de ConstantinoRenato Tetelbom Stein Ruth Maria Chittó Gauer

EDIPUCRSJerônimo Carlos Santos Braga – DiretorJorge Campos da Costa – Editor-Chefe

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ADILSON FELICIO FEILER

NIETZSCHE: SUJEITO MORAL E CULTURA CRISTÃ

Série Filosofia 209

Porto Alegre, 2011

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© EDIPUCRS, 2011

Rodrigo Valls

Patrícia Aragão

Rodrigo Valls

F298N Feiler, Adilson Felicio Nietzsche : sujeito moral e cultura cristã [recurso eletrônico] / Adilson Felicio Feiler. – Dados eletrônicos – Porto Alegre : EDIPUCRS, 2011. 107p.:(SérieFilosofia;209)

Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: <http://www.pucrs.br/edipucrs/> ISBN 978-85-397-0144-5

1.FilosofiaAlemã.2.Nietzsche,FriedrichWilhelm–Crítica eInterpretação.3.Cristianismo.4.MoralCristã.I.Título. II. Série. CDD 193

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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“Jesus disse a seus judeus: ‘A lei era para servos – amem a Deus como eu o amo, como seu filho! Que nos importa a moral, a

nós, filhos de Deus!’”(ABM, IV, § 164, p. 81 / KSA – V, p. 101).

LISTA DE ABREVIAÇÕES

As obras de Nietzsche utilizadas no desenvolvimento1 da pesquisa serão citadas pelas suas iniciais como segue: ABM Além do Bem e do Mal;AFZ Assim Falou Zaratustra;AT O Anticristo;A Aurora;CI Crepúsculo dos Ídolos;EH Ecce Homo;EP Epistolário;FP Fragmentos Póstumos;GC A Gaia Ciência;GM Genealogia da Moral;NT O Nascimento da Tragédia.

1 As traduções das obras acima são aquelas indicadas na bibliografia, exceto os Fragmentos Póstumos e o Epistolário, que são aqui citados a partir do original alemão e da tradução italiana, da edição crítica estabelecida por G. Colli e M. Montinari, também indicadas na bibliografia. Após as iniciais indicando a obra, seguem-se as indicações do número do livro/capítulo, quando houver, e/ou do número do aforismo e da página. Desta indicação para as traduções segue, após a barra, a indicação do original alemão – KSA (Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari) com o volume e a página.

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SUMÁRIO

PRÉFACE .........................................................................09

PREFÁCIO .......................................................................11

APRESENTAÇÃO ...........................................................15

1 Nietzsche: Da ruptura a um novo começo ..............21

1.1 A ruptura de Nietzsche com a tradição cristãocidental a partir de Sócrates .........................................21

1.1.1 Um novo começo ..............................................21

1.1.2 O apolíneo e o dionisíaco contra Sócrates ......... 23

1.1.3 O sentido do trágico e o cristianismo ................. 25

1.1.4 O logos socrático como expressão dadecadência ..................................................................27

1.2 A ruptura nietzschiana como Vontadede Potência .................................................................30

1.2.1 A vontade de potência como manifestação datensão entre o apolíneo e o dionisíaco ........................30

1.2.2 Vontade de potência x sujeito x Deus ...........32

1.3 A ruptura de Nietzsche com a tradição damoral cristã .......................................................................34

1.3.1 Psicologia x valores morais ...........................34

1.3.2 Valores morais x genealogia ..........................35

1.3.3 Da polêmica entre psicologia e história à vidacomo valor supremo ........................................................39

2 O advento da ciência como anúncio crepuscular dosujeito moral e do cristianismo ......................................44

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2.1 Da ciência ao sentido da terra .......................44

2.1.1 Uma visão científica de mundo .......................44

2.1.2 Ciência x sujeito moral ......................................46

2.1.3 Nietzsche e o dualismo cartesiano ..................47

2.1.4 Nietzsche x dualismo kantiano ...........................48

2.2 Da ciência à afirmação da vida ......................52

2.2.1 Da ciência à vontade de criação ........................52

2.2.2 A natureza como expressão de vontade depotência frente ao Deus moral ........................................54

2.2.3 Da moral dualista à ciência plural complementar ..55

2.2.4 Genealogia: A ciência diagnosticadora dosmales da cultura .............................................................56

2.3 Da ciência à nova Religião ............................59

2.3.1 Metafísica e vontade de potência ..................59

2.3.2 Deus e Ciência ................................................62

2.3.3 Deus e a linguagem ........................................65

2.3.4 Da ciência à morte de Deus ............................67

3 Cristianismo e transvaloração. Uma leitura doZaratustra e do Anticristo .............................................71

3.1 Paulo e a inversão do cristianismo ..................71

3.1.1 Zaratustra, o peregrino da transvaloração .........71

3.1.2 Dualismo e reconciliação ....................................73

3.1.3 Genealogia e cristianismo: a moral paulina ........74

3.2 Lutero e a radicalização do dever moral ...........80

3.2.1 Cristianismo e sujeição ......................................80

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3.2.2 A corrupção da moderna filosofia pela teologiaprotestante .........................................................................82

3.3 Jesus, o cristão autêntico ..................................84

3.3.1 Da superação da crença em Deus às novas tábuasde valores .......................................................................84

3.3.2 A transvaloração dos valores culturais através davida e prática de Jesus de Nazaré ....................................88

CONCLUSÃO .................................................................95

REFERÊNCIAS ............................................................102

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PRÉFACE

La philosophie de Nietzsche est assez universellement reconnue de nos jours comme l’une des grandes philosophies modernes, bien qu’elle soit par beaucoup de côtés aussi antimoderne. Mais son accès est difficile: apparemment de style séduisant et clair, la pensée de Nietzsche propose à son lecteur d’entrer dans un labyrinthe où il se perd, car paradoxalement le philosophe écrit pour ne pas être compris, comme il le dit lui-même à plusieurs reprises dans des passages célèbres. Comme en tout labyrinthe l’accès semble simple : pas de vocabulaire technique comme chez un Hegel ou un Heidegger, pas de raisonnements abstraits ou compliqués, peu ou pas de références savantes à d’autres philosophies, mais des poèmes, des aphorismes généralement assez courts, une prose évocatrice des problèmes de la vie de tous les jours, un ton provocant qui semble parler immédiatement. Il ne faut pourtant pas s’y tromper : derrière cette entrée en matière apparemment aisée, se cachent des abîmes redoutables.

Aussi convient-il d’être introduit par des guides qui se sont eux-mêmes aventurés dans le voyage. Le livre qu’on va lire est de ceux-là. Il ne dispense certes pas de recourir soi-même au texte original ; il doit plutôt y conduire. Et ceci parce que Nietzsche n’est pas un penseur banal : à travers lui nous trouvons comme anticipés les problèmes que nous rencontrons aujourd’hui dans une société moderne déçue de ses propres succès, dans des démocraties où les abus dans les appels aux droits aboutissent à l’éparpillement individualiste, où la religion a perdu de son prestige et de son emprise sociale (selon le thème célèbre et si mal compris de «la mort de Dieu»), où, surtout, les volontés sont fatiguées, désabusées, accablées par l’ampleur des difficultés planétaires que nous rencontrons. Une telle fatigue de la volonté est précisément ce que Nietzsche diagnostique sous le nom de nihilisme. Et comment ne pas voir que nous devenons de plus en plus des «esclaves» (de la publicité, de l’opinion, des médias) et que nous avons grand peine à être réellement des «créateurs», ou selon le vocabulaire nietzschéen des «nobles», des «gens distingués», des «affirmateurs» ? Si le diagnostic de Nietzsche est impitoyable, il n’est pas seulement critique. Le philosophe veut aider celui qui le fréquente à devenir un créateur, pas seulement un négateur ou un mécontent ; il l’appelle à se forger une volonté apte à dire oui et à faire de son existence une œuvre d’art, donc à travailler positivement à la «métamorphose» (Verwandlung) de soi.

Dans ce contexte la relation de Nietzsche au christianisme est tout à fait essentielle : protestant de formation, Nietzsche ne cessera de batailler

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contre le christianisme (en réalité contre la théologien paulinienne plus que contre Jésus qu’il admirait par bien des côtés). C’est que loin d’être un athée vulgaire, Nietzsche est un homme assoiffé du divin ; sa virulente critique du monothéisme (ou comme il disait du «monotono-théisme») n’est que l’envers d’un appel à une ouverture vers cette Eternité qui échappe à toute prise, alors que les monothéismes prétendent savoir ce qu’il en est de Dieu.

Le livre qu’on va lire aidera le lecteur à se repérer dans le labyrinthe, ainsi que dans la vaste littérature qui lui a été consacrée. Il permet la rencontre avec un philosophe difficile, excessif par bien des côtés, agaçant même par la radicalité et la violence de ses propos. Il conduira à cette «rumination» d’une pensée complexe qu’on se doit de fréquenter longuement et patiemment pour pouvoir l’entendre. Comme dit Nietzsche, reprenant l’Evangile, «que celui qui a des oreilles pour entendre, qu’il entende !». Mais tout le monde a-t-il des oreilles pour entendre ?

Paul Valadier, sj Professeur émérite des Facultés

jésuites de Paris.

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PREFÁCIO

Karl Jaspers, pensador alemão hoje infelizmente bastante esquecido, foi um dos que mais estudou Nietzsche e, mesmo sem se considerar um pensador cristão, publicou textos profundos como “Nietzsche e o Cristianismo”, que já inicia com a constatação: Sabe-se com que inaudita rudeza Nietzsche rejeitou o cristianismo. Quinze linhas adiante, porém, vai logo avisando: se não se conhece senão esta hostilidade, ter-se-á, ao estudar Nietzsche, muitas ocasiões de se admirar, achar-se-ão frases que parecem totalmente incompatíveis com estas ideias anticristãs.

É claro que outros autores preferirão ver somente um dos lados da história, reconstruindo apenas uma visão coerente, que nem sempre esgota o pensamento de alguns dos grandes filósofos. É claro que é mais fácil posicionar-se de um lado só: com os cristãos contra Nietzsche ou com Nietzsche contra o cristianismo.

Ora, ninguém desconhece que em termos puramente quantitativos, os julgamentos negativos que brotam da pena de Nietzsche são muito mais numerosos, sobre o cristianismo, do que os positivos. E não há como desconhecer que este pensador alemão não teve a mesma sutileza do dinamarquês Kierkegaard, o qual diferenciou claramente entre o cristianismo, mensagem de vida, existencial, e a cristandade, conceito sociológico, geográfico e exterior, massificador. No entanto, embora Nietzsche não se reduza a criticar a Igreja que quer ser triunfante em vez de militante, ou a hierarquia eclesiástica, muitas vezes farisaica e mundanizada, mas critique também os primeiros cristãos (como ressentidos) e os Evangelhos (como anúncio de uma má nova), e especialmente São Paulo (o verdadeiro inventor do cristianismo), chegando a atingir com suas críticas até o próprio Jesus Cristo, a quem designa – com Dostoievski, é verdade – de “idiota”, ele também tem algumas passagens misteriosas que costumam embaraçar seus intérpretes. Em especial, citemos sua insistência sobre a “prática cristã”, que seria mais essencial do que uma fé entendida como um “ter algo por verdadeiro”, bem como a correspondente utilização, por parte de Nietzsche, de expressões tão importantes como “ser-cristão (Christ-sein)” e “cristicidade” ou “cristianidade” (Christlichkeit).

Sobre este último ponto poderíamos recorrer ao pensador francês Henri-Bernard Vergote, um dos maiores conhecedores de Kierkegaard, num importante artigo (póstumo) no número 19 da revista internacional Kierkegaardiana. É muito mais fácil, porém, e mais interessante evocarmos Oswaldo Giacóia

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Júnior, em seu belo livro Labirintos da Alma (Ed. Unicamp, 1997), em especial no texto intitulado: “Notas para uma interpretação da figura histórica de Jesus do ponto de vista d’O Anticristo de Nietzsche”, que ali se encontra.

Mas convém aí corrigir o erro de traduzir, no § 39, a expressão “Christlichkeit”, por “cristandade” (tal como o fez aqui Giacóia, à p. 80) ou por “cristianismo” (tal como o faz Rubens Eduardo Frias, aliás com vários erros de tradução no contexto). Que se traduza então “Christlichkeit” pelo menos por “vida cristã” (tal como o arriscou Pietro Nassetti, em sua tradução para a Martin Claret). Infelizmente, mesmo este último tradutor ainda hesitou, inseguro, talvez sem entender até o fim ou até o fundo o que o autor queria mesmo dizer, e por isso traduziu o seguinte texto nietzschiano: Das Christ-sein, die Christlichkeit auf ein Für-wahr-halten (...) reduzieren, heißt die Christlichkeit negieren em parte certo, em parte errado, assim: reduzir o fato de se ser cristão, a vida cristã, a um fato de crença (...) é o que se pode chamar negar o cristianismo.

Ora, a tradução portuguesa, das Edições 70, foi mais feliz neste ponto. E o artigo de H.-B. Vergote, intitulado “Kierkegaard – Philosophe de la Christianité”, também é bastante feliz, quando explica, por exemplo, que:

a oposição preparada por Nietzsche é muito mais radical, e o originário procurado não convida de jeito nenhum a chamar do cristianismo histórico ao cristianismo primitivo. “A palavra ‘cristianismo’ já é um mal-entendido”, lemos no § 39 de O Anticristo, já que também sem dúvida só houve um cristão e “esse morreu na cruz”. O originário que se revela na origem é um “ser diferente” e não uma crença, uma prática, em vista da qual todo sistema de crenças é reputado como puro mal-entendido: “É falso até o absurdo ver em uma ‘fé’, por exemplo, a fé na salvação pelo Cristo, a marca distintiva do cristão: somente a prática cristã, uma vida como a viveu aquele que morreu na cruz, é cristã... Ainda hoje uma tal vida é possível, e mesmo, para alguns homens, até necessária” (H.-B. VERGOTE, Kierkegaardiana 19, p. 10).

Arriscando-se a interpretar Nietzsche, Vergote continua mais adiante:

A marca distintiva do cristão: das Christliche, ou, mais precisamente ainda, die Christlichkeit; o conjunto dos caracteres que permitiriam reconhecer que um ser é

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autenticamente cristão, e não o conjunto dos seres (cristandade) ou das doutrinas (cristianismo) que se reclamam do Cristo: eis o que o adversário mais decidido do cristianismo, o profeta do declínio da cristandade, convidava a pensar; e a pensar como determinação de uma vida que “hoje ainda é possível” (Kierkegaardiana 19, p. 11).

Com isto, Vergote já disse tudo, explicitou a problemática insinuada por Jaspers e mostrou que há muitas questões em aberto, até nos textos mais duros da crítica nietzschiana. Mas sendo assim as coisas, talvez valha a pena correr alguns riscos e tentar interpretar este filósofo tão polêmico, ao mesmo tempo que tão profundo e sério. É o que muitos têm feito, e foi o que fez também o jesuíta Adilson Feiler, em sua dissertação de mestrado da Unisinos, agora transformada em livro. Os bons jesuítas sempre foram corajosos e desde as suas origens estão treinados e acostumados a ultrapassar as fronteiras, para trabalhar em sua missão no meio dos que pensam diferentemente. Não é outra coisa o que faz Adilson Feiler.

Com enorme paixão, e até com estranha reverência por seu polêmico autor, Adilson enfrentou a fera em sua arena principal: na crítica da cultura cristã a partir da desconstrução do sujeito moral. Poderia haver um campo mais perigoso, para se arriscar? Mas é assim que se estruturam os grandes diálogos: quando ousamos ouvir o outro em sua real alteridade; ou, formulado na estratégia inaciana, entrando pela porta do outro para sair pela nossa. Kierkegaard, bom luterano a quem a noiva prevenia de que um dia acabaria jesuíta, se não se emendasse, daria ainda uma terceira formulação: procurar a verdade mais autêntica no meio da confusão, utilizando a arte ou a técnica socrática que consistia em saber distinguir as coisas.

A obra que aqui leremos enfoca, portanto, a questão moral e discute a própria noção de sujeito. Analisa com Nietzsche a cultura moderna e neste contexto compreende a tese da morte de Deus. Mas, ao mesmo tempo em que critica o moralismo religioso, insiste com Nietzsche na apresentação do Jesus histórico como aquele que legou à humanidade uma prática de vida.

Adilson acompanha seu autor inclusive na discutível questão da aristocracia cultural. Enquanto outros, para ficarem mais perto de um Cristo amigo dos pobres e das crianças, desconfiariam de todo aristocratismo, Adilson assume esta faceta nietzschiana, e vale a pena vermos, ao longo deste livro, se o faz de forma convincente e coerente com suas mais profundas convicções de alguém que quer ser fiel à Companhia de Jesus.

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Em discussões com Adilson Feiler, enquanto ele redigia o presente texto, várias vezes tivemos opiniões um tanto diferenciadas na questão de como valorizar os papas da Renascença e a importância de Lutero. Ele levava mais a sério os elogios de Nietzsche àqueles papas e à família Borgia (à qual pertencia, parece, o Geral da Companhia, São Francisco de Borja). E não simpatizava tanto, seguindo nisto de perto seu autor, com aquele monge angustiado que provocou a Reforma, no século XVI.

Como reagiria Santo Inácio de Loyola, se vivo fosse, ao ler as críticas de Nietzsche a Lutero? Simpatizaria mais com o ateu ou com o protestante? Talvez se sentisse mais próximo dos luteranos, embora não perdesse a oportunidade de uma pequena provocação, lembrando a Martinho que ambos não queriam que seus seguidores usassem os seus nomes, e que ele, Inácio, nisto tivera mais sucesso, pois os inacianos são conhecidos como Jesuítas, enquanto aqueles evangélicos ainda hoje atendem por Luteranos. Mas isto constituiria talvez uma pequena rixa de família, entre irmãos.

De qualquer modo, é possível que os três (Inácio, Martinho e Frederico) acabassem concordando na interpretação da vida cristã como prática. Embora um Robert Perkins ache muito pequena a concessão de Nietzsche, de que sempre haverá lugar, e até talvez necessariamente, para alguns sujeitos viverem conforme o modelo do Crucificado – pois isto significaria apenas que cada um teria o direito de imitar o idiota que quisesse – preferimos achar que neste diálogo, com polêmicas e ironias (principalmente se os luteranos trouxessem Kierkegaard como seu advogado), o saldo pode ser bem positivo.

Cabe ao leitor, esclarecido, julgar, ao longo deste livro de Adilson Feiler, de quem o mínimo que se pode dizer é que se esforçou enormemente para fazer o trabalho de um bom leitor, consultando sempre os originais alemães e tratando de interpretar sem preconceitos o autor que escolheu.

Álvaro L. M. Valls

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APRESENTAÇÃO

Em nome da defesa dos valores nobres e aristocráticos, Friedrich Nietzsche (1844-1900) busca resgatar toda a herança cultural europeia que, segundo ele, entrou em decadência a partir de Sócrates (cerca de 470-399 a.C.).

Nietzsche considera “bárbaro” todo aquele que se coloca contra a vida,2 como uma barreira no caminho de todos os homens poderosos e criadores, que representam o verdadeiro ideal da cultura: “Assim também existem, entre os povos de gênio, aqueles a quem coube o problema feminino da gravidez e a secreta missão de plasmar, amadurecer, consumar – os gregos, por exemplo, foram um povo desse tipo” (ABM, VIII, § 248, p. 157 / KSA – V, p. 191). Nietzsche propõe, então, um retorno aos ideais da cultura grega, a qual sintetiza a harmonia da afirmação da vida. Para tanto, desconstrói tudo aquilo que na cultura ocidental, como é o caso da moral e da religião, constitui, segundo ele, um entrave ao desenvolvimento deste ideal de afirmação da vida. Este Ideal é representado mediante a distinção das duas disposições (experiências) artísticas fundamentais do ser humano: a apolínea (representada pelo deus Apolo, deus da ordem e da moderação dos instintos) e a dionisíaca (representada pelo deus Dionísio, deus da música, da desordem e da imoderação). É em Dionísio que se manifesta o verdadeiro ideal de afirmação da vida: “A arte trágica, rica por ambas as experiências, vem indicada com a conciliação de Apolo com Dionísio” (FP, XII, § 2 [110], outono de 1885, p. 116).

Esse ideal de afirmação da vida, contra tudo o que dela constitui negação e morte, como é o caso, segundo Nietzsche, da moral cristã, vem indicado pela experiência artística: “[...] qual feiticeira da salvação e da cura, a arte, só ela tem o poder de transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência em representações com as quais é possível viver” (NT, III, § 7, p. 56 / KSA – I, p. 57). A afirmação da vida e a experiência artística, ambas inseparavelmente ligadas, constituem a dupla interpretação niilista. Esta interpretação encontra-se visivelmente manifesta na noção de eterno retorno, de modo que, assim como os desafios da vida retornam eternamente, mas de forma travestida, a contemplação de uma obra de arte produz em nós o desejo de incessantemente revivê-la, proporcionando-nos os efeitos mais intensos, os quais compõem o estado estético, cuja tragédia constitui a mais alta expressão. Neste estado estético há, sem dúvida, uma explosão de energia, um aumento

2 Nietzsche compreende a vida como a totalidade de todas as funções orgânicas, cuja tensão, que se depreende do conjunto de propriedades e fenômenos fisiológicos e emocionais, constitui a manifestação da plenitude da força.

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de potência, de prazer, de imobilismo, de embriaguez dionisíaca, de efeitos particulares desencadeados pela nobre riqueza interior, fazendo com que a consciência seja suprimida e as pulsões inconscientes liberadas.

Ao desconstruir a moral, há que se desconstruir também o sujeito, uma vez que só existe moral enquanto existe um sujeito que age de acordo com um fim (telos). A principal negação da vida provém, segundo Nietzsche, da moral cristã, que faz com que o homem ponha suas raízes em um mundo e em um Deus transcendentes e com que despreze e renuncie a realidade deste mundo terreno, que é, segundo o filósofo, o único mundo existente, o mundo da vida. Mas de que modo estaria a moral cristã na origem de um modo de vida que se opõe à vida? A este respeito Nietzsche escreve: “Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual” (ABM, III, § 47, p. 53 / KSA – V, p. 67). Seria, pois, a esses três aspectos que ele atribui, na moral cristã, prescrições que aniquilam a vida?

Contra tais prescrições, Nietzsche investe a marteladas, movido pelo ímpeto de transvalorar todos aqueles valores até então tidos como inabaláveis: “Parti, parti, meus irmãos, essas velhas tábuas dos devotos! Parti as sentenças dos caluniadores do mundo!” (AFZ, III “Das velhas e novas tábuas”, § 15, p. 245 / KSA, - IV, p. 257). Em lugar das velhas tábuas, propõe uma nova, que traz, como ponto de partida, um manifesto de fidelidade à terra ou, no dizer do filósofo, “o resgate do sentido da terra” evocado por Zaratustra, de onde deve brotar o além-do-homem como expressão de um mundo que é vontade de potência:

Algum dia, porém, num tempo mais forte do que esse presente murcho, inseguro de si mesmo, ele virá, o homem redentor, o homem do grande amor e do grande desprezo, o espírito criador cuja força impulsora afastará sempre de toda transcendência e toda insignificância, cuja solidão será mal compreendida pelo povo, como se fosse fuga da realidade (GM, II § 24, p. 84 / KSA – V, p. 336).

Esse homem novo representa na filosofia nietzschiana o espírito livre,

aquele que se tornou dócil ao mundo em devir, já que nada há fora deste mundo que, como diz, é circunscrito pelo nada. Na concepção heraclitiana de devir é que se encontra a origem de sua noção de eterno retorno:3 “Oh, como não 3 Na interpretação heraclitiana do devir não está implicado o eterno retorno do mesmo. Este último é antes uma tese estoica que Nietzsche erroneamente atribui a Heráclito (cerca de 550-480 a.C.).

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deveria eu almejar a eternidade, e o nupcial anel dos anéis – o anel do retorno? Nunca encontrarei, ainda, a mulher da qual desejaria ter filhos, a não ser esta mulher que amo; pois eu te amo, ó eternidade! Pois eu te amo, ó eternidade!” (AFZ, III, “Os sete selos”, § 1, p. 271 / KSA – IV, p. 287). Nesse contexto o homem não é senão um dos canais pelos quais se dá a epifania do mundo, no qual se manifesta o seu devir como vontade de potência. Logo, se o mundo está intimamente ligado à ideia de mudança, não teria ele um ponto de onde pudesse ter se originado? Se para Nietzsche nada há de determinado e imutável, não residiria sua crítica precisamente no caráter de determinação e imutabilidade dos princípios os quais fundamentam a metafísica e que constituem a base para o estabelecimento do cristianismo, enquanto corpo doutrinário? Mas seria o cristianismo, como um todo, compreendido como um corpo doutrinário? Ou haveria algum aspecto da mensagem cristã, que, distante desse caráter dogmático, coabitaria ainda com a filosofia de Nietzsche?

Como já foi acenado, Nietzsche, no seu afã de desconstruir tudo o que a tradição metafísica construiu, tem como meta a desconstrução do sujeito. Algumas passagens de sua obra ilustram o que pensava a esse respeito, como nesta que segue: “Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: conceitos como ‘alma mortal’, alma como pluralidade do sujeito e alma como estrutura dos impulsos e afetos” (ABM, I, § 12, p. 19 / KSA – V, p. 27). De acordo com Nietzsche, não há como conceber nada como eterno e indestrutível, como é o caso de uma compreensão do caráter “atômico”4 da alma. Toda a ordem existente, estabelecida pela filosofia em seu esforço de compreender, ordenando o mundo, seria então reconhecida pela multiplicidade e pelo caos? E esse caos se encontraria em todos os componentes do mundo e dentre esses no sujeito? O sujeito é entendido pela cultura metafísica como aquele que age movido por um fim (telos, que é transcendente ao mundo na maioria dos casos). Ora se Nietzsche exclui a finalidade, ele exclui com esta a própria noção do sujeito – um sujeito pensado em vista de um fim que lhe seja exterior. Como, então, pode-se afirmar a vida em semelhantes condições?

Tendo assim presentes as questões explicitadas, pretendemos analisar os aspectos que se encontram na gênese da filosofia nietzschiana e, sobretudo, os referentes à sua crítica da moral cristã e à desconstrução do sujeito que desta crítica se depreende, em sua tentativa de encontrar uma resposta para a decadência da cultura.

4 Em Além do Bem e do Mal, Nietzsche utiliza a expressão “atomismo da alma“, para indicar uma certa compreensão da alma como mônada (ABM, I, § 120, p. 19 / KSA – V, p. 26-27).

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No primeiro capítulo, apresentaremos as bases estruturais da cultura ocidental que constituem o alvo da crítica nietzschiana; para tanto, o intitulamos: “Nietzsche: da ruptura a um novo começo”. Como essa ruptura se dá em diferentes aspectos, subdividimos o capítulo em três partes, correspondentes aos três períodos do pensamento de Nietzsche.

A primeira apresenta a ruptura de Nietzsche com o itinerário da tradição cristã ocidental, para o qual o filósofo alemão propõe um novo começo, a partir de Sócrates. Esta primeira parte corresponde àquele período, denominado, segundo Scarlett Marton, “pessimismo romântico”, em que Nietzsche exalta a primitiva cultura grega e em cuja obra “O nascimento da Tragédia” é central. Na segunda parte, apresentamos a ruptura nietzschiana com a tradição filosófica ocidental, a partir do advento do conceito de vontade de potência, e acenamos para alguns pontos que sugerem o segundo período da filosofia nietzschiana, denominado, de acordo com Marton, “positivismo cético”, cujo acento está na afirmação da ciência. Essa segunda parte já antecipa elementos que compõem o terceiro período do pensamento de Nietzsche, que é denominado, segundo Marton: “transvaloração dos valores”. E este é o tema da terceira parte de nossa pesquisa, em que apresentamos a ruptura de Nietzsche com a tradição da moral cristã. Nesse capítulo, ganham força os elementos geradores de nossa pesquisa, verdadeiro renascimento do primeiro período, solo para o florescimento de novas noções como: “eterno retorno”, “vontade de potência” e “além-do-homem”.

Assim, apresentadas as bases estruturais, que compõem a crítica Nietzschiana à cultura como uma ruptura de todo o “foi assim” abrindo perspectivas para o “assim eu quero”, ou seja, uma ruptura a partir das bases sobre as quais foram gerados os valores permeados pela fixidez e pelo dogmatismo, raízes que, segundo Nietzsche, são toda a fraqueza e submissão sobre a qual repousa a concepção de sujeito, apresentamos, no segundo capítulo, a dupla compreensão de Nietzsche a respeito da ciência. Se por um lado, por meio dos desenvolvimentos técnico-científicos, Nietzsche pode concluir que aqueles valores transcendentes nos quais a humanidade até então havia depositado as suas crenças não têm mais sentido, como é o caso do Deus cristão (apresentado como morto); por outro lado, a ciência, no seu afã de adquirir a verdade como algo eterno e imutável, acaba caindo naquele mesmo erro dos metafísicos e transcendentalistas típicos da cultura ocidental. Desse modo, também Immanuel Kant (1724-1804), na visão de Nietzsche, a princípio tido como o grande crítico da metafísica por introduzir os procedimentos da razão pura no campo da moralidade, acaba radicalizando aquela concepção de sujeito

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moral voltado ao mundo da crença e ao mundo de um Deus, como postulados da razão. Kant é assim acusado por Nietzsche por ter permitido que a religião penetrasse na filosofia. Logo, tal como a ciência, que, por trás de seu aparato técnico-experimental, esconde a crença na efetivação da verdade ao modo de uma religião, o pensamento do filósofo de Königsberg é tido por Nietzsche como um contrassenso por esconder atrás de seu rigorismo técnico-racional a crença, no fundo religiosa, na qual a verdade é eterna, universal e imutável.

Ora, por essa razão, o pensamento de Nietzsche, voltado à crítica da cultura ocidental, busca, precisamente no seu terceiro período, ir muito além da crítica que o mundo técnico e científico faz dos valores, da metafísica e da religião. Nietzsche propõe uma destruição do solo em que tais valores se originaram. Propõe, ainda, uma transvaloração de todos os valores, tema que tem espaço na apresentação do terceiro capítulo. Neste, temos como obras principais a nortear a nossa reflexão: Assim falou Zaratustra (1883-85), considerada como a de maior envergadura literária de Nietzsche, e O Anticristo (1888), na qual muitos dos temas do Zaratustra reaparecem, porém com um teor mais incisivo. Veremos, então, que Nietzsche lança à cultura cristã ocidental as suas críticas mais incisivas, embora, em alguns momentos, dê margens a considerações do tipo Jesus de Nazaré como um espírito livre. Segundo o autor, a cultura cristã falseia a vida e a prática pregadas por Jesus, cujas expressões mais altas apresentam-se nas figuras de Paulo de Tarso (10 d.C.-67 d.C.) e de Martinho Lutero (1483-1546). Ambos, de acordo com a leitura de Nietzsche, adulteram o cristianismo, por isso a eles pode ser aplicada a figura do Anticristo (inspirada em Nero, por meio da literatura de Ernesto Renan). Este falseamento está no fato de contribuírem para a radicalização da moral cristã, que se expressa através da sua luta contra a aristocracia cristã em favor das massas enfraquecidas da sociedade. E, dado que a filosofia de Nietzsche se constitui sobre uma concepção de força, tudo o que inspira fraqueza contribui, na visão do filósofo, para a decadência, o niilismo da cultura. Veremos que a própria moral, quando ligada a tudo o que é forte, alto, como é o caso da moral do senhor que se manifesta na Igreja petrina e renascentista, é tida em alta consideração por Nietzsche.

Assim, muito mais do que provar que Deus esteja morto ou que o cristianismo como um todo seja o responsável pela decadência cultural, a filosofia de Nietzsche se constrói como um exercício de coerência, que conduz a um desmascaramento de todos aqueles valores consagrados pela tradição. Por carregarem as marcas da fixidez e do dogmatismo, esses valores, cuja

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manifestação mais forte repousa sobre a concepção de sujeito moral, na qual a fraqueza possui o seu terreno principal de atuação, acabam eliminando aquela expressão da plenitude da vida, no dizer do filósofo, representada pela mobilidade e pela força. Logo, é exclusivamente contra esta concepção de sujeito moral, fraco e decadente, presente na cultura cristã ocidental, que a filosofia de Nietzsche endereça as suas críticas, como poderemos perceber ao longo dos capítulos que compõem a pesquisa.

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CAPÍTULO 1

NIETZSCHE: DA RUPTURA A UM NOVO COMEÇO

1.1 A RUPTURA DE NIETZSCHE COM A TRADIÇÃO CRISTÃ OCIDENTAL A PARTIR DE SÓCRATES

1.1.1 UM NOVO COMEÇO

m dia, o meu nome será ligado a lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a terra, da mais profunda colisão de consciências, de uma decisão conjurada contra

tudo o que até então foi acreditado, santificado, requerido. Eu não sou um homem, sou dinamite (EH, Por que sou um destino, § 1, p. 109 / KSA – VI, p. 365).

A figura de Nietzsche está ligada a um evento inédito na história da filosofia, em que a crítica radical da religião, da ciência e da moral chega a grandes proporções. Nietzsche desfere impiedosamente golpes a martelo a todo o passado que a tradição metafísica tem consagrado.

Ao modo de Georg Hegel (1770-1831), Nietzsche desenvolve uma consciência histórica5 voltada à reflexão sobre todo o passado da cultura ocidental, desde a origem dos primeiros pensadores gregos. Porém, Hegel, seguindo a reflexão de Eugen Fink (1980, p. 8):

[...] leva a cabo uma imensa tarefa conceptual ao repensar e integrar todas as transformações da compreensão humana do ser, reunindo todos os temas contraditórios da história da metafísica na unidade superior do seu sistema e levando assim essa história metafísica a uma conclusão.

Nietzsche, por sua parte, considera o itinerário do pensamento ocidental como a história de um longo equívoco, frente ao qual torna urgente o empreendimento de uma desconstrução e de um novo caminho. Como podemos verificar nesta passagem: “[...] – como poeta e decifrador de enigmas, vindo para redimir os homens do acaso, ensinei-lhes a criar o futuro e a redimir, de 5 Embora entre Nietzsche e Hegel haja uma diferença evidente, no próprio modo de considerar a consciência histórica, é possível verificar em ambos os autores um posicionamento crítico com relação à tradição metafísica.

U

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maneira criadora – tudo o que foi” (AFZ, III, Das velhas e novas tábuas, § 3, p. 236 / KSA – IV, p. 248-9). Ele opõe a filosofia da vida à tradição metafísica. O ideal de afirmação da vida passa a ser o seu critério fundamental, em cujas pegadas ele pensa o ser, subvertendo a metafísica que os longos vinte e cinco séculos têm consagrado: “Falando seriamente, há boas razões para esperar que toda dogmatização em filosofia, não importando o ar solene e definitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que uma nobre infantilidade e coisa de iniciantes” (ABM, prólogo, p. 7 / KSA – V, p. 11).

A experiência nietzschiana original do ser remonta a dois mil e quinhentos anos, a Heráclito, a raiz primordial de sua filosofia. Contudo, esse retorno a Heráclito já fora anteriormente proposto por Hegel para a edificação de seu sistema.6 Nietzsche, avesso a toda e qualquer ideia de sistema, permanece, diferentemente de Hegel, apenas naquele movimento entre o ser e o nada, o algo e o outro. Por não produzir uma síntese, essa tensão entre o ser e o nada foge a toda fixidez e dogmatismo. Desse modo, da filosofia de Nietzsche, depreende-se um tipo de conhecimento que, longe de constituir a verdade, nada mais é que uma multiplicidade de perspectivas. Dessa ausência de referenciais e de critérios fixos, Nietzsche aponta à humanidade o advento do niilismo, no qual a cultura ocidental, em especial o cristianismo, sofre um abalo geral em suas estruturas. Scarlett Marton (2000, p. 21) escreve uma passagem que ilustra esse fato: “Com a morte de Deus, o filósofo nomeia o destino de vinte séculos da história ocidental, apreendendo-a como o advir e o desdobrar-se do niilismo”.

Frente aos conceitos estabelecidos na filosofia ocidental, Nietzsche opõe uma filosofia da existência, que se coloca contra a própria questão dos valores tradicionais. Opera, em outras palavras, uma inversão no que diz respeito às questões do ser para as questões de valor, efetuando, com isso, no dizer de Fink (1980), um novo começo em que a vida se abre a partir de uma perspectiva criadora de valores. Aqueles valores existentes (objetivos), em torno dos quais está unida uma comunidade, abrem espaço para valores relativos à existência de cada indivíduo em particular (subjetivos). Fink (1980, p. 131), com respeito a estes últimos, diz que, “Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca diante de si a sua própria criação como um objeto estranho dotado de todas as características mais notáveis de ser em si”. Assim, aqueles valores, outrora ditos objetivos, não passam de uma criação da existência humana, expressam-se a partir de conceitos fundados na fixidez e no dogmatismo, como é o 6 O sistema hegeliano parte do princípio de que, no começo de uma filosofia, não pode haver nada de determinado, nenhuma essência fixa. Este primeiro princípio é o ser vazio de todo o conteúdo, idêntico ao nada. Porém, nesta identidade de termos contraditórios, o ser-nada indeterminado se determina e é aqui que temos o devir Werden, que é o ser determinado Dasein (HEGEL, 1968).

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caso dos conceitos de “eu” e de “sujeito”, tidos como a causa da ação. Essa relação causa e efeito acaba eliminando, de acordo com a visão de Nietzsche, a pluralidade e a dinamicidade instintual que compõem a vida, ocasionando a fraqueza, a debilidade e a negação, responsáveis pela decadência da cultura. E movido pelo ímpeto de instaurar uma cultura superior, Nietzsche aponta, a partir de seu procedimento genealógico, a moral cristã como responsável principal da decadência cultural. Porém, o filósofo luta contra a desonestidade e a incoerência presentes no cristianismo, razão pela qual podemos citar Fink (1980, p. 130) que diz que “Ele não chega a triunfar do cristianismo, uma vez que luta contra uma caricatura do cristianismo”.

O combate implacável que Nietzsche empreende contra a cultura da moral cristã, colocando tudo que a ela subjaz sob suspeita, valeu-lhe a designação de filósofo da suspeita. Isto se revela na forma pela qual ele toma o objeto principal de nosso estudo: a moral e a própria figura de Jesus de Nazaré. O caminho que Nietzsche percorre é aquele que toma como ponto de partida, não mais Sócrates, mas aquele que leva aos gregos antigos.

O modo pelo qual Nietzsche retoma os gregos antigos, no intuito de fundamentar o seu ideal de afirmação da vida, contra tudo o que dela constitui negação, decadência e morte, como é o caso da moral e do cristianismo, é o que iremos acompanhar nos tópicos seguintes.

1.1.2 O APOLÍNEO E O DIONISÍACO CONTRA SÓCRATES

Esse recuo que Nietzsche opera na história rumo aos gregos antigos tem como alvo o antagonismo representado pelos deuses da mitologia grega: Apolo7 e Dionísio,8 os quais representam forças antagônicas a impulsionar a tragédia. Assim, a filosofia de Nietzsche, como nos aponta Oswaldo Giacóia Junior (2000, p. 72), tem, na tragédia, o seu verdadeiro início. A tragédia é resultado da influência de ambas as divindades, como disposições artísticas; tal como Nietzsche diz: “Em oposição a todos aqueles que se empenham em derivar as artes de um princípio único, tomado como fonte vital necessária de toda obra de arte, detenho o olhar naquelas duas divindades artísticas dos gregos, Apolo e Dionísio, e reconheço neles os representantes vivos e evidentes 7 Apolo, também chamado de Febo, filho de Júpiter (Zeus) e Latona, por ter uma atitude de vingança, foi condenado por Júpiter a viver na Terra. Tendo aprendido a lição, tornou-se o deus da ordem, inimigo da barbárie, em defesa da moderação em todas as coisas.8 Dionísio, também chamado de Baco, era filho de Zeus e Sémele. Ainda no ventre materno, sofre um atentado de morte por parte do ódio de Hera. Consegue, porém, sobreviver, tornando-se uma força oposta às hostilidades conservadoras, neste sentido, apontando para uma forma de vida regida pela imoderação dos instintos, pela orgia e pela música.

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de dois mundos artísticos diferentes em sua essência mais funda e em suas metas mais altas” (NT, III, § 16, p. 97 / KSA – I, p. 103). Ela, a tragédia, une a plasticidade apolínea à musicalidade dionisíaca, a arte do representante plástico à arte não figurada da música: “Essa imensa oposição que se abre abismal entre a arte plástica, como arte apolínea, e a música, como arte dionisíaca” (NT, III, § 16, p. 97 / KSA – I, p. 103). A luta e a contraposição que existe frequentemente entre ambos incitam a produção de coisas sempre novas, como é o caso da manifestação do sonho, como expressão jubilosa do que há de mais íntimo e profundo em cada um de nós.

A oposição que Nietzsche refere entre Apolo e Dionísio não representa a exclusão de um pelo outro, já que ambos são elementos indispensáveis e fundamentais para a composição da tragédia, mas representa um estado de permanente tensão entre forças opostas (construir e desconstruir) que aponta para o criar e o recriar artístico.

Em Sócrates, os elementos dionisíaco e apolíneo são extirpados da tragédia. Com respeito a este fato, Nietzsche escreve:

O que significa, justamente entre os gregos da melhor época, da mais forte, da mais valorosa, o mito trágico? E o descomunal fenômeno do dionisíaco? O que significa, dele nascida, a tragédia? – E, de outra parte: aquilo de que a tragédia morreu, o socratismo da moral, a dialética, a suficiência e a serenojovialidade do homem teórico – como? Não poderia ser precisamente esse socratismo um signo de declínio, do cansaço, da doença, de instintos que se dissolvem anárquicos? É a ‘serenojoavialidade grega’ do helenismo posterior, tão somente, um arrebol do crepúsculo? A vontade contra o pessimismo, apenas uma precaução do sofredor? E a ciência mesma, a nossa ciência – sim, o que significa em geral, encarada como sintoma da vida, toda a ciência? Para que, pior ainda, de onde – toda a ciência? Como? É a cientificidade talvez apenas um temor e uma escapatória ante o pessimismo? Uma sutil legítima defesa contra – a verdade? E, moralmente falando, algo como covardia e falsidade? E, amoralmente, uma astúcia? Ó Sócrates, Sócrates, foi este porventura o teu segredo?, ironista misterioso, foi esta, porventura, a tua – ironia? (NT, Tentativa de Autocrítica, § 01, p.14 / KSA – I, p. 12-13).

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Essa perda dos elementos dionisíaco e apolíneo acarreta a dissolução do efeito trágico.

Em Sócrates tem lugar a morte da tragédia e com ela a incipiente decadência da cultura. Os instintos são desertificados e anarquizados abrindo espaço à crítica representada pela fórmula Razão = Virtude = Felicidade. Segundo Nietzsche, esta fórmula encontra, no cristianismo, um terreno ainda mais fértil.

1.1.3. O SENTIDO DO TRÁGICO E O CRISTIANISMO

Na tragédia, Dionísio é considerado o único herói existente, subsistindo por detrás das figuras (máscaras) como as de Édipo9 e de Prometeu.10 Ele se assemelha a um indivíduo que erra, anela, sofre, numa pluralidade de configurações. Este estado de individuação que é fonte de todo sofrer alcança pela arte o anelo à unidade. A experiência artística proporciona esse ideal sublime de afirmação da vida, contra tudo o que dele constitui negação e morte.

O poder musical dionisíaco transforma o mito em veículo de sabedoria, tendo na tragédia a sua mais alta expressão.11 Por outro lado, quando o mito é submetido à inquirição racional, reivindicando sua facticidade histórica, acaba morrendo e se tornando religião. É a esse estado que, na visão de Nietzsche, o cristianismo como o maior movimento religioso da história da cultura ocidental tem se reduzido. Considerando a importância do mito, Nietzsche afirma: “Sem o mito, porém, toda a cultura perde sua força natural e criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural” (NT, III, § 23, p. 135 / KSA – I, p. 145).

Segundo a compreensão de Nietzsche, o cristianismo, entendido como um evento cultural revolucionário, racional e hierárquico, é um dos principais responsáveis pela perda do sentido originário do mito. Aquela força sublime que desencadeia a sabedoria trágica. Ora, sem o trágico, estanca-se a fonte suprema da vida. Como, então, podemos compreender a mensagem cristã como 9 Conf. SÓFOCLES. Tragédias completas. Trad. Ignacio Errandonea, SJ. Segunda Edición. Madrid: Aguilar, 1955, p. 201). * COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Thomaz Lopez. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint Ltda., Cap. 11. p. 205-207. * HAMILTON, Edith. A mitologia. Universidade Moderna 4. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, Parte V. Cap.II. p. 388-394 * GRAVES, Robert. Los mitos griegos. Vol. 2. Madrid: Alianza Editorial, 1985. p. 7-15.10 Conf. HAMILTON, Edith. A mitologia. Universidade Moderna 4. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1983, Parte I, Cap. IV. p. 103-108.11 “Desses fatos, em si compreensíveis e de modo algum inacessíveis a qualquer observação mais profunda, deduzo eu a capacidade da música para dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e precisamente o mito trágico: o mito que fala em símiles acerca do conhecimento dionisíaco” (NT, III, § 16, pag. 101 / KSA – I, p. 107).

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anunciadora da vida? Com respeito a essa óptica da vida aqui entra um novo problema que é o problema da moral.

O problema da moral, ligado à noção de valor, tem para Nietzsche uma importância muito grande: “A questão da origem dos valores morais é para mim, portanto, uma questão de primeira ordem, porque condiciona o futuro da humanidade” (EH, Aurora – Pensamentos sobre a moral como preconceito, § 2, p. 78 / KSA – VI, p. 330). Nietzsche considera os valores morais como sendo tudo aquilo que a tradição consagrou como realidade perfeita e acabada, atrofiando, oprimindo e enfraquecendo a vida. E é no cristianismo, compreendido como aquele aparato doutrinário e dogmático, que a moral, sob cuja tutela os homens devem pautar as suas vidas, tem a sua expressão mais forte. Além disso, a força dessa moral atua como afirmação de um mundo transcendente, governado por um Deus poderoso, onisciente e criador.12 Frente ao impasse entre estes dois mundos – o mundo transcendente e o mundo material, corpóreo –, Nietzsche traz como resposta a contraposição de dois fenômenos, representados por tudo aquilo que é fraco, inativo e decadente. O fenômeno da arte,13 cuja essência é a vida trágica,14 consiste naquele mecanismo pelo qual o mundo é decifrado, já que o mundo, no seu eterno retorno sobre si mesmo, nada mais é do que uma explosão de forças entre opostos. Essa luta entre opostos manifesta-se como fenômeno estético.

Quando Nietzsche contrapõe a arte à moral, ele retoma aquele tema inicial, com o qual procura fazer com que a filosofia perfaça um novo caminho. Caminho este representado pela substituição do estático (moral dogmática) pelo movimento (arte criativa). Dado que Nietzsche tem o intento de inaugurar na cultura ocidental um movimento aristocrático, este não se poderá concretizar a partir da moral inerte, mas sim a partir da dinâmica criativa. Por essa razão, o filósofo empreende guerra contra todo aquele aparato conceitual inerte, racional e dogmático que subjaz à cultura ocidental a partir de Sócrates.

12 “O cristianismo foi desde o início, essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarçava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a crença em ‘outra’ ou ‘melhor’ vida. O ódio ao ‘mundo’, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade” ( NT, I, § 5, p. 19 / KSA – I, p. 18).13 “[...] a doutrina cristã, a qual é e quer ser somente moral, e com seus padrões absolutos, já com sua veracidade de Deus, por exemplo, desterra a arte, toda arte, ao reino da mentira – isto é, nega-a, reprova-a, condena-a” (NT, I, § 5, p. 19 / KSA – I, p. 18). *“Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contravaloração da vida, puramente artística, anticristã” (NT, I, § 5, p. 20 / KSA – I, p. 19).14 “Na visão trágica do mundo encontram-se confundidas a vida e a morte, ascensão e decadência de tudo quanto é finito. O patético trágico não é um pessimismo passivo, mas uma descoberta que modifica a atuação de Nietzsche e o liberta da herança de Schopenhauer. O sentimento trágico da vida é antes a aceitação da vida, a jubilosa adesão também ao horrível e ao medonho, à morte e ao declínio” (FINK, 1980, p. 18).

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1.1.4 O LOGOS SOCRÁTICO COMO EXPRESSÃO DA DECADÊNCIA

Com Sócrates, a humanidade experimenta um novo alvorecer, marcado pela transição do mito para o logos. Esta nova configuração vem fixar a presença indispensável da razão a arbitrar sobre tudo o que compõe a existência.

Da razão, deriva-se um outro componente a ela intimamente associado: a moral. E é da junção entre esses dois componentes que se atingirá a felicidade. A racionalidade passa a ser redentora da humanidade, como um remédio para uma situação desesperadora: “O fanatismo, com o qual toda a reflexão grega se lança para a racionalidade, trai uma situação desesperadora” (CI, II, § 10, p. 22 / KSA – VI, p. 72).

Na posição de filósofo, Nietzsche denuncia que a cultura entrou em decadência em virtude da racionalidade na qual tem mergulhado. Estaria com isto, o filósofo, supondo que a cultura ocidental se resumiria num panracionalismo, solapador de todos os sentimentos e afetos? Além do mais, essa posição de Nietzsche não estaria baseada em razões? Como poderia, então, criticar a razão no seu todo? E qual seria essa situação desesperadora, frente à qual Nietzsche constata como equívoco o estabelecimento do racionalismo como decorrente da moral, como é o caso da moral cristã? Segundo Nietzsche, “O que eles escolhem como meio, como salvação, não é senão uma nova expressão de décadence” (CI, O problema de Sócrates, § 11, p. 23 / KSA – VI, p. 72). Assim, por considerar a razão e a moral a ela ligada como algo dado, fixo e inerte, o filósofo condena-as como expressão da fraqueza na qual a cultura ocidental tem mergulhado. Por isso, estabelece os instintos como contraponto que vem inaugurar uma cultura fundada em outras bases: o movimento, a tensão e a criação.

Ora, nada pode ser concebido como estático, uno e eterno; assim, é salva a concepção heraclitiana de devir, segundo a qual tudo está em constante movimento: “Se o povo dos outros filósofos rejeitou o testemunho dos sentidos porque esses indicavam a multiplicidade e a duração, ele rejeitou seu testemunho porque indicava as coisas como se elas possuíssem unidade e duração” (CI, A “razão na filosofia”, § 2, p. 26 / KSA – VI, p. 75). Giacóia, em relação a essa natureza instintual em devir, diz que: “Nesse processo, como em toda a história do espírito, nada é fato, dado, ‘natureza’, tudo é vir-a-ser” (GIACÓIA, 2002, p. 64).

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Se tudo está em constante movimento, como se pode admitir aqueles valores morais que são imputados à humanidade como eternos e imutáveis, como é o caso, na visão de Nietzsche, dos valores cristãos? Mas esses valores são sempre e necessariamente eternos e imutáveis? E, além desses valores, como podemos admitir o seu gerador e árbitro, o Deus cristão? É Ele imutável e eterno como os valores ou está sujeito à mudança? Certamente não poderíamos admiti-lo com base no vir-a-ser heraclitiano, ou com base nos instintos, já que, como ser supremo, reivindica ser “causa sui” (FINK, 1980, p. 130): “A causa sui [causa de si mesmo] é a maior autocontradição até agora imaginada, uma espécie de violentação e desnatureza lógica: mas o extravagante orgulho do homem conseguiu se enredar, de maneira profunda e terrível, precisamente nesse absurdo” (ABM, I Dos preconceitos dos filósofos, § 21, p. 26 / KSA – V, p. 35). Nesse momento, poderíamos trazer o dito de Fink a respeito do cristianismo. Segundo ele: “Se o cristianismo é a revelação do próprio Deus, nenhuma filosofia é susceptível de o molestar, mesmo ‘as portas do inferno’ não podem triunfar dele, toda a finita sabedoria se desagrega quando se faz ouvir a palavra do filho de Deus” (FINK, 1980, p. 130). Fink, contrapondo-se frontalmente a Nietzsche, procura salvaguardar os valores divinos, mas não o estaria fazendo mediante um refúgio no campo da crença? E não seria essa mesma crença, por estar além da realidade sensível, mais um dos alvos de ataque de Nietzsche?

Desse modo, Nietzsche apresenta dois tipos de crenças: real, baseada na razão, ou aparente, baseada nos instintos; quando aplicadas ao mundo, a segunda é muito mais realidade do que a primeira, pois esta é absolutamente indemonstrável. Então, se admitirmos a existência de Deus como uma realidade aparente, seria essa existência muito mais real. Assim podemos já auferir a posição de Nietzsche, segundo a qual, por detrás daquela sua afirmação de que Deus está morto, a existência de uma divindade pode ainda ser assegurada. Essa afirmação se sustenta mediante o aforismo: “Dioniso contra o crucificado”15 (FP, XIII, § 14 [89] da Primavera de 1888, p. 266). A partir disso Nietzsche, segundo a compreensão de Remédios Ávila (1999), opera uma transposição do plano da moral para o plano da arte, em que o Deus cristão, fundado sobre um conjunto de asserções doutrinárias, estáticas, coercitivas e dogmáticas, abre espaço para o deus Dionísio, aquela divindade artística que se manifesta em inúmeras capas de aparência.

15 Mais adiante perceberemos que a opção de Nietzsche por Dionísio como divindade, em lugar daquele Deus que a tradição cristã salvaguardou, é insustentável.

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Nietzsche deixa transparecer que o problema não está tanto na existência ou não de Deus, mas, no modo pelo qual esta existência tem se sustentado na cultura ocidental, não tem sido outro que a razão em um sistema de valores, tido como sem sentido. A crítica ao cristianismo, longe de ser aquele cristianismo como prática de vida, legado por Jesus de Nazaré, como veremos ainda mais adiante, mas entendido como um corpo doutrinário apresentado sob a forma de um esquema racional, parece encoberta por uma crítica maior, que é a crítica ao racionalismo no qual a cultura do ocidente tem mergulhado. E é com base na razão que a moral tem fundamentado todos os seus valores, normas e preceitos que compõem a doutrina cristã.16 A esse respeito Nietzsche é bem claro: “Toda moral, bem como toda religião, resume-se a esse imperativo: eu o denomino o pecado hereditário da razão” (CI, Os quatro grandes erros, § 2, p. 42 / KSA – VI, p. 89).

Assim, a cultura racional propõe a eliminação dos instintos propulsores da ascensão da vida: “’Racionalidade’ contra instinto. A ‘racionalidade’ a todo o preço como força perigosa, solapadora da vida!” (EH, O nascimento da tragédia, § 1, p. 62 / KSA – VI, p. 310). Como a doutrina do cristianismo tem a sua gênese e estrutura a partir da razão, que espécie de vida vem afirmar? Nietzsche coloca o problema do cristianismo frente à necessidade dos instintos. Ambos são, de fato, realidades opostas, sem nenhuma vinculação?

Mas não seria arbitrário afirmar que o cristianismo como um todo é essencialmente racionalista?17 As suas verdades contidas nos dogmas de fé não seriam manifestações que brotam do mais íntimo do coração? A experiência de vida cristã, embora se sirva da razão como veículo para a sua manifestação, não apontaria para uma vivência que transpõe os limites da razão? Ou melhor, a razão não seria apenas um meio mediante o qual o homem pudesse expressar linguisticamente a sua experiência cristã, que se baseia, em última instância, numa vivência? Chegamos a um ponto crucial: “a vida”. De um lado, percebemos Nietzsche atacar o cristianismo, por considerá-lo opressor da vida; de outro, reconstituindo a práxis do cristianismo, como experiência que brota de uma prática, de uma vivência, podemos constatar o critério da valorização da vida como a sua meta mais elevada. Essa experiência fundada numa prática de vida foi tida na mais alta estima por aquele cujo nome 16 “Não há nenhum erro mais perigoso do que confundir a consequência com a causa: eu a denomino a própria perversão da razão. Apesar disso este erro pertence aos hábitos mais antigos e mais recentes da humanidade. Ele é mesmo santificado entre nós e porta o nome da ‘religião’, da ‘moral’. Todas as proposições que a religião e a moral formulam encerram-no. Sacerdotes e legisladores morais são os autores dessa perversão da razão” (CI, Os quatro grandes erros, § 1, p. 41 / KSA – VI, p. 88).17 O próprio Nietzsche não chega a considerar o cristianismo, em sua essência, racionalista. Mas consequência de uma doença da vontade.

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inspirou o cristianismo: Jesus de Nazaré que Nietzsche reconhece e valoriza. O fato de Nietzsche reconhecer e valorizar essa prática, essa experiência que, no fundo, representa a ação, contrária à estagnação e à inércia, nas quais a cultura ocidental tem mergulhado, segundo as constatações do autor, mostra que ele estabelece as bases de uma nova cultura, a partir de uma concepção organicista de mundo: a cultura aristocrática.

Por essa razão, o filósofo coloca sob suspeita tudo aquilo que ultrapassa o campo do sensível, como é o caso da ideia de Deus. Percebe Nietzsche, então, que são essas realidades, transcendentes ao mundo da vida, as responsáveis pelo enfraquecimento da cultura. Tais manifestações, como um entrave para o advento de uma cultura aristocrática, apresentam-se sob a forma da moral. A moral, como um imperativo que tende à uniformização, ao rebanho, para falar nas palavras de Nietzsche, acaba descaracterizando, diminuindo e estagnando a cultura nas suas mais diferentes manifestações. Por isso, o homem, como fundamento subjetivo da cultura, acaba reduzido à condição de sujeito: fraco, inerte e doente. Diante dessa situação, o filósofo propõe o desmantelamento deste entrave: a moral, que se expressa através de normas doutrinárias fixas e niveladoras, a fim de se abrir espaço para a livre manifestação da força, da ação e do vigor, como um grande movimento de afirmação. Este movimento nietzschiano afirmativo, como caminho de elevação da cultura, recebe o nome de vontade de potência.

1.2 A RUPTURA NIETZSCHIANA COMO VONTADE DE POTÊNCIA

1.2.1 A VONTADE DE POTÊNCIA COMO MANIFESTAÇÃO DA TENSÃO ENTRE O APOLÍNEO E O DIONISÍACO

Aquelas duas disposições artísticas fundamentais, manifestas na beleza da forma e na individuação apolínea18 e a embriaguez e o dilaceramento dionisíaco19 constituem ambas pulsões cósmicas recobertas de vontade de potência.20

18 “Apolo, o deus da individuação e dos limites da justiça” (NT, III, § 9, p. 69 / KSA – I, p. 71).19 “[...] à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da embriaguez” (NT, III, § 1, p. 30 / KSA – I, p. 28).20 “[...] entre a arte do figurador plástico [Bildner], a apolínea, e a arte não figurada [unbildlichen] da música, a de Dionísio: ambos os impulsos, tão diversos, caminham lado a lado, na maioria das vezes em discórdia aberta e incitando-se mutuamente a produções sempre novas, para perpetuar nelas a luta daquela contraposição sobre a qual a palavra comum “arte” lançava apenas aparentemente a ponte [...]” (NT, III, § 1, p. 27 / KSA – I, p. 25).

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Com seu caráter dinâmico, um querer vir-a-ser sempre mais forte, a vontade de potência não possui uma meta ou fim a alcançar, mas continuamente depara-se com um obstáculo a ser superado, como é o caso de Apolo que ordena e regra a embriaguez dionisíaca, e Dionísio que quebra o modelo ordenado apolíneo: “O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência [...]” (NT, III, § 7, p. 55 / KSA, - I, p. 56). E, a cada obstáculo superado, produzem-se novos obstáculos e consequentemente é desencadeada mais potência, numa abertura ilimitada para o criar.

Como o conceito de vontade de potência está intimamente relacionado à ideia de devir,21 por consequência, é inconcebível toda e qualquer permanência. Esta concepção de devir inaugurou em Nietzsche uma nova postura em relação à verdade, que, de sua dogmatização estática, passa para uma hermenêutica dinâmica, como escreve Marton a respeito: “Seria uma espécie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo, que se desenrolaria sempre mais, uma filologia que nunca estaria fixada de forma absoluta” (MARTON . In: RIBEIRO, 1985, p.37).22

Nietzsche concebe a vontade de potência como a mais pura manifestação de vida: “Onde encontrei vida, encontrei vontade de poder”23 (AFZ, II, Do superar a si mesmo, p. 145 / KSA – IV, p. 147). A vida é baseada na ideia de conflito no interior do homem. No que diz respeito à pluralidade de seres vivos microscópicos que o constitui, a vida se manifesta como uma luta permanente, fazendo desaparecer células antigas e produzindo novas. A vida só pode efetivar-se à custa de outras vidas; o viver só é possível mediante o morrer: “Sempre destrói, aquele que deverá ser um criador” (AFZ, I, De mil e um fitos, p. 86 / KSA – IV, p. 75).24

Pelo exposto, podemos constatar o quanto Nietzsche foi motivado pela evolução da moderna ciência, afastando do fenômeno da vontade de potência a relação causa e efeito, de modo que a ação possui o querer como causa, já que ambos, querer e agir, ocorrem simultaneamente. A única relação de causalidade presente é a da vontade sobre a vontade. Giacóia (2002, p. 36) lembra-nos de que, “[...] se a vontade causa, ela não pode produzir efeitos senão sobre algo que lhe seja comum e recíproco, isto é sobre vontade” É precisamente nesse 21 “A afirmação do fluir e do destruir, o decisivo numa filosofia dionisíaca, o dizer Sim à oposição e à guerra, o vir a ser, com radical rejeição até mesmo da noção de ‘Ser’” (EH, O nascimento da tragédia, § 3, p. 64 / KSA – VI, p. 313).22 Conf. Bibliografia.23 Uma tradução mais correta para Wille zur Macht é “Vontade de Potência”.24 Nietzsche, a respeito dos autênticos filósofos, como comandantes e legisladores comenta: “Seu ‘conhecer’ é criar, seu criar é legislar, sua vontade de verdade é – vontade de poder” (ABM, VI Nós, eruditos, § 211, p. 118 / KSA – V, p. 145).

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dinamismo constante dos processos orgânicos em que um estímulo prevalece sobre os outros que a vontade continuamente aumenta ou perde a sua potência, depreendendo-se daí uma vontade forte ou uma vontade fraca.

Dessa luta permanente de forças denominada vontade de potência emerge a vida. Assim sendo, a vida não pode existir para além dos fenômenos, permanecendo dentro dos limites dos instintos, nem mesmo tem um caráter teleológico. Essa é, pois, a tese de Nietzsche conforme podemos constatar: “[...] – Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade – vontade de poder, como é minha tese” (ABM, II O espírito livre, § 36, p. 43 / KSA – V, p. 55). Essa conclusão parece indicar uma das grandes dificuldades na conciliação entre a filosofia nietzschiana e o cristianismo. Mas avancemos na reflexão a fim de penetrarmos mais no problema.

1.2.2 VONTADE DE POTÊNCIA X SUJEITO X DEUS

Embora Nietzsche a princípio tenha recebido influência da teoria darwiniana da evolução e da seleção natural das espécies, dela afastou-se pelo caráter causal, por Darwin atribuído à autoconservação,25 impelindo à luta: “[...] o darwinismo, como a doutrina incompreensivelmente unilateral da “luta pela existência” (GC, V Nós, os impávidos, § 349, p. 243 / KSA – III, p. 585). Para Nietzsche, pelo contrário, nessa luta de forças não pode haver trégua, nem termo. Não há luta pela aniquilação do adversário, mas sempre pela dominação: “A luta pela existência é apenas uma exceção, uma temporária restrição de vida; a luta grande e pequena gira sempre em torno da preponderância, de crescimento e expansão de poder, conforme a vontade de poder, que é justamente vontade de vida” (GC, V Nós, os impávidos, § 349, p. 244 / KSA – III, p. 585-6). Caso contrário, aniquilando-se o inimigo, cessaria a luta e o seu caráter dinâmico, atingir-se-ia um optimum, frente ao qual a vontade de potência daí em diante perderia a sua razão de ser, que é ser dinâmica.26 É à falta de dinamicidade que Nietzsche atribui a fraqueza na qual tem mergulhado a cultura, pois, com a fixidez e a estagnação, cessa 25 “Querer preservar a si mesmo é expressão de um estado indigente, de uma limitação do verdadeiro instinto fundamental da vida” (GC, V, Nós, os impávidos, § 349, p. 243 / KSA – III, p. 585).26 A dinamicidade da vontade de potência pode-se constatar a partir dessa caracterização provisória, realizada por Müller-Lauter: “Vontade de poder não é um caso especial do querer. Uma vontade ‘em si’ ou ‘como tal’ é uma pura abstração: ela não existe factualmente. Todo querer é, segundo Nietzsche, querer algo. Esse algo-posto, essencial em todo querer é: poder. Vontade de poder procura dominar e alargar incessantemente seu âmbito de poder. Alargamento de poder se perfaz em processos de dominação” (MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche. Trad. Oswaldo Giacóia. São Paulo: Annablume, 1997. p. 54).

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a manifestação da força e inicia a sujeição e a coerção, próprias, na visão do filósofo, de todos os dogmas morais, que possuem uma expressão privilegiada dentro da cultura cristã. Giacóia (2002) lembra-nos, a esse respeito, de que a moral tem como caráter essencial a coerção e a obrigação da obediência. O que assegura à vontade de potência o seu caráter dinâmico é a pluralidade, como é possível constatarmos nestas palavras de Nietzsche:

[...] – digamos que em todo o querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações, a saber, a sensação de estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se vai, a sensação desse ‘deixar’ e ‘ir’ mesmo, e ainda uma sensação muscular concomitante, que, mesmo sem movimentarmos ‘braços e pernas’, entra em jogo por uma espécie de hábito, tão logo ‘queremos’ (ABM, I Dos preconceitos dos filósofos, § 19, p. 24 / KSA – V, p. 32).

Segue-se, a partir disso, a existência de nosso corpo como um edifício constituído por múltiplas almas, bem como por uma multiplicidade de vontades de potência. Ambos os caracteres, o dinâmico e o plural, eliminam a hipótese do caráter uno e atômico27, como é o caso do Deus único transcendente do cristianismo, bem como do sujeito. A partir dessa crítica, Nietzsche estabelece duas concepções distintas de vontade: psicológica e metafísica.

A teoria psicológica, por compreender a ação como consequência da vontade, postula um sujeito responsável pela ação. Contra esta teoria Nietzsche desconstrói o sujeito, pois, se ação é tudo o que existe não pode haver um sujeito como fundamento ontológico da ação: “[...] não existe nenhum ‘ser’ sob o fazer, o efetivar-se, o ver-se; ‘o autor’ é simplesmente acrescentado à ação – a ação é tudo” (GM, I, § 13, p. 36 / KSA – V, p. 279).

Quanto à segunda teoria, a teoria metafísica, Nietzsche na Gaia Ciência (1882) se utiliza do terceiro estágio de desenvolvimento de Augusto Comte (1789-1857), o estágio científico ou positivo, para refutá-la. Assim, como este estágio refuta o seu anterior, que é o próprio estágio metafísico, este respectivamente refuta o seu anterior, o estágio teológico. Para Nietzsche, assim como a ação não pode ter um sujeito como causa, a mesma força não pode ter uma causa metafísica, transcendente, final.

27 “[...] atomismo da alma. Permita-se designar com esse termo a crença que vê a alma como algo indestrutível, eterno, indivisível, como uma mônada, um atomon: essa crença deve ser eliminada da ciência. [...] Está aberto o caminho para novas versões e refinamentos da hipótese da alma: e conceitos como ‘alma mortal’, ‘alma como pluralidade do sujeito’ e ‘alma como estrutura social dos impulsos e afetos’” (ABM, I Dos preconceitos dos filósofos, § 12, p. 19 / KSA – V, p. 27).

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O mundo designado por seu caráter inteligível é vontade de potência, e este não possui uma finalidade nem se encontra submetido a um poder transcendente, como é o caso do Deus cristão.28 Veremos, porém, mais adiante que este positivismo científico, cujo legado é em grande parte devido à Comte, será criticado por Nietzsche por pretender firmar-se, em última análise, como uma nova religião, pois, na visão de Nietzsche, foi esta mesma ciência moderna a primeira responsável pela morte de Deus, fato do qual deriva toda a secularização e ausência de valores divinos na cultura. Assim, com a ideia de que Deus está morto, Nietzsche quer, no fundo, apontar as consequências da modernidade.

1.3 A RUPTURA DE NIETZSCHE COM A TRADIÇÃO DA MORAL CRISTÃ

1.3.1. PSICOLOGIA X VALORES MORAIS

Nietzsche tomou de Christian Wolff (1679-1754) a sua noção de psicologia como disciplina específica, porém distanciou-se dele por ter encarado a psicologia como resultado dos princípios gerais colocados pela metafísica. Assim, operando um corte com a metafísica, inscreve os valores morais num tempo e num espaço, deixando de os remeter à essência: “Toda a psicologia até o momento tem estado presa a preconceitos e temores morais: não ousou descer às profundezas. Compreendê-la como morfologia e teoria da evolução da vontade de poder, tal como faço” (ABM, I Dos preconceitos dos filósofos, § 23, p. 29 / KSA – VI, p. 38).

Pode-se constatar aí que este corte operado com relação à metafísica teve grande influência do espírito positivista da época, resultando assim em tornar a psicologia uma ciência, bem como em tornar cadente a questão da morte de Deus. A respeito desse triunfo da ciência sobre a crença no Deus cristão, Nietzsche escreve:

Vê-se o que triunfou realmente sobre o deus cristão; a própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio intelectual a

28 “Ao contrário do cristianismo a vontade de potência não é estática, mas sempre aberta para mais potência. O cristianismo é designado por Nietzsche de ‘vontade de final’, ‘a vontade niilista’”’, conf.: (AC, § 9, p. 34 / KSA – VI, p. 176).

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qualquer preço (GC, V, Nós, os impávidos § 357, p. 256 / KSA – III, p. 600).

A psicologia, agora tornada ciência,29 trata o homem tal qual ele é, abandonando aquela antiga preocupação pautada sobre a sua natureza humana universal ou sobre a intervenção da misericórdia de Deus. A conduta humana passa a ser verificada sem a influência de princípios transcendentes, à metafísica ou à teologia, como o próprio Nietzsche dá de si testemunho: “‘Deus’, ‘imortalidade da alma’, ‘salvação’, ‘além’, puras noções, às quais não dediquei atenção nenhuma, tempo algum, mesmo quando criança – talvez não fosse infantil bastante para isso” (EH, Por que sou tão inteligente, § 1, p. 35 / KSA – VI, p. 278). Nesse momento, já fica mais claro que esse corte com a metafísica, anunciador do porvir da ciência, da Gaia ciência, levou Nietzsche a proclamar a morte de Deus. Desse modo, o Sujeito moral, antes intimamente associado ao Deus cristão numa posição de submissão, estaria agora preso aos grilhões desta nova e emergente religião, a ciência.

1.3.2. VALORES MORAIS X GENEALOGIA

A genealogia, ciência voltada à origem dos valores morais, tem como tarefa realizar uma crítica dos valores morais. Essa tarefa tem como ponto de partida colocar em questão o valor desses valores, o que supõe saber sob quais circunstâncias e condições surgiram, se desenvolveram e se modificaram: “[...] necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram” (GM, Prólogo, § 6, p. 12 / KSA – V, p. 253). E nessas avaliações das avaliações cabe impor-se uma avaliação que não pode ser avaliada, que não é outra senão a vida, uma vez que, de acordo com Marton: “Se falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida; a vida mesma valora através de nós, quando instituímos valores” (MARTON. In: RIBEIRO, 1985, p. 45).

29 “O objetivo último da ciência é proporcionar ao homem o máximo de prazer e o mínimo de desprazer possíveis? [...] Com a ciência pode-se realmente promover tanto um como o outro objetivo! Talvez ela seja agora a mais conhecida por seu poder de tirar do homem suas alegrias e torná-lo mais frio, mais estatuesco, mais estoico. Mas ela poderia se revelar ainda como a grande causadora de dor! – E então talvez se revelasse igualmente o seu poder contrário, sua tremenda capacidade para fazer brilhar novas galáxias de alegria!” (GC, I, § 12, p. 63 / KSA – III, p. 383-4).

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Isso leva ainda a uma outra questão: “[...] sob que condições o homem inventou para si os juízos de valor ‘bom’ e ‘mau’? e que valor têm eles?” (GM, Prólogo, § 3, p. 9 / KSA – V, p. 249-50). Se esses valores nunca foram colocados em questão é porque repousam num mundo transcendente. Assim, o primeiro passo consiste em avaliar os valores até atingir a sua origem e em seguida identificar os valores a partir dos quais se avaliam. Nietzsche considera este procedimento de avaliar valores, a genealogia, por excelência, inédito na filosofia.

Pela genealogia nietzschiana tem como meta a análise da proveniência dos valores, a fim de identificar marcas diferenciais, apontando desvios, acidentes de percurso, e diferenças a respeito do que se imagina sobre si mesmo. Esta indagação a respeito de proveniências, não visa à busca de uma compreensão dos fins aos quais se destina determinado órgão ou costume, mas qual o estado de forças em que aparecem tais órgãos e costumes, como é o caso dos conceitos “bom” e “mau”, que não possuem uma existência em si mesmos, mas traduzem marcas históricas de um longo percurso. Longe de ser um estágio final de um processo, a tensão revela estados de forças, os quais, ao irromperem, lutam uns contra os outros, resultando em dominantes e dominados. Dessa relação entre dominantes e dominados, longe da instauração da paz, há, sem cessar, o jogo da dominação e uma inversão na relação de forças. Através dos sistemas de regras, as forças impõem-lhes uma nova direção, como é possível verificar na tese nietzschiana da transvaloração dos valores.

Assim, esses sistemas de regras, distante de possuírem uma significação essencial, servem para beneficiar uma vontade nova, submetidos às forças que lhes imprimem a cada modalidade de dominação um sentido novo. Como a força é um efetivar-se, ela não pode ser concebida como desencadeada a partir de algo que a impulsiona. Não existe nenhum ser sob o fazer; a ação é tudo. Por esta razão é possível compreendermos as críticas de Nietzsche às noções de “eu” e de “sujeito”, ambas vinculadas estritamente a uma interpretação cristã do existir que o filósofo caracteriza como fraca e impotente. À medida que formos progredindo em nossa pesquisa, veremos que as críticas de Nietzsche, longe de serem direcionadas à moral como um todo, estão voltadas à moral que é inspiradora da fraqueza, da impotência e da resignação (a moral dos fracos). Ao contrário, quando a moral está a serviço da força, da elevação e da afirmação da vida e da cultura, esta se torna, além de positiva, necessária (a moral dos fortes).

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Os juízos de valor “bom” e “mau”30 derivam respectivamente de duas morais: a moral do senhor e a moral do escravo. Na moral do escravo, tudo aquilo que é “bom” para o senhor está associado ao ressentimento, à fraqueza, ao cansaço; atributos estes que, para o senhor, representam que é “mau”. Na moral do senhor, o “bom” está associado à força, ao domínio, à afirmação; o que para o escravo representa o “mau”. O problema reside no fato de que só o senhor, ao contrário do escravo, é criador de valores; tanto é que esse confere valores primeiramente aos homens e só mais tarde os atribui aos atos. O escravo, ao contrário, parte de uma avaliação das ações e, em decorrência desta, julga os homens. Chegamos, então, ao ponto em que tem origem o processo de moralização. Este processo é decorrente da ruptura entre o homem e o ato, próprio da moral do escravo – uma moral de ressentimento, de fracos. Esta moral, no entender de Nietzsche, caracteriza o cristianismo, julgando o homem com base nos seus feitos e não a partir daquilo que ele é. O homem passa a ser, assim, efeito de seus atos. Podemos, dessa forma, inferir a própria noção de sujeito moral, aquele substrato resultante da atividade do homem.

Leon Kossovitch nos apresenta em Nietzsche uma multiplicidade de tipos e de figuras, para que haja a possibilidade de uma seleção, restando aos demais o desaparecimento. Assim: “Selecionar é eliminar uma das duas séries em que estão dispostos os tipos e as figuras” (KOSSOVITCH , 1979, p. 38). É pela capacidade de um tipo dotado de força intensificada, em que se interpreta e produz a partir de si que Nietzsche caracteriza o senhor, o que é selecionado, que permanece. Diferentemente, o escravo, incapaz de criar, tem a necessidade de que um Outro o faça por ele, assim este acaba por desaparecer.

Dando continuidade a sua análise, Kossovitch diz que o senhor tem como critério para o seu criar a interioridade ativa, a sua própria intensidade, o seu centrar-se em si, ao passo que, ao escravo, importa não a interioridade, mas a exterioridade, pois ele depende sempre de um Outro, como critério para a interpretação. A sua ação é, nesse sentido, reativa.31 Como o senhor 30 GM, Primeira Dissertação, “Bom e mau”, “bom e ruim”, §1, p.17 / KSA – V, p. 257. Scarlett Marton procura diferenciar ‘bom’ e ‘mau’ (gut und böse) de ‘bom’ e ‘ruim’ (gut und schlecht) dizendo que: “O escravo, o ressentido, o fraco, concebe primeiro a ideia de ‘mau’, com que designa os nobres, os corajosos, os mais fortes do que ele – e então, a partir dessa ideia, chega, como antítese, à concepção de ‘bom’, que se atribui a si mesmo. O forte, por sua vez, concebe espontaneamente o princípio ‘bom’ a partir de si mesmo e só depois cria a ideia de ‘ruim’ como ‘uma pálida imagem-contraste’. Do ponto de vista do forte, ‘ruim’ é apenas uma criação secundária, enquanto para o fraco ‘mau’ é a criação primeira, o ato fundador de sua moral” (MARTON, 1993, p.53).31 “O Outro a quem atribui essa qualidade é inessencial, importando a afirmação contida no primeiro movimento da interpretação. O Outro é, aqui, mera interpretação deste movimento inicial. Mas, no escravo, a operação principia pela exterioridade, na forma da negação do Outro. É apenas no segundo movimento que ele se volta para si mesmo afirmativamente” (KOSSOVITCH, 1979, p. 40).

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não é dominado pelo outro, a resistência que lhe opõe o escravo consiste na assimilação do Outro e assim num acréscimo de potência. E este acréscimo de potência faz com que o senhor se abra para o exterior. No caso do escravo, como força dominada, essa sua tendência à expansão acaba retornando sobre si mesmo. Isto representa uma repressão, interiorização das pulsões (KOSSOVITCH , 1979, p. 41).

As pulsões, dentro da visão nietzschiana, são divididas em duas categorias. Uma primeira categoria é representada pelas pulsões anárquicas, ligadas intimamente à natureza. E uma segunda categoria é formada pelas pulsões reativas, ligadas ao estado gregário. Desta divisão compreende-se que a primeira categoria é própria do senhor, ao passo que a segunda, do escravo. O escravo nega e inverte a interpretação primeira, correspondente a inversão daqueles movimentos de interioridade para o de exterioridade. Com isso, ele, o escravo, acaba sendo movido por uma única interpretação possível que é a vingança. Segundo a leitura de Kossovitch (1979, p. 45), é “O Deus único da tradição judaico-cristã”, o rebento desta árvore da vingança.32 É nesta visão de ressentimento e de fraqueza que se cristaliza a figura do sacerdote, que rompe aquela unidade entre Deus e natureza. Segundo Kossovitch (1979, p. 45), Nietzsche contrapõe aquele Deus da tradição judaico-cristã ao Deus aristocrático, representado pelo Deus da Igreja Católica da renascença. Para Nietzsche, esse Deus aristocrático é a máxima expressão aristocrática, que é sinônimo do poder e da força e que acabou enfraquecido a partir do protestantismo. Esse tema do protestantismo ainda retomaremos mais adiante.

Assim, o advento do sentimento de culpa está ligado ao domínio de um outro separado, que alcança no Deus cristão, segundo Nietzsche, a sua máxima expressão. Aquela inocência olímpica,33 própria da paisagem dos gregos antigos, em que os homens e os deuses viviam juntos, é substituída pela culpa. Neste sentido, o socratismo e o cristianismo constituem marcos referenciais da destruição da cultura aristocrática. Ambos, como veneno enfraquecedor, dissolvem toda a hierarquia existente, tornando tudo mero, baixo e comum. Kossovitch (1979, p. 48-50), em uma passagem bastante esclarecedora a esse respeito, diz que:

O poder do socratismo e do cristianismo está centrado num mesmo modo de produção: opor não só um mundo ideal à interpretação unitária dos senhores, mas, além disso,

32 Cf.: GM, I, § 8, p. 26 / KSA, V, p. 268.33 “O mesmo impulso, que se materializou em Apolo, engendrou todo o mundo olímpico e, neste sentido, Apolo deve ser reputado por nós como um pai desse mundo” (NT, § 3, p. 35 KSA – I, p. 34).

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conferir, nessa oposição, um papel repressivo ao ideal. [...] Com o Deus cristão aparece a identidade na forma da ‘natureza humana’ em oposição à divina. A identidade de todos perante Deus opera no plano político: desaparece a diferença de classes. A assimetria senhor/escravo é substituída pela identidade do homem gregário. [...] A existência gregária suprime as referências verticais.

Desse modo, ambas as noções, moral do escravo e sujeito moral, são responsáveis por manter o homem na sua condição de fraqueza e de ressentimento, como também o faz o próprio cristianismo. Essas noções transformam força e virtude em renúncia, paciência e resignação, ou seja, anulam a capacidade do homem de agir sobre este mundo, levando-o a pôr a sua confiança num mundo que está para além (transcendente). A respeito desta tendência, própria da prática cristã, Nietzsche escreve: “O cristianismo, essa negação da vontade de viver tornada religião!” (EH, O caso Wagner. Um problema para músicos, § 2, p. 104 / KSA – VI, p. 359). Tendo em vista o fato dos fracos, impossibilitados de reagir, poderem apenas ressentir,34 daria margem à interpretação do reino de Deus como produto do ódio dos fracos contra os fortes? Assim podemos fazer alusão à seguinte passagem de Nietzsche: “Esta inversão de olhar que estabelece valores – este necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si – é algo próprio do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto – sua função é no fundo reação” (GM, I “Bom e mau”, “bom e ruim”, § 10, p. 29 / KSA – V, p. 271). Retomaremos essa questão mais adiante, introduzindo a polêmica entre católicos e protestantes.35

1.3.3 DA POLÊMICA ENTRE PSICOLOGIA E HISTÓRIA À VIDA COMO VALOR SUPREMO

Como já havíamos mencionado no início desta pesquisa, Nietzsche considera a história uma poderosa arma tanto no sentido de identificar os problemas relativos à conduta humana (psicologia) como em combater a metafísica. Para tanto, em sua segunda Consideração Extemporânea (1873), 34 “– A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores: o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos altos, e que apenas por uma vingança imaginária obtém reparação. Enquanto toda a moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não – eu’ – e este Não é seu ato criador” (GM, I, “Bom e mau”, “bom e ruim”, § 10, p. 28 / KSA – V, p. 270-1).35 Conf. GC, V, Nós, os impávidos, § 350, p. 244 / KSA – III, p. 586 e GM, III O que significam ideais ascéticos, § 22, p.134 / KSA – V, p. 394-5).

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Nietzsche estabelece a vida como critério para cultivo da história da qual ele fala no Ecce Homo (1888): “[...] a vida enferma desse desumanizado engenho e maquinismo, [...] o moderno cultivo da ciência, barbariza [...] Neste ensaio, o ‘sentido histórico’ de que tanto se orgulha este século foi pela primeira vez reconhecido como doença, como típico sinal de declínio” (EH, As extemporâneas, § 1, p. 67 / KSA – VI, p. 316). Assim, ele distingue três tipos de historiografia: a história monumental, que mostra que os grandes feitos heroicos do passado repetem-se com exatidão; a história tradicionalista, que conserva como digno de respeito tudo o que aconteceu no passado, e a história crítica, que revela a importância de se libertar do passado, a fim de cessar o sofrimento, atacando aqueles juízos que se pretendem universal e perpetuamente válidos.

Ao optar pela história crítica, Nietzsche reage contra essa grande falta de sensibilidade histórica nos filósofos, uma vez que, caso ela fosse verdadeiramente observada, muitos problemas morais já teriam sido resolvidos. Ao atacar os alemães a respeito de sua falta de sensibilidade histórica, Nietzsche escreve:

Mas aqui nada me impedirá de ser grosseiro e dizer aos alemães algumas duras verdades: senão, quem o faria? – Falo de seu despudor in historicis [em questões históricas]. [...], os germanos representam a ‘ordem moral universal’ na história (EH, O caso Wagner. Um problema para músicos, § 2, p. 103 / KSA – VI, p. 358).

Constatamos, então, que a estreita ligação entre psicologia e história, abre perspectiva para uma terceira: a genealogia, que visa traçar um diagnóstico de todos os valores culturais plasmados no decorrer da história.

Os diversos exemplos fornecidos pela história viabilizaram a Nietzsche instituir estas duas maneiras de avaliar os valores morais, a dos nobres e a dos escravos. Há ainda o elemento proporcionado pela filologia, de grande importância para o exame dos valores morais, que Nietzsche pôde se valer com facilidade, já que, antes de trilhar a carreira da filosofia, fora filólogo. Munido desse instrumental da filologia, Nietzsche constata que os valores morais têm passado por grandes transformações nas diversas culturas, no que diz respeito aos seus conceitos. A questão referente à origem dos valores morais tem sido a preocupação de Nietzsche (GM, Prólogo, § 6, p.12 / KSA – V, p. 252-3) ao instaurar o procedimento genealógico. Origem essa que tem como critério e valor último a vida.

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Ao contrário do que prega o cristianismo, de acordo com Nietzsche (GM, Prólogo, § 6, p.12 / KSA – V, p. 252-3), a vida é apropriação, dominação do que é mais fraco, e não renúncia de si mesmo. Por isso, a moral cristã nada mais é que uma moral de fracos (escravos) e a vida, expressão mais alta das pulsões instintivas, é uma forma de dominação, uma moral de senhores. Nesse sentido, a vida é o maior valor por excelência, pois, intimamente associada à vontade de potência, é esta uma disposição interna para criar, como Nietzsche evoca nesta passagem: “A vontade é criadora. Todo o ‘Foi assim’ é um fragmento, um enigma e um horrendo acaso – até que a vontade criadora diga a seu propósito: ‘Mas assim eu quis!’” (AFZ, II Da redenção, p. 173 / KSA – IV, p. 181). Tudo deve passar pelo crivo da vida, no sentido de não obstruí-la, mas favorecer a sua plenitude, criando sempre novas configurações que estão em permanente organização e desintegração. A esse respeito escreve Michel Henry (1985, p. 93):

O pensamento de Nietzsche é um pensamento da plenitude. A plenitude não é um estado, é o realizar-se do que não cessa de realizar-se e, desse modo, de ser aquilo que é ser o que é, o ser nietzscheano jamais o é, portanto na tautologia, mas no devir de si, o qual é o presente da vida, ou seja, esse eterno realizar-se em si.

Mas desta relação entre a vontade de potência e o ideal ascético permanece uma questão. Se Nietzsche valoriza a vida, com a sua força, poder e afirmação, bem como tudo mais que dela decorre, então seria um contrassenso ele negar os exercícios que decorrem do ideal ascético, pois estes têm um caráter de nobre aceitação da tragicidade da vida; então isto, por sua vez, conduz a um sofrimento que produz fortaleza, ou seja, um despertar para sempre mais potência, representando, no fundo, o desenvolvimento de uma espécie forte e aristocrática da cultura. E esse ideal, o ascético, não é o mesmo que permeia o cristianismo, trazendo consigo a semente da qual há de brotar uma espécie aristocrática? Não é comum tanto em Nietzsche como no cristianismo o aspecto do martírio do pensamento? Então, se ambos têm em comum um aspecto que os torna bastante próximos, por que razão Nietzsche insiste em suas investidas contra o cristianismo? A razão não estaria tanto no cristianismo em si, mas na moral que dele se depreende. Porém, há que ter claro que moral entende-se, segundo Nietzsche, de duas formas: a moral dos fracos e a moral dos fortes.

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O cristianismo, para Nietzsche, está associado àquela primeira, ao passo que os objetivos de instauração de uma nova cultura, para os quais tende a sua filosofia, residem nesta última. Por mais que Nietzsche considere a moral uma das principais causas pelas quais a cultura entrou em decadência, o filósofo, neste momento, não se refere à moral dos fortes, mas sim à moral dos fracos, que, incapaz de criar e lutar, acaba se tornando um obstáculo para os criadores e lutadores. Sua única ação é, no fundo, reação, em que as suas pulsões instintivas acabam voltando-se para dentro, contra si mesmo; por isso, a única arma de que dispõem é o ressentimento, ao passo que a moral dos fortes, pertencente apenas a um grupo seleto (reduzido) de homens, constitui uma arma, uma força poderosa que viabiliza o seu criar e dominar, como manifestação das suas pulsões instintuais. Assim, a ascese, da qual decorre o sofrimento na moral dos fortes, constitui um veículo propulsor para a manifestação de um aumento de potência; neste sentido, esse sofrimento é encarado com nobre e amorosa aceitação, cuja fórmula é: amor fati. Ao contrário, na moral dos fracos, de acordo com as constatações de Nietzsche, os exercícios ascéticos atuam como condutores das pulsões instintuais para dentro de si mesmos, reprimindo-os, como manifestação de sua incapacidade de lutar, cuja ação se apresenta como reação e ressentimento. É a essa moral de fracos que Nietzsche associa o cristianismo. Mas seria o cristianismo como um todo? Em muitos momentos, o cristianismo católico romano do renascimento certamente representou, para a cultura ocidental, como o próprio Nietzsche reconhece, um movimento cuja força é impossível negar. Retornaremos ainda a essa controvertida questão no decorrer das páginas que seguem, sendo reservado um espaço especial no último capítulo.

Apresentados, assim, os pontos nevrálgicos da crítica de Nietzsche à cultura cristã ocidental a partir de Sócrates, podemos extrair três elementos centrais que permeiam essa crítica: “Deus”, o “homem” e a “vida”. Continuaremos a apresentar no último capítulo as relações contidas neste trinômio, Deus-homem-vida, bem como os mecanismos de subjetivação dele decorrente. Até que ponto a afirmação da existência do Deus36 cristão (entendido como aquele Deus, Senhor da moral e da doutrina) torna inadmissível a afirmação do homem e da vida? Quais os problemas que esta labiríntica afirmação de Nietzsche encobre? “Deus morreu; nós queremos, agora, que o super-homem viva” (AFZ, IV, Do homem superior, § 2, p. 334 / KSA – IV, p. 357).

36 “‘A única desculpa de Deus é não existir’ [...] Eu mesmo disse em algum lugar: qual foi até agora a maior objeção à existência? Deus [...]” (EH, Por que sou tão inteligente, § 3, p. 42 / KSA – VI, p. 286).

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Nietzsche, em várias passagens, parece atribuir grande importância ao alvorecer da ciência. Quais as implicações do advento da ciência com a afirmação da morte de Deus e a dissolução do sujeito moral? Estaria a ciência ligada de algum modo à afirmação do sentido da terra, da vida e da nova religião? E, partindo da perspectiva da ciência, a crítica de Nietzsche à cultura cristã ocidental teria como alvo principal de seu ataque o Deus cristão como tal, ou a moral (doutrina) que dele se depreende?

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CAPÍTULO 2

O ADVENTO DA CIÊNCIA37 COMO ANÚNCIO CREPUSCULAR DO SUJEITO MORAL E DO CRISTIANISMO

2.1. DA CIÊNCIA AO SENTIDO DA TERRA

2.1.1 UMA VISÃO CIENTÍFICA DE MUNDO

as considerações que sustentam o primeiro capítulo, pudemos verificar que Nietzsche, tendo como objetivo a instauração de uma cultura superior (aristocrática), inicia um verdadeiro

movimento de desconstrução referente às bases sobre as quais têm se estabelecido os valores que subjazem ao edifício da cultura ocidental. Esse movimento de desconstrução compreende uma retomada, um retorno às raízes, de modo a se diagnosticar os seus erros e desvios. Por essa razão, o filósofo inaugura um procedimento inédito na história da filosofia, a genealogia, verdadeiro método diagnosticador dos valores. Ao trilhar as sendas da genealogia, Nietzsche percebe que tudo até então na cultura do ocidente tem se estruturado sobre bases equivocadas. Ele crê que o mal deve ser cortado pela raiz. As bases sobre as quais pretende fundar a sua nova cultura devem ser outras, não mais subsidiadas pelos referenciais da metafísica, da qual decorrem a fixidez e o dogmatismo dos valores, apresentados mediante os conceitos, que no fundo significam para o filósofo um sinônimo de fraqueza e de impotência, cuja moral é sua principal herdeira. Entretanto, a cultura deve ser presidida pela força e pela potência, em que a fixidez e o dogmatismo sejam calcados aos pés. É sobre estes aspectos de tensão e movimento, traços característicos dos gregos antigos (o trágico), que Nietzsche encontra os princípios basilares em que deve estar fundada a nova cultura.

Ora, por trás desses aspectos de tensão e de movimento, Nietzsche acena a um resgate dos caracteres próprios do orgânico, como o sentido da terra e da vida. E é nesse estado próprio do orgânico que a força adquire o sentido de plenitude. Por essa razão, muitos comentadores são concordes em apresentar Nietzsche como o filósofo da plenitude e do vitalismo – da afirmação da vida. Assim, de acordo com a nossa compreensão, fica evidente que em Nietzsche

37 A ciência à qual Nietzsche se refere não é aquela ciência propriamente mecânica, mas a que inspira um organicismo de matiz idealista-romântico.

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tudo inspira a força elevada até a sua plenitude. E é a plenitude da força a base primordial mediante a qual encabeça o seu movimento cultural. A força é que vai substituindo tudo o que anteriormente prevaleceu sobre a cultura, tida aos olhos do filósofo como fraca e impotente, como é o caso do próprio conhecimento. Na Gaia Ciência38 Nietzsche apresenta a impossibilidade de conhecermo-nos a nós mesmos. Isso faz com que a sentença socrática, “Conhece-te a ti mesmo”,39 não tenha significação alguma aos olhos do filósofo e com que o seu fracasso, longe de dizer respeito à essência interior da vida ou do eu enquanto eu vivente, seja tributário do conhecimento, e não faça senão exprimir a sua própria impotência. Essa ociosidade do conhecimento como tal é o que mostra, justamente, a crítica ao socratismo.

Porém, quando falamos em conhecimento, mesmo que este represente aos olhos de Nietzsche a fraqueza e a impotência da cultura, temos que ter em mente que a hegemonia do conhecimento científico foi tida, pelo menos em princípio, em grande consideração pelo filósofo, pois, diante dos modernos avanços da ciência e da técnica, contemporâneos a Nietzsche, a primeira impressão causada é a de que ele tenha adotado em sua filosofia uma perspectiva tipicamente científica.40 Uma forte razão para se crer nisto refere-se a alguns temas que decorrem de alguns aforismos presentes na Gaia Ciência, como é o caso da proclamação da morte de Deus (CG, III, § 125, p. 147-148 / KSA – III, p. 480-2.). Os avanços que presidem o desenvolvimento científico vão pouco a pouco fazendo desaparecer aquelas crenças e ilusões alimentadas em torno da religião. A ciência desenvolve um método rigoroso que afasta ao máximo as suas investigações daqueles pressupostos dogmáticos, típicos da religião, submetendo tudo ao crivo técnico-experimental. Diante dessa constatação, esta nova, alegre e jovial ciência, em substituição da religião, seria ela mesma uma nova religião? E, em caso afirmativo, não estaria a ciência caindo naqueles mesmos erros da religião apontados por Nietzsche, de estar repousada sobre uma crença metafísica, totalmente aquém do mundo orgânico, da vida? E além da religião e do Deus cristão, como esta nova ciência encara o sujeito moral?38 “[...] ‘a gaia ciência’, ‘o alegre saber’ – expressão com que se designava, no século XVI, a arte dos trovadores provençais. Nietzsche lhe ampliou o sentido, para caracterizar uma atitude e uma filosofia afirmadora da vida; por isso, um dos seus livros da maturidade se intitula A gaia ciência”. Cf. Além do bem e do mal, seção 260, e Ecce homo, capítulo ‘A gaia ciência’ (SOUZA, 2002, nota 35, p. 85). 39 “‘Cada qual é o mais distante de si mesmo’ – é o que sabe todo escrutador das entranhas, para seu próprio desgosto; e as palavras ‘Conhece-te a ti mesmo’ são, na boca de um deus e dirigida aos homens, quase uma maldade” (GC, IV, § 335, p. 222 / KSA – III, p. 560).40 Esta perspectiva científica adotada por Nietzsche corresponde ao seu segundo período de pensamento – Positivismo Cético – que posteriormente é abandonada por ele em seu terceiro e último período, o da Transvaloração dos Valores.

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2.1.2 CIÊNCIA X SUJEITO MORAL

Essa nova visão científica de mundo tende a encarar tudo com objetividade, afastando-se assim de dados subjetivos. Desse modo, o próprio homem passa a ser encarado com objetividade, não sendo nada mais que um espelho em que se refletem os fatos e os acontecimentos do mundo. No homem o que é pessoal não passa de algo fortuito, importuno e arbitrário. Nele já não há mais aquela morada interna em que se depara com o seu ser, já não é mais filho de Deus, mas um qualquer em conformidade com a sua tendência para se apequenar. Em uma palavra, com o advento da visão científica de mundo, os referenciais da metafísica já não gozam mais da força e da expressividade por que eram providos, tal como podemos observar em Platão, através da contraposição entre corpo e espírito.

Esta contraposição metafísica tem privilegiado sobremaneira o espírito (alma), assim como um certo sentimento de sujeito41 nela implicado, em detrimento do corpo. Desse sentimento de sujeito decorre o conceito de “realidade” e “ser”. O “eu”, enquanto causa do fazer, é interpretado como sujeito cujo estatuto foi possibilitado no itinerário da metafísica pela identificação de uma realidade suprema que na tradição foi assumindo diversas terminologias e formas: Ideia de Bem, Primeiro Motor, Uno Primordial, Deus Criador, Res Cogitans, Eu Transcendente, Espírito Absoluto. Com as teses propostas pela nova ciência, Nietzsche considera aquele sujeito dos metafísicos e da doutrina cristã, existente sob o fazer e submetido às ordens de um Deus criador e todo-poderoso, nada mais que um homem fiel à terra, a fim de que dela possa emergir como além-do-homem, como um dos meios pelos quais o mundo exprime a vontade de potência criadora. O próprio homem é visto como pura energia, força, em contínua geração e destruição. Por isso, longe de se admitir uma causa externa e estranha a ele, um Deus transcendente, o próprio homem acaba sendo a causa de seu próprio fazer, o que podemos acompanhar nesta passagem: “Amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem” (AFZ, I, O prólogo de Zaratustra, § 04, p. 38 / KSA – IV, p. 17). Esse resgate do sentido da terra que Nietzsche faz com relação ao homem quer, no fundo, significar a referência ao orgânico, à força, como ingredientes 41 “[...] e talvez esteja próximo o tempo em que se perceberá quão pouco bastava para constituir o alicerce das sublimes e absolutas construções filosofais que os dogmáticos ergueram – alguma superstição popular de um tempo imemorial (como a superstição da alma, que, como superstição do sujeito e do Eu, ainda hoje causa danos), talvez algum jogo de palavras, alguma sedução por parte da gramática” (ABM, Prólogo, p. 07 / KSA – V, p. 11-12).

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indispensáveis para o advento da nova cultura. Por isso, aquela antiga referência ao transcendente, típica da cultura ocidental, é encarada pelo filósofo como fuga da realidade, como fraqueza daqueles que não querem admitir a vida com todos os seus reveses e contratempos. Para Nietzsche, aqueles que não admitem os reveses representam os herdeiros do dualismo que se tem feito sentir na cultura ocidental, desde Platão (428/427-348/347 a.C.) na antiguidade até René Descartes (1596-1650) e Kant na modernidade.

2.1.3 NIETZSCHE E O DUALISMO CARTESIANO

Desde a instauração do espírito puro-platônico, a desconstrução nietzschiana desse eu subjetivo pode ser também constatada a partir de sua investida contra Descartes, quando este estabelece como critério de toda a verdade o eu pensante (cogito). Do estatuto dualista espírito x alma a que estava ligado o sujeito, passa este último a dissolver-se no vir-a-ser, resultando assim num golpe fulminante sobre as bases da tradição metafísica. Esse ataque assume maiores proporções a partir do terceiro período de pensamento nietzscheano, em que os conceitos de vontade de potência, eterno retorno e além-do-homem alcançam a sua elaboração mais apurada. Estes conceitos encontram-se aliados ao projeto de transvaloração dos valores, servindo-se para tanto do procedimento genealógico.

O interesse de Nietzsche, ao analisar Descartes, bem como outros pensadores, é o de constatar se a postura deles suscita de fato uma ruptura na tradição metafísica ou se acabam por estabelecer novos conceitos que vêm a inspirar a ideia comum aos metafísicos: o conceito de ser, o de fundamento, o de primeiro princípio...

A primeira crítica de Nietzsche, dirigida a Descartes, reside na descoberta: “Penso logo existo”. Como Descartes, segundo Nietzsche, não consegue estabelecer e provar o pensar e o existir numa esfera real e objetiva, a proposição é inválida. Uma segunda crítica que Nietzsche dirige a Descartes incide sobre o seu método, que é o da dúvida universal. Através desta, Descartes prova a existência do eu, ou seja, vou duvidando de tudo, até chegar ao eu que duvida, do qual não se pode mais duvidar. Nietzsche critica esta metafísica do eu que se prova a si mesmo, como podemos constatar no aforismo que segue:

Que o povo acredite que conhecer é conhecer até o fim; o filósofo tem que dizer a si mesmo: se decomponho o processo que está expresso na preposição ‘eu penso’,

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obtenho uma série de afirmações temerárias, cuja fundamentação é difícil, talvez impossível – por exemplo, que sou eu que pensa, que tem de haver necessariamente um algo que pensa, que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa, que existe um ‘Eu’, e finalmente que já está estabelecido o que designar como pensar – que eu sei o que é pensar (ABM, I Dos preconceitos dos filósofos, § 16, p. 22 / KSA – V, p. 29-30).

Para Nietzsche, não é possível a existência da consciência como espaço

de reflexividade, em que o sujeito capta a sua intimidade. A consciência é antes, segundo a compreensão de Nietzsche, consolidada no panorama das relações do homem com o mundo exterior em que este satisfaz as suas necessidades comunicativas na relação homem a homem (BARBOSA, 2000).

A terceira crítica de Nietzsche refere-se à substancialização do cogito cartesiano, garantida pela afirmação da existência do Deus veraz. Nietzsche critica a concepção cartesiana de homem considerado como uma união de polos (espírito e corpo), em que o primeiro tem supremacia ontológica sobre o segundo. Em Descartes, há uma concepção de eu como coisa, substância, cuja causa necessária é atribuída à existência daquela veracidade de Deus, àquela realidade na concepção cartesiana, absolutamente perfeita. Nietzsche, por isso, é levado a constatar o contrassenso cartesiano, que é o de apenas afirmar a existência de Deus em função daquela sua fundamentação do sujeito ontológico. Essa crítica nietzschiana nos dá pistas para entendermos mais uma vez que a sua luta contra o Deus cristão somente se torna clara a partir de sua desconstrução da noção de sujeito, fundada sobre as bases ontológicas da moral.

2.1.4 NIETZSCHE X DUALISMO KANTIANO

A concepção de sujeito, que Nietzsche tem como alvo maior de seu projeto desconstrucionista, encontra-se naquela resultante da crítica da metafísica por Kant. Este, influenciado pelos modernos avanços da ciência, deparou-se com a necessidade inevitável de submeter a metafísica à crítica, já que esta teria fracassado por não ter enfrentado algumas questões fundamentais de uma humanidade que agora já atinge a sua maioridade. Pela crítica busca-se, apesar da dificuldade, fundar a metafísica. Por um lado, essa crítica é negativa, por impedir a razão de ultrapassar os limites da experiência; por outro lado, é positiva pelo uso prático (moral) da razão pura, indo assim além dos limites

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da sensibilidade. Nietzsche concebe esse empreendimento de Kant como um contrassenso, pois, mediante a razão, este a critica e, ao mesmo tempo, mostra o seu valor. Pela crítica que impõe limites à razão, Kant institui a moralidade num mundo transcendente. Com isso o filósofo de Königsberg acaba caindo novamente naquele dualismo entre corpo e alma, tal como em Descartes, o que para Nietzsche representa um atentado contra a vida, tida antes de tudo como uma totalidade de todas as funções orgânicas.

De acordo com a leitura de Alberto Marcos Onate, Nietzsche considera que, embora Kant queira desvencilhar-se da concepção cartesiana de sujeito como ente subsistente para si mesmo, acaba por cair naquele modo de proceder cartesiano: “Para que o entendimento possa efetivar-se, as diversas representações inerentes a cada intuição devem ser ligadas, sintetizadas por uma unidade autoconsciente espontânea capaz de reconhecê-las como pensadas por um eu transcendental idêntico”.42 Essa tentativa crítica kantiana, de fato, só foi possível mediante a transposição cartesiana do mundo fenomênico para os umbrais do mundo numênico. Em Kant, o sujeito transcendental passa a ser condição de possibilidade para todo o conhecimento e, por essa mesma perspectiva, não conseguiu transpor o horizonte cartesiano. Kant desenvolve uma dialética transcendental pela transição do eu como substância, do mundo como síntese completa dos acontecimentos e de Deus como condição da existência de todos os objetos do mundo dos fenômenos para o mundo da coisa em si. É precisamente neste último que Kant abre espaço para a liberdade e para a moralidade,43 bem como para a crença, razão pela qual Nietzsche o acusa de fanatismo moral, posto que a moralidade, escapando ao domínio do saber, torna-se objeto de crença. É inconcebível a Nietzsche aceitar de Kant essa compartimentação do homem em faculdades, bem como esse dualismo cosmológico a fim de garantir à moralidade um campo intocável. Ao submeter a moral ao crivo da vida pelo exame genealógico, nada mais restaria daquele edifício kantiano, visto que a moral, pertencente ao campo da crença, para Nietzsche acaba abrigando avaliações que devem inexoravelmente ser avaliadas. Dessa avaliação, decorre que a moral nada mais faz do que reduzir o indivíduo à massa gregária: “Moralidade é o instinto de rebanho no indivíduo” (GC, III, § 116, p.142 / KSA – III, p. 475).

42 ONATE, Alberto Marcos. O crepúsculo do sujeito em Nietzsche ou como abrir-se ao filosofar sem metafísica. Cap. I, A instauração do cogito e suas rupturas, 2000, p. 42.43 “A rígida e virtuosa tartufice do velho Kant, com a qual ele nos atrai às trilhas ocultas da dialética, que encaminham, ou melhor, que desencaminham, a seu ‘imperativo categórico’ – esse espetáculo nos faz sorrir, a nós, de gosto exigente, que achamos não pouca graça em observar os truques sutis dos moralistas e pregadores da moral” (ABM, I Dos preconceitos dos filósofos, § 05, p. 12 / KSA – V, p. 19).

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Nietzsche considera que tanto Descartes como Kant aniquilam-se no campo da identidade e da unidade, bem como frente àquele eu que é uno e que conhece a si mesmo. Contra a tradição metafísica, Nietzsche diz que o eu, antes de ser alguém que pensa, é ele próprio uma construção do pensamento.

A crítica Nietzschiana à noção de sujeito moral tem como alvo principal o caráter unificante, identificante e totalizante presente tanto no cogito cartesiano como no sujeito kantiano, por isso abre perspectivas para a noção de alma, do sentimento associado à vida, à potência e à realidade. Para tanto, Nietzsche vale-se do procedimento genealógico como veículo de reflexão da metafísica tradicional. Com esse mesmo procedimento, mais uma vez, entende-se que Nietzsche põe em xeque a validade da ciência, como a confiança inabalável que a tradição tem depositado na capacidade humana de atingir a verdade, que aos poucos vai se cristalizando em dogma, como uma realidade fixa e, dessa forma, fraca, contrária à manifestação da força. A esse respeito Nietzsche escreve:

Mas já terão compreendido onde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica – que também nós, que hoje buscamos o conhecimento, nós ateus e antimetafísicos, ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina [...] (GC, V, § 344, p. 236 / KSA – III, p. 577).

Para Nietzsche, a verdade só tem espaço quando entendida como um estímulo para mais potência, num processo contínuo de criação e destruição,44 eliminando da verdade todo e qualquer resquício de teologia. Por essa razão, Nietzsche também volta-se contra Kant, dado que este, para assegurar o espaço do seu reino moral, admite a existência de um mundo que está para além, em que se situam a imortalidade da alma, a liberdade e a existência de Deus.

Poderíamos sintetizar em três as principais críticas que Nietzsche dirige a Kant: a legitimação da moral num mundo suprassensível, a defesa de interesses gregários e a separação entre saber e crença, o que leva a uma exclusão das questões morais do domínio do conhecimento, resultando em uma contaminação da psicologia com questões morais.

44 “Olhai-os, os crentes de todas as fés! A quem odeiam mais que todos? Àquele que parte suas tábuas de valores, o destruidor, o criminoso – mas esse é o criador” (AFZ, I, O prólogo de Zaratustra, § 09, p. 47 / KSA – IV, p. 26).

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Seguindo essa linha de reflexão, cabe-nos perguntar que reino moral forjou a noção de sujeito. Seria o Reino de Deus – aquele reino da doutrina cristã, que mantém o homem submisso, tal como o camelo a carregar o pesado jugo do dever e que, em Lutero,45 na visão de Nietzsche, assume grandes dimensões?

Ao contrário de Kant que quer fundar a moral46 como ciência da razão pura num mundo transcendente, Nietzsche procura avaliar as reflexões morais pela recorrência a várias áreas como a ciência e a etnologia, a partir de avaliações que não podem ser avaliadas. Daí ser a genealogia um procedimento que, como método, assemelha-se à ciência. Por isso, o método científico é um método que põe a descoberto todas aquelas artimanhas dos metafísicos e moralistas: “O objetivo é percorrer a imensa, longínqua e recôndita região da moral” (GM, Prólogo, § 07, p. 13 / KSA – V, p. 254). Aqueles metafísicos e moralistas, ao insistirem num dualismo, procuram fundar a partir daí a existência de um mundo e de um Deus que se opõem à terra e à vida, bem como de um sujeito moral subjugado a essas realidades transcendentes.

Se Nietzsche, como vimos, por um lado, tem se influenciado pelas transformações decorrentes do advento da ciência, que, com seu rigor tem contribuído em pôr a descoberto as falsificações da metafísica, bem como da crença em Deus; por outro lado, esta mesma ciência, na visão do filósofo, em seu afã de conquista da verdade, acaba incorrendo naquele mesmo erro anteriormente apontado à metafísica: o erro de se considerar possuidora da verdade, como algo dado, fixo e dogmático, servindo de arbítrio para toda a humanidade, decorrendo daí as formações gregárias, das quais tem origem o sentimento de submissão e de fraqueza responsáveis pelo niilismo da cultura. Até que ponto haveria, então, condições de se considerar Nietzsche como um rebento da ciência? Ou melhor, quais seriam exatamente os aspectos da ciência que subsidiam os referenciais filosóficos de Nietzsche? Existiria na ciência algum aspecto que pudesse contribuir para tornar patente os ingredientes principais que Nietzsche vem instaurar na cultura: a força e a afirmação da vida?

45 “[...] aquela ingênua e rabugenta fé de vassalo, com que um Lutero, um Cromwell ou outro nórdico bárbaro de espírito se apegou a seu Deus e seu cristianismo” (ABM, III A natureza religiosa, § 46, p. 52 / KSA – V, p. 66).46 “Ficaram até mesmo fora de si com essa nova faculdade, e o júbilo chegou ao máximo quando Kant descobriu, além de tudo, uma nova faculdade moral no homem – pois naquele tempo os alemães ainda eram morais, não eram em absoluto ‘real-politisch’” (ABM, I, § 11, p. 17 / KSA – V, p. 24-25).

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2.2 DA CIÊNCIA À AFIRMAÇÃO DA VIDA

2.2.1 DA CIÊNCIA À VONTADE DE CRIAÇÃO

A tarefa empreendida por Nietzsche de auscultar ídolos, ligada a uma concepção organicista de mundo, faz cair por terra muito daquilo que outrora fora tido como eterno e absoluto, como é o caso da verdade, ou melhor, da vontade de verdade. Essa vontade de verdade tem funcionado como mecanismo engendrador responsável pela constituição do sujeito metafísico, alvo da crítica desconstrutiva de Nietzsche. O fato de se conceber um sujeito por trás da ação equivale a negar a multiplicidade das forças em interação, presentes em todos os organismos, um falseamento da realidade. A esse respeito trazemos aqui uma reveladora passagem em que Scarlett Marton escreve que na perspectiva nietzschiana, “o ‘eu’ nada mais é do que uma ‘síntese conceitual’ que permite escamotear relações de força” (MARTON, 2000, p. 177).

Como meio de não se deixar enganar, a vontade de verdade assume a forma de um mundo verdadeiro, de um absoluto, de um cogito, que, ocultando a necessidade moral, irradia certezas e verdades. Nietzsche se impõe frente a essas mesmas verdades, intimamente ligadas à necessidade moral. A “verdade”, assim como aquelas concepções de “eu”, “sujeito”, “Deus”, “alma”, se apresenta a Nietzsche como realidade conceitual fixista e dogmática, inviabilizando a manifestação das pulsões instintuais, como processo de efetivação das forças, indispensáveis no que diz respeito à elevação da cultura.

É precisamente no campo do ideal ascético que Nietzsche denuncia aquele ponto de confluência entre moral e vontade de verdade, como refúgio para aqueles que se eximem do vir-a-ser rumo ao sem sentido, acabando por forjar nada mais que uma ilusão que possa dar justificativa ao seu existir,47 como podemos acompanhar nas palavras do próprio Nietzsche: “Porém, no fato de o ideal ascético haver significado tanto para o homem se expressa o dado fundamental da vontade humana, o seu horror vacui [horror ao vácuo]; ele precisa de objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada querer” (GM, III, § 01, p. 87-8 / KSA – V, p. 399). Ao invés de fundamentar esse existir no mundo terreno, transfere-o para um outro mundo presidido pela vida 47 “[...] por um longo tempo o ideal ascético serviu ao filósofo como forma de aparecer, como condição de existência – ele tinha de representá-lo para poder ser filósofo, tinha de crer nele para poder representá-lo. A atitude à parte dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à vida, descrente dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente, passando a valer quase como a atitude filosófica em si – ela é sobretudo uma consequência da precariedade de condições em que a filosofia surgiu e subsistiu: na medida em que, durante muitíssimo tempo, não teria sido absolutamente possível filosofia sobre a terra sem o invólucro e disfarce ascético” (GM, III, § 10, p. 105 / KSA – V, p. 360).

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eterna, pela verdade, pelo ser e pela unidade. Como exemplo de um guardião da vontade de verdade, Nietzsche aponta o sacerdote ascético,48 o homem da moral e da contemplação, como o verdadeiro opositor da vontade de criação, mas a ciência não estaria situada no mesmo terreno deste ideal ascético,49 pela superestimação que ambos fazem da verdade?50 E ainda mais, tornando a vontade de verdade a essência da vontade de criação? Podemos fazer esta constatação seguindo as próprias palavras de Nietzsche:

Vê-se que também a ciência repousa numa crença, que não existe ciência ‘sem pressupostos’. A questão de a verdade ser ou não ser necessária tem de ser antes respondida afirmativamente, e a tal ponto que a resposta exprima a crença, o princípio e a convicção de que ‘nada é mais necessário do que a verdade, e em relação a ela tudo o mais é de valor secundário’. – Esta absoluta vontade de verdade: o que será ela? Será a verdade de não se deixar enganar? Será a vontade de não enganar? [...] Por conseguinte, ‘vontade de verdade’ não significa ‘Não quero me deixar enganar’, mas – não há alternativa – ‘Não quero enganar, nem sequer a mim mesmo’: - e com isso estamos no terreno da moral (GC, V, § 344, p. 235-236 / KSA – VI, p. 575).

Desse aforismo resulta a associação que Nietzsche opera em relação à verdade e à moral. A verdade como imperativo expressa a necessidade de não se deixar enganar. Desse modo, aquelas crenças e valores, outrora pertencentes ao mundo transcendente, estariam, por substituição, se sacrificando no altar da ciência. Assim, de posse da verdade, a ciência já não representaria mais aquele incentivo voltado à criação, pelo simples fato de que não haveria mais o que criar; por outro lado, essa vontade de verdade, essa vontade de não se deixar enganar não estaria voltada ao desejo de melhorar a condição humana no sentido de lhe fornecer referenciais seguros para a vida? De acordo com Nietzsche, para que a vida possa ser afirmada no que tem de mais genuíno, as forças em luta e combate, é necessária a destruição daqueles referenciais de verdade, cuja inibição e escamoteamento resultam em fraqueza e enfermidade.48 “[...] o sacerdote ascético serviu, até a época mais recente, como triste e repulsiva lagarta, única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar [...]” (GM, III, § 10, p. 105 / KSA – V, p. 360-1). 49 “[...] a ciência hoje não tem absolutamente nenhuma fé em si, e tampouco um ideal acima de si – e onde é ainda paixão, amor, ardor, sofrer; não é o oposto desse ideal ascético, mas antes a sua forma mais recente e mais nobre. Isto lhes soa estranho? [...]” (GM, III, § 23, p. 136 / KSA – V, p. 396-7).50 “A partir do momento em que a fé no deus do ideal ascético é negada, passa a existir um novo problema: o problema do valor da verdade. – A vontade de verdade requer uma crítica – com isso determinamos nossa tarefa –, o valor da verdade será experimentalmente posto em questão [...]” (GM, III, § 24, p. 140 / KSA – V, p. 401).

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2.2.2 A NATUREZA COMO EXPRESSÃO DE VONTADE DE POTÊNCIA FRENTE AO DEUS MORAL

Ao conceber a moral como sedimentada em uma rede valorativa, Nietzsche estabelece uma referência conceitual ligada à associação moral/valor/vida.51 De modo que só é preponderante tudo aquilo que atua como veículo promotor da vida, uma manifestação de forças, que deve se exteriorizar e não se voltar, contra o criador, num sintoma de ressentimento. Diante desta moral de ressentimento, Nietzsche anuncia na Genealogia da Moral (§ 6) a necessidade de uma crítica dos valores morais: “Necessitamos de uma crítica dos valores morais” (GM, Prólogo, § 06, p. 12 / KSA – V, p. 253). Assim, uma vez mais é possível constatar que o alvo dos ataques de Nietzsche não é Deus como tal, mas seu fundamento moral, enquanto uma moral de fracos: “[...] também o cristianismo como moral deve ainda perecer” (GM, III, § 27, p. 148 / KSA – V, p. 410). Esse é o fundamento moral que Nietzsche contrapõe à ciência e à natureza,52 as quais representam a viabilização das forças e das pulsões orgânicas criadoras. Esse Deus moral é apresentado por Nietzsche como um bastão para aqueles que estão cansados de viver, que sonham com a promessa de vida futura, o ideal do reino de Deus,53 do qual se depreende uma vontade de nada contraposta à vontade de potência. Ou seja, uma vontade de encontrar por trás das estrelas uma verdade única, absoluta e eterna que venha em socorro da vontade orgânica, cansada e esgotada pela repreensão de suas pulsões instintuais.

Nietzsche considera que a moral que se impôs é mantenedora de determinadas atitudes tornadas, com o tempo, condições de existência, um imperativo, num esforço disciplinar para o desenvolvimento de um tipo determinado de homem. Para tanto, Nietzsche distingue, como vimos, duas grandes linhas valorativas: uma moral nobre ou dos senhores e uma moral do ressentimento ou de escravos. No primeiro caso, a plenitude da vida é a manifestação de uma acolhida jubilosa, a mais alta manifestação da força, já no segundo caso, há uma 51 “[...] através do conceito do ‘eu’, toda uma cadeia de conclusões erradas e, em consequência, de falsas valorações da vontade mesma, veio a se agregar ao querer [...] Em todo o querer a questão é simplesmente mandar e obedecer, sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas ‘almas’: razão por que um filósofo deve se arrogar o direito de situar querer em si no âmbito da moral – moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno ‘vida’” (ABM, I, § 19, p. 24-25 / KSA – V, p. 33).52 “[...] esta ciência moderna que, como verdadeira filosofia da realidade, evidentemente crê apenas em si mesma, evidentemente possui a coragem, a vontade de ser ela mesma, e até agora saiu-se bastante bem sem Deus, sem além e sem virtudes negadoras” (GM, III, § 23, p. 136 / KSA – V, p. 396).53 “Fé em quê? Amor a quê? Esperança de quê – Esses fracos – também eles desejam ser os fortes algum dia, não há dúvida, também o seu ‘reino’ deverá vir algum dia – chamam-no simplesmente ‘o Reino de Deus’” (GM, I, § 15, p. 39-40 / KSA – V, p. 283).

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realidade, estática, apática e incapaz de criar valores, a mais baixa manifestação da fraqueza. É a este segundo tipo de moral que Nietzsche atribui a dialética socrática e o mundo ideal platônico. Nele constitui-se o homem do rebanho, um ente vinculado aos moldes da substancialidade, da finalidade, tendo como sua expressão máxima o advento do cristianismo moralista e doutrinário.

Daquela estratificação tipológica senhor/escravo, depreende-se uma estratificação fisiológica que remete ao corpo e às suas funções orgânicas, desenhando-se nos moldes fraco/forte. E, desta segunda, Nietzsche entrevê uma estreita ligação com a moral, que, guiada pela noção de vontade de potência, passa a ser vista como um elemento regulador dos instintos.54 À fisiologia é atribuído um papel de destaque no que tange a essa questão. Todas as manifestações corporais passam a ser expressões do entrecruzamento de potências desiguais que vão se efetivando. Desse modo, há um verdadeiro combate ao dualismo fundado na moral, em favor de um universo plural complementar.

2.2.3 DA MORAL DUALISTA À CIÊNCIA PLURAL COMPLEMENTAR

Nietzsche considera o espírito e o corpo não como unidades distintas entre si, mas como constituindo uma complementaridade a convergir para um universo plural aberto. Uma grandeza determinada de força. Aquela ênfase, outrora atribuída ao espírito, tendo como sede o eu consciente, abre espaço para a luta entre as mais diversas funções orgânicas, cuja tensão produz força que é vida. Logo, a consciência, o espírito (alma) deve estar a serviço de todas aquelas funções orgânicas fundamentais para a vida: respiração, nutrição... Em outras palavras, todos aqueles pensamentos, vontades e sentimentos do eu convergem para um contexto mais amplo: “[...] como uma forma mais primitiva do mundo dos afetos, na qual ainda esteja encerrado em poderosa unidade tudo o que então se ramifica e se configura no processo orgânico” (ABM, II, § 36, p. 42 / KSA – V, p. 54-55). Logo, nada mais são que vontade de potência encarnada.55 A complexidade instintual em que se processam os juízos de valor e que abrange os fenômenos do sentir, do querer e do pensar encontra-se difusamente espalhada por todo o organismo. 54 “Mas todos os fins, todas as utilidades são apenas indícios de que uma vontade de poder se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função; e toda a história de uma ‘coisa’, um órgão, um uso, pode desse modo ser uma ininterrupta cadeia de signos de sempre novas interpretações e ajustes” (GM, II, § 12, p. 66 / KSA – V, p. 314).55 “Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade – a vontade de poder, como é minha tese” (ABM, II, § 36, p. 43 / KSA – V, p. 55).

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A ênfase atribuída ao corpo, o campo das relações agonísticas, entre as múltiplas manifestações instintuais da vontade de potência, foi possibilitada graças à inversão ontológica do ser para o devir, quebrando aquela identidade lógica do sujeito e promovendo em contrapartida a pluralidade intrassubjetiva. Esta pluralidade que é constituída por instintos em luta e tensão possui o atributo do egoísmo. Ė justamente este egoísmo que ao valorar a partir de si próprio proporciona o desencadeamento para mais potência.56

Esse desencadeamento para mais potência, evidenciado a partir da oposição entre Apolo e Dionísio, mostra-nos que a força manifesta em forma de potências artísticas, é imanente à própria natureza orgânica e não a alguma mediação externa e estranha, como seria o caso de algum artista humano, ou de um Deus transcendente. A visão de um Deus Todo-Poderoso, que é responsável por todas as ações humanas, ao ponto de submeter tudo à sua Divina Providência, é típica de Lutero57 e não do catolicismo, conforme disposto mais adiante.

Vale lembrar ainda que em Nietzsche ganham corpo as noções de valor, de vida e de vontade de potência, de modo que se torna visível a dinâmica expansiva e assimiladora dos instintos que desmantelam todos aqueles pressupostos unificadores e dicotomizadores, típicos da reflexão filosófica anterior.58 O dogmatismo da moral cristã, responsável pela redução do homem à condição de sujeito,59 desprovendo-o de sua condição de atividade, o reduz à condição de pura passividade, submissão e/ou sujeição. Em suma, Nietzsche opera na cultura uma transferência no que diz respeito à fraqueza para a força. Giacóia nos diz que ambas as ontologias, da força e da fraqueza, constituem “[...] o extrato essencial da cosmovisão de Nietzsche” (GIACÓIA, 2002, p. 63).

2.2.4 GENEALOGIA: A CIÊNCIA DIAGNOSTICADORA DOS MALES DA CULTURA

Nietzsche considera tensa a luta entre a pluralidade dos instintos, a ponto de ser inadmissível toda e qualquer possibilidade de resolução e/ou acomodação. Todos aqueles impulsos e afetos que compõem o labirinto instintual constituem grupos que, opondo-se aos outros, resultam em vencedores 56 “Quero dizer que também a inutilização parcial, a atrofia e degeneração, a perda de sentido e propósito, a morte, em suma, está entre as condições para verdadeiro progressus; o qual sempre aparece em forma de vontade e via de maior poder” (GM, II, § 12, p. 67 / KSA – V, p. 315).57 Essa teologia da submissão humana única e exclusiva a Deus pela fé ganha forte expressão em Lutero (1517), vindo a radicalizar-se posteriormente com Calvino (1533) a partir da sua doutrina da predestinação.58 “Ó, meus irmãos, eu vos consagro e indico como uma nova nobreza: devereis tornar-vos os criadores, os cultivadores e os semeadores do futuro” (AFZ, III, § 12, p. 242 / KSA – IV, p. 254).59 “Dizia-se, ‘Deus’, outrora, quando se olhava para mares distantes: mas, agora, eu vos ensino a dizer: ‘Super-Homem’” (AFZ, II, nas ilhas bem-aventuradas, p. 114 / KSA – IV, p. 109).

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e vencidos, ambos a colaborar para a constituição do corpo. Certas camadas instintivas, ao fazerem sentir o seu predomínio sobre acontecimentos que se sucedem na experiência individual e social, submetem as demais camadas a uma situação de sujeição e privação. Logo, se prolongada, essa situação leva a uma cristalização forjada e sufocante, como é o caso da moral dogmática que Nietzsche visa se depreender do cristianismo. Num contexto como este, em que impera a moral cristã, possibilita facilmente a germinação do sujeito moral, fraco e decadente, considerado por isso, para Nietzsche, um dos males da cultura. É pela genealogia que o filósofo pode captar o alvo, a gênese em que deve lançar a sua flecha destruidora daquelas bases nocionais que constituem o sujeito. Assim, os males são eliminados pela raiz.

Todos os instintos, entendidos como quantum de potência em contínua transformação, afastam toda e qualquer noção de ente ou substrato que possam lhes estar subjacentes. Esse impulso instintivo constitui o seu próprio fazer e efetivar-se, iluminando assim esquemas duplicadores como agente-ato,60 sujeito-predicado.61 O instinto requer a sua designação sempre no plural, pois representa um jogo efetivo de impulsos que, desiguais, lutam por impor sua insaciável expansão subjugadora. Estas desigualdades potenciais representam uma multiplicabilidade de vontades de potência, travando batalha a tudo o que lhes impõe resistência.

O pressuposto da identidade, marca fundante na arquitetura do sujeito, é rechaçado pelo caráter relacional da dimensão instintiva, tornando, por outro lado, possíveis as relações entre potencialidades diferentes. Desse modo, conceitos de ser e coisa passam a ser tomados como conceitos em relação. É, no relacionar-se, mediante o devir, que as potências de vida ascendente e descendente vão se manifestando, colocando em movimento tudo o que se encontra em permanência.62 Isto implica a destruição por meio de um só golpe com a noção de sujeito, dissolvendo aquela unidade e identidade do eu na pluralidade e diferença do corpo, ou seja, passa-se daquela realidade absoluta e determinada para uma

60 “Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação – a ação é tudo” (GM, I, § 13, p. 36 / KSA, V, p. 79). 61 “Mas agora observem o que é mais estranho na vontade – nessa coisa tão múltipla, para a qual o povo tem uma só palavra: na medida em que, no caso presente, somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e como parte que obedece conhecemos as sensações de coação, sujeição, pressão, existência, movimento, que normalmente têm início logo após o ato da vontade; na medida em que, por outro lado, temos o hábito de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade, através do sintético conceito do ‘eu’, toda uma cadeia de conclusões erradas e, em consequência, de falsas valorações da vontade mesma, veio a se agregar ao querer” (ABM, I, § 19 p. 24 / KSA – V, p. 32-33).62 “Onde todo o devir parecia-me divina dança e divina galhardia e o mundo, solto e desenfreado, refluindo para si mesmo – como um eterno fugir de si e voltar a procurar-se de muitos deuses, como o bem-aventurado contradizer-se e reouvir-se e recompor-se de muitos deuses” (AFZ, III, De velhas e novas tábuas, p. 235 / KSA – IV, p. 247-8).

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confluência instintiva de potências transitórias. Através do triunfo do corpo sobre o eu, a tão privilegiada unidade entra em derrocada. Aquele sujeito outrora presente no corpo se dispersa por entre intermináveis instâncias potenciais.

Assim, a dimensão instintiva referente às emoções, aos desejos e às pulsões abala todos aqueles pressupostos nocionais subjacentes ao sujeito metafísico, que outrora enquadrado em limites, através de uma estruturação atômica e substancial, passa, mediante o vir-a-ser, a querer inexoravelmente se superar, num esforço contínuo por expansão. Constata-se, por isso, o quanto Nietzsche é preocupado em submeter a exame todas aquelas noções microfisiológicas. O seu interesse perscruta até os mais ínfimos elementos dos compostos orgânicos. Esse procedimento o faz uma vez mais se aproximar da ciência que tudo submete a exame, com o intuito de fornecer um conhecimento desobstruído de toda a crença metafísica, qual fundamento do Deus cristão. Assim parece demonstrar uma confiança que Nietzsche quer depositar no homem e em seus empreendimentos (tecno-científicos) em prejuízo a tudo aquilo que inspira ascetismo, norma, ou qualquer outro referencial que escape ao domínio terreno a respeito do qual o filósofo afirma: “Fora de uma vez, semelhante Deus! É melhor não termos nenhum Deus, é melhor forjarmos o destino com as nossas próprias mãos, é melhor sermos doidos, é melhor sermos Deus nós mesmos!” (AFZ, IV, Sem ofício, p. 308 / KSA – IV, p. 325).

Dessa forma, já nos é possível auferir dois conceitos centrais, no que tange às referências nietzschianas, a respeito de um novo caminho filosófico que viabilize instaurar uma nova cultura: o instinto e a força. Como ambos, vinculados à realidade deste mundo sensível, corpóreo, operam uma verdadeira desconstrução de tudo aquilo que foi admitido na cultura ocidental como verdadeiro: noções como “sujeito”, “eu”, “Deus”, “ente”, “alma”. Nietzsche tem como intento operar na cultura uma inversão de tudo o que é fraco, a fim de tornar forte. Para tanto, é levado a supor que a força somente pode ser efetivada nesta realidade instintual das pulsões orgânicas que compõem este mundo. Desse modo, considera passivo, fraco e ressentido todo aquele que se volta a um mundo que escape à realidade do mundo corpóreo. Dentre estes, Nietzsche destaca os cristãos como expressão máxima da fraqueza da cultura.

Essa referência de Nietzsche à realidade dos instintos e da força atesta a sua tomada de partido pelo procedimento técnico e experimental da ciência, pois, por um lado, como esta última, também o filósofo submete tudo à experimentação técnico-científica.63 A própria realidade dos instintos, 63 Como essa realidade dos instintos e da força, ligada à técnica e à ciência, faz referência à noção nietzschiana de vontade de potência, não quer dizer que esta última seja considerada um método científico experimental,

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a qual Nietzsche tem na mais alta consideração, é um elemento essencial da ciência. Porém, por outro lado, percebemos Nietzsche dela se distanciar quanto à pretensão de verdade à qual almeja a ciência, pois a verdade, como vimos, carrega as marcas da fixidez e do dogmatismo, decorrendo daí a fraqueza e a impotência. Com isso a ciência estaria, na visão de Nietzsche, alimentando pretensões de fundar uma nova religião sobre os escombros da antiga.

2.3 DA CIÊNCIA À NOVA RELIGIÃO

2.3.1 METAFÍSICA E VONTADE DE POTÊNCIA

Os ataques de Nietzsche incidem sobre toda e qualquer busca de um fundamento rumo à verdade, para o qual ele utiliza as fontes genealógicas. Tal atitude desconstrutora do filósofo tem, como alvo de seu ataque, a própria noção de sujeito que se compreende do dualismo e do niilismo metafísico da cultura ocidental. A respeito desse niilismo, podemos trazer uma contribuição de Franco Volpi, segundo o qual: “O niilismo é, pois, a ‘falta de sentido’ que desponta quando desaparece o poder vinculante das respostas tradicionais ao porquê da vida e do ser” (VOLPI, 1999, p. 55). Associa-se a falta de sentido àqueles valores tradicionais da cultura ocidental. Dentre estes destacamos a existência de Deus.

Seguindo as pegadas de Kant, Nietzsche critica a metafísica dogmática através de um combate à psicologia, à cosmologia e à teologia racionais. Porém, à diferença de Kant, Nietzsche sustenta que as noções de alma, de mundo e de Deus não podem ser dissociadas dos processos de pensamento que as originaram. Nietzsche discorda de Kant quanto à submissão do intelecto a um exame de seus recursos e de sua utilização. Para Nietzsche, a análise do conhecimento em profundidade não pode estar dissociada da contribuição das ciências. A princípio, a noção de Deus parece não ter sentido na sua obra por suscitar uma dissociação que se expressa na imputação das forças, por demais grandiosas, a um ser todo-poderoso (Deus),64 que, na concepção kantiana, é salvo pela dissociação entre saber e fé racional, de modo que Deus não pode ser conhecido, pode apenas ser objeto de crença. Kant sacrifica o saber a fim de abrir um espaço para a crença. Nesse sentido, Nietzsche escreve:mas antes uma tese ontológico-cosmológica. 64 “E agora não me venha falar do imperativo categórico, meu amigo! – essa expressão me faz cócegas no ouvido e eu tenho que rir, mesmo em tão séria presença: lembra-me o velho Kant, que, como punição por ter obtido furtivamente a ‘coisa em si’ – também algo ridículo! –, foi furtivamente tomado pelo ‘imperativo categórico’, e com ele no coração extraviou-se de volta para ‘Deus’, ‘alma’, ‘liberdade’ e ‘imortalidade’, semelhante a uma raposa que se extravia de volta para a jaula” (GC, IV, § 335, p. 223 / KSA – III, p. 562).

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[...] desde Kant, os transcendentalistas de toda a espécie ganharam novamente a partida – eles se emanciparam dos teólogos: que felicidade! – Kant lhes mostrou o caminho secreto através do qual podem, por iniciativa própria e com o maior decoro científico, perseguir os ‘desejos do seu coração’ (GM, III, § 25, p. 143 / KSA – V, p. 405).

O estabelecimento da ideia de Deus, como objeto de crença, constitui um ponto-chave nas críticas de Nietzsche, pois, deste estabelecimento, ao submeter-se ao exame genealógico, decorre a sua avaliação que procede de um valor moral. Na concepção nietzschiana, o mundo é constituído de campos de força em permanente tensão, gerando e se destruindo, e não pode estar submetido a um ser transcendente. Essa força, que é vontade de potência, é desprovida de necessidade, dispondo de uma inclinação interna a criar sempre novas configurações. Wolfgang Müller-Lauter diz que: “A vontade de poder é a multiplicidade das forças em combate umas com as outras”. E mais adiante: “O mundo de que fala Nietzsche revela-se como jogo e contrajogo de forças ou de vontades de poder” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 74-75).

Em outras palavras, no pensamento de Nietzsche, não há vontade propriamente dita, mas sim pontuações de vontade, que continuamente aumentam e diminuem a sua potência. Cada parcela corporal (átomos, células, aparelhos, tecidos) quer superar-se e subjugar, atingindo assim níveis potenciais superiores. Isso se expressa numa verdadeira luta e quebra de resistências, conservando-se o estado já atingido a fim de ser assimilado por outro. Dessa forma, podemos constatar as existências de hierarquias superiores entre dominantes e dominados, qual seja, a moral dos senhores e dos escravos. A vontade de potência manifesta-se em toda parte, seja no reino orgânico, seja no reino inorgânico.65

Na noção de vontade de potência não há realidades estáticas nem duradouras, o que a constitui nada mais é do que a relação, tensão. Assim, uma vontade de potência só se expressa como tal na relação de ataque ou de defesa frente a outra. Por essa razão, torna-se inviável a pergunta que fundamenta esta relação, marcada pela tensão entre uma pluralidade dinâmica. Assim, para além da dicotomia entre o ser e o devir engendrada pelos metafísicos, a sua efetivação é basicamente um relacionar-se momentâneo. Sem meta ou objetivo

65 “[...] mundo é, de um lado, um todo: mundo orgânico. Quando lemos, no mesmo manuscrito, ‘que não há mundo inorgânico’, então podemos entender sob ‘mundo’, como mundo do orgânico, o todo da efetividade. Nesse apontamento, fala-se, de outro lado, em fictícios pequenos mundos dos seres particulares. Fica próxima a suposição de que tais ficções não teriam qualquer peso particular. Parece ser essencial apenas o primeiramente nomeado ‘conceito de mundo’. Quando ouvimos, entretanto, que o todo, nele compreendido, forma a rede de seres com os ‘pequenos mundos’” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 99).

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a alcançar, essa multiplicidade potencial decorrente da vontade de potência faz com que o enfoque nietzscheano passe a ser perspectivo: “Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo” (GM, III, § 12, p. 109 / KSA – V, p. 365). Como observa Marton:

As coisas que acredita existir não passam de um conjunto de relações; estão imersas no fluxo contínuo de que ele mesmo não pode escapar. É por isso que o conhecimento é relação condicional, e as noções de sujeito e objeto têm caráter fictício. O aparecimento das ‘coisas’, sustenta o filósofo, ‘é inteiramente a obra dos que representam, pensam, querem, inventam (MARTON, 2000, p. 211).

Assim, se tudo está em constante mobilidade, como representações perspectivísticas, segundo nos mostra Marton, noções de sujeito e de objeto, fundadas sob os auspícios da imobilidade e do dogma, perdem a sua razão de ser, sendo reduzidos ao absurdo.

O enfoque perspectivístico, entendido como uma pluralidade de interpretações, está intimamente vinculado à ciência, pois a verdade científica expressa a sua eficácia enquanto interpretações do mundo que se impõem como instintos dominantes em relações de força, de vontade de potência. Charles Taylor, em sua análise da estrutura do Eu na modernidade, faz uma constatação interessante a respeito das relações entre o caos, a ciência e a vida. Por isso, com respeito a Nietzsche, Taylor nos mostra que:

Este acentuou a profunda falta de ordem da experiência original, bruta, “o mundo informe informulável do caos das sensações”. Para viver neste mundo, temos de impor-lhe alguma ordem. Essa compreensão geral do papel mediador indispensável da forma esteve na base das mais influentes filosofias da ciência do período. Mas gerou um problema especial para aqueles que buscavam a recuperação da experiência, por isso era de modo geral concebido como um retorno ao concreto, ao imediato, à plenitude da realidade vivida, em oposição ao abstrato, ao mediado e meramente conceitualizado (TAYLOR, 1997, p. 605).

Podemos perceber, então, segundo nos mostra Taylor, que o procedimento científico contribuiu sumamente no sentido de se impor alguma forma ao mundo, recorrendo, para tanto, ao auxílio de conceitualizações

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abstratas. Isso acabou por ocasionar um retrocesso, ou, melhor dizendo, um distanciamento de toda aquela realidade concreta própria da experiência. Dado que o mundo não se apresenta como sistema, não há uma visão de conjunto; logo, conceitos abstratos, como os de sujeito e de objeto, não passam de formas de interação. Nesse sentido, o mundo passa a ser apreendido de acordo com as perspectivas adotadas, consoantes àquelas relações.

No período maduro de seu pensamento, Nietzsche tenta mostrar o equívoco do período anterior, que foi o de submeter à metafísica através do deslocamento do eixo que funda a crença no mundo suprassensível para o mundo sensível. Isto equivaleria a fazer da ciência uma nova religião de tal modo que aquelas ditas verdades, crenças, dogmas, combatidos por presidirem um mundo suprassensível, estariam agora ocupando este mundo sensível.

Ora, dado que essas forças operam em todos os segmentos do mundo, entende-se que este último passa a ser a medida e o critério último de todas as coisas. Então seria possível afirmar que este mundo é Deus? Por trás do aparente ateísmo nietzscheano depreender-se-ia um panteísmo? Segundo a análise de Charles Taylor: “A ressonância profundamente cristã que permanece paradoxalmente em Nietzsche a despeito de sua virulenta oposição ao cristianismo situa-se em sua aspiração a afirmar o todo da realidade, a vê-la como boa, a dizer ‘sim’ a toda ela” (TAYLOR, 1997, p. 578). O caráter de afirmação e o de totalidade que se depreendem da genealogia da filosofia nietzschiana não seriam indicativos de sua confissão da existência de um deus? Karl Löwith, na mesma posição de Taylor, segundo o qual Nietzsche possui uma natureza religiosa escreve: “Nietzsche foi uma natureza religiosa desde a sua juventude até o fim de sua vida, quando invocará ainda o Deus desconhecido” (LÖWITH. In: MARTON, 1985, p. 160).66 Porém, Löwith, avançando um pouco mais na reflexão, diz que o ateísmo de Nietzsche consiste em contestar a moral cristã, confirmando, mais uma vez, o que já temos procurado mostrar: “[...] seu questionamento do teísmo é antes uma contestação radical da moral cristã” (LÖWITH. In: MARTON, 1985, p. 160).

2.3.2 DEUS E CIÊNCIA

Com relação à questão da existência de Deus, de que forma exatamente Nietzsche desfere as suas críticas? Conforme podemos acompanhar nesta

66 Karl Löwith escreveu o texto: “Nietzsche e a completude do ateísmo” (fruto do Colóquio de Ceresy), organizado e publicado juntamente com outros textos por Scarlett Marton no livro intitulado: “Nietzsche Hoje?”. Conf. Bibliografia.

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passagem de Aurora, § 95,67 a preocupação de Nietzsche não é criticar a existência de Deus como tal, mas sim as maneiras de concebê-la, fundada numa fé, numa crença.

De acordo com a subsunção da ideia de Deus ao exame genealógico constata-se que esta é sustentada como valor moral, e essa sustentação, segundo Nietzsche, é conferida pela inversão dos valores operada pelo cristianismo, pois a classe sacerdotal, ao conquistar a soberania em relação à aristocracia, submete esta última às suas normas de conduta e mostra assim que esses valores e normas morais, pregados pelo cristianismo, não passam de criações humanas destinadas a subjugar o rebanho, como justificativa da fraqueza e do ressentimento daqueles pregadores.68

Essa inversão operada pelo cristianismo também se manifesta na crescente espiritualização pela qual tem passado a ideia de Deus em relação à humanidade dos deuses gregos. Nietzsche ataca o argumento ontológico que subjaz à ideia de perfeição de Deus. Segundo Marton, “[...] revelaria flagrante contradição, pois dele se excluiria tudo o que não participasse do chamado domínio espiritual, a começar pela finitude, temporalidade e mutabilidade” (MARTON, 2000, p. 172).

Ora, podemos supor que Nietzsche critica fortemente o dualismo inaugurado por Platão e retomado por Descartes e Kant. No seu pensamento cosmológico, a força tem como caráter intrínseco a vontade de potência, que atua desde a matéria inerte até os fenômenos psíquicos, não podendo haver, assim, lugar para o dualismo. Como podemos constatar nas palavras de Müller-Lauter: “A vontade de poder é multiplicidade das forças em combate umas com as outras. Também da força, no sentido de organização. Com efeito, o mundo é uma firme, brônzea grandeza de força, ele forma ‘um quantum de força’” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 74). Logo, se não é possível estabelecer uma distinção entre corpo e espírito, não há como asseverar a existência de Deus como eterno e imutável. Mais uma vez, notamos que Nietzsche concebe a crítica da existência de Deus fundamentada na doutrina de valores morais,

67 “Outrora se buscava demonstrar que não existe Deus – hoje se mostra como pôde surgir a crença de que existe Deus e de que modo essa crença adquiriu peso e importância: com isso torna-se supérflua a contraprova de que não existe Deus. – Quando, outrora, eram refutadas as ‘provas da existência de Deus’ apresentadas, sempre restava a dúvida de que talvez fossem achadas provas melhores do que aquelas que vinham de ser refutadas: naquele tempo os ateus não sabiam limpar completamente a mesa” (A, I, § 95, p. 71 / KSA – III, p. 86-87).68 “[...] - necessidade de médicos e enfermeiros que sejam eles mesmos doentes: e agora temos e apreendemos com ambas as mãos o sentido do sacerdote ascético. A ele devemos considerar o salvador, pastor e defensor predestinado do rebanho doente: somente então entenderemos a sua tremenda missão histórica. A dominação sobre os que sofrem é o seu reino, para ela dirige o seu instinto, nela encontra ele sua arte mais própria, sua mestria, sua espécie de felicidade” (GM, III, § 15, p.115 / KSA – V, p. 372).

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ou melhor, na metafísica dogmática, segundo a qual Deus seria uma realidade suprema perante a qual tudo e todos estariam curvados sob o seu jugo, numa mera posição de submissão e de fraqueza. A ideia de Deus passa, assim, a ser repensada como Momento Culminante, Ponto Culminante de Potência (KSA – XII, 9(8), 1887, p. 343),69 numa eterna divinização e desdivinização. Assim, se Deus é esse ponto culminante da potência, e o mundo, vontade de potência, Deus e o mundo não estariam identificados? Caso essa identificação fosse possível não se cairia no panteísmo?

Parece que, limitado apenas a um ponto culminante da potência, Deus não seria a soma de tudo o que existe, invalidando, por isso, aquela hipótese da sua identificação com o mundo (panteísmo). A ideia de Deus não refletiria um telos, mas um momento, um ponto submetido à instabilidade de um processo em constante divinização e desdivinização. Essa ideia reflete bem a concepção que tinham os gregos antigos a respeito da divindade que, se manifesta por meio de uma pluralidade de deuses submetidos às paixões, encontra-se em constante luta e combate entre si, como Nietzsche revela através do “Dionísio contra o Crucificado” (FP, XIII, § 14 [89] da Primavera de 1888, p. 266). A esse respeito Hans Hübner escreve que:

Agora nós sabemos finalmente, a quem temos diante de nós, com que consciência divina a filosofia ateia do Nihilismus anuncia: O Deus Nietzsche em papéis de identidade com o Deus Dionísio! O Deus, cujo êxtase já dominou o autor do escrito O nascimento da tragédia no espírito da música, que domina também no final este autor junto ao manuscrito de todo o seu escrito. Ao mesmo tempo, o venerador do Deus Dioniso finalmente será este mesmo Deus – Dioniso com o sobrenome de Friedrich Nietzsche – será este Deus ateísta Dioniso o pregador divino do ateísmo e inimizade de Deus. Porém este ateísmo divino – é apenas uma forma lógica, uma contradictio in adiecto! – dirigido contra o crucificado, de Dioniso a divindade será contestada (HǕBNER, 2000, p. 234-235).

Porém, a atitude religiosa de Nietzsche, como sublinha Löwith, não pode limitar-se a esta fórmula: Dionísio contra o Crucificado, pois ao contrário de muitos ateus, o ateísmo de Nietzsche engendra uma complexidade muito maior. 69 Marton emprega a expressão de Nietzsche “Momento Culminante” (Culminations-Moment), “Ponto Culminante de Potência” (Macht-Höhepunkte), para designar a onipotência divina, em sua análise da crítica de Nietzsche à metafísica e ao Deus cristão. “Nietzsche só pode admitir a onipotência; melhor ainda, só pode concebê-lo como ponto culminante de potência” (MARTON, 2000, p. 173).

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Seu ateísmo se expressa, acima de tudo, como uma crítica radical à moral cristã (LÖWITH. In: MARTON, 1985), responsável por encerrar em si toda a inércia e dogmatismo, promovendo assim a submissão e a fraqueza, o que consiste num embate frontal àquela paisagem em que dominava a divindade entre os gregos antigos. Nesta mesma paisagem, haveria uma pluralidade de manifestações pulsionais, em constante mudança e combate entre si, representando a luta entre os homens e também entre os deuses. Portanto, em última análise, a ideia de Deus não refletiria uma unidade, mas uma pluralidade em estado contínuo de luta a expressar-se por meio de uma configuração reveladora de um máximo de potência. Como escreve Müller-Lauter: “Esse Deus representa ‘a alma agressiva, sedenta de poder, de um povo, sua vontade de poder’” (MǕLLER-LAUTER, 1997, p. 94). Por ser a vontade de potência esse aumento sempre crescente de potência, nada se pode encontrar fixo e/ou cristalizado, tal como verificamos na linguagem conceitual metafísica.

2.3.3 DEUS E A LINGUAGEM

O cunho afirmativo que Nietzsche imprime ao mundo da vida possui uma fundamentação científica70 a ser repensada. E essa fundamentação científica, como já vimos anteriormente, é operada pelo procedimento genealógico. Assim, todas aquelas noções de alma, de Deus e de mundo submetidas ao procedimento genealógico não podem ser desvinculadas dos processos de pensamento que lhes deram origem. Por essa razão, as noções alma, substância, Deus revelam, na concepção de Nietzsche, uma grosseria de linguagem, tanto é que ele diz que continuaremos a acreditar na existência de Deus enquanto depositarmos nossa confiança na gramática.71 O próprio conceito de alma e substância só é possível em decorrência do conceito de sujeito, que, segundo Nietzsche, não passam de realidades fictícias, convenções linguísticas estabelecidas gregariamente, que com o tempo foram tornando-se dogma. A linguagem expressa a necessidade que o homem tem de viver em rebanho e a capacidade de revelar-se, no máximo, como expressão de uma crença com relação a alguma realidade transcendente, como são aquelas crenças dos metafísicos e dos cristãos. Estas crenças conduzem a uma sequência gradativa de erros, como é o caso daquela 70 Charles Taylor, ao constatar na sua apreciação de Nietzsche o aspecto do caos no mundo para o qual urge a necessidade de impor-lhe uma ordem, escreve: “Para viver no mundo temos de impor-lhe alguma ordem. Essa compreensão geral do papel mediador indispensável da forma esteve na base das mais influentes filosofias da ciência do período” (TAYLOR, 1997, p. 605).71 “Eu temo que não venhamos a nos ver livres de Deus porque ainda acreditamos na gramática [...]” (CI, A razão na filosofia, § 05, p. 29 / KSA – VI, p. 78).

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dicotomia entre corpo e consciência, com uma supervalorização desta última, como podemos acompanhar nas palavras de Marton:

Primeiro, de mero órgão passou a princípio unificador do organismo: núcleo do homem; depois, tornou-se o que o faz ser o que é: sua essência; então, volatizou-se e converteu-se em alma; por fim, ampliou-se e, projetada no mundo – e mesmo atrás dele – transformou-se em Deus, modo superior do ser, instância última, critério supremo de valor (MARTON, 2000, p. 180).

Desse modo, esses conceitos de essência, alma e Deus operam uma verdadeira oposição à realidade dos sentidos, impulsos e instintos. De princípio unificador do organismo, a consciência converte-se em alma, para enfim transformar-se em Deus. Estes conceitos tentam comunicar algo que na verdade não possui uma fundamentação científica. Logo, designações e coisas acabam recobrindo-se e dogmatizando-se em forma de palavra, cujo uso é incapaz de exprimir a efetivação das forças. Ela é, por isso, mais um sintoma de fraqueza.

Como as forças têm como caráter intrínseco a vontade de potência, colidem, nesse sentido, frontalmente com os postulados tanto da linguagem quanto da metafísica. Para tanto, Nietzsche lança mão das contribuições da ciência no sentido de também proceder a uma análise da linguagem. Tal como a religião, também a ciência transforma a natureza em conceitos com o intuito de dominá-la. Esse domínio da natureza pela ciência, expressa como vontade de potência, possibilita que o mundo seja calculável e previsível, acabando, por isso, pondo em xeque a necessidade da metafísica e da religião e abrindo espaço para a edificação de uma cosmologia e de uma psicologia. Ao operar segundo tais critérios acima explicitados, estaria Nietzsche propondo uma substituição da religião e da metafísica baseadas na crença de Deus pela ciência? Ou seria esta nova ciência apenas uma nova religião, que continuaria a alimentar aquela antiga crença na verdade? Como Nietzsche escreve: “Ambos, ciência e ideal ascético, acham-se no mesmo terreno” (GM, III, § 25, p. 141 / KSA – V, p. 402). O terreno é aquele da superestimação da verdade. Neste sentido, a ciência acabaria assumindo aqueles antigos erros apontados por Nietzsche com relação aos moldes da cultura cristã e metafísica. Em suma, Deus e ciência estariam em oposição, ou esta última foi responsável pela morte do primeiro a fim de assumir o seu lugar, mantendo, no fundo, aqueles seus mesmos preceitos?

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2.3.4 DA CIÊNCIA À MORTE DE DEUS

Fomos levados a perceber, durante a exposição das temáticas acima, o quanto Nietzsche foi influenciado pelas modernas transformações da ciência, que se fizeram sentir principalmente na inspiração da sua poderosa arma diagnosticadora dos valores: a genealogia. Contudo, fica a questão de até que ponto a ciência estaria conformada às teses do eterno retorno, da vontade de potência, do além-do-homem e da morte de Deus. Dá a impressão de que na visão de Nietzsche, a ciência, embora, por um lado, inspire um pensar afirmativo baseado numa ação criativa contra todo o obscurantismo e a crença num além, por outro, constata-se que ela acaba submetendo todos os seus esforços e sacrifícios sobre o altar da verdade, tal como a religião. Com isso dá a entender que no decorrer de seu itinerário de pensamento, Nietzsche, conforme Paul Valadier, adota uma mudança de atitude com relação à ciência:

Tudo se passa, portanto, como se, em primeiro lugar, Nietzsche adotasse uma atitude coerente com as perspectivas do racionalismo inspiradas na filosofia dos iluministas. Desta ótica, a atitude científica é incompatível com a atitude religiosa, esta será progressivamente substituída e destronada por aquela, o espírito crítico que preside ao desenvolvimento das ciências tornará mais e mais vã a crença religiosa, e a fé aparece como uma ilusão, cuja humanidade enfim saída dos receios e angústias primitivas chegaria a se desembaraçar. Sem dúvida que uma interpretação de certos textos nietzschianos é possível nesta perspectiva, ao menos até um certo ponto (VALADIER, 2000, p. 15).

Valadier acentua a forte contribuição da ciência sobre a produção nietzschiana, o que o leva a associar a derrocada da religião ao progresso científico. Porém, o comentador francês diz que esta interpretação só é possível até uma determinada altura dos textos de Nietzsche. Além deste limite depreende-se que a ciência não apenas figura como substituta da religião, senão mesmo como a nossa nova religião: “Longe de considerar a ciência como a substituta da religião, descreve aquela como nossa nova religião” (VALADIER, 2000, p. 15).

Essa crença, na verdade e no ideal ascético, revela uma faceta da ciência que é empobrecedora da vida, pois entram em cena com ela a moral, a metafísica e

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a religião. Ambas, ciência e religião, acabam sacrificando seus esforços no mesmo altar da verdade. Valadier (2000, p. 24) escreve: “Ciência e religião revelam, portanto, o mesmo sistema ascético que toma forma na vontade de verdade a todo preço, essência de toda vontade de criação”. Contudo, embora permaneça essa contradição de a ciência querer atacar algo em um determinado lugar para acabar defendendo noutro, é meritório o fato da ciência expressar a sua eficácia quanto à interpretação do mundo72 que se impõe como instinto dominante, como vontade de potência, revelando-se por meio da experimentação, a que submete os diversos elementos que compõem o mundo, sejam eles orgânicos ou inorgânicos.

Embora seja evidente a contribuição da ciência no que diz respeito à formação dos conceitos centrais em Nietzsche, correspondentes ao seu segundo período de pensamento,73 precisamente na proclamação da morte de Deus e na desconstrução da subjetividade que dela se depreende, Valadier, seguindo Nietzsche, acena que tanto a ciência como a religião fazem parte de um mesmo sistema ascético voltado à verdade, como podemos verificar no aforismo 344 da Gaia Ciência:

Vê-se que também a ciência repousa numa crença de que não existe ciência ‘sem pressupostos’. A questão de a verdade ser ou não necessária tem de ser antes respondida afirmativamente, e a tal ponto que a resposta exprima a crença, o princípio, a convicção de que ‘nada é mais necessário do que a verdade, e em relação a tudo o mais é de valor secundário’ (GC, V, § 344, p. 235 / KSA – III, p. 575).

Nietzsche explicitamente acaba reconhecendo que a ciência, no fundo, repousa em uma crença, ou seja, em pressupostos de verdade, tidos como necessários, como única alternativa para não se enganar. Por essa razão, acaba-se novamente no campo da moral. “[...] a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica” (GC, V, § 344, p. 236 / KSA – III, p. 577). Por mais que se considere ateu ou antimetafísico, segundo Nietzsche, ainda se permanece sob a influência da crença cristã: “[...] de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina [...]” (GC, V, § 344, p. 236 / KSA – III, p. 577). Por essa razão, Nietzsche já no início do seu terceiro período de pensamento considera também a ciência como responsável pela decadência da cultura, enfraquecendo-a e atentando contra a vida, por isso, volta a suas críticas contra ela. 72 “[...] o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas perspectivas e apenas nelas. [...] O mundo tornou-se novamente ‘infinito’ para nós: na medida em que não podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações” (GC, V, § 374, p. 278 / KSA – III, p. 626-7).73 O livro V da Gaia Ciência já faz parte do terceiro período do pensamento de Nietzsche.

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Contudo, como pudemos observar, por outro lado, Nietzsche louva a ciência por privilegiar a necessidade do método experimental. Este, intimamente ligado às realidades do mundo,74 contra aquelas crenças fundadas num mundo transcendente, viabiliza uma concepção de força. Porém uma força intraterrena, presente em todos os componentes do mundo, sejam orgânicos ou inorgânicos. Neste sentido, fica patente que em Nietzsche o tema da ciência, tal como o tema da moral (senhor e escravo), anteriormente analisado, é tido em alta consideração somente enquanto estiver ligado por um vínculo de fidelidade à terra, contribuindo para o fortalecimento da cultura. Em uma palavra, enquanto estiver promovendo as forças, como um querer que está sempre aberto para mais potência.

Daria, pois, para dessa vontade de potência, privilegiadora das forças intramundanas, derivar a existência de Deus? Seguindo a interpretação de Scarlett Marton, este Deus que presidiria o mundo, não se pode confundir com o mundo: “[...] aqui não se está diante de um panteísmo nem mesmo de um panteísmo naturalista. Deus e o mundo não se identificam; o mundo não é o conjunto de manifestações de um ser superior, e Deus não é a soma de tudo o que existe” (MARTON, 2000, p. 174). Marton compreende que a aproximação de Deus à realidade do mundo, o grande contributo da ciência, não abre possibilidades de se derivar um panteísmo. Deus não figura como aquele ser superior a arbitrar sobre o mundo e tudo o que o compõe, pois, caso contrário, cair-se-ia novamente naquele sentimento de submissão e fraqueza diante de um ser, uma força que escaparia totalmente ao controle do mundo, o qual Nietzsche queria ver afastado definitivamente da cultura. Continua Marton (2000, p. 174) dizendo que: “Deus é apenas ponto culminante de potência – o que nem mesmo reflete um telos, pois, superando-se a si mesma, a vontade de potência cria novas configurações.” Assim, longe de designar Deus como ser ou ente superior, como meta ou telos, o que acabaria levando a um dogmatismo inerte, revelador da moral de sujeição e fraqueza, Marton entende que em Nietzsche a existência de Deus é designada como um máximo de configuração de força que se depreende da atividade da vontade de potência que atinge um ponto culminante. Porém, como este ponto culminante de potência não é eterno, mas está sempre em mobilidade, o que representa uma diminuição desta configuração de força. Deus também se apresenta em mobilidade constante, como: “[...] uma eterna divinização e desdivinação” (MARTON, 2000, p. 174). Neste sentido, Marton compreende que em Nietzsche a vontade de potência constitui uma realidade das forças, por isso é pertencente 74 Para utilizar a linguagem de Taylor, um regresso ao mundo vivido: “[...] um retorno ao concreto, ao imediato, à plenitude da realidade vivida” (TAYLOR, 1997, p. 605).

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unicamente ao mundo da vida, e não a um mundo transcendente. A reflexão que gravita em torno de Nietzsche afasta todo e qualquer resquício de teologia, vindo, por isso a estabelecer uma reflexão de cunho psicológico com fortes implicações cosmológicas, como é a tese de Marton.

Logo, como a vontade de potência preside a tudo o que compõe o mundo, poderíamos dizer que Deus é um homem, em quem a vontade de potência assume a sua forma mais aperfeiçoada,75 o além-do-homem! E que, por esta razão, Nietzsche credita valor à pessoa de Jesus Cristo. Como podemos verificar no aforismo que segue: “Este ‘bom mensageiro’ morreu tal como viveu, tal como ensinou – não para ‘redimir os homens’, senão para mostrar como se há de viver. O que ele legou à humanidade é a prática” (AT, § 35, p. 65 / KSA – VI, p. 207).

É em torno deste aforismo que daremos continuidade à nossa pesquisa, aproximando as teses nietzschianas de força do mundo (Deus) ao seu produto subjetivo: o homem (Jesus). Para tanto, procuraremos responder às seguintes questões: se o Jesus histórico é considerado por Nietzsche o bom mensageiro, que ensinou a viver, é este então para o filósofo uma figura cara, e/ou um espírito livre!76 Quais as razões, então, que fazem de Nietzsche um crítico do cristianismo? Ou seja, que forma de cristianismo Nietzsche critica? Procuraremos responder a essas questões, percorrendo o itinerário das três formas sob as quais o cristianismo tem se manifestado na cultura ocidental: o cristianismo de Paulo, o de Lutero e o de Jesus.

75 Müller-Lauter a esse respeito escreve que: “o jogo de mútua oposição entre o sobrepujante e aquilo a sobrepujar como curso gradual ‘de um Unitário’, ele eleva a essência da vontade de poder a um ente absoluto que, a partir de si mesmo, se desdobra em multiplicidade, inobstante, junto a si. Com isso, o pensamento de Nietzsche fica equivocado” (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 90). 76 “Com certa tolerância na expressão se poderia chamar a Jesus um <espírito livre> – nenhuma coisa fixa o importa: a palavra mata, tudo o que é fixo mata” (AC, § 32, p. 62 / KSA – VI, p. 204).

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CAPÍTULO 3

CRISTIANISMO E TRANSVALORAÇÃO

UMA LEITURA DO ZARATUSTRA E DO ANTICRISTO

3.1 PAULO E A INVERSÃO DO CRISTIANISMO

3.1.1 ZARATUSTRA, O PEREGRINO DA TRANSVALORAÇÃO

o primeiro capítulo, acompanhamos a tomada por Nietzsche de um novo caminho no qual possa estar sustentada a cultura, a fim de que a força derivada da realidade que preside o cosmos derrube a fraqueza daquelas concepções

metafísicas voltadas a um mundo transcendente tributário principalmente de uma noção moral cristã de existência. No segundo capítulo, através da análise do advento da ciência, percebemos a forte influência científica sobre importantes temas nietzschianos. Por um lado, por seu procedimento técnico-científico voltado à terra nas suas propriedades orgânicas e inorgânicas, a ciência acaba sendo responsável pela morte de Deus e de todas aquelas crenças metafísicas. Porém, por outro lado, por ambicionar a conquista da verdade, acaba caindo naquele mesmo erro dos metafísicos e moralistas, o erro de tornar tudo inerte, absoluto e, no entanto, fraco, raiz de onde derivam todas aquelas concepções de “eu”, “alma” e “sujeito. Pela apresentação desses temas, nos foi permitido verificar que Nietzsche propõe a destruição do solo, a partir do qual foram plasmados os valores que presidem a cultura, que a seu ver entrou em decadência. Nesse sentido, ganha relevo a sua noção de transvaloração dos valores. Procuraremos verificar a partir do que analisamos anteriormente, a respeito da fundação nietzschiana de uma cultura aristocrática voltada contra a decadência e o niilismo, sobre que aspectos e situações o cristianismo é tributário da promoção desta decadência e/ou desta aristocracia. Do cristianismo, tal como da moral – senhor e escravo e da ciência haveria a possibilidade de uma dupla abordagem?

Partimos, por isso, para uma retomada e aprofundamento daquelas questões que, como pepitas de ouro, convergem para o núcleo central da pesquisa. E, como a nossa pesquisa está situada no assim chamado terceiro período do itinerário do pensamento de Nietzsche,77 denominado: 77 Utilizamos esta divisão tripartida do pensamento de Nietzsche baseada na divisão realizada por Marton,

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Transvaloração dos Valores, é nele em que de agora em diante iremos precisamente nos deter. Em meio a esse período destacam-se duas obras de grande envergadura para o desenvolvimento e elucidação dos temas que nos propomos apresentar, são elas: “Assim falou Zaratustra” e “O Anticristo”. Ora, sendo o Zaratustra o ápice das críticas de Nietzsche à cultura ocidental, em que a sua escrita adquire os mais fortes relevos artísticos, e o Anticristo a culminação daqueles ataques nietzschianos a toda a arregimentação da moralidade cristã,78 constituem ambos importantes subsídios a implementar as bases elucidativas ao que diz respeito à desconstrução do sujeito moral e à crítica ao cristianismo.

O significado de Zaratustra é, para Nietzsche, muito importante. Zaratustra, conforme o “Ecce Homo”, é aquele que primeiro vê: “[...] na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz na engrenagem das coisas” (EH, Por que sou um destino, § 3, p. 111/ KSA – VI, p. 367). Sendo, portanto, também o primeiro que reconhece ter criado um dos maiores erros da humanidade: “a moral”.79

Todos aqueles antigos valores, dos quais se nutria a cultura grega e cristã, constituem alvo da crítica nietzschiana na forma de Zaratustra. Entre todas estas críticas tem lugar privilegiado a proclamação da morte de Deus.80 Contudo, muito antes que destruir, Nietzsche tem um modo de procedimento positivo, baseado no construir, no sentido de preparar o terreno de onde possa nascer o Além-do-Homem, baseado numa nova moral que é vontade de potência, longe de qualquer vestígio de transcendência. Esta nova cultura não pode se sustentar apenas com a morte de Deus, necessita sim, além disso, ser animada por uma vontade de potência que crie novos valores. Caso contrário corre-se o risco de se cair num niilismo ainda mais solapador que aquele do cristianismo. A questão dos valores ocupa o centro do pensamento nietzscheano. Essa função de criar novos valores é própria daqueles que superaram a si mesmos, assumindo a visão de um mundo não dualista, concreto, físico, cuja doutrina do eterno retorno lhe confere toda a sua densidade ontológica.como podemos visualizar já no primeiro capítulo. Porém, longe de pensar o pensamento nietzschiano como momentos estanques, estes constituem apenas um modo pelo qual podemos nos situar dentro da cronologia do seu itinerário filosófico. 78 “Não está excluída a hipótese de que seu Anticristo seja não um escândalo Religioso, mas somente a extrema intensificação de uma crítica da moral cristã, que ele inaugurou desde os seus primeiros escritos” (LÖWITH, 1985, p. 149).79 “Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em consequência, deve ser também o primeiro a reconhecê-lo” (EH, Por que sou um destino, § 3, p.111 / KSA – VI, p. 367).80 “Será possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!” (AFZ, I, § 2, p. 35 / KSA – IV, p. 14).

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O estilo81 com o qual Nietzsche escreve o Zaratustra é bastante incomum, porque incomum é o seu próprio projeto filosófico de uma crítica radical de toda a cultura. Essa crítica tem um campo de abrangência que atinge desde o racionalismo socrático, passando pelo cristianismo que introduziu o racionalismo no campo do religioso, até o dualismo racionalista kantiano e o neoplatonismo hegeliano. De toda essa crítica ao racionalismo e à moralidade dualistas, depreende-se que a nova cultura que Nietzsche tem por meta implantar possui as marcas da arte, do jogo e da embriaguez dionisíaca.

Como verificamos no início da exposição, em muitos aspectos o estilo do Zaratustra assemelha-se aos escritos evangélicos. Karl Löwith refere-se à obra como o “quinto” evangelho, o evangelho anticristão.82 “Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos” (Lc, 3,23). Também Zaratustra ao completar 30 anos saiu de sua terra natal a fim de, na solidão das montanhas, cultivar seu espírito.83 Este início de Zaratustra realiza também uma importante referência ao sol, cuja lembrança nos aponta para a Alegoria da Caverna platônica.84 Além disso, o Zaratustra, considerado o quinto evangelho, contém aspectos que nos fazem lembrar o quarto evangelho, o evangelho de João. No Prólogo de Zaratustra é apresentada a rejeição dos ensinamentos daquele que veio para dar testemunho da luz, através de uma patente oposição entre luz e trevas, assim como nas palavras que se depreendem do Prólogo de João: “O que foi feito nele era a vida, e a vida era a luz dos homens; e a luz brilha nas trevas, mas as trevas não a apreenderam” (João, I, 4-5). Deriva-se dessa citação a crítica de Nietzsche às figuras de Platão e de Cristo, nas imagens de Atenas e de Jerusalém respectivamente, a toda a cultura ocidental.

3.1.2 DUALISMO E RECONCILIAÇÃO

O ponto central de todas as suas críticas à cultura ocidental, que se encontra, seja no racionalismo, seja no moralismo cristão, é o dualismo que dele se depreende entre real e aparente, sensível e inteligível, bem e mal. Para

81 “Direi ao mesmo tempo uma palavra geral sobre a minha arte do estilo. Comunicar um estado, uma tensão interna de pathos por meio de signos, incluído o tempo desses signos – eis o sentido de todo o estilo; e considerando que a multiplicidade de estados interiores é em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifacetária arte do estilo de que um homem já dispôs” (EH, Por que escrevo tão bons livros, § 4, p. 57 / KSA – VI, p. 304). 82 “Assim falou Zaratustra se apresenta como o ‘quinto’ evangelho, o evangelho anticristão” (LÖWITH. In: MARTON, 1985, p. 146). 83 “Aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra sua terra natal e o lago da sua terra natal e foi para a montanha” (AFZ, Prólogo, p. 33 / KSA – IV, p. 11).84 De acordo com o Livro VII da República de Platão, a caverna é o lugar em cujo interior o sol não penetra, fazendo com que vejamos as coisas apenas através de imagens refletidas na parede da caverna.

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tanto, Nietzsche se utiliza de duas figuras a fim de simbolizar a aliança entre as duas realidades dicotomizadas: a águia, que com os seus sobrevoos representa o mundo das ideias, o além; e a serpente, ligada harmoniosamente ao pescoço da águia, representa o sensível, a terra em que rasteja.85 Karl Löwith traduz o significado dos respectivos animais: águia e serpente como significando a altivez e a prudência: “A altivez orgulhosa e a coragem nobre levantam-se contra a humildade da resignação no Deus cujo símbolo cristão é o cordeiro pronto para o sacrifício” (LÖWITH. In: MARTON, 1985, p. 147).

Em lugar daquele cordeiro, o profeta Jesus Cristo, que, segundo Nietzsche, vem resgatar a falta da humanidade com a sua própria vida, aumentando ainda mais nosso remorso, emerge a figura do profeta Zaratustra, o novo João Batista, o profeta anunciador da felicidade, representada pelo Além-do-Homem. No fundo o Zaratustra quer representar a segunda vinda de Cristo, na qual sejam denunciados os mal-entendidos e as deformações operadas com relação ao cristianismo. Nesse contexto Héber Suffrin escreve que Nietzsche:

[...] recusa uma religião moralizante e culpabilizante – religião que não seria tanto o pensamento de Jesus, mas sua deformação, desenvolvida pelos evangelistas e principalmente por São Paulo. Essa religião, que ele ataca sob uma forma certamente caricatural, é, sem dúvida, a seus olhos, a religião de seu ambiente, a de seu pai pastor, e também a de Kant, que só descobre Deus a título de postulado da razão prática, e assim, em última análise, só descobre um Deus moral (SUFFRIN, 1999, p. 66).

Assim, conforme já constatamos em várias passagens da pesquisa, os ataques, que o filósofo desfere ao cristianismo, não estão voltados ao mesmo como doutrina religiosa única e exclusivamente, mas sim como fenômeno moral.

3.1.3 GENEALOGIA E CRISTIANISMO: A MORAL PAULINA

Mediante o exame genealógico, Nietzsche pretende mergulhar a uma tal profundidade no que diz respeito a essa problemática do cristianismo que lhe possibilite despojar da figura histórica de Jesus aquelas características nele imputadas pela tradição. De acordo com este exame, a figura do redentor

85 “[...] a minha águia e a minha serpente” (AFZ, Prólogo, p.33 / KSA – IV, p. 11).

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aparece desfigurada com o aparecimento da primeira comunidade cristã.86 Nela se sobressai tudo aquilo que não é conquistado, mas que existe desde o princípio, como uma realidade fixa.87 Contra toda essa realidade fixa, o próprio Cristo já havia se manifestado, apresentando-se assim como, no dizer de Nietzsche (AC § 32), “com certa tolerância na expressão”, um “espírito livre”.

Nietzsche acusa Paulo de converter a figura primordial do cristianismo em seu contrário. Paulo é colocado como o porta-voz de uma má-nova, como o contrário daquilo que Jesus viveu e pregou. É a partir daí que, segundo Nietzsche, “o <evangelho> morreu na cruz” (AC, § 39, p. 69 / KSA – VI, p. 211), consagrando-se com a morte na cruz o advento do cristianismo, o grande mal-entendido da humanidade, envergado de ritos e doutrinas.88

É bastante sutil a maneira pela qual Paulo trata a questão da morte de Jesus, pois pela própria figura do Jesus sofredor e martirizado ele pode retirar vantagem:

[...] pois procurais uma prova de que é Cristo que fala em mim; ele que não é fraco em relação a vós mostra, porém, o seu poder em vós. Por certo, foi crucificado em fraqueza, mas está vivo pelo poder de Deus. Também nós somos fracos nele, todavia com ele viveremos pelo poder de Deus em relação a vós (2Cor 13,3-4).

Desse modo, a impotência, a fraqueza e a passividade são tornadas divinas, representando a máxima transvaloração dos valores da Antiguidade. Paulo obtém o êxito de seu intento de elaboração teológica através da associação entre a morte de Cristo e a salvação, remissão da culpa da humanidade. Por isso, Paulo estende a culpa a toda a humanidade, de modo que o homem por si mesmo jamais consegue escapar dela, senão mediante a fé em Cristo, único mediador com o Pai: “Por conseguinte, assim como pela falta de um só resultou a condenação de todos os homens, do mesmo modo, da obra da justiça de um só, resultou para todos os homens a justificação que traz a vida” (ROM, 5, 18). Essa posição doutrinária é depois radicalizada por Lutero, como veremos mais adiante.

86 “[...] esse manicômio que tem sido o mundo durante milênios inteiros, já se chama <cristianismo>, ou <fé cristã>, ou <Igreja cristã>, me guardo de fazer responsável a humanidade de suas enfermidades mentais” (AC, § 38, p. 67 / KSA – VI, p. 210). 87 2° Cor 3,6.88 “[...] a história do cristianismo – a partir da morte na cruz – é a história do grande mal-entendido, cada vez mais grosseiro, de um simbolismo originário. [...] este engoliu dentro de si doutrinas e ritos de todos os cultos subterrâneos do imperium romanum [império romano], o sem-sentido de todas as razões enfermas” (AC, § 37, p. 66 / KSA – VI, p. 209).

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De acordo com Valadier, Nietzsche tem no cristianismo de Paulo um movimento de culpa e de remorso, cuja submissão passiva pela fé à religião passa a ser a garantia da salvação eterna. Funda-se assim, uma moral como condição de obediência, que acaba acarretando uma antropomorfisação da religião (VALADIER, 2000, p. 77). Este homem que se torna culpável tem a necessidade de um Deus de misericórdia que venha em seu socorro. Esse Deus perde toda a sua dimensão de mistério, vindo a conformar-se com a natureza humana. Torna-se familiar, para falar nas palavras de Valadier. É assim, um Deus fixado pela moral, e também por ela passa a ser esvaziado e substituído pela imagem humana, demasiado humana. Por isso, o cristianismo acaba aniquilando a dimensão divina no homem, de modo que Deus acaba sendo reduzido a formas antropomórficas.

Porém, esse Deus antropomorfisado não refletiria aquela humanidade dos gregos antigos que, tal como dos judeus do Antigo Testamento, possuem na imagem de Deus a figura do herói afeito à natureza? Na leitura que Valadier faz de Nietzsche, o Deus antropomorfisado, resultante do cristianismo, não comunga com a imagem antropomórfica dos antigos deuses gregos, pelo fato de naquele primeiro estar ausente o aspecto da luta, do trágico e da vida. Por isso, o cristianismo, como uma religião reativa, acaba se destruindo por obra de sua própria moral. Tendo Deus a serviço do homem, como centro da religião, acaba sendo responsável pelo ateísmo moderno; o sentido divino se dissolve, e Deus acaba sendo incompatível com o sentido trágico da vida.

Eugen Fink (1980, p. 148), em sua leitura de Nietzsche, diz que: “São Paulo significaria o primado de todos os valores de degenerescência em nome de Deus.” Ou seja, tomou o apóstolo todos aqueles conceitos de culpa, além, castigo, recompensa e semelhantes, transformando-os em valores indispensáveis para a edificação do Reino de Deus.

Quando Nietzsche lança as suas críticas a um tipo de cristianismo moralista, dualista e fideísta, liderado por Paulo, causa-nos a impressão de ele acusar destas características todo o movimento cristão. Com isso ele acaba não levando em consideração os inúmeros trabalhos evangelizadores de alguns líderes cristãos impregnados de um espírito contrário ao de Paulo, como é o caso do Apóstolo Tiago:

Um parágrafo inteiro da sua epístola é consagrado a precaver os fiéis contra a doutrina de Paulo sobre a inutilidade das obras e sobre a salvação pela fé. Há uma frase de Tiago (II, 24) que é a negação directa duma frase da Epístola aos

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Romanos (III, 28). Em oposição ao apóstolo dos gentios (Rom., IV, 1 se seg.), sustenta o apóstolo de Jerusalém (II, 31 e seg.) que Abraão se salvou pelas obras, que a fé sem as obras é uma fé morta (RENAN, [1953b], p. 35).

Podemos verificar, a partir da citação acima, que Tiago é impregnado de um genuíno espírito ativo, cujas obras são tidas na mais alta estima, largamente ensinada e vivida por Jesus,89 e que o próprio Nietzsche tão abertamente tece os seus elogios. É possível que o afã do filósofo na sua luta contra a moral não tenha permitido dar atenção a este fato, razão pela qual se apresenta problemática a sua crítica a todo o cristianismo das primeiras comunidades. Poderíamos até dizer que, nem com relação ao cristianismo das primeiras comunidades, nem com o cristianismo hodierno, estaríamos autorizados a enquadrá-lo como um todo dentro da crítica nietzschiana. Por mais paradoxal que possa parecer, é reveladora uma passagem dos Fragmentos Póstumos em que o filósofo considera o cristão como uma das maneiras mais nobres de ser humano:

As duas maneiras mais nobres de ser humano que eu pessoalmente encontrei, o perfeito cristão – considero uma honra descender de uma família que levou o seu cristianismo a sério em todos os sentidos – e o perfeito artista do ideal romântico, com o qual me deparei num nível mais abaixo do nível do cristão: é evidente que, caso se dê as costas para essas formas por elas não serem suficientes, não se encontrará facilmente satisfação em alguma outra espécie de ser humano hodierno (FP – XII 2 [180] do Outono de 1885-1886, p. 156).

O esforço do filósofo é uma empenhada tentativa de coerência com respeito a tudo o que viveu aquele cujo nome inspirou essa forma de vida cristã, pondo a descoberto a moral niilista que se impôs.

Com seu refinado tino genealógico, Nietzsche perscruta os recônditos de onde a vontade de negação niilista conseguiu impor-se. Para tanto, procede a um exame do niilismo no seu aspecto moral. Karl Löwith (LÖWITH. In: MARTON, 1985, p. 144) defende a tese de que muito mais que “[...] a teologia ou a ideia de Deus [...]” como tal, o alvo das críticas nietzschianas reside nas “[...] consequências morais que a religião cristã acarreta”. O niilismo seria o nada representado pelos valores tradicionais. Assim, é levado a constatar o quanto a 89 A ação de Jesus não é trágica, ele inaugurou uma atitude prática inspiradora de uma ética singular. Ė o tipo psicológico de Jesus que interessa a Nietzsche.

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moral, a razão, a ciência e a religião têm atuado sobre o homem com o intuito de o apequenar, diminuir, torná-lo passivo, submisso a um Deus eternamente bom e poderoso. Nietzsche ilustra, mediante este seu procedimento, que a pessoa de Jesus é um exemplo de alguém que, ao invés de se abandonar a uma atitude reativa, desenvolve, ao contrário, uma atitude ativa (prática90), como precursor dos homens superiores.

Resta, ainda, examinarmos até que ponto a ordem moral paulina, que cria valores baseados no instinto gregário, vem repercutir num ideário existencial de humanidade baseada na moral cristã. Este ideário de vida está, segundo Nietzsche, alicerçado sobre esquemas moralizadores que solapam e paralisam as energias instintuais promotoras da vida.91 Mas, tendo presente o pioneirismo evangelizador de Paulo em expandir o cristianismo para além dos limites judaicos, bem como para além da estrita observância da lei, podemos continuar ainda acreditando que foi Paulo exatamente um moralizador?

Valendo-nos dos anais da história, podemos verificar que o cristianismo nos seus primórdios teve como fundadores Pedro e Paulo. Embora ambos estivessem animados por um mesmo espírito, qual seja, o da edificação da Igreja de Cristo, passou a imperar entre eles uma forte divisão que ocasionou a formação de dois partidos. O partido de Pedro, conservador, estritamente observante dos princípios judaico-cristãos, era a favor de uma Igreja centrada apenas entre os de descendência judaica, a fim de se evitar a perversão dos costumes, um típico partido de “direita”. O partido de Paulo, ousado, desbravador, revolucionário, foi atraído por todos aqueles povos pagãos. Movido pelo espírito da igualdade de todos perante Deus, almejava ele levar a mensagem do cristianismo a todos os povos, independentemente dos hábitos e costumes particulares de cada um:

‘Cada um deve ficar no tipo de ensinamento que recebeu’, regra admirável que a Igreja romana não seguirá mais tarde. Bastava a adesão a Jesus; as divisões confessionais, se assim nos podemos exprimir, eram uma simples questão de origem, independente dos méritos pessoais do crente (RENAN, [1953b], p. 20).

Este partido de Paulo, podemos, por isso, assertivamente considerar como um partido de “esquerda”.

90 AC, § 35, p. 65 / KSA – VI, p. 35.91 “O <Deus> que Paulo inventou, um Deus que <desonra a sabedoria do mundo>“ (AC, § 47, p. 83 / KSA – VI, p. 225-6).

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Philippe Ariès (em seu primeiro volume de “A história da vida privada”) ao atribuir a Paulo o grande crescimento do cristianismo, fundando uma nova comunidade pela sua capacidade de mobilidade e expansão, diz que:

[...] judeus e gentios, escravos e homens livres, gregos e bárbaros, homens e mulheres – para declarar que todas as categorias foram apagadas no interior da nova comunidade. A iniciação ao grupo, um simples banho purificador, consiste, segundo Paulo, em despojar-se das ‘vestes’ de todas as categorias religiosas e sociais anteriores e ‘revestir-se’ de Cristo; com isso Paulo entende a aquisição de uma identidade única e não estanque, comum a todos os membros da comunidade, como convém aos ‘filhos de Deus’ recém-adotados em ‘Cristo’ (VEYNE, 1994, p. 246).

Podemos observar mediante essa citação que, na atuação evangelizadora de Paulo, estão presentes dois elementos, que apontam para duas maneiras antagônicas de ser. Um primeiro, a ser destacado, corresponde ao ímpeto, à coragem e ao pioneirismo, características próprias de quem fez da sua vida uma ação, razão pela qual o apóstolo aproxima-se da figura de Cristo. O outro elemento, decorrente dessa coragem e desse pioneirismo, diz respeito ao paradoxo de que, embora aparentemente possa o movimento inaugurado por Paulo inspirar um forte progresso, conduz a um processo de massificação e igualdade, acabando por eliminar todas as diferenças individuais. Por isso, a consequência resultante é o rebanho, raiz de onde brota a resignação e a fraqueza.

A partir disso, somos capazes de perceber que, apesar das intermitentes críticas de Nietzsche a Paulo, o apóstolo em muitos pontos comunga dos ideais promulgados pelo filósofo: o vigor e a ação. O próprio Renan, ao referir-se ao partido de Paulo, chega a considerá-lo um émulo activo (RENAN, [19--b], p.17). Além daquelas idiossincrasias que compõem a figura do Paulo decadente, que outros nomes Nietzsche destaca como figuras na história da degeneração do cristianismo sob a forma de moral? É o que pretendemos examinar nas páginas que seguem.

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3.2 LUTERO E A RADICALIZAÇÃO DO DEVER MORAL

3.2.1 CRISTIANISMO E SUJEIÇÃO

Das incursões de Zaratustra pela cultura ocidental, mediante a sua utilização do procedimento genealógico, podemos verificar no Deus moral um forte indicativo da decadência da cultura. Esta verificação, outrora realizada sobre a civilização das primeiras comunidades cristãs lideradas por Paulo, como pudemos acompanhar no início deste terceiro capítulo, tem agora os seus olhos voltados para a cultura civilizatória do renascimento. O renascimento, marcado por inúmeras transformações em seus diferentes campos, como é o caso das revoluções no campo humano e técnico-científico, traz consigo também alterações profundas no campo ético-religioso. Por trás destas últimas transformações está ligado o nome de Lutero.

Nietzsche vê em Lutero um continuador e radicalizador do falseamento do cristianismo92 iniciado por Paulo, por meio da radicalização da subjugação moral. Lutero, na tentativa de proclamar o cristão um senhor livre pelo sentimento religioso contra a sujeição sacerdotal, torna essa sujeição ainda mais acirrada ao sujeitar o indivíduo a uma ordem diretamente estabelecida por Deus, elevando assim o dever moral até as suas últimas consequências. Com Lutero assistimos a um verdadeiro renascimento da moral.

Philippe Ariès, no terceiro volume de sua História da Vida Privada (ARIÈS, vol. III, p. 102-111), assevera que o protestantismo coloca o fiel em uma relação direta com Deus, de modo que tudo passa a ser orientado segundo o Evangelho. Todas aquelas mediações – representadas pela liturgia, clero, sacramentos, culto dos mortos e orações pelos mortos – passam a perder campo em nome do indivíduo, cuja fé pessoal em Cristo é a única necessária para a sua salvação. Conforme prega o catolicismo, não é mais aquela fé “coletiva” da Igreja o veículo necessário para a salvação, mas a fé “individual” em Cristo, único mediador. Desse modo, a “fé da Igreja” abre espaço para a “fé individual” do protestante que não nega as exigências da vida moderna de se valer de diversas instituições coletivas. Porém, estas últimas não interferem em nada na relação entre o crente e Deus. Essa característica que Lutero introduz no crente, a individualidade, constitui algo que Nietzsche tem no mais alto valor e contraria a instituição coletiva denominada Igreja pelos católicos a qual inspira para Nietzsche um instinto de rebanho. Neste sentido, 92 “[...] a espécie mais suja de cristianismo que existe, a mais incurável, a mais irrefutável, o protestantismo” (AC, § 61, p. 108 / KSA – VI, p. 252).

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por que razão Nietzsche coloca-se contra Lutero, que em muitas questões traz mudanças que se aproximam da leitura do filósofo? Novamente aqui, como na abordagem que realizamos a respeito de Paulo, a questão central, para o autor, é a moral. Resta, então, verificarmos até que ponto Lutero em seu ímpeto reformador acentua a moralidade.

O renascimento foi um período sumamente importante no que diz respeito à transvaloração dos valores cristãos, como meio de se garantir a vitória dos valores aristocráticos.93 Contudo, esse monge fracassado, na visão de Nietzsche, rebelou-se contra o renascimento, restaurando a Igreja,94 fazendo com que esta voltasse à estaca zero, uma vez que a Igreja de Roma, naquele período, representava um triunfo do sim à vida.95 Com Lutero, o instinto de vingança dos fracos e rancorosos luta novamente pela sua supremacia.96 Mas esta Igreja de Roma não representava um assoberbamento no que tange às questões morais com as quais Lutero veio romper em nome da liberdade do cristão?

Em Lutero, Nietzsche vê o Deus moral adquirir grandes proporções; desse Deus moral depreende-se um dualismo expresso na valorização de um mundo e de um Deus transcendentes, eternos e todo-poderosos, em detrimento ao abandono deste mundo e deste corpo representados pela aristocracia da Igreja católica, cujo Deus assinala o vínculo da autoridade do homem sobre a natureza. Lutero fundamenta esta sua doutrina a partir de duas afirmações, que inspiram um dualismo e uma contradição: “Um cristão é Senhor livre e não está sujeito a ninguém. Um cristão é um servo prestativo em todas as coisas e está sujeito a todos” (LUTERO, 1998, p. 7). E logo adiante ele continua:

Para se poder entender ambas as afirmações, contraditórias entre si, sobre a liberdade e a servidão, devemos ter em conta que toda pessoa cristã possui duas naturezas: uma espiritual e outra corporal. Tendo em vista a alma, ela é designada de ser humano espiritual, novo e interior;

93 “[...] o que foi o renascimento? A transvaloração dos valores cristãos, a tentativa, empreendida com todos os meios, com todos os instintos, com todo o gênio, de levar a vitória aos contra-valores, aos valores aristocráticos.” (AC, § 61, p. 107 / KSA – VI, p. 250).94 “Um monge alemão, Lutero, foi a Roma. Esse monge, que levava em seu corpo todos os instintos vingativos de um sacerdote fracassado, se indignou em Roma contra o Renascimento [...]” (AC, § 61, p. 107-108 / KSA – VI, p. 251).95 Nietzsche tem a Igreja de Roma da renascença como aristocrata não no sentido de esta ser uma característica típica do cristianismo (católico ou protestante), mas por ser um resquício do Império Romano – “Cesare Borgia como papa” - (AC § 61).96 “Na cadeira do papa não estavam já sentados a velha corrupção, o peccatum originale, o cristianismo! Senão a vida! Senão o triunfo da vida! Senão o grande sim a todas as coisas elevadas, belas, temerárias! [...] E Lutero restaurou de novo a igreja: a atacou [...]” (AC, § 61, p. 108 / KSA – VI, p. 251).

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segundo a carne e o sangue, é chamada de ser humano corporal, velho e exterior (LUTERO, 1998, p. 7).

Esse dualismo restaurado por Lutero remonta uma longa tradição e tem, na sua doutrina, um lastro que remete a duas grandes fontes: a primeira diz respeito ao fato de ter sido um monge da ordem dos agostinianos, a qual conserva os princípios doutrinários de seu fundador Santo Agostinho (354-430) – baseados no neoplatonismo. Estes princípios são baseados em Platão, o pai do dualismo no Ocidente; a segunda grande fonte dualista que veio a fazer-se sentir sobre o pai da reforma protestante diz respeito às luzes de entendimento que pode auferir da Carta de Paulo aos Romanos. Desse modo, o conteúdo normativo da moralidade cristã, resultante do dualismo que impera na cultura ocidental, vem a adquirir maior ressonância a partir da reforma de Lutero sob a forma da lei, o cumprimento do dever, que passa a ser realizado de uma forma pessoal entre o indivíduo e Deus (GC, V, § 358, p. 258-9 / KSA – III, p. 603-4).

3.2.2 A CORRUPÇÃO DA MODERNA FILOSOFIA PELA TEOLOGIA PROTESTANTE

O intento do cristianismo é, segundo Nietzsche, o de prover o homem

de uma “segunda natureza”,97 que lhe permita responder às exigências altruístas e que produza a inversão dos impulsos vitais para a estrutura imperativa. Esta última, própria da filosofia moderna, tem as virtudes e as ações compassivas na qualidade da mais alta estima. Deste ponto, observamos o modo irreverente pelo qual os teólogos têm corrompido a filosofia. O caso mais evidente, o alvo principal da crítica nietzschiana, no que tange à moral ascética, é a corrupção advinda da pregação do pastor protestante que influencia a filosofia moderna alemã.98 Esta última, como já pudemos vislumbrar, tem a sua expressão mais forte em Kant,99 em que o agir passa a ser condicionado ao dever.100 Um imperativo categórico aplicado às ações, mas que a elas mesmas é estranho. Contra o perigo da premissa metafísica kantiana engendrada no ideal civilizatório, Nietzsche dispara os seus ataques mais fulminantes.

97 GC, IV, § 290, p. 195 / KSH – III, p. 530.98 “O pastor protestante é o avô da filosofia alemã, o protestantismo mesmo, seu peccatum originale [pecado original]” (AC, § 10, p. 34 / KSA – VI, p. 176).99 “O êxito de Kant é meramente um êxito de teólogos: Kant foi o mesmo que Lutero” (AC, § 10, p. 35 / KSA – VI, p. 177).100 “A <virtude>, o <dever>, o <bem-em-si>, o bem entendido como um caráter de impessoalidade e de validez universal – ficções cerebrais em que se expressam a decadência, o esgotamento último das forças da vida, a chineria königsberguiana” (AC, § 11, p. 35 / KSA – VI, p.177).

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O fato de Kant haver sacrificado o campo do saber em nome da crença, a fim de salvaguardar o campo da moralidade, estabelecendo aqueles postulados da razão prática pura – Deus, liberdade e imortalidade da alma –, é a prova mais contundente de que a sua filosofia apresenta a contaminação da teologia protestante.101 No regime do “tu-deves” kantiano, a ação passa a estar sujeitada à obrigação, tal como podemos observar no decálogo.102 Tanto o decálogo como a doutrina do dever-ser estão orientados pelo viés da uniformização universal. Por isso, criam uma espécie de homem decadente subjugado pelo automatismo, razão pela qual nada mais resta de sua decisão pessoal, mas sempre de algo mediante o qual este homem permanece impotente.

Esse homem, mediante a submissão pelos códigos de leis morais imputados pela religião, torna-se não um autolegislador autônomo como queria Kant, mas um produto decadente em meio à massa amorfa do rebanho, que conhecemos por civilização. E, de acordo com Nietzsche, foi Lutero o grande responsável por essa decadência civilizatória da modernidade. Na sua visão, o Deus da Igreja católica já estava morto, sendo substituído na Igreja da renascença, por uma humanidade aristocrática,103 cuja hierarquia composta pelo papa, bispos, cardeais e sacerdotes simbolizavam a onipotência, a força e a vontade de potência. Estes atributos operam um afastamento do homem da transcendência e os aproximam da natureza. Porém, aquele monge agostiniano frustrado, para usar as palavras de Nietzsche, acaba por ressuscitar aquele Deus moral que já havia sido sepultado, doutrinando e moralizando novamente a Igreja.104 Com isso, acaba eliminando as mediações hierárquicas e submetendo o rebanho a uma ordem direta de Deus.105 o que, no entender de Nietzsche, representa o grande fardo que a humanidade moderna deve carregar: o fardo da exacerbação do dever moral perante uma força que lhe escapa totalmente ao controle. A forte carga de sujeição operada pela teologia protestante vem, posteriormente, contaminar a própria filosofia, cuja expressão maior temos em Kant.

101 “A paixão por Deus: há espécies rústicas, cândidas e importunas, como a de Lutero – todo o protestantismo carece da delicatezza meridional” (ABM, III, § 50, p. 56 / KSA – V , p. 70).102 “[...] Os sacerdotes, que em tais coisas são mais sutis e que compreendem muito bem a objeção existente no conceito de convicção, isto é, de uma mendicidade que é radical porque serve a uma finalidade, tem herdado dos judeus a presteza de introduzir nesse lugar o conceito <Deus>, <vontade de Deus>, <revelação de Deus>. Também Kant, com seu imperativo categórico, seguiu o mesmo caminho: aqui sua razão tornou-se prática” (AC, § 55, p. 95 / KSA – IV, p. 238).103 AC, § 61, p. 107 / KSA – VI, p. 250-1.104 “Lutero, esse frade fatal, restaurou a Igreja e, mil vezes pior, o cristianismo, no momento em que este sucumbia [...] O cristianismo, essa negação da vontade de viver tornada religião! Lutero, um monge impossível, que devido à sua “impossibilidade” atacou a Igreja e – em consequência ! – a restaurou... Os católicos têm motivos para celebrar Lutero em festivais, compor peças em sua homenagem [...] Lutero – e o “renascimento moral”! Ao diabo com toda a psicologia!” (EH, O caso Wagner, § 2, p. 104 / KSA – VI, p. 359). 105 GM, III, § 22, p. 134-135 / KSA – V, p. 394-5.

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A partir de todo esse relato, é possível extrair dois pontos referentes à figura do reformador alemão que fazem frente ao filosofar nietzscheano: um primeiro, positivo, refere-se às contribuições de Lutero no sentido de pôr em andamento uma forma de conceber a fé que se distancia daquela forma dogmática e uniformizadora propugnada pelo catolicismo, que valoriza o indivíduo livre; decorrente desse primeiro ponto podemos verificar um segundo, negativo, em que essa adesão livre e pessoal do indivíduo à fé em Cristo, acaba por deixar aqueles antigos dogmas fechados e moralizantes do catolicismo em nome de uma modalidade moral ainda mais radical, a qual é atestada pela relação direta entre o crente e Deus, na qual aquele primeiro deve cumprir o seu dever para com este último, ou seja, cumprir a lei, mediante a fé. Ora, como a fé não se serve mais de mediações sensíveis, acaba se radicalizando, já que está submetida a uma relação direta com Deus. Esta relação direta constitui, a partir de Lutero, um privilégio não mais de uma pequena aristocracia, como vigorava no catolicismo, mas das massas, razão pela qual Nietzsche acusa o pai do protestantismo de promover a moral do rebanho.

Tanto Paulo como Lutero constituem importantes figuras no que tange à imagem de um cristianismo universal, vivenciado individualmente por cada um pela sua fé, apesar de serem alvo das acusações de Nietzsche pelo seu radicalismo moral. Esta visão aproxima-se do importante aforismo (AT § 35). A prática de vida de Jesus, segundo Nietzsche, ensinou que é no fundo um esforço pessoal e individual. Por essa razão não poderíamos situar Paulo e Lutero como aqueles que prepararam o terreno de onde tal tipo de homem deve brotar? Como um espírito livre movido por uma prática individual?

E quanto ao cristianismo de Jesus, considerado por Nietzsche como um certo espírito livre, em que sentido este exatamente o considera assim? Qual seria o sentido da afirmação que diz que a crítica nietzschiana ao cristianismo somente possui a sua razão de ser a partir da desconstrução do sujeito moral?

3.3 JESUS, O CRISTÃO AUTÊNTICO

3.3.1 DA SUPERAÇÃO DA CRENÇA EM DEUS ÀS NOVAS TÁBUAS DE VALORES

No prólogo do Zaratustra, vemos o filósofo saudando Apolo, o deus da

luz que faz a existência digna de ser vivida.106 Tal como Apolo, assim também 106 “[...] certa manhã, levantou-se ele com a aurora, foi para diante do sol e assim falou: “Que seria a tua felicidade, ó grande astro, se não tivesses aqueles que iluminas!” (AFZ, I, § 1, p. 33 / KSA – IV, p. 11).

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é Zaratustra, luminoso e resplandecente como o sol. Entretanto o seu estado de luminosidade só foi possível mediante um processo de metamorfose; podemos constatar no reconhecimento dele pelo eremita: “Mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra, despertou” (AFZ, I, § 02, p. 34 / KSA – IV, p. 12). O próprio Zaratustra reconhece que no passado também depositou a sua crença num Deus que se situa além do homem, mas reconhece que superou esta crença mediante a invenção de uma chama mais clara que acabou por apagar toda a ilusão.

No Zaratustra, Nietzsche admite a existência de um Deus, porém que este se firma na amoralidade, cuja superabundância se produz no seu construir e destruir.107 É mediante a música, superior a todas as artes que é possível identificar esse Deus, pois através dela manifesta-se aquele ponto culminante de potência que Marton liga à existência de Deus. Como Zaratustra quer viver entre os homens a fim de lhes conceder o Além-do-Homem, torna-se necessário distanciar-se daqueles que falam de esperanças ultraterrenas, permanecendo assim fiéis à terra: “Eu vos rogo, meus irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que falam de esperanças ultraterrenas! Envenenadores, são eles, que o saibam ou não” (AFZ, I, § 3, p. 36 / KSA – IV, p. 15). Àquelas esperanças ultraterrenas, Zaratustra associa a crença em Deus; a garantia de fidelidade à terra requer um abandono desta crença, ou seja, a proclamação de sua morte. Como então seria possível a afirmação de um Deus afeito à terra?

Longe de querer provar a não existência de Deus, Nietzsche tem como intento apenas mostrar, mediante a constatação da morte e do niilismo da modernidade, que a crença no Deus que servia de base à moral cristã não é mais plausível.108 A fé neste Deus moral já se encontra ausente nas práticas da cultura ocidental, nas quais os valores divinos perderam a sua força e eficácia. A esse respeito, podemos mencionar esta passagem em que Roberto Machado (1999, p. 47) escreve:107 “[...] – um “deus”, se assim se deseja, mas decerto só um deus-artista completamente inconsiderado e amoral, que no construir como no destruir, no bom como no ruim, quer aperceber-se de seu idêntico prazer e autocracia, que criando mundos, se desembaraça da necessidade [Not] da abundância e superabundância, do sofrimento das contraposições nele apinhadas” (NT, Tentativa de Autocrítica, § 5, p. 18 / KSA – I, p. 17).108 “A respeito desta vontade profunda que presidiu à derrocada dos valores e à morte de Deus, a que distinguir como ambos são encarados seja pelo além-do-homem (criador), e pelo último-homem: Enquanto os criadores negarão o outro mundo e Deus por vontade criadora de autoafirmação, porque estes só serviam para diminuí-los, para impedir seu pleno desenvolvimento, os últimos homens, ao contrário, negam Deus por vontade negativa, por niilismo, não porque Deus os apequene, mas porque ele os engrandece, porque, demasiado exigente, ele os considera demais e os impede de viver – e de dormir tranquilos. Assim, o último homem tudo destruiu e nada criou, NADA, ‘NIHIL’. Encontra-se ele, então, diante do nada de todo o valor, deste mundo ou do outro. [...] A crítica de Nietzsche se faz nesse ponto simultaneamente feroz e angustiada: depois da morte de Deus, se não tomar o duro caminho do super-homem, o último homem – vai soçobrar no pior desamparo; a ausência total de toda a moral. Para ele, se Deus não existe, tudo é permitido, no sentido de não haver mais nenhuma razão para proibir – e proibir-se – o que quer que seja” (HÉBER-SUFFRIN, 1999, p. 86-87).

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Nietzsche não quer provar que Deus não existe, como faziam os ateus. O que lhe intertessa é mostrar como e por que surgiu e desapareceu a crença de que haveria um Deus. A ‘morte de Deus’, condição, pressuposto histórico dos principais temas expostos no Zaratustra, é a constatação do nihilismo da modernidade; é o fato de que ‘a fé no Deus cristão deixou de ser plausível’; é a evidência de que a fé em Deus, que servia de base à moral cristã, se encontra minada, de que desapareceu o princípio em que o homem cristão fundou sua existência; é o diagnóstico da ausência cada vez maior de Deus no pensamento e nas práticas do Ocidente moderno; é a percepção por alguém dotado de uma capacidadade de suspeita penetrante, de um olhar sutil, do ‘maior acontecimento recente’: a desvalorização dos valores divinos.

Giacóia (2002), por isso, associa o evento nietzscheano da morte de

Deus à perda de sentido dos valores que até então nortearam a nossa cultura. E o responsável, na visão de Nietzsche, pela morte desse Deus é o homem moderno que opera uma ruptura na modernidade, substituindo a crença na teologia e na moral pela crença na ciência e no homem. Sobre a afirmação de Nietzsche de que Deus está morto, Hayman diz que, no fundo, ele quer afirmar que tal entidade jamais existiu, pois, se de fato existisse esse, não poderia morrer. Löwith comenta que em Nietzsche não basta dizer que este tem elegido Dioniso ao invés do Crucificado, pois a atitude do filósofo alemão em relação à religião é mais complicada que em outros ateus do século passado: “[...] seu questionamento do teísmo é antes uma contestação radical da moral cristã” (LÖWITH. In: MARTON, 1985, p. 160). Aquela autoridade da moral dogmática do cristianismo abre espaço para a autoridade da razão e do progresso civilizatório, cuja alegria e esperança não se encontram mais naquela beatitude divina, mas no bem-estar e usufruto dos bens terrenos. Neste sentido, as reflexões de Zaratustra estão situadas a partir da constatação de que Deus morreu e, com Ele, toda a esperança num além-mundo, a qual passa a firmar-se, única e exclusivamente, neste mundo terreno, marcando um nobre sentimento de fidelidade a este mundo, cujo maximum de afirmação positiva desta passa a ser o Além-do-Homem como sentido da terra – como novo mar, novo horizonte, novo sol. O Além-do-Homem, assim, muito mais que uma constatação, passa a ser uma exigência, cuja realidade depende da adesão reservada para o futuro dos próprios homens.

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É pelo homem criador, aquele que mede valores, que se é possível almejar uma preparação em direção a novas tábuas de valores que preparem o advento do Além-do-Homem e sirvam de sentido que preencha o vazio decorrente da morte de Deus: “Sede de criador, flecha e anseio no rumo do super-homem: fala, meu irmão, é esta a tua vontade de casamento?” (AFZ, I, Do casamento e dos filhos, p. 98 / KSA – IV, p. 92).

O ímpeto transvalorador que se compreende no filosofar nietzschiano se caracteriza como uma grande afirmação travestida de negação, como uma afirmação ativa, de tal modo que a sua crítica à civilização procede de uma forma como até hoje ainda ninguém jamais ousou fazê-lo. O seu empreendimento, como podemos constatar no § 1 do Anticristo, faz-se rumo aos hiperbóreos,109 a marca mais seleta de homens, na qual só é possível a entrada para uma pequena minoria. Aqui podemos retornar às aventuras de Zaratustra, que na montanha, na solidão de sua caverna, cuja sabedoria lhe vai crescendo, provocam nele o desejo de retornar aos homens:

A minha selvagem sabedoria ficou prenhe em solitários montes; em ásperas pedras, deu à luz o mais novo de seus filhotes. Pelo duro deserto, corre, agora, desvairada, à procura de relvados macios – a minha velha e selvagem sabedoria! Nos relvados macios dos vossos corações, meus amigos! – no vosso amor, desejaria ela deitar o seu predileto! (AFZ, II, O menino e o espelho, p. 113 / KSA – IV, p. 107-8).

Zaratustra sente o desejo de partilhar daquilo que possui em excesso. Seu retorno aos homens agora, ao invés de acontecer em meio à multidão e à algazarra da grande cidade, se dá nas Ilhas bem-aventuradas, onde na mitologia grega se reúnem os heróis, privilegiados, somente a quem são dirigidas as palavras de Zaratustra. Estas palavras têm por objetivo apresentar a suposição da existência de Deus como um obstáculo à vontade criadora, da qual o mundo é sua expressão maior:

Dizia-se ‘Deus’, outrora, quando se olhava para mares distantes: mas, agora, eu vos ensino a dizer: ‘Super-Homem’. Deus é uma suposição; mas quero que o vosso supor não vá além de vossa vontade criadora. [...] E aquilo a que chamais mundo, é preciso, primeiro, que

109 “Nós somos hiperbóreos, sabemos muito bem o quanto à parte vivemos. <Nem por terra nem por água encontrarás o caminho que conduz aos hiperbóreos>“ (AC, § 1, p. 27 / KSA – VI, p. 169).

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seja criado por vós (AFZ, II, Nas ilhas bem-aventuradas, p. 114 / KSA – p. 109).

Cabe a tarefa de gestão de uma cultura pautada sobre novos valores, na visão de Nietzsche, aos filósofos do futuro, que são dotados de uma fina influência cultivadora e que introduzem uma nova solução referente às condições da cultura gregária.110

Esses novos filósofos terão também a seu encargo o estabelecimento de novas diretrizes voltadas ao modo de valorar e assumirão, assim, o papel de comandantes e de legisladores que estipularão um sentido e um valor às coisas perante o mundo. O seu instrumento de filosofar será o martelo, estraçalhando as velhas tábuas de valores alicerçadas sobre os princípios daqueles que estão cansados do mundo e da vida, a fim de devolver à terra o seu sentido.

3.3.2 A TRANSVALORAÇÃO DOS VALORES CULTURAIS ATRAVÉS DA VIDA E PRÁTICA DE JESUS DE NAZARÉ

O ímpeto transvalorador que se infere das páginas do Zaratustra apresenta a experiência de alguém que se tornou o que é,111 que fez da sua vida e prática a sua ética: filósofo trágico, e por isso serve agora de leitmotiv, como um presente oferecido a tantos outros espíritos livres que da mesma forma tornam-se o que são.

Dominique Bourel, em uma discussão sua com Karl Löwith, afirma que Nietzsche foi o maior representante do exercício da capacidade de ser si mesmo: “Nietzsche é um dos únicos filósofos – em minha opinião, o único – que permite ser verdadeiramente, entre aspas e com todas as precauções, ‘si mesmo’” (LÖWITH. In: MARTON, 1985, p. 162). Por isso, é possível constatar um esforço de coerência a permear todo o seu projeto transvalorador. Tornar-se o que é, eis uma das grandes máximas que proporciona um brilho todo especial ao Zaratustra. Esse caráter de coerência certamente constitui um dos motivos pelos quais considera o Jesus histórico como um espírito livre, o único cristão que realmente existiu; após Jesus, o cristianismo, na sua tentativa de imitá-lo, introduziu a moral, tida como uma forma cultural de vida decadente,112 cujas manifestações mais expressivas estão em Paulo e depois em Lutero. 110 ABM, VI, § 211, p. 117-8 / KSA – V, p. 144.111 “Porque tal sou eu, no mais fundo do meu ser e desde o início: alguém que tira, que tira a si, para cima, para o alto, um tirador, criador e tratador, que não em vão, um dia, determinou a si mesmo: ‘Torna-te quem és!’” (AFZ, IV, O sacrifício do mel, p. 283 / KSA – IV, p. 297).112 “O movimento cristão, enquanto movimento europeu, é de antemão um movimento conjunto dos elementos de desprezo e desperdício de toda espécie: esse movimento quer chegar ao poder com o cristianismo. Não expressa a decadência de uma raça, é um agregado de formas de décadence que desde todos os lados se aglomeram e se buscam” (AC, § 51, p. 88 / KSA – VI, p. 231).

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Apesar de todas as críticas que o filósofo endereça a essas duas figuras, pudemos constatar no decorrer da pesquisa que, no mínimo, elas se apresentam obscuras. Se ele dirige por causa da moral, que supostamente vê depreender-se da atividade desses porta-vozes do evangelho, as críticas sobre estes se apresentam como um contrassenso, visto que ambos têm se destacado como luminares evangélicos precisamente por combaterem a moral de seu tempo, reinventando um cristianismo centrado no indivíduo e na liberdade.

Em seu comentário sobre a questão da transvaloração dos valores de Nietzsche, Eugen Fink (1980, p. 131) escreve: “Ao criar valores, o homem transcende-se e coloca diante de si a sua própria criação como um objeto estranho dotado de todas as características mais veneráveis do ser em si. O que Nietzsche pretende fundamentalmente abolir é o dogmatismo axiológico.” Por isso, mais uma vez compreendemos que os ataques que Nietzsche dirige à interpretação cristã da existência têm, como ponto de partida, tudo aquilo que está referido a esta dita interpretação por ele vivida e experienciada. O filósofo, por isso, dotou o seu Anticristo com um objetivo fundamental, o de preparar a humanidade para a grande comoção cultural que se aproxima em virtude do niilismo que, como constata Zaratustra, cada vez mais oprime e enfraquece. Nietzsche em nada ameniza o ímpeto de seus posicionamentos presentes nos aforismos que compõem o Anticristo. Neste sentido, projeta um horizonte de proporções que lhe permitam ir além daquela sombra fria e monótona que a civilização cristã tem arquitetado. Deseja com toda a audácia fazer frente a esta natureza asfixiante e doentia que tem forjado o homem atual, a respeito de quem alimenta o seu grande desprezo. Coloca-se, por isso, fora de sua época, cuja atemporalidade torna-se uma das marcas imprescindíveis da transvaloração.113

Dessa forma, Nietzsche golpeia frontalmente os valores civilizatórios agrilhoados sobre a fixidez, a cristalização e a prostração, que têm em sua raiz toda a concepção de subjetividade, em uma palavra, sobre a décadence. Como mencionamos, Fink situa Nietzsche como o destruidor, por excelência do dogmatismo axiológico, projetando valores que transcendem aqueles relativos à existência humana outrora situada nos recônditos do inconsciente: “Nietzsche pretende desvelar a inconsciente atividade produtora da vida que avalia e estabelece as tábuas de valores. A existência humana transcende-se 113 “Minha sina quer que eu seja o primeiro homem decente, que eu me veja em oposição à mendicidade de milênios... Eu fui o primeiro a descobrir a verdade, ao sentir por primeiro a mentira como mentira – ao cheirar... Meu gênio está nas narinas... Eu contradigo como nunca foi contradito, eu sou contudo o oposto de um espírito negador. Eu sou um mensageiro alegre, como nunca houve, eu conheço tarefas de uma altura tal que até então inexistiu noção para elas, somente a partir de mim há novamente esperanças. Com tudo isso sou necessariamente também o homem da fatalidade. Pois quando a verdade sair em luta contra a mentira de milênios, teremos comoções, um espasmo de terremotos, um deslocamento de montes e vales como jamais foi sonhado” (EH, Por que sou um destino, § 1, p. 110 / KSA - VI, p. 266).

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na medida em que concebe antecipadamente como exteriores os pontos de vista axiológicos” (FINK, 1980, p. 131). Desse modo, o Anticristo passa a ser todo aquele que arrebata para longe de si tudo o que emerge de uma perspectiva gregária; por isso, para utilizar as palavras de Zaratustra, é um náufrago.114 Ainda, é todo aquele que, longe de uma mera passividade, coloca-se na posição de alguém que age, assim como o foi o próprio Jesus histórico, um cristão singular, para falar nas palavras de Nietzsche: o único cristão que existiu. Toda a sua vida e pregação fizeram dele o mais perfeito “Anticristão”; colocou-se contra toda a ordem vigente da época, o mais perfeito anarquista sem o saber, por isso um idiota.115 Jesus fez da sua prática116 de vida a mais perfeita recepção do drama e da angústia que a mesma vida comporta, o fez de uma forma que inspira força e convicção; porém, segundo Nietzsche: “Morreu cedo demais: abjuraria ele mesmo a sua doutrina se tivesse chegado à minha idade! Nobre bastante, era ele, para fazê-lo” (AFZ, I, Da morte voluntária, p. 100 / KSA – IV, p. 95).

Por essa razão, por mais paradoxal que isto possa parecer, podemos em última instância vislumbrar uma identificação de Nietzsche com Jesus de Nazaré. E é precisamente através dos lábios daquele personagem lendário, Zaratustra, o anticristão por excelência, que Nietzsche confere à humanidade o seu maior ensinamento: o da fidelidade à terra, ou seja, uma fidelidade em si mesmo, que se concretiza através de uma atitude de ação, caracterizada pela singularidade, pela criatividade e pela superação de si. Esses aspectos nos permitem concordar com vários autores que constatam em Nietzsche uma natureza cristã. Porém cristã, no sentido de estar inspirada unicamente na vida e na prática de Jesus e não no cristianismo legado a toda a humanidade pelas primeiras comunidades cristãs lideradas por Paulo, mostrando-se a Nietzsche como o contrário daquilo que o Nazareno viveu e ensinou. Por essa

114 No aforismo 4 do Prólogo de Assim Falou Zaratustra Nietzsche utiliza o termo Untergang, que pode ser traduzido como naufrágio, afundamento, ocaso, queda, declínio.115 “Fazer de Jesus um herói! – E que mal-entendido e sobretudo a palavra <gênio>! Nada de nosso conceito, de nosso conceito cultural <espírito> tem sentido algum no mundo em que Jesus vive. Dito com o rigor de fisiólogo, aqui estaria em seu lugar melhor, uma palavra completamente distinta: a palavra idiota” (AC, § 29, p. 58 / KSA – VI, p. 200). Idiot do grego representa aquele que age da sua própria maneira, de uma maneira totalmente singular.116 “A vida do Redentor não foi outra coisa que essa prática, tampouco sua morte foi outra coisa... Ele já não necessitava, para o seu trato com Deus, fórmulas nem ritos – nem sequer a oração. Tem rompido com a inteira doutrina judia de penitência e reconciliação; sabe que unicamente com a prática da vida é que se sente <divino>, <bem-aventurado>, <evangélico>, <filho de Deus> em todo o tempo. Nem a <penitência> nem a oração em demanda do <perdão> são caminhos que conduzem a Deus: só a prática evangélica conduz a ele, ela precisamente é <Deus>. O que com o evangelho caiu eliminado foi o judaísmo dos conceitos de <pecado>, <remissão do pecado>, <fé> – a inteira doutrina eclesiástica judia acabou negada na <boa nova>“ (AC, § 33, p. 63 / KSA – VI, p. 205-6).

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razão dedica a maior parte de sua empreitada de transvaloração dos valores à derrubada dos valores pregados pelo cristianismo.117

Se Jesus foi o único cristão, o único que viveu o que pregou, e o único que nos legou a prática, por que, então, que depois de Jesus o cristianismo nada mais foi do que uma grande mentira? Ninguém mais conseguiu viver como ele viveu? Aqui chegamos a um ponto sumamente importante da pesquisa, referente ao próprio modo de Nietzsche encarar o cristianismo. Para ele, se Jesus foi o único que viveu o que pregou e nos legou este exemplo que é a prática, a ação seria um apostar em si mesmo, criar e viver segundo o seu modo próprio. Por isso, jamais haveria a possibilidade de se contribuir para o enriquecimento da cultura, seguindo um mesmo e único modelo (padrão), tal como foi o projeto cristão a partir da morte de Jesus. O contrário daquilo que Jesus veio implantar era, no fundo, o intento de se instaurar uma moral padronizadora, de sujeição.

No entanto, difícil concordar de todo com a afirmação de Nietzsche de que depois da morte de Cristo houve apenas uma falsificação, um mal-entendido118 a respeito da imagem do Redentor feita por Paulo. Por um lado, como já amplamente tratamos, as críticas que Nietzsche endereça a Paulo são bastante controvertidas – acusar Paulo de ter levado a cabo a crítica à moral, e de ter feito o mesmo. Ronald Hayman chega a dizer que é pelo assassinato da lei por Paulo que em parte Nietzsche mesmo se inspirou quando escrevia a respeito da morte de Deus. No fundo, esta, segundo Hayman, quer significar a morte da lei divina.119 Por outro lado, o fato de levar a sério todas as críticas de Nietzsche ao cristianismo implicaria reduzi-lo todo à obra de Paulo. Isto levaria a negar todos os esforços subsequentes empreendidos por outros líderes cristãos como foi o caso de Tiago, já antes citado, e de outros, como os fundadores de ordens religiosas: Francisco de Assis, na Idade Média, e Inácio de Loyola, na modernidade – ambos fortemente influenciados por esta característica de Jesus tão cara a Nietzsche: a ação criativa empreendida no âmago de sua própria vida sob a forma de uma ética singular. Dessa ética singular, segundo as palavras de Renan, Jesus almeja, para além de uma religião de meras observâncias, uma religião do coração (RENAN, [1945a], p.298).117 Ė importante o estabelecimento da distinção entre “cristianismo” (Das Christenthum), vivência cristã, espírito evangélico de “cristandade” (Die Christenheit), institucionalização do cristianismo através de ritos e doutrinas. Esta cristandade, por estar contaminada pela moral, é o alvo das críticas de Nietzsche. 118 AC, § 37, p. 66 / KSA – VI, p. 209.119 “[...] os homens mais criativos foram os que mais sofreram e, assombrados pela lei que assassinaram, ansiaram pelo delírio que lhes permitiria pensarem-se acima dela. São Paulo foi um desses assassinos da lei; e a denúncia que Nietzsche faz dele baseia-se, pelo menos em parte, na simpatia, assim como mais tarde, quando escreve sobre a morte de Deus, está pensando na morte da lei divina e sentindo remorso por ter sido um dos seus assassinos” (HAYMAN, 2000, p. 42-43).

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Qual seria então o componente que faz Nietzsche afirmar que o cristianismo ocidental é um atentado contra a vida e está tão distanciado da vida e do ensinamento do Redentor? A resposta não é outra senão a moral ou, diríamos melhor, a moral dos escravos e enfraquecidos que paralisa, adoece e ressente. A moral, o grande alvo das críticas de Nietzsche, tantas vezes referido nesta pesquisa, é a primeira responsável pela décadence da cultura ocidental, se apresenta sobretudo sob a forma de sujeito. Neste sentido, a crítica de Nietzsche à moral, em que se baseia a interpretação cristã da existência, se expressa na forma da desconstrução do sujeito. Entretanto, a moral em Nietzsche permanece uma questão ambígua.

Quando ele critica o cristianismo por ser uma moral de fracos, supõe-se que ele não o critica como um todo, na medida em que abre perspectivas para uma cultura aristocrática, constatando no cristianismo da renascença, uma manifestação que se ampara na moral dos fortes. A questão da ambiguidade que se entende dos escritos nietzschianos é um indicativo de sua luta contra a fixidez dos conceitos. Neste sentido, a própria moral, se permanecesse apenas como negativa e arbitrária, traria a ideia de fixidez e de dogma; por essa razão, movido por seu ímpeto perspectivístico que repousa sob os auspícios do movimento, o filósofo resgata a moral num sentido novo: o da força e das pulsões instintivas, possibilitando falarmos em “morais” e não mais a “moral”.

O próprio niilismo, segundo Hübner (2000, p. 245), Nietzsche o compreende como uma força, uma “[...] tendência íntima e intrínseca para a dominação em si mesma”. Assim, o sentido positivo do niilismo, que o próprio autor vê como promotor dos desenvolvimentos da cultura, é aquele cuja força, que lhe é inerente, converte os efeitos de morte em efeitos de vida. Corresponde a este niilismo o sentido de atividade que anteriormente analisamos.

Assim, a crítica de Nietzsche ao cristianismo só se compreende a partir de uma moral de sujeição, de enfraquecimento e de negação, um niilismo passivo. O próprio conceito de sujeito, abstraído da relação entre o agente e a ação, a causa e o efeito – relação que inexoravelmente exige um agente por trás de toda a ação, uma causa para todo o efeito –, acaba por eliminar a multiplicidade das forças em interação contínua, presentes em todos os organismos, resultando em marcas que são a resignação e a fraqueza, protótipo das críticas nietzschianas ao cristianismo. Assim também a ciência, embora em todo o seu esforço mediante o seu método técnico e experimental, produza uma verdadeira aproximação das realidades próprias deste mundo,

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acaba sendo tributária daquele erro, apontado por Nietzsche, de aferrar-se na aquisição de uma verdade que carrega as marcas da fixidez e do dogmatismo, em que a moral escrava é a sua principal herdeira. Por essa razão, Paulo e Lutero, por terem se rebelado contra a moral fortemente estabelecida, tomando a causa da moral dos fracos, são alvo das críticas de Nietzsche, pois acabam contribuindo para o enfraquecimento da cultura. Neste sentido, é reveladora a posição de Valadier (2000, p. 70); a confrontação de Nietzsche frente ao cristianismo é essencial para se compreender o seu pensamento. O filósofo empreende guerra ao cristianismo tal como um inimigo frente ao outro, de igual para igual.

Se Nietzsche tem no movimento cristão o alvo principal de suas críticas à cultura ocidental, é porque este movimento é provido de uma força que o filósofo quer ver transferida para o seu projeto de cultura. Para tanto, essa força deverá estar isenta da moral, sem querer tornar-se uma nova religião. Por obra de sua própria moral foi declarada a ruína do cristianismo. De modo que o sentido do divino, esvaziado, abre espaço para o humano, e consequentemente para o advento do ateísmo. Este fato Nietzsche verifica com bastante clarividência no emergir da ciência, em que o homem, por considerar-se o seu centro e mentor, é responsável pela morte de Deus. Neste sentido, Nietzsche não faz nada mais que constatar na cultura ocidental esse acontecimento da morte de Deus de modo que a sua filosofia se exerce como um esforço de coerência frente a todos aqueles que, obstaculizados pela moral, ainda não ousaram divisar a iminência do niilismo, a fim de se lançarem em seus desafios. Acompanhemos, por isso, nas próprias palavras de Nietzsche, o grande entrave que representa a moral para o desenvolvimento da cultura ocidental:

Todas as grandes coisas perecem por obra de si mesmas, por um ato de autossupressão: assim quer a lei da vida, a lei da necessária ‘autossupressão’ que há na essência da vida – é sempre o legislador mesmo que por fim ouve o chamado: patere legem, quam ipse tulisti [sofre a lei que tu mesmo propuseste]. Desta maneira pereceu o cristianismo como dogma, por obra de sua própria moral; desta maneira, também o cristianismo como moral deve ainda perecer – estamos no limiar deste acontecimento. Depois que a veracidade cristã tirou uma conclusão após outra, tira enfim sua mais forte conclusão, aquela contra si mesma; mas isso ocorre quando coloca a questão:

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‘que significa toda a vontade de verdade?’ [...] E aqui toco outra vez em meu problema, em nosso problema, meus caros, desconhecidos amigos (pois ainda não sei de nenhum amigo!); que sentido teria nosso ser, senão o de que em nós essa vontade de verdade toma consciência de si mesma como problema? [...] Nesta gradual consciência de si da vontade de verdade – disso não há dúvida – perecerá doravante a moral (GM, III, § 27, p. 148 / KSA – V, p. 410).

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CONCLUSÃO Procuramos apresentar ao longo destes três capítulos que a crítica

nietzschiana à cultura ocidental compreende-se enquanto uma crítica a partir do fundamento em que os seus valores foram gerados. E, por isso, propositadamente principiamos esta pesquisa (primeiro capítulo), mostrando que Nietzsche propõe um novo caminho a partir do qual possa advir uma cultura superior, aristocrática. Este novo caminho traz a ideia de ruptura, abandono, destruição de antigos parâmetros, a fim de se estabelecerem novos, a partir de um movimento baseado no destruir para construir. Todavia, estes novos parâmetros, sobre os quais Nietzsche quer ver fundada a cultura, estão distantes daqueles anteriores. Ele ataca, por isso, aquelas noções de fixidez e de dogmatismo sobre as quais repousavam os antigos valores e as quais são consideradas pelo filósofo como inspiradoras da fraqueza e do ressentimento (fraqueza de todos aqueles cansados de viver esta vida pelos seus inúmeros entraves e contratempos). Por essa razão, acabam, na visão do filósofo, estabelecendo um mundo transcendente no qual colocam todas as suas esperanças. A relação que estabelecem com este mundo é unicamente de submissão e sujeição, como se existisse uma realidade suprema que os governasse e que fosse responsável por todas as suas ações. Assim, a única ação que resultaria ao homem seria o ressentimento, ou seja, alimentar ódio e desprezo por todos aqueles que ousam transpor aquelas barreiras do sem sentido e do niilismo que grassa na cultura ocidental metafísica, marcadamente dualista.

O expoente principal desta dita cultura é, aos olhos de Nietzsche, o cristianismo. Este, diferentemente de qualquer outro movimento da história da cultura ocidental, conseguiu atingir um número considerável do rebanho, que compõe a humanidade do globo terrestre, unido em torno da esperança de um futuro que se antevê para além dos limites da vida. Para tanto, é mantido nesta posição de sujeição e submissão mediante a moral, ou seja, sob a tutela do cumprimento da lei, a fim de ser-lhes merecida a vida e a felicidade futura num outro mundo. O advento do cristianismo proporcionou um despertar para o senso moral, de modo que a dimensão ética, pautada sobre a necessidade de se viver uma vida feliz e virtuosa, acabou ausente da vida. Assim, a ética, ligada a esse querer uma vida feliz e virtuosa, dá espaço para o despertar do senso moral, ligado a um querer participar de uma comunidade de valores. Essa comunidade de valores, aos olhos de Nietzsche, representa o rebanho, a massa, cujo perfil é constituído pela apatia, pela sujeição e pelo ressentimento.

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É na cultura grega da antiguidade que Nietzsche busca inspirações que pautem o seu ideal de estabelecimento de uma nova cultura. De acordo com o filósofo, representam os gregos antigos um povo do sim à vida e a tudo o que dela se deriva, incluindo a dor e o sofrimento. Sintomas que se inferem precisamente da luta e da tensão entre aquelas duas disposições artísticas: apolínea e dionisíaca. Da luta entre elas, Nietzsche colhe o sentido que viabilizará trilhar os caminhos da vida que a conduzam à elevação da cultura. Esse é o sentido do trágico, inspirador da luta, do movimento e da flexibilidade – sintomas abertos para o despertar de um quantum sempre maior de força, como vontade de potência aberta e forte que incide frontalmente contra os valores estabelecidos pela moral proveniente da cultura cristã enfraquecedora.

Esse sintoma enfraquecedor, como vimos no segundo capítulo, faz sentir as suas influências mesmo sobre aquele movimento cultural, a ciência, que a Nietzsche, a princípio, foi inspirador de muitas de suas questões, como é o caso da sua conhecida afirmação de que “Deus está morto”. Todas aquelas questões fundadas sobre uma crença metafísica, como é o caso do Deus cristão, são consideradas como sem sentido pela ciência, embora – a ciência fosse considerada por Nietzsche como o movimento – o método experimental do filósofo trouxesse uma maior aproximação da terra nos seus componentes orgânicos e inorgânicos, bem como uma bagagem estrutural inspiradora do mesmo – a genealogia –, acaba por outro lado caindo naqueles mesmos erros apontados por Nietzsche quanto à ousadia de se considerar possuidor da verdade eterna, dogmática e, por isso, fraca. Para Nietzsche, tudo o que atinge a categoria de fixidez, determinação, absolutidade, verdade, acaba transtornando o seu propósito de estabelecimento de uma cultura superior, cujas bases – o movimento, a flexibilidade, a multiplicidade – contrariam aquilo que até então vigorou na cultura ocidental. Tributária de todas essas características, Nietzsche atribui à moral o grande mal da cultura. Até mesmo a ciência, por sua necessidade de não se deixar enganar, de dever adquirir a verdade a qualquer preço, acaba enredada nas tramas da moral.

Dentro de todo esse movimento científico nos deparamos com a figura de Kant, preocupado em fazer com que a reflexão filosófica acompanhe os progressos da ciência, e seguimos o seu rigorismo objetivo e técnico-procedimental. Todavia, de acordo com Nietzsche, o filósofo de Königsberg ao pretender estabelecer um campo universal e objetivo em que se situaria a moralidade, acaba caindo no mais grosseiro dos erros. Ao estabelecer o campo da moralidade, Kant é levado a sacrificar o campo do conhecimento

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em prol da abertura para a crença, referente àqueles três postulados da razão prática pura: Deus, mundo e liberdade. Dessa forma, o grande legislador desse campo da moralidade passa a ser o sujeito transcendental, que por Nietzsche é tido como mais uma das contradições kantianas: por um lado, diz que esse sujeito é provido das condições de estabelecer leis para o seu agir moral; por outro lado, ele diz que essas leis devem estar conformadas a uma lei universal para o agir moral. A partir disso, notou Nietzsche, a contradição kantiana de afirmar e ao mesmo tempo negar a liberdade do sujeito, representando, por isso, a impotência e a fraqueza da cultura. Impossibilitado de agir por sua conta própria, resta-lhe conformar-se a uma lei universal, ou seja, cumprir o dever; que no fundo, de acordo com Nietzsche, representa a moral do rebanho fundada sobre os auspícios da teologia. É precisamente essa contaminação da filosofia pela teologia uma das causas principais pelas quais Nietzsche acusa Kant, com quem as tentativas de se estabelecer uma leitura filosófica baseada na ciência acaba novamente inspirando aquele erro apontado contra a metafísica; o imobilismo e o dogmatismo, que conduzem à incapacidade de agir e, por isso, à fraqueza. No fundo, o dogmatismo do qual se deriva a fraqueza, segundo Nietzsche, constitui as bases sobre as quais tem se estabelecido o sujeito, o qual é o principal produto da disseminação do cristianismo.

Da literatura de Nietzsche, deduz-se que há, por trás de sua crítica incisiva ao cristianismo, uma visão positiva do Jesus histórico. Este fato denota em Nietzsche, embora o seu declarado ateísmo, uma natureza que inspira ainda alguma religiosidade, derivada, sobretudo, das considerações presentes no Zaratustra e no Anticristo. Por essa razão, dedicamos o último capítulo da pesquisa a uma análise mais atenta a respeito das questões que gravitam em torno da transvaloração dos valores, tendo como referência esses dois textos.

Do que pudemos concluir dos capítulos anteriores a respeito da genealogia nietzschiana voltada a uma crítica da cultura cristã, ficou bastante evidente que o filósofo tem em vista a fixidez e o dogmatismo que se depreendem daqueles conceitos nos quais funda-se a metafísica, bem como de todas as crenças dela derivadas. Há que se enfatizar as crenças viabilizadoras das noções de “eu” e de “sujeito”, que no fundo inspiram, na visão de Nietzsche, o grande mal da cultura, contrária à manifestação das pulsões instintivas e da força: a fraqueza. Por essa razão, tudo, até mesmo a moral, como moral do senhor; a ciência, voltada aos procedimentos do mundo orgânico; Deus, ponto culminante da potência, são tidos em alta consideração por Nietzsche, pois, moral do senhor, procedimentos do mundo orgânico e ponto culminante de potência têm

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suas referências diretas no mundo da vida, que é uma explosão contínua de uma multiplicidade de forças, num contínuo destruir e construir, refletindo assim o aspecto trágico da vida, a base estrutural da edificação da nova cultura. Disto podemos concluir o fato de que, sendo o mundo uma manifestação criativa, estaremos contribuindo para a edificação desta dita cultura.

Assim, é sobre as bases do inovar, do mudar e do criar que Nietzsche pretende dar cabo ao seu projeto de transvaloração dos valores, ou seja, estabelecer valores sobre aquelas novas bases. É o peregrino Zaratustra, descendo da montanha a fim de partilhar os seus conhecimentos, como Jesus de Nazaré saindo de sua cidade natal a fim de dar início a sua missão. Ambos têm o fito de trazer mudanças, transpor valores, criar um mundo diferente. Diferente de tudo o que foi e até então se creu assim. Realizam uma mudança que atinge as bases mesmas da cultura. São, acima de tudo, homens de ação. A ação é o que os distingue e é por meio dela que Nietzsche-Zaratustra identifica-se com Jesus de Nazaré.120 Este último, como Nietzsche afirma no Anticristo, foi o único que ensinou a humanidade a viver, para tanto legou a sua própria prática de vida como exemplo, que no fundo quer significar que cada um seja o legislador de seu próprio agir. Esta asserção até assemelha-se com Kant, porém dela se distancia quando este pensa dever nossas ações estarem conformadas a uma lei que nos faz pertencer a uma comunidade universal de valores. Jesus, pelo contrário, inspira Nietzsche à valorização que este faz com respeito ao indivíduo o gerenciador de uma prática de vida singular, de uma ética, e que segundo a interpretação do filósofo, estaria totalmente desvinculado da dimensão do rebanho. Para ele, é pelos caminhos do indivíduo forte e criativo que se perfaz a cultura aristocrática.

Frederick Copleston acentua que, como a cultura consiste no desenvolvimento das faculdades humanas, esta deve contar com a cooperação de outros homens: “A cultura é, portanto, essencialmente social no seu caráter” (COPLESTON, 1979, p. 275). E, por isso, na sua visão, para além dos “gênios” e “espíritos livres” o fenômeno do desenvolvimento da cultura deve fazer parte da vida social como um todo. Por essa razão: “[...] restringir a cultura a certas camadas é desprezar a relação entre a cultura e a natureza humana, e tal tentativa revela uma falsificação da cultura e uma errada compreensão do seu caráter social” (COPLESTON, 1979, p. 275). Copleston entende, no fundo, que Nietzsche opera uma inversão do que de fato devia ser, que a cultura é para servir o homem e não o homem servir a cultura. 120 Embora haja alguma semelhança entre Zaratustra e Jesus Cristo, contudo, naquilo em que ambos se destacam, a saber, respectivamente: a ação trágica e o amor caritativo, as suas diferenças são maiores.

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Para Nietzsche, o próprio fato de o homem estar vinculado a uma sociedade revela sintomas de fraqueza; para o filósofo, ele reúne-se em rebanho a fim de fugir às responsabilidades que se depreendem da vida. E é por causa desta moral gregária que Nietzsche critica o cristianismo. Esta é para ele uma falsificação do que foi efetivamente a figura de Jesus de Nazaré. Por isso, podemos até uma certa medida atribuir o papel de Anticristo ao próprio cristianismo, por este ter sido responsável pela morte do que representou de fato a figura histórica de Jesus. E, como pudemos acompanhar na apresentação do último capítulo, Nietzsche dá atenção especial a dois momentos da história do cristianismo. O primeiro referente ao cristianismo nascente, cuja figura principal é Paulo, criticado por Nietzsche como moralista, porém não no sentido de subjugar os cristãos por uma doutrina, ou lei moral, mas por abrir as portas do cristianismo às massas, inaugurando assim uma moral de rebanho. O segundo movimento, situado no advento da modernidade, refere-se ao protestantismo, cuja figura principal é Lutero. Este é acusado por Nietzsche, quase da mesma forma como Paulo, não por inaugurar uma lei moral pesando como jugo sobre os fiéis, mas por, em primeiro lugar, estabelecer uma ligação direta entre Deus e o homem, alicerçada numa crença e por tornar o cristianismo uma religião aberta ao povo, rechaçando, por isso, a força manifesta na hierarquia e no sacerdócio. Ele inaugura um cristianismo do rebanho, dos fracos. Desse modo, para Nietzsche, ambos os movimentos, tanto em Paulo como em Lutero, representam a rebeldia dos fracos contra a ordem fortemente estabelecida que, manifesta contra a moral senhoril terrena, vem estabelecer uma moral senhoril divina. Como, segundo Nietzsche, estavam incapacitados de lutar contra os senhores terrenos, fundam a sua crença num senhor divino e todo-poderoso, como manifestação de sua fraqueza e ressentimento, sintomas estes, tidos por Nietzsche, como os responsáveis pelo niilismo e decadência da cultura.

Ora, se o ideal de uma cultura ascendente é o leitmotif a percorrer toda a filosofia de Nietzsche, assim tudo, até mesmo a moral, o Estado, a ciência e Deus são exaltados enquanto favorecem o desenvolvimento de uma cultura superior. Ou seja, enquanto são desencadeadores de um quantum superior de força. Contudo, na visão de Frederick Copleston (1979, p. 274): “[...] Nietzsche embora possuído de um ideal de cultura, falsificou a verdadeira natureza da cultura”. Pois, segundo Copleston, a cultura implica o desenvolvimento das faculdades do homem. Quanto mais desenvolvidas, mais distanciam-se do mundo vegetal e animal, aproximando-se, mediante a sua vontade racional, daqueles objetos eternos e imutáveis. Desse modo, de

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acordo com este comentador de Nietzsche, os mais elevados alvos da cultura, provenientes da relação do homem com o absoluto e o transcendente, por serem criticados fortemente pelo filósofo alemão, faz dele: “[...] um inimigo da cultura” (COPLESTON, 1979, p. 278). Assim também a lei natural por ser fruto do desenvolvimento das faculdades humanas seguindo a reta razão, reflete, no fundo, uma ordem Divina: “[...] e embora o conhecimento dos valores morais e dos ditames da Lei Moral possa diferir nas diversas fases da cultura, onde não houver respeito absolutamente algum pela lei moral, não pode haver real e inteira cultura” (COPLESTON, 1979, p. 281).

Neste sentido, o desrespeito aos valores morais reflete uma ausência de critérios, ausência esta responsável por em diversos períodos da história reduzir a humanidade à barbárie. Logo, na visão de Copleston, Nietzsche ao invés de promover o desenvolvimento da cultura, acaba, mediante a ruptura com todos os referenciais de valores da cultura ocidental, cuja expressão máxima é a sua proclamada morte de Deus, radicalizando o niilismo. A leitura de Hans Hübner também vem ao encontro desta última declaração. Hübner reconhece em Nietzsche a perspicácia de que nenhum outro filósofo foi capaz, de antever o desencadeamento do niilismo. Porém, o preço dessa clarividência fez-se sentir no erro de sua negação de Deus. Com isso, Nietzsche é confrontado com a exigência existencial de cada cristão (HÜBNER, 2000). Assim: “[...] a sua filosofia acaba numa contradição, porque, embora seja uma filosofia da cultura, contém em si os germes da anticultura” (COPLESTON, 1979, p. 283).

Copleston, contra Nietzsche, indica que a causa do niilismo não está nos valores morais e espirituais, mas sim no fato de o homem não os ter sabido viver. Esta última posição de Copleston reflete já uma dosagem de equilíbrio e bom senso com relação a Nietzsche. Contudo, podemos perceber que considerar Nietzsche um filósofo da anticultura constitui, no mínimo, uma conclusão extrema e apressada beirando a ideologia. Assim, se a morte que Nietzsche proclama de todos os valores morais da cultura se expressa através da morte daquele valor tido como absoluto: “Deus”, este último longe de ser o alvo principal dos ataques do filósofo, constitui apenas um meio polêmico, que ponha a descoberto a falsidade e a incoerência da moral tida como a expressão máxima da fraqueza e do não à vida e ao mundo. No dizer de Giacóia, é a moral o alvo principal que move as críticas de Nietzsche.

Com isso, podemos concluir que as reflexões nietzschianas a respeito da cultura cristã servem como um valioso instrumento estimulador do pensamento,

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do autoexame e da crítica. Embora a radicalidade e a obscuridade121 em que subjazem muitos dos aforismos do autor, precisamente aqueles que dizem respeito à morte de Deus e à destruição dos valores cristãos, que estão por trás da concepção de sujeito moral, frente às impostações do niilismo, componham a estrutura do filosofar nietzschiano – a suspeita –, é essa complexidade do pensar certamente indispensável no que diz respeito a uma atitude, pautada sobre uma disposição ativa e criativa, voltadas ao porvir de uma nova cultura, cuja força constitui o seu leitmotiv.

121 O pensamento nietzschiano (complexo e radical) acaba sendo, em muitos momentos, obscuro pelo fato de ele operar uma ruptura brusca com o próprio modo de encarar e abordar as diversas questões filosóficas.

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