17
NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA Almir Farias da Cunha Prof.Dra. Eliane Greice Davanço Nogueira

NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

  • Upload
    giumf

  • View
    136

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA

AUTOBIOGRÁFICA

Almir Farias da Cunha

Prof.Dra. Eliane Greice Davanço Nogueira

Page 2: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Introdução

Os memoriais de formação, produzidos durante o estágio, possibilitam aos estagiários:

• o resgate da história de vida; • da formação profissional;• evidenciar como constroem e interpretam seus universos sociais;• articulando as teorias trabalhadas nas disciplinas do curso de

Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul.

Page 3: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

• Em Educação, a pesquisa autobiográfica proporciona ampliação e produção de conhecimento sobre a pessoa em formação, as suas relações com territórios e tempos de aprendizagem e seus modos de ser, de fazer e de biografar resistências, pertencimentos e experiências ao longo da vida.

• A produção do memorial de formação estimula o estagiário a sair do lugar de agir sem refletir sobre sua ação e passar a pensar em questões como, por que faço o que faço? No que me apoio para pensar o que penso?

Page 4: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

• A construção deste artigo insere-se no que Passegi (2010) chama de coinvestimento, em que a mediação biográfica vai sendo feita, juntamente com a construção de sentido entre narrador e formador. Sendo que, o pretendido desde o começo, foi garimpar, no memorial, “pedras pequenas”, detalhes de costumes cotidianos que fizessem sentido para o autor no percurso de sua vida e no processo formativo que ele escolheu narrar, admitindo a reflexividade biográfica como promotora de consciência histórica das aprendizagens que ocorrem ao longo da vida.

Page 5: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

A escrita do memorial: início da autoria • Eu pensei em descrever exclusivamente a minha vida na escola ou

escola na minha vida. Mas como? Como é possível separar as coisas, se elas estão amalgamadas?

• Logo no início do memorial, já é possível verificar na narrativa do futuro professor a impossibilidade de separar a formação pessoal da profissional quando se trata de refletir sobre nosso percurso escolar. Portanto, assumir com Nóvoa (1995, p.25) a definição da formação docente como “um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projectos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma identidade profissional”.

Page 6: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Eu era um dos raros alunos que não tinha olho puxadinho. Na nossa sala, as carteiras eram de duplas. Não sei se nas outras salas era assim também. Determinaram que eu me sentasse ao lado de uma menina que até hoje me lembro bem do nome dela: Sandra. Sabe aquela música do Guilherme Arantes: “Quando a vi... logo ali... tão perto...”. Experimentei coisas estranhas, desconhecidas. Fiquei desconcertado. Não conseguia olhar diretamente em seus olhos. A japonesinha Sandra não saía mais da minha cabeça. Eu pensava nela o tempo todo. Ficava pensando em uma fórmula para puxar conversa. Mas, e a coragem? Nada me ocorria. Até que um dia, por uma incrível bobeira, eu lhe disse: “Eu sei contar até cinqüenta!”. Ela me olhou e disse: “e eu sei contar até cem!” E a conversa encerrou-se sem mais nenhuma delonga.

No exercício de retorno sobre si, as observações, as interações, as aprendizagens formais e informais que ocorreram dentro e fora das instituições de ensino, são reavaliadas e ressignificadas, como se pode notar no desenrolar da narrativa.

Page 7: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

É claro que não houve maldade por parte da pequena e bela japonesinha Sandra, em dar-me uma retrucada daquela. Sua resposta repentina talvez fosse apenas uma competição, acanhamento, distanciamento cultural, e tudo mais o que se possa atribuir à idade pueril dos sete anos. Não deixei de gostar dela por causa disso. Só me senti pateta. Depois daquele ano, nunca mais a veria novamente.

Esse tipo de reflexão permite ao narrador entender a força das ações sobre nós e nossas aprendizagens ao longo de nossas trajetórias de vida, e, esporadicamente, conscientizar-se das representações em torno delas e do que norteia nossa ação no mundo.O narrador, quando escreve sobre suas histórias, tecidas nas experiências do cotidiano, recria suas histórias e realiza conexões entre passado e presente, situando-o como sujeito de sua própria história.

Page 8: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

A morte do meu pai foi o episódio mais doloroso que ocorreu em minha vida. Eu não sei o dia e nem o ano em que ele morreu. Sei apenas que ele tinha vinte e nove anos e eu nove (...) Meu pai tinha apenas vinte e nove anos de idade quando morreu. Com essa idade, era ainda era um garoto. Eu tenho quarenta e quatro na atualidade. Ou seja, eu já vivi quinze anos a mais que ele. Ás vezes fico imaginando as coisas que ele poderia ter feito. Nas coisas que deixou de fazer, de ver, de tocar, de cheirar; os erros que deixou de errar. Tenho muita saudade dele. Penso como seria se estivesse vivo. Será que seria de esquerda? Será que seria de direita? Ou será que seria um alienado? Seria Flamengo ou Botafogo?

Ao longo da narrativa, será possível verificar que esse pai, no curto espaço de vida que exerceu a paternidade, se fez o pão e o sal de nosso narrador, que descreve sua carência da figura paterna na criação de uma metáfora que traduz seu sentimento.

Page 9: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Sentia muita saudade daquele beijo bigodudo e espetante. (aos 9anos)Senti falta dos beijos bigodudos, espetantes e protetores do meu pai que vinha nos cobrir à noite e eu o salvava da bruxa nariguda. O meu sofrimento foi intenso. (aos 20 anos)Depois que o Guilherme (filho) nascesse eu queria cobri-lo à noite, com uma coberta e também beijos. Beijos espetantes. (aos 20 e poucos anos)

O discurso metafórico possibilita que conceitos e idéias possam ser compreendidos em termos de outros que, por serem portadores de novas significações, abrem o leque de possibilidades de compreensão aos interlocutores (CHAVES-SA, 2000). As metáforas são modos de vivificar a linguagem, na medida em que o discurso metafórico implica superar a significação literal dos termos, visto que abre espaço para outra significação, a figurada, a qual justamente se constitui por inscrever na linguagem um sentido outro, novo - vivificante. O sentido novo é o que se desvela pela interpretação. Sentido sempre outro. Vivo. Trata-se de um processo de inferência e descoberta lúdica, ativa, auto-implicante.

Page 10: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Os anos prosseguiam e eu ainda nutria o antigo sonho de ser soldado do Exército. Ainda sem saber o porquê. Talvez porque visse na carreira militar uma segurança. Um lugar! Uma referência! Um samurai contemporâneo respeitado, com um salário na conta-corrente no final do mês. Mas, também pode ter um dedinho da forte propaganda do Regime Militar. Coisas do tipo: “Brasil! Ame-o ou deixe-o!”; “Ninguém segura a juventude do Brasil!”; “Noventa milhões em ação!”. Ufanismo. Os militares eram fortes. Então, eu também seria um forte. Talvez fosse isso. Eu não conseguia entender como é que o Capitão Lamarca abriu mão disso tudo e foi comandar uma guerrilha no Vale do Ribeira.

Nesse trecho da narrativa há evidências que nosso narrador consegue perceber o que estava pensando quando viveu esse momento, essa fase de sua vida, reafirmando a importância não só de conhecer nosso passado, mas de pensar nesse passado, que segundo Soares (1991, p.47) “para que o trabalho do pensamento se realize é preciso que a experiência fale de si para poder voltar-se sobre si e compreender-se”.

Page 11: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Fevereiro de 1984. Finalmente, chegou o grande dia! Entrei para o Exército. Lembro-me bem. Acordei cedo. Na verdade mal dormira tamanha era a minha ansiedade. Havia contado cada um dos dias durante todo o ano anterior. Ainda estava escuro na madrugada, quando saí de casa. Cheguei ao quartel e já foram raspando a minha cabeça. No final do dia foi possível ver uma montanha de cabelos, cabelos lisos, cabelos negros, cabelos ondulados, cabelos loiros. Agora, eu era o soldado dois meia dois (262). Um recruta de Infantaria. Exatamente como eu queria. Eu queria ser um bom militar. Ascender na carreira. Graduar-me. Também me deram farda, um fuzil de calibre 762 milímetros, de fabricação belga e treinamento, muito treinamento. O treinamento militar era duro e obrigava todos nós a ficar a semana toda internado no quartel. Mas logo, na primeira oportunidade, fui para casa, vestido com o meu uniforme verde-oliva. E fui recebido tão carinhosamente pela minha mãe, meus irmãos e uma prima.

Esse trecho da narrativa informa a respeito de idéias, valores e representações de um momento social histórico, que nos dá a dimensão das condições sociais determinadas, que além de encantar nosso narrador, encantou toda uma geração.

Page 12: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

É difícil resumir as coisas que me aconteceram em um ano no Exército. Mas, depois de seis meses, as minhas convicções de caserna começaram a balançar. Seis meses de Exército (metade do tempo obrigatório) estavam começando a demolir os meus paradigmas.Um acontecimento marcante me fez refletir sobre a condição em que o país vivia. O Deputado Ulisses Guimarães veio a Campo Grande. Um grupo de cerca de cinqüenta motociclistas foi ao aeroporto buscá-lo. A presença do Ulisses na capital provocou uma forte reação dos militares. Incomodou mesmo. O general (o chamávamos de Mister Magôo, porque ele parecia o Mister Magôo) colocou todos as unidades de prontidão. Isso significa que toda a tropa estava mobilizada (inclusive eu). Todo mundo armado com os seus fuzis à baioneta. Ninguém entrava ou saia dos quartéis. Eu vi quando o Ulisses passou pela avenida Duque de Caxias, escoltado por um grupo de motociclistas, portando bandeiras brancas enormes onde se lia: “Diretas Já!”.Aquele Exército dos meus tempos de criança era uma fantasia. Não existia. Nunca existiu. Por isso, aquele não era o meu lugar. Entendi finalmente. Aquele não era o meu lutar. Mas, onde estava o meu lugar?Mas, assim como chegou o grande dia de entrar, chegou o grande dia de sair. E eu saí. Confesso que estranhamente estava aliviado. Apesar do medo de não arranjar trabalho, atravessei o portão do Corpo da Guarda pela última vez. Dei uma última olhada e fui embora.

Page 13: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

A narrativa nos permite acompanhar a descrição do momento em que há uma tomada de consciência crítica, uma resistência à massificação que leva à inquietação e angústia, mas que humaniza e compromete com o contexto histórico. Ainda nos permite a rememoração do momento que o país atravessava, de início da decadência do período ditatorial e a retomada da democracia brasileira.

Assim como suas convicções foram abaladas e sua visão de mundo transformada, esse era o processo vivido por muitos dessa geração, que podem não ter tão claro como nosso narrador o momento de ruptura e transformação, mas também se deram conta que alguma coisa havia mudado e modificado sua forma de ver o mundo.

Page 14: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

Eu era solitário e tinha vontade de fazer muitas coisas. Eu tinha vontade de aprender tocar saxofone, tirar carteira de Motorista, falar francês. Só que o dinheiro que eu ganhava me impedia de ter e fazer essas coisas.Nessa época comecei a flertar com a esquerda. Conheci um delegado do Ministério do Trabalho, que era membro do PCB – Partido Comunista Brasileiro. Mas por enquanto era só um flerte.Nesse tempo passei a viver e respirar política, revolução. Tornei-me militante do PCB – Partido Comunista Brasileiro, e também do Sindicato dos Bancários de Campo Grande. Fui ainda, diretor da CUT – Central única dos Trabalhadores, em Mato Grosso do Sul.Passei a usar uma boina igual a do Che Guevara na cabeça e botons do Lênin e do Karl Marx no peito. Messianicamente eu pensava: agora, os ricos e corruptos haverão de se ver quando chegasse a hora da revolução. E assim, fomos tocando a vida.

O narrador nos traz a evidência de que um contra modelo sugeriu a construção de outro novo, que se reinventa permanentemente, libertando-o da dominação que o modelo anterior exercia sobre ele, contribuindo com um perfil de homem que se exige numa sociedade complexa e diversificada.

Page 15: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

[...] para mim, escrever um Memorial foi uma experiência, única, singular, inesquecível. Ter a liberdade de produzir um texto, expondo-me em minha intimidade, devassando-me, mesmo sabendo que poderia ser lido por outras pessoas. Foi um desafio!Desafio que só poderia ter mais valor se viesse acompanhado do meu poeta preferido. E o meu poeta preferido será para todo o sempre o Mário Quintana e é com ele que encerro este memorial,Esta vida é uma estranha hospedaria, De onde se parte quase sempre às tontas, Pois nunca as nossas malas estão prontas, E a nossa conta nunca está em dia. Mário Quintana

A colocação final do nosso narrador reafirma nossas convicções de que o processo de construção de um memorial, por meio da escrita autobiográfica, é uma experiência complexa que expõe e contrapõe sentimentos e imagens, certezas e incertezas, produzindo um balanço do passado para refletir e reinventar o presente. A escrita autobiográfica contribui para uma formação docente mais humanizada, enquanto processo dialógico auto-formador e transformador.

Page 16: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

• Professores/pesquisadores que utilizam a narrativa autobiográfica como prática educacional, quer seja na pesquisa ou na formação, quando participam desses processos com professores/futuros professores, já não se restringem ao uso tão somente de instrumentos oferecidos pela formação acadêmica mais conservadora, os quais, de uma forma reducionista, dividem, separam e classificam, na tentativa de explicar os fenômenos.

• Ao contrário, com o foco de análise mais humanizado, já são capazes de se aproximarem daquilo que não é o previsto, nem o esperado, ou seja, daquilo que chama à complexidade para dar conta da grandeza e da diversidade do que é ser professor.

• A valorização das narrativas autobiográficas desses futuros profissionais docentes faz parte do movimento, já consolidado, que busca, cada vez mais, formar docentes reflexivos, capazes de compreender o entrelaçamento de suas histórias e itinerários em diferentes espaços e tempos de sua vida pessoal e de sua prática docente.

Page 17: NARRAR E DECIFRAR PROCESSOS FORMATIVOS A PARTIR DA ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 8. ed. Tradução de Michel Lahud e Yara Frataschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997 (original de 1929).BERTAUX, D. Narrativas de vida: a pesquisa e seus métodos. São Paulo: Paulus,2010CHAVES-SÁ, I. (Org.). Percursos de formação e desenvolvimento profissional. Porto: LDA, 1997. JOSSO, M. C. Experiências de vida e formação. Tradução de José Claudino e Júlia Ferreira. São Paulo: Cortez, 2004. KRAMER, S.; SOUZA, S. Experiência humana, história de vida e pesquisa: um estudo da narrativa, leitura e escrita de professores. In: KRAMER, SONIA e JOBIM E SOUZA, SOLANGE. (Org.). Histórias de professores: leitura, escrita e pesquisa em educação. 1a ed. São Paulo: ATICA, 1996.LAHIRE, B. Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997.LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 3. ed. Tradução de Alfredo Veiga-Neto. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. NÓVOA, A. (Org.). Vidas de professores. Porto Alegre: Porto, 1992.______. (Coord.). As organizações escolares em análise. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote, 1992.PASSEGI, M. C. Invenções de vida, compreensão de itinerários e alternativas de formação. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.QUINTANA, M. Antologia poética. Porto Alegre: L&M, 1997.SOARES, M. Metamemória-memórias: travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez, 1991.