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Nada mais que uma noite
Anabella Franco
Disponibilização: Soryu
Tradução: Fernanda Dias
Revisão Inicial: Gi Vagliengo
Revisão Final: Fernanda
Leitura Final e Formatação: Cris G.
Sinopse
Nicolas Hagen é um engenheiro atrativo e bem sucedido que
ama a vida noturna. Sua relação com as mulheres se resume a
passar apenas uma noite com elas e as abandonar, lhes deixando
algo em troca. Para ele todas são iguais: interessadas, insensíveis e
manipuladoras.
Lavínia é uma mulher de beleza invejável, simples e pura em
sua alma. Uma costureira de classe baixa, que luta por sair adiante
de um ambiente hostil. Seu passado a pôs em um lugar onde
entregar-se a um homem se torna quase impossível. Seu presente
está regido pela resignação, a aceitação e a perseverança.
Alguma deusa obrará entre esses dois mundos, entrelaçando
ambas as vidas. Lavínia será uma presa a mais de Nick, quem não
poderá resistir seus impulsos de seduzi-la e passar nada mais que
uma noite com ela. Uma noite em que a verdade e a inocência
transformarão suas almas para sempre.
Entretanto, o destino jogará de novo suas cartas: o passado
para Nick tem forma de feridas, e figura de mulher. O vermelho será
sua essência. O sexo e a perversidade, sua armadilha.
“A tradução em tela foi efetivada pelo Grupo Pégasus Lançamentos de forma a propiciar ao leitor o acesso à obra, incentivando-o à aquisição integral da obra literária física ou em formato e-book. O grupo tem como meta a seleção, tradução e disponibilização apenas de livros sem previsão de publicação no Brasil, ausentes qualquer forma de obtenção de lucro, direto ou indireto. No intuito de preservar os direitos autorais e contratuais de autores e editoras, o grupo, sem prévio aviso e quando julgar necessário poderá cancelar o acesso e retirar o link de download dos livros cuja publicação for veiculada por editoras brasileiras. O leitor e usuário fica ciente de que o download da presente obra destina-se tão somente ao uso pessoal e privado, e que deverá abster-se da postagem ou hospedagem do mesmo em qualquer rede social e, bem como abster-se de tornar público ou noticiar o trabalho de tradução do grupo, sem a prévia e expressa autorização do mesmo. O leitor e usuário, ao acessar a obra disponibilizada, também responderá individualmente pela correta e lícita utilização da mesma, eximindo o grupo citado no começo de qualquer parceria, coautoria ou coparticipação em eventual delito cometido por aquele que, por ato ou omissão, tentar ou concretamente utilizar da presente obra literária para obtenção de lucro direto ou indireto, nos termos do art. 184 do código penal e lei 9.610/1998."
Esta é minha alma que grita.
Nick cure suas feridas te convertendo em papel.
Eles estão em mim e eu neles.
Concretamente nele.
E nela está ele, por isso a ele a dedico.
Agradeço-lhe por tudo o que vivemos,
Que serviu de inspiração, como minha vida.
E embora possivelmente hoje ele já não me recorde,
Peço-lhe perdão.
"Precisamente porque o destino é imutável, a sorte depende de nós
mesmos".
André Maurois
Capítulo 1
Paradoxalmente o destino é esse algo imutável ao que,
entretanto, uma só decisão, um só instante, pode trocar para
sempre. E embora dependa de outros, nunca deixa de depender de
nós mesmos.
A única testemunha de tudo aquilo, sempre seria o vento.
Corriam as três da madrugada quando o moreno entrou na habitação
das filhas de sua namorada. Tinha duas para escolher, mas teve que
escolher a ela.
Em contraposição com os presságios da mãe, Lavínia era muito
mais formosa que Helena, e também maior. Segundo o julgamento do
moreno nesse momento da noite, da bebida e das drogas, seus
dezesseis anos lhe teriam outorgado maiores atributos que a sua
irmã, cinco anos menor. Ou ao menos pensava que os acharia
desenvolvidos no ponto justo em que fariam ferver seu instinto
sexual.
Introduziu-se no quarto às escondidas, com os risos de seus
amigos como testemunhas, mudas por um par de mãos sobre suas
bocas macias. Lavínia dormia em sua cama e sua irmã, na outra.
Uma grotesca mão de homem cobriu a boca de Helena. A moça, com
seus cabelos castanhos muito emaranhados, retorceu-se. Quando
pôde abrir os olhos, encontrou que um sujeito de rosto desconhecido
se achava sobre seu corpo e lhe impedia de mover-se. Desviou o
olhar: Josué se estabelecia sobre a cama de sua irmã.
Lavínia despertou. Ao ver o namorado de sua mãe sobre seu
indefeso corpo tentou gritar, mas logo um golpe a obrigou a guardar
silêncio. Além disso, era tanto o horror que não lhe saía a voz.
O vento a ajudou a recuperar o sentido. Distinguiu por fim, ou
por desgraça, o rosto do homem que se desprendia o cinturão sobre
seu corpo adormecido e que logo lhe levantou a camisola.
— Se você não deixar... Sabe o que vou fazer com sua mãe,
não? - riu, e ela se viu obrigada a calar.
O vento que se escapulia pela janela aberta balançou com
violência a cortina cor azul marinho e logo seu cabelo, loiro como o
ouro, nesse momento emaranhado. Ele baixou as calças e lhe tirou a
roupa interior. Depois lhe cobriu a boca com a outra mão e tentou
sair-se com a sua, mas Lavínia lutou para gritar de novo e desta vez
conseguiu. Depois do grito, os pulmões lhe negaram o ar, o medo
agarrou seu corpo e desmaiou.
Quando Josué Nicanor Perez se deu conta de que estava a
ponto de penetrar um corpo inerte, apartou-se, subiu as calças
assustado, pensando que possivelmente a garota tinha morrido de
susto, e se retirou pela janela pela qual tinha entrado. O mesmo
fizeram seus dois amigos, que pelos menos não pretenderam abusar
da Helena, sendo que a cena os tinha deixado sedentos de algo mais.
Aparentemente, Josué tinha sido digno o suficiente para deixar claro
que ele seria o único com acesso ao corpo da filha mais velha de sua
namorada.
Helena, que tinha observado a agressão a sua irmã com olhos
angustiados, levantou-se. Ajoelhou-se junto à cama de Lavínia,
moveu-a com desespero e esforçando-se conseguiu que despertasse.
Então se afundou no oco de seu ombro, soluçando a inocência que ia
das mãos. Lavínia, que agora estava sentada sobre o colchão úmido,
acariciou-lhe o cabelo com resignação. Aquela foi a última vez que as
irmãs se deram um abraço. Era a primeira vez que um namorado de
sua mãe tentava aproveitar-se de sua juventude e de sua beleza.
Josué Perez tinha observado Lavínia com desejo desde o
primeiro dia em que Cristina o tinha levado a sua casa nos
monoblocos da Avelanada. Já na mesa natalina, o moreno não lhe
tinha tirado os olhos de cima: o cabelo loiro lhe emoldurava o rosto
branco e angélico, com as maçãs do rosto de um rosa encantador e
uns olhos grandes e verdes qual prado da Antiguidade. Seu corpo
bem formado já contava com generosos seios e nádegas, e tinha em
seus movimentos um encanto enigmático e dócil.
Dificilmente reluzia como uma criatura do submundo, mas bem
se parecia com uma mulher da realeza.
Josué gozou vendo-a trazer uma bandeja com frango na
véspera de natal, a primeira que passava com as filhas de sua
namorada. Lavínia lhe parecia uma figura de sonhos, com seus jeans
muito ajustados e uma blusa sem mangas que lhe deixava os ombros
a mostra e ajudava que seus seios aparecessem espiando pelo decote
recatado. Toda ela era uma pequena mulher, vergonhosa e calada,
bela e responsável. Sem dúvidas, toda uma divindade.
A partir dessa noite, o moreno se converteu no casal estável de
sua mãe. Cristina López tinha sido alguma vez uma mulher muito
bela e também sem preconceitos. Enquanto terminava a escola
secundária aos dezoito anos, tinha caído no amor, ou melhor,
apaixonou-se por seu professor de história: Carlos Dickinson.
Carlos era um homem de trinta anos, atrativo e de aparência
agradável, que passava seu tempo livre em obras de caridade. Estava
acostumado a trabalhar em escolas públicas, como o colégio ao que
frequentava Cristina. Era um homem honesto e bom, tão bom que
ajudar aos outros era sua prioridade na vida, por isso era pobre. Era
pobre quanto a dinheiro, mas terrivelmente rico em amigos. Um dia
Cristina conseguiu que a convidasse a sua casa. Supunha-se que
leriam juntos a respeito de mitologia, tema que, argumentou ela,
interessava-lhe extremamente. Ambos sustentariam em segredo o
encontro, já que estava proibido manter qualquer tipo de vínculo
entre alunos e professores fora do horário escolar. Depois de tudo,
havia apenas um mês de aula, logo Cristina teria terminado a escola,
e ele não queria ser como a maioria dos professores: Carlos desejava
com a alma que seus alunos adquirissem um melhor estilo de vida, e
que era impossível reter a educação inflexível entre os muros da
escola.
Passaram um mês reunindo-se aos sábados, conversando a
tarde inteira sobre deuses e monstros, mitos e teorias antigas sobre a
formação do mundo moderno e das coisas, entre os livros e os
apontamentos que ele estava acostumado a fazer quando estudava
na Universidade Nacional de La Prata.
Lavínia nunca soube se sua mãe o tinha amado realmente ou se
só tinha querido satisfazer um capricho adolescente - mas sem
dúvidas ele se apaixonou como um louco por dela. Tanto que numa
chuvosa tarde de sábado, uma semana depois de que as classes
tinham acabado, o professor e a ex-aluna fizeram realidade suas
fantasias nesse pequeno apartamento onde reinavam o aroma e a
desordem que só podem caracterizar a um professor de alma, a um
amante da história e da arte, e a um homem íntegro. Muito diferente,
por certo, do resto dos homens que tinham desfilado, antes e depois
dele, pela vida de Cristina.
Depois de uns poucos encontros românticos, Cristina ficou
grávida e Carlos se casou com ela, até contra a vontade de seus pais,
que a viam menor e mais leve. Os Dickinson sempre tinham tentado
persuadir o seu filho de que trocasse seu estilo de vida, de que
aproveitasse a pequena fortuna familiar forjada por gerações de
médicos e se dedicasse a outra coisa, mas Carlos jamais tinha feito
conta. Amava o passado. Amava-o porquê era o presente e era o
futuro, e sua paixão pela história e pela arte o tinha convertido em
um apaixonado em todos os âmbitos de sua vida.
Depois de três anos e meio de matrimônio, Carlos partiu uma
manhã para seu trabalho na escola a qual tinha frequentado Cristina.
No curto trajeto no coletivo, dois homens o tinham assaltado e,
possivelmente por lhe roubar uns poucos pesos ou por um ajuste de
contas equivocado - que não era nada estranho em um bairro como o
do colégio - Carlos tinha perdido a vida nas mãos daqueles dois
estranhos de aparência estrangeira aos quais ninguém jamais
encontrou.
Assim havia sido Cristina com Carlos, mas com Josué Nicanor
Perez era muito diferente. Ele gastava o dinheiro de sua pensão, a
qual Cristina recebia depois da morte do Carlos, em álcool e drogas;
e nem sequer lhe pedia mantimentos para seu pequeno filho Hector.
A morte de Carlos ficou no passado, assim como a fatídica noite
em que Lavínia tinha conhecido o início de um ato sexual mediante
um secreto intento de violação. Entretanto, Josué jamais tinha podido
tocá-la de novo. Depois daquela madrugada, Lavínia tinha se
dedicado a praticar todo tipo de esportes que lhe conferissem uma
possibilidade de autodefesa, e tinha conseguido o respeito e o temor
do homem.
Transformou-se em uma mulher que temia a muito poucas
coisas em realidade, nem sequer aos homens. Apenas um vento
suave e a coruja da noite podiam ainda lhe provocar algum calafrio
nas costas, talvez temendo que essa testemunha silenciosa falasse.
Nove anos depois da fatídica noite.
“Tenho que pedir os tecidos a Betty”, repetia-se Lavínia em sua
mente enquanto subia as escadas, lotadas de pessoas que fumavam
e conversavam entre si.
Como tinha ficado trabalhando em sua loja inaugurada fazia
apenas três meses até tarde, chegava em casa em um horário pouco
habitual.
Não havia rastros de sua família. Antes uma notícia tão grata,
dirigiu-se à cozinha, abriu a torneira e serviu-se de um copo de água.
Mas sua paz interior não durou muito, viu-se perturbada quando uns
dedos quentes lhe roçaram sem querer querendo o antebraço. Com
classe e uma vez certa advertência na voz, ordenou:
— Não me toque.
Do mesmo modo cravou o olhar verde nos olhos de seu
oponente, negros como sua consciência. Josué a observou um
momento e depois, respeitando sua segurança e sua beleza, apartou
os dedos. Lavínia voltou para si mesma.
Antes de tentar abusar de Lavínia, Josué tinha concebido uma
boa forma de intimidá-la: tinha-a ameaçado machucar a sua mãe se
ela não acessasse a seus desejos. Claro que sempre tinha sido sutil e
enganoso em suas advertências, de maneira que só ela e ele se
entendessem, e assim parecer inocente. Josué pensava que a relação
de amantes que teria com a pequena filha de sua namorada
perduraria no tempo, mas depois dessa única noite em que tinha
tratado de manter com ela uma relação sexual abusiva, a garota se
deu conta de que as ameaças eram vazias e se revelou. Então Josué,
já sem vê-la amedrontada, não teve a valentia suficiente para tentar
tomá-la de novo, pois no fundo de sua alma e de sua escura
consciência, não era mais que um covarde.
Lavínia não se deixou enganar nunca mais. Mais à frente do
intento de ultraje, o que lhe espremia o coração era a mentira. Como
pôde ter sido tão inocente! Como pôde ter sido tão ingênua de
acreditar nas ameaças de um covarde! Mas prometeu que jamais
voltaria a padecer de algo como isso. Ninguém voltaria a burlar-se
dela, nem tampouco voltariam a enganá-la. Simplesmente, nunca.
Pela janela da cozinha viu descer a sua irmã de um automóvel
preto. Helena fechou a porta do carro e o homem que conduzia lhe
deu umas notas pela janela. Com o cabelo comprido e sedoso
balançando-se ao vento, a jovem se aproximou da porta de entrada.
Lavínia se pegou ao vidro para ver melhor. Josué acabava de deter
Helena na porta do edifício. Trocaram umas palavras que, Lavínia, da
distância, não podia ouvir. Dificultava escutar pelos sons da rua:
vários jovens que tinham saído da escola vespertina, automóveis que
circulavam pelo Díaz Vélez e um coletivo.
Josué tentou arrebatar o dinheiro das mãos de Helena. A
conversação passou de ser seca à violenta. Ao final, a moça lhe deu
as notas à contra gosto, com o que Lavínia deduziu que Josué se
havia apressado a chegar à porta de rua para tirar o dinheiro de sua
irmã, um dinheiro recém ganho que ela ainda não tinha tido a
oportunidade de contar. Helena entrou no precário edifício enquanto
Lavínia virou-se e foi para a sala de jantar.
Quando sua irmã chegou, ela já estava sentada à mesa. Helena
se dirigiu à cozinha, pretendia ignorá-la. Logo saiu com um copo de
água, sentou-se à mesa sem dirigir sequer o olhar a Lavínia. Os
ruídos do exterior, o corredor e a escada poluíam o silêncio do
interior.
— Como foi hoje? - perguntou Lavínia.
— Bem - respondeu Helena a contra gosto, encolhendo-se de
ombros.
— Quem era esse homem que te trouxe?
Cada vez que Lavínia tentava iniciar uma conversação com
Helena, fracassava. Fazia a pergunta sem segundos propósitos,
tentando esquecer que em realidade conhecia a verdade, mas
Helena, acostumada a tratar com más intenções, não pôde pensar
menos do que sua irmã acabava de dizer.
— Você sempre tem que acreditar mais nos outros? - espetou-
lhe.
Lavínia parecia abatida, surpresa com a reação de Helena.
— O que você disse?
— Que você é uma topetuda.
— Só porque eu quero sair daqui, porque não dou meu dinheiro
para Josué?
— Vai à merda.
Helena ficou de pé e se fechou em seu quarto, que
compartilhava com Lavínia. Abriu a janela. Como de costume,
sentou-se a fumar e a esperar.
Quase ao mesmo tempo se abriu a porta da entrada e Cristina
entrou no apartamento com duas sacolas do mercado e Hector em
braços. Atrás dela, vinha Josué.
Sua mãe estava um pouco acima do peso. Como tinha
descuidado de sua aparência, conservava um pouco da beleza que
havia possuído em sua juventude. Sua irmã Helena, de cabelo
castanho e eletrizantes olhos marrons possuíam uma encantadora
figura e um rosto que poderia ter servido de inspiração a mais de um
pintor, embora nesses últimos tempos tivesse perdido seu brilho.
Acostumou-se a fingir uma careta sensual que de tão comum
acabava resultando insípida. Vestia quase sempre saias muito curtas
e espartilhos. Nos pés usava botas altas até o joelho ou sandálias de
salto. O cabelo solto lhe chegava à cintura e maquiava seu rosto com
cores vivas.
Helena era a filha de um namorado que Cristina tinha tido um
ano depois da morte de Carlos. O tipo a tinha deixado grávida e logo
tinha saído correndo ante a notícia. Ao menos serviu a Cristina para
receber uma lição e enrolar ao Josué antes de ficar grávida.
Em conclusão, por essas questões da vida - e de sua mãe -
Helena López nunca tinha conhecido seu pai e nem sequer levava seu
sobrenome.
Josué era um homem moreno, como seu pequeno filho, de
textura física hercúlea. Claro que os anos e a má vida o tinham
transformado em um cafetão gordo e alto, como um imenso guarda-
roupa, como um gorila.
A diferença deles, Lavínia guardava a frescura e a delicadeza de
sua adolescência. Conservava um delicioso tom rosa nas maçãs do
rosto e tinha os olhos grandes cor esmeralda. Era proprietária de uma
beleza delicada que, entre a miséria, estava acostumada a passar
inadvertida. Levava o cabelo loiro recolhido em um rabo, sandálias e
uma camisa branca.
Retirou-se a seu quarto imediatamente: o que menos desejava
nesse momento era compartilhar um espaço com Josué e com sua
mãe. Tratava-se do mesmo quarto, onde tinha se passado a tentativa
de estupro, mas a lembrança era já tão longínqua que era igual
dormir ali ou em qualquer outra parte. Aproximou-se da janela e
fechou a persiana aberta. As cortinas azuis tinham buracos de cigarro
e cheiravam sempre a pó. Fazia anos que não eram lavadas, e ela
tinha deixado de insistir para que sua mãe lhe permitisse fazê-lo.
— Esta é minha casa. Se você não gosta de viver aqui porque
para a princesinha as cortinas cheiram a fumaça, aí têm a porta -
dizia Cristina com ironia cada vez que Lavínia insinuava algo sobre a
falta de limpeza da casa. Ela podia ser bagunçada, mas era muito
limpa.
— Eu pagaria a lavadeira - replicava Lavínia com voz calma.
— Não quero que lavem as cortinas - respondia a mãe.
— Por que não? - desesperava-se a filha.
— Porque o digo eu.
Helena estava acostumada a sentar-se e fumar diante da
janela, como esperando possivelmente que uma vida melhor viesse
procurá-la, mas incapaz de sair em sua busca. Como na casa de
Cristina ninguém ensinava ninguém a cuidar de nada, tudo estava
que dava pena.
Depois de fechar a janela e acomodar as rudimentares cortinas,
Lavínia se voltou para a cama. Ignorando sua irmã, tirou à roupa
elegante coma qual costumava trabalhar e se vestiu com um traje
esportivo. Ainda assim, parecia particularmente bem, porque tudo
isso foi requintado, uma criança nascida em um universo que a qual
não pertencia.
Quando o jantar estava pronto, Cristina bateu na porta do
quarto e chamou suas filhas com um mau humor que já estava
incorporado a ela e ia aumentando a cada dia.
— Vamos comer! - exclamou como aviso, e se afastou.
Cristina sempre tinha sido uma mulher egoísta, mas Lavínia
jamais a tinha conhecido tão miserável como naquela época. Tinha
chegado ao extremo de regular a comida e até incomodar-se por ter
que cozinhar. Embora sempre tivesse sido ociosa, pouco a pouco suas
atividades foram reduzindo cada vez mais. Helena não fazia nada na
casa, e Lavínia passava o dia trabalhando. Do Josué, nem esperar.
Todos se sentaram à mesa. O televisor, a um volume muito
alto, enchia a sala com as risadas provenientes de uma publicidade.
Cristina serviu uma mistura de bife e macarrão com manteiga
nos pratos e depois se sentou, suspirando.
Ela não jantava. Talvez tivesse se cansado do sabor da carne e
das massas, embora não deixava de preparar sempre o mesmo,
porque lhe dava menos trabalho. No máximo, variava o bife e
macarrão por milanesa e purê.
Fazia-se evidente que Josué já estava drogado. O televisor, que
funcionava aos tombos, como tudo nessa casa, deu interferência.
— Move o cabo - ordenou Cristina a Josué.
Ele ficou de pé. Tocou o cabo. A imagem se via, mas a voz ia e
vinha. Lavínia soltou a faca quando Josué golpeou o aparelho e o
ruído que tinha feito a assustou. O sobressalto que acabava de sofrer
lhe tinha deixado à respiração agitada. Odiava a violência com a que
todos ali se conduziam.
— Merda! - exclamou o homem.
— Leve-o a arrumar - respondeu Cristina levemente.
— Dê-me dinheiro.
— Dê-me isso vocês.
Por milagre, a conversação morreu nisso e depois se fez
silêncio, embora Lavínia não soubesse por quanto tempo ia durar.
Josué se sentou. A voz do televisor não soava como em realidade
devida, mas ao menos se escutava. Aproveitando a paz que reinava
entre eles, Lavínia entregou a sua mãe um envelope branco.
— É para as vacinas do Hector - explicou com suavidade,
temendo que o ambiente harmonioso se dissipasse com um suspiro.
— Estamos seis meses atrasados.
Quando Lavínia retornou a sua casa ao dia seguinte, todos já se
encontravam jantando, menos sua mãe, que nunca o fazia. Dirigiu-se
a seu quarto, colocou a roupa esportiva para não sujar a do trabalho
e se sentou à mesa. A comida consistia na mesma mistura do dia
anterior, reaquecida.
Quando se deu conta, o televisor funcionava maravilhosamente.
Josué e sua mãe estavam quietos, aparentemente alegres. Helena
mastigava com seu rosto indiferente, como de costume, e o pequeno
Hector envolvia a mistura com as mãos.
Lavínia sentiu que estava a ponto de explodir, mas atuou com
contenção. Uma terrível sensação de impotência lhe percorreu as
vísceras, e a cena se formou na mente: sem hesitação, ou melhor, ela
exausta do trabalho, foi para a cama, Josué tinha pedido o dinheiro a
Cristina para suas drogas, mas ela, com seu critério tão particular, o
teria convencido de que o melhor uso que se podia dar ao dinheiro de
sua filha era reparar o televisor.
A ninguém nessa casa importava que tivesse passado a última
semana encurvada sobre a máquina de costura. Armando pequenos
trajes de bailarina que de menina sempre tinha sonhado, mas não
tinha tido, para as vacinas de seu irmão. A Cristina só importava que
lhe dessem dinheiro, que logo se deixava tirar por Josué ou utilizava
para algo de seu interesse.
Lavínia sentiu desejos de chorar por seu passado, seu presente
e seu futuro.
Desejando enviar tudo para o esgoto e não olhar para trás.
Josué, sem pudor algum, acendeu um cigarro de maconha.
— Vai fumar lá fora - ordenou Cristina em um insólito ataque de
prudência. Algo servia para armar um problema e entreter um
momento discutindo.
— Fume um - respondeu Josué, irônico. — Não trouxe nada
hoje, Helenita? - perguntou a seguir.
Dirigia-se a sua enteada Helena com ironia. Lavínia, em troca,
tinha conseguido que Josué a respeitasse, ao menos do melhor modo
que Josué Nicanor Perez podia respeitar.
— Eu te dei ontem, você esqueceu? - respondeu sua irmã ao
moreno.
— Lavínia - disse depois a mãe. — A geladeira quebrou outra
vez. Não têm nada hoje?
Tinha. Tinha cobrado o resto do dinheiro por seu trabalho
terminado para o instituto de danças, entretanto, negou-se. Já tinha
deixado a carreira de Desenho de Indumentária no primeiro ano para
levar dinheiro a sua família, teria que se anular mais?
— Não - disse.
Estava farta de que seu dinheiro tivesse um uso egoísta. Ainda
não terminava de digerir que o televisor fora mais importante que as
vacinas de Hector para compreender que também a geladeira carecia
de prioridade frente ao televisor.
— Helenita... - falou outra vez o moreno.
— Disse-te que não! - gritou ela, ao jogar os talheres sobre o
prato e golpear a mesa.
Fora de todo contexto, Cristina soltou uma gargalhada.
— Olhem isso! - exclamou assinalando com o dedo. O televisor
projetava a imagem de uma mulher seminua em um show cômico
que chamava em meio da rua a um senhor. Josué também riu. Riam
aos gritos, com a mesma violência com que sempre falavam.
O telefone soou. Lavínia, que era quem o pagava, levantou-se
para atender. Sentiu vergonha de escutar do outro lado a voz de uma
cliente e de que esta ouvisse as gargalhadas. Para fugir do ruído,
fechou-se no banheiro para falar, que era o cômodo mais afastado da
sala de jantar, embora não conseguisse que os sons se acabassem.
Depois de desligar, saiu e deixou o aparelho em seu lugar.
Voltou para a mesa. Sua mãe reunia os pratos sujos como
demonstração lenta de ociosidade.
Josué bebia a última gota da caixa de vinho. — Traz mais vinho
- ordenou a Cristina.
— Não há mais - respondeu ela, que se tinha aproximado para
passar um trapo úmido à mesa.
— Como que não há mais? - questionou ele como reclamação.
— Por que não comprou?
— Porque faz mais de dez dias que não me dá uma nota -
replicou a mulher enquanto se encaminhava à cozinha.
— Não posso ficar sem vinho - replicou Josué ficando de pé. —
Dê-me dinheiro que vou comprar!
— Não! - ambos gritavam, porque sempre falavam com os
gritos. — Helena... - cantarolou o homem.
— Não me fodas - retrucou Helena, sem apartar os olhos do
televisor. Josué golpeou a mesa.
— Me dê algum dinheiro, caralho!
— Mas é estúpido? - gritou Helena, olhando-o por fim aos
olhos. — Já te disse que não! - e se levantou da cadeira.
Como Lavínia deixou de resistir a discussão, fugiu para seu
quarto. Descarregou toda sua fúria contra uma bolsa de areia que
tinha pendurado entre sua cama e a de sua irmã desde que praticava
boxe em lugar do Taekwondo. Os gritos de sua família e o pranto
desesperado de Hector serviam como música de fundo.
— Cale a boca! - escutou que Josué ordenava ao pequeno, e em
seguida se ouviu um golpe duro e seco.
Lavínia saiu de seu quarto como um redemoinho. Os três
adultos prosseguiam com sua discussão enquanto ela pegava o
menino e se dirigia à porta de entrada. Tomou seu casaco, que estava
pendurado em um gancho na parede, abriu a porta e saiu ao hall.
Todos seus vizinhos, como a grande maioria do bairro, passavam
fumando. Uma jovem de sua idade o fazia na porta de seu
apartamento, que estava frente ao de Lavínia, sem a menor surpresa
pelos gritos que se escutavam inclusive da escada.
Deveria haver-se refugiado em sua loja da Avenida Mitre, mas
estava tão embotada que deixou o bairro e tomou um coletivo até a
capital. Levava o seu pequeno irmão de dois anos nos braços e um
fino casaco como único amparo. Caminhou, aturdida e hipnotizada,
pela Rua Alem, tão fria e escura como ela jamais seria, e passou por
debaixo do enorme pôster de uma obra em construção. Nele se lia
"Hagen e Associados", entre outros dados.
Lavínia se deteve frente a um telefone público, discou 911 e
falou com a operadora.
— Quero fazer uma denúncia por porte e consumo de drogas.
Capítulo 2
No ambiente reinavam a cor, o ruído e o glamour. Um zumbido
constante proferia as luzes policromadas o ar inconfundível de um
cassino.
As mulheres vestiam os mais exóticos e variados vestidos,
enquanto que os homens preferiam o smoking preto. As máquinas
conferiam uma música de fundo que apagava por momentos os
murmúrios dos jogadores e dos curiosos. Em nenhum outro lugar
podiam escutar-se esses sons nem produziam a mesma emoção, a
mesma energia que transmitia a excitação do jogo, das apostas e da
probabilidade.
Apostar era comparável às vezes a fazer amor. Vivificava o
corpo e ordenava à adrenalina que aumentasse o ritmo cardíaco. A
pressão arterial crescia em função do sentimento de expectativa, até
que tudo estalava ou se apagava em um instante: o momento em
que a máquina caça-níqueis acusava seus símbolos graciosos, o
croupier cantava o número da roleta ou acabava a partida de cartas.
O instante em que a vida se resumia a ter ganhado ou perdido uma
aposta. Só uma, a escolhida, a melhor.
Passando pelas mesas de Blackjack e de Pôquer tradicional, um
lugar escondia o pequeno e exclusivo setor dos grandes apostadores.
Cinco homens e um negociante perito no lugar da casa dependiam de
sua sorte. A maioria dos jogadores era de idade amadurecida e
conservavam seus trajes alinhados, enquanto que os dois mais jovens
da mesa já tinham deixado de lado o casaco e a gravata borboleta.
Depois dos naipes, algumas mechas de cabelo loiro escuro
contrastavam com o olhar cinzento que os observava ao mesmo
tempo que os lábios esboçavam um sorriso preguiçoso.
— Royal flush - disse a voz grave e varonil antes de assentar as
cartas em perfeita ordem ascendentes sobre a mesa de pano verde.
Os quatro apostadores restantes e o repartidor ficaram
atônitos. O ganhador respirou profundo. Levava as mangas da camisa
dobradas até metade do antebraço e os dois primeiros botões
próximos ao pescoço desabotoados. O casaco descansava sobre o
encosto da cadeira, e o smoking, no piso.
Logo a notícia se pulverizou como um tornado por todo o
cassino.
— Catalina! - exclamou uma mulher a outra de cabelo castanho
que levava posto um vestido azul. Nesse momento, estirava-se para
colocar algumas fichas no número dez da roleta. — Nick fez uma
royal flush!
Muitas pessoas se amontoaram do outro lado dos vidros para
ver o lugar e ao homem que acabava de ingressar a ser um indivíduo
seleto entre as escassas probabilidades.
A mulher de vestido azul entrou na sala. O guarda de segurança
que cuidava da porta, também vidrado, não opôs resistência. Ela
apoiou as mãos sobre os ombros do grande ganhador e o beijou na
bochecha. Logo observou a jogada, que ainda descansava sobre o
pano verde. Possivelmente esperava converter-se na relíquia do
Paradise, o cruzeiro dentro do qual se achava aquele cassino. Ele
sorriu.
— Vou comprar este lugar - pensou em voz alta. Era uma ideia
que lhe rondava a cabeça fazia muito tempo e que havia se
entranhado mais nele desde que soube que o Paradise estava à
venda.
Nicolas Larrazábal Hagen foi o tema favorito de conversação até
altas horas da madrugada.
Seu nome permaneceu nos lábios de todos os associados com
seu feito, porque acreditavam que era um homem de sorte e um
estrategista. Ninguém sabia que ele tinha a sua própria deusa.
Atrás tinha ficado o ruído de máquinas caça-níqueis e das
conversações. Na amurada do cruzeiro, reinava um harmonioso
silêncio que se combinava com os vaivéns do oceano, quão mesmos
balançavam a embarcação sem que esta oscilação resultasse
perceptível para os que estavam a bordo.
O corpo forte e capitalista de Nick aprisionava o da mulher de
vestido azul contra o corrimão, conseguia excitá-la com cada suave
movimento. Catalina pensava que ele a satisfazia no sexo, mas tinha
bem claro que jamais conseguiria fazê-lo apaixonar-se, por isso era
mais fácil manter as coisas assim, no prazer.
Era impossível não desejá-lo. Nick era um homem que passava
dos trinta anos, de olhos de uma estranha tonalidade entre cinza e
azul e cabelo loiro escuro. A profundidade de seu olhar encerrava um
ar misterioso que mais de uma mulher tinha tentado desvendar,
todas sem êxito.
Catalina, em troca, tinha muito claro que nada lhe interessava
dele mais que sua companhia. Era bom na cama e na vida, isso lhe
bastava. Ou não, nunca era suficiente se não se obtinha o coração
desse homem de gelo e fogo, mas ela sabia desde o primeiro dia que
fracassaria, por isso o aceitava. Por essa mesma razão, o sutil
rechaço que ele sentia por ela fora dos encontros íntimos não a
inclinava a retirar-se. Além disso, era arrumado, sensual, irresistível,
qualidades que funcionavam como um ímã.
Eles mantiveram seus copos de champanhe levantados.
— A sério pensa comprar este navio? - perguntou ela,
sorridente, passando seu olhar pelo corpo esculpido e generoso de
seu acompanhante.
Nick, que até esse momento tinha o olhar perdido nas ondas
escuras do mar do Caribe, fixou os olhos, os mesmos que durante a
noite competiam com a cor daquelas águas, nos da mulher com a
qual compartilhava sua viagem.
— Poderia me dar esse gosto - refletiu com serenidade. Bebeu
de um só gole o resto de champanhe de sua taça e logo a jogou no
mar.
— Faz muito tempo que não me dou algo de presente.
Catalina Lowenstein soltou uma gargalhada febril e sonora.
— Você sim sabe presentear-se! - exclamou. Bebeu também o
resto de seu champanhe e olhou maliciosamente pela taça, logo a seu
companheiro.
— Posso? - perguntou.
Respondeu-lhe com um leve gesto afirmativo feito com a
cabeça, então ela também atirou a taça ao mar.
Seis meses depois, aquele imenso navio, com seu cassino a
bordo, era dele, e já tinha sido transladado ao Terminal Quinquela
Martíni, recém-inaugurado em Buenos Aires. Nick confiava em que os
cruzeiros, agora que podiam entrar em sua cidade natal,
convertessem-se em um bom negócio do qual ele seria um pioneiro
local.
Claro que para obter à mulher de vestido azul não tinha tido
que esperar tanto tempo. A mesma noite em que decidiu comprar
essa embarcação, a bonita Catalina Lowenstein se converteu em sua
amante de volta. Um turno muito curto pensou Nick, pois não queria
saber dela mais que para seus propósitos durante essa viagem.
Seis meses depois da compra milionária, a vida lhe deu uma
cartada - não soube se boa ou má - e ela voltou a ser sua amante.
Com a mulher ainda recostada sobre seu peito nu, Nick pensou
que a situação se parecia muito a essa primeira noite que tinham
estado juntos. Depois de tudo, essa era apenas a segunda
oportunidade em que faziam amor, porque logo depois de fazê-lo pela
primeira vez não havia tornado a vê-la até a madrugada anterior, na
festa de inauguração de seu novo investimento. O Paradise, aquele
majestoso navio que tinha passado a formar parte do seleto grupo de
homens que foram todos por sua boa fortuna, era seu próprio.
Quase amanhecia e ele não havia dormido. Por sorte, porque
soou o telefone e de qualquer modo o teria despertado.
— Tem que vir com urgência - disse a voz do outro lado da
linha.
— O que aconteceu? - perguntou ele enquanto esfregava a
cara. Ainda estava com um pouco de ressaca.
— Ao menos tem que vir um de vocês dois - a voz se referia a
ele ou a seu sócio, que o acompanhava na ocasião da inauguração. —
A obra no Alem pende de um fio.
Nick se sentou. Catalina protestou e se envolveu sobre si
mesma, dormindo.
— O que significa isso? - perguntou Nick a seu interlocutor.
— Que o resultado da inspeção foi terrível, e querem cancelá-la.
Nick abandonou a embarcação no porto seguinte, que resultou
ser Baía de Salvador e tomou um avião para Buenos Aires. Catalina,
em troca, seguiu sua viagem no imponente cruzeiro até a costa de
Búzios e Santos. Para ela, Nick era um homem atento e generoso,
embora notasse que ele pouco importava o que fizessem suas
amantes, porque estava certa de que ela não era a única. De todos os
modos, não tinha esboçado desejos de acompanhá-lo em sua viagem
de volta a Buenos Aires, pois sabia que depois de assentar um pé em
terra firme, a atenção que ele pudesse lhe oferecer seria nula. Então
preferiu seguir viagem, desfrutar daquele agradável estilo de vida e
possivelmente voltar a ver Nick em outra ocasião fortuita. Depois de
tudo, ele jamais a tinha visitado em Pilar, onde ela vivia. Seu pai
tinha uma construtora, igual a de Nick, na capital. Apesar de
corresponder ao mesmo item, ambos os homens se viram poucas
vezes cara a cara, e ela era consciente de que um velho rancor os
inimizava. Entretanto, a paixão de Nick era tão arrasadora que lhe
tinha sido impossível resistir. Depois de tudo, seu pai não tinha por
que inteirar-se.
Diferente de Catalina, Pablo Díaz, seu sócio, decidiu
acompanhar Nick, já que considerava que os dois eram responsáveis
pela obra. E assim empreenderam a volta.
Um ano depois.
Naquela manhã, o sol estava brilhando com exclusividade. De
qualquer forma, não demorou muito para Nick ficar de bom humor.
Estacionou a caminhonete preta na Cidade Universitária, onde
funcionava a Faculdade de Arquitetura, Desenho e Urbanismo, no
pavilhão III. Diante do grande edifício, os jovens iam e vinham com
seus livros e mochilas. Caminhou até ali, subiu com agilidade as
escadas e se dirigiu à sala de aula. Levava a jaqueta desabotoada, e
tinha deixado a gravata no assento traseiro de seu veículo.
Quando entrou no recinto, os murmúrios cessaram, e o jovem
que mostrava uns cálculos no enorme quadro-negro calou.
— Olá, Sérgio - saudou Nick ao moço enquanto se sentava
sobre o escritório sem mais preâmbulos. — Importa-se de continuar
depois? Tenho os segundos contados.
— Claro - respondeu o jovem com respeitosa obediência. Para
não lhe fazer perder tempo, sentou-se junto a uma mulher e a outro
moço a um flanco do salão.
— Quando foi a última vez que nos vimos? - perguntou Nick aos
alunos. Franzia o sobrecenho. Isso indicava o que ele pensava,
enquanto inibia a mais de uma aluna de fazer o mesmo. Seu rosto
era muito expressivo, tinha gestos que eram sedutores até fora de
sua vontade.
— Faz quinze dias - respondeu a mulher do trio de
colaboradores ante o silêncio do resto.
Nick não aparecia seguido pelas classes, que ficavam em mãos
de substitutos e ajudantes, porque passava a maior parte do tempo
ocupando-se de seus projetos empresariais, em viagens de negócios
ou mesmo de prazer.
— É tempo de começar o novo projeto - continuou depois da
resposta, a qual agradeceu com um ligeiro assentimento. — Alguém
que não seja um de meus altruístas colaboradores sabe qual é a
próxima grande inauguração que promete minha empresa? - fez-se
silêncio.
— Vamos! – insistiu ele então - não têm que fazer nenhum
cálculo é só ler os jornais.
Uma aluna levantou a mão com acanhamento.
— Sim! - exclamou Nick, com o explosivo e sensual sorriso que
sempre o caracterizava, que às vezes emudecia as alunas e
acovardava aos varões.
— A clínica da Rua Alem - respondeu a garota em voz muito
baixa.
— Isso mesmo, ele concordou. E você vai fazer o mesmo que
eu. O projeto no próximo ano consiste no desenho e cálculo da
renovação de um edifício antigo em desuso para a construção de um
hospital privado.
— Professor - levantou a mão um jovem. Todos falavam mais
rápido em presença do professor titular de uma das cadeiras de
Estruturas mais concorridas. Nicolas Larrazábal Hagen conseguia
acelerar o tempo a todo mundo.
— Sim.
— Em quanto tempo?
— Têm oito semanas a partir de hoje - respondeu ele. — Não
pode haver equívocos. Podemos perdoar o esquecimento de algum
detalhe, mas sabem que há enganos imperdoáveis. Estão avançados
na carreira, há certas questões que não entram em discussão.
— Algo mais?
— As características... - começou outro. Ele o interrompeu.
— Meus colaboradores deixarão todo o material na
fotocopiadora de sempre.
A mulher do trio de ajudantes tomou nota em um caderno.
Acabava de inteirar-se de algo que desconhecia.
— E a parte de desenho? - demarcou mais alguém. — Você nos
dará orientações?
— Como sabem, o trabalho é em colaboração com uma das
cadeiras de Arquitetura - explicou Nick em resposta.
— É requisito consultar a mais de um docente para obter uma
visão acabada do projeto. A ideia não é que desenhem ou calculem,
mas sim ambos os conceitos funcionem como um conjunto. Arte e
razão, razão e arte. Não existe desenho sem cálculo nem cálculo sem
desenho. De nada me serve que uma estrutura se sustente se o
edifício é um quadrado insípido e disfuncional. Como alunos da
carreira de Arquitetura, seu trabalho final tem que ser perfeito. E
como meus alunos, seus trabalhos têm que ser os melhores.
Às vezes parecia esquecer que existia a humildade, entretanto
sempre contagiava a todos com seu bom humor, por isso suas
brincadeiras, arrogantes ou não, caíam em graça. Alunos e ajudantes
riram em uníssono depois daquela insinuação.
Nem bem saiu da universidade, dirigiu-se a seu escritório.
Entrou na sala de seu sócio, que nesse momento trabalhava sobre
uma enorme mesa junto a outros dois homens. Ao vê-lo chegar,
Pablo se aproximou.
— Vamos na caminhonete - comentou Nick, pretendendo que o
outro adivinhasse do que lhe estava falando.
— Aonde? - Pablo tinha esquecido a bola de cristal, que era
necessário se quisessem seguir a velocidade avassaladora que
sempre usava Nick.
— Você disse que você estava indo conseguir o endereço do
designer, esclareceu o seu parceiro no momento em que cavou com
as mãos nos bolsos em busca de seus cigarros.
Nick nunca se detinha em fazer uma única coisa, sempre estava
nascendo ao menos duas, como se desejasse ocupar cada fragmento
de seu tempo, por mais breve que este fosse sem pausas.
— A partir de Margarida Farias? - indagou o sócio. — Isso não é
problema! Temos o problema em Alem outra vez.
— Outra vez? - Nick ao fim o olhou. — Vamos mandar o
advogado e pronto.
— Não me parece o mais apropriado. A inspeção voltou a ser
bastante negativa, parece que nossas normas de segurança não
coincidem com o código legal.
— Estou farto de ler esse código de merda. O que acontece com
essa avenida? - gritou Nick.
— Cada vez que fazemos algo lá, cai-nos uma inspeção. Deve
ser maldita.
— Traz a direção do designer, que pode passar por lá depois de
arrumar esse assunto dos inspetores - determinou.
O pequeno escritório de inspeção governamental estava lotado
de gente. Nick não esperou. Avançou até os escritórios, esquadrinhou
com o olhar e escolheu sua presa: estava seguro de que com a
senhorita do posto número dois obteria bons resultados. Apoiou-se
com obscenidade sobre o mostrador e saudou.
— Olá - disse. Sua voz era uma arma poderosa: grave, rouca e
muito varonil.
Soube que tinha causado o efeito desejado na moça porque por
um segundo seu olhar de mel brilhou. Além disso, o impacto a tinha
deixado algo nervosa.
— Sim? - ela o olhou, questionando.
Nick soube que tinha triunfado: outra empregada já o tinha
enviado para a fila. Além disso, ele ainda permanecia com sua
ferramenta mais poderosa: um sorriso. Acabava de utilizar o olhar e
não era consciente que ainda lhe restava a voz.
— Inteirei-me de que seus inspetores andaram em minha obra
e me perguntava se estará livre no fim de semana - deslizou com o
passar.
A garota riu e baixou as pálpebras; outro efeito causado por
Nick.
— Sobrenome do titular da obra? - perguntou ela com voz
melosa.
— Hagen e Díaz - a voz de Nick não mantinha muito longe o
ritmo da menina, mas fingia. A menina mexeu um arquivo. Extraiu
uma pasta e a abriu.
— Aparentemente vários de seus trabalhadores não tem
proteção adequada - comentou.
— Deixe-me explicar - interrompeu-a Nick, jogando um sorriso
que causou na jovem um súbito e ligeiro rubor.
— A empresa encarregada da segurança trabalhista é
terceirizada e...
— E vocês deveriam controlar melhor o trabalho de seus
subcontratados - interrompeu-o a senhorita enquanto enroscava uma
mecha de seu cabelo escuro no dedo indicador.
Por um momento, Nick pensou que possivelmente tinha errado
em seu cálculo. Já tinha gasto o sorriso, só lhe restava apelar a sua
boa sorte. Umedeceu os lábios, inclinou a cabeça e baixou o olhar um
instante.
— Faremos isso - assegurou voltando os olhos para ela. Isso a
fez enrugar a testa, obrigando à empregada a engolir em seco.
— Só me diga o que posso fazer para evitar um encerramento.
Dessa maneira teria a oportunidade de controlar os meus
subcontratados e mostrar que aprendemos a lição.
Aqueles olhos cinzentos e vaidosos, assim como aquele
masculino sorriso e os gestos sedutores, acabaram por fim com todas
as barreiras morais e femininas da mulher.
— E você é... - arriscou elevando uma sobrancelha.
— Nicolas L. Hagen - acrescentou Nick com estranha
intensidade na voz.
Ele não gostava de pronunciar seu nome, inclusive que o
chamassem "Nico", que recordava a "Nicolas", por isso se fazia
chamar "Nick". Além disso, omitia seu primeiro sobrenome sempre
que podia. A pesar do esforço que sempre lhe supunha nomear a si
mesmo, sustentava um olhar tão intenso que tinha conseguido
ruborizar a funcionária.
— E o outro titular da obra é... - arriscou ela.
— Pablo Javier Díaz, meu sócio - disse Nick sem lhe dar
oportunidade de ordenar seus pensamentos.
— E o procurador da empresa é... - aquilo deixava de ser um
interrogatório de rotina.
— Eu - acrescentou Nick com desfaçatez. — Sou o dono.
A moça, encantada com o visitante, elevou o olhar para ele.
Ainda se desenhava um sorriso em seus lábios rosados.
— É você o arquiteto? - perguntou, divertida, sem se importar
se ele se dava conta ou não de que o que ela procurava era lhe
surrupiar seu nome, seu nível econômico, sua profissão, e não seus
vaivéns legais.
— O engenheiro - repôs, como se a conhecesse de toda a vida.
— É você a encarregada de pôr um preço a meu negócio? - a
jovem sorriu, e Nick compreendeu que era o momento justo para
colocar sobre o balcão os dois bilhetes brancos. — Que tal duas
passagens para um cruzeiro até o Nordeste do Brasil? Punta de Leste,
Salvador, Búzios...
Nesse momento, Nick parecia um executivo de vendas de uma
companhia de turismo. E um muito bom, posto que o rosto da jovem
mulher se iluminou com um sorriso ambicioso. Depois, ela mordeu a
borracha do lápis.
— E você vai estar a bordo? - perguntou. Ele resultou ainda
mais favorecido em sua segurança com a sensação do triunfo.
— Isso teria outro preço... - brincou. Era consciente de que
levava a dianteira.
A moça marcou umas quantas cruzes em um papel e depois
colocou a pasta em uma caixa, apoderando-se em troca dos dois
bilhetes brancos.
— Não poderei ajudá-lo da próxima vez – disse. — Procure não
cometer o mesmo engano.
— O farei - prometeu ele. E isso foi tudo.
Quando Nick retornou ao veículo, Pablo esperava alguma
informação a respeito da inspeção com olhar ansioso. Em troca, seu
companheiro perguntou:
— Trouxe o endereço?
— Não vai me dizer o que se passou aí dentro? - inquiriu seu
amigo.
— Ah, sim - respondeu ele, como se nada tivesse acontecido. —
Dei uns bilhetes para o Paradise à senhorita do posto dois.
Pablo arqueou as sobrancelhas.
— E o encerramento? - perguntou.
— Que encerramento? - respondeu Nick, ao qual Pablo soltou
uma gargalhada.
— Você sim que têm sorte! - exclamou o homem, feliz porque o
problema se resolveu tão rápido.
— Às vezes duvido que se trate de boa sorte... - corrigiu Nick
com ar reflexivo e os olhos entrecerrados. — Mas bem acredito que é
uma questão de estratégia - produziu-se uma pausa verbal em que
girou a chave na ignição.
— E a direção? - perguntou depois.
Pablo enfiou a mão no bolso de seu casaco, manipulou seu
smartphone e leu em voz alta o que havia ali escrito.
— Tem certeza? - perguntou Nick depois de escutar o endereço.
— Sim.
— Desse lado da ponte? - Nick não podia acreditar, já que se
tratava de um bairro muito diferente do que podia habitar uma
designer de alta costura, segundo seus conhecimentos.
— Ouvi dizer que não é um bairro muito exclusivo - admitiu
Pablo, refletindo aquilo no momento - mas já sabe como são essas
designers excêntricas...
— É Província, e uma zona onde no máximo vamos encontrar
negócios coreanos.
— Não seria a primeira artista cujo ateliê está localizado em um
bairro dos subúrbios... Não te parece?
Nick riu.
Capítulo 3
Lavínia abriu a porta de seu ateliê. Era pequeno, mas dava para
a rua Mitre e estava localizado no centro da Avellaneda. Nada tinha
lhe servido bem.
Assim que entrou, acendeu as luzes e abriu as cortinas.
Respirou por última vez o ar matinal de seus sonhos e até lhe
pareceu que podia começar a chorar pela despedida. Se não
acontecesse um milagre - que jamais aconteciam a ela - essa seria a
última manhã que abriria seu ateliê.
Seguindo seus passos apareceu uma menina morena.
— Bom dia, Lavi! - saudou. Lavínia, que colocava um delicado
arco às cortinas azuis, respondeu à saudação.
— Bom dia. Já passou a dor de cabeça?
— OH, sim! - exclamou a outra. — Essa aspirina que me deu é
muito boa. E você? Terminou o traje da senhora Rita? Disse que
passaria hoje às dez.
— Hoje não, sexta-feira - argumentou Lavínia com serenidade.
— Hoje.
— Hoje é quinta-feira - replicou a loira.
— Pensa passar hoje às dez - insistiu a moça. Lavínia
permaneceu um instante em silêncio.
— Oh, não! Exclamou com tristeza. Eu tinha tantas coisas na
minha cabeça que tinha confundido a data de entrega do vestido da
Sra. Rita, como a mulher se fazia chamar. Nada de Rita ou
Sra.Gimenez. Sra. Rita.
Lavínia se instalou imediatamente diante da máquina de
costura, disposta a cumprir o antes possível com o prometido a sua
cliente. Era muito responsável.
Umas horas mais tarde, dois clientes interromperam a tarefa
das amigas.
— Senhores - disse a morena com respeitosa segurança quando
Nick e Pablo entraram na loja de cristaleira branca que rezava o nome
de Sonhos.
— Procuramos Margarida Farias - falou Pablo.
Enquanto isso, Nick olhava os objetos que se encontravam
pendurados contra a parede, detrás deles. Todos tinham um desenho
pessoal e distinto, nenhum se repetia. Além disso, revisava os
acabamentos, todos polidos e perfeitos, mas sem signo algum de
vaidade. Nick era muito detalhista, por isso era um engenheiro tão
bom.
A jovem arqueou as sobrancelhas.
— Margarida Farias? - repetiu.
— A designer - esclareceu Pablo. — Necessitamos que nos
confeccione um traje a cada um com urgência.
A morena solicitou aos homens que a aguardassem um
momento e se dirigiu para o fundo do local com passo apressado. Do
outro lado do cortinado azul, falou com Lavínia em sussurros.
— Lá fora há dois tipos com muita classe que procuram uma tal
Margarida Farias.
Lavínia não abandonou sua tarefa na máquina de costurar.
Tinha que entregar o vestido à senhora Rita em seguida.
— E o que? - respondeu sem dirigir o olhar a sua amiga. —
Diga que não é aqui e ponto. Esclareça que não temos ideia de onde
é se por acaso perguntarem.
— É que parece que essa tal Margarida Farias também é
designer.
— Mas estão equivocados, não conhecemos ninguém com esse
nome - repôs Lavínia, concentrada no que fazia.
— Suponho que estão dispostos a pagar o que for...
Lavínia teve pouco tempo para pensar. Parou a máquina, deteve
as mãos sobre o tecido e se virou para sua melhor amiga, que nesse
momento lhe dedicava um olhar malicioso.
Nunca tinha feito algo como isso: mentir, usurpar a identidade
de alguém, mas se deu permissão de fazê-lo pela primeira vez. Além
disso, necessitava do dinheiro. OH, quanto o necessitava! Um olhar
intrigante lhe iluminou o rosto.
— Eu cuido – anunciou - depois de tudo, amanhã já não
estaremos aqui.
Aquilo tinha adicionado em tom desanimado, mas não
permitiria que a vida a acovardasse. Jamais o tinha feito e não
pensava começar nesse momento. Ficou de pé com decisão e saiu do
quarto de costura.
Quando as cortinas azuis se abriram, Nick virou-se e deu um
passo para frente, enquanto sua respiração ficou suspensa.
Nunca tinha imaginado que desse local sairia a criatura mais
linda que ele jamais tinha visto. Foi tal a impressão que levou, que
tudo pareceu transcorrer em câmara lenta.
Ela vestia uma roupa da mesma cor azul marinho que os
cortinados de seu local e levava o cabelo loiro preso em um coque.
Algumas mechas soltas emolduravam seu rosto pálido de bochechas
avermelhadas e nariz pequeno. Tinha os olhos grandes e verdes,
impregnados de um brilho enigmático.
Lavínia também sentiu o mesmo comichão intenso no estômago
que Nick, quando o sentiu em seu próprio corpo, tinha sabido apagar
com rapidez. Nunca tinha imaginado que um homem tão arrumado e
distinto pudesse cruzar alguma vez a soleira de seu pequeno negócio
em falência. Um homem de cabelo loiro escuro, olhos de uma
estranha tonalidade entre o azul e o cinza, e um rosto privilegiado.
Levava o cabelo curto, entretanto se notava que algumas mechas
úmidas tinham sido desordenadas de maneira voluntária. Lavínia, que
estava acostumada a reparar nos detalhes antes que no conjunto,
concentrou a atenção em seu nariz. Era um nariz perfeito, que
anunciava uma sensualidade avassaladora quando os músculos
daquele rosto admirável se relaxavam, ou quando os lábios de
grossura também perfeita se curvavam em um sorriso. Parecia
mentira que um nariz pudesse dizer tanto, que um rosto era
objetivamente tão bonito.
Nesse caso, Lavínia reconheceu que o conjunto que poucas
vezes admirava era em boa parte responsável pelas percepções que
geravam os detalhes. Aquela beleza se complementava com os
gestos e o que escondia o olhar, qualidades que esse homem não
sabia que lhe pertenciam.
Ele levava o casaco aberto, assim também como os botões
superiores da camisa branca, na qual lhe dava um ar despreocupado
que contrastava com uma expressão de poder e de responsabilidade.
Pablo, por outro lado, mantinha o terno ordenadamente, tinha a
aparência de ser o que mostrava. Nick parecia o que desejava ser,
mas era o que não desejava mostrar.
— Margarida Farias? - perguntou Pablo com gesto apressado.
Os instantes de silêncio que tinham decorrido desde que aquela
moça, tão diferente da designer que ele tinha imaginado, tinha
aparecido, pareceram-lhe eternos. Era estranho que o mesmo Nick
não tivesse apressado o assunto e que em troca a tivesse deixado
chegar até eles antes de emitir alguma palavra, e mesmo assim,
ainda se achava em silêncio, por isso tinha atacado ele.
Lavínia também pensou que quem falaria seria o outro homem,
que estava observando-a, mas isso não aconteceu. Para a pergunta
do sujeito, sentiu vergonha ao pensar que lhe mentiria, mas
tampouco se atreveu a dizer a verdade. Se ela não necessitasse do
dinheiro com tanta urgência, possivelmente lhes tivesse indicado que
nem sequer conhecia esse nome.
— Sim, sou eu - respondeu sucintamente, e estreitou a mão
que o primeiro homem lhe oferecia.
Pablo notou que a palma da mão da jovem se encontrava
molhada, mas não interpretou que se devia a que ela ficara nervosa
com a mentira.
— Meu nome é Pablo Díaz – explicou - e este é meu sócio,
Nicolas Hagen.
Lavínia posou seus olhos naquele belo e masculino rosto de
novo. Descobriu que o tal Nicolas lhe tinha enterrado seu profundo
olhar azul, como se soubesse que ela mentia, mas se convenceu em
seguida de que isso era impossível. Saudou-o com uma leve
inclinação de cabeça e virou o olhar rápido, antes de ruborizar-se por
completo. Lavínia estava segura de que esse homem não era
consciente de quão poderosa resultava sua habilidade inata para a
sedução.
— Necessitamos que nos confeccione um terno a cada um para
sábado - explicou o tal Pablo.
— Para sábado? - Lavínia soube imediatamente que jamais
poderia terminar dois ternos novos dentro de dois dias. A tal
Margarida Farias devia ter muitos ajudantes se oferecia esse serviço.
— Infelizmente, neste caso só posso lhes oferecer algum que já
tenha pronto, se houver algum de seu tamanho.
— Não pode nos fazer dois ternos para sábado à noite? -
insistiu Pablo.
Lavínia se esforçava para não olhar ao outro sujeito, o qual lhe
exigiu um esforço sobrenatural. Estava segura de que esse homem
misterioso estava acostumado a monopolizar a atenção de todos.
— Nós gostamos dos objetos feitos sob medida.
— Desculpe, mas não - negou-se. Não podia lhes mentir sobre
isso também e lhes entregar ternos já confeccionados fingindo que
eram sob medida. Além disso, no sábado já teria fechado o negócio.
Pablo girou a cabeça em direção a seu amigo.
— Nick? - indagou. Mas Nick não iniciou nenhuma conversa com
Pablo, mas sim se dirigiu a Lavínia pela primeira vez naquela
conversação.
— Está bem, senhorita Farias, nos mostre o que tem - pediu
amável, mas muito seguro.
Lavínia estremeceu com essa voz masculina e clara, cheia de
poder. As notas de tensão que não passaram despercebidas para
Pablo, que costumava ouvir um Nick despreocupado e leve, mesmo
nas situações mais difíceis eram indistinguíveis para ele.
Lavínia assentiu com cortesia e tomou o metro de cinta para
dedicar-se a medir ao homem que tinha falado primeiro. Anotou os
números em um papel e tomou uma funda baforada de ar que lhe
serviu para dar-lhe forças antes de encaminhar-se ao segundo.
Rogava ao céu não ficar vermelha quando se encontrasse o
suficientemente perto para sentir seu perfume.
Ela deu dois passos para o lado, engoliu com força e levantou
os olhos para Nick. Frente a frente, ele era vários centímetros mais
alto que ela, e estando perto, Lavínia se deu conta de que seu
perfume tão temido invadia aquele setor do lugar. Seu olhar a
atravessou como uma flecha, lhe acelerou o coração a um ritmo
inusitado e lhe provocou um ligeiro tremor nas extremidades. Eram
sensações que jamais tinha experimentado, porque nunca se havia
sentido tão atraída por nenhum homem, e nenhum que ela tivesse
tido a oportunidade de experimentar era subjetivo e objetivamente
tão atrativo como esse.
Incapaz de controlar sua vontade, reparou de novo em todos os
detalhes de seu belo rosto, na aura de sensualidade que o rodeava,
nos mistérios que escondia seu olhar. Não tinha ideia de como faria
para emitir palavra.
— Seria tão amável de... - começou. Quase parecia não
recordar o vocabulário.
Ia pedir lhe que ficasse de costas para poder tomar as medidas,
mas nesse momento viu por cima do ombro de seu cliente a figura da
senhora Rita, que cruzava a rua com passo acelerado. Sentiu o
sangue borbulhando nas veias, pressentia a vergonha de sua vida.
Desculpou-se com rapidez e fugiu para o outro lado do
cortinado azul para lançar-se imediatamente sobre sua amiga, que
pregava botões frente à máquina de costurar.
— Tami! - exclamou, graças ao qual obteve a atenção da
morena até antes de apoiar suas mãos sobre a mesa da máquina. —
A senhora Rita se dirige para o ateliê e eu tenho que sair com estes
dois. Encarregue-se dela, por favor, e certifique-se que não lhe
escape meu nome. Não quero passar a vergonha de minha vida.
Tamara atravessou o cortinado atrás de Lavínia justo no
momento em que a mulher entrava no local. Era nada mais que uma
vizinha do bairro, mas seu terno falsamente exclusivo e seu pequeno
caniche branco lhe faziam parecer uma dama com um ligeiro
problema de orgulho.
— Vim buscar meu vestido - disse sem se importar com os
clientes que se achavam ali antes de sua chegada.
— Me siga senhora Rita - apressou-se a intervir Tamara, sem
lhe dar lugar a outra negativa.
Nick olhou à mulher de cima abaixo. Parecia a ponto de tornar-
se a rir porque duas pequenas covinhas se formaram sobre os cantos
de sua boca. Deu-se conta de que Lavínia respirava com agitação e
de que se pôs muito rígida. Podia sentir o motivo, mas não fez
referência alguma a isso enquanto permaneceu no interior do ateliê.
Ele umedeceu os lábios, e seguiu a figura da senhora Rita com a
cabeça inclinada para baixo, os olhos cinzas fixos nela, a frente
enrugada e as mãos nos bolsos.
A senhora Rita foi virtualmente arrastada por Tamara para o
outro lado do cortinado, onde sua voz já não seria audível para o
resto das pessoas porque Tamara a obrigaria a falar em sussurros.
Enquanto isso, Lavínia recuperou sua respiração e avançou para
Nick com a fita métrica.
— Dê a volta, por favor - pediu. Soou compungida, de fato o
estava. Queria que tudo isso acabasse o mais depressa possível, já
não suportava a pressão nem a culpa que sentia.
Quando Nick cumpriu com o pedido, Lavínia sentiu que todo o
ar que tinha recuperado a abandonava de novo. Aquelas largas costas
cobertas por um casaco preto de qualidade assombrosa a deixou
emudecida. O aroma daquela pele a cegava, a imaginação a
retumbava.
Ficou nas pontas dos pés e mediu os ombros, logo o quadril.
Um suave calor lhe invadia as bochechas e seu corpo parecia flutuar
leve, entre as nuvens.
— Acredito que tenho os ternos perfeitos para vocês - anunciou
assim que conseguiu articular palavra. Recordou que tinha dois ternos
porque os tinha preparado como amostras que jamais aceitaram em
nenhum local. Justo dois trajes dessas medidas! Parecia mentira que
tivesse tanta boa sorte, sem dúvidas um deus que não era o seu
tinha entrado em sua loja.
Nick deu a volta e enterrou seu olhar cinza nela sem a menor
cerimonia. Era consciente de que punha nervosa a designer, e embora
estivesse acostumado a produzir esse efeito em muitas mulheres,
desta vez foi difícil, quase irritante. Ela era bonita, mas por mais
estranho que pudesse ser, não desejava seduzi-la. Nem sequer ele
entendia o que lhe estava acontecendo.
Lavínia se encaminhou aos ternos que se achavam em uma
prateleira e começou à busca dos ternos que tinha pensado para cada
um dos homens. Enquanto isso, do outro lado da cortina, a senhora
Rita se olhava no espelho com seu vestido novo.
— Chame Lavínia - ordenou a Tamara uma vez que estudava a
imagem que lhe refletia no espelho. — Quero que me levante um
pouco mais as alças.
A senhora Rita não falou em sussurros, como Tamara esperava,
mas por milagre não se escutou sua voz do outro lado da cortina.
Aproximou-se de sua amiga justo quando esta procurava os ternos
prometidos e lhe aproximou do ouvido.
— Se não quiserem que a velha louca saia gritando seu nome,
vai ser melhor que venha.
Tamara girou a cabeça para os dois estranhos e lhes dedicou
um meio sorriso nervoso que não recebeu como resposta mais que
um olhar de impaciência por parte de Pablo. Nick estudava o
mostrador, mas até de costas a morena pensou que era o homem
mais atrativo que tinha visto em sua vida, depois de seu namorado.
Lavínia suspirou. As mãos lhe tremiam sobre uma das mangas
que tinha obstinado enquanto escutava a sua amiga. Pensava que
existiam no mundo muitas pessoas mentirosas, que enganavam todo
o tempo a outros, e ela, que nem sequer tinha mentido nunca para
ocultar uma travessura, sem dúvidas seria descoberta a primeira vez
que se atrevia a algo como isso.
Tampouco acostumava trabalhar de modo tão irresponsável,
atendendo a vários clientes de uma vez, o qual também pesava em
sua consciência. Desprendeu os dois ternos, girou sobre os
calcanhares e os ofereceu aos homens. Era tão má mentirosa, que
até ela notou que queria acabar com aquela encruzilhada muito
rápido.
— Aqui esta - disse ela. — Podem experimentar; se tiverem
alguma dúvida, ou se desejarem alguma outra coisa, por favor,
façam-me saber.
Abandonou os ternos sobre os braços estendidos de Pablo e
fugiu com sua amiga ao outro lado do cortinado. A senhora Rita a
entreteve, pretendendo que se dedicasse exclusivamente a ela, antes
que aos outros clientes que ela parecia não notar que tinham
chegado primeiro. Com a paciência que a caracterizava, Lavínia a
convenceu de que relaxasse e tomasse assento enquanto ela se
desfazia desses dois indesejáveis.
Quando voltou para o pequeno salão de vendas, encontrou a
ambos os homens junto à caixa registradora. Os plásticos que
protegiam os ternos não tinham sido removidos, e os dois pareciam
esperar para partir.
— Bem? - viu-se obrigada a perguntar. — Não os provaram
ainda?
— Não o faremos - repôs Pablo. — Meu sócio diz que você tem
um olho clínico, levaremos estes.
Se não tivesse ouvido quando ele pediu a ela para mostrar a
eles o que tinha, Lavínia teria pensado que Nick era burro ou pouco
distraído, impaciente ainda, agora se divertia assistindo as prateleiras
com as mãos nos bolsos.
Tinha um ar disperso, fugaz, e Lavínia soube que aquilo
significava que jamais o veria de novo. Estirou um pouco o pescoço e
desfrutou de sua atrativa figura por sobre o ombro de Pablo um
pouco mais.
— Trabalha com cartão de crédito? - indagou o tal Díaz. Lavínia
voltou para a realidade só para lhe responder.
— N... não - balbuciou.
— Não há problema, então lhe pagamos em dinheiro.
— Posso lhes fazer um desconto, se quiserem - esforçou-se por
consolá-lo. Estava acostumada a fazer descontos às pessoas que
compravam em seu negócio, só para que voltassem, mas se estava a
ponto de falir era evidente que seu plano comercial não tinha dado
resultado. Esses dois em particular, tampouco tinham pinta de
necessitar de cotas ou descontos.
Pablo o fez evidente soltando uma risada. Agora também levava
ele as mãos nos bolsos da calça e se balançava com impaciência.
— Não vai fazer falta - acabou por responder. — Quanto é?
— Bom - disse ela - por ser a primeira compra - "e a última",
pensou com tristeza - faço-lhes um desconto de todos os modos. São
trezentos e trinta cada um.
Cada um dos homens extraiu quatrocentos euros da carteira,
enquanto ela fazia com dedicação os pacotes com a compra. Uma vez
que tinha acabado os entregou e recebeu o dinheiro por seus
serviços. Pablo aguardava pelo troco, um troco que Lavínia não tinha
ideia de onde ia tirar, pois não tinha vendido nada naquele dia. Nick
caminhou até a porta.
— Guarde o troco.
Foi tudo o que disse antes de sair do local, sem sequer olhá-la
aos olhos. Atravessou a saída muito rápido, como se tivesse estado
esperando o momento de sair correndo dali. Pablo não teve outra
opção a não ser segui-lo, Nick se movia tão veloz que custava ir atrás
de seus passos. O desgraçado sempre acabava dando a volta ao
mundo.
Lavínia permaneceu pasmada um momento, observando o
fantasma do corpo daquele homem ainda em seu salão. Ao mesmo
tempo, uma estranha sensação de solidão e vazio lhe invadiu o
coração, que ainda pulsava a ritmo acelerado. Quase sentia desejo de
chorar, possivelmente porque tinha a sensibilidade à flor da pele por
causa do assunto de sua loja.
— Já se foram? - perguntou Tamara junto ao cortinado.
Enrugava-o com as mãos e pretendia que ninguém mais que Lavínia
ouvisse.
A designer ficou com as oito notas entre as mãos, apertava-as
como se temesse que com elas se fossem a outra parte de Nicolas
Hagen que ficava. Tamara se aproximou, arrebatando-lhe o dinheiro
das mãos e dando uns saltos de alegria enquanto lançava um
dissimulado grito ao ar que contrastava com o silêncio sepulcral de
sua amiga loira.
Pablo nunca tinha visto Nick atuar de modo tão estranho.
Jamais seu amigo se cruzou com uma criatura tão extraordinária
como a designer sem assegurar-se de que voltaria a vê-la, sem fazê-
la passar os nervos de sua vida com frases e aproximações
provocadoras. A atitude que tinha mantido naquele negócio ditava
que estava acostumado a ter com qualquer mulher que fosse de seu
gosto, como o era sem sombra de dúvida, porque era do gosto de
qualquer um. Além disso, o tinha percebido um pouco tenso, inclusive
nervoso.
— Não posso acreditar que tenha decidido tão rápido - disse
uma vez no veículo. — Era tão bonita a designer que acreditei lhe
faria perder ao menos uma hora enquanto lhe fazia o trabalhinho.
Com "o trabalhinho", Pablo se referia em brincadeira às técnicas
de conquista de Nick. Aproximando-se lentamente da mulher,
provocando-a com perfume importado e uma voz serena, masculina;
as invadia com sua atração extraordinária, fora do comum. Nick as
olhava e as fazia esquecer o mundo.
— Não vou experimentar algo que não penso em usar -
interrompeu-o seu amigo, ainda muito sério e sem rodeios, girando a
chave na ignição.
— O que? - Pablo começou a lamentar seus quatrocentos euros
só de pensar que, se Nick não utilizava o terno que acabavam de
adquirir, possivelmente tampouco poderia utilizá-lo.
— E para que o comprou? Por que me fez comprar isso? E lhe
damos de presente o troco!
— Você não vê? - indagou Nick, voltando os olhos para ele. —
Essa moça nunca tinha vendido dois ternos a este preço em sua vida.
Logo depois de determinar aquilo, olhou pelo espelho retrovisor
e, aproveitando um buraco, saiu ao trânsito colossal da avenida Mitre
em direção à ponte Pueyrredón.
— É incrível que procurassem a outra designer e viessem parar
aqui - soava a viva voz de Tamara enquanto Lavínia costurava a
máquina, horas mais tarde. — Se todos os dias tivéssemos a boa
sorte de que dois perdidos como esses chegassem a nossa lojinha,
possivelmente até poderíamos salvar o negócio - adicionou com
esperança.
— Mas não chegarão - repôs Lavínia com pesar e estranha
força, que a vida lhe tinha ensinado a conservar. — Não devia tê-los
enganado, não os deixei de saber que não abriria o local de novo
amanhã. Você acha que jamais vão descobrir que lhes mentimos?
Tamara deixou escapar uma gargalhada.
— Quanto te conheço, Lavi! – exclamou. — É capaz de não
dormir toda a noite pensando que lhes mentiu.
A Tamara parecia engraçado, mas Lavínia se sentia incômoda e
até uma má pessoa. Deixou de costurar e levantou a cabeça para
olhar a sua amiga.
— Sim, Tamara - repôs seriamente. — Menti-lhes como uma
descarada.
Sua amiga respondeu fazendo um gesto de indiferença com a
mão. — Esqueça! – aconselhou. — Nunca os vais ver de novo.
Lavínia suspirou. Oxalá pudesse voltar a vê-lo, pensou com
tristeza, mas isso não aconteceria. O tal Nicolas Hagen não era mais
que uma ilusão inatingível, um ser que não pertencia a seu mundo.
— Queria te dar algo - disse a seguir, tratando de esquecer as
sensações produzidas por causa da mentira e de saber que não
voltaria a ver aquele estranho.
Lavínia mexeu em sua bolsa e colocou algo entre as mãos de
sua amiga. Quando Tamara pôde ver do que se tratava, três notas de
cem com o rosto vermelho de Julho Argentino Rocha muito sério,
elevou os olhos para a Lavínia.
— Não! – exclamou. — Não têm que me dar dinheiro, para isso
me paga um salário.
— Miserável - repôs Lavínia com resignação. Sua amiga riu.
— Não me importa - assegurou.
— Considera-o um presente de despedida.
— Pensa não me ver mais? - retrucou a morena com tom
zombador.
Lavínia suspirou e elevou os olhos ao teto que as cobria, este
sujo de umidade. Nunca lhe tinha sobrado dinheiro para reparar
também aquele setor do negócio, só a parte que viam os clientes.
— Penso que amanhã todo meu sonho se converterá em cinzas
- sussurrou.
Tamara sentiu uma picada no coração. — Sei que você pode ver
as coisas de outro modo - sugeriu sua amiga, apoiando uma mão
sobre seu ombro.
— Amanhã você começa um novo trabalho; não é uma perda, é
somente uma mudança.
— Forçada pelas dívidas - repôs Lavínia. Nesses momentos,
custava-lhe ver o lado agradável de certas coisas. Tamara virou o
tema de conversação de repente.
— Está bem – disse. — Ficarei com cem euros desses trezentos
que queria me dar de presente.
A seguir tirou uma nota e deixou as outras junto à máquina de
costurar.
— E essa mudança de opinião? - perguntou Lavínia arqueando
as sobrancelhas.
— Nós vamos dançar - propôs Tamara. — Temos que festejar
seu novo trabalho.
Lavínia não pôde evitar rir.
Essa tarde, uma vez que tinham terminado de tirar a última
caixa, Lavínia fechou a porta de seu ateliê e elevou a cabeça para
observar o negócio em silêncio, como que o velando. Tinha
depositado ali todas suas ilusões, lugar onde agora, paradoxalmente,
encontrava sua morte.
Nesse momento, a ponto de fechar seu ateliê pela última vez e
para sempre, sentiu desejos de chorar. Seus belos olhos verdes
avermelharam, uma lágrima abandonou um deles e deslizou pela
rosada maçã do rosto até morrer nos ladrilhos negros. Tamara deixou
a caixa que carregava no chão e abraçou a sua amiga. Seus sonhos
tinham chegado ao fim.
Os alunos se surpreenderam ao ver Nicolas L. Hagen, o
professor titular de uma das cadeiras de Estruturas III na carreira de
Arquitetura, muitas vezes pela universidade, apresentou-se para
conversar com seu colega sobre o projeto conjunto e logo com seus
alunos. Misturado entre eles, escutava com atenção a um jovem,
Tomas Achával, que lhe comentava suas perspectivas em relação a
seu trabalho.
— Pensei em lhe dar um toque histórico, mas ainda não consigo
encontrar a relação entre a história e a medicina... - contava-lhe.
Quando Nick os atendia, envolvia-se com seus problemas de
projetos fictícios como se se tratasse de assuntos verdadeiros.
— Tudo tem uma história - respondeu ele, muito sereno. — E
estou de acordo com isso que disse a respeito de que a edificação
ultra-moderna está acabando com os lugares históricos da cidade.
Mas tome cuidado que o excesso de historicismo resulte incompatível
com a tecnologia da medicina.
Depois de passar duas horas na universidade, Nick se reuniu
com três possíveis clientes em um restaurante. Uma vez livre desses
compromissos, dirigiu-se a seus escritórios.
Entretanto, havia algo que o mantinha distante,
impossibilitando-o de concentrar-se por completo em seu trabalho.
Esse assunto era o belo rosto da designer, ruborizado pela emoção e
o medo de ser descoberta. Recordava seus deliciosos movimentos
enquanto lhe media os ombros. Suas mãos eram suaves e deslizavam
sobre ele como acariciando um objeto muito apreciado, com gentileza
e humildade. Sobre tudo humildade. A designer de Sonhos era sem
dúvida uma mulher muito digna apesar de sua mentira, notava-se
que estava desacostumada a mentir.
No momento não tinha podido reagir as emoções que ela lhe
provocou, enterradas tão profundo que, graças a um grave esforço,
permaneceram ali, imóveis. Ele mesmo achou irônico que ela lhe
tivesse agradado tanto e que, mesmo assim, não a tivesse
perturbado.
Possivelmente o impediu essa espantosa honestidade que
emanava cada movimento que ela fazia, cada onda sonora produzida
por sua delicada voz.
Agora, à distância, arrependia-se por não haver-se assegurado
uma noite com ela. Ele gostaria, queria voltar a vê-la, e nesse
momento essa necessidade ardia em sua virilha como um vulcão em
erupção. Finalmente deixou de desejá-la como a uma espécie de
objeto adorado e fez sua aparição conhecida, de desejo sexual, a
paixão caprichosa de possuí-la pelo simples feito de demonstrar que
ele podia com todo mundo, que não havia mulher que resistisse que
em sua natureza estava em ser um idiota.
Ficou pensando que ao menos sabia onde ficava o ateliê e em
seguida arranjaria uma desculpa para dirigir-se ali. Com o ânimo de
um menino cometendo uma travessura, procurou o pacote que tinha
deixado no guarda-roupa que tinha em seu escritório tal como o
havia trazido, e deixou o terno descoberto. Arrancou-lhe um botão e
o guardou no bolso interno do casaco que tinha posto. Pouco tempo
depois, encontrou-se sentado em sua caminhonete.
Conduziu a grande velocidade até Sonhos. Estacionou em frente
ao local e se aproximou da porta com o terno pendendo do
antebraço. O lugar estava fechado e às escuras. Olhou seu relógio:
eram três da tarde. No dia anterior tinha visto um pôster no vidro no
que figuravam os horários. Esse pôster já não estava, mas como bom
observador, recordava que abria às três. Decidiu que esperaria um
momento, possivelmente se tinha atrasado. E se pela tarde só
atendia a morena? Não importava, tinha que correr o risco.
Enquanto deixava passar o momento, pegou-se ao vidro e fez
sombra com as mãos para ver o interior. Na aparência o local se
encontrava vazio. Não conseguia ver a caixa registradora, nem as
prateleiras, nem os objetos. Tampouco estava o cortinado azul que
dividia o salão em dois quartos, só o mostrador. Assim, decidiu
esperar.
Às três e vinte, sua esperança se esfumou por completo.
Experimentou uma estranha sensação que não havia tornado a sentir
em muito tempo: desolação. Não uma nostalgia entristecedora, mas
sim uma picada de ausência. Sentiu-se terrivelmente desiludido,
como um menino sem presentes no natal, porque seu capricho não
poderia encontrar solução. Uma vez que fui bom, pensou com ironia,
rindo dos que ousavam considerá-lo um afortunado.
Caminhava para sua caminhonete ao tempo que preparava as
chaves para abrir a porta quando viu um comerciante sair da loja
junto ao ateliê. O coração lhe deu um salto no peito. Imediatamente
se voltou com o temor de perder de vista a esse homem do mesmo
modo em que tinha perdido à designer, e o seguiu.
— Senhor! - chamou-o. O homem voltou-se. Nick esboçou um
sorriso diminuto.
— Estou procurando à proprietária deste local – assinalou. —
Uma moça loira de olhos verdes. Tive um percalço com um terno que
me confeccionou e me perguntava se você sabe onde posso encontrá-
la.
— OH, sim - respondeu o ancião com amabilidade. — Acredito
que vive a umas quadras, pela rua Díaz Vélez - e lhe explicou como
chegar.
Nick agradeceu a direção ao homem, e a esperança voltou a
ressurgir em seu preocupado coração. Voltou-se para a caminhonete,
colocou-a em marcha e pisou no acelerador.
Enquanto Nick dobrava a esquina em sua Mercedes negra,
Lavínia apareceu pela outra, mas ele não chegou a vê-la. Com terrível
pressa, ela abriu a porta de seu antigo ateliê e procurou na gaveta do
mostrador. Tal como tinha pensado, ali tinha deixado os apliques
chapeados para sua roupa de sábado.
Quando Nick estacionou sua caminhonete último modelo em
frente aos monoblocos em ruínas onde o homem lhe havia dito que
vivia a designer, um grupo de adolescentes que bebia na esquina o
observou com receio. Não era comum ver por ali semelhante veículo
e homens de terno entrando nessa pocilga.
Subiu as escadas entre as pessoas que fumavam, desviando de
pernas que ninguém se dignou a encolher, embora Nick não se
importasse. Parou para pensar o que fazia uma princesa como aquela
em um inferno como esse; conhecia seu objetivo e não se deteria até
encontrá-la.
Golpeou à porta do apartamento que o ancião lhe tinha
indicado. Josué apareceu com os olhos muito vermelhos, estava
drogado.
— Estou procurando Margarida Farias - falou Nick. Sabia que
esse não era o nome real da designer, mas era o único que tinha. O
ruído do televisor resultava ensurdecedor.
— Cristina! - gritou o moreno, girando a cabeça para um lado.
— Conhece uma tal Margarida Farias? - Josué pareceu escutar uma
resposta.
— Não é aqui - disse a Nick, que nem remotamente pensou em
dar-se por vencido.
— É uma moça loira e muito branca, de olhos verdes -
descreveu. Josué soltou uma gargalhada que se escutou até a
escada. Desprendia aroma de álcool.
— Loira, branca e de olhos verdes aqui? - burlou-se. — Você
deve estar mais bêbado que eu! Melhor que corte o papo furado e
deixe de importunar.
Nick arqueou as sobrancelhas. Embora um certo abatimento
voltou a fazer peso em seu peito por causa da ausência da designer,
tirou de um bolso e acabou dando cem euros ao sujeito, só porque no
fundo de seus olhos negros encontrou um indicio de ignorância, de
uma vida vivida do único modo que lhe tinha sido ensinado.
Josué sentiu a esperança de que todos os dias aparecesse por
sua casa um perdido como esse, lhe obsequiando dinheiro.
— Cristina - disse nem bem fechou a porta. — Um idiota que
procurava uma flor me deu de presente cem euros.
— Sim, Josué - respondeu ela. — Está tão bêbado que não te
dá conta de que acaba de passar um porco voando do outro lado da
janela.
— Não acredita? - questionou o moreno.
— Cale-se - ordenou ela, e voltou sua atenção ao televisor.
— Deixe-me escutar.
Josué pensou que era um idiota por ter dito a sua mulher sobre
os cem euros, mas estava tão surpreso que lhe escapou. Por sorte
não tinha acreditado e tinha asseguradas suas porcarias por uns dias
mais. Era uma tarde de boa sorte.
Capítulo 4
— Animo! - exigiu Tamara a Lavínia. Gritava pelo forte som da
música. — Troque essa cara! Esta noite... Estamos festejando! -
adicionou com entusiasmo enquanto sacudia a sua amiga.
Ambas se encontravam sentadas nos sofás de uma discoteca de
São Telmo. Depois do divertido comentário de Tamara, Lavínia logo
sorriu, sem tempo para pensar em uma resposta porque sua amiga a
agarrou pela mão e a pôs de pé em um salto. Estava disposta a
obrigá-la a dançar até esquecer todos os problemas daquela semana
difícil.
Nesse momento, uns jovens se interpuseram entre as duas
amigas e começaram a dançar um com uma, e o outro com a outra.
— Qual seu nome? - perguntou o que havia tentado a sorte
com Lavínia.
— Se eu lhe pedir que adivinhasse, não acertaria - brincou ela
em resposta.
— Então não me peça isso - replicou ele. Conservava um olhar
risonho. Lavínia se inclinou para o menino e este abaixou a cabeça
para poder ouvi-la.
— Escutou alguma vez falar de Enéas?
— Não - negou ele, com a palavra e também com a cabeça.
— Bom, eu sou sua esposa: Lavínia.
O menino deu um passo para trás. Elevou ambas as
sobrancelhas.
— É casada? - indagou surpreso. Ela soltou uma gargalhada
perante a desilusão que experimentava o bailarino.
— Não ria. Quero dizer que meu nome é Lavínia.
— E quem é Enéas? - perguntou então ele, ainda mais confuso.
Lavínia deu de ombros com resignação.
— Não tem importância - disse.
Alguém lhe chamou a atenção por sobre o ombro de seu
momentâneo amigo. Uma bonita moça de cabelo castanho comprido
até a cintura e corpo voluptuoso dançava sobre uma plataforma. Seus
movimentos sensuais convidaram a um jovem a aproximar-se e
dançar com ela.
Pouco a pouco, o moço ia tomando confiança: aproximou-se da
dançarina, rodeou-lhe a cintura com um braço, encostou a braguilha
da calça a seu traseiro e assim o baile sensual se transformou em um
áspero espetáculo de obscenidade e ousadia.
O gole mais amargo de digerir para Lavínia foi que sua irmã
Helena não se incomodou pela atitude do desconhecido, mas sim deu
a volta, rodeou-lhe o pescoço com ambos os braços e o beijou na
boca. As línguas se entrelaçavam à vista de todos, as mãos do moço
se deslizavam até as nádegas da mulher, que tampouco se
preocupava em lhe impedir o gesto.
Lavínia soube então que tudo seguia igual: a minissaia
ajustada, as botas até o joelho, o espartilho apertado ao corpo miúdo
e o decote que fazia saltar o busto.
Se quando vivia com Helena tinha poucas notícias em relação à
vida privada de sua irmã, agora que já não vivia na mesma casa, o
número de informação decrescia notavelmente. Fazia dois anos que
não sabia nada ao certo a respeito de Helena, por isso encontrá-la
naquele lugar e em uma situação tão pouco encorajadora acrescentou
um véu de tristeza ao rosto de Lavínia. Aparentemente seu
companheiro notou a expressão, porque girou a cabeça para trás
para ver o que havia apanhado a atenção de sua nova amiga e logo
voltou para ela com discreta curiosidade.
— Você a conhece? - indagou em relação à garota que dançava.
— Sim - confessou Lavínia. — Fazia muito tempo que não a
via... assim.
— Parece que ela gosta de Madonna - brincou o menino. Fazia
alusão à canção que soava nesse momento, a que Helena parecia
dançar com extraordinário prazer.
Lavínia sorriu com a brincadeira. Não tinha sentido lamentar-se
por uma realidade que a mesma Helena não desejava trocar, nem
tinha querido fazê-lo quando Lavínia lhe disse que pagaria seus
estudos, até com todo o sacrifício que isso significaria para ela, em
função de que abandonasse a rua.
Enfim, Helena nunca reconhecia seu meio de subsistência nem
era habitual tais discotecas, se não fosse para procurar clientes. Para
divertir-se, Helena escolhia bares que às vezes se tornavam
perigosos, não discos de São Telmo.
— Parece preocupada - disse-lhe o menino enquanto elevava
uma mão para lhe acariciar o queixo. — Posso fazer algo por você?
Lavínia virou o rosto com suavidade. Não estava disposta a ser
rude com o moço só por tentar beijá-la. Soube que ele procurava
esse tipo de aproximação, como quase todos os que se encontravam
nesse tipo de lugares, desde o começo.
— Olhe quem fala - respondeu. Tinha notado que ele também
estava preocupado desde que a tinha tirado para dançar, embora
tentasse esconder.
— É verdade - se surpreendeu o menino. — Como sabe disso?
Se você quiser dizer. Quer se sentar?
Lavínia aceitou. O jovem, que se chamava Tomas, entendeu a
mensagem que ela tinha querido lhe dar e com isso perdeu todo
interesse em beijá-la. Em troca parecia disposto a utilizar a poltrona
de uma discoteca como o divã de um psicanalista, e a Lavínia de
psicóloga.
Sentados em um canto onde a música soava com menos
estridência, ele falou.
— É por meus estudos - explicou com simplicidade. Esperava
uma resposta por parte de Lavínia.
— É por meu trabalho - comentou ela, disposta a usar também
da psicanalise gratuita. — Eu tinha um ateliê. Fechamos ontem.
O jovem fez uma careta. — Nossa.
— Sim, é duro - admitiu Lavínia - mas assim é a vida: dura. E
você? - roçou-lhe o braço sem segundas intenções, só para atrair seu
olhar, disperso em algum setor da discoteca. — O que você estuda?
— Estou no último ano de Arquitetura - explicou ele, voltando a
olhá-la com ansiedade. — O problema é que estou trabalhando no
projeto final e o meu professor apareceu lá na classe duas vezes
seguidas.
— O que tem isso? - indagou Lavínia, intrigada e divertida.
— Que estava acostumado a aparecer com menos frequência -
explicou ele. — Suponho que colocarei mais atenção a este projeto
que a nenhum outro de minha vida, e tenho medo de não alcançar
seu nível.
Lavínia se encolheu de ombros.
— Bom, sempre terá que pensar que os professores
necessariamente foram alunos - respondeu.
Tentava consolá-lo, mas como ela passou pouco tempo na
universidade, não tinha muita ideia das exigências que ficavam em
jogo nos últimos anos, só podia imaginar.
— Estou segura de que seu professor não se esquecerá de que
foi aluno e esse conhecimento o ajudará a avaliar seus trabalhos. Não
finja ser igual a ele, seria um pouco ingênuo de sua parte.
Tomas deixou escapar uma risada irônica.
— Essa eminência não tem um só cabelo de ingênuo, disse-lhe.
— Até as eminências têm um pouco de misericórdia! -
exclamou, ainda com um sorriso nos lábios.
— É muito famoso.
— Ah, sim? É um arquiteto?
— É um engenheiro. Nicolas Hagen.
O coração da Lavínia deu tombos. Podia ser possível que a boa
sorte golpeasse outra vez a sua porta? O homem que tinha entrado
em seu ateliê era famoso. Famoso! E comprou seu terno!
Arranjou-se no assento com renovado interesse na conversa,
que sem querer se encaminhou para o inesperado.
— Quem? - perguntou para estar segura. Era tão estranho que
algo bom lhe acontecesse, que tinha que certificar duas vezes a
informação.
— Nicolas Hagen - repetiu o moço - Sempre constrói com...
— Díaz - completou Lavínia com devaneio.
— Você conhece Nicolas Hagen? - perguntou o jovem
entusiasmado.
— Um pouco, nada de mais - indicou Lavínia. — Mas não posso
te negar que eu adoraria conhecê-lo - fingiu que brincava. Ambos
riram.
— Sim, isso dizem todas - concluiu ele. — Em realidade não sei
para que trabalha na universidade, não acredito que necessite o
salário miserável de um professor sendo... ele.
— Possivelmente sim necessita - propôs Lavínia. Acreditava que
os falatórios que fazia referência seu amigo a respeito de Nick só
partiam de alunos fofoqueiros.
— Nem tudo passa pelo dinheiro, ser professor não é um bem
econômico para quem ensina, a não ser espiritual - pensava em seu
pai.
— Bem, seu espírito sim que gosta de divertir-se! - exclamou o
menino com dissimulação na voz e até certa inveja.
— E você como sabe tudo isso de seu professor? - questionou
Lavínia com ar de professora.
— Aparece em qualquer revista - contou-lhe ele. — Você
conhece Sofia Morais, a modelo?
— Sim - apressou-se a responder Lavínia.
— Ele teve algo com ela, como muitas outras - ocupou-se
Tomas de adicionar. Lavínia arqueou uma sobrancelha. — É um
arrogante sortudo, mas sim é uma eminência!
Lavínia sorriu perante a expressão de admiração do moço e por
sua própria ilusão de que alguém importante comprou um de seus
ternos. O engenheiro devia estar utilizando-o nesse preciso
momento, posto que tivesse indicado que o levaria no sábado. Lavínia
quase saltou de alegria.
Procurou a Tamara com o olhar para lhe contar o feliz
acontecimento, mas a viu dançando com o amigo de seu
companheiro e por isso decidiu não incomodá-la. Na segunda-feira
compraria a revista onde visse o famoso engenheiro e... poderia
exibir que usava um de seus modelos! Que modo de começar um
novo empreendimento! Possivelmente se a vida lhe sorri-se enfim e
lhe desse uma oportunidade.
— Me fale mais de seu professor - pediu Lavínia a seu recente
amigo. Ele riu.
— Acreditei que estava interessada em mim, não em meu
professor, embora não te culpo - brincou. Ela sorriu, logo ele ficou
muito sério.
— Olhe, se o conheceu, esqueça - sugeriu com honestidade. —
Duvido que volte a vê-lo. Por acaso não te deixou como lembrança
duas passagens para o Paradise? É com isso que está acostumado a
agradecer a suas...
Logo depois de descobrir o que acabava de dizer e o efeito que
poderia ter gerado em Lavínia o conhecimento daquela verdade, ele
guardou silêncio. Entretanto, não encontrou olhar algum de dor nela.
— E o que é o Paradise? - perguntou Lavínia, que até estava
divertida com a anedota. Ela tinha entendido o que seu amigo tinha
omitido a respeito do que agradecia Nick com as passagens.
— Seu cruzeiro.
Os jogos de luzes eram iguais em todas as discotecas, mas as
festas privadas sempre resultavam muito mais íntimas e exclusivas.
O salão tinha sido decorado com tecidos negros, cor que servia como
símbolo para a marca de champanhe que oferecia a celebração por
seus vinte e cinco anos no mercado e inclusive os convidados deviam
vestir nesse tom, esporte elegante.
Nick tinha posto um terno. Um terno que não era confeccionado
por Lavínia, tal como ele tinha previsto. Beijava uma mulher,
acariciava-lhe as costas, e ela procurava enredar seus finos e longos
dedos no cabelo do homem. Era inútil, porque ele o levava curto.
Embora o beijo tivesse acabado, ela continuou lhe acariciando
as bochechas. Ele abriu os olhos. Uma mulher o saudou com a mão
da pista de dança. Nick respondeu do mesmo modo. Depois, ela
cochichou algo com outra e se afastaram do lugar que se viam as
poltronas brancas em uma das quais se achavam Nick e sua
companheira.
A mulher acendeu um cigarro com ar preguiçoso, inalou-o duas
vezes e logo o colocou entre os lábios de Nick. Ele gostava que as
mulheres lhe acendessem o cigarro e o provassem primeiro com seus
próprios lábios; se elas não o faziam por sua conta, ele o ensinava e
o pedia.
— Nick! - gritou uma loira que saltava sobre si mesma a uns
metros de distância e o saudava agitando uma mão.
Do mesmo modo febril, desceu dois degraus e se sentou na
mesa de centro que estava frente à poltrona na qual Nick abraçava a
jovem de cabelo castanho. Ele se levantou, tirou o braço dos ombros
da mulher e se inclinou para frente para apoiar os cotovelos sobre os
joelhos e assim estar mais perto da loira.
— Você chegou a Margarida Farias? - indagou a moça com voz
exageradamente divertida. Evidenciava, possivelmente, algumas
taças que já devia ter bebido. — Passei o endereço a Pablo, mas me
parece que lhe disse algo. Quando me pediu isso, eu estava um
pouco... - deixou a frase em suspense, mas para completá-la levou
travessa um dedo à boca.
Os olhos de Nick brilharam de excitação ao mesmo tempo em
que inalava o cigarro.
— Esse engano foi o mais afortunado que pôde me ter ocorrido
em dias - disse enquanto a fumaça escapava de seus lábios
avermelhados de forma preguiçosa. Ele também falava com lentidão,
fazendo uso de um tom pastoso e superficial. — Pelo menos esse dia.
Lavínia aguardou a segunda-feira com ansiedade. Saiu de sua
casa antes que Hector despertasse. Levava um suéter branco, uma
calça vaqueira e botas marrons.
Procurou em uma banca, percorreu página por página as
revistas de celebridade, mas a pressa e com o atento olhar do
vendedor sobre o que ela cheirava, não encontrou nada. Ela teve que
pagar pelas três revistas para estudá-las em sua casa com detalhe.
Só em uma achou o que procurava. Entre as dez fotografias que
ilustravam a festa de aniversário de uma das marcas de champanhe
mais famosas do mercado, Nick se destacava mais que qualquer
outro homem.
Encontrava-se de pé diante do pôster publicitário da marca.
Tinha abraçada a seu lado uma mulher morena, de vestido negro e
decotado que contrastava com o destemperado dessa noite de
primavera. Nick levava um terno posto. Um terno que de maneira
nenhuma era o que ela tinha confeccionado.
Sentiu uma grande desilusão. Perguntava-se se seu cliente não
teria gostado do terno na realidade, se teria se arrependido de usá-lo
no último momento ou se teria tido algum problema com a mão de
obra. Ficou pensando que ao menos tinha obtido uma imagem dele, a
que poderia recorrer quando recordasse que alguma vez o homem
mais lindo do mundo tinha pisado em sua loja.
Espremeu a revista contra o peito, cuidando de apoiar a
imagem de Nick justo onde pulsava seu coração, e franziu o cenho
com melancolia. Sentia-se uma adolescente que admirava a
fotografia de seu cantor favorito.
— Lavi?
A vozinha de Hector interrompeu seu devaneio. Provinha da
porta da casa, onde o pequeno de quatro anos se achava de pé.
Observava a sua irmã, que se encontrava sentada à mesa.
O apartamento era pequeno e precário, mas ao menos o edifício
não estava lotado de delinquentes como o que ainda habitavam sua
mãe, sua irmã e Josué.
Depois daquele anoitecer, no qual Lavínia tinha fugido dos
monoblocos com seu irmão nos braços e logo tinha denunciado a sua
própria família, as coisas tinham mudado muito. Josué tinha passado
umas horas na prisão e um juiz tinha disposto que a custódia de
Hector passasse às mãos de sua irmã maior, que era a única da
família que podia comprovar ganhos mensais nítidos e um lugar onde
viver com o pequeno. Tratava-se desse apartamento que tinha
alugado em La Boca a muito bom preço. De todos os modos, Lavínia
devia levar o pequeno à casa de seus pais uma vez por semana e
nunca lhe fazer perder contato com eles.
— Sim? - respondeu. O menino, em pijama, se aproximou
correndo.
— O que esta fazendo? - perguntou aos pés de Lavínia.
— Procuro a foto de um cliente - explicou ela.
— E a encontrou? - indagou o moreno, curioso.
— Sim - admitiu Lavínia com certo pudor, e logo voltou a vista
para aquele rosto formoso que a olhava da página quarenta e oito. —
Mas estou triste porque não leva meu terno posto - viu-se obrigada a
admitir com desilusão. — Possivelmente teve algum problema. Terá
lhe ficado mal? - Lembrando que se negou a prová-lo.
— Você fez tudo bem, Lavi - disse seu irmão. Lavínia sorriu
enternecida e elevou ao menino para deixá-lo sobre seus joelhos.
— Obrigado, Cotito - disse-lhe. — Você gosta de minhas
criações?
— Sim! - exclamou enquanto lhe dava um abraço.
— E eu das tuas - expressou Lavínia com total sinceridade,
respondendo simultaneamente ao ato de afeto de seu irmão. Referia-
se aos desenhos que ele fazia com esmero.
— Vamos hoje ver mamãe? - continuou o menino.
— Amanhã. As terças-feiras vemos a mamãe - recordou-lhe ela.
Lavínia cumpria com as visitas, mas ia embora com Hector
assim que notava que o ambiente ficava desagradável. Helena quase
nunca estava.
Tal como tinha prometido, na terça-feira pela tarde levou o seu
irmão ao apartamento de sua mãe. Nem bem a viu, o menino correu
a seus braços, e a mulher aproveitou para destilar algo de seu
veneno.
— Sentiu saudades de mim , meu príncipe - lançou.
Lavínia não respondeu à provocação. Sentou-se diante da
mesa, lugar onde permaneceria o resto da tarde. O televisor soava a
todo volume; o aroma de graxa, charuto e umidade impregnava a
moradia.
Algumas horas depois, Lavínia falou com sua mãe, que estava
sentada com Hector sobre as pernas, vendo televisão.
— Não pode Josué chegar cedo algum dia? – perguntou. — Não
posso ficar até qualquer hora sempre, esperando-o - evitou adicionar
um "como se ele tivesse tantas coisas que fazer" só porque não
desejava entrar em conflito com Cristina.
— Rouba o nosso filho e ainda por cima pretende nos impor
horários - gritou a mulher, irritada. Lavínia preferiu não dar resposta.
Não desejava que Hector se sentisse um troféu de guerra.
Esperou até as seis, hora em que Josué se dignou a aparecer
bêbado. Logo depois de sua chegada, a estadia na casa não durou
mais de meia hora. Lavínia sabia que, se permanecesse ali, o
ambiente se tornaria insuportável.
Capítulo 5
Passou uma semana em que Lavínia se acostumou a sua nova
metodologia de trabalho e Nick viajou para Mendoza para atender a
um cliente exigente. Ele se dava conta de que, desde que tinha
conhecido a misteriosa designer, preferia passar seu tempo com as
loiras, e se possível parecidas com ela, embora nenhuma pudesse
competir com a falsa Margarida Farias. Ele precisava assegurar uma
noite com essa mulher, apagar a sede que o consumia e o fazia sentir
um estúpido por não ter podido lidar com isso enquanto lhe comprava
o terno.
O que lhe tinha impedido de atuar como sempre o fazia?
Possivelmente o tinha privado o fato de que aquela não parecia uma
mulher fácil como as que costumava conhecer, nem disposta a passar
uma noite por mero prazer com um desconhecido, por mais atrativo
que este lhe resultasse. Nick se propunha a alterar essa estúpida
convicção.
Ele estava voltando para o aeroporto. Não tinha dormido por
passar a noite com uma loira, neta ou sobrinha de seu cliente, já não
o recordava com exatidão. Só sabia que lhe tinha convidado para um
vinho e era tão doce que acabaram com três garrafas.
Perguntou-se de onde vinha uma canção de Coroa, Baby,baby,
que soava no interior da caminhonete como de uma panela. Demorou
um momento para compreender que se tratava de seu telefone
celular e que, como de costume, não tinha ideia de onde o tinha
deixado. Aproveitou para buscá-lo ao parar em um semáforo. Mexeu
em sua bolsa, que tinha abandonado sobre o assento do passageiro,
mas não o encontrou. Olhou o semáforo. Como continuava em
vermelho, inclinou-se e tateou entre papéis debaixo do assento caso
tivesse caído. Quando deu com o celular, observou a tela. "Connie".
Ele tinha gravado o número da mulher porque ela o tinha exigido,
uma vez que estavam juntos tinha tido que tirar o telefone do bolso,
mas como demônios teria conseguido ela seu número? Ele se cuidava
muito bem para que nenhuma pudesse obtê-lo. Olhou o semáforo de
novo.
Por diante de seus olhos passou uma miragem. Era realmente a
misteriosa designer ou se tratava de sua imaginação? Ela terminava
de cruzar a rua! Outra vez a perderia!
Assim que o semáforo ficou verde, Nick não seguiu circulando
em direção reta, como pensava fazer, mas sim girou e trocou de pista
sob a reclamação de outros condutores. Nick não se importou: seu
único objetivo era não perder a Margarida, ou como fosse que se
chamasse, mais uma vez.
Não tinha dúvidas: era ela. Vestia o mesmo terninho do dia em
que a tinha conhecido; levava o cabelo loiro muito liso preso em uma
fivela. Caminhava com facilidade em direção a uma loja de roupas
feminina.
Nick parou o automóvel. Olhou-se pelo espelho retrovisor e
arrumou o cabelo: o rosto parecia cansado e ainda tinha um pouco de
ressaca, mas se se esforçasse poderia esconder bem. Estava
acostumado a fazê-lo. Desceu do automóvel mal estacionado,
acionou o fechamento o alarme com um botão e caminhou para a loja
que ela tinha entrado.
Uma vez ali, olhou pelo vidro da loja, e ao não ver a designer, o
coração lhe deu um salto no peito. Temia que se tratasse de uma
miragem ou de uma mulher parecida com ela. Resultava lógico,
porque era impossível que levasse o mesmo terninho que o dia que a
tinha conhecido, como se não tivesse roupa descente para vestir.
Possivelmente tivesse se equivocado de mulher.
O desgosto voltou a lhe encolher o peito. De todos os modos,
decidiu dar uma olhada dentro; a loja tinha muitas curvas e a falsa
Margarida podia haver-se perdido por qualquer delas.
Percorreu o salão absorto em sua busca, estirando o pescoço
para chegar a ver além do que seus olhos e seu metro oitenta e seis
de estatura lhe permitiam, até que uma vendedora se interpôs entre
ele e seu hipotético objetivo.
— Busca algo para sua namorada? - perguntou.
Nick voltou os olhos para a mulher. Não se tinha dado conta de
que tinha acabado na seção de lingerie feminina. Pensava com
desilusão em retirar-se, pois não havia rastro algum da mulher de
seu interesse.
— Não – respondeu. — Na realidade procuro uma amiga,
acredito ter visto-a entrar aqui.
— Tem o salão com objetos de festa do outro lado do cortinado
- assinalou a mulher, a qual Nick agradeceu e se encaminhou para
onde lhe tinha indicado.
Foi obra de sua boa fortuna ou do destino, porque ali estava
ela, de costas para ele, desdobrando vários objetos sobre um
mostrador enquanto tentava convencer à vendedora de que a cor
violeta sentava muito bem para qualquer temporada. Ao menos esse
foi o fragmento de conversação que ouviu Nick.
Era um milagre tê-la achado por pura casualidade em uma
cidade tão grande. Avançou até ela e se deteve a poucos centímetros,
onde seu delicado aroma invadia seus sentidos e reavivava seu
desejo de possuí-la, onde seu cabelo loiro e sua pele lisa e feminina
enchiam sua mente de fantasias.
— Nós já temos fornecedores, não compramos de designers
independentes - dizia a jovem vendedora do local.
— Margarida? - falou Nick. Lavínia não se deu conta de que se
dirigiam a ela, continuou falando com a vendedora como se ele não
existisse.
— São confeccionadas com minha própria garantia de qualidade
- explicou, assinalando uma costura. — Pode ver esta costura? Nem
sequer se nota, certo? É meu próprio ponto, perfeito para desenhos
de festa.
— Margarida? - repetiu ele com voz muito suave.
— Acredito que lhe chamam - assinalou a vendedora, que de
um princípio se mostrou desinteressada nos desenhos que lhe
oferecia Lavínia.
— A mim? - perguntou ela. — Quem?
A vendedora voltou a assinalar. Lavínia compreendeu que a
suposta pessoa que lhe falava se encontrava a suas costas, por isso
girou sobre os calcanhares para verificar que, tal como pensava,
ninguém se dirigia a ela. Entretanto, levou-se a surpresa de sua vida.
Seu corpo ficou mole e fraco. Nick percebeu imediatamente e
reconheceu nas reações de Lavínia o efeito que produzia sempre as
mulheres que tentava impressionar, e às que não. Nessa
oportunidade, a diferença do que lhe acontecia com qualquer outra,
sentiu certo alívio e não interesse em vangloriar-se por seu triunfo.
— Você! - exclamou a designer, congelada.
Ele sorriu; jogava as mãos assim de sua segurança e de sua
imagem.
— Não têm ideia de quanto te procurei - disse com toda
intenção de apanhá-la, de que Lavínia se desse conta de que ele
estava interessado nela sem rodeios, sem eufemismos
desnecessários.
Nick se surpreendeu de que, em lugar de ficar nervosa pela
insinuação aberta, Lavínia parecia estar por outra coisa.
Possivelmente ainda pensava que ele não sabia que sua identidade
não era a de Margarida Farias. Não fez esclarecimentos, permitiu que
Lavínia o pegasse pelo braço e o tirasse do salão por uma porta que
dava a outra rua. Uma vez na calçada, ela voltou a olhá-lo.
— Você não usou meu terno - espetou com o cenho franzido. Se
Nick não tivesse sabido que ela estava tão nervosa, até teria
acreditado que se zangava a sério.
Lavínia não tinha querido dizer isso, era consciente de que
boicotava sua própria ilusão pelo simples feito de ter mentido em
relação a sua identidade. Tinha começado a conversação com o
homem que mais lhe tinha interessado na vida com uma
recriminação, agora que finalmente ele decidiu lhe falar.
— Perdão - continuou, ainda antes que Nick pudesse dar uma
resposta. — Não quis dizer isso, não quero te perder.
Lavínia se amaldiçoou de novo. Como podia ser tão idiota de
deixar-se trair assim por seus sentimentos? Agitou a cabeça com
rapidez enquanto ficava subitamente vermelha.
— Quero dizer... como cliente - adicionou cabisbaixa.
Nick se dava conta de cada um dos pensamentos que cruzavam
a mente de Lavínia e se esforçava por não rir. Nunca tinha visto
mulher mais transparente que essa.
— Você tem alguns minutos? - perguntou em seguida,
ignorando todo o resto.
Lavínia elevou os olhos verdes e imensos para ele.
— Um pouco - respondeu. Estava disposta a cuidar do queria
dizer, como de um acidente de trânsito.
— Ah, que lástima - replicou Nick, olhando para a loja por sobre
o ombro de Lavínia.
— Por que? - perguntou ela.
Ele se virou para olhar para ela.
— Porque tenho um momento livre antes de voltar para o
trabalho e pensei que poderíamos tomar algo juntos.
Lavínia sorriu e ele leu um mundo de ilusões em seu olhar.
Agora que a via com detalhe, achava possivelmente que tivesse
menos idade do que ele tinha imaginado.
— Sim claro - apressou-se a responder. Devia estar sonhando, e
nenhuma advertência a respeito de Nick iria dar cabo do sonho.
Nick sorriu. A sensualidade do gesto provocou um comichão na
boca do estômago de Lavínia, sensação que se transformou em um
torvelinho quando ele se inclinou para ela e lhe falou com uma voz
muito suave.
— Se quiser que te confesse algo – disse - eu tampouco quero
te perder.
Ruborizada; Lavínia não foi capaz de lhe sustentar o olhar.
— Espere – pediu - Volto em um momento.
Até com certo medo de voltar a perdê-lo, viu-se obrigada a
entrar outra vez ao salão de vendas e aproximar-se do mostrador. A
vendedora já não se encontrava ali, atendia a uma cliente junto aos
provadores. Lavínia guardou seus delicados e queridos objetos em
suas bolsas temendo esquecer alguma pelo estado de excitação em
que se encontrava. Também duvidava a respeito de retirar-se de
qualquer jeito do local depois de ter conseguido que, ao menos,
escutassem-na, pois sempre se negavam antes de lhe dar sequer a
oportunidade de mostrar seu talento. Tinha que vender alguma coisa,
ou até mesmo deixá-los em consignação para poder pagar o aluguel
do apartamento, os impostos, a comida e tantos outros gastos.
Pensar nisso funcionou como um anjinho em seu ouvido direito, que
lhe sugeria esperar à vendedora e tentar lhe vender algo do que
tinha. Entretanto, o diabo do ouvido esquerdo lhe sussurrou que se
passava a vida adiando seus próprios interesses pelos dos outros, e
foi esse o que, depois de suspiros e dúvidas, triunfou.
Quando saiu do local, uma das bolsas que levava se enganchou
no marco da porta, entretanto conseguiu retê-la entre as mãos e sair
graciosa da situação. Olhou para ambos os lados da rua: não havia
rastros de Nick. O coração deslizou por todo seu corpo até chegar aos
pés: ele não se encontrava nessa calçada, nem na outra. Voltou a
olhar até que o viu sair de um quiosque, abrindo um pacote de
cigarros.
A alma de Lavínia retornou a seu corpo. Foi muito agradável
não ter perdido aquele sorriso sem motivo aparente. Ao chegar a seu
lado, Nick lhe ofereceu um cigarro estirando o braço com o pacote
para ela.
— Não, obrigado - respondeu Lavínia.
O colocou um em sua boca e logo foi em busca do isqueiro
prateado que sempre levava consigo.
— Aonde você quer ir? - perguntou enquanto acendia o cigarro
encurvando a mão diante do fogo para que não se apagasse.
— A qualquer parte - respondeu ela ao tempo que se encolhia
de ombros.
Como Nick pôs-se a caminhar para uma esquina, Lavínia o
seguiu, arrastando consigo o peso das bolsas. Nick se deteve ao notar
que ela estava para trás e sem consultar-lhe sequer, pegou as bolsas.
O toque das mãos foi suave, mas eletrizante; teve o poder de
deixar a Lavínia sem fala, incapaz de lhe dizer que não era necessário
que carregasse as bolsas por ela. Nick seguiu caminhando rumo a um
bar que se achava no quarteirão seguinte.
— Senhor! - ouviram. Tratava-se de um inspetor de trânsito que
se dirigia a Nick. — Este é seu veículo? - assinalou.
Nick sabia que estava mal estacionado.
— Deixe uma multa - indicou sem deixar de caminhar.
Lavínia tentava seguir seus passos apressados, quase parecia
que Nick não desejava perder nem um segundo.
— Você realmente não se importa se for multado? - perguntou-
lhe Lavínia com assombro, ainda mais do que lhe tinha provocado a
Mercedes Benz preta que pertencia a seu partido.
— Enviarei alguém para pagá-la e terei perdido menos tempo
do que perderia movendo o veículo para procurar estacionamento
nesta cidade - respondeu ele sem deixar de caminhar e nem voltou
para olhá-la.
Pelo ruído, Lavínia custou entender o que ele dizia, mas
acreditou dar com a ideia e respondeu:
— O que poderia perder? - perguntou. Nick se voltou para lhe
falar de maneira tão abrupta que ela quase esbarrou nele.
— Precioso tempo para estar com você - respondeu sem virar-
se para trás.
Lavínia sentiu que a resposta a fazia corar as bochechas. Nick
notava aquele delicioso tom rosado na pele branca cada vez que lhe
insinuava algo e sabia que conseguia pô-la nervosa porque ela
gostava dele. Notava-o em seu olhar, em seus gestos. Entretanto, até
o momento considerava que não tinha obtido nenhuma resposta
definitiva a seus embates. Se fazia evidente que ela era muito jovem
e inexperiente, mas ele estava disposto a ser paciente.
Lavínia despertou de seu universo de devaneio quando Nick
abriu a porta vidrada do bar.
— Aqui está bem? - perguntou-lhe ele.
— Sim, claro - respondeu ela, que rapidamente entrou no lugar,
aproveitando que Nick sustentava a porta para que o fizesse.
Nick não esperou para ordenar. Nem bem ocuparam uma mesa,
chamou à garçonete e lhe pediu um submarino para ele e o que sua
amiga quisesse. Lavínia pediu o mesmo, surpreendida porque ele não
tivesse pedido café.
— Agora que me aproximei um pouco mais à verdade, serei
merecedor de seu verdadeiro nome? - perguntou Nick com olhar
inquisitivo.
Lavínia sentia que aqueles olhos entre azuis e cinzas a
atravessavam com intensidade. Exigiam e contemplavam. Ela riu,
aparentemente mais relaxada, mas Nick sabia que o corpo feminino
era um manual de sensações.
— Você gosta de adivinhações? - perguntou ela em resposta, o
qual fez sorrir com curiosidade.
— Eu adoro - respondeu.
— Está bem - assentiu ela. — Começarei por te dizer que meu
pai era professor de história.
Nick não pareceu meditar muito a resposta.
— Helena - arriscou. Lavínia sorriu.
— Esteve perto. Assim se chama minha irmã, embora o nome
foi escolhido pela minha mãe – confessou. — Possivelmente gostava
de história, depois de tudo.
— Assim deveria se chamar você - replicou ele.
Lavínia entendeu o elogio perfeitamente. Nick se referia à
mulher mais formosa do reino. Sorriu.
— Porque você não conhece minha irmã! - exclamou.
Conseguiu assim eclipsá-lo com sua humildade. Mas a Nick pouco
importava a irmã de Lavínia, a não ser a adivinhação que ela
representava para ele.
— Phaedra - continuou arriscando. Lavínia negou com a cabeça
— Juana. Ariadna.
— Lavínia.
— Ah! - ele se recostou no assento. Parecia mais depravado
agora que o mistério se havia desvelado. — A namorada de Enéas.
— Exato! - surpreendeu-se ela. — Conhecedor da mitologia.
— Conhecedor de mulheres bonitas - respondeu ele
fluentemente. — E se Helena foi a grega mais formosa do reino, sem
dúvida você é a mais bela romana.
Logo depois de dizer isto, Nick levou o cigarro aos lábios de
novo. Inspirou vagamente enquanto contemplava o rubor que ia
cobrindo as bochechas da deusa com lentidão.
— Você conhece de mitologia... - sussurrou ela de novo.
Nick se inclinou para frente e apoiou o queixo no punho com os
olhos entrecerrados. Falou uma vez que a fumaça escapava por entre
seus lábios.
— E diga me uma coisa, você acha que eu pareço Enéas?
A posição sensual do homem obrigou a Lavínia a baixar o olhar.
Ela mordia o lábio inferior para não estourar de nervos. Nick tinha
cansado de insinuações superficiais e agora pretendia chegar ao final
daquele caminho que ela impôs.
— É provável... - admitiu Lavínia, completamente vermelha. —
Mas gostaria de encontrar meu Turno - interrompeu-se para fazer um
esclarecimento. — Vivo.
Nick apenas sorriu. Sabia que a Lavínia mitológica era a filha de
um rei latino e que se casou com Enéas quando este tinha retornado
de Troia. Turno... desconhecia Turno.
— Conte-me sobre o Turno - pediu. Enquanto aguardava a
resposta, inalou de novo o cigarro e voltou a encostar-se no assento.
— Turno era o prometido de Lavínia antes da chegada de Enéas
ao Lácio - explicou ela com entusiasmo. — Eu gosto de pensar que
eles deveriam estar juntos, mas os deuses se empenhavam em torcer
o destino. Quando um oráculo advertiu ao Latino, o pai de Lavínia,
que sua filha devia casar-se com alguém chegado do mar, neste caso
Enéas, Turno se enfureceu e o enfrentou. Acabou derrotado, e sua
alma se foi "precipitada, indignada, ao reino das sombras" – citou. —
Foi injusto. Acredito que os deuses são injustos com muitos heróis da
mitologia.
Nick acabava de perder-se na suavidade da voz da mulher, na
delicadeza de sua expressão, no modo em que mais parecia uma
professora de história. E em como sua própria alma alguma vez
também se foi "precipitada, indignada, ao reino das sombras".
— A vida é injusta, mais vezes do que nós gostaríamos -
concluiu ele.
Seus olhos pareciam ter mudado; seu tom de voz, a velocidade
com que se conduzia tinha se entorpecido, quase como se aquele que
falava não fosse ele. Mas isso durou muito pouco, em seguida
retornou a seu olhar, a sua voz, a seus gestos, a ser o Nick sem um
só momento de sombra. Lavínia tinha dado sinais de aceitação a seus
impulsos e não iria desperdiçar em uma conversa sobre história e
filosofia.
— E você não vai contar me nada? - interrogou ela, adiantando-
se ao próximo ataque de seu competidor. — Eu sei algumas coisas,
mas eu gostaria de conhecer sua versão dos fatos.
Ele esmagou a bituca do cigarro no cinzeiro. Essa lhe resultava
uma conversação simpática.
— E o que você sabe? - indagou.
— Que você é uma eminência - ela não se apressou a
responder, o fez devagar, desfrutando de cada palavra e cada reação
de Nick. — Em engenharia... e em mulheres.
Nick deixou escapar uma risada rouca, emudecida pela fumaça
que ainda invadia sua garganta.
— Ah, sim? - não parecia surpreso nem incômodo, a não ser
divertido, como se aquela confissão tivesse sido esperada. — E quem
te disse algo como isso? Não acredito que um amigo me fizesse uma
publicidade tão má.
— Eu não o chamaria seu amigo - repôs ela. — Dada sua
posição, acredito, bem é um...
— Um aluno! - exclamou ele em seguida, ao qual permitiu a
Lavínia descobrir que de verdade Nick era um homem muito
inteligente.
A Nick não pareceu estranho que Lavínia conhecesse algum de
seus alunos, dado que devia ter mais ou menos a idade de qualquer
deles.
— Dizem que sou um tipo com sorte - recordou.
— E o é? - respondeu ela com curiosidade.
Nesta oportunidade, Nick demorou para responder. Inclusive
suspirou antes de fazê-lo.
— E você em que acredita? - disse por fim.
— Que ninguém poderia ter pior sorte que eu - respondeu ela
com uma careta irônica desenhada nos lábios.
— Vejo-me obrigado a acreditar que eu sou - concluiu Nick. —
Do contrário, você não estaria sentada aqui hoje.
Antes que Lavínia pudesse voltar a ruborizar-se por completo, o
telefone celular interrompeu a conversação. Nick nem sequer se havia
dado conta de que o tinha guardado no bolso do casaco antes de
descer da caminhonete.
Enquanto Nick olhava a tela do aparelho, Lavínia sentiu outra
vez uma grave sensação de vazio. Esse chamado ia arrancá-lo de seu
lado, e com as tolices que havia dito pelos nervos e o pouco tempo
que tinha tido para ser ela mesma, estava segura de que ele não
quereria voltar a vê-la.
— Sim - falou o homem ao microfone do telefone. Logo ficou
em silêncio para escutar a voz do outro lado da linha. — Que horas
são? - perguntou a seguir. Olhou seu relógio de pulso. Também
Lavínia olhou o seu: eram três e vinte da tarde. — Já vou.
Nick colocou uma nota sobre a mesa ao mesmo tempo em que
terminava a ligação. Logo mexeu em seu bolso, olhou a Lavínia e
estendeu uma mão para ela. Sustentava um cartão entre os dedos.
— Este sou eu – anunciou. — Mas como não confio em você, e
sabemos que tenho motivos para fazê-lo, preferiria que me desse seu
número. Desse modo nos asseguraremos de que voltaremos a entrar
em contato.
Apesar de sentir-se abandonada, Lavínia sorriu e tomou o
cartão com esperanças renovadas: ele desejava estar em contato
com ela, do contrário não lhe teria dado seu número. "Nicolas L.
Hagen, Engenheiro", leu. Debaixo se lia "Construtora Hagen e
Associados", um endereço e um telefone que já não leu.
— Vai ser melhor manter meus dados em segredo - brincou
enquanto guardava o cartão em sua bolsa. — Desse modo eu me
asseguro de que estará esperando.
Ela piscou o olho e lhe sorriu. Nick não gostava da ideia de
depender de Lavínia para um próximo encontro, mas conveio que
seria melhor desse modo, como estava acostumado a acontecer, para
que parecesse que ela estivesse interessada nele e não ao contrário.
Motivado por essa ideia, assentiu.
Uma vez que estavam na rua, ofereceu-se para levá-la até sua
casa. Pretendia assim conhecer ao menos seu endereço, mas Lavínia
se negou. Teria morrido de vergonha se Nick visse seu bairro, se ao
menos tivesse conhecido primeiro; isso o teria desencantado antes do
necessário. Como ele insistiu, ela foi deixada em um ponto de ônibus.
Nick não se atreveu a lhe roubar um beijo... ainda. Percebia que com
Lavínia tinha que ser paciente. A qualquer outra mulher teria beijado
ali mesmo, mas a ela não.
Lavínia entrou no ônibus até a parada mais próxima de sua
casa e depois caminhou, ainda flutuando entre nuvens, tão perdida
em seus pensamentos que nem sequer pareciam pesar as bolsas de
mercadoria que levava. Estava a ponto de dobrar na esquina de sua
casa quando um adolescente roubou sua bolsa. Ela estacou pronta
para defender-se, mas foi tão forte o puxão que, impossibilitada de
atuar com suficiente rapidez pelos sacos e as bolsas de roupa que
carregava, ela acabou no chão e o jovem saiu correndo com sua
bolsa. Lavínia correu atrás dele, mas não pôde alcançá-lo.
Ao chegar a seu apartamento, Tamara, que cuidava de Hector
depois de ir buscá-lo no jardim de infância, notou-a agitada e por isso
lhe perguntou o que tinha acontecido.
— Roubaram-me a bolsa - respondeu Lavínia antes de deixar
cair as bolsas com sua mercadoria no piso.
— Não pode ser! - sua amiga cobriu a boca com ambas as
mãos. — Levava algo importante? Seu documento, dinheiro? Fizeram-
lhe algo?
Lavínia suspirou.
— Tinha recebido um dinheiro por um trabalho, sim, mas eram
apenas vinte euros. Os documentos tenho-os no bolso do casaco –
ela disse. Para ajudar contou os objetos com os dedos. — Levava os
vinte euros, uma foto do Hector... OH, não! - exclamou de repente,
lembrando-se do cartão que lhe tinha dado Nick. — Seu número de
telefone! OH, Deus! - deixou-se cair sobre uma cadeira, apoiou os
cotovelos sobre a mesa apoiando o queixo com a mão. — Não posso
ter tanta má sorte!
Tinha perdido Nick de novo. Possivelmente um deus também
resolveu torcer seu destino, como na mitologia.
Capítulo 6
Nick tinha assumido que Lavínia não ligaria um dia depois do
encontro, mas esperava que o fizesse no outro. Poderia até mesmo
deixar passar outro dia, caso ela fosse como as mulheres as quais
eles estava acostumado a sair, queriam fazer ele as desejar um pouco
mais. Mas o entusiasmo e a urgência que tinha visto nos olhos e nas
atitudes da designer lhe diziam que isso era impossível. Esperar?
Quanto podia resistir, com o medo que sentia de nunca mais poder
ouvi-lo? Era óbvio que Lavínia o desejava tanto como ele a ela,
embora sua aparente inexperiência a fizesse ficar envergonhada.
Até o terceiro dia se formulou muitas perguntas, questionou-se
todas as alternativas para que ela não o tivesse chamado. Pensou
que podia ser menor e que seu pai possivelmente lhe tinha advertido
a respeito das intenções de um homem vários anos mais velhos que
ela, mas descartou a ideia. Ela não parecia uma mulher guardada
pela família, e isso ele sabia de explorar as mulheres.
Poderia não estar interessada nele? Podia ser tão sincera e
depois nada? Também se amaldiçoou várias vezes por ter permitido
que ela mantivesse em segredo seu número. Como tinha sido tão
estúpido? Quando ele tinha deixado ir uma mulher que havia gostado
tão facilmente? E para cúmulo duas vezes!
Conforme foram passando os dias, enlouqueceu cada vez mais
por desvendar os mistérios da designer. Lavínia... Não deviam existir
muitas com esse nome, nem sequer mesmo na Itália. Mas como
procurá-la em uma lista telefônica ou no computador, se desconhecia
seu sobrenome? Além disso, isso ia contra seus princípios: jamais
tinha estado dependente de uma mulher, nem tinha perdido tanto
tempo em ter sexo com ela, tampouco alguma lhe tinha resistido.
Selecionava bem, nunca errava em seus cálculos.
No sétimo dia, Nick descobriu que sempre lhe tinha sido fácil
levar mulheres à cama porque elas o tinham elegido ou porque ele
tinha medido com cuidado a quem escolher. A diferença nesta
oportunidade era que a eleição tinha sido involuntária. Lavínia tinha
entrado em sua mente sem nenhuma razão.
Disse então que, se conseguia levar a Lavínia, essa beleza
rebelde e ingênua, para a cama, então acreditaria no que sempre lhe
haviam dito: que era o homem mais sortudo sobre a face da Terra e
uma eminência. Ao menos em questão de aventuras.
A designer se converteu em um desafio para ele, em uma luta.
Lavínia passou o resto da semana tentando conseguir o número
de Nick. Sentia-se a mulher mais sem sorte do universo por tê-lo
perdido, embora ela não tivesse tido culpa porque a tinham roubado.
Entrou em uma cabine de seu bairro. Como imaginou, a lista
telefônica tinha desaparecido. Aproveitou então um dia que se dirigiu
ao centro para procurar em uma cabine da cidade.
Caminhou pela Rua Alem e entrou em uma cabine que supôs
ter a guia com todas suas folhas. Entretanto descobriu com pesar que
o número de Nick não estava na seção de telefones particulares. Era
lógico que um homem tão importante não publicasse sua linha
pessoal na guia, assim desistiu. Procurou nas páginas de comércios e
empresas, no item da construção. Como não podia ser de outra
maneira, faltava a folha correspondente, Lavínia já não se
surpreendeu: tinha muito má sorte.
Não sabia utilizar um computador nem tinha conhecidos que
pudessem fazê-lo, exceto sua irmã, mas não podia lhe falar de nada.
Tampouco lhe ocorreu pedir ao dono da cabine que procurasse por
ela, e estava começando a chamar sua atenção: acabava de passar
por debaixo do imenso pôster de uma construção quase terminada no
que estava escrito "Hagen e Associados", junto com os dados da obra
e de contato, e nem sequer se deu conta.
Na sexta-feira, recebeu uma nota do tribunal. Deveria
apresentar-se na segunda-feira para uma audiência com o juiz de
menores. Passou o fim de semana intrigada com a entrevista e presa
no temor de que alguém queria separá-la de Hector.
Quando a segunda-feira chegou por fim, colocou a roupa que
usava para ir trabalhar e se encaminhou ao tribunal. Queria parecer o
mais adulta possível.
Ao chegar se surpreendeu ao ver sua mãe e Josué melhor
vestidos que nunca, e até tinham chegado antes dela, Lavínia
compreendeu assim qual era a intenção e imediatamente se sentiu
invadida pelo medo e a preocupação.
Não demorou muito para que o juiz anunciasse sua decisão:
— O casal Perez exigiu a custódia de seu filho Hector Perez faz
seis meses. Neste período as visitas de nossas assistentes sociais
demonstraram que os pais melhoraram notavelmente seu modo de
vida: contraíram matrimônio, o senhor Perez conseguiu um trabalho e
sua filha Helena retornou os estudos. A custódia do menor voltará a
ser de seus pais.
Enquanto Cristina sorria com satisfação, Lavínia sentia que lhe
enterravam uma adaga no peito.
— Ele nem sequer está limpo! - alcançou a dizer assinalando ao
Josué, mas o juiz apertou a mão dos pais, logo a ofereceu a ela, e ao
notar que Lavínia não pensava lhe retribuir o gesto, retirou-se.
Lavínia pensava que esse homem não tinha ideia de que, ao
permitir aos Perez custodiar a seu filho, estava matando o futuro de
seu irmão. Ao menos assim o sentia ela, dadas às condições de vida
que o menino seria exposto a partir de então.
Só lhe restava confiar que Hector recordasse tudo o que lhe
tinha ensinado: as diferentes possibilidades de vida que uma pessoa
podia ter, que nem sempre se pertence ao lugar no que se nasce, e
que para pertencer a outro lugar se deve lutar.
— Não me contará uma parte da história hoje? - perguntou o
menino, recostado sobre o peito de sua irmã, na cama.
A pele branca de Lavínia contrastava com a escura do pequeno.
Ela tinha os lábios sobre seus os cachos de seu cabelo; com a mão o
sustentava junto ao coração.
— Claro – respondeu - onde tínhamos parado?
— Em que o guerreiro devia enfrentar-se com o irmão do
raptor. Ah, sim... e sabe quem morre ali?
— Hector.
— Então quer que te conte essa parte de novo?
Lavínia sorriu ternamente e lhe beijou a testa enquanto lhe
acariciava a bochecha com a mão. Não queria que o pequeno visse
suas lágrimas. Era a última noite que o teria ali, só para ela. Por isso
quando ele adormeceu, permaneceu um longo momento acordada,
observando-o. Tanta inocência desperdiçada!
Na tarde da terça-feira, Lavínia levou Hector à casa de sua mãe
como sempre, só que desta vez retornaria a seu apartamento
sozinha.
Cristina a recebeu com ar de vencedora, como se tivesse
ganhado um partida de truco.
Lavínia deixou a bolsa com as coisas de seu irmão sobre a mesa
e a abriu. Enquanto isso, o pequeno tinha deslocado para os braços
de seu pai, que passeava com ele sobre os ombros por toda a casa.
Vendo aquela ação, Lavínia pensou que Josué teria sido um bom
homem se tivesse se mantido sóbrio. Mas isso não ocorria com
frequência, e obscurecia a infância do menino.
— Esta é a Ilíada - explicou a sua mãe com o livro na mão. —
Estou segura de que a conhece muito bem, mas pelas dúvidas
deixarei isso. Hector gosta que lhe leia a história, uma parte cada
noite, quase sempre o confronto entre Hector e Aquiles ou a parte do
cavalo de Troia.
— Leva isso se quiser, sei de cor - replicou Cristina ofuscada.
— Deixarei para Hector de todos os modos - respondeu a filha.
— Possivelmente o queira apenas para vê-lo. Também te deixo alguns
de seus brinquedos favoritos.
Cristina suportou que sua filha tentasse lhe ensinar a ser mãe
de Hector com respostas curtas e secas. Quando chegou a hora de ir,
Josué ainda tinha o seu filho nos braços.
— Já vou, Cotito - disse Lavínia, já junto à porta.
— Você esta indo? - indagou ele, com a cabeça girada para sua
irmã. — Vamos!
Hector saltou dos braços de seu pai, mas com toda a dor de sua
alma, Lavínia não o recebeu entre os seus.
— Não - teve que dizer. — Hoje não. Ficará aqui, com seus pais.
— E você também ficara?- insistiu ele. Lavínia baixou o olhar.
— Não... Eu não.
— Não! - gritou o menino. — Vai me deixar aqui? Por quê? Já
não me quer, já não quer cuidar de mim?
As palavras feriram Lavínia no mais profundo. Doía-lhe o
coração de ter que deixá-lo ali. Dobrou os joelhos e ficou à altura do
menino.
— Você ficara aqui porque papai e mamãe sentiram muitas
saudades suas - tentou explicar.
— Mas eu quero ir com você! - gritou Hector antes de abraçar-
se a seu pescoço. Lavínia respondeu ao abraço.
— Esta noite mamãe vai te contar o episódio do cavalo de Troia
- prometeu até sem ter conversado com sua mãe sobre isso.
Não queria deixar o menino, mas recusava voltar à casa de
seus pais.
— Fica até que ele durma - disse Cristina, e Lavínia aceitou.
Até às 10. Cristina tinha preparado o jantar para Hector, mas
ele se negou a comer argumentando que não gostava e que Lavínia
cozinhava melhor. Sua irmã o repreendeu por isso, disse-lhe que não
devia criticar o que faziam os outros se a gente não podia fazê-lo
melhor. De todo modo compreendia que Hector não desejava ferir sua
mãe, mas fazer os adultos compreender que queria ser feliz.
Nick respondeu ao quarto chamado do telefone.
— Entendi! - exclamou a voz do outro lado da linha. — Têm
papel e lápis?
Nick caminhou pela sala de estar, procurou o que seu
interlocutor lhe pedia e replicou:
— Diga.
— A única Lavínia que aparece em meus registros se chama
Dickinson. Lavínia Dickinson. E tem três números em seu nome.
Nick apontou os três números telefônicos que lhe tinham sido
ditados com seus respectivos domicílios. Identificou que um pertencia
ao local já fechado, outro no endereço no qual o tinha enviado o
velho que saía do negócio junto ao ateliê e que lhe havia custado cem
euros, e um terceiro cuja direção desconhecia. Tinha que ser esse.
Lavínia já havia tirado a roupa de trabalho. Vestia, como
sempre que estava em sua casa, roupa esportiva. Encontrava-se
sentada à mesa, com o rosto escondido entre os antebraços,
chorando. Perguntava-se que sentido tinha tido seu esforço, que
maldição pesava sobre ela para que nada lhe saísse bem, nem sequer
proteger a seu irmão.
Antes que o desespero tomasse conta dela, ficou de pé e ligou o
rádio. Subiu o volume quando encontrou uma música de seu agrado,
tanto que a aturdiu, mas ao ir em direção ao seu quarto o som
cedeu. Enfaixou as mãos e atacou o saco de boxe que pendia de uma
corda em seu quarto.
Depois de uma publicidade, começou outra canção, desta vez
um rock. Os golpes ao saco se acentuaram porque através deles
Lavínia suava dor e impotência.
Nick olhou seu relógio de braço. Eram onze da noite. Para ele,
uma criatura da noite que dormia apenas três ou quatro horas a cada
vinte e quatro, era o mesmo que dizer que era meio-dia, mas
possivelmente para Lavínia não. Mesmo assim, leu o número e
discou.
O telefone soava em casa da Lavínia, mas a música não lhe
permitia escutá-lo. Golpeava e socava como se nele se refletisse seu
destino.
Nick desligou. Primeiro pensou que ela estaria dormindo, mas o
temor de que se tratasse de uma casa desabitada o levou a insistir.
Tinha começado outra canção. Lavínia estava dobrada com dor
nas costas de tanto caminhar. Foi oferecer a roupa que ela
confeccionava com todo carinho, mas que ninguém queria comprar.
Sou uma lutadora, repetia-se. Sou uma lutadora... mas isto é
acaso o que quero ser? Até quando? Até quando...
Esgotada como estava, ergueu-se e deu outro golpe ao saco.
Nesse momento, escutou um tinido, uma música de fundo alheia à
canção. O telefone.
Abandonou tudo o que fazia e se se dirigiu a sala de estar.
Olhou de passagem o relógio da parede, que indicava onze e quatro
minutos da noite. Ninguém mais que Hector podia chamar a essa
hora, por isso quase se jogou sobre o rádio para deter a música e
responder logo o chamado.
— Diga? - soava agitada e angustiada, como em realidade se
sentia.
— Lavínia?
A voz a deixou tremente e assustada, muito mais que o pranto
ou o esforço físico.
— Nick? - balbuciou.
Ele sentiu algo. Sentia frio, possivelmente em um episódio de
choro, mas fiel a seu instinto indescritível logo se livrou dessas
sensações.
— A Lavínia que eu conheço? - brincou.
— OH, Meu deus! - exclamou ela. — Sinto muito!
Nick nunca pedia desculpas. Nem pela hora, nem por deixar
alguém à espera, nem por abandonar as namoradas. Tampouco se
desculpou com Lavínia por ser onze da noite.
— Estava dormindo? - perguntou.
— Não, não estava dormindo – disse ela. Como eu teria
desejado poder dormir! — Na verdade, estou muito triste. Mas não se
preocupe, não quero aborrecer a um interessante Enéas que ligou
para o telefone com intermináveis problemas.
Nick sorriu. Sorriu de verdade, suavizado pela resposta, o qual
descobriu instantes depois de ter cometido o grave engano de
albergar um sentimento. Apagou o sorriso sincero imediatamente.
Primeiro não era seu estilo, ele não chamava as mulheres, as
mulheres o chamavam. Em segundo lugar, não queria parecer
interessado. Sempre era mais fácil que fossem elas quem se
interessasse nele, por isso se esforçou por fingir-se sereno.
— Quero saber porque não me ligou... - disse ele a seguir.
Por Deus, morria por saber! Entretanto, respondeu indiferente:
— Não, em realidade não.
— Roubaram-me a bolsa - explicou Lavínia, ignorando a
resposta de Nick. Queria lhe dar explicações, não desejava lhe fazer
pensar que não se importava.
Mas Nick não acreditou. As mulheres eram excelentes
mentirosas, sobretudo quando um homem se humilhava a mover céu
e terra por conseguir seus dados, levantava o telefone e discava o
número. Preferiu ignorar esses pensamentos porque sabia que o
conduziriam a arruinar seus planos de levá-la para a cama, assim
como tinha ignorado sua tristeza para não sentir-se comovido. Por
que ficaria triste uma mulher? Por um namorado, talvez? Por que não
tinha podido comprar roupa?
— Ah - replicou indiferente. — Vejo que teve uma semana
difícil.
Foi irônico, mas Lavínia não o entendeu assim.
— A pior de minha vida - disse referindo a todas as situações
pelas que tinha passado e que Nick desconhecia.
— Não se preocupe - respondeu ele. — Eu tenho a solução
perfeita para que se esqueça de tudo.
— Não acredito poder esquecê-lo.
— Faremos um esforço.
O tom da voz de Nick tinha sido sugestiva, pastosa. Ele pensava
em sexo, ou ao menos o insinuava; Lavínia soube, e possivelmente
por seu passado ou porque de verdade a ofendia pensar que pudesse
esquecer a dor pela perda de seu irmão em uma cama, incomodou-
se.
— Não o entendo – disse. — Não estou dizendo que me fizeram
um mau corte de cabelo. Digo-te que de verdade estou muito triste,
que passei a pior semana de minha vida e você faz piada todo tempo,
como se não fosse importante. Não pretendo te aborrecer com meus
problemas, mas é de boa educação não fazer piadas e ter respeito.
Nick emudeceu. Engoliu em seco. Embora a princípio o sacudiu
a idéia de que uma mulher pudesse não gostar de uma parte dele,
justo a que as outras pareciam valorar mais, em seguida se encobriu
com a casca que sempre o protegia. Quem acreditava ser esta mulher
para recriminar a ele sua indiferença. Ele não era seu amigo, muito
menos seu namorado, nem queria saber nada dela. Não lhe
interessava sua vida privada, nem o motivo de sua tristeza, e muito
menos a opinião que a inexperiente pudesse fazer dele.
Era evidente que ela precisava de prática; que ao contrário das
demais mulheres como as que ele se relacionava, não tinha
aprendido que os problemas se esqueciam entre seus lençóis.
Só a queria para o sexo, pensou. Para levá-la para cama e
depois desativar seu número. Era ela que tinha que lhe pedir, não ao
contrário, não lhe permitiria ter poder sobre ele. Isso nunca mais.
— Peço-te desculpas - resmungou zangado. — Não devia te
incomodar. Que tenhas uma boa noite.
Desligou. Tinha acabado.
Lavínia entreabriu os lábios, incapaz de convencer-se de que
tinha arruinado tudo por ter descarregado sua raiva não só no saco
de boxe, mais também em quem não a merecia. E que ele fora tão
infantil em fugir da conversa só porque ela se equivocou, não
acreditava.
— Nick? - perguntou em um sussurro, esperançada que o clique
tivesse sido apenas uma pequena falha. Mas suas esperanças foram
frustradas quando o silêncio se converteu no tom.
Era muito claro: como ela, uma inexperiente, ia acusar de
medíocre e de superficial a um homem experiente, maior que ela,
muito mais importante em tudo. Ele podia ter uma dezena de
mulheres desejosas para agradá-lo com um único olhar. Não
necessitava dela. Se havia ligado era porque estava interessado, e
com suas atitudes: - primeiro por não chamá-lo, logo depois reclamar
por suas brincadeiras - indicava que não queria saber de nenhuma de
suas propostas.
Lavínia chutou o pé da mesa e logo massageou a ponta dos
dedos doloridos. Perguntava-se como podia ser tão tola, como era
capaz de afastar os pequenos instantes de felicidade que a vida lhe
punha na palma da mão como se não os merecesse. Nick, um
homem sedutor, rico e atrativo se interessava por ela, e ela não fez
mais que espantá-lo. Tudo porque o único que lhe interessava nele
era sua honestidade. Por que não podia ser como os demais? Por que
não podia conformar-se com o que ele estivesse disposto a dar?
Precisava que Nick soubesse que ela não queria feri-lo, que
tinha jogado a raiva sobre quem não merecia. Mas nem sequer tinha
seu número. Tinha-o perdido, por ser estúpida.
Só pode dormir ao amanhecer. Odiava-se. Às dez, finalmente
subiu para abrir a porta. Do outro lado se encontrava Tamara, que
havia tocado três vezes e sustentava uma folha de jornal diante do
rosto.
— Olhe o que consegui para você! - exclamou.
Ainda um pouco adormecida, Lavínia nem sequer distinguiu do
que se tratava a nota.
— O que é isso? - perguntou.
— Olhe a foto - reclamou sua amiga. — É uma obra.
Os olhos da Lavínia se iluminaram.
— De Nick? – animou-se.
— De quem mais?
Na imagem via-se a esquina da Rua Alem onde se construía um
centro médico privado. De fato o titular anunciava sua conclusão
antecipada.
Lavínia teve que visitar algumas lojas antes de poder dedicar-
se a Nick, embora ele não abandonasse seus pensamentos. E
enquanto ela tentava convencer à vendedora de uma loja de que
ficasse com algumas roupas, os operários do Centro Médico retiravam
o enorme pôster que até esse dia tinha ostentado os dados da
companhia de Nicolas L. Hagen.
Quando Lavínia chegou, já não havia nada. A ira cresceu tanto
nela que deixou escapar um insulto e cruzou a rua na metade da
quadra. Entrou em um edifício que estava frente à obra terminada e
falou com a recepcionista.
— Me diga que sabe, por favor - a mulher a olhou perplexa,
então Lavínia se esforçou por dar uma explicação. — O telefone que
aparecia no pôster da obra em frente, que já não está. Não me diga
que nunca leu um pôster que esteve dois anos em frente a seu nariz!
A mulher a olhava como se ela não fosse mais que uma pobre
louca, e não era para menos. Lavínia não estava louca, não. Estava
farta de que tudo lhe saísse mal.
Perante a ausência de resposta por parte da mulher, que até
parecia a ponto de chamar segurança, Lavínia olhou para a porta.
Dali podia ver que dois operários com capacetes amarelos se
encaminhavam à porta da obra em construção virtualmente
terminada.
Saiu correndo. Não o tinha notado antes por distração, mas
aquele edifício era tão majestoso como seu engenheiro. Imponente e
estratégico. Bonito.
Lavínia se deu conta de que ficou quieta na calçada, admirando
a maravilha que tinha construído Nick e, antes que perdesse aos
homens de vista, apressou-se para que isso não acontecesse.
Pretendeu cruzar a rua, mas justo quando colocou um pé no asfalto,
uma das bolsas rasgou e suas queridas roupas foram parar na beira
da calçada onde uma água enlameada escorria para a boca-de-lobo.
Todo seu trabalho de meses desperdiçado. O dinheiro que tinha
investido em materiais, o tempo, e desejo.
Presa em uma angústia desconhecida, Lavínia suspirou.
Recolheu as roupas como pôde, atou a bolsa, e quando elevou a
cabeça, os operários já tinham desaparecido. Cruzou a rua de todos
os modos. Deu uns gritos chamando a quem a ouvisse até que
conseguiu que um dos homens aparecesse.
— Preciso do número de telefone da construtora que fez este
edifício - gritou. Teve que repetir duas vezes a frase para que ao final
o operário a entendesse e lhe indicasse com a mão que aguardasse.
Por obra de Deus deu-lhe um cartão e lhe desejou sorte. Sorte!
Lavínia não lhe riu na cara por mera educação. Com o número entre
as mãos, obstinado ao peito para que não extraviasse nem alguém
pudesse tirá-lo caminhou até um telefone. Discou. A voz de uma
mulher com tom de locutora de rádio a surpreendeu.
— Hagen e Associados. Meu nome é Carolina, no que posso
ajudá-lo?
— Olá! - exclamou Lavínia, aliviada. — Preciso falar com o Nick.
— Desculpe?
Lavínia soube que a mulher reprimia a risada. Claro, como ia
ser tão burra de chamar uma grande empresa pedindo falar com o
chefe maior como se tentasse comunicar-se em casa com sua irmã.
— Com o senhor Hagen - corrigiu-se. — Meu nome é Lavínia -
continuou explicando perante o silêncio da operadora. — Ele deu-me
o número pessoal, mas... roubaram-me a bolsa e o perdi.
— Claro - resmungou a moça. — Pode deixar sua mensagem.
— É que não quero deixar uma mensagem - defendeu Lavínia.
— Preciso falar com o Nick.
Depois de outro instante de silêncio, a mulher replicou: —
Obrigado por comunicar-se com a Hagen e Associados. Que tenha um
bom dia.
E desligou. Lavínia olhou incrédula para o telefone. Voltou a
discar, mas desta vez ninguém respondeu. Para terminar, quando
retornou à rua, chovia muito. Só isso lhe faltava em um dia péssimo,
um dia para esquecer.
Ao chegar em casa encharcada, acionou a secretária enquanto
secava o corpo com uma toalha furada. A primeira mensagem era de
Hector. Sorriu com ternura. A segunda mensagem respondia a uma
voz desconhecida.
— Senhorita Dickinson, encontrei sua bolsa. Espero-a às cinco
na esquina do Mitre e Sarmento, na Avellaneda. Se quiser sua bolsa,
tem que vir sozinha e trazer vinte euros.
Lavínia voltou a calçar os sapatos e correu pela rua como se
fosse perder a vida. De fato sentia que assim seria: eram quinze para
às cinco.
Chegou à esquina atrasada cinco e cinco. Aproximou-se do
sujeito que abraçava sua bolsa, um tipo alto e musculoso que a
Lavínia pareceu mais um ladrão que um cidadão honesto. Trocou a
bolsa pelos vinte euros e se foi. Os tornozelos escorregavam porque
tinha os sapatos molhados, sentia frio e sede, mas ao menos tinha
recuperado sua bolsa, e nela o cartão de Nick.
Agora que tinha tudo servido de bandeja, ela tinha medo de
ligar. Passou longos minutos estudando o telefone que descansava em
uma mesinha na sala de estar até que uma rajada de valentia e
indiferença se apoderou dela e então discou. Mas o escritório da
secretária de Nick já estava vazio, e também o dele.
No dia seguinte, Lavínia se encontrou com a assistente social de
Hector. Perante as negativas da mulher, começou a se desesperar.
— E tudo o que fiz por ele? – dizia. — Tudo desperdiçado!
Ninguém se ocupa dele nessa casa. O dinheiro...
— O dinheiro não é um problema - interrompeu-a a mulher.
— Mas comigo tinha acesso a muitas coisas!
— Senhorita Dickinson, não se pode tirar um filho a uma família
por ser pobres.
Lavínia não podia acreditar que ela terminasse sendo a
desalmada quando tudo que tinha querido fazer era resgatar Hector
de uma perdição segura, como não tinha podido fazer com Helena
porque ela era naquela época quase tão pequena como sua irmã.
— Ser pobre não é o problema – explicou. — Eu também o sou,
mas tudo o que ganhava era para ele. O problema é o uso que minha
mãe e seu marido fazem do dinheiro.
— Pode ajudá-los economicamente se o desejar - replicou a
mulher.
— Você não entende - Lavínia se esforçava por não soar
impaciente, pois sabia que isso podia prejudicá-la, mas para falar a
verdade lhe estava esgotando a paciência. — Não penso em dar um
só centavo porque conheço o destino que teria esse dinheiro e posso
lhe assegurar que não será para meu irmão.
Lavínia retornou a casa com as mãos vazias e com uma terrível
dor de garganta. Os três dias que seguiram a febre lhe impediu até
de se mover. Tamara cuidou dela e finalizou alguns arranjos que
Lavínia devia a seus clientes, mas mesmo assim, o trabalho se
acumulou junto à máquina. Não lhe bastava passar três dias de
agonia, mas também se torturava só de pensar que tinha trabalho e
não podia sair da cama, e quando poderia falar com Nick.
Retomou suas ocupações habituais ao quarto dia, e só teve
tempo de preocupar-se com o trabalho atrasado e em seus
insistentes clientes, que sempre necessitavam os acertos de roupas
esquecidos para o mesmo dia.
Logo teve uma manhã livre de pressões mentais ao sétimo dia,
então se dispôs a chamar Nick. Embora tivesse planejado bem o que
diria ao telefone, ao discar o número lhe tremeram os dedos. Depois
de dois chamados, uma voz feminina atendeu.
— Escritório Hagen - disse. Nesse instante, Lavínia se esqueceu
de tudo o que tinha pensado dizer.
— Sou Lavínia - pronunciou quase sem fôlego. — Poderia por
gentileza falar com o senhor Hagen? - desta vez não cometeria o
engano de chamá-lo "Nick".
— Qual o assunto? - perguntou a mulher, surpreendida porque,
se fosse uma amante de seu chefe, o teria chamado "Nick", no
máximo "Nicky" ou "Nickito", como faziam outras.
— Bem, ele me comprou um terno... - explicou Lavínia, mas a
mulher não a deixou seguir.
— Hã –assentiu. — Pode me deixar sua mensagem.
— Senhora... – apelou. — É realmente impossível que eu fale
com Nick? É que preferia tratar este assunto em privado.
A senhora Rosales confirmou suas suspeitas ao escutar "Nick"
da boca de uma mulher, mas sabia por instinto que algo diferenciava
a essa moça do resto das conquistas de seu chefe.
— Se o senhor Hagen considerar necessário chamá-la, o fará -
explicou com respeito, mas cuidando de não criar falsas ilusões na
moça. O certo era que jamais tinha visto Nick comunicar-se com
nenhuma delas, e duvidava de que essa fosse uma exceção.
Lavínia suspirou. Falar com Nick era mais difícil do que localizar
o Presidente da Nação.
— Está bem - assentiu com resignação. — Só lhe diga que o
sinto muito.
— Que você sente muito? – replicou, remarcando o pronome
pessoal.
— Sim - assentiu Lavínia com dignidade. — Lhe diga que sinto
muito e que não quis machucá-lo - Lavínia percebeu o silêncio do
outro lado da linha e temeu por um momento que a comunicação
tivesse terminado, por isso adicionou: — Olá...
— O direi - respondeu a mulher.
— Suplico-lhe que o faça.
— Não tem que suplicar. O farei.
Lavínia agradeceu com a tranquilidade de que essa parecia ser
a secretária pessoal de Nick e não uma mera recepcionista, e
desligou.
Alguns minutos depois, a secretária levou uma pasta ao
escritório de Nick, que não levantou a cabeça quando ela entrou e lhe
deixou o material sobre a mesa.
— O que é isso, Fi? - perguntou tirando uns papéis.
— O contrato com o Porte Zuelo e uma mensagem. Ligou uma
mulher de nome estranho. Pediu-me que te dissesse que o sente
muito e que não quis te machucar.
Nick deteve as mãos sobre a calculadora e franziu o
sobrecenho. Em seguida levantou o olhar para sua secretária.
— Que ela o sente - repetiu, incrédulo.
— Hã.
— E não te censurou nada? - indagou. A mulher negava com a
cabeça. — Não te disse que eu vou pagar e não me enviou nenhum
insulto?
— Não.
Nick se encostou a sua cômoda poltrona de couro,
impossibilitado de acreditar em tal notícia.
— Como se chamava?
Fi engoliu em seco. Não acostumava errar em seu trabalho,
mas desta vez devia confessar que tinha falhado.
— Não o recordo. Fiquei tão surpreendida que nem sequer pude
escrever o nome, e era tão estranho que depois esqueci. A... Lau...
— Lavínia! - exclamou Nick.
— Sim, isso! - replicou Fi. — Lavínia! De onde terão tirado
semelhante nome?
— De Enéas.
Fi não respondeu. Tampouco fazia falta. O sabor do triunfo
invadiu a boca de Nick, que já podia pressentir o que aconteceria.
Como em todo jogo de sedução, agora ela estava pendente dele. Já
sabia que não podia ser muito distinta das demais mulheres que se
cruzou na vida. Agora ele se faria desejar, tal como tinha feito ela.
Foi de viagem a Córdoba para atender assuntos de um cliente.
Ali conheceu duas mulheres, ambas morenas e bonitas, com as quais
passou muito bem os quatro dias que esteve fora de Buenos Aires.
Enquanto isso, Lavínia seguiu com seu trabalho de reparações
de costura, com o que ganhava pouco, mas que graças a Deus era o
bastante. Tinha posto a foto de Nick, essa que tinha recortado da
revista embora ele não usasse seu terno, em um porta-retratos e
tinha colocado junto seu cartão. Algum dia o homem pensaria que ela
tinha crescido, e possivelmente então voltasse a chamá-la.
Capítulo 7
Pela manhã, Nick desceu do elevador. Passou frente ao
escritório de sua secretária e lhe deixou um papel amarelo.
— Bloqueie estes números, por favor - pediu à velocidade que
se movia rumo a seu escritório.
Obediente, Fi o fez com rapidez. Estava acostumada a isso.
Enquanto isso, Lavínia pressionava o pedal de sua máquina de
costura com cuidado, para que a costura não ficasse imperfeita. O
telefone a sobressaltou. A distração fez com que a máquina
começasse a engolir tecido como um monstro faminto e impiedoso, e
Lavínia não pôde deixar de dar um puxão para que soltasse. Não
houve caso. A agulha se quebrou: o vestido estava rasgado. Soltou
uma maldição. Para cúmulo, quando chegou ao telefone, este parou
de tocar.
Deixou escapar um suspiro de frustração e se sentou no sofá
que estava junto ao telefone. Tentava ficar tranquila para poder
pensar com maior clareza o que ia fazer agora que seu trabalho se
arruinou, mas a campainha interrompeu suas reflexões.
— Diga - respondeu.
— Lavínia?
A voz a deixou perplexa, mas não muda. Só de escutá-lo
eletrificava a pele.
— Nick! – exclamou ela. Antes que desligue, quero te pedir
desculpas - apressou-se a falar. — De verdade estou muito
arrependida, tinha tido um dia terrível.
Nick riu.
— Hoje também têm um mau dia?
— Não tão mau como o outro, mas raramente posso dizer que
tenho um bom dia - justificou-se ela. Como considerou que não lhe
tinha passado nada muito grave, exceto o do vestido, contou as
vicissitudes da jornada com certa graça. — Para começar, entupi o
ralo e inundei o banheiro. Tive que chamar um encanador que me
cobrou os únicos setenta euros que tinha. Também fiquei sem fio
preto e tive que sair e comprar um carretel de linha fiado sob a
chuva. Quando voltei, recordei que tinha deixado um novo e sem
estrear na última gaveta. Não fique surpreendido, eu sou
desorganizada e distraída. Para acabar, acabo de arruinar um trabalho
urgente, por isso estou me levando com meus demônios. Mas estou
bem. Em comparação com outros dias, hoje posso dizer que tenho
boa sorte.
Lavínia escutou encantada como Nick ria a todo pulmão. Não
estava zangado, não parecia falso. Sempre estava de bom humor.
— Hoje é quinta-feira – disse ele. — As quintas-feiras são meus
dias de boa sorte.
Uma quinta-feira tinha ganho no Paradise e em uma quinta-
feira tinha a conhecido. — Que tal terminar sua maldição em um
encontro com sorte?
O coração de Lavínia começou a pulsar desenfreado. Nick a
estava convidando para sair, estava lhe dando uma nova
oportunidade. Tinha-a perdoado.
— Todos os dias de minha vida são malditos - lamentou-se ela
um pouco a sério, outro pouco em brincadeira.
— Ah, vamos! - ele ria todo o tempo. — Não pode ser tão
negativa! Estou seguro de que essa é a causa de sua má sorte. Não
são os eventos, mas sim como os toma, o que assinala um bom ou
um mau dia.
Lavínia sentiu que as palavras de Nick, sua risada, sua
simpatia, embargavam-na. Abstraiu-se de tal modo pensando nas
emoções que experimentava, que até se esqueceu de que a tinha
convidado para sair.
— E o que diz? - insistiu ele.
— Sobre o que? - lhe escapou. Em seguida se deu conta de que
voltava a atuar como uma boba, mas ao parecer Nick não o entendeu
assim.
— Você sim que faz isso difícil... - refletiu em voz alta. Lavínia
soltou uma risada.
— Claro - respondeu.
— Claro o quê?
— O que seja...
Nick se sentiu agradado. Por fim tudo saía tal como o tinha
calculado.
— Você prefere que vá te buscar, ou nos encontramos no bar?
Nick não podia buscá-la. Ela não tinha modo de reunir o valor
suficiente para descer as escadas desse edifício maltratado e subir
depois em sua preciosa Mercedes.
— Prefiro que nos encontremos no bar.
Nick aceitou. Deu-lhe o endereço e o horário de uma discoteca
bar de Porto Madeiro, e se despediram.
O coração de Lavínia não deixava de pulsar. Esqueceu-se do
trabalho arruinado, do dinheiro que tinha perdido com o encanador,
de seu dia de má sorte. Com crescente entusiasmo procurou em
todas as gavetas em busca de roupa. Procurava algo digno de um bar
tão caro e de Nick.
Ela deu se conta de que queria estar bonita, e estava
convencida de que a roupa era essencial na hora de impactá-lo, por
isso acabou escolhendo um vestido preto e sandálias que
combinavam com sua bolsa de mão. Apanhou o cabelo em uma
trança e se maquiou com cores sutis. O vestido, que tinha sido
confeccionado por ela mesma, deixava ao descoberto seus ombros
pálidos e se ajustava às curvas de seu corpo.
Pensou em chegar dez minutos atrasada para assegurar-se de
que Nick já se encontrasse ali quando ela aparecesse. Enquanto
acomodava as últimas coisas na carteira, soou o telefone. Tinha medo
de que Nick suspendesse a saída, mas mesmo assim respondeu.
— Lavi... - sussurrou a débil voz de seu irmão nem bem ela
disse "olá".
— Hector! - replicou Lavínia. Pressentia que algo não estava
bem.
— Sinto-me mal... - choramingou o menino. Lavínia deixou cair
a carteira sobre a mesa, preocupada.
— Como que te sente mal?
— Dói-me a barriga.
— Faz quanto dias que te dói a barriga? - indagou.
— Dois dias. Tens que vir aqui, Lavi! Não aguento mais!
— E não te levaram ao hospital?
Lavínia se indignou com a resposta que seu irmão não chegou a
dar porque lhe desligaram o telefone. Cheia de raiva, recolheu a bolsa
e quase saiu correndo do apartamento.
Com a espera que tinha tido no ponto de ônibus e a caminhada
até o edifício onde vivia seu irmão, já estava vinte minutos atrasada
para o encontro com Nick. Golpeou a porta e esperou que Josué
abrisse. Como de costume, estava bêbado.
— Você está aqui por mim! - exclamou com um tom libidinoso
que Lavínia preferiu passar por cima.
— Onde está Hector? - perguntou dando um passo dentro.
Josué assinalou o quarto com a cabeça e Lavínia se encaminhou
a seu antigo quarto. Hector estava deitado na cama que antes tinha
sido sua.
— Lavi! -exclamou nem bem a viu entrar. — Dói-me muito!
Tinha os olhos escuros cheios de lágrimas. Lavínia avançou
justo no momento em que o menino teve em uma crise de vômito
que acabou sobre seu maravilhoso vestido preto. Sem pensar nisso,
envolveu-o em uma manta e o elevou em seus braços. Carregou-o
até o hospital.
— É apendicite - informou-lhe a pediatra de plantão. — Temos
que operar o quanto antes ou pode se converter em uma peritonite.
Sentia pena por seu irmão e pena por ela mesma. Adeus encontro.
Nick olhou seu relógio de braço. Eram onze da noite; tinha
combinado com Lavínia de encontrar-se às nove e meia.
Sentado no sofá em um lugar escuro, levou a taça de
champanhe à boca e pretendeu apreciar a música, uma canção
eletrônica de ritmo bem marcado. Entretanto, uma estranha sensação
de raiva o percorria. Tinha levado um fora de uma costureira.
— Senhor Hagen - disse-lhe um garçom. — Uma senhorita
chamada... né... - revolveu uns pequenos papéis que levava em um
bolso e leu: — Lavínia ligou. Disse que teve um percalço e que não
poderá vir ao encontro desta noite.
Nick deixou escarpar o ar de seus pulmões. A raiva ardeu em
seus olhos de gelo.
— Obrigado - disse apertando os dentes.
Nem bem o moço se afastou Nick percorreu o recinto com o
olhar. Outra vez essa menina zombava de sua paciência, como se ele
não tivesse melhor coisa que fazer se não dançar a seu ritmo.
Deteve o olhar em uma ruiva que conversava animadamente
com duas amigas. Acendeu com preguiça um cigarro. Cruzaram
olhares quando ela sorriu, Nick sabia que a intimidava, por isso
seguiu olhando para ela. Estava seguro de que assim ela se
aproximaria, e não se equivocou. A mulher apontou para o peito; não
podia acreditar que um homem tão arrumado e sedutor a tivesse
escolhido entre a multidão de mulheres que havia a seu redor. Nick
assentiu com ar malicioso.
Pouco depois a teve sentada junto a ele no sofá, entregue a
seus beijos e carícias. Duas horas mais tarde, teve-a na cama. E
enquanto ele dormia com a ruiva recostada sobre seu peito, Lavínia
se mantinha acordada na sala de espera da sala de cirurgia,
aguardando notícias sobre a operação de seu irmão.
Só pode deixar Hector às onze da manhã seguinte, porque
Cristina apareceu com um pote de sorvete. Lavínia evitou uma
discussão porque Hector precisava recuperar-se tranquilo, foi para
casa com o pior humor possível.
Nem bem chegou a seu apartamento, tirou o vestido e o pôs
para lavar. Tomou um banho, vestiu-se e se sentou junto ao telefone.
Nick merecia uma nova desculpa, por isso discou o número.
— Escritório Hagen - respondeu a secretária.
— Olá - disse ela. — Sou Lavínia outra vez. Gostaria de deixar
uma mensagem para o Nick.
Enquanto isso, Nick acabava de descer do elevador e se
encaminhava ao escritório de sua secretária, radiante.
— Bloqueia este número, por favor - indicou deixando um papel
sobre a mesa. Fi cobriu o microfone do telefone e gesticulou:
— Lavínia.
Nick indicou com um sinal de sua mão para passar-lhe a
chamada. Imediatamente Fi, que não tinha escutado nada do que
Lavínia lhe dizia, replicou:
— Aguarde um momento, por favor.
Lavínia esperou. Escutou a odiosa musiquinha de circo durante
um minuto até que a voz de Nick retumbou em seu ouvido.
— Não sei que jogo você está jogando, mas eu não gosto.
Ele mesmo reconheceu isso. Jamais lhe tinha importado o que
uma mulher fizesse. Não lhe interessava que chamassem ou não
chamassem que se fizessem desejar ou se dessem de presente.
Tampouco estava acostumado a levar um fora, nem a perder o bom
humor que o caracterizava, nem a andar todo o dia pensando em
uma mulher como se ela fosse sua vida.
— Não há jogos, juro - respondeu Lavínia com verdadeiro
remorso. Tinha parecido triste e arrependida, mas se esforçou por
relaxar brevemente.
— Hoje é sexta-feira, ainda estamos a tempo de fazer algo
sugerido. Por favor, me dê outra oportunidade, estou implorando...
Isso era o que Nick desejava e ao que estava acostumado, a
secreta súplica. Entretanto, essa atitude da Lavínia não chegou a sua
boca com o sabor do triunfo. Logo que pôde respondeu sério, com
aparência de zangado.
— Está bem. Espero-te no restaurante O Farol, do Hotel Hilton,
às dez. Não chegue tarde.
Lavínia aceitou sem voltas. Depois de desligar, dormiu um
pouco para estar lúcida pela tarde, quando visitou seu irmão. Ali se
reencontrou com Helena, que não abriu a boca nos escassos vinte
minutos que visitou Hector.
Lavínia permaneceu com sua família o tempo completo
permitido. Acabado esse tempo, viu que sua mãe ficava de pé e
recolhia sua bolsa da cadeira com modéstia. Era evidente que ia
embora.
— O que você esta fazendo? - perguntou-lhe.
— Vou embora - respondeu Cristina, como de costume, ao
tempo que se encolhia de ombros.
— Como você está indo? - Lavínia ficou de pé também e deu
um passo para ela. Da mesma forma a pegou pelo braço e a conduziu
ao corredor. Não queria que seu irmão as ouvisse. — Você não vai.
Hector precisa de você.
— Para que?
— Como para que? Ele não pode ficar sozinho.
— Se não quer que ele fique sozinho, pode lhe fazer
companhia. Ninguém lhe impede isso.
Lavínia apertou os punhos para não sacudir a sua mãe. Às
vezes tinha vontade de sacudi-la e ver se assim conseguia lhe
acomodar as ideias, lhe fazer entender como devia ser a vida em
realidade.
— Por que você me tirou ele? – exclamou. — Você nem sequer
toma conta dele!
— Me deixe em paz, Lavínia - replicou Cristina. — Você nem
sequer imagina o que é ser mãe.
Lavínia observou Cristina afastar-se junto com Josué. O sangue
ardia em suas veias como lava incandescente. "Se não quer que ele
fique sozinho, pode lhe fazer companhia você. Ninguém lhe impede
isso", recordou. E se sentiu capaz de matar.
Voltou junto a seu irmão sem emitir palavra.
— Conta-me uma historia? - perguntou ele. Sua voz carregada
de inocência que conseguiu acalmá-la.
— Mamãe não lhe conta?
— Não.
Hector dormiu às nove. Então Lavínia pediu a uma enfermeira
que estivesse atenta a ele para poder ir um pouco mais tranquila.
Correu até seu apartamento, tomou banho em dez minutos e se
vestiu tão rápido como foi possível. Para não perder tempo, deixou o
cabelo solto. Tinha que usar um vestido amarelo pouco adequado
para a noite, mas a falta do preto, não lhe restava muitas opções.
Apanhou o ônibus quinze para às dez. Quando chegou ao
restaurante, uma sensação emocionante lhe apertou o coração, ela
vacilou.
— Nicolas Hagen? - perguntou a uma recepcionista que
rapidamente lhe indicou a mesa.
Nem bem o viu, Lavínia ficou sem fôlego. Ele tinha posto um
terno sem gravata, o casaco aberto e os primeiros botões da camisa
desabotoados. Ficou de pé para recebê-la, mas Lavínia ficou sem fala,
cativada pelo seu belo rosto e seu perfume. Jamais tinha visto um
homem objetivamente tão bonito.
— Perdão - desculpou-se com um sorriso tímido. — Cheguei
tarde de novo.
— Não importa - replicou ele com um tom de voz descontraído.
Nick não o demonstrou, sempre parecia seguro e rápido, mas
se sentiu atemorizado por seus próprios sentimentos. Lavínia não lhe
ficou indiferente, nem podia olhá-la como a qualquer outra mulher,
como a um corpo que em pouco tempo levaria para a cama e logo
desprezaria como as outras. Sua mente lhe dizia que a conservasse
no espaço de seu desejo, mas os pálidos ombros descobertos, o loiro
cabelo combinado com o verde dos imensos olhos anulava aquela
vontade.
— Que lindo lugar - sorriu ela admirando o teto.
— Ele é - assentiu Nick.
Ele já estava acostumado com aquele restaurante, mas ao
parecer, Lavínia não estava acostumada a estar em um lugar como
esse. Não lhe notava mais que pelo brilho no olhar e a falta de
ocultação com que estudava cada canto, porque toda ela era uma
criatura deliciosa, muito mais bela que esse lugar e qualquer outro.
Ao contrário do que Lavínia esperava, Nick não lhe perguntou
por que o tinha deixado plantado na noite anterior. Mas ela mesma
imaginava o motivo: Nick acreditava que, interrogá-la, receberia uma
mentira como resposta. Para ele, o percalço que lhe tinha impedido
de vê-lo antes resultava muito claro: a teria chamado seu namorado
universitário, ou a teria visitado por surpresa, e então tinha tido que
suspender sua aventura.
Quando o garçom se aproximou, Nick pediu pelos dois.
— Espero que não se incomode, mas quero que prove a
especialidade deste lugar - explicou-lhe sua intromissão ao tempo
que levava a taça de vinho aos lábios. Gostava da comida, qualquer
comida, mas não ia admitir.
— Está bem - sorriu Lavínia. — Eu gosto de surpresas, e estou
segura de que esse prato será uma.
— Brindemos - propôs Nick a seguir elevando a taça da qual já
tinha bebido um gole, como destroçando voluntariamente o mito do
brinde. Lavínia respondeu segurando também a sua. — Por nós -
adicionou ele com uma voz gutural que fez Lavínia tremer.
Entretanto, não se notou porque em seguida fez com que as taças se
chocassem. Logo beberam um gole.
Enquanto esperavam a comida, Lavínia se deu conta de que
tinha deixado uma mão estendida sobre a toalha porque Nick a roçou
com um dedo. Olhou imediatamente a zona onde se estendia um
calor estranho e soube que a sensação se devia ao fato de que ele
não tinha acabado a carícia. O dedo de Nick se deslizava rumo a seus
dedos e ela sabia que provinha de seu pulso.
Sentiu-se sedenta e calorosa. Pestanejou inutilmente para
acabar com o ardor das bochechas e umedeceu os lábios. De acordo
com essas reações, Nick esboçou um ligeiro sorriso de satisfação,
apressou-se a chegar à ponta do dedo maior, e quando roçou a
toalha, retirou a mão.
Lavínia pensou que ia desmaiar. Obter tanto e de repente ficar
sem nada...
— Você sempre pensou em construir ou vem de família? -
perguntou tratando de ocultar seus sentimentos. O garçom servia o
jantar.
Ao escutar essa pergunta, Nick soube que seria difícil manter
conversações fúteis. Com as mulheres que se esteve era fácil falar de
assuntos superficiais: moda, viagem, gente e festas em comum. Com
Lavínia não compartilhava nenhuma dessas coisas, só sobrava as
profundas, as que o derrubavam a ela como rio ao oceano.
— Sim – respondeu seco.
— Sim a que? - riu ela em resposta. Não tinha ideia de que Nick
se esforçava por parecer ou era um enigma.
— A ambas as coisas.
— E quem era o engenheiro?
— Arquiteto - repôs Nick com tom áspero. — Meu pai era
arquiteto.
— OH, sinto muito! - exclamou Lavínia levando as mãos à boca.
Nick franziu o cenho, confundido.
— Por que? - interrogou.
— Disse "era". Faleceu recentemente?
Nick se engasgou com um “Deus”. Em vez de dizê-lo em voz
alta, bebeu de um só gole o resto do vinho que estava na taça e logo
a colocou sobre a mesa. Tomava tempo para responder, na realidade,
tampouco estava seguro de que lhe servisse de algo.
— Não se preocupe – disse. — Não está morto.
— Ah, que alívio! - sorriu Lavínia sem intenções duplas. — Eu
nunca vou deixar de estragar tudo com você, certo?
Nick sorriu com sinceridade perante quão inocente Lavínia lhe
pareceu atrás daquele comentário, toda a ternura e sensibilidade.
Apesar desses bons sentimentos, quase majestosos para uma alma
que se havia arrefecido por força de sacrifício, uma sombra ofuscava
o olhar para mais um bom momento.
O resto da noite, Nick se sentiu incômodo e nu. Como Lavínia
não pertencia a seu mundo, não havia ninguém a quem criticar,
nenhuma festa que recordar, nenhuma viagem que relatar. Porque ele
jamais relatava os seus, só tirava informação às mulheres fingindo
que suas historias banais lhe importavam. O que podia dizer ele de
suas viagens, se nelas passava o tempo todo em reuniões de
negócios e em camas alheias?
Soube que tinha cometido um engano em convidá-la a um
restaurante onde o silêncio e a intimidade permitiam as conversações
pessoais que ele desejava evitar. Quanto menos conhecesse as
mulheres melhor para ele. Melhor também se elas tampouco lhe
permitiam as conhecer. Não queria ataduras de nenhum tipo com
suas amantes, e conhecer algo verdadeiro sempre pesava em sua
consciência de algum modo. As mulheres com quem saía jamais
desejavam mostrar-se tal como eram em troca, entretanto, Lavínia
mal escondia sua pobreza.
Ele a devia ter levado aonde a música lhes impedisse de
conversar, onde as línguas não se utilizassem para falar, a não ser
para beijar, onde ninguém notasse que se fingia ser extrovertido e
imbatível quando em realidade aquilo não era mais que uma ilusão.
Lavínia lhe contou que tinha uma irmã e um irmão, que os três
levavam nomes mitológicos. Omitiu lhe dizer que levavam
sobrenomes distintos, possivelmente por isso seu único laço de união
era, além de sua mãe, a mitologia.
— E você? - perguntou ela. — Têm irmãos?
— Você gosta dos animais? - perguntou ele a procura de
escapar da pergunta sobre se tinha irmãos. Recordava que muitas
das mulheres com as que se deitava diziam ter pequenos cães de
raça.
— Eu adoro! - soltou Lavínia com entusiasmo. Dava-se conta de
que Nick evitava certas perguntas, mas pensava que se devia à
velocidade que sempre levava para tudo e que por isso desejava
passar de tema como folhas de uma revista.
— Acredita que levo meu irmão ao zoológico mais por mim que
por ele – brincou.
— Mas eu não gosto dos animais presos - disse depois.
Lavínia seguiu falando de seu irmão. Só omitiu que ela o tinha
criado os dois últimos anos, que tinha sido operado no dia anterior e
que era tão diferente dela em sua aparência física porque isso
delataria que não eram filhos do mesmo pai. Não lhe envergonhava
essa situação, seria o fato de que sua mãe não tivesse tido
escrúpulos em deixá-la só para ir atrás de tantos namorados quando
seu pai havia falecido.
— Vamos? - propôs ele quando percebeu que Lavínia formularia
outra pergunta incômoda.
— Claro - sorriu ela, sempre amável.
Enquanto ele ficava de pé sem pedir a conta, Lavínia se girou
sobre o assento e recolheu sua bolsa, que estava no encosto da
cadeira.
— Você pode me deixar no hospital Elizalde? – comentou. —
Você não tem problema de me levar até lá, certo? Você vive ali perto
ou ficará fora do caminho?
Nick teve apenas um instante para processar o que ela acabava
de dizer antes que Lavínia lhe enterrasse outra vez seus olhos
grandes e verdes nos gélidos dele. Ele ficou quieto, com as mãos nos
bolsos, medindo a chave da caminhonete que não tinha pensado em
tirar.
Deixá-la no hospital? O que ele tinha pensado era em levá-la ao
elevador, lhe roubar ali um beijo e acabar fazendo amor no quarto do
hotel! Era para isso que a tinha convidado a esse restaurante, para
não perder tempo e tê-la o mais perto possível da cama. E agora lhe
falava que ele a deixasse no Elizalde?
Lavínia leu algo em seu olhar, mas claro que não alcançou a
interpretar as perversas intenções que ele tinha albergado até esse
instante, por isso supôs que se tratava de preocupação.
— Ah, não se preocupe! - exclamou ficando de pé. — Me
perdoe, devia ter explicado. Não é por mim, é por meu irmão. Ontem
o intervieram cirurgicamente e concordei com minha mãe que eu
cuidaria dele esta noite, nada mais que isso. Não estou doente, nem
me caiu mal a comida – sorriu. — Ai, Nick - baixou o olhar e apertou
a bolsa entre as mãos. — Sinto-me terrível também por ter mentido
sobre a tal Margarida, de verdade - elevou a cabeça de repente - se
quiser o seu dinheiro, o que me deu pelos ternos, devolvo-lhe - não
tinha ideia de como o devolveria porque já o tinha investido em pagar
dívidas, mas só Deus sabia que o faria.
— Não quero meu dinheiro – interrompeu ele, ainda sem
alcançar e processar a informação que ela acabava de lhe dizer.
Estava aborrecido, zangado. Como não estar! Preferia isso antes que
o acesso de sentimentos que estava experimentando, essa estranha
compaixão por Lavínia, esse perigoso repicar de seu coração perante
algo que pudesse lhe estar ocorrendo, como o de seu irmão.
Caminhou para fora do restaurante sem dizer uma palavra.
Lavínia pensou que, se não pagava a conta, era porque ali o
conheciam, e o seguiu sem dúvida. Enquanto caminhavam, ele tirou
do bolso as chaves de sua Mercedes.
Levou Lavínia até o hospital em perfeito silêncio. Não
demoraram muito em chegar, o condutor se movia veloz e preciso
pela cidade, assim como fingia dirigir cada aspecto de sua vida.
Convenceu-se de que Lavínia era infantil e indecisa, que o estava
deixando louco de propósito, e prometeu que não lhe daria o gosto.
Depois dessa noite, que se esquecesse dele para sempre porque não
voltaria a chamá-la e bloquearia seu número para que ela tampouco
o chamasse.
Deteve o automóvel diante do hospital sem parar o motor.
Soube que Lavínia o olhava, mas ele se manteve com a vista à frente.
Do outro lado do para-brisa via cruzar alguns catadores e pensou nos
perigos que corria Lavínia só em uma instituição a essa hora da noite.
Pensou em acompanhá-la até o interior do hospital para assegurar-se
que nada lhe ocorresse, mas logo desprezou a ideia porque se
recordou que ela o tratava como um brinquedo.
— O que aconteceu, Nick? - perguntou Lavínia com tom de voz
preocupado.
— Nada - respondeu ele, seco.
— Disse algo que te incomodasse? Algo te preocupa?
Que não posso me desfazer de você, pensou Nick, mas se
esforçou por reprimir rápido o sentimento.
— Não - replicou.
— Então me olhe - ele não obedeceu. — Me olhe...
Diante do segundo pedido, Nick girou a cabeça. A penumbra
que se gerava no interior do veículo pelas luzes de fora conferia a
beleza mitológica de Lavínia, deu um ar de perfeição. Ela se
aproximou dele, olhou-o aos olhos e o beijou na bochecha, lhe
acariciando a outra.
Sentiu suave ao primeiro tato, mas assim que os dedos
pressionaram um pouco mais, o áspero da barba apareceu. A
sensação se estendeu pelos dedos de Lavínia e lhe resultou tão
prazerosa que aumentou sua tensão.
Nick percebeu imediatamente que lhe tremiam as mãos. Sem
dúvida estava nervosa, mas isso não lhe impediu de fechar os olhos
e, depois de beijar sua bochecha, deslizar-se para seus lábios.
Nick ficou rígido. Algo lhe queimou por dentro. A suavidade de
Lavínia lhe provocou uma eletricidade que lhe percorreu a coluna e se
instalou no ventre. Voltar a sentir o assustou. Tinha que converter
aquele ato em um fato meramente físico para acautelar-se, e se
esforçaria por consegui-lo.
Colocou os dedos no loiro e extenso cabelo de Lavínia e
saboreou o interior da boca feminina. Era deliciosa, ainda tinha sabor
de vinho e a devaneio. A língua de Nick, cálida e perita, arrepiou a
pele da mulher. A umidade dos lábios, o aroma de ambos e a
delicadeza das carícias os deixaram indefesos.
Ela entregou-se por completo ao beijo, Nick se negava a deixá-
la ir. Uma mão de Lavínia se deteve na coxa dele, e foi o caráter não
intencional daquela ação o que o excitou até lhe fazer doer as
vísceras. Tinha que levá-la para cama com urgência, acalmar o fogo
que o devorava, já que sem dúvida seria o único modo de tirá-la de
dentro.
— Nick... - sussurrou ela, ainda contra sua boca. — Tenho que
ir.
Tinha percebido a excitação masculina e, embora não a
assustou, sim foi difícil de segurar. Ela sabia como terminavam essas
coisas, mas não estava pronta para isso acontecer, por isso se
afastou.
— Obrigado por esta noite maravilhosa - disse antes de descer
do automóvel.
Nick a observou caminhar ao hospital sem forças sequer para
gritar que esquecesse dele, que jamais voltaria a chamar e que
encontrasse um namorado de sua idade. Sua idade... Nem sequer lhe
tinha perguntado quantos anos tinha. Tinha-a tido por horas na
mesma mesa e não lhe tinha ocorrido perguntar algo tão simples.
Porque não lhe importava, nunca lhe tinha importado a idade de uma
mulher sempre que concordasse em ir para cama.
Não queria tornar-se vulnerável, mas aí estava, não tinha
movido o automóvel ainda para ter certeza que ela entrasse sã e
salva ao hospital.
No preciso instante em que Lavínia entrou em um lugar de
maior escuridão que a rodeava, prometeu-se que não lhe telefonaria
que tampouco responderia suas ligações e que a esqueceria.
Convinha reconhecer que tinha perdido a aposta, que Lavínia era uma
jovem malcriada acostumada a sair com meninos de sua idade. A
diferença entre eles, ele era um homem e sabia muito bem o que
queria. Sobretudo se convenceu disso, de que ele sabia o que fazia,
de que tinha um plano, um objetivo, não só com Lavínia, mas com
sua vida, na qual uma menina como essa era descartável.
Desnecessária. Que maldita obsessão tinha com essa mulher, tendo a
todas as que queria na palma da mão?
— Bruxa - murmurou com os olhos semicerrados.
Pensou em todas essas questões até no sábado à tarde, quando
lhe ocorreu justamente o contrário: deixá-la ir seria lhe dar o gosto,
você acredita que uma mulher adulta, podia ser diferente de qualquer
outra. Lavínia não era diferente, todas as mulheres eram iguais, vis e
interessadas, e ele estava disposto a demonstrar-lhe.
Então decidiu ligar para ela. Mas esta vez, as coisas se fariam a
seu modo: nada de restaurantes formais, nada de silêncios
incômodos e conversações pessoais. A levaria a uma discoteca de
Porto Madeiro onde a música invadia os sentidos e os sofás
escondiam os pecados dos olhos públicos. Um lugar onde para ele
não havia intimidade, alma nem luz.
Lavínia respondeu ao segundo chamado do telefone.
— Olá.
— Ainda está internado seu irmão?
Foi tudo o que Nick disse. Nem sequer respondeu à saudação,
como se fazê-lo subtraísse tempo de suas verdadeiras prioridades.
— Nick! - exclamou ela, um pouco aturdida pela velocidade que
ele levava. — Não. Teve alta faz...
Nick a interrompeu.
— Espero-te no bar às doze.
Disse a direção, que era a mesma onde tinham planejado o
primeiro encontro fracassado, e desligou.
Surpreendida pela fugacidade do chamado, Lavínia olhou seu
relógio de braço. Eram dez. Teria que apressar-se se queria chegar a
tempo.
Capítulo 8
Lavínia chegou ao bar às doze e quinze. Nick tinha dado a
ordem de que, se ela ligasse, só se fosse ela, passassem-lhe o
telefone para assegurar-se de que ela viria nem que tivesse que
matar o presidente.
Não havia necessidade, porque Lavínia chegou e em seguida
procurou por Nick. Tinha dificuldade de ver pela quantidade de gente
e a escuridão, e também porque ele preferia as zonas mais ocultas.
Conseguiu encontrá-lo perdido em um sofá de estofado vermelho
quando ele levantou uma mão. Bebia uma bebida azul.
Lavínia suspirou. Tinha posto seu adorado vestido de veludo
preto, um pouco velho para a época, mas sempre atual. Viu Nick tão
atraente que ficou nervosa e por isso apertou a bolsa. Aproximou-se
com pressa até que um jovem quase a levou para frente quando deu
um passo atrás e lhe interrompeu o caminho. Lavínia se esquivou e
seguiu avançando até o sofá, onde se deixou cair, um pouco instável.
— Olá - saudou.
Em resposta, Nick se inclinou para ela, agarrou seu pescoço e a
aproximou de sua boca para devorá-la com os lábios e com a língua.
Lavínia ficou estática, presa de seus sentimentos, as que ele
despertava em seu corpo como ninguém antes.
A língua de Nick a invadiu sem aviso prévio deslizou-se por
seus lábios lhe fazendo uma cócega estremecedora até alcançar o
interior, onde começou um jogo que lhe fez tremer as pernas.
Procurava sua resposta, a que demorou em chegar porque ela achou
difícil reagir por causa da surpresa. Nunca a tinham beijado com
semelhante paixão, com tal abandono. O fato transbordava com tanto
poder que ela ficou com medo, mas ao mesmo tempo experimentou
um prazer novo, até esse dia desconhecido, que começou a pulsar em
seu peito ao tempo que o fazia na zona mais profunda de seu corpo.
Estava excitada. Um beijo lhe tinha excitado não só o sexo, mas
sim, além disso, os sentimentos, que trabalhavam em seu interior
como o crepitar do fogo.
Os dedos do Nick lhe davam ligeiros apertões na zona baixa da
cabeça, era uma massagem estremecedora que acabou de repente.
Depois da molhada demonstração de domínio, depois de deixá-la
tremente e sedenta, Nick se separou dela e a soltou como se jamais
tivesse desejado tocá-la.
— O que você quer beber? - perguntou amável, mas muito
direto.
Lavínia engoliu em seco antes de responder. Precisava assumir
que acabava de ser beijada com voracidade desconhecida e que tinha
sido liberada com a mesma intensidade.
— Qualquer coisa - conseguiu murmurar.
Nick estava de excelente humor, como sempre. Entretanto, algo
em seu estado de ânimo tinha mudado. Lavínia o notou mais seguro
de si mesmo, acelerado e exigente que em qualquer das
oportunidades anteriores.
— E o que teve seu irmão? - perguntou ele com ar indiferente,
ao tempo que deixava escapar a fumaça de um cigarro que tinha
acendido. Tinha um braço apoiado no encosto da poltrona, muito
perto do ombro de Lavínia.
— Apendicite - respondeu ela. Tinha dificuldade de ouvir e falar
porque era muito alto volume da música.
Assim gostava dos encontros: sem espaços para compartilhar
mais que as línguas, sem momentos para cruzar mais que duas
palavras. Só relação física. Só sexo.
— Esse vestido fica magnifico - disse Nick a seguir. Lavínia
sorriu pensando que até no dia anterior o pobre vestido tinha estado
banhado em vômito, mas não podia confiar a Nick esse pensamento.
— Você também esta muito bem - confessou com
acanhamento.
Nick não respondeu, nem sequer olhou para ela. Voltou a tragar
o cigarro e deixou escapar a fumaça por entre os lábios vagamente,
como se não fosse importante quanto tempo lhe demorasse fazer.
Depois se deslizou até ficar junto a ela.
— Você gosta? – perguntou olhando com insistência aos olhos.
Lavínia sorriu e baixou o olhar. Ele levantou sua cabeça segurando
pelo queixo.
— Não, assim não. Me olhe – ordenou. — Você gosta?
— Nick! - exclamou ela, completamente vermelha, vítima de
um sorriso nervoso.
— Porque eu gosto muito de você - acrescentou ele sem
contemplações. Nick pensava em tirar toda essa falsa ingenuidade
que ela fingia. Depois se afastou, outra vez como se jamais tivesse
desejado tocá-la, e jogou a cabeça atrás com os olhos fechados.
— Você gosta desta canção? - indagou.
— Não estou certa de havê-la escutado antes - respondeu
Lavínia com total honestidade. Ela não escutava música eletrônica.
“The world is mine” parecia ser uma das canções favoritas de
Nick, porque ele ainda não abria os olhos nem trazia a cabeça para
frente. Além disso, respirava de maneira diferente, de uma vez com
profundidade e agitação. Um momentâneo silêncio permitiu escutar
os murmúrios dos clientes, as taças, os passos. Em seguida ressonou
um tamborilar que foi fazendo-se cada vez mais forte até que se
acrescentaram outros sons e a música estalou em um grito de luxúria
e de paixão.
Nick se comportou do mesmo modo irracional da canção.
Levantou-se, atraiu Lavínia para si pós a mão na nuca de novo e
devorou sua boca em um beijo intimidante, poderoso.
Lavínia chegou a pensar que Nick estava drogado, mas isso não
era certo. Conhecia muito bem os sintomas do consumo de drogas e
do excesso de álcool, e esse homem estava limpo. Era apenas um
escravo de seus sentidos.
Lavínia o seguiu no jogo, entregou-se ao beijo como a melhor
de todas as mulheres que ele tinha tido e deixou que a música se
apoderasse de sua prudência como se levava a do homem.
Passaram umas duas horas assim, afundados na poltrona,
gozando da música eletrônica, beijando-se, acariciando-se. Tal como
ele fazia sempre e como tinha planejado fazer também com ela.
Lavínia não notou quanto tinha bebido até que Nick a convidou para
ver as estrelas e ela se atreveu a responder:
— Eu adoraria.
A suíte do Hilton estava decorada em cores salmão e branco.
Atraída por uma janela que se podia admirar meia cidade, Lavínia se
encaminhou direto para ali.
— Que vista bonita! – exclamou. — É uma verdadeira beleza...
Nick se apoiou na parede e acendeu um cigarro antes de
responder.
— A única beleza que eu vejo neste quarto é loira e tem posto
um bonito vestido preto.
Lavínia girou a cabeça para ele e sorriu. Nick umedeceu os
lábios. Desejava-a, desejava-a tanto! Então se aproximou por detrás
e a abraçou. Do mesmo modo febril apoiou os lábios sobre o pescoço
longo e branco.
— O vestido é precioso - murmurou sobre a pele feminina,
provocando a ela um formigamento sugestivo - mas para ser
honesto, estou morrendo de vontade de arrancá-lo de você.
Lavínia se sentiu orgulhosa de que ele admirasse uma criação
que ela tinha confeccionado, mas nesse momento não estava em
condições de pensar. Tinha fechado os olhos, presa na sensação
arrebatadora dos lábios de Nick sobre seu pescoço. Girou sobre os
calcanhares e ficou de frente a ele, posição em que pôde apoiar as
mãos sobre seus largos ombros.
Nick a apertou contra sua ereção que pulsava em sua calça e
apagou o cigarro aceso com os dedos para deixá-lo cair sobre o
tapete. Uma vez livre desse incomodo, deslizou as mãos até o fim do
vestido de Lavínia até encontrar o zíper, ao qual poderia desprendê-
lo.
— Quero te despir - murmurou com voz rouca. E logo, sentiu
desejoso de voltar a saborear a mulher, invadiu-lhe a boca com sua
língua.
Lavínia não resistiu. Abriu os lábios e se juntou ao jogo de
paixão que se iniciou entre ambos na discoteca, presa no mesmo
fogo que o consumia. Sentia a urgência de Nick em cada um de seus
movimentos e sabia que já não havia como voltar atrás. Estava
apaixonada por ele, por seus mistérios e seus defeitos, tudo o que
seu corpo em chamas lhe dizia, o que ele podia ser.
Não queria resistir. Queria enfrentar seus temores e entregar-se
pela primeira vez ao sexo prazeroso, a esse aspecto humano que
desconhecia.
Nick deixou cair o vestido que a envolvia. O deslizamento do
tecido produziu uma cócega suave em todo o corpo de Lavínia. Com a
roupa interior como única roupa, a pele arrepiou quando Nick voltou
a apertar contra seu peito. O atrito com a roupa masculina fez
estragos nela, que por instinto se aproximou mais à fonte de tão
extraordinária sensação. Cheirava a um suave perfume e aos dois.
Quase imediatamente, como demonstrando quem assinalava o
ritmo, Nick se afastou uns centímetros. Lavínia sentiu sua falta
perante a ausência de calor, mas entendeu que ele queria vê-la
seminua, tal como tinha anunciado. Ela fechava os olhos, abriu-os
quando percebeu que Nick se afastava um pouco mais.
Ele não teve piedade da inexperiência feminina, a que se
negava a admitir. Com os olhos irritados e a mente feita em um
turbilhão, examinou o corpo de Lavínia, estudou-a de cima abaixo
com lentidão. Em um princípio, ela se sentiu intimidada pela
intensidade do cinza que a contemplava. Compreendeu nesse preciso
segundo que os olhos de Nick eram um oceano tão profundo e
proibido que ninguém alcançava seu final. E lhe resultou incrível que
um olhar tivesse o poder suficiente para excitar a distância, sem
necessidade de beijos ou atrito, porque seus olhos a acariciavam de
longe.
Lavínia perguntou para ele se queria que ela acabasse de se
despir, já que a despia com os olhos, mas em troca baixou os dela.
— Não, assim não - disse ele. — Quero ver você olhando para
mim, que entenda que és linda.
Ele se convenceu de que desejava por de lado a falsa vergonha
de Lavínia, mas em realidade tudo o que fazia era controlar suas
emoções. Ansiava o contato visual com ela porque o excitava, estava
tão agitado em seu interior que até o fazia pensar que não estava
morto. Ele fingiu personalizado e luxúria enquanto apertava os
punhos ao lado do corpo para conter os sentimentos.
O que estava errado? Por que o que ele mais tinha visto eram
corpos esculturais antes, porque o de uma deusa romana lhe parecia
gloriosa?
Por um instante, Lavínia perdeu todo vestígio de timidez, algo a
distraiu daquela impressão. Não sabia o que significava o brilho que
acabava de ver nos olhos de Nick, mas a cativou ao ponto de lhe
fazer esquecer o resto.
Para acabar com riscos sentimentais desnecessários, ele
começou a desabotoar a camisa ao mesmo tempo em que levantava
um e outro pé para abandonar os sapatos. Pretendia igualar em
condições a Lavínia. Desejava que tivesse mais que uma lâmpada
acesa para gozar da imagem que a mulher lhe oferecia, mas não
queria perder tempo em acender mais luzes.
Lavínia não se moveu. Poderia ter se aproximado, como
seguramente faziam as outras que ele levava para cama, tomar o
sensual atrevimento de lhe tirar a roupa. Ela não se atreveu. Tinha a
boca seca, estava sedenta e encadeada aos segredos que se
desvaneciam a escassos centímetros.
Pouco a pouco, o peito do Nick ia aparecendo por debaixo do
tecido que se abria, tão comprometedor como seu rosto. Ele não
sentia pudor algum, queria que Lavínia o visse nu, que se abrisse a
seus sentimentos.
A camisa deslizou pelos braços até cair enrugada aos pés de
seu dono. Tudo tinha o tamanho justo, pensou Lavínia. Os músculos
desenvolvidos do torso, o ventre e os braços; as pernas, o vulto que
se avistava proeminente debaixo das calças pretas.
Ela mordeu o lábio inferior a procura de compreender suas
próprias emoções. Eram muito fortes para seguir as suportando
quieta em seu lugar.
Os pensamentos de ambos coincidiram, porque Nick avançou os
passos que os separavam até ficar frente a ela. Estava a menos de
dez centímetros.
Lavínia estremeceu quando os dedos de Nick lhe rodearam um
pulso. Do mesmo modo possessivo e exigente, ele levou sua mão
direto para braguilha de sua calça.
— Isto quero que faça você - solicitou.
Lavínia umedeceu os lábios e apertou os dedos sem querer. A
dureza que percebeu debaixo do tecido a deixou perplexa, um
momento brilhou o olhar. Entretanto, como desejava Nick e sua
imagem enchia todos seus sentidos, não duvidou em estender a outra
mão e ajudar-se a cumprir com o que lhe tinha pedido. Tremeu um
momento, mas em seguida ouviu o ronrono do zíper e soube que
tinha completado com sua meta. Nick sorriu. Parecia honesto. Ele
era.
— Falta o botão - disse elevando uma sobrancelha em uma
careta simpática. Tinha um rosto muito expressivo, de gestos
sensuais e sugestivos, e notava que estava desfrutando do momento.
A brincadeira ajudou a Lavínia a relaxar-se. Ela também sorriu
e seus olhos cintilaram ao cumprir com o desafio. Enquanto o fazia,
não soube como, roçou algo carnudo e quente. Muito quente. Deu-se
conta de que tinha chegado dentro da cueca.
A surpresa que seu parceiro teve com o contato entre a mão
feminina e sua masculinidade, produziu tanto prazer em Nick que
fechou os olhos um instante enquanto inspirava profundamente.
Pouco a pouco, ela descobria que o sexo não era solene nem
complicado, a não ser um jogo divertido que só requeria liberar-se de
ataduras, culpas e repressões. Ou possivelmente ele o fazia assim,
não sabia por que não tinha feito amor com outros homens. A mescla
de nervos, paixão e gritaria que se agitava em seu peito a estimulava
para seguir experimentando.
As calças caíram como instantes antes tinha feito a camisa.
Então se fizeram visíveis os boxes brancos, Nick se agachou para tirar
as meias. Quando se levantou depois do rápido movimento, levantou
sua companheira e a levou até a cama. Lavínia riu porque todo o
tempo ele conseguia surpreendê-la.
Foi um instante angélico em meio de algo que Nick pretendia
fazer algo demoníaco. A maioria das mulheres falava e ele estava
acostumado a rir com elas enquanto se preparavam para o sexo.
Lavínia por momentos estava calada, como se em seu interior se
debatessem ideias que ele desconhecia, mas em momentos se
relaxava e tudo se convertia em uma espécie de música.
Nick decidiu não questionar mais a situação. Cobriu-lhe a boca
com a sua para acabar com a risada e manter o silêncio, que era
melhor que lhe permitiria o coração participar de um ato físico, e
assim se sentiu tranquilo. Conseguiu dominar-se.
Lavínia sentiu que a possuíam e gemeu perante a insinuação. A
língua de Nick parecia mais cálida que nos beijos anteriores, sua
temperatura corporal tinha aumentado. Ainda com a umidade dos
dois nos lábios, ele deslizou os seus pelo rosto feminino, onde esse
calor ia misturando com a pele da mulher como gotas de chuva no
oceano.
— Não faça isso - pediu Nick de repente. — Não te negues para
mim.
Lavínia abriu as pernas imediatamente. Não se tinha dado conta
de que as tinha encolhido, aprisionando-o a ele entre elas e lhe
impedindo o livre movimento. Esforçou-se por reprimir essa ação
inconsciente com a qual pretendia impor um limite e tentou entregar-
se ao prazer de novo.
Não demorou muito em chegar; a mão que ele deslizou pelo
interior de sua coxa enquanto lhe beijava o pescoço a fez estremecer
de gozo e de emoção. Nick queria que ela se preparasse para ele, que
estivesse pronta para recebê-lo em seguida, por mais que ainda
pensasse tomar seu tempo antes de entrar nela. Com intenção de ir
provando a sorte, apanhou seu sexo entre as mãos e com o polegar
lhe acariciou o ponto mais sensível através do tecido de seda da
calcinha. Lavínia se queixou de gozo. Os dedos peritos de Nick lhe
produziram sensações que conseguiram deixá-la tremente e de uma
vez exigente. Em procura de saciar essa extraordinária necessidade
de mais, arqueou-se para o corpo de seu amante, até que algo
distraiu sua atenção.
Girou a cabeça. Primeiro a tinha sentido na cara, mas agora o
via: o cortinado se balançava com lentidão, produto da brisa que
entrava no quarto por uma das janelas abertas. Então terríveis
lembranças se amontoaram em sua mente e um calafrio lhe
percorreu as costas. Nick se deu conta de que Lavínia se debilitava,
seu desejo por ele se obscurecia.
— Feche a janela - sussurrou ela com a voz tremendo de medo
e já não de prazer.
Nick se sustentou sobre os cotovelos para olhá-la aos olhos.
Durante esse instante pareceu ter abandonado de repente ao homem
apressado, superficial e exigente no que se converteu.
— Há algo que queira me dizer? - perguntou.
Lavínia não podia ser virgem. Nenhuma mulher o era se tinha
passado a adolescência, pensou Nick. Mas também era certo que ela
não tinha a idade das mulheres com as que ele se deitava e
tampouco levava a mesma vida que elas. Nem sequer se tinha
movido até que lhe indicou o que queria que fizesse, tão distinta de
todas as demais com as que tinha intimidade. Quase se parecia com
as garotas de sua adolescência.
— Feche a janela, por favor - repetiu Lavinia sem olhá-lo aos
olhos. Ainda via a cortina.
Nick se deslizou para trás, ficou de pé e obedeceu sem dizer
uma palavra. Não estava irritado. Contra sua vontade e de seu férreo
controle das emoções, preocupou-se.
Quando voltou para a cama, ficou quieto um momento,
admirando o corpo que ali aguardava sua volta. Secou-lhe a boca e
lhe arderam os olhos. Seu coração pulsou desenfreado enquanto
lutava contra os sentimentos. Em procura de escapar deles,
estabeleceu-se sobre Lavinia e a olhou aos olhos.
— Se tiver que me dizer algo, é melhor que o faça agora -
repetiu.
Há tanta coisa!... Pensou Lavínia. Que tenho medo do vento,
que gosto muito de você, que acredito que te amo. Que por isso me
confio em seus braços. Mas calou.
— Que te desejo - disse em troca. — Que te quero muito.
Nick não acreditou, mas acostumado a não sentir, sorriu. E
enquanto a beijava nos lábios de novo, ela se atreveu a responder à
provocação colocando uma mão em sua nuca para pressioná-lo mais
contra sua boca. Queria que Nick lhe fizesse esquecer tudo de mau,
que a protegesse do passado com sua experiência.
As carícias recomeçaram. Primeiro em seu rosto, onde Nick
deslizava um dedo, logo em seu pescoço. Ambos os polegares do
homem correu para baixo do sutiã rosa até alcançar a zona erógena
feminina, toque que fez Lavínia estremecer de novo. Quase lhe
parecia que não podia respirar. Com a mesma habilidade, Nick
desprendeu o sutiã e o puxou para longe.
Também se afastou e a olhou. Outra vez a observava
abertamente, sem ocultar o desejo que percorria cada fibra de seu
corpo e lhe iluminava os olhos obscurecidos.
As mãos de Nick percorreram a parte interna da perna de
Lavínia, até a coxa. Assim se apropriava de sua roupa interior.
Enquanto lhe tirava a calcinha, pensou que ela era bonita, que tinha
visto e medido centenas de corpos que objetivamente podiam ser
mais belos que esse, entretanto nenhum se igualava. Lavínia era
perfeita por seus sentimentos, tão distinta e natural. Tinha levado
muitas mulheres para a cama, mas uma Lavínia nunca.
Tinha pretendido ignorar sua atitude em relação à janela
aberta, mas não pôde fazê-lo embora se propusesse. Pressentia algo,
embora não sabia o porquê. Por isso não investiu com ferocidade,
aproveitou para fortalecer seu autocontrole enquanto tirava a cueca.
Lavínia pestanejou várias vezes ao ver pela primeira vez um
homem inteiramente nu ao vivo e a cores. E pensou que se era
maravilhoso, não despertava medo nem impressão, a não ser
curiosidade e regozijo, possivelmente porque se tratava de Nick e não
de qualquer outro.
Gostava de vê-lo, admirava o modo em que seus músculos se
esticavam ou se distendiam de acordo com seus movimentos; a
forma em que ele agia, o olhar que a consumia.
Nick nunca era rude com as mulheres, exceto com a que assim
o exigia. Com Lavínia não bastaria o mesmo de sempre, com ela teria
que ser mais cuidadoso porque não podia arriscar-se a lhe dar uma
má estreia. Não queria preocupar-se, não queria sentir-se
responsável por uma mulher que não voltaria a ver em sua vida. Mas
a verdade lhe impediu de atuar conforme seus costumes.
Não se impulsionou dentro dela. Além disso, ainda não tinha
colocado a camisinha, e jamais tinha sexo com alguém sem proteger-
se e as proteger. Deslizou primeiro dois dedos pelo púbis que cobria o
secreto lugar feminino até dar com o contorno, onde jogou um
momento. Lavínia sorriu com os olhos fechados, jogando a cabeça
para trás. Sentia-se fabulosa, como uma eletricidade que ia e vinha
que nascia ali abaixo e morria não sabia onde. Acrescentou-se
quando algo quente e molhado lhe cobriu um peito. Era uma boca,
que começou a lhe sugar um mamilo e com isso conseguiu deixá-la
sem ar.
Ele achou outra vez o ponto exato onde lhe sentia mais agradar
e o estimulou com o polegar. Enquanto isso deslizou dois dedos em
sua cavidade, no caso dela jamais tivesse albergado ali algo. Nunca
tinha tirado a virgindade a alguém, não tinha ideia de como devia
fazer, mas só Deus sabia que faria todo o possível para que, em caso
de que sua suspeita fosse certa, Lavínia tivesse uma grata lembrança
do sexo. Depois de tudo, ele se considerava um especialista. Acaso
não o era?
Sentia-se um inexperiente. Era a primeira vez que se tomava
tanto tempo para começar com um ato sexual, mas também era a
primeira vez que tinha a uma mulher virgem em sua cama. Embora
não o demonstrasse, isso lhe gerava novas responsabilidades e
temores. Não queria ser responsável e odiava-se por sentir medo.
O que estava fazendo? Perguntou-se. Devia deter-se nesse
preciso momento, não podia tirar a virgindade a uma mulher que
possivelmente a tivesse conservado intacta para o homem de sua
vida. Isso já não existe, retratou-se. Se fosse virgem, não estaria na
cama com um desconhecido, esforçou-se por pensar. Mas, a quem
queria enganar? Sabia que Lavínia não tinha estado com um homem
antes por algumas razões que ele jamais saberia, porque depois
dessa noite, não haveria mais Lavínia para ele. Tinha que deter-se,
entretanto, não podia. Era um egoísta ganancioso, sempre o seria.
Queria sê-lo.
— Lavínia... - ouviu-se murmurar com voz rouca. Esperava que
ela o detivesse, mas, pelo contrário, a mulher replicou: — Quero isto,
Nick - assegurou. — Quero que continue.
Em vista de que Lavínia não emitia sinal algum de dor, a não
ser de gozo, ele introduziu outro dedo. Morria de excitação de ver ela
perto do orgasmo, mas tinha que conter-se, devia esperar. Estava
úmida e preparada, mesmo assim, ainda tinha mais caminho para
percorrer, porque também era estreita. Muito. Já não podia enganar-
se que possivelmente tinha feito amor com alguém antes.
Aproveitou que podia afastar-se dela para abrir a gaveta da
mesa da noite e extrair quase às cegas uma camisinha de todas as
que haviam ali. Abriu o pacote com a boca e usou ambas as mãos
para colocar o látex sobre seu membro erguido. Cuspiu a parte de
plástico que tinha ficado entre os dentes e retornou a Lavinia,
esperançado que a breve interrupção não lhe tivesse feito diminuir o
desejo.
Queria que ela soubesse o que lhe esperava. Em busca que
compreendesse, roçou a entrada de seu corpo com a ponta de seu
membro sabendo que ali encontraria asilo. Introduziu-o apenas um
milímetro e logo o deixou sair para voltar a entrar, desta vez um
pouco mais.
Devia ter cancelado tudo, dizia enquanto lhe acariciava as
têmporas com os polegares e ia deslizando lentamente nela. Devagar,
muito devagar. Devia de ter protegido ela de minhas intenções.
Enterrou a cara entre os peitos de Lavínia, que, ansiosa e
excitada, já se arqueava para ele para lhe facilitar a entrada. Ela o
fazia por puro instinto, porque o que estava fazendo e gostava.
O instante em que Nick sugou o rosado mamilo de Lavínia, seu
membro se deslizou no interior da mulher quase sem que ele fizesse
algum esforço. Ela apertou os olhos. Ele colocou uma mão sobre a
sua.
— Olhe para mim - ordenou.
Lavínia abriu os olhos. Não era Josué quem a possuía, era o
homem que ela tinha eleito, o homem por quem estava apaixonada.
Nesse instante, Nick pôde sentir o lugar exato onde acabou com
a inocência de Lavínia e repetia com força. Não sabia conter suas
emoções quando de uma vez devia dominar a força impetuosa de seu
corpo. Nunca tinha tido sexo com alguém devendo controlar ambas
as torturas juntas.
Os únicos sinais de dor que ela emitiu foram um suave gemido
e que apertou as pernas.
— Por favor, me ajude – pediu a ela, tão suave e sereno que
quase parecia outro homem. — Relaxe.
Quanto mais ela se fechava, mais doía, e mais custava a ele
reter sua explosão interior. Por sorte Lavínia obedeceu
imediatamente. Confiava nele. Confiava tanto que tinha entregue seu
corpo e ele não era mais que o pior engano de sua vida!
Sacudiu a cabeça. Essa relação o ia deixar inútil; esgotado de
conter, esgotado de ignorar.
Pouco a pouco foi recuperando o movimento. Primeiro de
maneira muito lenta, logo compassada. O choque que se produzia
entre os sexos foi relaxando o interior de Lavínia até que a dança de
ambos os uniu cada vez mais freneticamente, ela rompeu-se em
gemidos e a ele em grunhidos involuntários. Seus corpos estalaram
uma bomba cuja ressonância durou apenas uns instantes, mas foi tão
capitalista que os deixou sem forças para mover-se ou para falar.
Nick não tinha tido um sexo tão bom fazia anos. Ao parecer
conter, cuidar e esperar surtiam efeitos devastadores. Ou
possivelmente era Lavínia, não quis refletir sobre isso.
Ela se abraçou a Nick. Pensava que a vida se resumia a esse
instante, o mais feliz de sua existência até agora, quando
comprovava que podia desfrutar como mulher apesar do passado e
do medo.
— Obrigada - sussurrou com os olhos úmidos.
O coração de Nick reagiu imediatamente, atou-se e lhe fez
cravar a pele. Jamais uma amante tinha lhe agradecido o sexo e não
era motivo para fazê-lo. Por que ela agradecia, se a tinha feito perder
sua inocência? A sorte e a culpa o invadiram em partes iguais, e
como se negava a qualquer tipo de sentimento, sua mente reagiu
quase tão rápido como seu coração e restabeleceu a barreira que o
separava da alma. Vazio, assim se sentia. Assim devia ser.
Meia hora depois, tinham pedido serviço de quarto. Ambos se
apoiavam no encosto da cama; ele fumava um cigarro e Lavínia bebia
um suco de frutas com um sorvete. De não haver-se esforçado por
ser distinto, Nick até haveria sentido indiferente com a atitude da
mulher e teria desejado fazer o mesmo, mas em troca esbanjava sua
saúde no cigarro.
De repente percebeu que ela tinha pegado o olhar indiferente
em seu rosto, então a olhou. Lavínia o observava com os olhos de um
anjo e o sorriso de uma deusa apaixonada por um mortal.
— Você é muito elegante - disse-lhe. — Acredito que a palavra
justa seria bonito, embora os homens não gostem que lhes digam
isso.
A confissão o abrandou involuntariamente e o levou a sorrir
com ternura. Os olhos de gelo estavam mais quentes, o tempo
parecia não correr.
Horas depois, Lavínia despertou. Não se tinha dado conta
quando adormeceu. O forte corpo de Nick estava junto ao dela,
pequeno e delicado em comparação com o dele.
Estava amanhecendo. O céu cinzento, tão parecido com os
olhos de Nick, refletia-se em seu rosto juvenil e renovado. Lavínia o
observou dormir, quente e depravado, até que o sono voltou a vencê-
la e ela também dormiu.
Quando voltou a despertar, achou-se sozinha na cama. Uma
terrível sensação de desolação e medo lhe percorreu o corpo. Sentou-
se alarmada.
— Nick? - perguntou.
O quarto parecia estar vazio. Tinha banheiro, quarto, cozinha e
sala, mas pressentia que ele já não estava ali, em nenhuma parte
onde ela pudesse voltar a vê-lo.
— Nick? - repetiu com voz tremente.
Lavínia engoliu com força antes de girar a cabeça em busca de
quem lhe faltava. Mas em troca se encontrou com dois largos papéis
que saiam por baixo do abajur. Pegou tremendo.
Paradise conseguiu ler, porque era o que mais destacava do
conjunto, antes que as palavras de seu amigo interrompessem
qualquer outro pensamento.
Por acaso não te deixou como lembrança duas passagens para
o Paradise? Com isso dizem que está acostumado a agradecer a
suas...
— Amantes - completou a frase que na discoteca nenhum tinha
querido completar.
Lavínia cobriu o rosto com ambas as mãos e balançou a cabeça.
Como não se deu conta antes? Por que se tinha permitido abrigar a
fantasia de que Nick pudesse chegar a querer algo dela? Era uma
estúpida, uma iludida que ainda acreditava em contos de fadas.
Zangada consigo mesma ficou de pé, tomou um ducha e se
vestiu. Pensou em deixar as passagens na mesa de noite, mas
sabendo que elas eram a última coisa que Nick estava pensando
sobre ela as pegou, reuniu as partes de sua dignidade, as que tinham
ficado dispersadas, como sua roupa, por esse quarto de hotel muito
caro, e se encaminhou ao elevador.
No hall de entrada, aproximou-se da recepcionista e entregou o
cartão magnético que servia para abrir a porta do quarto.
— Lhe devo algo? - perguntou por cortesia. Duvidava que Nick
a deixasse pagar a conta, isso teria sido o cúmulo, e também não
tinha ideia de como ia pagar em caso de que assim fosse.
— Dever? Claro que não - respondeu a moça dando um meio
sorriso. — O senhor Hagen é virtualmente o dono desse quarto. Está
reservado para ele todo o mês.
Lavínia amaldiçoou a funcionária por soltar tanta informação
que de certeza tinha sido proibida de dar. Se o fazia era só para as
amantes de Nick, dando o presente que lhe ofereciam, como a ela.
Lavínia sentiu que lhe enterravam uma adaga em uma ferida
ainda aberta. Nick estava acostumado a levar a esse quarto uma
mulher distinta cada noite, e outros se divertiam as vendo desfilar.
No domingo contou tudo a Tamara.
— Aqui está o presente - disse deslizando os dois ingressos do
Paradise para o lado da mesa onde sua amiga se encontrava sentada.
— Toma-o como meu presente de bodas: sua lua de mel. O que você
acha disso?
— De maneira nenhuma, Lavi - replicou Tamara, quase
ofendida. — Você tem que ir a essa viagem.
— Você esta louca? - replicou a outra com uma risada irônica.
— Por que?
— E se ele estiver lá? Se não foi uma despedida, e sim um
convite?
— Não posso ser tão ingênua duas vezes - respondeu Lavínia,
resignada.
— Os ingressos para o cruzeiro são um pagamento, e se fosse,
estaria aceitando-o.
— E o que tem? Quantas mulheres o fazem? - gritou Tamara.
Lavínia arqueou as sobrancelhas, indignada.
— Você faria isso? - perguntou não sem certa irritação. Tamara
encolheu os ombros ossudos.
— Por que não? Esquece-o, divirta-se. Depois de tudo, quando
foi para cama com ele, sabia bem que classe de homem era.
— Sim, sim, sabia! - reconheceu Lavínia, ainda irritada com ela
mesma.
— Mas acreditei que possivelmente desta vez fosse especial
para ele... diferente.
— Ai, Lavi! - exclamou a outra, risonha pela ingenuidade de sua
amiga. — Não existem mulheres especiais para esse tipo de homens.
Como viu que o ânimo de Lavínia estava longe de melhorar, e sim
piorava, decidiu acabar com as provocações. — Você tem que ver o
lado positivo do assunto, amiga.
— Ao menos pôde fazê-lo... sempre acreditou que não poderia,
depois de Josué. Você fugiu de cada relação que teve, nem bem seus
namorados conseguiram se insinuar um pouco mais. E agora foi para
cama com um desconhecido! É genial! Nota-se que o tal Nick te
pegou forte. E acredite, têm em suas mãos a possibilidade de uma
princesa. Um cruzeiro, Lavínia! - Tentou pôr um pouco de entusiasmo
tomando as mãos de sua amiga por sobre a mesa. — É algo com o
que jamais haveríamos sequer sonhado!
— Não quero poder fazê-lo, nem quero um cruzeiro. Quero que
ele me ame - replicou Lavínia com pesar. A Tamara estremeceu o
coração.
— Não acha que é muito rápido? Tiveram dois encontros. Além
disso, não pode fazer com que alguém te ame, muito menos um
homem como esse. O melhor que pode fazer é embarcar neste navio
e te deixar levar.
— Você iria comigo? - Tamara entreabriu os lábios, morta de
vontades de dar o sim. — Seria sua despedida de solteira.
A morena engoliu com força. Morria por dizer que sim, mas não
podia aceitar. Não tão perto do casamento.
— Você sabe que eu adoraria te acompanhar, mas não posso. O
casamento está próximo e tenho que ir ao meu novo trabalho.
Lavínia assentiu em silêncio enquanto suspirava.
— Está bem - acabou por dizer. De repente se sentia valente e
poderosa, tanto que até se ergueu orgulhosa. — Depois de tudo, é
uma oportunidade única.
Na segunda-feira, Nick chegou ao piso de seu escritório com o
mesmo bom humor de sempre. Aproximou-se do escritório de sua
secretária com um sorriso e um papel na mão. Era uma das folhas do
bloco de papel de notas do hotel que, como cada começo de semana,
entregava a sua fiel Fi.
— Bloqueie este número, por favor - ordenou ao passar.
— Acreditei que traria muitos mais - brincou a mulher. As
segundas-feiras, Filomena bloqueava mais de um número sempre,
porque Nick levava várias mulheres para cama. Ele riu.
— Este foi um fim de semana pouco convencional - admitiu.
A mente da secretária se disparou com rapidez. Que mulher
podia deixar Nick esgotado? Possivelmente pensando que a
combinação de números podia lhe dizer algo da pessoa que era sua
proprietária, recordou-os enquanto os marcava na máquina que
servia para impedir as chamadas entrantes de certos telefones. Se
não se equivocava, tratava-se de uma característica de La Boca.
Apesar de saber com claridade que Nick não se comunicaria
com ela, Lavínia aguardou sua chamada na segunda-feira, mas o
telefone jamais soou.
Nick, por sua parte, experimentava uma estranha sensação de
desamparo. Acreditou que o sabor do triunfo por ter conseguido levar
Lavínia para cama seria muito mais doce. Pensou que o faria se sentir
vivo, como cada vez que se vingava de uma mulher com a ignorância
depois de ter sexo, embora tivesse bem claro que não lhes doía,
porque tampouco se interessavam por ele. No máximo as afetava em
suas intenções, porque muitas queriam conquistá-lo para lhe tirar
outras coisas. Por isso ele as conquistava primeiro, tirava-lhes o que
queria, e logo as bloqueava. Neste caso, até se sentia irritado,
nenhuma parte de seu corpo experimentava algum tipo de satisfação.
Quando o telefone soou na terça-feira, Lavínia chegava de uma
agência de turismo que tinha ido perguntar quais eram os
documentos que necessitava para embarcar em um cruzeiro pelas
costas da Argentina, Uruguai e Brasil, como explicava a passagem do
Paradise. Correu para atender, era impossível não ter ilusões, mas
desapareceram nem bem descobriu que se tratava de uma cliente
para lhe perguntar quanto lhe cobrava para colocar um fecho em um
blusão de napa.
Embora o negasse, Lavínia esperou o telefonema de Nick toda a
semana. Trabalhou enlouquecidamente para reunir dinheiro, Tamara
lhe emprestou parte do que estava economizando para seu
casamento como reserva, e embora Lavínia se negasse porque lhe
parecia uma loucura que, com tantas obrigações econômicas que
tinha, iria viajar com pessoas que um salário dela, equivalia a uma
gorjeta para eles, disse-se que tinha direito a sonhar. Alguma vez
acontecia algo de bom em sua vida, por que desperdiçar uma
oportunidade que jamais se repetiria?
Pensou em ligar para Nick, e logo se negou a fazê-lo em
princípio, acabou cedendo.
Podiam ser amigos. Sim, por que não. Depois de tudo, jamais
lhe tinha prometido nada mais que o que lhe tinha dado. Mas embora
tentasse ligar para seu escritório a todas as horas, nunca ninguém
atendia.
Nick se obrigou a deixar de pensar em Lavínia enchendo-se de
ocupações. Sem querer, seu sócio a trouxe para a memória por tudo
quando antes a tinha relegado.
— Nick! - exclamou Pablo da porta do escritório de seu sócio.
Sem esperar resposta, avançou até o escritório de seu amigo, diante
do que se sentou bastante depravado.
— Arrumei algo por minha conta – anunciou - para que não
diga que sempre dependo de você para as decisões. Lembra-te que
amanhã chegam os empresários de Tóquio?
Nick se encostou na poltrona de couro com ar displicente.
Brincava com um lápis.
— Não poderia esquecer nem que quisesse - brincou.
— Bom, em lugar de trazermos para cá, vamos para o porto.
— Para o porto? - surpreendeu-se Nick, que de repente perdeu
toda posição serena. — Você quer dizer em um restaurante de Porto
Madeiro? - esperançou.
— Lembrei-me de seu conselho, esse de que para os negócios
sempre é melhor ter os empresários em seu interesse devasso, e lhes
ofereci passagens para o Paradise. Precisava ver como ficaram
felizes!
— Que está dizendo? - Nick se inclinou para frente. — Pablo! -
exclamou ao tempo que deixava cair o lápis sobre a mesa.
— O que?
— Não devo estar nesse navio. Não esta semana.
— Perdão, Nick. Acreditei que você gostava da ideia de fazer
negócios e de uma vez ter umas férias.
— Merda!
Nick levou às mãos a cabeça. Tinha três opções: cancelar as
passagens de Lavínia, cancelar as dos japoneses, ou ir e
encomendar-se a sua boa sorte. Possivelmente Lavínia não
aparecesse depois de tudo. Mas se fosse assim, para que teria levado
as passagens? Como lembrança, pensou. Sim, podia ser.
Não podia cancelar suas passagens, e se aparecesse no
embarque, e rechaçassem-na. Não seria justo para ela nem para sua
própria consciência. Queria que Lavínia levasse algo da fugaz relação
que tinham mantido, que levasse o pagamento, como faziam as
outras. Acaso não era isso o que procuravam? Dinheiro para uma
cirurgia estética, bom sexo, uma viagem. Prazer.
Suspender as passagens dos japoneses tampouco era uma boa
opção. Isso mostraria indecisão e debilidade, e era o que menos
queria aparentar frente a seus investidores.
Seria melhor confiar-se a sua boa sorte. Depois de tudo, o mais
provável era que Lavínia jamais embarcasse nesse navio.
Capítulo 9
Tamara chegou com Hector quando Lavínia terminava de
colocar sua mala na sala de jantar. Ajudaram-na a repassar a lista
mental de objetos que levaria e logo a acompanharam até o porto.
Tinha que preencher uns formulários e anexá-lo a mala antes
de as entregar ao encarregado, antes de assumir o controle de seu
destino. Disse adeus a sua família e quase lhe escapou uma lágrima.
Estava nervosa, porque nunca tinha viajado.
— Adeus! - saudou-a Hector agitando a mãozinha. Lavínia
respondeu do mesmo modo, mas logo girou sobre os calcanhares
para não olhá-lo enquanto escorria uma lágrima.
Entre uma coisa e outra, passou-se uma hora. Enquanto
embarcava, tremiam-lhe as pernas de medo, e de excitação.
Pressentia que essa seria uma das experiências mais enriquecedoras
de sua vida.
O navio era enorme, nem bem o viu se lembrou do Titanic.
Claro, o Paradise reluzia muito mais moderno, mas o filme do
Leonardo Di Caprio era o mais perto que tinha estado alguma vez de
um navio como esse.
O Paradise era um gigante branco de porte soberbo e desenho
extraordinário. Tinha oito coberturas públicas e capacidade para dois
mil passageiros. Lavínia se sentia minúscula ao lado de seu tamanho
e majestade, tanto que se impressionou.
Uma vez dentro do cruzeiro, uma senhorita a acompanhou até
seu camarote, que resultou ser um quarto com varanda, a segunda
de melhor qualidade em todo o navio. As primeiras eram as suítes
com varanda externa.
O espaço não era tão amplo, mas ali entravam uma cama de
casal, um sofá, um televisor e banheiro com ducha. Sentou-se sobre
a cama, sorridente.
Não podia acreditar, estava embarcando a lugares que
desconhecia, em meio de um luxo que jamais teria imaginado.
Tudo estava decorado em cor branca: o tapete, os cortinados, o
acolchoado, as toalhas e os lençóis. Parecia tudo tão limpo, tão puro,
que até ela se sentiu uma pequena mancha nesse lugar perfeito.
Ficou de pé e deu uma volta sobre si mesma. Quase podia
sentir-se uma princesa. Logo voltou a sentar-se sobre a cama para
ler um folheto que encontrou na mesa de noite. Ali explicava tudo o
que poderia fazer no navio: havia três restaurantes, cinco bares,
galeria comercial, três piscinas, duas jacuzzis, salão de beleza,
discoteca, cassino, centro esportivo, sala de jogos, capela e cinema.
Deixou escapar uma exclamação de assombro. Essa sim que era toda
uma cidade flutuante.
Encontrou detalhes do centro esportivo: havia ginásio, duas
quadras de esportes de tênis, quadra de basquete, simulador de golfe
e mini golfe, pista de patinação sobre gelo, parede de escalada,
piscinas e plataforma para esportes aquáticos, "entre outros", leu.
Esperava que nesses "outros" entrasse algum céu terra ou um saco
de box.
— OH, Por Deus... - balbuciou. Amava os esportes.
Continuou lendo especificações técnicas que não compreendia,
revisou os mapas e pensou em percorrer as que se chamavam áreas
comuns para ver melhor a cidade flutuante, como começou a chamar
o Paradise desde que leu tudo o que continha.
De repente a excitação deu lugar à tristeza quando recordou
quem era o dono de tudo isso. Com razão era tão lindo, grande,
chamativo e estava tão bem decorado. Contava em um folheto que
tinha sido remodelado de novo quando tinha passado a formar parte
do Hagen Interprises e transladado do Caribe às costas de Buenos
Aires.
Engoliu com força, esperançada em banir a lembrança daquela
fantasia e em que trariam sua bagagem logo. Pensando nisso, e como
não tinha ideia de se lhe deixavam sua bagagem ali embora ela não
estivesse presente, preferiu ficar e esperar. Não podiam demorar
muito mais em lhe devolver seus escassos pertences.
Enquanto Lavínia aguardava em um camarote de média
importância que o casco do navio zarpasse para Punta de Leste, Nick
recebia na zona vip de abordagem privada os quatro empresários
japoneses que estavam tão interessados em sua brilhante capacidade
construtiva.
Nick e Pablo estreitaram as mãos com os quatro homens e logo,
em um inglês bastante fluído, convidaram-nos a conhecer o Paradise.
— Até agora só fazemos viagens pela costa nordeste da
Argentina, Uruguai e Brasil - explicava Nick aos homens enquanto
mostrava uma de suas áreas favoritas, o cassino - mas assim que
termine a temporada, moverei-o a uma costa veranista. Além disso,
estou pensando seriamente em fazê-lo chegar até o Caribe, inclusive
já estamos estudando essa oferta para este mesmo ano, embora
ainda estejamos esperando uns últimos detalhes burocráticos.
— Acredita que resista? - perguntou um dos japoneses.
— Estou investindo para fazê-lo um navio mais forte.
Enquanto esperava, Lavínia se perguntou se Nick embarcaria
nesse navio, em caso afirmativo, se já o teria feito. Duvidava de que
ele viajasse no casco do navio porque estava segura de que não
queria encontrar-se com ela e que tinha muito trabalho para fazer. O
Centro Médico, por exemplo.
Deu-se conta de que começavam a navegação pelos ruídos e o
leve movimento que experimentou o navio. Ainda não lhe tinham
levado sua bagagem: que estranho, pensou. Então decidiu deixar um
pôster na porta avisando que tinham sua permissão para lhe deixar a
bagagem dentro do quarto, e saiu para percorrer o navio.
Deu voltas por duas horas. Conheceu os espaços
compartilhados de fora, sem entrar em cassino ou à discoteca,
tampouco aos bares e restaurantes. Espiou, percebeu qual podia ser
mais caro e não se lamentou porque dependeria do menu que se
oferecia para quem não queria fazer uso dos serviços de comidas
especiais. Tinha a possibilidade de estar ali, que não era pouco.
As pessoas eram muito mais distintas do que ela estava
acostumada a ver nas ruas. Eram pessoas de um nível econômico
elevado: notava-se em seus objetos, em seus movimentos. Eram
pessoas com as quais jamais teria imaginado compartilhar sequer
uma conversa. Era impossível não admirar a possibilidade que tinham
de passar tempo em lugares como esse navio quantas vezes
quisessem..., quando quisessem..., sempre... Tudo lhe parecia
maravilhoso, um sonho feito realidade.
Pablo não viajou com Nick e os empresários. Alguém tinha que
custodiar os interesses da Hagen e Associados durante os dias em
que um dos dois estivesse fora.
Uma vez livre dos japoneses, que tinham ficado nas suítes
atribuídas para cada um, Nick pediu ao capitão para ver a lista de
passageiros. Enquanto esperavam que a trouxessem, falaram do
oceano a essa altura do ano e das vicissitudes da maré. Poucos
minutos depois, tinha entre as mãos os nomes das mil e quinhentas
almas que justificavam um investimento tão grande.
"Dickinson, Lavínia", leu. E embora dissimulasse muito bem seu
desgosto, várias grosserias sulcaram sua mente. Não tinha ideia do
motivo, dado que não era a primeira vez que se cruzaria com uma de
suas amantes, inclusive tinha compartilhado mesas onde havia várias
delas ao mesmo tempo. Não lhe preocupava cruzar-se com Lavínia. O
problema era outro, que ela tinha aceito seu pagamento. Era tudo o
que queria, tal como ele tinha pensado: diversão, um homem
arrumado e riquezas, porque era igual a todas.
Lavínia retornou a seu quarto, onde encontrou um convite que
tinha sido deixado na porta. A recepção de boas-vindas, que se
realizaria no salão de usos múltiplos, começava às oito da noite.
Pareceu-lhe estranho que tivessem deixado um convite e não
sua bagagem, e começou a sentir-se preocupada. Investigou a quem
tinha que dirigir-se para consultar por seus pertences e quando
encontrou à pessoa indicada, quase lhe rogou que lhe desse alguma
informação. A empregada, muito amável, chamou terra firme,
confirmou suas suspeitas e as transmitiu a Lavínia com pesar.
— Sentimos muito, mas sua bagagem não está no navio.
O rosto da Lavínia perdeu a cor.
— Como diz?
— Ao parecer cometeu algum engano no formulário de
abordagem e ficou em terra firme. Tem outra bagagem que tenha
trazido? Também pode fazer uso das lojas da galeria. É tudo o que
posso lhe oferecer.
— "Fazer uso"? - balbuciou Lavínia.
— A que se refere com "fazer uso"?
A moça sorriu; estava acostumada a que os turistas
abordassem esse navio com muito dinheiro nos bolsos. Mas o certo
era que Lavínia não podia se dar o luxo de gastar em objetos que
consumiriam o pouco que levava para subsistir nas costas onde
atracassem e para pagar bebida, que não estava incluída na
passagem, se não queria terminar bebendo água do mar.
— Que pode comprá-lo nas lojas. Com prazer a
acompanharemos se necessitar um assessor.
Lavínia se negou amavelmente, mas tinha vontade de chorar e
de uma vez de rir na cara. Assessor? Não tinha onde cair morta e ia
às lojas com um assessor! Não podia gastar em roupa e quão único
levava era o que tinha posto: o Jeans, a camisa branca e as sandálias
ao tom.
— Não entendo como pude ter cometido um engano no
formulário - expressou.
— Isso é o que me informaram da terra firme.
— E não existe modo de que me façam chegar isso ao próximo
porto? Pagaria um envio se necessário - insistiu. Sair-lhe-ia muito
mais barato um envio, embora ficasse sem um centavo, que comprar
um só dos objetos que se ofereciam nessas lojas.
— O problema é que ainda não foi descoberto o destino de sua
bagagem - respondeu a mulher. — Assim que tenhamos novidades, a
faremos chegar por nossa conta. Se não aparecer, certamente será
indenizada.
— Quando será isso? - perguntou Lavínia. Tinha recuperado as
esperanças.
— Pode demorar um mês ou dois. O cheque chegará a sua
casa.
Lavínia assentiu em silêncio, vítima de uma tristeza que lhe
turvou o olhar. Resignação, isso é o que tinha aplicado sempre em
sua vida. Era seu modo de voltar a começar.
— Obrigado - disse antes de partir devagar.
O que ia fazer agora? Não podia sobreviver com o que estava
usando, tinha que arranjar uma maneira ou retornar para casa do
primeiro porto que tocasse o navio. Podia sair sempre tudo tão mal?
Por que as fadas se confabulavam em seu contrário e não lhe
permitiam desfrutar de nada em forma completa?
Caminhou taciturna até seu quarto e se fechou ali, meia hora
depois que tomou a cabeça entre as mãos e se arrependeu de ter
aceitado a passagem, de ter acreditado como uma iludida que Nick
podia encontrar-se a bordo, de sentir que podia entrar em um mundo
onde ela não tinha capacidade. Reconheceu que a razão que mais a
tinha impulsionado a aceitar essa passagem era Nick, e voltou a se
sentir uma ingênua.
Passado esse tempo, sacudiu a cabeça e se recordou que ela
era uma lutadora, sempre brigava até sair adiante e não podia vacilar
agora. Foi nesse momento quando olhou a seu redor e descobriu o
que já tinha notado: as cortinas, os lençóis, as toalhas. Tudo branco.
Iria cometer um delito, mas tampouco podia andar nua. Se ali
havia uma máquina de costurar, então estava salva.
Com novas esperanças, caminhou até o posto de informações e
se dirigiu ao empregado que ali aguardava as consultas dos
passageiros.
— Olha... haverá nesta cidade flutuante uma máquina de
costurar - arriscou.
— Sim, claro - replicou o menino. — Se necessitar que façamos
alguma reparação...
— Não, não - interrompeu-o - eu sou designer de modas e
costumo elaborar minha própria roupa do dia segundo meu estado de
espirito.
Por sorte, ele não se horrorizou. Estava acostumado a escutar
muitas loucuras das pessoas ricas, se importaria com uma excêntrica
designer de modas?
— Não trago roupa - confessou Lavínia - só tecidos. Mas
extraviaram minha máquina de costurar e não penso comprar nas
lojas onde vendam roupa de alguns competidores, que não a minha.
Para dizer aquilo por último, inclusive se fingiu ofendida. O
moço arqueou as sobrancelhas, Lavínia soube exatamente o que
estava pensando, porque era o mesmo que teria pensado ela perante
uma reclamação tão frívola, e se preparou para receber uma resposta
idêntica a sua exigência.
— Para utilizar a máquina, como se encontra em uma zona
restringida para os passageiros, necessitará uma permissão por
escrito do capitão.
Pensou que ele a enviaria por aonde veio, mas se surpreendeu
com o menino que, muito respeitoso e apesar de não ter podido
ocultar certas expressões, deu-lhe uma possibilidade.
— Perfeito.
— Chamarei para saber se pode recebê-la agora.
Lavínia agradeceu e esperou. Depois da breve conversação que
o empregado levou a cabo em voz muito baixa por um telefone
branco, este voltou a olhá-la e lhe anunciou:
— O capitão a espera em seu escritório. Em seguida aparecerá
um membro da tripulação que a escoltará até o lugar correto.
Lavínia voltou a agradecer e esperou outra vez. O tripulante
não demorou para chegar, pediu-lhe com amabilidade que o
acompanhasse e a conduziu para um elevador. Todos ali eram
serviçais, respeitosos, cordiais.
Quando o capitão autorizou o ingresso da designer, Lavínia
sentiu medo. Uma coisa era mentir ao empregado de uniforme; outra
muito distinta, ao capitão. Limpou a garganta e deu um passo dentro.
O homem arqueou as sobrancelhas brancas. A mulher que
esperava ver em seu escritório sem dúvida não era nem
remotamente parecida com essa que se aproximava. Pareceu-lhe de
uma beleza sublime, elevada, de uma vez honesta e humilde.
— É você menor de idade? - perguntou com o cenho franzido.
— Traz permissão de seus pais?
Lavínia riu com a brincadeira, um pouco mais relaxada.
— Não sou menor de idade! - respondeu.
— Devo confessar que quando me falaram de uma designer de
modas com um capricho tão excêntrico não pude fazer menos que
imaginar a uma mulher... adulta.
Lavínia não se ofendeu pelo comentário. De ter sido uma
designer com esse capricho seguro se teria ofendido, mas ela não.
Pensou inclusive que podia dizer a verdade ao homem e que este a
ajudaria a recuperar sua bagagem, mas se arrependeu porque não
queria passar vergonha. Não queria que ele pensasse que ela era
uma jovem tão ignorante que não sabia completar um tolo
formulário, e muito menos que se inteirasse de como tinha chegado a
esse navio. Deitei-me com o dono nada mais que uma noite, pensou
amargamente. Sou outra de suas "amiguinhas" e a número cem mil,
possivelmente. Muito prazer. Esse pensamento a levou a sorrir com
ironia.
— Sente-se, por favor - pediu o homem, que, respeitoso, pôs-
se de pé para recebê-la.
Lavínia obedeceu. Por sorte não teve necessidade de explicar-se
porque ele falou por ela.
— Não tenho problema de que utilize a máquina de costurar da
lavanderia, mas lhe advirto que é um lugar bastante inóspito para os
passageiros e que não posso suspender ao pessoal que trabalha na
área enquanto você esteja usando a máquina, de modo que haverá
ruídos e vapores.
— Não há problema - sorriu Lavínia com sincero agradecimento.
— Nesse caso, lavrarei lhe a permissão agora mesmo e
solicitarei a um de meus tripulantes que lhe indique o caminho.
Preciso saber seu nome e sobrenome.
— Lavínia - respondeu ela em seguida - Lavínia Dickinson,
capitão.
— Oh, que nome tão exclusivo! - expressou o homem. — Devo
lhe confessar que foi o que mais me chamou a atenção da lista de
passageiros.
Lavínia sorriu com amabilidade.
Uma vez que obteve a permissão e se despediu do capitão para
ser escoltada à lavanderia pelo tripulante, pediu-lhe para passarem
primeiro por seu camarote para procurar os tecidos. Tinha uma hora
para fazer de um cortinado, um vestido de festa.
No quarto acariciou cada um dos materiais, todos de alta
qualidade. Pensou que, se alguém descobria seu delito, iriam fazer-
lhe pagar os objetos faltantes do quarto, entretanto acreditava que
poderia repor as cortinas e a roupa de cama com outras que
conseguisse na lavanderia. Depois de tudo, a Nick custava muito
pouco comprar um par de tecidos novos, enquanto que a ela fazê-lo
podia lhe requerer quinze dias sem comida.
Considerou que também lhe viria bem levar as cintas rosadas
que retinham as cortinas e se fez com elas antes de encaminhar-se à
cama em busca de sua bolsa de mão, o único que tinha ficado de sua
bagagem. De acordo com a seleção realizada, seguiu ao tripulante
pelos corredores internos do navio até a lavanderia.
— Senhoras - falou o moço a quão empregadas ali trabalhavam.
— Esta é Lavínia Dickinson, designer de moda, e utilizará a máquina
de costurar com autorização escrita do capitão.
Todas a saudaram com um ligeiro assentimento e lhe cederam a
cadeira que estava frente à máquina de costurar industrial, que até o
momento tinha estado lotada de objetos.
O calor era cansativo. As seis mulheres que ali trabalhavam
estavam acostumadas a ele, mas Lavínia, embora alguma vez
também tivesse feito trabalhos de esforço, não. Enquanto marcava o
contorno do objeto com o lápis delineador, secou o suor da testa duas
vezes. Os sons eram estrondosos antes de melodias, mas quando se
concentrava na tarefa de cortar e costurar ignorava-os com
facilidade.
Depois de uma hora e meia, por que conhecia de cor suas
medidas e que na lavanderia havia todo tipo de materiais para
reparar os objetos dos passageiros, tinha transformado uma insossa
cortina branca em um singelo, mas formoso vestido com detalhes
rosados na cintura e no bordo das mangas.
Até que tomou banho, penteou e maquiou, passou outra meia
hora. Por sorte na bolsa de mão levava todos os elementos de higiene
pessoal que pudesse necessitar. Uma vez preparada, calçou as
sandálias brancas, a única que tinha, e se olhou ao espelho, de
acordo com o que tinha criado.
Antes de ir, colocou na porta o pôster de "Não incomodar".
Esperava que com isso não fizessem a limpeza no camarote e ela
pudesse conservar em segredo que o esvaziaria pouco a pouco. O
último dia de navegação reporia tudo, já que tinha acesso à
lavanderia.
Nick estudava o ambiente da porta do salão com os olhos
semicerrados. Dispunha-se a levar uma taça de champanhe aos
lábios quando uma voz interrompeu seu gesto atrás de suas costas.
— Olá, Nick.
Aquela voz.
Nick voltou-se. Nem bem a viu, seus olhos resplandeceram com
um estranho temor que se esforçou por apagar antes que ela se
desse conta dos sentimentos que lhe produzia.
Sempre de vermelho. O cabelo, os lábios, o vestido, os sapatos.
Se algo trocaria nesta mulher era essa maldita cor.
— O que fazes aqui, Patricia? - alcançou a resmungar. Ela
sorriu, frívola.
— Inteirei-me de que faz tempo compraste este navio e quis
conhecê-lo - explicou com desdém. — Foi muito descortês de sua
parte não me convidar à viagem inaugural.
— Você não têm nada que fazer aqui.
— Eu não vim por você, Nickito - replicou ela com voz
melodiosa. — Vim por seu navio, mas ao parecer o destino nos jogou
uma boa passada e nos voltou a reunir.
Nick entrecerrou os olhos de gelo, que se tinham convertido em
fogo.
— Para você, não a mim - respondeu cruel, quase despótico.
Ela ignorou esse fato, como se não tivesse sido destinado a ela.
Até afogou uma risada.
— Não me leva a festa? - interrogou divertida.
— Peça ao Horácio Lowenstein para que o faça? - replicou ele
com dissimulação.
Ela soltou a mesma risada estrondosa com a que acostumava
atrair a atenção de seus amigos, logo lhe enterrou seu olhar luxurioso
e respondeu: — Tenho a você.
Quando Lavínia chegou ao salão, o lanche já estava sendo
servido. Se Nick tinha embarcado, tinha que estar aí, entre essa
multidão que se amontoava para receber o canapé de boas-vindas,
mas não conseguia achá-lo por nenhuma parte. Ficava em pontas dos
pés para ver por sobre as cabeças mais altas, percorreu o lugar sem
comer nada - e vá tinha fome! - até que o coração lhe deteve.
Ali estava ele, em uma roda de homens, levando no braço uma
dama de cabelo vermelho. Alguém bastante maior que ela, soberba e
altiva, com o porte de uma imperatriz. Uma mulher muito distinta,
por certo, daquelas com as que Nick saía nas revistas. Tinha o
aspecto de ser uma qualquer, sim, mas ali mandava ela.
Embora a distância lhe impedisse de ver a mulher com
claridade, só por seu porte Lavínia soube que não formava parte da
coleção de bonecas que Nick levava para a cama e logo desprezava,
como tinha feito com ela. Tampouco se tratava de sua esposa porque
era solteiro, diziam todas as revistas.
Preferiu concentrar-se nele, tão arrumado e elegante em seu
smoking negro. Então ficou ali parada, em meio de um nada,
enquanto todos já ocupavam seus lugares nas mesas.
Nick estava rodeado de japoneses que conversavam corajosos
com a mulher de cabelo vermelho e com ele. Pareciam antes
mafiosos que empresários, por isso Lavínia se perguntou no que
andaria metido Nick, e inclusive chegou a temer por sua vida.
Por que temia, se ele nem sequer se lembrava dela? Lavínia
sabia que, para Nick, ela tinha sido apenas uma boneca mais para
acrescentar à coleção.
A dor lhe atou o peito e a obrigou a sair do salão. Outra vez se
arrependia de ter embarcado nesse navio, de ter acreditado que Nick
podia recordá-la. Acreditando que se achava a salvo de seu desgosto
no corredor, apoiou as costas contra a parede e respirou.
— Sente-se bem? - perguntou-lhe um moço que se aproximava
da porta.
— Sim - respondeu com segurança. A questão era que ficando
quieta serviria para ordenar seus pensamentos.
Tinha mudado de ideia: queria ver Nick com sua amante, sua
namorada, ou o que ela fosse. Queria vê-lo e assumir de uma vez por
todas que ela jamais seria dele. Então voltou a entrar na sala.
Viu-os sentados à mesa em companhia do capitão e dos
japoneses. A mulher permanecia junto a Nick, mas ele não tinha
contato físico algum com ela. A Lavínia pareceu estranho, dado que
tinha chegado a conhecê-lo embora fora pouco e sabia que gostava
de se gabar de quem o estava acompanhando. Salvo que em
realidade não o estivesse... Tudo nele era um mistério que Lavínia
não acreditava poder resolver.
Durante a estadia das pessoas nas mesas, um apresentador
nomeou ao capitão e também a Nick. Referiram-se a ele como "o
dono deste paraíso", e quando ficou de pé para que os passageiros o
aplaudisse e soubessem que se referiam a ele, a do cabelo vermelho
se parou a seu lado. Nick lhe sussurrou algo. Ela não se alterou.
— Sente-se - ordenou Nick entre dentes, com a voz tão baixa
que só Patrícia pôde escutá-lo.
— Deveria me agradecer em público - replicou ela sem lhe fazer
caso, com um sorriso radiante. — Tudo o que têm, têm graças a mim.
Nick se sentou antes dela, porque não queria compartilhar a
glória com ninguém. A glória era dela, como nada o tinha sido na
vida.
Pouco depois se fez um brinde. Logo as pessoas ficaram de pé e
voltaram a dispersar-se pelo salão. Lavínia pensou em retornar a seu
camarote com o orgulho manchado, mas depois se disse que, se
queria voltar a sentir-se digna, tinha que enfrentar Nick e lhe
demonstrar que não lhe tinha importado seu abandono. Sim, esse era
o melhor modo de não ficar como uma parva, pensou. Iria mostrar-
lhe que ela não era como as demais putas que ele levava a um hotel.
Lavínia avançou para seu objetivo com passo decidido, mas
uma vez que se encontrou o suficientemente perto para lhe falar com
suas costas, emudeceu. A estridente risada da mulher que o
acompanhava penetrou nos ouvidos de Lavínia como seu forte
perfume importado o fez em seu nariz. Tudo nessa mulher, as cores
que a cobriam até sua voz, estavam desenhados para atrair a
atenção de todos.
Patrícia destilava poder e luxúria, altivez e descaramento.
Ninguém a passava por cima, ninguém, e sua força de caráter
dobrava o aço como débil junco de campo.
Lavínia virou-se e refez o caminho que a tinha levado até Nick
para perder-se entre a multidão e logo no corredor que conduzia ao
elevador e a seu camarote. Enquanto caminhava, pensava que
sempre lhe acontecia o mesmo. Lutava por algo, chegava a isso, e a
ponto de consegui-lo, resignava-se. Sentiu-se triste e tola, como se
se tivesse deixado enganar pela segunda vez na vida, e assim era:
tinha sido vítima de sua ingenuidade ao acreditar que poderia
enfrentar Nick.
Para deixar de pensar nele, ficou sem roupa no interior e
repassou o que faria no dia seguinte, quando atracassem a Punta de
Leste, uma cidade de praia, como todas as que visitariam. Não podia
ir ao mar sem traje de banho e tampouco podia comprar um em um
destino tão caro. Nem pensar no navio.
Umedeceu os lábios e para não sentir-se decepcionada, pensou
na roupa que sim poderia confeccionar com o outro pano das cortinas
e com os lençóis. Decidiu que fabricaria um calção curto e uma
minúscula saia das savanas.
Passou a metade da noite costurando na lavanderia. A mulher
que cobria o turno da noite se sentou a seu lado e a ajudou com os
retoques.
— Você é muito famosa? - perguntou-lhe ingenuamente.
Lavínia se sentiu tão mal que franziu o cenho e não pôde mentir.
— A você vou dizer a verdade - murmurou cabisbaixa, com os
dedos detidos sobre o tecido do lençol. — Sou costureira, em
realidade. Minha loja faliu - disse com um suspiro - e já não tenho
nada. Meu sonho é ser designer de modas, mas ao parecer terei que
me resignar a pregar zíper de calças quebradas - encolheu os
ombros. — Não me importo. Dá-me de comer e pago meus impostos.
Digamos que ganhei a passagem neste navio e decidi me dar um
gosto uma vez na vida, mas claro, não podia sair tudo tão bem, e
minha bagagem se perdeu. Estou literalmente nua.
A mulher ficou boquiaberta.
— Por Deus! - exclamou. Por sorte para Lavínia, não perguntou
de onde tirava os tecidos para confeccionar os objetos, possivelmente
pensava que os tinha dado o capitão junto com a permissão.
— E como pensa ir à praia?
— Não vou à praia - negou Lavínia com a cabeça.
— Têm que ir, o que fará se não for? Todos os lugares que se
para este navio têm praia.
— Posso conhecer a cidade, passear pela areia e molhar os pés
na água.
— Façamos uma coisa - propôs a senhora antes de ficar de pé e
mergulhar em um cesto. — Escolha um destes – indicou. — São
trajes de banho que esquecem ou abandonam as turistas.
— Oh, não, por favor, não - replicou Lavínia. — Não quero te
colocar em problemas.
— De maneira nenhuma - respondeu ela. — Ninguém os
reclamou em meses. Vamos, escolha um.
— Não sei como te agradecer.
— Não têm que fazê-lo. Assim, escolha. Este será nosso
segredo.
Embora Lavínia temesse que a empregada se desse conta de
que ela estava destroçando seu quarto pouco a pouco, sua bondade a
privou de arrepender-se de lhe haver dito a verdade. Ninguém
merecia uma mentira ali, eram todos tão bons que quase não
pareciam empregados de alguém tão detestável como Nicolas Hagen.
Capítulo 10
Dormiu apenas quatro horas, coberta só pelo acolchoado que
ainda não tinha utilizado para confeccionar nada.
Pela manhã atracaram na cidade de Punta de Leste, que a
surpreendeu por sua beleza arquitetônica. Os altos edifícios tinham
quase todos varandas que imitavam as ondas do mar, da cor turquesa
das águas que formavam o oceano.
Lavínia não conhecia o mar. Vê-lo em toda sua imensidão e
escutar o som das ondas romper contra a areia lhe acelerou o pulso,
levou-a a abrir os braços e fechar os olhos como tinha visto em um
filme, e a rir como se fosse uma menina em um filme da Disney.
Era maravilhoso. O mar, sua eternidade, o que lhe sussurrava
ao ouvido.
Quando abriu os olhos depois de um momento que de tão
singelo era sublime, encontrou-se com o inferno. A mulher que
andava com Nick passeava pela praia com um biquíni vermelho como
o fogo enquanto conversava com uma amiga.
Agora que podia observá-la melhor, Lavínia notou que sua pele
ostentava um torrado que prometia ser durado, possivelmente
adquirido nas praias caribenhas todo o ano. Era uma mulher bela,
muito mais generosa que ela em peitos e nádegas, de corpo
escultural e temperamento de carvalho.
Estava segura de que, ao menos, tinha a idade de Nick, e de
que não era sua amiguinha de volta. Não tinha pinta de ser. Era
poderosa e soberba, tinha o aspecto dessas mulheres que sempre
procuram sentir prazer elas mesmas antes que os outros, nada do
que Nick podia procurar em uma amante ocasional. Ou era sua
amiga, ou era sua namorada. Essa ideia lhe espremeu o estômago e
lhe fez pensar que jamais poderia competir com ela.
Nunca.
À manhã seguinte, atracaram em Porto Belo, Brasil, um lugar
paradisíaco de Santa Catarina onde Lavínia pôde ver que a mulher de
vermelho tinha trocado o modelo do traje de banho, mas não de cor.
Ela, com seu modesto biquíni dourado emprestado, banhou-se
no mar e desfrutou do dia entre sessões de água salgada e
caminhadas pela ilha.
Antes de partir procurou um telefone e ligou para Hector. Tudo
estava bem, o qual a deixou tranquila para bordar e desenhar um
novo objeto.
Desta vez pegou o pano do cortinado que ficava a esquerda e
dois acessórios que conservavam as toalhas de banho enroladas.
Eram pingentes dourados que imitavam um desenho romano.
O produto que obteve depois de passar várias horas frente à
máquina de costurar foi um vestido magnífico comprido até o joelho,
branco imaculado. Ajustava-se ao corpo, as fitas que se atavam ao
pescoço estavam decoradas com as argolas douradas das toalhas.
Havia confeccionado um vestido com ar romano.
Perguntou-se aonde ir. Já conhecia boa parte do navio, por isso
disse que passaria um momento em um lugar divertido e adequado
para sua roupa. Então foi para a discoteca.
Entrou por uma porta de vidros opacos que abria um tripulante
do navio. Lavínia lhe deu boa noite e entrou umedecendo-os lábios.
— Que lindo! - Pensou.
Avançou até a pista de baile e ficou estancada ali, de onde
podia admirar o lugar completo, porque ainda quase não havia gente.
Tudo estava decorado em cor azul e turquesa. Umas linhas
irregulares de luz cruzavam o teto, resultava evidente que evocavam
o mar. Os assentos celestes iluminados, sofás em cantos escondidos,
barras de vidro também com forma de ondas. O piso tinha linhas de
cor que brilhavam com distinta intensidade. Estava escuro, mas o
jogo de luzes permitia ver quando os olhos se acostumavam ao
ambiente, e a Lavínia pareceu uma das discotecas mais bonita que já
tinha visitado. Sem dúvida Nick tinha investido muito de seu tempo
em fazer esse lugar.
Não esperava encontrá-lo aí. Não pensava encontrá-lo em
nenhuma parte depois da recepção no salão, em realidade, porque
não havia tornado a vê-lo após. Entretanto, ali estava ele, sentado
em uma poltrona beijando uma loira platinada. Perguntou-se se acaso
podia ser tão descarado para enganar a sua namorada em seu nariz,
e concluiu em que não, de modo que a mulher de vermelho devia ser
sua amiga.
Lavínia ficou de pé em meio à pista de dança semi vazia,
retorcendo as mãos diante do quadril como uma menina curiosa. Ele
tinha posto o casaco preto de um terno desabotoado, por isso se via
sua camisa branca, também desprendida na parte superior. Estava
tão atraente e a música eletrônica combinava com ele na perfeição.
A cálida voz de Susana, que entoava a canção Shivers para o
Amin Van Buuren, calou e cedeu espaço ao tinido que pressagiava um
estalo, um momento detido no tempo.
A amante ocasional do Nick lhe beijava o pescoço, sentada na
mesa de centro, em meio de suas pernas masculinas abertas. Ele
manteve os olhos fechados até que de repente os abriu como se
despertasse de um sonho, como se tivesse sido chamado a fazê-lo.
A música estalou. O coração de Lavínia estalou. A alma de Nick
sofreu a sacudida.
Lavínia não deixava de olhá-lo envolta nesse tecido branco que
a luz negra fazia resplandecer entre as pessoas, igual a uma
escultura de uma deusa romana. Arrancou-lhe o fôlego. Deixou-o
vulnerável e o descoberto.
Não esperava vê-la nesse lugar, não a tinha encontrado até
agora e tinha chegado a esquecer de que poderia cruzar-se com ela.
Involuntariamente se envergonhou. Pareceu-lhe odioso que Lavínia
visse o que ele fingia. Não o merecia.
Um golpe sacudiu Lavínia e a obrigou a distrair sua atenção
para quem a tinha levado por diante.
— Sinto muito - desculpou-se o moço com sotaque estrangeiro.
Saltava ao ritmo da música. Lavínia sorriu em gesto de assentimento.
Quando voltou a olhar, Nick tinha retornado ao que estava
fazendo. Não tinha sentido continuar hipnotizada por sua presença
naquele lugar tão grande e cheio de cantos. Podia afastar-se de onde
ele estivesse ao alcance de sua vista e tratar de desfrutar da noite
ignorando sua presença. Por isso se dirigiu a uma das mesas e se
sentou em uma cadeira alta da qual não assistisse ao triste
espetáculo que ele dava beijando e acariciando uma passageira.
Estabeleceu-se no assento no que passou uns minutos até que
o barman se aproximou. Entregou lhe uma taça cheia de um líquido
azul que combinava com o cenário à perfeição.
— Eu não pedi nada - apressou-se a repor Lavínia, temendo
que o colocasse a uma conta que lhe resultaria impossível pagar.
— O senhor Hagen mandou - esclareceu o barman indicando
com o dedo indicador para o lugar onde Nick ainda permanecia
sentado.
Lavínia acreditou que não veria Nick ali, mas ao que parece
tudo estava tão bem planejado que ainda neste canto tinha acesso ao
lugar onde ele se encontrava sentado, porque de qualquer parte se
podia ver tudo. Não soube o que fazer. Movida por sua amabilidade
de sempre, olhou-o e lhe agradeceu com um leve movimento de
cabeça e um sorriso tímido. Ele respondeu da mesma maneira, com
um braço sobre o ombro da loira, que o olhava encantada.
Apesar de ter dado o obrigado como uma cortesã pensou em
não levar a bebida aos lábios. Podia rechaçar o convite desse modo
sutil, ainda estava em tempo de resgatar sua dignidade manchada,
mas não foi capaz de fazê-lo, assim bebeu um gole.
Surpreendeu-se ao descobrir que se tratava da bebida que ela
tinha gostado, quando tinha ido com Nick ao bar de Porto Madeiro.
Isso lhe fez tremer as mãos. Ele podia recordá-lo? Lembrava-se dos
gostos de todas as suas amantes?
— Sozinha?
Lavínia girou a cabeça e pestanejou várias vezes antes de dar
crédito ao que via. Um homem pouco maior que Nick a olhava com
olhos amáveis e humor simpático.
— Sozinha - replicou com sinceridade.
— E não gostaria uma mulher só dançar com outro solitário?
Lavínia riu com o convite e até se sentiu adulada pelo homem,
mas não estava com ânimo para dançar.
— Em realidade estou esperando que me tire para dançar outra
pessoa - confessou amargamente. Nick a tivesse tirado para dançar,
mas isso jamais aconteceria.
O sujeito não se alterou. Ficou sentado a seu lado, conversaram
um bom momento e Lavínia chegou a esquecer-se que Nick
compartilhava o mesmo ambiente. Recordou-o quando outros dois
cavalheiros vieram por seu amigo e o homem teve que retirar-se.
Queriam ir ao cassino. Convidaram Lavínia, mas ela preferiu deixar
esse percorrido para outra ocasião.
Então se voltou por volta da pista de dança agora recarregada
de bailarinos e ali, do outro lado, voltou a ver Nick, já não com a
loira, a não ser rodeado dos japoneses. Parecia muito sério, ninguém
apostaria que até fazia um momento se esteve manuseando com
uma estranha que tinha desaparecido como se nunca tivesse existido.
Lavínia suspirou. Para falar a verdade, desejava dançar e se
arrependia de não ter aceitado o convite do homem que se foi para o
cassino. Mas desejava dançar com Nick.
— Por que esperar? - balbuciou.
Tinha escutado a Tamara dizer várias vezes, quando não tinha
namorado, que não lhe importava tirar para dançar um homem e que
sempre era divertido notar a expressão de surpresa que despertava
ver essa atitude em uma mulher. Claro que, desde que ela era
adolescente até agora, as mulheres tinham mudado muito, e agora
tirar para dançar a um homem era algo muito comum. Inclusive Nick
estaria acostumado a isso, mas talvez não esperasse que fosse ela
quem se atrevesse a fazê-lo.
Possivelmente foi o álcool que tinha bebido, que embora fosse
pouco sempre a animava a fazer coisas que em todas suas faculdades
não se atreveria, ou o impulso de seus próprios sentimentos, mas de
repente se achou de pé, caminhando com passo lento para as
poltronas onde Nick e seus conhecidos conversavam.
Nick não se precaveu da presença de Lavínia até que estava
frente a ele, com seu luminoso vestido branco deslumbrando a todos.
Girou a cabeça para olhá-la e em seus olhos brilharam por um
instante em confusão. Possivelmente temia que lhe fizesse uma cena
frente aos japoneses, mas a Lavínia nem lhe tinha cruzado pela
cabeça algo como isso. Não tinha nada que reclamar, porque Nick não
lhe tinha prometido nada. Entretanto, algo a levava a ele, uma
atração que apesar de inconveniente, não podia evitar. Quão mesma
o tinha levado a ela.
— Dançaria comigo? - perguntou lhe estendendo a mão.
Conservava um sorriso tímido nos lábios. Ela jamais tinha tirado
alguém para dançar.
— Olá - alcançou o olhar dele. Lavínia ampliou a curva em seus
lábios.
— Olá - replicou.
— Eu... não danço.
Lavínia ficou séria e vermelha de repente. Sentia-se tão tola,
tão humilhada de novo, que lhe tremeram as pernas. Deixou cair à
mão devagar. Ele a expulsava. Outra vez. Quando se cansaria ela de
expor-se a seus encantos?
— Compreendo – disse. — Desculpe por incomodar.
Voltou por onde tinha vindo tão rápido que temeu por um
momento coroar aquela cena com um tropeção. Por sorte isso não
ocorreu. Deu um passo adiante para afastar-se o mais rápido possível
quando a voz de Nick a deteve.
— Lavínia! - gritou ele.
Recordava seu nome. Lembrava-se dela! Lavínia se voltou
imediatamente. Nick se tinha posto de pé e se aproximava para poder
lhe falar sem que outros ouvissem.
— De verdade estaria encantado de dançar com você –
confessou - mas eu não sei dançar.
Lavínia não tinha ideia se ele mentia - como tinha pensado em
um primeiro momento - se havia se sentido culpado por havê-la
afastado de modo tão brusco, ou se na verdade desejava dançar com
ela.
Nick tampouco tinha ideia do que estava fazendo. Se o tiravam
para dançar, dizia que não e as mulheres se voltavam às vezes lhe
fazendo uma careta graciosa de aborrecimento ou como se nada
tivesse ocorrido. Lavínia era distinta. A Lavínia seu afastamento
sincero tinha doído.
Mas ele não se aproximava por culpa. Nem sequer sabia por
que o fazia, mas não estava mentindo.
— Está bem - replicou ela, cautelosa. — Não têm que me dar
explicações.
— Ensina-me.
Lavínia ficou congelada. Não entendia nada.
— Não quero sua piedade, Nick – balbuciou. — Prefiro um
afastamento sincero que uma mentira piedosa. Sério.
— Ensina-me - repetiu ele, muito sereno.
Lavínia percebeu que Nick não mentia. Gostava da música, mas
não se atrevia a mover-se ao ritmo dela. Inclusive, como prova
irrefutável de que era sincero, foi ele quem desta vez lhe estendeu a
mão. Lavínia a olhou umedecendo os lábios.
— Está bem - concedeu antes de tomá-la.
O contato voltou a ser entristecedor; silencioso, mas intenso.
As mãos unidas não passavam despercebidas para nenhum dos dois.
— Você diz - indicou Nick, sempre de bom humor. Lavínia
sorriu. Contagiava-lhe seu excelente estado de ânimo.
— Você gosta desta música, certo? - perguntou.
— Muito - respondeu ele.
— Nota-se. Isso é bom. A base da dança é que o dançarino
goste da música, porque isso faz que a sinta. Se desfrutarem, os
passos saem sozinhos.
— Soa muito fácil, fazê-lo é o difícil - brincou Nick. — O certo é
que me dá bastante vergonha dançar.
Lavínia franziu o cenho. Vergonha? Nick não sentia vergonha de
nada.
— Vergonha, você? - lhe escapou.
— Às vezes penso que é um pouco tolo.
— Dançar? - ela assentiu. — Oh, mas que lindo é ser tolo! -
exclamou ela. — Olhe quão tola sou!
E a seguir deu alguns saltos ao ritmo do Sweet dreams, A
Bouche. Depois elevou os braços e deu uma volta deixando escapar
um grito que, entre o som estridente da música e as pessoas que ali
se encontravam, passou despercebido. Nick soltou uma risada tão
sincera que lhe iluminou a cara.
— Vejo-me tola? - interrogou-o Lavínia.
— Você é maravilhosa - replicou ele. Admirava-a.
— Olhe, têm que fazer assim.
Para lhe mostrar o passo, que de todos os modos não era muito
complicado, Lavínia colocou a mão nos ombros de Nick, e ele em sua
cintura. Por um momento esqueceu as sensações que lhe transmitia e
ficou tão perto de seu corpo que estas voltaram a atordoá-la. O
aroma da pele masculina a envolveu até lhe fazer perder a razão. Por
isso tremeu entre seus braços e o olhou com os olhos cintilantes.
Sentia saudades, queria-o. E o demonstrou com o olhar.
Nick pensou que tinha que romper essa dança com urgência.
Então a soltou e começou a dançar. Pretendia fazer que ela se
esquecesse do contato que tinham mantido, e de fato o conseguiu. O
motivo foi que, quando queria, dançava muito bem, quase parecia ter
dançado música eletrônica toda a vida e estar reprimindo a oitenta
por cento de todos os movimentos que podia chegar a fazer.
Lavínia cruzou os braços e deixou escapar um risinho.
— Dançava esta música quando era adolescente, não? -
arriscou, intuitiva. Nick se sentiu descoberto, por isso se deteve.
— Aprendo rápido - desculpou-se.
— Muito rápido? - ela franzia o cenho.
— Assim é quando a gente tem bons professores - brincou.
Lavínia riu.
— Acreditei que a eminência fosse você! – respondeu. — Só
que você tem assistido às aulas com mais frequência.
Nick soltou outra risada.
— Ah, bom! Quem te mantém tão bem informada?
— Não lhe posso dizer isso.
— Mmm... está bem - Lavínia considerou que não havia nada
de mau em lhe contar que se encontrou com um de seus alunos. —
Acredito que se chamava Thomas. Thomas, sim.
Nick parecia de bom humor, atraente e juvenil, sempre
acelerado; tinha uma personalidade avassaladora. Entrecerrara os
olhos, pensativo. Foi um gesto que deixou a Lavínia sem prudência e
sem pudor.
Doeu-lhe o coração de tanto amor que albergava dentro.
Sentimentos que devia guardar porque Nick não queria que os desse.
E até sabendo tudo isso não pode resistir a seus impulsos.
Deu um passo adiante, ficou em pontas de pé e o beijou.
Quando os lábios da mulher se assentaram sobre os seus, todo
o corpo de Nick se converteu em rocha. Se não o fazia, acabaria
destroçado, sabia, e jamais o permitiria. Necessitava que o beijo
acabasse, mas não queria.
Também lhe doeu o coração pensando que era um egoísta por
sentir-se confortável com o beijo. O que podia dar a uma mulher
como Lavínia, se não era dor e amargura?
Por sorte ou por desgraça, Lavínia pareceu dar-se conta do que
fazia muito em breve porque se separou e se esforçou por apartar-se.
Egoísta como era, Nick a impediu segurando a pela cintura.
— Perdão - resmungou ela, vermelha de vergonha.
— Não há problema - respondeu ele, que pretendia tomar o
beijo roubado com a naturalidade que sempre fingia.
A reação de Lavínia tinha sido juvenil e impulsiva, a de uma
mulher apaixonada. E isso destroçou seus planos.
Não queria que Lavínia se sentisse mal pelo que acabava de
fazer. De fato queria que se esquecesse dele porque era o mais
conveniente, entretanto não conseguia recusar de uma vez. Se ela se
aproximava, aí estava ele dando resposta. A coisa foi ficando fora de
controle uma vez que colocou as mãos no corpo de Lavínia, que deu
um prudente passo atrás para afastar-se.
Enquanto isso, Patrícia entrou no salão e procurou Nick nas
poltronas.
Ao ver dois dos japoneses, se aproximou.
— Senhores. E Nick? - perguntou.
— Dançando - respondeu um. Patrícia riu com superioridade.
Ela conhecia tudo de Nick. Tudo.
— Isso não pode ser - discutiu, convencidíssima. — Nick não
dança.
— Não é aquele o senhor Hagen? - disse o outro japonês,
assinalando a pista.
Patrícia deu a volta como em câmara lenta. A imagem lhe
cravou na boca do estômago como uma flecha. Quem era essa
menina a que Nick olhava aos olhos com tanta insistência? O que
pretendia obter?
Nick não tirava os olhos de Lavínia, e Lavínia se dava conta de
que ele a estudava, de que as palavras se amontoavam em seu
cérebro, mas não se atrevia a dizer nada.
— Fale – pediu. — O que aconteceu?
— Não fui honesto com você - acabou por dizer Nick. — E estou
arrependido. Você... não o merecia.
Lavínia sentiu que o ar a abandonava. Uma eletricidade
percorreu sua coluna e as perguntas se pulverizaram por sua mente
como um furacão. Nick era tão complexo, tão estranho. Em um
momento ria como o homem mais feliz do mundo e ao outro a olhava
com esses olhos quentes de menino. Um instante a abandonava
sozinha em um quarto de hotel e ao outro lhe pedia desculpas.
— Não falemos disso - decidiu propor e sorriu em busca de
aliviar a carga do homem. Fazia-se evidente que levava uma.
— Comecemos de novo. Sou Lavínia Dickinson - disse com um
tom de voz sutil.
— Você é...?
— Nick.
Só isso, um pseudônimo muito curto que quase parecia de
outra língua. Nem um nome nem um sobrenome, apenas um apelido,
como se assim ele representasse ou desejasse ser outra pessoa.
Nick parecia hipnotizado por Lavínia ou pelo que ela fazia nele.
Até que um brilho vermelho o arrancou do devaneio e o fez girar a
cabeça.
— Oh, olá, Nick! - exclamou Lavínia, alheia aos pensamentos do
homem. — O que posso fazer por você?
Nick voltou a olhá-la com intensidade entristecedora, tão veloz
como o som.
— Tenho que ir - disse de repente. Seus olhos se tornaram
frios, sua voz superficial. — Divirta-se.
Depois de dizer isso, abandonou-a como a tinha feito no bar e
no hotel. Como se jamais a houvesse conhecido, como se desejasse
que ela não existisse. Lavínia o viu voltar com seus conhecidos e
acreditando que compreendia melhor a situação, afastou-se.
— Terminou a pequena cena romântica com essa garotinha? -
perguntou Patrícia com ironia quando Nick se aproximou dos
japoneses, que se achavam de pé na mesma roda de conversa que
ela.
Ele a tirou do braço sem condescendência. O apertou até quase
lhe deixar uma marca e lhe falou ao ouvido.
— E você terminou com o Horácio Lowenstein?
Patrícia deixou escapar uma de suas risadas histéricas e se
soltou do apertão de Nick, consciente de que podia lhe fazer dano, se
soltou.
— Foi encantador que te deitasse com sua filha por despeito.
Nunca ninguém tinha feito algo assim por mim.
Nick apertou os dentes antes de resmungar: — Ninguém o fez,
e muito menos eu.
E se encaminhou à porta.
Capítulo 11
Havia passado sete dias desde que embarcaram na viagem.
Nick jogava tênis em casais. Como fazia há muitos anos tinha
formado equipe com Patrícia e enfrentavam a uma amiga dela e seu
amante. Com um forte golpe na bola, Nick conseguiu que o
adversário não pudesse segui-la e com isso ganharam a partida.
Patrícia se aproximou tamborilando a raquete com os dedos.
— Tão implacáveis como sempre - disse em referência a Nick e
a ela mesma, e sorriu a sua amiga em gesto de triunfo. A exuberante
morena esfregava o cotovelo que havia golpeado por tentar salvar a
bola que não tinha conseguido alcançar seu namorado.
Nick apertou a mão do homem e se encaminhou ao interior do
ginásio enquanto passava a toalha que tinha pendurada ao pescoço
pela testa. Pensava dirigir-se à barra em busca de uma garrafa de
água fresca, mas se deteve no meio do trajeto quando a imagem de
Lavínia o deixou paralisado.
Ela vestia um traje esportivo cinza e sapatilhas brancas. Levava
o cabelo loiro sujeito em um rabo-de-cavalo alto e sua pele tinha
adquirido uma cor dourada pelo sol do Brasil. Nick se surpreendeu de
que tivesse as mãos enfaixadas e de que golpeasse com
profissionalismo um saco de boxe. Esqueceu-se por completo da água
que desejava beber, cruzou os braços e admirou a agilidade e
destreza dos movimentos femininos sem que Lavínia se desse conta
de que estava sendo observada.
— Você vem? - interrompeu-o Patrícia tomando-o pelo braço.
Sem emitir palavras, Nick a seguiu fora do recinto.
Lavínia não havia tornado a ver Nick desde a noite na discoteca.
Nesse tempo notou que ele não ia à praia, embora sim o fizesse a
mulher de vermelho. A chegada ao destino principal, Salvador,
impulsionou-a a comprar um par de sapatilhas e um conjunto
esportivo cinza porque os preços resultavam mais acessíveis. Além
disso, comprou lembranças para o Hector e Tamara.
Tinha passado a manhã percorrendo a cidade e seu histórico
colonial. Depois do almoço, decidiu fazer um pouco de exercício antes
de ir à praia, onde tinha descoberto que lhe fascinava estar.
Lamentava não ter uma câmera fotográfica para mostrar a seu irmão
e a sua melhor amiga o verdadeiro paraíso que a rodeava.
Depois de brigar com o saco de boxe, tomou uma ducha e foi à
praia. Voltou a tomar um banho ao retornar e acrescentou detalhes
ao primeiro vestido que tinha confeccionado para que parecesse um
traje distinto.
Na lavanderia, já se tinha feito amiga de todas as mulheres que
ali trabalhavam. Estas lhe contaram anedotas das viagens do
Paradise e de seu dono, de quem destacaram que pagava salários
muito altos e que era a pessoa mais amável do mundo, em especial
com os empregados de baixo escalão, o qual intrigou Lavínia. Diziam
que ganhou alguns milhões apostando no póquer e se deu o gostinho
de comprar esse cruzeiro. Suspeitavam que tinha tido que investir
mais dinheiro do que o obtido no jogo, mas foi a partida de cartas o
motor para que decidisse comprá-lo. O fato de ganhar um casco de
navio em uma jogada de cartas se converteu em um mito do
Paradise. Cada navio tem suas próprias histórias.
Depois da historia, Lavínia e as mulheres terminaram refletindo
a respeito de por que a vida parecia tão fácil para alguns e tão difícil
para outros, como o era para ela, e terminaram por acordar que
existe o destino, sim, mas que todos são capazes de modificá-lo.
Jantou algo frugal e de noite decidiu voltar para a praia onde
tinha visto uma espécie de bar. Era em realidade um bar onde
serviam bebidas e se escutava música até a madrugada, coisa que
gostava de fazer e podia permitir-se já que os preços, embora
estivessem em reais, pareceram-lhe bastante convenientes de acordo
com a mudança.
Não pensou que encontraria Nick nesse lugar tão pouco
atraente para um homem como ele por sua localização e porque era,
para falar a verdade, precário. Mas ali estava, beijando uma mulher
de cabelo negro, possivelmente trazida do navio, com as mãos
rodeando o rosto juvenil da moça e a língua em sua boca.
Lavínia se sentou no lado oposto do bar, de onde podia vê-los
com clareza, embora não o tivesse desejado. Nick não percebeu sua
presença. Acabou o beijo, extraiu um cigarro do bolso do casaco e o
colocou na boca da mulher. O acendeu. Ela tragou. Como não o
devolvia, que era o que Nick esperava, pegou outro. A mulher por fim
entendeu a mensagem implícita no ato e retirou o novo cigarro da
caixa. Logo então colocou o que já estava aceso nos lábios de Nick, e
ele se mostrou agradado.
Lavínia sentiu nojo. Nojo pelo modo em que Nick se conduzia
na vida, pela atitude promíscua que procurava nas mulheres, e pena
pelo amor que ela não podia desterrar de seu coração. O que podia
lhe atrair em um homem tão perverso e frívolo como esse que a tinha
usado e descartado como a tantas outras? A verdade, possivelmente.
O que ele calava, o que escondia.
Uma voz um tanto excedida de alegria para o que Lavínia
costumava escutar a sobressaltou. Olhou com certa desconfiança ao
sujeito moreno que acabava de lhe dizer "olá" em português, que de
todos os modos era muito parecido ao castelhano, e depois sorriu.
Deu a resposta. Ele se sentou a seu lado.
A voz suave, benéfica e feminina de Lavínia penetrou nos
ouvidos de Nick como uma lança. Tinha divulgado em lugar da
música, que nesse momento tinha terminado porque a canção
brasileira dava lugar à outra. Nem bem elevou a vista e a viu ali
sentada, entrando em conversa com um homem de cor, apertou o
cigarro entre os dedos até que apagou.
Lavínia conversou com o estranho por um longo momento.
Entendiam-se muito bem, porque se havia palavras que Lavínia ou
ele não dominavam no idioma do outro, explicavam-se com gestos.
Alguns deles os levaram a rir e a beber duas bebidas mais. Passada
uma hora, ele a convidou a dar uma caminhada pela praia e Lavínia
aceitou.
Nick estava cativado por ela, que nem se dava conta da mulher
que o acompanhava, que bebeu além da conta. Quando viu que
Lavínia ficava de pé e seguia ao moreno para a escuridão da praia,
desejou estrangulá-lo.
Lavínia era ingênua e inexperiente, e ele não podia permitir que
corresse perigo com aquele estranho. Estava seguro de que esse
moreno forte, de traços poderosos e braços grossos de músculos,
queria ter sexo. E ela seria sua vítima.
As taças a mais, a confusão da noite e a brisa do mar o fizeram
ficar de pé.
— Nicky... - chamou-o a mulher que o acompanhava. Corria-lhe
a voz, parecia inclusive um pouco adormecida de tanto que tinha
bebido.
Nick não lhe deu atenção. Tinha os olhos cinzas entrecerrados,
fixos nas duas figuras que se afastavam caminho à costa. Quando os
tragou a penumbra, a ira se apoderou de seus sentidos e os alcançou
em uma corrida.
O moreno que caminhava junto à Lavínia voltou ao sentir uns
golpes nas costas. Não deu tempo de ver quem o chamava porque o
punho de Nick aterrissou sobre sua mandíbula fazendo-o tropeçar.
— Nick! - exclamou Lavínia. Não só estava surpreendida,
também irritada, e indignada.
O moreno se equilibrou disposto a devolver o golpe, mas
Lavínia o deteve interpondo-se entre os dois.
— Quem é este idiota? - interrogou o homem em seu idioma.
Ninguém lhe respondeu.
Lavínia deu um passo mais para Nick e o enfrentou com toda a
integridade de que dispunha.
— O que você está fazendo? - repreendeu-o.
— Você ainda pergunta! - exclamou ele. O fôlego a álcool e a
cigarro fez retroceder a Lavínia, que o olhou com pena.
— Não se meta em meus assuntos - ordenou em um sussurro
furioso.
— Não me meter em que? - reagiu ele. — Você não se dá conta
do por que ele te afastou da vista de todos? É tão ingênua!
— Não! - gritou ela, voltando a dar um passo adiante. — A
ingênua não sou eu, é você. Um pobre idiota que pensa que todos os
homens são uns filhos da puta como você.
Nick ficou duro, perplexo.
— Nos faça um favor - rematou ela - me deixe em paz.
Então deu as costas a Nick, pegou o braço do moreno e
começou a caminhar em direção aonde antes se dirigiam. Nick se
sentiu furioso, por isso exclamou: — Ele vai abusar de você!
Lavínia deteve seu andar e se voltou para ele com uma careta
sarcástica.
— Já fui abusada – replicou. — Por você.
Depois de soltar essas palavras, Lavínia girou sobre os
calcanhares e retornou junto ao moreno, com quem se afastou rumo
à penumbra. Ao testemunhar tudo aquilo, os olhos de Nick arderam
de ódio.
"Um pobre idiota que pensa que todos os homens são uns filhos
da puta como você". "Me deixe em paz". "Já fui abusada. Por você",
recordou. Para Lavínia, isso tudo se convertia nele. Em um filho da
puta e em um violador. Não do corpo, mas sim da confiança, dos
sonhos, das ilusões da mulher que não podia arrancar de seu
pensamento.
Uma gargalhada e um puxão à manga de sua camisa o tiraram
para fora de seus raciocínios. Sua amante, cujo nome nem sequer
recordava, ria a gargalhadas lutando por manter-se em pé sendo que
os saltos afundavam na areia e o corpo lhe impedia de conservar o
equilíbrio.
Nick a olhou com desprezo e tirou o braço de seu contato. Ela
nem se alterou. Seguiu rindo inclusive enquanto ele se afastava e
retrocedia o caminho para o Paradise.
Lavínia passou um momento mais com seu amigo, tomaram um
café e logo se despediram trocando endereço e o telefone de cada
um. Ela acabou sozinha na praia deserta ao amanhecer, sentada
numa imensidão similar a que Enéas havia trazido para as margens
do Lácio. Tal era a emoção que lhe produzia e os sentimentos que
despertava esse paraíso que fez uma promessa.
— Voltarei – disse ela. — Voltarei algum dia e já não me sentirei
sozinha.
Nick bebeu outro gole. A noite que tinha passado sem dormir
era evidente em seu cabelo emaranhado, em seus olhos vermelhos e
na posição encurvada de sua coluna, como se protegesse o copo de
uísque qual tesouro milenário.
Sentado à beira do bar deserto do Paradise, passava um dedo
pelo bordo do recipiente e pensava que precisava dormir, mas não
queria fazê-lo. Desde que tinha visto Lavínia afastar-se com o
moreno, desde que suas palavras tinham impregnado tão fundo em
seu peito, preferia a vigília, porque dormir significaria deixar de as
recordar, e fazê-lo reviver.
— Depois de tudo, não resultou tão libertino como tinha
entendido.
A voz de Patrícia interrompeu suas reflexões. Nick não girou a
cabeça, não se moveu.
— Não estou de humor para suas provocações - respondeu a
contra gosto, fazendo um esforço para que não lhe corressem as
palavras como à mulher da praia que tinha aborrecido.
Patrícia, com seu vestido vermelho decotado, soltou uma
gargalhada que lhe partiu o crânio. Doía-lhe a cabeça como se em
seu cérebro tivesse repicado um tambor toda a noite.
— Oh, Nick! - exclamou ela com ironia. — Está tão tenro como
sempre. Não te parece que já bebeu muito?
Nick elevou uma sobrancelha.
— Que curioso. Preocupa-se comigo agora.
— Sempre o fiz.
— Não enquanto se deitava com o Horácio Lowenstein.
A acusação não causou efeito algum em Patrícia. Para ela se
tratava de uma brincadeira.
— Nicky, é tão... - riu.
— Tão o que? - interrompeu-a ele apertando o punho.
— Tão encantador! Vai deixar que esta viagem acabe assim? -
ela deslizou um dedo pela barba. O dedo escalou o antebraço nu do
homem, que tinha as mangas da camisa dobradas até os cotovelos, e
logo chegou até sua mão, a que ele retirou bruscamente.
— Vai me deixar ir outra vez?
Nick girou a cabeça para ela e semicerrou os olhos para poder
olhá-la.
— O que você quer, Patrícia? – interrogou. — O que procura?
— Sei que ainda me ama como o primeiro dia.
— E isso o que?
— Então não me equivoco.
— Perguntei o que quer - resmungou ele com voz dura,
exigente.
— Você.
— Você tem ao Lowenstein.
— Mas Horácio não é o mesmo! - exclamou ela, morta de
risada. — Horácio é velho e feio. Você em troca é jovem e eu gosto
muito.
Nick deixou escapar um sorriso sem graça.
— Que pena que não se deu conta antes - replicou.
Com tudo o que Deus sabia que lhe custava, ficou de pé e
abandonou o lugar que compartilhava com Patrícia.
Ela o viu afastar com a certeza de que ainda tinha o poder de
mobilizá-lo, mas ele estava resistindo o bastante. Não a tinha
esquecido, entretanto, uma força estranha o privava de entregar-se a
ela. A velha melancolia que o cuidava como se se tratasse de seu
filho? As amiguinhas que tinha? Não. Não tinham podido com ela
antes, menos o fariam agora. A razão tinha que ser outra mulher,
outra pessoa.
— E qual é o quarto da costureira? - perguntou Patrícia à
empregada da limpeza a que lhe tinha tirado todos outros dados a
respeito da loira a qual Nick, como um bobo, ficou olhando enquanto
praticava boxe. A mesma com a que tinha dançado. Nick, que não
dançava. Nick, que não olhava realmente a ninguém mais que a ela.
— Não sei senhora - respondeu a empregada, cautelosa. Mas
Patrícia não era nenhuma boba.
— O que eu acredito é que não quer me dizer. E não têm ideia
dos problemas que isso pode te causar.
— Não sei, juro.
— E quem sabe? - insistiu Patrícia. A moça encolheu os ombros.
— Possivelmente a recepção. As domésticas de seu setor, o
capitão...
Patrícia cruzou os braços em gesto ameaçador.
— E como se chama? - interrogou.
— Lavínia.
— Lavínia de que?
— Lavínia Dickinson.
— E como sabe isso sem saber o quarto que lhe foi atribuído?
— Já lhe disse tudo o que sei - respondeu a jovem, temerosa.
— Entreguei à garota seu menu diário na sala de jantar e tive
que excluí-la da lista. Na lista figurava o camarote, mas eu não o
recordo.
— Não o recorda, mas pode averiguá-lo – a empregada engoliu
com força. Não fizeram falta palavras.
— Vais fazer.
Lavínia Dickinson, repetiu Patrícia em sussurros. Nenhum
sobrenome conhecido, nada de importância. Tinha-o pressentido,
mas comprová-lo demonstrava que desfazer-se dessa mulherzinha
seria muito mais fácil do que pensava. Sem dinheiro e sem família
que servisse como respaldo, era muito fácil que uma moça se visse
desprestigiada perante um homem como Nicolas.
Lavínia se despediu do lugar principal do destino sabendo que
pela tarde, pouco depois de meio-dia, embarcaria de volta. Ainda
havia mais dois destinos onde parariam ao voltar, mas saber que a
viagem tinha chegado a seu ponto máximo, que permanecia apenas o
retorno, atou-lhe a alma.
Depois de passar por Búzios e Santos, a última noite no
Paradise chegou muito rapidamente. Muito rápido para Lavínia, que
não voltaria a viver algo como isso nunca. Separou seu vestido
romano e foi para seu quarto tomar um banho e preparar-se para o
jantar. Pensava comer e depois ir ao cassino, que ainda não tinha
conhecido.
Maquiou-se com esmero e dedicação. Penteou seu cabelo
dourado e sorriu ao espelho para sentir que estava acompanhada.
Voltar para casa não era tão mau, depois de tudo. Havia dito umas
quantas verdades a Nick e sabia que em algum ponto, embora fosse
profundo e secreto, o tinha deixado surpreso. Voltaria a ver seus
entes queridos, às pessoas que de verdade se preocupavam com ela,
e escaparia da frivolidade e o superficial da riqueza. Ser pobre era
duro, mas a liberava de falsidades e hipocrisias.
Em seu bairro, se duas pessoas não se suportavam, não se
saudavam. Entre os ricos, as saudações eram uma espécie de
obrigação social, embora ao virar a cara o outro falasse mal daquele
ao que lhe tinha sorrido. Em seu bairro, quando dois moços de
turmas distintas se odiavam, batiam-se em duelo como nos princípios
do século XX e depois, possivelmente, até faziam as pazes. Isso a
aterrorizava, às vezes até acabavam mortos ou feridos com gravidade
e temia que algum dia Hector também se tornasse a esses atos
mafiosos; mas os ricos também se batiam em duelo, só que não
arriscavam a vida nisso.
Deixou de filosofar e empreendeu caminho. Queria aproveitar o
máximo de tempo possível.
No cassino, as luzes enchiam o ambiente de cor. O aroma era
distinto de qualquer outro conhecido, assim como os ruídos que
geravam as máquinas caça-níqueis. Passar junto às damas e
cavalheiros que jogavam nos distintos entretenimentos lhe contribuiu
uma cota ainda mais interessante ao percurso, porque os perfumes
que despediam aqueles corpos eram um mais delicioso que o outro, e
isso harmonizava qualquer passeio.
Nick já tinha visto Lavínia em seu vestido de romana, como a
noite da discoteca, mas ela não se deu conta. Ele estava de pé diante
na porta da sala privada de póquer, onde tinha ficado quieto,
admirando-a.
— Não pensa jogar o homem mais afortunado do mundo? -
perguntou-lhe um conhecido colocando uma mão sobre seu ombro.
Nick assentiu com um leve movimento da cabeça, voltou-se e
entrou na sala.
Lavínia suspirou. De pé entre as máquinas caça-níqueis,
levantou a vista para as mesas de póquer e ali recordou o conto das
lavadeiras, a história de Nick e a compra desse navio. Pensar que
nesse lugar tinha nascido a ideia que hoje a tinha nesse lugar. Nada
era por acaso, nada era tão mau. Entregar-se a Nick tinha sido o mais
maravilhoso que lhe tinha passado na vida, e o segundo eram os
lugares que tinha conhecido graças a essa viagem, se não tinha em
conta o seu irmão e a sua melhor amiga.
Nisso pensava: recordava a seu maninho, imaginava o que
podia estar fazendo nesse preciso momento, quando uma bela
mulher de vestido prateado invadiu a sala. O universo inteiro pareceu
deter-se ante sua interrupção descontrolada.
— Foi ela! - gritou assinalando com o dedo.
Patrícia se deu a volta e sorriu. Seu cúmplice tinha chegado.
Lavínia seguia abismada na mesa de póquer e os pensamentos
a respeito de seu irmão.
— Senhorita - chamou-a um membro da tripulação.
Lavínia o olhou. Reconheceu-o pelo uniforme e pela cara: era o
mesmo que a tinha escoltado até o despacho do capitão e depois à
lavanderia. Então viu a loira que lhe aproximava fora de si.
— Foi ela! - voltou a gritar. Lavínia não entendia uma palavra.
— Está certa? - interrogou o jovem.
— Mais que certa - replicou a dama antes de dirigir-se a
Lavínia, que franzia o cenho presa da confusão.
— O têm, ladra? Não dissimule e me devolva.
Ao dar-se conta de que não entendia palavra, Lavínia olhou ao
tripulante.
— De que fala?
— De meu anel de diamantes, és estúpida! - gritou a senhorita.
Lavínia ficou vermelha como as luzes de alguns caça-níqueis.
Embora não tivesse ideia do que lhe falavam, todos a olhavam e isso
a pôs nervosa.
— Nos acompanhe, por favor - sugeriu o tripulante.
Ante os olhares que não deixavam de estudá-la, alguns
inclusive a olhavam com desprezo, como se já se provasse que ela
era uma ladra, aceitou. Uma vez no corredor, o tripulante continuou:
— Teremos que revistar seu quarto.
Só de pensar que pudessem entrar nele e notar a ausência de
lençóis e cortinas revolveu o estômago de Lavínia. Ainda não tinha
tido oportunidade das repor e não teria modo de fazê-lo antes que
entrassem em seu quarto. Pensava conseguir o que lhe faltava no
tanque essa madrugada, porque só ficava uma mulher de guarda.
— De maneira nenhuma – respondeu. — Não sei quem é esta
mulher nem sei de que fala.
— Não te faça sonsa! - replicou a outra. Teria poucos anos mais
que Lavínia.
— Me devolva o que me roubou!
— Senhorita Dickinson - interveio o homem. — Tudo se
esclareceria se nos permitisse jogar uma olhada a seu quarto.
Lavínia suspirou. Estava perdida. Sem dúvidas não
encontrariam um anel de diamantes porque ela não tinha roubado,
mas sim descobririam que tinha destruído os lençóis e as cortinas.
— Façam o que considerem necessário assentiu cabisbaixa, com
um fio de voz.
Estava acostumada a que na vida tudo, absolutamente tudo,
saísse-lhe mau, por que teria que pensar que a travessura de vestir-
se com lençóis e cortinas podia lhe sair bem?
Transitaram os três, o caminho até seu camarote. Na porta
acharam dois homens mais que falavam com o tripulante de alta fila
em segredo.
Os dois homens eram um o gerente do cruzeiro e o outro um
cadete, além do tripulante que revisava o pôster de "Não incomodar".
Lavínia o tinha pendurado no trinco exterior para que ninguém
entrasse em quarto nem sequer para fazer a limpeza. Acomodou-o
em seu lugar e abriu a porta.
A devastação do quarto deixou a todos com a boca aberta.
Faltavam as cortinas, os ganchos, as cintas que permitiam os sujeitar
e isso dava a impressão de um quarto vazio. Além disso, faltavam os
lençóis: a cama estava desfeita e o acolchoado feito um pão doce na
ponta.
Sem pedir permissão, como se não tivesse se encontrado com
semelhante desconcerto, o gerente deu um passo dentro.
— Mas o que se passou aqui? - perguntou-se em voz alta. —
Passou um tornado e não nos inteiramos?
— Duvido - disse a altiva mulher que acusava a Lavínia de
roubo.
— Revistem - ordenou o gerente.
— Lamento, senhorita Dickinson - desculpou-se o tripulante,
que se fazia evidente tinha sentido pena por ela.
Lavínia conservava esse gesto taciturno no rosto e a cabeça
encurvada. — Confiamos em que tudo se arrume logo. O penoso é
que as câmaras de segurança não hajam capturado nada, do
contrário nos economizaríamos todo este procedimento.
— É este? - o empregado elevava um anel que tinha recolhido
da cômoda.
— Isso era de meu pai - explicou Lavínia. Ela sempre levava o
anel de bodas de seu pai em sua caixa de joias. Nessa oportunidade,
tinha-o deixado sobre a cômoda porque tinha esvaziado o conteúdo
da caixa onde este se achava em busca de um par de brincos.
— Isso é uma bagatela - replicou a mulher sobre a voz baixa de
Lavínia. — O meu Pingente é de diamantes.
Lavínia não se sentiu ferida pelo comentário depreciativo da
mulher, mas sim pela agressão para seu pai. Estava segura de que
lhe havia sido um bom sacrifício comprar algo que uma ricaça que
jamais tinha conhecido a fome ousava menosprezar. Entretanto,
tragou o discreto insulto que acabavam de lhe proferir e permaneceu
calada.
— É esse! - gritou a mulher antes que o empregado de menor
escalão, que acabava de extrair o luxuoso anel de uma gaveta,
pudesse falar.
Lavínia elevou a cabeça imediatamente. Isso era impossível, ela
jamais roubou nada.
— Jamais o tinha visto em minha vida! – reclamou. — Isso não
é meu!
— Claro que não é seu, ladra! - respondeu-lhe a mulher com
toda a presunção do mundo.
— Senhorita Dickinson... - começou a falar o tripulante, mas a
mulher o interrompeu.
— Não sente mal que me tenha roubado, tendo em conta o que
fez deste quarto! - soltou.
— Isso posso explicar! - defendeu-se Lavínia.
— Então nos explique isso por favor - pediu o homem, que
conservava a calma.
Lavínia tragou com força. Calou.
— O que aconteceu neste quarto? - interrogou o gerente.
Lavínia ficou calada. Não se atreveu a falar, seus olhos se encheram
de angústia.
— Já veem! - gritou a mulher.
— O que está se passando?
Só isso faltava, pensou Lavínia. Nick. Todos ficaram congelados
ante sua aparição.
Patrícia pensava fazer que Nick se inteirasse mais tarde do
delito que tinha cometido a costureira, porque não imaginou que ela
estaria no mesmo lugar que ele quando a acusassem do roubo.
Tinha-lhe saído melhor do que esperava, porque Nick se deu conta do
escândalo e os tinha seguido até o lugar dos fatos. Por prudência, ela
não se moveu. Se queria fazer acreditável a mentira, tinha que fingir-
se interessada na intriga, mas não muito envolta na ação.
— Esta ordinária roubou meu anel de diamantes! - exclamou a
mulher em resposta à pergunta de Nick, sem olhar se ele era o dono
do navio ou um tripulante qualquer.
Em lugar de falar, Lavínia cobriu o rosto com as mãos e
irrompeu em um pranto desconsolado. Tremiam-lhe as mãos e as
pernas, era incapaz de reagir de outro modo ante a injustiça.
Nick se aproximou com intenções de lhe limpar a cara, mas
quando deu um passo dentro do quarto, ficou congelado ante o
desabastecimento.
— Mas o que...? - perguntou com o cenho franzido.
— Isso é o que todos estamos esperando que a senhorita
Dickinson explique - respondeu o gerente.
Nick se voltou para ela.
— Lavínia - disse-lhe em um tom muito suave.
— Conhece-a! - exclamou a vítima do roubo. — Como posso
esperar que receba um castigo justo?
Nick olhou à mulher com irritação. Não o demonstrava, mas lhe
tinha provocado desgosto ao maltratar a Lavínia, que ainda chorava
como uma menina acusada de roubar um anel caro. Ninguém
merecia semelhante trato, ninguém. E ele odiava às pessoas que se
acreditavam mais que outros porque tinham tido a sorte de nascer
para serem servidas. Despertavam asco, repugnância; mas sobravam
em seu mundo.
— Vi-a sair de meu quarto - explicou a mulher. — Segui-a
porque não vi que levasse uniforme de limpeza, mas não pude
alcançá-la. Logo descobri que meu anel tinha desaparecido e por isso
a procuramos. Estava no cassino, a descarada, gastando o dinheiro
que deve ter roubado a tantos neste navio.
Ela não tinha roubado nem tinha jogado um só centavo no
cassino, mas ao parecer ser pobre e haver-se equivocado em um tolo
formulário eram sinônimos de ser ladra e merecer castigo.
— O que fazia no quarto da senhora, senhorita Dickinson? -
perguntou o gerente. — Como explica que nenhuma não há uma só
roupa em seu quarto?
Encarregaram-se de averiguá-lo quando pesou sobre ela a
acusação. Era o que o gerente tinha comentado ao tripulante de alto
escalão ao ouvido nem bem tinham chegado ao quarto.
— Nos diga o nome de uma loja - pediu o tripulante, um pouco
mais amável. — Uma só casa respeitável que tenha alguma de suas
roupas.
Esse homem sim parecia conservar certa fé nela. Foi isso o que
impulsionou a Lavínia a ser honesta com ele. Presa dos prantos e os
saltos que dava pela angústia, articulou algumas palavras sem
levantar a cabeça.
— Pode perguntar a meus clientes - replicou. O som saía entre
um oco que deixava a união de suas duas mãos frente à cara. —
Prego botões e aviamento. Não sou mais que uma costureira.
Nick sacudiu a cabeça. Cravava-lhe o coração. Não queria que
Lavínia se sentisse descoberta e humilhada, ninguém melhor que ele
podia saber na própria carne o que isso significava. Não queria sentir,
mas já era muito tarde para impedi-lo.
— Isso não é verdade - replicou com voz poderosa. — É que
ainda não descobriram seu talento.
— Perdão? - interrompeu a vítima do roubo.
— Esta costureira me roubou um anel de diamantes - recordou
a todos os presentes. Destacou a palavra costureira.
Nick semicerrou os olhos porque o tinha percebido e a teria
calado de uma boa indireta, mas tinha que guardar réplicas porque
era uma passageira e, acima de tudo, tinha que conformá-la.
— E o quarto? - continuou o gerente, ofuscado. — O que
aconteceu com tudo o que falta nele?
— Basta! - Nick calou a seu empregado como não podia
emudecer à passageira, possivelmente muito brusco.
— Lavínia - falou-lhe com suavidade, tomando-a entre os seus
braços em um intento para que levantasse o rosto. Estava seguro de
que, além de angústia, ela sentia vergonha.
— Explique-me isso.
Lavínia levantou o rosto lentamente. Tinha a pele das maçãs do
rosto avermelhada e úmida, e Nick se odiava por desejar secá-la.
— Não fui eu... - alcançou a balbuciar ela.
— Já! - burlou-se a mulher. — "Não fui eu"! Boa desculpa!
— Quão segura está de que foi ela? - insistiu Nick sem olhar à
mulher nos olhos porque temia que se desse conta de que a odiava.
— Vi-a com meus próprios olhos! E o anel foi achado em sua
gaveta. Diga-lhe - ordenou ao gerente. — Parece mentira, a vítima é
uma e todos defendem à ladra.
— Lavínia - insistiu Nick com suavidade. — Pode explicar o que
aconteceu neste quarto? Pode nos dizer por que o anel estava em seu
poder?
Lavínia permanecia em silêncio, angustiada.
— Deixá-la aqui é uma ameaça para todos! - gritou a
proprietária do anel.
— Vou fazer saber isto a todos os meios de comunicação para
que ninguém mais ponha um só pé neste navio onde se premia aos
ladrões. Meu marido é o dono de um canal de tv!
Nick negou com a cabeça. Não ficou mais opção que levar a
cabo o plano mais desagradável.
— Está bem – consentiu. — Levem-na ao quarto de detenção.
Lavínia lhe dirigiu um olhar pétreo.
— Não consultamos a decisão ao capitão? - indagou o
tripulante.
— Não será necessário - replicou Nick sem deixar de olhar a
Lavínia. Atrevia-se a lhe sustentar o olhar.
— Eu decidi.
Lavínia estalou.
— É um lixo, Nicolas! – gritou. — Vá à merda!
E o esbofeteou. A boxeadora lhe deu volta a cara.
O empregado se aproximou para detê-la, mas Nick o impediu.
— Está bem - disse elevando uma mão em gesto preventivo.
Que ninguém tocasse a Lavínia. Ninguém.
— Já vê! - exclamou a que tinha sido vítima do roubo. — Já vê
em o que é capaz de fazer esta malcriada!
Não fez falta que os homens detivessem a Lavínia como a
palavra o indicava. Ao ver que se aproximavam, Lavínia caminhou
diante deles para dirigir-se para onde queriam levá-la.
— Tratem-na com gentileza - advertiu Nick aos homens.
— O agradeço - disse-lhe a mulher, que pareceu não ouvir
aquela ordem. — Tem que fazer-se justiça.
Nick não lhe prestou atenção. Ficou-se olhando o pôster de
"Não incomodar".
Uma hora mais tarde, Lavínia se debruçava sobre si mesma,
com os joelhos pegos ao peito, tratando de suportar o frio que nesse
lugar afastado e solitário lhe impregnava os ossos.
Jamais tinha vivido uma humilhação semelhante, tanta mentira
e injustiça a afligiam, mas ao menos tinha deixado de chorar. De
repente o tripulante que sempre tinha conservado a fé nela abriu a
porta e lhe dirigiu a palavra.
— Me acompanhe, por favor - pediu.
Lavínia elevou uma sobrancelha.
— Por quê? - Se notava mais forte e inclusive com sotaques de
ironia. — Pensam em jogar aos tubarões?
O tripulante soltou uma risada e a esperou para levá-la até o
elevador.
Uma vez no piso indicado, conduziu Lavínia por uma série de
corredores secretos até uma zona privada. Um corredor estreito ao
fundo do qual só havia uma porta branca de folha dupla.
— Aonde me leva? - interrogou ela, desconfiada.
— A nadar com golfinhos - respondeu o homem.
Capítulo 12
Quando Nick abriu a porta, Lavínia tentou ir embora, mas o
tripulante a impediu.
— Obrigado - disse Nick antes de tomar a Lavínia pelo braço
para introduzir à força na habitação.
Embora ela resistisse, pouco pôde fazer para liberar-se de Nick
e evitar que ele entrasse consigo no camarote. Deu-se conta de que
já não poderia fugir ao ficar com o nariz frente à porta branca.
Nick tinha se estabelecido atrás dela, aprisionando-a entre sua
imensidão e a madeira.
— Se te solto sentará sem pigarrear? - perguntou.
Indignada, Lavínia replicou: — Sou uma ladra, mas não sou sua
prisioneira.
— Ambos sabemos que não é nenhuma das duas coisas -
respondeu ele.
Em sua voz se adivinhavam diversão e ternura. O primeiro
motivo ofendeu a Lavínia, por isso se deu a volta. Ficaram frente a
frente, tão perto que podiam respirar-se. Ela sorriu, irônica.
— Ao que parece ser humilde é sinônimo de ser desonesto –
resmungou.
— Mas aos que eu vi sorrir e se insultar ao dar-lhe as costas é a
vocês, os ricos, não a mim. Duvido que tivesse acusado de ladra a
qualquer de suas outras amiguinhas.
— Assim que te considera uma mais de minhas... "amiguinhas"
- concluiu ele, como se o único que tivesse importado de tudo o que
lhe dizia fosse este último. Até lhe custou repetir o término.
— Como se me tivesse tratado como algo melhor! Acaso não o
sou?
Lavínia o desafiava. Nick não respondeu.
— Sente-se.
— Não. Chamem a seu robô e decide que me leve de volta ao
quarto de detenção, onde devia ter estado sempre.
Nick soltou uma risada enternecida.
— Ah, Lavínia! - exclamou.
— Se não o fizerem, volto por meus próprios meios. Algo vai
ser melhor do que ter que compartilhar um espaço com você.
Nick não se alterou. Encolheu os ombros e encheu os pulmões
de ar.
— Pareceu-me melhor que ficasse aqui em lugar daquele quarto
- explicou com simplicidade.
— Mas que amável! - ironizou ela. — Lastimo que pensou mal.
Prefiro que me joguem aos tubarões antes que ficar aqui com o pior.
Com sua permissão.
Voltou a lhe dar as costas para retirar-se, mas ele a impediu de
novo apoiando uma de suas pesadas mãos sobre a porta.
— Me dê uma oportunidade - pediu.
Lavínia soltou um risinho mordaz.
— Quantas mais? - pensava que estava cansada de lhe dar
oportunidades, de fingir que ele podia ser bom e justo.
— As que sejam necessárias - respondeu Nick com serenidade.
— Sente-se.
Lavínia cruzou os braços enquanto se voltava para olhá-lo.
— Por quê? Nessa posição se pode julgar melhor ao acusado? -
espetou-lhe.
— Eu não te julgo - respondeu ele em um sussurro. Lavínia
arqueou as sobrancelhas.
— Oh, de verdade? – ironizou. — Entretanto me enviou a... - ia
dizer "detenção", mas Nick a interrompeu, pressentindo-o.
— Isso o fiz porque tinha que calar à passageira. Sempre soube
que não tinha roubado nada - assegurou. — Mas se algo que morro
por saber é o que fez com tudo o que desapareceu do quarto.
O tom gracioso de Nick enterneceu Lavínia, embora um pouco,
nada mais.
— Isso não importa - replicou ela. — Podem carregá-lo a minha
conta se quiserem, porque esses objetos não vão voltar.
— Conte-me isso, por favor, que me pulsa o coração como a um
assassino de ansiedade.
Lavínia notou o brilho divertido nos olhos de Nick e não pôde
evitar abrandar o ânimo um pouco mais. Baixou a cabeça, as
bochechas se tingiram de vermelho. Já não sentia frio, sentia o calor
do corpo de Nick pego ao seu e um estranho orgulho.
— Não me diga que não se deu conta - brincou.
— Do que, por quer que, diga?!
— Se você pensou a decoração desses camarotes...
Nick se levou uma mão à frente. Os dois se esqueceram de que
ele travava a porta ou não. Deixou-a cair em seguida.
— Lavínia... - foi uma súplica de intriga que a fez sorrir.
— Senti saudades de você, Nick, um homem tão acordado.
Acaso não o vê? Estou vestida com suas cortinas.
Nick deu um passo atrás com o cenho franzido. Lavínia elevou a
cabeça e sorriu ao notar que o homem a estudava. Depois, com
expressão que evidenciava que não acreditava numa palavra, ele
exclamou sorridente: — Não pode ser!
Lavínia riu e lhe ofereceu um pedaço do tecido.
— Toca-o - convidou-o.
Nick obedeceu imediatamente. Quando comprovou que se
tratava de suas cortinas, deixou escapar uma risada. Lavínia tinha
transformado um par de cortinas no vestido mais formoso que Nick
tinha visto algum dia, ou ao menos assim lhe parecia quando ela o
tinha posto. Sentiu-se orgulhoso do talento e a capacidade dessa
mulher para desenhar, para costurar e para vestir.
— Lavínia! - exclamou com assombro. — Por que se vestia com
os tecidos que encontrou no camarote? E a roupa de ginástica?
— A roupa de ginástica comprei quando chegamos a Salvador,
porque aí saía tudo mais barato - confessou.
Ao Nick lhe espremeu o estômago ao dar-se conta de algo que
sempre tinha sabido, mas que não tinha tido em conta na hora de lhe
deixar as passagens: ela era pobre.
— Tive que me vestir com suas cortinas porque perdi minha
bagagem.
— O que?
A frase o tirou de toda reflexão, seu rosto perdeu qualquer
vestígio de brincadeira ou diversão. Parecia sentir-se modesto,
zangado.
— Que conforme me disseram, equivoquei-me em um número
do formulário de carga... - apressou-se a esclarecer Lavínia.
— Merda! - interrompeu-a ele.
— O que?
Nick negou com a cabeça, passou a mão pela nuca e se afastou
até sentar-se no tamborete que estava aos pés da cama. Quase
parecia ele o acusado. Lavínia avançou uns passos até ficar frente a
frente de novo; ela de pé, ele sentado.
— Pensa me explicar? - exigiu Lavínia com tom triste.
Pressentia que Nick estava a ponto de dizer algo que odiaria.
— Por que não me disse isso? - afligiu-se ele. — Dormia sem
lençóis e te resignava a que ninguém limpasse seu quarto por não me
dizer pessoalmente que os estúpidos de meus empregados tinham
perdido sua mala?
— Como ia te dizer isso? - replicou Lavínia, ofuscada.
— Não foram seus empregados, fui eu, e você não acreditaria
em quão idiota fui, em não saber completar um formulário. Tive
vergonha, Nick, porque gente que costuma viajar seguro sabe
completar esses papéis, em troca eu...
Nick ficou de pé e deu uma volta pelo quarto. Depois se voltou
para Lavínia com expressão indecifrável.
— É que não houve equívoco - confessou.
Lavínia soltou uma risadinha, parecia-lhe impossível.
— Ai, Nick, obrigado, mas já sei que sou bastante distraída -
recalcou.
— Não, Lavínia - insistiu ele, muito sério.
— Se tivéssemos que vestir passageiros pela quantidade de
bagagem que perdemos, afundaria.
Lavínia entreabriu os lábios, incapaz de acreditar na verdade.
— Nick... - balbuciou. Ele seguiu falando.
— A ordem que têm os empregados é pôr a desculpa do engano
no formulário para que ninguém solicite que os vistamos em sua
travessia. E assim gastam nas lojas. Ninguém se importa muito
porque fazem uma reclamação em outro papel e com sorte lhes
fazemos chegar a bagagem ao porto seguinte.
— Mas é o que menos tenho é sorte e jamais encontraram a
minha, verdade? - interrompeu-o ela, ainda boquiaberta.
Nick se afligiu.
— Se não lhe fizeram chegar isso, é porque não. Não a
encontraram.
Produziu-se um instante de silêncio no que ambos se olharam:
um culpado, a outra zangada.
— É um filho da puta - soltou Lavínia, embora o dissesse com
certa graça, sem poder fechar a boca.
— Isso não é novo para mim, diga-me algo original - respondeu
ele, recordando a quantidade de vezes que tinha escutado a Fi lhe ler
as mensagens que suas amantes lhe deixavam quando ele ainda não
tinha encontrado o modo de bloquear os números. "Nick, é um filho
da puta". "Filho da puta, não quero vê-lo nunca mais". "Vais-me
pagar por isso, filho da puta". E infinidade de coisas similares.
Lavínia encolheu os ombros. Nick lhe pedia algo mais original.
— Fazer acreditar às pessoas que é estúpida para que não
reclamem e pague pelo engano de seus empregados é de um
capitalismo covarde.
— Vai melhorando.
— Algum dia vai pagar. Ninguém está isento de ficar impune.
Nick a olhava como se fosse um menino em penitência e depois
do presságio pôs-se a rir. Lavínia perdeu todo vestígio de seriedade e
acabou rindo também. O que começou sendo uma melodia suave se
converteu em gargalhadas: um ria mais que o outro. Até que
acabaram derrotados os dois, arrojados de costas sobre a cama com
os pés pendurando ao piso.
Fez-se um momento de silêncio no que procuraram voltar a
respirar.
— Você mandou desenhar o teto deste quarto? - perguntou
Lavínia, reflexiva.
Era um desses momentos filosóficos que só acontecem depois
de um comprido e profundo episódio de risada não justificada.
— Sim.
— É precioso.
— Obrigado.
Voltou a fazer-se silêncio.
— Nick.
— Mm...
— O que vê?
Lavínia não o perguntava ressentidamente nem com inveja,
mas sim como uma psicóloga analisando um paciente. Nick não se
alarmou. Não entendia o que lhe acontecia que uma estranha
sensação de familiaridade o invadia agora que tinha alcançado certa
liberdade com Lavínia. Sentia que podia confiar nela, que tinha uma
amiga. Embora ele não quisesse ter verdadeiras amigas, nada mais
que "amiguinhas", como Lavínia as chamava que era algo muito
distinto.
— É que não entendo, Nick - continuou ela sem esperar
resposta.
Depois de tudo, ele não tinha muita ideia do que lhe estava
falando e por isso não podia responder.
— De verdade me custa acreditar que sendo você um homem
tão inteligente, brilhante em tudo, procure atitudes tão degradantes
em uma mulher. Nego-me a acreditá-lo. Sabem bem o que querem!
Possivelmente uma noite divertida, sua cara bonita ou uma viagem
em seu navio. E por isso o passam bem, para que possam realizar
seus desejos, mas você... não posso acreditar que de verdade passe
isso bem, que seja isso o que deseja.
Nick se sentiu nu. Lavínia tinha expressado tão bem e em tão
poucas palavras o que se reduziu sua vida que se assustou. Suspirou.
O certo era que apesar de tudo desejava responder, mas não o fez.
Ou possivelmente sim.
— Sabe o que me passou uma vez quando era menino? -
perguntou.
— Eu adoraria saber - respondeu ela com ânimo de seguir a
conversação.
— Todos os verões, minha mãe armava uma bacia com água
para que me entretivesse com os amiguinhos do bairro.
Lavínia notou a matiz que cobrou a voz de Nick ao nomear a
sua mãe. Era um tom especial novo nele, mas não emitiu palavra a
respeito porque não queria interromper o conto.
— Não saíamos de férias - esclareceu Nick.
A Lavínia pareceu estranho o fato das férias, porque sempre
pensou que os meninos ricos passeavam todos os verões e tinham
piscinas de concreto ou de plástico, essas grandes fundas na grama,
mas talvez os tinha prejudicado.
— Numa dessas tardes - continuou ele - dois de meus amigos
me afundaram a cabeça na água. Estavam brincando, mas me
inundaram tanto tempo e sem preparação prévia que quase me
afoguei.
Lavínia arqueou as sobrancelhas, surpreendida.
— Depois disso tenho pavor à água em grandes quantidades,
como em piscinas, ou o mar... por pouco não temo à água na jacuzzi
também - brincou.
Lavínia compreendeu de repente por que não tinha visto Nick
na praia, embora não se fazia ideia de que alguém que tinha terror à
água pudesse comprar um navio.
— Comprou um navio... - refletiu em voz alta.
— É o que se faz com os medos - respondeu ele - enfrenta-os.
— Me parece que não o está enfrentando em realidade, só te
aproxima sem te atrever a tocá-lo - replicou ela. — Enfrentará se o
navio afundar, ou se te animam a ir à praia e nadar no mar, que te
asseguro é precioso. Eu não o conhecia.
Como sabia que Lavínia tinha razão, mas não estava preparado
para reconhecê-lo, Nick se descalçou e se deslizou para trás. Lavínia
não se moveu.
— Eu também tenho medo - seguiu falando ela. Esperava
compartilhar parte de um segredo com ele, depois de ter notado que
acabava de pô-lo em evidência com algo que parecia ser muito
profundo.
— De altura - para lhe tirar dramatismo ao assunto, também se
descalçou e se deslizou para trás, como antes tinha feito ele, que já
tinha recostado a cabeça sobre o travesseiro. — Sugeriria que compre
um avião?
Nick soltou a risada que tinha estado esperando seu turno para
sair e a abraçou. O fez sem que metesse o sexo nisso, nem segundas
intenções, nem sequer o desejo. Passou o braço por detrás do
pescoço de Lavínia e a atraiu para seu flanco porque ela era sua
amiga e porque acreditava lhe guardar certo afeto.
Lavínia sentiu que o coração lhe estalava. Ele se via tão atrativo
quando ria! Jovem, aberto, renovado. Pressentiu que Nick não a
considerava uma "amiguinha" e isso a levou a encostar mais contra
seu flanco e a apoiar uma mão sobre seu peito para senti-lo ainda
mais perto. Sentiu-se honrada. Não era amor de casal o que ele
parecia disposto a lhe brindar no momento, mas que a considerasse
sua amiga a encheu de sorte.
A Nick custava abrir seu coração. Ela sabia, como também sabia
que ainda não se abria de tudo, a não ser apenas um escasso
milímetro. Ele era capaz de muito mais que abraçar, relaxar-se e rir.
Entretanto, Lavínia não estava segura de chegar a conhecer essas
capacidades alguma vez.
— Me conte um sonho - pediu-lhe. — Um sonho que tenha
seguido.
— Um sonho desses que sonhamos acordados, ou um sonho
dormido? - perguntou ele para estar seguro.
A Lavínia não importou enquanto se tratasse de um sonho dele.
— Qualquer dos dois - consentiu.
— Há um que é o mesmo em ambos os casos - explicou Nick.
Sua voz soava outra vez estranha, presa de certa angústia e
saudade.
— Sonho com o sorriso de minha mamãe quando me levava
uma xícara de chocolate bem quente a meu quarto enquanto eu
estudava. Esse sorriso consegue me temperar nos momentos mais
frios, mais escuros.
Lavínia tragou com força. Esperava não ser tão fraca de deixar
escapar uma lágrima, não queria que ele sentisse que ela tinha pena.
Mas Nick era quem lhe tinha irradiado essa tristeza, possivelmente
porque ele mesmo a sentia. Lavínia voltou a esforçar-se por lhe tirar
dramatismo ao assunto, pois sua intenção não era que ele passasse
mal com ela. Queria que de verdade passasse bem, não como estava
segura de que ocorria com suas "amiguinhas".
— Eu estou acostumada a sonhar com a história - contou ela.
— Com a história?
Reposta pelo possível pranto, Lavínia se estabeleceu sobre um
cotovelo e elevou a cabeça para ver Nick nos olhos. Os dele
brilhavam; tinham perdido esse véu de frieza e distância com que
sempre os ocultava.
Nick, o inalcançável, era ao fim um ser humano.
— Sonho com muitos sucessos históricos, mas resulta evidente
que me obceca um em particular - contou ela.
Ele se sentia intrigado por saber qual era, e ela não o fez
esperar.
— O enfrentamento entre Hector e Aquiles - culminou. Nick
arqueou as sobrancelhas, surpreso. — Mas em meu sonho, Hector é
uma criança.
Nick soltou a gargalhada. Lavínia não pôde evitar fazê-lo.
— Estou louca, já sei! – seguiu. — Deve ser porque meu irmão
insiste com que lhe conte sempre essa mesma história e depois
termino associando a Hector o herói com Hector meu irmão.
— Sim que está louca - replicou ele. — Não sonhou com o
cavalo de Troia também?
— Não - respondeu Lavínia seriamente. — Com isso não.
— Menos mal - aliviou-se ele. Ela elevou as sobrancelhas,
intrigada.
— Por quê? - perguntou. Nick sufocando uma risada.
— Parece-me que Homero ou quem é que tenha escrito a Ilíada
haveria se sentido muito ofendido se lhe trocasse o cavalo por um
burro. Ou por uma vaca. Imagine? Disse que é um anjinho, se não,
nem eu te perdoaria semelhante sacrilégio.
Lavínia se pôs a rir como se fosse o fim do mundo. De repente,
ficou muito séria.
— Eu não sou um anjo, Nick – confessou, afligida pelas novas
sensações que ele lhe produzia. — Uma vez, quando tinha doze anos,
até roubei a um ceguinho.
Nick arqueou as sobrancelhas, divertido.
— Isso sim que está muito mal – concluiu. — Que maldade, eu
nunca cheguei a tal nível de sujeira - brincou.
Não conseguia imaginar a Lavínia roubando nada, e se o tinha
feito tão mal como mentir sua identidade, já podia deduzir como
tinha terminado o assunto. Isso o fez rir.
— Roubei-lhe um pedacinho de sua torta - seguiu confessando
ela, constrangida com a lembrança. — Mas estava tão boa!
Nick se esforçou por acabar a risada e fingir-se sério.
— Ah. Bom, tivesse começado por aí – interveio - por uma
parte de torta, eu teria feito exatamente o mesmo. Eu adoro. Mataria
por uma em qualquer momento, e se for de chocolate, melhor.
Lavínia o olhou arqueando as sobrancelhas.
— E sério? - interrogou. Das poucas coisas que sabia cozinhar
bem, uma eram as tortas.
— Não sabe quão a sério falo. Algum dia vai ver.
E depois dessa promessa, acabaram jogando-se brincadeiras a
respeito de anedotas e coisas mundanas até que Nick voltou a atraí-
la para si e a beijou na fonte. Isso desarmou Lavínia, e também a ele,
que não alcançava para compreender por que atuava do modo que se
esforçou por desterrar de si.
— O que quer dizer? - gritou Patrícia à empregada de limpeza.
Era a mesma a que lhe tinha pagado para que escondesse o anel de
sua cúmplice no camarote de Lavínia.
— Se não está no quarto de detenção, onde está?
— Conforme entendi, o senhor Hagen pediu que a levassem a
seu quarto.
— Onde? - reclamou Patrícia, como se a empregada não tivesse
sido o suficientemente clara ou tivesse a culpa de seus enganos. O
problema era que ela mesma não podia acreditar que, tentando
separar Nick da costureirinha, tinha terminado reunindo-os no mesmo
quarto.
— A seu quarto - repetiu a outra, obediente, embora sem dar-
se conta de que revolvia assim a adaga enterrada no ventre de
Patrícia.
— Sempre vou estar aqui para você, Lavínia - disse-lhe Nick
enquanto adormeciam. — Sempre.
Lavínia sorriu. Ainda abraçados, ficaram dormindo.
Ao abrir os olhos, o fantasma da lembrança daquela manhã no
hotel alarmou a Lavínia. Ela pensava que ele já não estaria a seu
lado, entretanto, ali estava, com os olhos abertos, sorrindo enquanto
a via despertar.
— Cumpriu - balbuciou Lavínia. Recordava que lhe tinha
prometido que estaria ali para ela sempre.
— E sempre será assim - recordou-lhe ele. — Somos amigos,
não? Não é uma "amiguinha", Lavínia, é minha amiga. Entende a
diferença?
Lavínia pressentiu que aquelas palavras tinham um significado
especial para Nick. O problema radicava em que ela, que não queria
ser sua "amiguinha", no fundo tampouco se conformava sendo sua
amiga.
— Sim - respondeu, tratando de contentar-se com sua
confiança. Ao menos Nick já não a queria longe, a não ser perto, tão
perto como um amigo pode estar. Mas ser sua amiga sem que ele se
abrisse sem restrições tampouco cabia em sua lista de
conformidades.
Nick rompeu com toda seriedade ou preocupação.
— Convido-te a tomar o café da manhã - propôs. Estava de
bom humor, mas de um modo estranho, não como Lavínia o tinha
visto antes. Nem excitado, nem acelerado, nem com segundas
intenções.
— Aqui no quarto ou fora? - perguntou Lavínia.
— Fora. A algum dos bares onde ninguém nos encontre.
— Acredito que conheço o lugar perfeito - indicou ela. — O bar
da multidão – riu. — Ali não vi japoneses nem garotas de vermelho -
lhe piscou o olho.
Apesar de que percebeu que Nick se havia tensionado, Lavínia o
ignorou e propôs encontrar-se no bar que oferecia o café da manhã
incluído na passagem em uma hora.
Ao chegar ao restaurante, notou que ele já estava ali. Nick a viu
chegar com objetos que não tinham sido confeccionados com suas
cortinas e se perguntou se essa roupa também a teria comprado na
viagem. Sentia-se culpado por ter deixado a Lavínia as passagens a
um mundo ao qual não pertencia e para o qual deve ter sacrificado
várias coisas necessárias por culpa de sua omissão. Não entendia
como tinha sido tão estúpido de lhe deixar as passagens sem
facilidades para que pudesse utilizá-las. Pensava que ela tinha tido
que sobreviver com moedas entre o luxo e que teria criado nela
desejos frente à riqueza dos outros, saudades que por culpa sua
agora sentia e jamais poderia cumprir. Era o culpado de ter criado
sonhos em alguém e que estes fossem se converter em frustrações.
Exceto... exceto se ele pudesse fazer algo para que ela cumprisse
esses sonhos. Tinha comprovado que era verdadeiramente boa
desenhando, algo poderia fazer.
Saudaram-se e tomaram assento. O sol iluminava parte da
mesa e o rosto de Nick. Lavínia levava posta a roupa do dia que
tinham embarcado, mas como ele não a tinha visto, não sabia.
Eram sete. Às nove, o navio chegaria ao destino e isso os
separaria. Aquele pensamento contraiu as feições de Lavínia.
— Pensei que não fosse vir - confessou cabisbaixa.
— O que combinamos? - replicou ele.
— Que somos amigos.
— Exato. E eu gosto de ter tempo com meus amigos, não?
Lavínia suspirou e sorriu em gesto de assentimento. Era um
sorriso um tanto rígido, eclipsado por um mau pressentimento.
Nick não parecia o mesmo. Luzia limpo, amável e gracioso.
Nem sequer tinha fumado. Todo rastro daquele homem egoísta e
libertino tinha desaparecido; sua postura, seu tom de voz, seu olhar
tinham mudado. As conversações aconteciam com naturalidade, sem
que ele evitasse nada, embora ela tampouco houvesse tornado a
fazer perguntas. Não parecia sentir-se incômodo nem procurar
oportunidades para incomodá-la ou esmagá-la com sua personalidade
arrasadora.
Nick, o verdadeiro Nick, apaixonava-a ainda mais que o outro.
— Nunca me tinha dado conta de não ter sido por você -
comentou ele, enquanto lhes serviam o café da manhã. Chocolate
quente, como Nick gostava.
Depois da conversação da noite, Lavínia compreendia o motivo.
— Do que? - perguntou. Tratava de voltar para a realidade e
desfrutá-la enquanto durasse.
— De que fazer roupa é arte.
Lavínia elevou as sobrancelhas, gratificada com seu comentário.
— Você acredita?
— Se tivesse se visto vestida com minhas cortinas! - exclamou
ele. Lavínia riu, mas rápido voltou a ficar muito séria.
— Se quiserem que pague as cortinas posso...
— Sobram-me cortinas – interrompeu ele. Olhou a hora. — E
mais, neste momento devem estar pendurando as de reposição.
— Conte-me: como posso ser diferente?
Nick sim era rápido e expedito. Ou só o fazia para que ela
deixasse de lado o assunto do roubo, Lavínia não soube. De qualquer
modo, a atitude conseguiu lhe fazer esquecer o triste que se sentia
por ter que despedir-se dessa viagem de sonhos e dele, e relaxou.
— Em minha opinião, têm muito bom gosto para a roupa -
respondeu detrás de um sorvo de chocolate.
— Sim, isso já sei - respondeu Nick, que se esquecia de relegar
a humildade quando não era preciso fazê-lo. Lubrificava uma torrada
com geleia de morango, comia uma atrás de outra. — Mas não me
refiro a escolher boa roupa, mas sim a que a roupa me faça sentir
diferente.
— Diferente como?
— Um pouco mais... implacável - contou ele. Lavínia riu.
— Implacável?
— Sim, essa é a palavra - assentiu antes de introduzir a torrada
inteira na boca. Como gostava da comida! Tanto que já quase não
parecia esse que virtualmente não tinha provado um bocado no
jantar no Hilton. Lavínia arqueou as sobrancelhas.
— Ainda mais? - brincou. Nick ficou sério.
— De verdade acredita que pareço implacável? - perguntou com
os olhos muito abertos e a boca ainda cheia.
Lavínia suspirou perguntando-se como dar resposta a essa
pergunta, porque se alguém queria aparentar algo era porque
disfarçava sua verdade, e se ela o tinha acreditado implacável quando
em realidade não o era, devia-se a que Nick fingia muito bem.
— Se quiser que te diga a verdade, acredito que a roupa não
pode fazer alguém como não é, mas se acreditarem que o é, pode
colaborar.
— Não entendo o ponto de vista - interveio Nick com o cenho
franzido. Engoliu com força o que antes mastigava.
— Que me parece que te esforça tanto por te mostrar
implacável que todos acreditam que o é, assim por esse lado não têm
que preocupar-se. O perigoso seria se acabasse acreditando isso
você, porque se o fizesse, o falso Nick acabaria destroçando ao
verdadeiro. Mataria seu verdadeiro eu.
Nick ficou olhando. Seus olhos pareciam transpassá-la, embora
já não de modo luxurioso, mas sim pelo simples feito de que eram
reflexo de si mesmo.
Os olhos de Nick tinham deixado atrás o véu escuro que os
recobria e eram agora transparentes, como se estivesse permitindo a
Lavínia ver em seu interior porque não se atrevia a soltar o que
levava dentro.
Ele se deu conta de que Lavínia estava entrando em seu
coração, por isso baixou o olhar, inventou um semi sorriso,
equipamento a que se esforçou por soar distendido.
— Eu gosto do chocolate - disse. Tinha o nariz que para a
Lavínia era tão perfeito dentro da taça. — Isto não é chocolate, é
água suja.
Lavínia riu e bebeu, como ele, um pouco de "água suja".
— Vai me contar como te fez engenheiro? – interrogou. — Os
amigos contam suas coisas, não?
Nick não pareceu nem remotamente incômodo como na
primeira oportunidade que lhe tinha formulado quase a mesma
pergunta, mas sim se fazia evidente que o tema não lhe trazia boas
lembranças.
— Estudei seis anos na Universidade de Buenos Aires – brincou.
Lavínia inclinou a cabeça e umedeceu os lábios de uma vez que
esboçava um sorriso pormenorizado. Nick baixou o sedutor olhar e
adicionou: — Posso te contar em troca como me fiz conhecido?
Lavínia assentiu. Não queria obrigá-lo a nada e valorava que,
embora de maneira implícita, ele tivesse tido a honestidade de lhe
dar a entender que não queria recordar como ou por que tinha se
feito engenheiro.
— Ganhei uma licitação para um projeto nacional – explicou. —
Um para construir uma ponte importante.
— Deve ter sido um grande orgulho para você e para os teus -
aventurou Lavínia.
Nick não respondeu, mudou de tema como quando ela tinha
falado das cortinas, desta vez para proteger-se a si mesmo.
— Tenho um presente para você - anunciou.
Lavínia sorriu. Seu rosto se iluminou como o despontar do sol
da manhã. Fazia muito tempo que não recebia um presente.
— Para mim? - Nick procurou no bolso do casaco e dali extraiu
um papel. Ela o leu. — O que é isto?
— Não quero que desça deste navio com essa roupa - explicou
ele.
— Devo-lhe uma valise cheia de objetos, se esqueceu?
— E a que utilizei para abordar... - explicou ela, ainda
surpreendida pelo valor do crédito em seu favor para ser utilizado nas
lojas do Paradise. — Sinto muito, Nick, não posso aceitá-lo.
Ele estirou uma mão para tomar a da mulher. Os dedos de
Lavínia tremeram. Ela o olhava com os olhos verdes de deusa
romana, muito abertos, assustada por quão forte era o sentimento
que despertava.
— Quero que me perdoe - argumentou Nick.
— Te perdoar? - ela se encolheu de ombros. — Por que?
Nick baixou o olhar.
— Devia me dar conta de que era diferente.
Lavínia tragou com força. Acaso ele queria dizer que ela não era
uma de suas "amiguinhas"?
— Diferente? - exigiu saber. — Diferente como?
— Sabe o que quero dizer...
Havia algo que impedia Lavínia terminar de interpretar aquilo
que tinha pensado primeiro, e não descansaria até saber o que era.
— Por que sou diferente, Nick? - insistiu.
Ele não teve mais opção que explicar.
— Deixei-te duas passagens sobre a mesa de noite sem pensar
em que para vir teria que deixar de trabalhar, e, além disso, subsistir
aqui. Nesse momento não recordei que era...
Ele se interrompeu. Percebeu que os olhos da Lavínia se
obscureciam, mas não alcançava a compreender a razão.
Ela sim: pedia-lhe perdão e lhe obsequiava com roupas porque
era pobre, não porque a quisesse, nem porque se importasse dela.
Nick só se preocupava com ele mesmo, por seu próprio ego, porque
se sentia culpado. Mas não ia calar com dinheiro. Não.
Retirou a mão que Nick lhe tinha tomado com pressa.
— O era o que? - indignou-se. — Pobre? Sou diferente de suas
amiguinhas porque sou pobre?
Ele ficou congelado, como se sua intenção tivesse sido
interpretada mal ou suas palavras. Mas em lugar de esclarecer-se,
enterrou-se; quase parecia que o fazia de propósito.
— Necessitasse uma boa soma para vir aqui, mais se perderam
você...
— Não te incomode em seguir falando - espetou ela ao tempo
que elevava uma mão em gesto preventivo. A seguir rasgou o vale
em quatro partes que logo jogou sobre a mesa com desdém.
— Sabe o que? Pode conservar seu presente e suas desculpas.
Conheço pessoas muito mais pobres que eu, e não precisamente pelo
dinheiro. Entre elas, você. Pessoas tão pobres que nem sequer sabem
quem são. Com licença.
Lavínia ficou de pé e, doída como estava, afastou-se. Esperava
que Nick a chamasse, que tentasse desculpar-se por havê-la ferido,
mas não se surpreendeu de que ele não o fizesse. De fato também
lhe tinha machucado onde mais doía, só que não sabia.
— Quero te ajudar - escutou que lhe falava Nick da mesa
enquanto a via afastar-se. — De todas as formas que possa fazê-lo.
Por favor, me chame se necessitar algo.
Embora tenha escutado tudo com muita claridade, Lavínia não
se voltou.
Patrícia se aproximou de Nick. Faltava menos de meia hora para
que o navio atracasse no porto de Buenos Aires e ele se internou a
beber uísque no bar desolado. Via-se tão arrumado com o reflexo do
sol matinal lhe dando em cheio na metade da cara que a Patrícia lhe
acelerou o pulso.
— Passou um bom momento ontem à noite com a
costureirinha? - perguntou com ironia.
Nick mordeu o lábio inferior e sorriu.
Quando ele girou a cabeça e elevou os olhos para ela, o desejo
foi entristecedor.
Patrícia apertou as pernas em seu vão intento por transpassar
aquele olhar azulado, mas se chocou com o muro de ferro que Nick
tinha construído dentro.
— Foi muito baixo, mas o que poderia esperar de você -
espetou ele em relação ao roubo do anel. — Não sei de que
telenovela tirou, mas teria sido justo que o televisionassem.
— Não sei do que fala - defendeu-se ela. Nick a olhou de cima
abaixo com desdém.
— Sim, é completamente capaz – completou enquanto a
estudava. — Lástima que te tornou tão ambiciosa. O que fez foi
estúpido, infantil e perverso.
— Não te entendo, Nickito.
Nick pós de lado o copo de uísque com um gesto violento.
Tornando-se ameaçador quando elevou o dedo para falar com a
mulher, embora o fizesse em voz muito baixa.
— Isto não tem nada que ver com ela, assim deixe-a em paz.
— Não sei do que fala - cantarolou Patrícia.
— Não é por ela, nem é por você - continuou ele ignorando sua
intervenção. — É por mim.
Depois de dizer isso, Nick ficou de pé e passou ao lado como se
ela fosse apenas uma sombra.
— Espero tenha desfrutado da travessia - burlou-se enquanto
se ia.
Patrícia fechou os olhos. Todo o desejo que tinha experimentado
até fazia um momento se converteu em ressentimento.
Era impossível que ele não a desejasse. Tinha passado mais
tempo do habitual da última vez que se viram, sim, mas ele mesmo o
havia dito: era-lhe fiel até a morte. Tinha que ser assim.
Capítulo 13
Elevou a cabeça quando escutou a porta do elevador. Viu
chegar Nick e aproximar-se de bom humor para seu escritório.
— Nick! - exclamou a mulher, que já ficava de pé abrindo os
braços com gesto maternal. — Como foi?
Nick se aproximou dela e respondeu ao abraço. Estavam
acostumados a manifestar esse tipo de afeto quando ninguém os via.
— Tudo saiu muito bem, Fi, melhor do que o esperado -
respondeu ele.
— Habilite este número, por favor.
Nick estendeu um papel com o cabeçalho do Paradise a sua
secretária e entrou no escritório. O trabalho atrasado devia chegar ao
teto, porque Pablo não podia dar conta de tudo enquanto ele estava
ausente.
Fi se sentou no escritório e manipulou o aparelho para habilitar
o número, ação que interrompeu quando o reconheceu. Tinha-o
bloqueado não fazia muito tempo.
Suspirou. Resultava evidente que por fim alguém real tinha
chegado à vida de Nick. Só esperava que não fosse como Patrícia
Cólon.
A lembrança dessa má mulher ainda lhe revolvia o estômago.
Patrícia fazia o impossível por separá-la de Nick, alertada porque ela
sabia muito bem que classe de mulher era essa que tinha roubado o
coração e a ilusão de seu moço. Separá-los devia ser quão único
Patrícia não tinha conseguido, porque o resto... o resto Nick o tinha
dado tudo.
A tarde que Nick conheceu Patrícia o sol iluminava a fachada do
edifício gótico da faculdade com singular esplendor. O outono ainda
não tinha despido todas as árvores, por isso alguns ramos com suas
folhas se refletiam como sombras nas janelas. A rua ocultava seus
segredos com o ruído do trânsito posterior ao meio dia.
O primeiro que chamou a atenção de Nick foi o conversível
vermelho que lhe passou ao lado enquanto ele caminhava rumo à
entrada. Era impossível que passasse despercebido, igual à mulher
que o conduzia. Ela levava óculos de sol, o cabelo de uma cor
castanho avermelhado solto e volumoso, os lábios no tom de seu
carro em contraste com a pele fina e branca. O reflexo do sol naquele
cabelo, os brilhos da chapa do pegeout e o inalcançável da figura
celestial que o conduzia enfeitiçaram Nick, deixaram-no boquiaberto e
ditoso. Gostava de admirar a beleza em todas suas formas, por isso a
seguiu com o olhar até que o veículo desapareceu do alcance de sua
vista.
Por um momento tinha conseguido esquecer-se inclusive de que
lhe iria apresentar seu trabalho na classe dirigida pelo professor
Cólon. Estava acostumado a ficar nervoso quando ia ser avaliado,
embora sempre o fosse muito bem. Gostava de ensinar, era ajudante
de uma das cadeiras de Estruturas do primeiro curso, mas resultava
bastante tímido, para opor isso dele eram as classes que quase
pareciam particulares. Reunia-se em pequenos grupos de trabalho e
orientava a todos os interessados em superar-se. Ensinar o fazia
sentir-se útil e lhe permitia deixar algo de si nos outros. Ser professor
requeria de certa generosidade, porque o conhecimento era o mais
prezado que alguém podia transmitir.
Isso não tinha importância quando o aluno passava a ser ele.
Nunca tinha deixado de sê-lo, em realidade, e por isso faltava ao
menos um ano e meio. Estava em seu sexto ano de Engenharia Civil,
mas era consciente de que não alcançaria render todos os exames
finais a tempo para terminar no fim do ano.
Caminhou até a sala de aula preparada para expor no quadro.
Enquanto esperava a chegada de seus companheiros, repassou pela
centésima vez as ideias que tinha feito para não esquecer nada de
tudo o que queria dizer em apenas vinte minutos, que eram os que o
professor Cólon dispunha para que cada aluno concentrasse as ideias,
e repetiu ao menos uma vez o começo de sua exposição.
Calou quando chegaram vários alunos juntos. Estavam
acostumados a reunir-se em grupos para conversar ou estudar antes
da aula, por isso depois chegavam os grandes grupos. Nick era bem
solitário, unicamente formava equipe quando tinha que preparar e
entregar algum trabalho em conjunto, do contrário sempre se
arrumava por sua conta. Levava-se bem com todos, mas não tinha
feito grandes amigos.
Quando o professor chegou, ficou de pé imediatamente, já que
até o momento tinha ocupado o assento do escritório. Saudou o
homem com um gesto feito com a cabeça e esperou a que todos se
calassem para que Cólon lhe desse a ordem de falar.
— Muito bem - disse o velho engenheiro respaldando-se na
cadeira. — O que preparou para hoje, Larrazábal?
Nick explicou uma revisão da teoria de Joukowsky e suas
aplicações em um problema construtivo concreto. Dispunha-se a
avançar com o que tinha recolhido do livro de Prandtl e Tietjens, mas
de repente esqueceu o vocabulário do espanhol. Ficou calado, com os
olhos fixos na figura escultural que acabava de atravessar a porta.
O senhor Cólon, ao igual ao resto da classe, notou sua
dispersão, por isso todas as cabeças giraram para a entrada. Ali
estava Patrícia, com seus jeans azuis e sua camisa vermelha,
destilando beleza soberana. Ninguém a olhou mais de um momento,
mas para Nick o sol acabava de entrar por aquela velha porta e isso
merecia o silêncio.
— Perdão, não queria interromper - desculpou-se ela.
A voz ressonou nos ouvidos do moço, que ficava cada vez mais
nervoso por não poder continuar com sua exposição e porque todos
seus companheiros já tinham se dado conta de que o culpado
daquela mudez repentina era Patrícia Cólon.
O velho professor sentia adoração por sua filha. Fez-se evidente
porque a chamou com um gesto de sua mão e lhe ofereceu um
assento diante de todos.
— Esta é minha filha Patrícia, formada com honras em Ciência
Matemática.
Patrícia sorriu e se balançou brandamente, com aparência
envergonhada.
— Ai, papai... - resmungou.
— Pedi-lhe que ficasse na cafeteria, mas é ansiosa e veio me
buscar - adicionou o homem. Todos riram.
— É suficiente, Larrazábal - determinou a Nick. — Esteve muito
bem. Demos passo ao seguinte aluno porque parece que me vou ter
que ir cedo.
Ao dizer isso, olhou a sua filha com um sorriso. Não era
estranho que o velho senhor Cólon se sentisse igualmente enfeitiçado
em relação à mulher, que era toda sensualidade e cor.
O resto da hora, Patrícia bocejou cinco vezes, estudou o teto da
sala de aula outras tantas mais e acabou com a vermelha cabeça
apoiada no ombro de seu pai. Pouco depois de que isto acontecesse o
senhor Cólon deu por terminada a classe e se retirou de braço dado
com sua filha.
Quatro horas mais tarde, depois de cursar a segunda e última
matéria do dia, Nick transitava pelo corredor rumo às escadas até
que uma poderosa voz o deteve em seco.
— Larrazábal - escutou. Foi como um canto. Deu-se a volta.
A alta e generosa figura de Patrícia se aproximava com suas
largas pernas, dando um passo diante do outro para que seu quadril
se balançasse com o compasso de seu movimento.
Nick ficou nervoso. O coração lhe pulsava como se uma tropa
se agitasse em seu peito rumo ao ventre e a entreperna, onde
estranhas mariposas batiam suas asas e lhe faziam transpirar a
palma das mãos.
— Senhorita Cólon - assentiu com respeitoso interesse.
— Pode me chamar Patrícia - exigiu ela, que já chegava a ele.
— Como te chamam?
— Nicolas. Mas todos me tratam por Nick - respondeu como se
estivesse dando lição como o professor. Ela sorriu.
— Eu gosto de seu nome, Nicolas – respondeu. — E você gosta
do meu?
Nick não tinha ideia de onde levava essa pergunta, mas se
esforçou por ser sincero e educado.
— Eu gosto muito, senhorita Cólon - assentiu.
— Patrícia! - assentiu ela enquanto ria.
— Patrícia - repôs ele.
Patrícia ficou olhando. Nick não alcançava a entender suas
intenções, seu silêncio, mas o compreendeu quando ela seguiu
falando.
— Estou segura de que está pensando algo – insinuou. — Diga-
me, Nicolas, no que está pensando?
Nick tragou com força. Não podia lhe dizer que lhe roubava as
palavras, que quando a tinha na frente se amaldiçoava por ser um
nerd sem vida social ao qual somente faltavam óculos e uma gravata
borboleta para corresponder com seu acanhamento. Um menino que
nunca poderia sequer sonhar com uma mulher como ela.
— Estava pensando em... - queria mentir.
Tinha que fazê-lo, por isso ia dizer-lhe algo a respeito de sua
lição, ou possivelmente lhe cruzasse um pouco de Joukowsky antes
que palavras adequadas para uma garota que gostava, mas não teve
necessidade de dizer nada.
Patrícia elevou uma mão com a que fingiu acomodar a gola da
camisa e sorriu enquanto o interrompia: — Estava pensando em me
convidar a sair, sei. Aceito. Pego você às nove. Diga-me seu
endereço.
Nick não podia acreditar, Patrícia Cólon estava interessada nele!
Embora lhe provocasse certo medo que ela fosse nada mais nem
nada menos que a filha de seu professor, a alegria do triunfo não lhe
permitiu pensar.
Por esse tempo então, ele tinha vinte e três anos e ela vinte e
seis. Três anos de diferença que fizeram um racho em Nick, porque
nesse momento não pensou em que podia sentir-se envergonhado
porque a garota que gostava visse a casa pobre em que ele vivia,
nem que teria que ir trabalhar para seu pai se queria ter um pouco de
dinheiro para pagar a ela uma Coca-Cola ou, com sorte, o jantar em
algum restaurante. Somente lhe importava conquistá-la e suprir com
sua paixão juvenil qualquer outra falta.
Nick chegou a sua casa em outro mundo. Não lhe faltava
experiência com garotas, mas todas tinham sido menores que ele e
de seu bairro. Também se tinha envolvido com várias que tinha
conhecido em discotecas e bares, nada muito distinto do que faziam
outros meninos de sua idade. De todos os modos, saía muito pouco
desde que tinha começado a cursar na universidade.
— Olá, mamãe! - exclamou nem bem entrou no hall, mas ali,
em lugar de achar a sua mãe, encontrou-se com Fi. — Olá, Fi -
saudou-a. — E minha mamãe?
— Olá, Nick - respondeu a mulher. — Está na cozinha.
— Obrigado.
Ainda com o livro de Prandtl e Tietjens que tinha tirado da
biblioteca na mão, Nick procurou a sua mãe, a quem achou na
cozinha. Aproximou e a beijou na fronte. A mulher de olhos cinzas
como os de seu filho sorriu e o abraçou pelo quadril. Ele deixou uma
mão apoiada sobre seu ombro e o acariciou enquanto falavam.
— Não vou jantar aqui hoje – avisou. — É uma pena porque o
que seja que está preparando cheira muito bem - seguiu dizendo.
Teresa sorriu.
— Obrigado - respondeu enquanto girava a cabeça para ele.
Dirigiu-lhe um olhar cheio de picardia. — O que te traz entre as
mãos, meu amor?
Sabia que seu filho tinha ficado sem amigos quando tinha
começado a universidade e que a gente que tinha conhecido aí não
era mais que companheiros de classe com os que se levava muito
bem, mas jamais se viam fora dos trabalhos que tinham que fazer
juntos.
Ele sorriu com orgulho. Tinha um sorriso sensual e enigmático,
de lábios bem formados e dentes muito brancos.
— Menos averígua Deus e perdoa, MA – brincou. — Você me
dizia isso sempre quando te perguntava como vinham os bebês ao
mundo com apenas cinco anos.
Teresa riu com a resposta. Fi, que os olhava enternecida da
porta que comunicava a cozinha com o hall, também sorriu.
— Com os filhos, tudo o que diga poderá ser usado em seu
contrário - adicionou. Os três riram. Depois Nick se separou de sua
mãe e lhe avisou algo mais.
— Vou a casa do Octávio.
— Agora? - indagou a mulher.
— Sim, agora mesmo. Posso trabalhar ao menos duas horas
antes que fechem.
Nem bem escutou ao Nick subir as escadas, Teresa transmitiu
sua preocupação a sua querida amiga Fi.
— Deve estar necessitando de dinheiro - lamentou-se.
Fi lhe sorriu, pormenorizada. Esta vez não tinha nada que
adicionar.
Nick chegou ao grande piso da Construtora Larrazábal meia
hora depois. Os escritórios estavam localizados em um edifício
vidrado em pleno Microcentro. Ali esperava encontrar o escritório da
secretária do Octávio ocupado, entretanto o achou vazio. Pensou que
possivelmente Elisabete e seu pai podiam estar muito ocupados com
suas intimidades no escritório do arquiteto, mas desprezou logo a
ideia. Já não eram amantes, que necessidade podiam ter de andar
fazendo amor às escondidas no escritório? Assim abriu a porta.
Ali não estava Elisabete, a não ser seu pai reunido com dois
investidores.
— Perdão - desculpou-se Nick. Falava com a voz abafada,
parecia evitar a maior quantidade possível de palavras. — Pensei
que...
— Nicolas! - interrompeu-o seu pai. — Já que ao fim decidiu
aparecer, nos alcance dois cafés e uma soda sem gás - Nick assentiu.
Enquanto se encaminhava ao bar do escritório, escutou que Octávio
comentava aos homens.
— Lhe ocorre vir para ver-me quando necessita algo. É igual à
mãe, não gosta de trabalhar. O que vamos fazer! Os filhos nem
sempre são o que alguém quer, não? Sobretudo se os fazemos com a
pessoa equivocada.
Disse-o com desdém, com ironia. Os homens riram acreditando
que era uma brincadeira. Possivelmente o era, mas para Nick
significava o princípio do que sempre acontecia cada vez que ia ver
seu pai. Apertou a garrafa de soda para segurar os nervos e se disse
que estava aí por um fim muito mais importante que qualquer outra
coisa, que tinha que suportar para obter o que necessitava e sair
correndo dali.
Serviu dois cafés e ficou de pé ao lado do escritório, esperando
novas instruções. Ninguém lhe prestou maior atenção. Não queria
pensar que era como um alto floreiro vazio de vida, preferia acreditar
que seu pai ao menos não lhe tinha pedido que se retirasse e lhe
permitia escutar os últimos dez minutos de sua reunião de negócios.
Finalizado o encontro, os homens deram a mão a seu pai e
também a estenderam a ele, quem as estreitou com esmero e
amabilidade. Gostaria de ser importante, mas somente era o floreiro.
Elisabete entrou justo quando os dois homens saíam.
Surpreendeu-se ingratamente ao ver Nick, ele soube por que ela
entrou com uma cara e nem bem o viu a trocou por outra, uma muito
mais amarga que a anterior.
— Nicolas - disse a modo de saudação.
— Olá - respondeu ele.
Falou com Octávio ao ouvido, como se temesse que Nick
pudesse escutar os assuntos de trabalho dos que lhe falava e lhes
fazer perigar o negócio. Para não sentir-se excluído, ele se afastou
uns passos e se sentou no sofá que estava frente a uma mesa de
centro.
Elisabete saiu em seguida e fechou a porta atrás de si. Octávio
se sentou a seu escritório e começou a revolver os papéis que lhe
tinha deixado.
— E o que faz por aqui, Nicolas? - demandou.
— Vim trabalhar - explicou ele com simplicidade. O homem
fingiu um sorriso.
— Ah, sim? - burlou-se. — E o diz assim sem razão? Não me
serve que venha quando te dá vontade e na última hora, sabe? -
houve silêncio. — E por que hoje?
— Porque sim.
— Porque sim não é uma resposta, Nicolas. Manda-te sua mãe
por dinheiro? – silêncio. — Não é?
Como lhe ia ocorrer pensar que pudesse ficar calado? Seu pai
indagava e pressionava até que obtinha a resposta que queria, e ele
nunca sabia escapar desse mau momento.
— Tenho que fazer algo hoje - esforçou-se por manter seus
segredos, sua privacidade, o que sua mãe respeitava, e isso que vivia
com ele, em troca Octávio não.
— E que mais pode ter que fazer que não seja estudar? -
repreendeu-o o homem.
— Tenho que sair.
— Sair? - burlou-se. — Por que não fica estudando? - Nick
apertou os punhos para suportar. Tudo por vinte e cinco pesos.
— Porque sempre fico estudando.
Nesse momento, Elisabete voltou a entrar no escritório
carregando outros papéis.
— E com quem vai sair? - continuou falando Octávio, sem se
importar se seu filho desejava ou não que sua amante, agora sua
concubina, soubesse de seus assuntos. De fato percebeu que a
mulher sufocava uma risada e dirigia um olhar cúmplice a Octávio.
— Com uma companheira da faculdade - mentiu Nick entre
dentes.
— Assim hoje sai com uma garota! - exclamou o pai. Nick leu
seu pensamento: acreditava - uma debutante.
— E o que diz sua mãe a respeito?
Nick se perguntou que importância tinha o que sua mãe
opinasse a respeito de sua intimidade, como se a Octávio tivesse
importado alguma vez o que Teresa opinasse a respeito de algo.
— Nada - respondeu engasgando-se com o grito de que ela o
respeitava, não como ele.
Octávio sempre tinha tido o costume de controlar. Ninguém
podia fazer as coisas melhor que ele, ninguém trabalhava mais que
ele, e Nick se sentia terrivelmente incômodo cada vez que tinha que
compartilhar um espaço com esse homem que resultava ser seu pai,
com sua mulher ou os filhos que ela tinha de outro matrimônio.
Sentia-se um sapo de outro poço, uma moléstia, um estúpido. Tanto
necessitava o dinheiro que não podia rebelar-se. Tinha que seguir lhe
vendo a cara, suportando suas perguntas, suas humilhações.
— Bom - disse Octávio por fim - se quer trabalhar, teve sorte:
hoje tenho uns papéis que ordenar, mas não me serve que apareça
quando quiser. Venha todos os dias às nove da manhã em ponto.
— Não posso - respondeu Nick.
— Como que não pode? Se não tem nada que fazer.
— Tenho que estudar.
— Eu estudava e trabalhava, e mesmo assim me formei
arquiteto com honras. Vamos, mostrarei o que quero que faça.
Nick voltou a sentar-se no sofá azul de dois corpos que estava
diante da mesa de centro. Embora preferisse não pensar na
autoexigência que sempre se impunha como resultado daqueles
comentários que desde menino tinha ouvido da boca de seu pai, se o
fazia impossível desterrá-los de sua mente. Já tinham impregnado
fundo nele e não tinha ideia de como dirigi-los. Não sabia ser
diferente.
Seu pai lhe entregou uma pilha de folhas de papel vegetal.
— Ordena-os por grossura. Do mais grosso ao mais fino.
Entende?
Nick não respondeu. Tinha estudado quase seis anos de
Engenharia Civil para aprender a ordenar papéis do mais grosso ao
mais fino, isso era o que seu próprio pai acreditava capaz de fazer.
— E sua mãe? - perguntou-lhe Octávio do escritório com ar
depreciativo. — Já foi procurar trabalho?
— Minha mamãe faz o que pode - desculpou-a ele. Octávio riu
com ironia.
— A sua mãe não gosta do trabalho - voltou a rir. — É uma
vagal.
Nick calou. Apertava os dentes.
— E seguem lhe chegando contas de telefone? - perguntou
Octávio um momento mais tarde.
— Não - replicou ele. — Assim e tudo, o dinheiro não cobre.
— O que vocês têm que fazer é administrá-lo melhor.
Nick levantou a cabeça e observou a seu pai com meia cidade
detrás de sua figura, que se abatia onipotente diante da janela. Era
fácil falar quando se tinha tudo e mais também.
— Para que comprou sua mãe um ventilador? - continuou
Octávio Larrazábal com seus ataques. Nick abriu os olhos como duas
moedas azuis.
— E você como sabe? - surpreendeu-se.
— Porque me chamou me pedindo dinheiro, por que poderia
ser? Já disse que não quero que me incomodem mais para esses
assuntos. Arrume-se com o que te dou porque quero que siga
estudando, ou que vá trabalhar.
— Ela vai trabalhar - defendeu-a Nick. De fato estava cansado
de ver que sua mãe saia às oito da manhã, passava o dia esfregando,
e voltava às oito da noite só para que ele não tivesse que ir trabalhar
e descuidar o estudo.
— Se quiserem mais dinheiro, aprendam a ganhá-lo - continuou
Octávio sem interessar-se pelo que Nick dizia. Interrompeu-se de
repente para lançar um grito.
— Esse que está pondo nessa pilha se vê daqui que é mais
grosso que os outros! - falava do papel. — Preste atenção no que faz,
Nicolas. Se não puser atenção jamais poderá ser um bom arquiteto.
Nick suspirou.
— Estudo Engenharia - repôs.
— Muito mais fácil ainda! Quão único têm que fazer é calcular.
Quando se fizeram às oito e Nick disse que tinha que ir-se, seu
pai abandonou o escritório só para dizer a Elisabete: — Dê vinte e
cinco pesos a Nicolas - logo se dirigiu a Nick. — Espero que venha
mais frequentemente.
Depois de dizer isso, fechou a porta. Nick se aproximou do
escritório da mulher e esperou. Esta se dignou a olhá-lo momento
depois de tirar algumas notas. Contou prazerosamente o dinheiro e o
depositou sobre a mão estendida de Nick. Vinte pesos exatos.
— Meu papai disse vinte e cinco - reclamou ele em voz muito
baixa, respeitosa.
— Não eram vinte? - perguntou ela com dissimulação. — Disse
vinte.
— Disse vinte e cinco - repetiu Nick entre dentes.
A mulher suspirou como se ele fosse uma moléstia e pinçou em
seus bolsos em busca de cinco pesos mais.
— Tome - disse entregando-lhe - mas acredite que vou lhe
perguntar o que disse na realidade.
Nick não respondeu mais que para saudar e retirar-se. Chegou
a sua casa com a dignidade pisoteada e se sentou à mesa onde sua
mãe e Fi já comiam o molho que Teresa tinha preparado. Falavam a
respeito de algo que tinha acontecido a sua mãe em casa de uma das
famílias para as quais trabalhava como empregada doméstica. Ambas
as mulheres tratavam de ignorar o mau humor de Nick porque
sabiam qual era a causa.
— E me disse que assim não se engomava - contava Teresa.
— Te disse? - surpreendeu-se Fi, que trabalhava de empregada
também. — E você o que lhe respondeu?
— Disse-lhe que a empregada doméstica era eu e que sabia
engomar muito bem. E que não penso trabalhar mais lá. Sabem que
queria deixar essa casa onde sempre tinham algo que dizer, mas
nunca me tinha atrevido.
— O problema é que não querem trabalhar - lançou Nick com
crueldade involuntária. Sua voz soou fria, desencantada da vida.
— O que disse? - perguntou sua mãe. Uma rajada de dor sulcou
seu olhar.
— Que procuram desculpas para não trabalhar, por isso brigam
com todo mundo.
— Isso não é certo, disse-me que não sabia...
— Blah, blah, blah.
— Nick - intrometeu-se Fi, que o conhecia desde que era um
menino. — Acredito que está sendo injusto com sua mamãe.
Nick se sentiu indignado com a resposta dessa velha que
acreditava uma autoridade para lhe dizer o que tinha que fazer em
sua própria casa.
— E quem se preocupa com quão injustos são todos comigo? -
proferiu antes de ficar de pé e fugir para seu quarto.
A música eletrônica se escutava inclusive até a esquina até às
nove da noite. O velho centro musical prateado se apagou logo
quando Nick viu o conversível vermelho na porta de sua casa. Então
guardou os vinte e cinco pesos no bolso da calça junto com o resto do
dinheiro que ficava para a condução até a faculdade, baixou as
escadas de uma corrida e se aproximou de sua mãe, que bordava
uma toalha no corrimão.
— Mas que lindo que está meu filhinho! - exclamou ela ao vê-lo
com sua calça negra e sua camisa cor verde oliva. Penteou o cabelo
com gel e a pele cheirava a pós-barba e uma colônia que gostava.
Nick tinha esquecido a breve discussão que se desenvolveu
durante o jantar. Fi já não estava em casa e sua mãe também parecia
ter esquecido a briga, como sempre acontecia com as mães.
— Tchau, mamãe - saudou-a antes de lhe dar o beijo de sempre
na bochecha.
— Tchau, minha vida. Tenha muito cuidado, por favor.
Nick assentiu.
Voltar a ver Patrícia lhe fez esquecer todo o vivido essa tarde e
lhe reavivou o coração, que começou a pulsar com força uma vez que
subiu ao carro e a viu embainhada em seu vestido vermelho, com o
cabelo lhe emoldurando a cara. Entretanto, algo em sua expressão o
deixou intranquilo.
— Esta é sua casa? - interrogou ela dissimulando um gesto de
provação. Nick se sentiu incômodo.
— Estamos a ponto de nos mudar - mentiu. A mulher pareceu
relaxar-se ante a notícia.
Nick estava nervoso. O penetrante olhar de Patrícia o
perturbava. Por sorte ela não demorou em conduzir.
— Aonde vamos? - perguntou ele. Não podia lhe confessar que
temia que não lhe chegasse o dinheiro para pagar, morreria de
vergonha se lhe acontecia algo assim. Ela deixou escapar um sorriso
indecifrável.
— Não se preocupe com isso. Replicou.
Embora a resposta não o consolasse, guardou silêncio.
Patrícia conduziu até um bar de Porto Madeiro. Deixou o
automóvel no estacionamento que estava em frente, cruzaram a rua
e caminharam até o lugar. O ambiente era escuro e recatado, e a
música soava a todo volume. Patrícia se aproximou de uma mesa.
Sorrindo.
— Olá! - exclamou a todos os que se achavam ali sentados.
Outros responderam do mesmo modo.
Patrícia passou eternos minutos conversando com essa gente e
ignorando Nick, que tinha cruzado os braços atrás dela e estudava o
ambiente distraído. Ela reparou nele quando se lembrou de que
estava ao seu lado e então se sentaram em uma mesa.
Patrícia bebia um gole atrás de outro. Ele, por não ser menos,
imitou-a.
— E o que fazem seus pais? - interrogou ela.
— Meu papai é arquiteto - respondeu ele. Ao menos para isso
lhe servia seu pai, para não ter que dizer que sua mãe era faxineira.
— Ah, sim? - ela semicerrou os olhos, especulativos.
— E quem é?
— Octávio Larrazábal - respondeu ele. — É um grande
arquiteto.
— Não o conheço - replicou ela sem piedade. — Construiu com
meu papai alguma vez?
— Não acredito.
— Então não deve ser tão grande - lançou a mulher. Em
seguida percebeu a angústia que sua resposta havia trazido para os
formosos olhos cinzas desse bombom desperdiçado e riu.
— É brincadeira, tolo - disse ao tempo que lhe roçava a ponta
do nariz com a unha larga e vermelha.
Essa noite Nick gastou todo o dinheiro que levava, e mesmo
assim não lhe alcançou para pagar. Sentiu-se envergonhado ao não
poder arcar com o gasto de uma saída, por isso decidiu que alguma
vez devolveria a Patrícia tudo que não pudesse lhe dar agora. Queria
lhe dar tudo.
Voltaram para o carro. Patrícia conduziu em direção à costa.
Estava séria. Nick pensava que tinha se ofendido porque não tinha o
dinheiro para lhe pagar as bebidas, mas em realidade ela estava
desapontada porque Nick nem sequer a tinha beijado.
Ele quis ser amável.
— É muito bonita - disse como se falasse com um anjo.
Patrícia estacionou o automóvel à borda do caminho do rio,
onde muitos casais se detinham para ter sexo. Girou a cintura e se
aproximou.
— Ah, sim? - replicou. Mordendo-se o lábio. Sorriu com lascívia.
— Você gosta?
Nick respirava com agitação. Já não sabia como conter sua
ereção. Ela respirava tão perto de sua boca que não tinha ideia de
por que ainda não a beijava. Porque era a filha de seu professor,
possivelmente. Porque a queria a sério.
— Muito - disse com honestidade. E não resistiu.
Nick apanhou os carnudos lábios femininos entre os seus,
transportando a Patrícia ao universo que tinha saudades. Ela não
ficou atrás. Rodeou o pescoço de Nick com os dedos e pegou os seios
a seu peito musculoso. Subia e baixava para que o roce da roupa lhe
arrepiasse os mamilos.
Patrícia estava longe de ser uma inexperiente. Nick tampouco o
era, mas respeitava o corpo da mulher de seu encontro, tanto que
apenas o tocava em partes que não a fizessem sentir-se invadida.
Ela, em troca, apalpava o torso masculino sem reparos, em toda sua
magnitude. Primeiro o peito por sobre o tecido da camisa, depois os
ombros e a parte superior das costas. Logo deslizou os dedos pela
coxa do moço, foi subindo a mão até apanhar o fecho de suas calças.
Apertou um pouco antes de baixá-lo para sentir o que ali se escondia,
sabia que assim o excitava e ela se ia pondo em forma.
Nick inspirou profundamente como resultado desse contato.
Enquanto lhe baixava o zíper, sua fantasia se propagava. Respirou
Patrícia, seu forte perfume, seus lábios que se moviam sobre os seus
e lhe umedeciam a boca. O sabor do lábio avermelhado, a textura de
seus dentes. Eram sensações que turvaram Nick, porque nunca tinha
tido relações com alguém tão ousado, a não ser apenas com garotas
que não eram virgens nem tampouco peritas.
Depois do zíper, ela se dedicou ao botão. Depois de havê-lo
dominado, passou os dedos por debaixo da cueca boxe e rodeou o
membro de seu amante com toda a mão até deixá-lo para fora do
amparo que lhe oferecia a roupa. Pulsava entre seus dedos e a ela
dava água na boca. Ao mesmo tempo, deslizou a outra mão por
debaixo da camisa masculina. Roçou o ventre plano e o flanco até
alcançar as costas. Abraçou-se a ele para pegar os seios ao peito do
homem de novo. Nick sentiu os mamilos erguidos de Patrícia e ela
emitiu um gemido.
Separou-se dos lábios de Nick para lhe passar a língua pela
orelha. Logo abaixou o rosto. O jogou a cabeça atrás só de imaginar
o que ela estava a ponto de fazer. Y... Oh, quando o fez! Nunca o
tinham feito assim e se sentia como que transportado. Patrícia
sugava, mordia, apertava. E com ela Nick aprendeu a conter-se,
porque teria ejaculado em sua boca se não tivesse um bom controle
de si mesmo.
— Não me importa, faça-o - sugeriu com voz sedutora. — Faça-
o.
— Não posso - replicou ele.
— Faça-o...
Mas Nick não o fez, não se atreveu. Seu desejo de amparo e
sua tenra experiência atraíram a Patrícia, que pelo geral se deitava
com homens muito versados em sexo. Sentiu-se uma professora.
Pinçou em sua bolsa e dela extraiu um preservativo. Não fazia
falta que o colocasse. Nick sabia como fazê-lo, mas ela não o
permitiu. Negou com a cabeça quando ele quis tomá-lo entre as mãos
e ela o colocou. Logo passou uma de suas largas pernas por sobre as
de Nick e se sentou escarranchada sobre ele. Ela não levava calcinha.
Não levava roupa interior! Nick desvairou. Patrícia o olhou nos olhos.
Em suas pupilas se dilatavam o desejo e a perdição.
— Não há nenhum lugar ao que queira me levar, Nickito? -
indagou, presa do desejo.
— Ao altar - sorriu ele, tão agitado como ela. Patrícia riu.
— Algo um pouco mais próximo.
Nick não respondeu. Morria por levá-la ao lugar que ela sugeria,
mas não ficava mais dinheiro para ir a um motel nem podia convidá-
la a sua casa porque não vivia sozinho.
— Juro que queria – confessou - com toda a alma, mas...
— Sei - interrompeu-o ela, próxima a ele. Embalava-lhe o rosto
barbeado entre as mãos. — Não têm onde cair morto – concluiu. —
Mas é tão lindo!
E voltou a beijá-lo com tanta urgência que tudo terminou
acontecendo nesse mesmo lugar, à borda do rio e entre outros
automóveis onde ocorria o mesmo, com o tinido musical da copiosa
chuva que golpeava o teto.
Como a água, Patrícia se deixou cair para que o membro de
Nick lhe enterrasse até o mais profundo. Quando alcançou esse
batente esperado, ela jogou a cabeça atrás ao tempo que deixava
escapar um gemido gutural, poderoso, e se abria o vestido para que
seus peitos ficassem ao descoberto.
Eram grandes, proeminentes pelos silicones, e os mamilos se
arrepiaram porque toda ela estava muito quente. Nick reagiu.
Apanhou-os entre os lábios, sugou com força; apertava os seios dos
flancos para que se avultassem no centro, e ao parecer, quanto mais
bruto se comportava, a Patrícia mais a avivava.
Não soube como, mas logo se encontrou com os ombros ao
descoberto. Tinha-lhe aberto a camisa e a descia pelos braços, mas
deixou as mangas a meio caminho. Deslizou as mãos para cima e
apertou com os dedos os ombros de Nick. Girou a cabeça para onde
isso acontecia. As unhas vermelhas lhe enterravam na carne e oh,
quanto lhe doía! Mas esse amor estava destinado a doer e ele assim o
queria, porque dor era tudo o que merecia; o fazia sentir-se vivo.
Patrícia se agitou convulsivamente com o homem dentro dela.
Subia e baixava enquanto o arranhava, apertava-o, feria-o. Então
Nick também a machucou. Apertou-lhe as nádegas nuas e a ela isso
também a fez sentir-se renovada. Quando ele era bruto e duro, sentia
que voava.
— Como está, minha vida...! Dê-me mais – exigiu. — Mais
duro! Me chupe - ofereceu-lhe um mamilo e ele o pôs na boca. — Me
dê duro, bem dentro. Dê-me!
Moviam-se com rapidez inusitada, com desenfreio. E quando o
choque dos corpos se tornou brutal e extremo, tudo ficou negro. Ela
gritou, ele gritou. Tinham acabado.
Capítulo 14
Patrícia deixou Nick em sua casa, eram cinco da manhã. Depois
dessa noite, ele já não pôde esquecê-la. Trabalhava no escritório de
seu pai todas as tardes, não gastava um só centavo na faculdade
para economizar para o fim de semana e às vezes descarregava em
sua mãe a inferioridade que seu pai o fazia sentir. O fazia sem dar-se
conta, sem poder controlá-lo, porque não sabia canalizar tanta dor de
outro modo.
Assim passou um mês no qual Nick resistia a tudo por Patrícia:
as humilhações de Octávio, as largas caminhadas para economizar o
dinheiro do transporte para a faculdade, os meios-dias sem comer
para não investir em um almoço que subtraísse um gole a Patrícia no
sábado de noite.
Quando iam ao bar, falava com os amigos de sua namorada, o
via feliz e seguro de si mesmo; comprava-lhe presentes e flores.
Como lhe tinha passado poucas vezes na vida, sentia que flutuava em
uma nuvem.
Na quarta noite que faziam amor no automóvel - viam-se
sozinho aos sábados - lhe disse que a amava. Ela o olhou ao tempo
que saltava sobre seu membro erguido para que lhe afundasse mais e
mais até levá-la ao orgasmo.
— O importante é que você goste - replicou antes de enterrar a
cara de Nick entre seus avultados peitos torrados.
Passaram outro mês vendo-se aos sábados. Nick não se
cansava de falar com todos de sua formosa namorada e de explicar
quão maravilhosa era a vida desde que Patrícia tinha aparecido.
Uma noite de sexta-feira, dois de seus amigos da universidade
foram ao bar de Porto Madeiro e ali estava Patrícia Cólon, a famosa
namorada do Nick, beijando-se com um arrumado homem de sua
idade.
Quando quiseram contar-lhe Nick os insultou. Disse-lhes que o
invejavam, que eram os piores amigos que jamais poderia ter tido e
que sua namorada era uma mulher irrepreensível.
No sábado, ela o deixou plantado. A esperou três horas sob a
chuva em uma esquina do centro, mas Patrícia jamais apareceu e não
atendia o celular. No domingo ligou para sua casa. A empregada lhe
disse que tinha saído. Não a achou até a quinta-feira.
— O que quer, Nicolas? - perguntou-lhe ela a contra gosto. —
Disse-me Rosita que me chamou toda a semana. Não têm nada que
fazer?
— Preocupei-me - respondeu ele. — No sábado não apareceu.
— Não pude.
— O que aconteceu? Está bem?
— Não pude - repetiu ela. Com seu tom de voz lhe fez saber
que não pensava lhe dar nenhum tipo de explicação.
— Podemos nos ver? - insistiu ele com a voz tomada pela
angústia.
— Hoje? Impossível!
— Quero te ver.
— Não atue como um adolescente, Nick - espetou-lhe ela. —
Vemo-nos no sábado.
E desligou.
Que ela fosse três anos mais velha às vezes pesava sobre Nick,
porque Patrícia o tratava como a um inexperiente, sensação que se
acrescentava porque ele não era solvente. Não tinha dinheiro, e o
dinheiro punha contente a uma mulher. Iria demostrar que, até sem
riquezas, era todo um homem.
Na sexta-feira foi procura-la no bar ao que ela frequentava.
Comprou-lhe flores e levou o anel que tinha pertencido a sua avó
materna para lhe oferecer um compromisso sério. Ele era um homem
e ela tinha que se dar conta.
O coração lhe acelerou ao ver o conversível na porta. Pensou
que sua namorada podia estar com seus amigos, mas isso não lhe
importou. Estava seguro do que faria, e se Patrícia o rechaçava em
público, bem valia a pena correr o risco. Não o rechaçaria, ela o
amava, e ele confiava em si mesmo.
Entrou no lugar, o primeiro ao que ela o tinha levado. A
escuridão lhe impediu de ver com clareza a princípio até que os olhos
se acostumaram à penumbra e alcançou a divisar seu esbelto corpo
coberto de objetos vermelhos diante do balcão de bebidas.
O coração lhe paralisou. Ela estava sentada junto a um homem
elegante e arrumado, visivelmente mais velho que ele. Notava-se em
seu traje e em seu porte distinto. Ele tinha a mão em sua cintura.
Nick viu que ela sorriu e depois se jogou em cima como uma
prostituta.
Beijou-o com ardor, com desejo insatisfeito, e logo voltou para
seu lugar para beber um gole.
Nick estava congelado. De repente se deu conta de que uns
quantos pares de olhos indiscretos se detiveram nele, possivelmente
porque o tinham visto com Patrícia em outras oportunidades e agora
observavam seu desengano com curiosidade e até com um pouco de
diversão.
Deixou o buquê de flores sobre uma mesa vazia e se aproximou
dela. Tragou com força o nó de dor que lhe tinha formado na
garganta, procurava assim recompor-se antes de falar, embora não
tivesse ideia de como poderia fazê-lo.
— Patrícia - ao final a voz lhe saiu afogada, como uma súplica.
Ela se deu a volta. O sujeito que a acompanhava não se dignou a
fazer o mesmo.
— Nick - resmungou a mulher com frieza. — O que está
fazendo aqui?
— Vim por você - respondeu ele com a voz murcha.
— Disse-te que não atuasse como um adolescente, e isso é
exatamente o que faz - espetou-lhe com crueldade.
— Patrícia...
Patrícia não podia acreditá-lo: Nick estava a ponto de chorar,
continha o pranto! Soprou impaciente, tomou sua bolsa de mão e
saiu do bar. Não queria que ele a fizesse passar vergonha diante de
seus amigos. Nick a seguiu. Pensou que ela o conduziria até seu
automóvel, mas não o fez. Tão somente se sentou em um banco
frente ao rio.
— Nick - disse-lhe quando ele se sentou a seu lado. — Parece
que não entendeu.
— O que fazia, Patrícia? - perguntou ele, ignorando o que lhe
dizia, detento de sua dor.
— Será melhor que não voltemos a nos ver.
As palavras espremeram o peito de Nick, fizeram-no sentir
desolado.
— Mas Patrícia...
— É o melhor.
— Por favor, não o faça – suplicou. — Perdoo-te. Não importa o
que tenha feito, eu te perdoo.
Ela sufocou uma risada de incredulidade. Nick a beira do
pranto! Isso sim que era gracioso! Isso lhe passava por meter-se com
meninos.
— Não estou te pedindo perdão, Nick - replicou dura e
inflexível.
O tom zombador de sua voz feriu Nick no mais profundo.
Recordou-lhe as brincadeiras e humilhações que suportava desde
menino por parte de seu pai. Quando este lhe arrebatava os cadernos
das mãos para controlar que tivesse feito a tarefa, ou quando lhe
dizia que sua mãe era a pior mulher do mundo. Sim, essa mesma que
para ele, em troca, era sua vida.
Entretanto, ignorou todos esses pensamentos porque Patrícia o
amava, não era como Octávio, e lhe demonstraria que sentia o
mesmo por ela.
— Não me deixe - suplicou. Os olhos se encheram de lágrimas.
— Te amo.
— Isso não é suficiente, Nicolas - respondeu ela com os olhos
frios e a voz impaciente.
Em realidade gostava de ver Nick nesse estado, fazia sentir-se
forte e onipotente, mas de uma vez estava apurada por voltar com
seu novo namorado.
— Não te dá conta? Não é homem para mim. - Começou a
enumerar com os dedos: — Ainda te falta receber, vive com sua mãe,
depende de seu pai para subsistir. Não posso perder cinco anos, que
é o que pelo menos te levaria a estabelecer em uma casa medíocre,
transando em meu automóvel! Não sou uma qualquer para estar
fazendo isso, seria bom que o entendesse. É você o que deveria me
pedir desculpas por pretender me fazer perder tempo. Quero um
homem independente e solvente. E você sabe bem que não o é.
— Prometo-lhe isso - apressou-se a dizer ele. Tentou tomar as
mãos, mas ela as apartou. — Prometo que o vou ser.
Patrícia riu, irônica.
— E quando será isso, Nick?
Nick não podia responder. Não tinha ideia de quando poderia
converter-se no que ela esperava nem se alcançaria alguma vez o
nível de vida que Patrícia pretendia. Tampouco queria mentir. Só
sabia que sempre tinha desejado ser solvente para não depender do
Octávio e tinha muito claro que faria tudo o que estivesse ao seu
alcance para que esse objetivo se cumprisse.
— Prometo isso!
Ele chorava. Patrícia não resistiu. Ficou de pé e se aproximou
do degrau que a internaria outra vez no bar.
— Basta, Nick – ordenou. — Deixemos a birra para lá. Deveria
arranjar alguém de sua altura, em todos os sentidos. Adeus.
Nick não se moveu. Observou Patrícia afastar-se, essa figura de
sonhos que o abandonava quando ele mais a amava.
Comprou cerveja e bebeu até não ter um só centavo mais.
Depois acreditou que voltar com semelhante bebedeira a sua
casa seria uma falta de respeito para sua mãe, então ficou vagando.
Minha pobre mãe pensou. E voltou a chorar.
Caminhou pelas ruas enjoado, consternado pela dor que
ocasionava a perda. Apoiou-se contra uma parede acreditando que
vomitaria - nunca tinha se embriagado - mas em troca acabou
chorando de novo, detento das lembranças. Sua mamãe... Tinha sido
tão injusto com ela. Parecia-lhe vê-la nos banheiros, colocando a mão
em sujeira alheia para lhe sustentar.
— Olhem! - exclamou uma voz detrás dele. — Chora uma
joaninha!
Os quatro patoteiros tentaram lhe tirar a pequena parte de
dignidade que ficava, e ele se rebelou. Golpeou seu destino, sua
pobreza, sua estúpida idade. A ira lhe deu forças, mas quatro eram
demais para um ébrio, e acabou estendido no piso, moído a patadas e
sem o anel de sua avó.
Tudo lhe saía mal: seu pai o humilhava, sua mãe limpava
imundície alheia para sustentá-lo, sua namorada não era para ele.
Caminhou até o bar outra vez. Sentou-se no mesmo banco no qual
Patrícia, sua adorada namorada, tinha-o deixado. Tudo lhe dava
voltas. Então vomitou e logo adormeceu.
— Né, nenê! - uma peta lhe afundou o atrativo e piorado rosto.
— Nenê!
Nick abriu os olhos e elevou a cabeça. Um policial lhe falava
desde seu metro oitenta e cinco de estatura.
— Se não for, levo-te a delegacia de polícia. Onde vive?
Nick ficou de pé sem dar resposta e caminhou rumo a sua casa.
Já tinha amanhecido. Até que chegou ao destino se fez às dez da
manhã. Sua mãe o esperava de pé, com os braços cruzados diante da
mesa da cozinha.
— E onde estava? - foi a primeira pergunta. Ele quis avançar
sem responder, mas ela elevou a voz, obrigando-o a deter-se.
— Onde estava, Nick?
— Me deixe em paz - replicou ele. Sua mãe, como só umas
poucas vezes na vida tinha feito, gritou-lhe.
— Não vai responder! – reclamou. — Enquanto viva sob meu
teto, aqui não chegará bêbado nem golpeado, nem à hora que te
ocorra, muito menos sem avisar. Não me deixará com a palavra na
boca nem dará respostas de adolescente desrespeitoso, porque eu
não te criei assim. Entendeu?
Nick, que tinha ficado quieto de pé diante da escada com o
primeiro grito, não respondeu. Baixou a cabeça e recebeu paciente a
carícia que sua mãe lhe proferiu na nuca.
— Vá, sente-se - pediu ela com a voz suave de arrependimento.
Não queria gritar com seu filho, mas era tanto o medo que tinha
sofrido por ele que até se sentia capaz de lhe dar uma bofetada.
Nick obedeceu. Sentou-se à mesa com mais gana de estar
morto que vivo e esperou a que sua mãe lhe voltasse a falar.
— Alguma vez tinha feito uma coisa assim - disse-lhe antes de
secar o nariz com um lenço. — Como foi que te embebedou? Têm
aroma de cerveja por toda parte.
— Como quer que não me embebede, se alguma vez antes
tinha tomado? - replicou ele. Em sua voz se evidenciavam a dor e a
angústia de sentir-se desolado.
— Todos tomaram menos eu, o estúpido do Nicolas que durante
o secundário passava encerrado em sua casa porque nunca tinha um
centavo para fazer outra coisa.
— Não tem nada de bom tomar, Nick - quis consolá-lo sua mãe,
mas ele não se contentou com essa justificativa.
— Nunca fiz nada! - exclamou ao tempo que chorava. — Nunca
pude. Todos saíam, todos bebiam, todos faziam o que queriam menos
eu. Eu nunca pude fazer nada!
— Têm toda a vida por diante...
— Mas minha vida está transcorrendo agora e eu estou morto!
Teresa o abraçou. Seu filho não respondeu ao abraço.
— Não diga isso, filhinho, por favor - replicou sua mãe, afogada
em lágrimas. Conhecia a dor de seu filho e chorava não só porque o
sentia igual a ele, a não ser além porque não podia saná-lo.
— Me acredite, Nick – tentou. — Se pudesse te teria dado um
melhor pai, também uma melhor mãe, mas isto sou eu e não posso
ser outra coisa.
— Nem sequer posso conquistar uma boa garota! - reclamou
ele, zangado com a vida. — Vou terminar como um qualquer saído de
um bairro de má sorte. Nem sequer isso! Acabarei sozinho, sentado
frente ao fogo com você!
Teresa suspirou e tomou a mão molhada. Nick limpava as
lágrimas com os dedos.
— Nick, é um rapaz formoso com toda uma vida por diante.
— Vou me atirar para baixo do trem! - exclamou ele ignorando
as palavras de sua mãe. — Isso é o que vou fazer! Para que quero
viver se não tenho nada por que lutar?
— Algum dia conhecerá uma boa mulher, terá filhos com ela e
formará sua própria família, que não tem por que ser como a nossa.
Você não é Octávio e essa mulher não será como eu.
— Já a conheci e não me quer. Não me quer porque não tenho
nada e minha mãe não é mais que uma faxineira. Você limpa a merda
de gente como ela todos os dias!
Nick tremeu com a força do pranto e da culpa. Acabava de dizer
algo que não sentia, algo que não valia a pena dizer por que feria a
pessoa que mais amava no mundo. Mas ele era mau, tinha-o herdado
de Octávio, e não podia controlar.
— Perdão – balbuciou. — Me perdoe, mamãe, me perdoe... -
suplicou amontoando as palavras. Sua mãe lhe beijou a cabeça e
ignorou o dano que lhe tinha causado por ajudá-lo a sanar as feridas,
pois sempre as teria abertas.
— Se essa mulher se envergonha de você porque é pobre,
então não é uma boa mulher e não te quer.
— Você o que sabe? - ofendeu-se ele. — Patrícia é a melhor
mulher do mundo, sou eu o que não a merece.
— Não digo que não o seja, mas...
— Mas sou eu o que não tem nada que lhe oferecer! -
interrompeu-a. — Nada!
Seu pranto desconsolado abriu uma profunda ferida no interior
de sua mãe, que lhe apertou a cabeça contra seu ventre com
desespero. Nick se afundou em seu roupão, devorou as mangas de
cor violeta e sussurrou entre o pranto:
— Me perdoe por tudo, mamãe – suplicou. — Me perdoe. Te
amo.
— E eu amo você, meu céu - respondeu Teresa e lhe beijou o
cabelo emaranhado. Sustentou-o assim, contra seu ventre, como se
desejasse protegê-lo em seu interior de novo, prolongando o
momento.
Uma semana depois, Teresa encontrou a resposta para as dores
e afecções físicas que a afligiam fazia ao menos três meses. Tinha
câncer ósseo.
A toda a dor de sua alma, Nick teve que somar o fato de que
perderia a única pessoa que o tinha amado como ele necessitava, e
assumir que ficaria sozinho. Completamente sozinho.
Recordava que alguma vez havia dito a sua mãe que passaria
sua vida com ela como se isso fosse a pior coisa do mundo. Agora
não só desejava que isso acontecesse, mas sim se sentia
atormentado pela culpa de havê-la ferido com palavras vazias, com
coisas que em realidade não sentia. Sua mãe tinha sido uma vítima
do ressentimento de seu pai e logo do dele. A escrava de suas
frustrações tinha descarregado em sua mãe sua dor sem
compreender a dela.
Teresa tinha se casado com Octávio apaixonada, quando os dois
trabalhavam em uma fábrica. Enquanto isso, o homem completou
seus estudos e quase imediatamente sua excelente capacidade lhe
permitiu crescer em sua carreira. Muito em breve sua mulher passou
a ser um estorvo, insignificante para ele com o primário mal
completado, e a deixou em casa. Sem trabalho e sem amigas, Teresa
se encerrou em seu lar para atender a seu bem-sucedido marido
enquanto ele a enganava com Elisabete, sua secretária, no escritório.
Desde que se converteu em um homem de êxito, Octávio se
tornou frio e despótico. Controlava cada movimento de Teresa; criava
a Nick, que era um menino sensível como sua mãe, com dureza
desnecessária, e relegava a sua família em função de que se
sentissem ínfimos frente a sua grandeza.
Um bom dia se cansou de fingir e se foi. Foi reclamando a
metade da casa e exigindo que Teresa e seu filho se mudassem a
uma moradia menor, uma que ele tinha comprado entre as
propriedades que negociava. Teresa, que podia ter sozinha educação
primária, mas era uma mulher inteligente, pediu um empréstimo,
pagou por um advogado e obteve o divórcio, a casa em São Telmo e
uma pensão com a qual Octávio teria que contribuir até que Nick
completasse os estudos universitários. Naquela época, ele tinha sete
anos.
A Construtora Larrazábal cresceu ao ponto que muito em breve
o dinheiro que Octávio enviava todos os meses para seu filho
equivalia à soma que pagava pelo seguro de seu carro. Não por isso e
porque as coisas foram aumentando, inclusive os gastos escolares de
Nick, mas não pagou um centavo mais. Então Teresa procurou
emprego e acabou esfregando casas.
— Não vais trabalhar mais - disse Nick a sua mãe depois de
escutar a trágica notícia de sua enfermidade, embora ainda não
caísse na conta do que isso implicaria para sua própria vida. Fazia
tempo que desejava trabalhar, mas ela não o permitia para que
terminasse seus estudos, que lhe consumiam quase todo o dia.
— E eu não vou mais a trabalhar com Octavio - adicionou
depois. — Estou farto de suas humilhações. Penso procurar outra
coisa que nos permita viver e seguir estudando.
— Seu pai quer te ensinar o negócio - Teresa tentava resgatar a
seu filho do rancor. Se ela tinha que partir, queria deixá-lo
acompanhado, não queria deixá-lo sozinho.
— Classificando papéis? - riu ele com ironia. Fez-se um silêncio
que Nick rompeu com uma reclamação, com o desespero de sentir-se
impotente. — Tudo isto é uma merda, mamãe! Por que tinha que
adoecer?
Nick teria lutado contra qualquer um que desejasse machucar a
sua mãe ou obrigá-la a abandoná-lo, mas como lutar contra uma
enfermidade? Como resignar-se a que sua vida se apagava?
— Filho... - continuou a mulher. — Não viva pedindo explicações
à vida. Não guarde rancor em seu coração, porque isso amargurará
seus dias.
— Esse é seu problema - reclamou Nick. — Com a desculpa de
não guardar rancor ao Octávio sempre o justificando, perdoando e
deixando que faça o que queira, inclusive que me humilhe. Nunca foi
capaz de me defender.
— O que quer que lhe diga? Que é um estudante brilhante, que
será um engenheiro muito mais capaz e bem-sucedido que ele algum
dia?
Nick não a olhava. Sorriu com ironia.
— Não pode acreditar isso de mim – replicou. — Nem sequer eu
acredito.
— O será - sua mãe tomou a mão. — Eu sei que sim.
Trataram de viver os últimos meses de vida de Teresa como se
tudo fosse continuar. Só houve uma ação cotidiana e na aparência
transcendente que se converteu na mais importante de suas vidas.
Foi uma tarde invernal de sol em que Nick desenhava um trabalho
sobre a mesa e sua mãe entrou como de costume, com a fumegante
taça de chocolate quente entre as mãos. Estava mais magra que
nunca, pálida e dolorida, mas ainda se levantava da cama. Ainda lhe
levava a taça ao seu quarto.
Nick girou a cabeça quando se abriu a porta. Teresa se
esqueceu de toda dor e lhe sorriu como sempre fazia porque não
desejava preocupá-lo. Os lábios de Nick tremeram, pestanejou com
ligeireza: sua mãe não voltaria a entrar em seu quarto, o chocolate
jamais voltaria, ou seja, igual ao preparado com suas mãos cheias de
amor; teria que conformar-se com o que preparasse o empregado de
uma cafeteria por um salário, ou que fizesse ele, que só albergava
dor e maldade, por isso sua infusão sairia amarga. Sua mãe já não
voltaria a lhe sorrir da porta nem a lhe perdoar todas suas injustiças;
ninguém o faria porque só ela o amava tanto para isso, nem o
abraçariam para que a dor fosse diminuindo até quase parecer que
jamais tinha existido.
Deu-se conta de que nunca voltaria a ter tudo isso porque sua
mãe morreria. Então ficou de pé e correu a ajoelhar-se frente a ela,
chorando como um menino.
— Não me deixe, mamãe, por favor – suplicou. — Não me deixe
sozinho!
Teresa lhe acariciou o cabelo molhado. Nick tinha tomado banho
fazia um momento e cheirava a colônia, quão única podiam comprar.
— Eu sempre vou estar com você - prometeu-lhe ela com
integridade. — Sempre te sorrirei, orgulhosa do maravilhoso homem
que é, tal como estou fazendo hoje. Isso é tudo o que deve levar de
mim em sua memória. O resto deve ser futuro. O grandioso futuro
que eu te vou enviar do céu.
Capítulo 15
Ninguém cuidou melhor de Teresa no último lance de sua vida
que Filomena Roseiras. Conheceram-se trabalhando em um hotel, no
qual ambas eram empregadas. Em pouco tempo, Teresa tinha sido
afastada por problemas na coluna, mas Fi permaneceu em sua vida
como sua grande amiga.
Limpava a casa, atendia a Teresa, preparava a comida de Nick
como uma segunda mãe. Ele trabalhava entregando pizzas de dia e
estudava de noite, tinha tido que trocar de volta e mesmo assim
deveu duas matérias. Foi nesse último tempo que Nick, como Fi tinha
a idade de sua mãe e fazia tanto por eles, tomou um carinho
especial, uma devoção que levaria em seu coração para sempre.
Quando Teresa morreu, Nick e Fi estiveram mais unidos que
nunca. Abraçados, sozinhos no meio do enterro e a desolação. Nick
estava indefeso, por isso ela o protegeu, e ele se deixou proteger. A
vida estava sendo muito dura com aquele rapaz que sempre tinha
demonstrado ter uma alma muito sensível, muito profunda para um
mundo vazio de amor e de confiança.
Mas o que parecia fraco resultou ser bastante forte.
Possivelmente foi a secreta promessa que sua mãe lhe fez iluminada
pelo sol do inverno ou que com cada dor ele se fazia mais insensível,
levantava um muro mais sólido para não sofrer, mas não se deixou
vencer. Continuou trabalhando e foi num desses meios-dias quando
encontrou algo interessante no jornal que comprava Juan, o dono da
pizzaria.
O governo publicava licitação para construir uma magnífica
ponte entre Buenos Aires e Colônia, e oferecia em troca milhões de
pesos para quem apresentasse o projeto ganhador.
Levou a folha do jornal para casa. Essa noite, na faculdade, o
que menos fez foi prestar atenção à matéria que se ditava. Pensou
todo o tempo no projeto, em como se concursaria em uma licitação
sem ter uma empresa reconhecida e em como se assinava um
projeto de construção sem ser engenheiro ou arquiteto.
Na manhã seguinte, Fi passou a lhe preparar o café da manhã,
como de costume. Na falta de marido e filhos, ela tinha a ele.
Sentado à mesa, Nick lhe mostrou a folha do periódico.
— Olhe isto - pediu assinalando o aviso. — O que acha?
Fi leu a grandes rasgos o que dizia e não lhe pareceu algo
possível.
— Pensa participar? - perguntou, preocupada porque Nick
tivesse outra desilusão mais na dura vida que vivia. Pensou no que
haveria dito Teresa a respeito, mas como não soube com exatidão,
preferiu dizer o que ela pensava.
— Sim - assentiu ele. Fi suspirou. Não queria desalentá-lo, mas
tampouco podia permitir que se fizesse falsas ilusões. As
probabilidades de que ganhasse o projeto eram quase nulas, e temia
que investisse tempo e energia em algo que jamais daria os
resultados esperados.
— Aqui diz que é para empresas. Supõe-se que seja necessário
ser o dono de uma construtora – argumentou. — Não quero ser
desmancha-prazeres, Nick, mas me parece que deveria esperar e te
estabelecer para...
— Me estabelecer? - interrompeu-a ele. — Isso não vai ser
possível em um ano, pelo menos, atrasei-me bastante em relação ao
que tinha planejado. Além disso, tenho a capacidade. - Era a primeira
vez que Nick dizia algo como isso. — O único que me falta é a pauta
assinada.
Fi tragou com força.
— Assina-a? - perguntou com voz tremente. Tinha medo.
— O projeto tem que estar assinado por alguém titulado.
Nick parecia tão convencido de que podia consegui-lo que ela
não se atreveu a discutir mais. Talvez a louca ideia se esfumasse de
sua mente como se foram tantas outras.
Mas enquanto conduzia sua motocicleta de volta à pizzaria, Nick
só pensava em um nome: Pablo Díaz, seu companheiro da primária
com quem se tinha cruzado um par de vezes em eventos conjuntos
da Universidade e que se formou arquiteto no ano anterior.
Chegou a pizzaria, tirou o casco e entrou para deixar o dinheiro
do último pedido que tinha levado. Não alcançou a atravessar toda a
soleira da porta que já lhe deram uma nova ordem.
— Nick - falou a caixa - tem que levar um pedido a Avellaneda.
Nick olhou seu relógio: faltava menos de um minuto para as
três. Embora aceitar um pedido de último momento em um trabalho
novo lhe outorgaria sem dúvida o visto bom de seu empregador,
sabia que em Província jamais obteria uma boa gorjeta. Além disso,
tinha algo muito importante que fazer a revanche de sua vida, e não
pensava falhar.
— Já vou – respondeu. — Passe para o Mariano. Tenho algo
importante que fazer.
Jaun arqueou as povoadas sobrancelhas negras.
— Ainda não são três! - recriminou vendo seu entregador
afastar-se. Nick se deteve na porta. Olhou de novo o relógio de pulso,
deixou passar trinta segundos e replicou: — Agora sim.
Enquanto a motocicleta avançava, Nick ia pensando no que diria
a Pablo quando este abrisse a porta. . Olá, pensou, Lembra-te de
mim? Sou Nick, seu companheiro da primária. Cruzamo-nos um par
de vezes em eventos da Universidade.
O bairro de Pablo era tranquilo e bonito. Sua casa era uma linda
residência com um jardim cheio de flores. Notava-se que ali tinha
passado a mão de um arquiteto. De um bom arquiteto com noções de
paisagismo, em realidade.
Deixou a moto junto às grades que davam à rua, tirou o casco e
tocou a campainha. Do interior da casa saiu uma mulher que teria
pouco menos idade que a que tivesse tido sua mãe.
Nick a recordava de alguns aniversários que tinha passado
nessa casa, era a mãe de Pablo.
— Olá - saudou-a com a voz e um gesto de mão. — Recorda-
me, senhora Díaz? Sou Nicolas Larrazábal, fui companheiro de seu
filho na primária.
A mulher franziu o sobrecenho.
— Nicolas? - perguntou.
— Sim. O filho de Teresa.
— Ah, Nick! - exclamou a mulher em seguida. — Como não te
reconheci antes? Por Deus, que grande e bom moço está!
Nick sorriu.
— Obrigado, senhora - respondeu respeitoso. — Estou
procurando o Pablo.
— Ele não está neste momento, foi ver o terreno de uma amiga
minha. Vai projetar sua casa - adicionou com orgulho materno. —
Não acredito que chegue muito tarde, pode deixar a moto no jardim e
esperá-lo no hall, eu adoraria saber de você.
Karina era uma mulher cordial e carinhosa. O fez entrar, serviu-
lhe um refrigerante como toda mãe e lhe perguntou por sua vida.
— Faltam-me duas matérias para me tornar engenheiro -
contou ele.
— Que bom! - exclamou a mulher. — E sua mamãe? Sempre
me lembro dela.
Nick baixou a cabeça e o olhar. Cravou-lhe o coração, mas se
esforçou por recompor-se em seguida.
— Minha mamãe faleceu - respondeu. A mulher cobriu a boca
com uma mão.
— Teresa faleceu? - entristeceu-se. — Oh, Nick! Sinto-o tanto.
Pode contar conosco para o que necessitar.
Nick voltou a olhá-la. Sorriu com certa rigidez.
— Obrigado – respondeu. — De verdade, agradeço.
Pablo chegou meia hora depois. Não reconheceu Nick e até o
saudou ao passar, como se não tivesse estado esperando-o e fosse
uma visita de sua mãe.
— Este é Nick - assinalou Karina para tirá-lo de seu engano.
Pablo tinha deixado uma mão sobre o ombro de sua mãe, ação que
trouxe lembranças a Nick.
— Lembra-te dele?
— Nick? - perguntou-se Pablo esfregando a cara.
— Nick, seu companheiro da primária!
— Ah, Nick! - Pablo parecia tão amável como sua mãe. — Como
está?
Estendeu a mão para que Nick a estreitasse, e ele assim o fez.
Karina se retirou argumentando que os deixava sozinhos para que
falassem de suas coisas. Depois de repetir que sua mãe havia
falecido porque Pablo perguntou por ela e de explicar duas ou três
coisas tolas a respeito de sua carreira universitária, Nick foi ao ponto
que de verdade lhe interessava graças à pergunta de seu
companheiro.
— Foi toda uma surpresa te encontrar em minha casa. O que te
traz por aqui?
Nick suspirou. Agora vinha o difícil.
— Uma proposta - respondeu.
— Não será relacionada com minha irmã, não? - brincou o
arquiteto. Nick riu.
— Não. Trata-se de uma licitação. Uma espécie de concurso.
A princípio, Pablo julgou a ideia descabelada, mas com o correr
dos minutos e com a energia que Nick depositava no projeto, acabou
por pensar que possivelmente não era tão louco, e acessou a ajudá-
lo.
Nick se oferecia a projetar tudo e só requereria sua revisão e
sua assinatura.
Pablo não deixaria que fizesse tudo sozinho, mas tampouco
prometeu fazer muito mais que revisar e assinar. Preferia ocupar-se
de trabalhos seguros, como a casa para a amiga de sua mãe, que de
grandes ilusões com poucas probabilidades de converter-se em
realidade.
Assinar e fazer-se responsável por um projeto ideado por outro,
para cúmulo, ainda estudante, não era nada fácil. Requeria confiança
e trabalho, por isso preferia manter-se perto de Nick enquanto
levasse adiante o projeto que ele deveria assinar, embora não
contribuísse muito por falta de tempo.
Estava fazendo seus primeiros trabalhos como arquiteto e isso
requeria atenção se desejava abrir seu próprio escritório algum dia.
Fi, que tinha acesso à casa de Nick, chegava às três da tarde
para lhe preparar o almoço. Depois, enquanto ele estava na
universidade, limpava um pouco a casa e o esperava com o jantar
pronto. Ele comia o mais rápido possível e logo se encerrava no
mezanino com a música eletrônica a todo volume e litros de chocolate
quente para desenhar sua ponte. Ao meio-dia, com só três horas, às
vezes duas dormidas, ia trabalhar na pizzaria, e assim repartia seus
dias entre trabalho, estudo e ilusões.
Aos domingos se reunia com Pablo e lhe mostrava como estava
ficando o projeto. Explicava-lhe os cálculos, que era a parte mais
chata porque se falhava em algo a estrutura não resistiria e Pablo
acabaria entre as grades. Claro que para isso primeiro tinham que
ganhar, e como Pablo pensava que era impossível, não prestava
muita atenção enquanto Nick soasse tão convencido de que estava
fazendo tudo bem. Contribuía com algumas ideias em relação ao
desenho, e logo se despediam.
Fi não desejava fazer Nick cair na realidade, mas temia que
todas essas fantasias que ele albergava em relação a esse projeto se
desmoronassem. Como um estudante de Engenharia Civil podia
superar as grandes construtoras com anos no mercado nacional e
internacional? Os pesos pesados se apresentariam e entre eles Nick
não era mais que um pobre diabo que trabalhava no armazém de sua
casa forrado de desenhos de um super-homem que tinha inventado
aos dezesseis anos.
Passava os sábados curvado sobre o tabuleiro, que estava no
armazém, planejando. Fi levava chocolate quente e biscoitinhos
várias vezes ao dia, e o observava trabalhar sem descanso, sem
remissão. Parecia que o objetivo que ele tinha encontrado para seguir
vivendo eram esses cálculos, esses desenhos que riscava e coloria
como um menino entretido.
O projeto foi finalizado no último dia de recepção das
apresentações. Nick tinha pintado as vistas em aquarelas, tão
maravilhosas que pareciam reais, tão belas que faziam crescer o
desejo de ver realizadas. Frente a trabalhos preparados com
programas de informática, o seu parecia primitivo e pobre, mas
levava implícitas suas horas sem descanso, a arte que saía de suas
mãos, a morte de sua mãe.
Fi foi a primeira a olhar a apresentação. Espremeu-lhe o
coração quando notou que o trabalho seria entregue em nome de
Construtora Hagen e Associados.
— Seu sobrenome legal, o primeiro e válido, não é Hagen -
indicou-lhe Fi. — É Larrazábal. Não terá problemas com isso?
— Não sou Nicolas, nem sou Larrazábal - explicou Nick com voz
serena, mas implacável. — Sou Nick Hagen e penso fazer honra a
quem me deu isso tudo, não a ele. Nada dele merece ser parte de
minha glória, nem sequer seu sobrenome.
Com "ele" se referia a seu pai. Fi sabia e por isso se sentiu
comovida primeiro pelo amor incondicional e profundo que Nick
professava por sua mãe, e logo porque ele soava mais firme e
convencido que nunca. Tinha tanta fé que a assustava. Não queria
vê-lo cair, não queria que saísse machucado.
Um mês depois, Nick recebeu um chamado. Seu trabalho era
finalista e tanto ele como Pablo tinham que apresentar-se a uma
entrevista para defender sua ideia diante dos representantes
governamentais.
A Construtora Hagen e Associados se ouvia como um vestido
novo entre reconhecidas figuras como Lowenstein e demais
sobrenomes importantes, e isso despertou o interesse de todos.
Nick falou muitíssimo mais que Pablo. Ele sempre tinha sido de
tímido para o envergonhado, até lhe custava expor trabalhos na
universidade, mas diante dos membros do governo, pareceu todo um
perito. Era-o. Tão seguro de si mesmo, tão inteligente, tão arrogante
envolto nessa beleza física que recobria seu interior destroçado, que
conquistou a todo mundo.
Felicitaram-no por sua juventude e ímpeto e lhes disseram que
conheceriam a decisão em outro mês de espera. Todo isso estava
muito bem para Pablo, que se sentia realizado pelo simples feito de
ter sido chamado para uma reunião tão importante, mas Nick era
como uma máquina descontrolada. Ele não parecia sequer contente
por essas palavras. Era como se acreditasse que isso era quão
mínimo tinham que lhe dizer, ou pior, como se as palavras desses
estranhos não valessem nada porque não saíam da boca que ele
esperava, que era a de seu pai, e exigia muito mais. Nick queria
ganhar.
Um mês e meio depois, obtiveram a notícia de que o projeto
ganhador era o seu.
Fi não podia acreditar, Pablo não podia acreditar... Nick tomava
com tanta naturalidade que dava medo. Para ele, nada tinha passado,
nada trocava: não se sentia de acordo com isso. Queria muito mais.
Tinha encontrado algo com o que encher o vazio de sua alma, e não
se deteria até que estalasse, até que morresse de tanto ambicionar,
lutar, conseguir, voltar a ambicionar, e tudo sem um ápice de gozo ou
de emoção, tudo sem sentir-se satisfeito nunca.
Octávio jamais se comunicou com ele para felicitá-lo. Nick
tampouco o esperava, mas embora não o demonstrasse, não podia
dizer que não lhe tivesse importado. Seu pai não estava acostumado
a participar de concursos nem licitações do governo, e tampouco
ganhou uma. Seu nome jamais tinha sido tão importante como o de
Lowenstein ou Cólon, que de repente tinham passado a soar
pequenos frente ao prodígio que representava Nicolas Hagen.
Um estudante de Engenharia Civil que, endividado ainda com
duas matérias para obter seu título, tinha passado a perna nos
grandes da construção. Nick era um competidor imparável, uma
eminência. Nick era um risco iminente.
Choveram-lhe projetos, e dos mais importantes. Viu-se
obrigado a contratar pessoal, capatazes, operários, e quando quis
dar-se conta, tinha o título de engenheiro em uma mão e dinheiro a
mares na outra.
O primeiro que fez foi associar-se com Pablo. A empresa era
dele, mas seu amigo de infância tinha passado a ser parte do seleto
círculo de escassas pessoas de sua confiança. Fi era a outra, a
primeira. Exigiu-lhe que abandonasse seu trabalho de empregada e a
converteu em sua secretária pessoal com um salário muito superior
ao de qualquer outra. Fi não se animava, dizia-lhe que não tinha
secundário e que ela não sabia nada de números, empresas nem
computadores. Nick a obrigou. E aprendeu rápido.
Para Nick existiam duas classes de pessoas: as importantes e
as demais. Não oferecia sua amizade verdadeira a ninguém, não
confiava em ninguém, não entregava um só sentimento a nenhuma
pessoa que não fossem Fi ou Pablo.
De dia, a mulher era sua secretária; de manhã e de noite, era
sua segunda mãe. Ia a sua casa, preparava-lhe o café da manhã, iam
juntos trabalhar e retornavam juntos para casa, onde ela preparava o
jantar.
De trabalhar na garagem do Pablo, passaram a um escritório,
logo a um piso, por último ficaram com os quatro últimos andares de
um alto e luxuoso edifício de Porto Madeiro.
Quando Patrícia Cólon soube que Nick, aquele rapazinho que
tinha deixado escapar converteu-se no melhor partido que jamais
tinha tido, odiou-se. Mas logo recordou que ele a tinha amado e que
o amor não passava tão rápido, razões que lhe serviram para
serenar-se. Só tinha que reencontrar-se com ele. Voltar a vê-lo,
medir o terreno e confirmar se na piscina ainda havia água. Bastaria
olhá-lo aos olhos para saber se seguia sendo o menino muito sensível
e profundo que tinha conhecido. Se assim fosse, seria muito fácil
dominá-lo.
Uma noite, apareceu na vida de Nick como se tivesse surgido
do nada.
— Larrazábal - chamou-o no meio do salão no que se
desenvolvia uma festa, como o tinha feito uma vez no corredor da
universidade.
Nick reconheceu a voz em seguida e volteou para confirmar sua
suspeita. A figura de Patrícia, pouco mudada da última vez que a
tinha visto, ainda o cegava. Tinha os lábios um pouco mais grossos,
possivelmente tinha posto colágeno, e os olhos mais rasgados, mas
em essência era ela, a mesma de sempre.
— Patrícia - replicou. Um só olhar bastou para que ela soubesse
que ele não a tinha esquecido.
— Tomamos um café em algum lugar um pouco mais privado?
Voltar a vê-la despertou lembranças em Nick, trouxe-lhe para o
coração a sensação de que vivia no passado, de que sua mãe não
estava morta. Na procura de prolongar essa maravilhosa sequência,
aceitou sair do salão, ser conduzido até um bar e sentar-se a uma
mesa com Patrícia. Pouco depois, estavam casados.
Nick acreditou que tinha tudo: tinha êxito, trabalho desejado, a
mulher que sempre quis. Entretanto, não se sentia satisfeito: esse
acaso era realmente o futuro que sua mãe lhe tinha prometido que
lhe enviaria do céu? Possivelmente a felicidade fora algo que para ele
estava negado, porque não sabia ser feliz. Lutava, sangrava-se,
chegava ao topo, não parecia nada. O círculo que lhe angustiava se
repetia em cada aspecto de sua vida, sem descanso.
Do primeiro dia que Fi encontrou Patrícia em casa de seu filho
postiço, soube que essa mulher não trazia nada de bom entre mãos.
Nick desejava umas bodas pequenas, ela exigiu uma festa de luxo, e
foi concedida. Nick preferia seguir vivendo em sua casa, mas Patrícia
exigiu um piso em Porto Madeiro, e foi dado. Possivelmente pensava
que com a mudança se tiraria Fi de cima, mas não foi assim.
— Quando pensa dizer a essa mulher que já não faz falta que
venha todas as manhãs? - perguntou a Nick um dia na cama.
— Patrícia... - Nick se negava a manter outra vez essa
conversação.
— Diga-lhe que já não necessitamos mais dela neste
departamento.
Patrícia não entendia que para Nick, Fi não era uma faxineira,
não era uma empregada.
— Não posso fazer isso, você sabe.
— Por que não? - manifestou ela. — É tão fraco que não pode
dizer a uma velha que deixe de incomodar!
— Devo muito a Fi, e a amo.
— Ai, sim, Nick! - prosseguiu ela com a brincadeira. — Você
deve isso a meio mundo, sobre tudo a mim.
Nick não respondeu, mas tampouco fez conta. Fi continuou lhes
preparando o café da manhã, indo com ele ao escritório,
encarregando-se da limpeza de sua casa. Com isso, a ira de Patrícia
cresceu ao extremo de ficar olhando fixamente para Fi, com grande
ódio. Não alcançava a entender o porquê, sendo Nick flexível e
manipulável, ela ainda não tinha podido conseguir que se tirasse a
velha de cima.
Seis meses depois do casamento, Patrícia se sentiu aborrecida.
Sempre lhe ocorria em suas relações, que por essa mesma razão não
duravam mais que uns poucos encontros sexuais. Quis viajar e
viajou, enquanto Nick se resignava a seus desejos, se é que ficava
algum, por agradá-la.
Fi sabia muito bem o que passava cada vez que Patrícia ia de
viagem sozinha, mas Nick preferia ignorá-lo. Uma vez tinha chegado
a discutir com Fi para defender Patrícia, com o qual a mulher
compreendeu que Nick não entraria em razões porque não queria
reconhecer que havia se equivocado. Até que não visse sua esposa
derrubando-se com qualquer, um quase como lhe tinha acontecido
aquela vez quando era jovem, permaneceria cego e mudo.
Nick teve que aprender a lutar com seus competidores, sobre
tudo com Horácio Lowenstein, que estava acostumado a jogar
malotes pesados com o objetivo de conseguir projetos grandes e
executá-los. Tinha tomado cobranças com Nick desde que este lhe
tinha arrebatado a ponte sendo um novato; considerava-o perigoso.
Ao mesmo tempo, Nick ia sendo trovado por Patrícia: trabalhava sem
cessar para lhe dar o nível de vida que ela esperava, converteu-se em
um amontoado de tensão que canalizava com seu novo vício: o
cigarro. Nem pensava em ter filhos.
Patrícia adorava a vida social, e entre suas viagens e a
quantidade de horas que Nick passava trabalhando, já quase não
compartilhavam tempo a sós. Fi se dava conta de que ela o tirava de
cima como se lhe incomodasse ou lhe impedisse de viver sua vida,
por isso o evitava fora da cama.
Patrícia nunca falava de sua vida juntos, nunca planejavam
nada. Patrícia vivia o mero presente, adorava a beleza de seu marido
e seu desempenho sexual, podia dizer que era o melhor amante que
tinha tido, sem dar-se conta de que a razão era que ele acreditava
amá-la.
Isso não lhe bastava. Tal como Octávio Larrazábal, Patrícia
Cólon nunca estava de acordo com nada que Nick fizesse. Então Nick
se esforçava cada vez mais por agradá-la, sonhando que ela seria
feliz a seu lado enquanto ela sozinha era feliz em camas alheias. Nick
se exigia até já não ser ele mesmo. Se se tinha convertido em uma
máquina no projeto da ponte, agora era um robô. Parecia preocupado
e triste, fumava todo o tempo, vivia sujeito aos desejos e exigências
de Patrícia. Mas assim não estava sozinho. O trabalho, os caprichos
de sua mulher e os vícios enchiam sua vida vazia de propósitos, vazia
de amor.
Fi tinha terminado por odiá-la. Em lugar de significar a
redenção para Nick, Patrícia tinha sido sua ruína, o novo Octávio
quando ele tinha conseguido deixar ao outro para trás. Para ela, tudo
o que Nick fazia estava mau ou incompleto.
Um fim de semana, Nick se foi de viagem de negócios. Passou
por seu apartamento para despedir-se de sua esposa, mas ela não
estava.
O destino lhe pôs as coisas em claro quando por uma tormenta
o vôo foi cancelado. Esperou uma hora no aeroporto, onde lhe
informaram que não haveria decolagens até o amanhecer, e por isso
retornou para casa para ganhar umas horas de sono.
Um silêncio sombrio invadia o lugar. Nick pensou que sua
esposa dormia, mas ao chegar à habitação matrimonial, encontrou-se
com a ingrata surpresa de que ela armava uma valise. Quando ele
reparou nisso, Patrícia saía do closet carregando uns objetos.
— Nick! - exclamou. Fazia-se evidente que ele a tinha
encontrado fazendo algo que desejava lhe ocultar.
Nick se apoiou no marco da porta, de braços cruzados.
— Meu voo foi cancelado - explicou sucintamente.
— Ah - disse ela em resposta, agitada e com o rosto fechado.
Havia-se posto nervosa. — E até quanto pensa ficar? - perguntou
depois.
Nick, pela primeira vez nesses dois anos e meio de matrimônio,
sem contar os seis meses de preparativos, decidiu não permanecer
indiferente.
— O que se passa Patrícia? - perguntou-lhe aproximando-se
com passo lento e voz pausada. — Não se supõe que uma esposa
apaixonada deveria receber contente de ver que seu marido esteja de
retorno antes do esperado?
Ela se afastou dele dando um prudente passo atrás. Nick não
voltou a aproximar-se e sentou-se na cama.
— O que se passa Patricia? – continuou. — Não é feliz comigo?
— Estou com alguém mais - soltou ela sem piedade, sem
olhares.
A adaga se enterrou em Nick e o obrigou a baixar o olhar.
Respirou fundo para não cometer uma loucura.
— E o ama? - perguntou em voz muito baixa.
— Alguém muito melhor que você - replicou ela. Nick elevou o
olhar aceso de impotência.
— Não te perguntei se ele é melhor ou pior que eu, perguntei-
te se o ama - repetiu cortante, perigoso.
— Basta, Nick! - exclamou ela, molesta. — Você nunca me deu
nada. Nem sequer me deu o gosto de que essa velha deixasse de
invadir nossa intimidade.
— Esta se referindo a Fi?
— É obvio que me refiro a Fi! - ele franzia a sobrancelha. Ela
aproveitava para magoá-lo e ia deslizando o fecho da mala pelo
trilho. — É tão patético. Nem sequer sabe dançar!
— Deixei de dançar porque cada vez que o fazíamos se
envergonhava de mim - recordou-lhe ele com incredulidade. Não
podia acreditar que ela o estivesse acusando de que tinha provocado.
— Tenho muitos motivos mais para sentir vergonha de você!
Nick ignorou esse comentário que só pretendia desviar a
conversa do tema principal: o outro homem.
— E quem é? - perguntou.
— Quem é quem? - ela pretendia fazer-se de desentendida. Ele
não o permitiu.
— Seu amante. Conheço-o?
— Me deixe em paz, Nicolas.
— Conheço-o? - repetiu ele, tentando conservar a calma.
Patrícia recolheu a valise e tentou avançar, mas Nick a impediu
que se movesse colocando-se diante de seu caminho.
— Vou embora.
— Isso já o notei – seguiu. — Pensava me deixar assim, às
escondidas, se evadindo como quando éramos namorados?
— Eu nunca te disse que era sua namorada.
— Mas sim disse que queria ser minha esposa - recordou-lhe
antes de recordar a si mesmo que não queria perdê-la. Não podia. —
Amo-te, Patrícia, amo-te - assegurou com frieza.
— Mas isso não é suficiente, já lhe havia dito isso - replicou ela
em tom soberbo. — Necessito um homem competente, Nick.
— Antes me disse que me deixava porque necessitava um
homem solvente - recordou-lhe ele. — Agora o sou, certo? Também
disse que queria um homem independente, vai me dizer que não o
sou?
— Horácio é muito mais que você.
— Horácio? - repetiu ele semicerrando os olhos. — Horácio
Lowenstein?
— Aborrece-me, Nick - espetou ela, seguindo com seus atos de
crueldade. Ferir a fazia sentir viva, amada. — Aborrece-me muito
porque é muito chato. Sempre sério, sempre trabalhando como se
não tivesse empregados.
— Posso te perdoar, Patrícia - interrompeu-a ele ignorando tudo
o que lhe dizia. Entretanto, não repetiu as súplicas que fez há anos.
Falou com frieza, como se estivesse fechando um negócio. — Perdôo-
te.
Isso a desesperou. Nick não suplicava, mas lhe disse que a
perdoava. Ela não queria seu perdão, queria... o que queria em
realidade? Não sabia com exatidão, mas sem dúvida não um perdão,
como ele se equivocou.
— Não te estou pedindo desculpas! – falou.
— Quer me deixar? - interrogou Nick sem mover um milímetro.
— Por quê? Quero dizer, por que me deixava às escondidas?
Ela o enfrentou.
— Porque é perigoso, por isso – disse. — Porque fica violento e
tenho medo.
— Violento? - Nick franzia as sobrancelhas. Era a desculpa mais
estúpida que jamais lhe tinha dado.
— Quando eu me ponho violento? Vai dizer-me quando se
passou isso? Quando te encontrei beijando com esse tipo do bar faz
anos?
Patrícia voltou a tentar se esquivar para ir-se, e ele outra vez se
interpôs, sem tocá-la.
— Não te suporto, Nicolas! - gritou ela com ódio feroz, como se
fosse Nick quem lhe estava fazendo mal. — Não suporto seu passado,
não suporto a sua babá, não suporto a vergonha que me faz sentir.
Necessito um homem, não um menino!
Nick inspirou fundo e tremeu de impotência. A teria matado, a
teria matado para que fosse só dele, para que o amasse, para que
não o deixasse sozinho e abandonado como uma vez o tinha deixado
sua mãe, mas em troca só saiu do caminho e se sentou sobre a cama
que já não compartilhariam como um peso morto.
— Amo-te - disse com os olhos fechados, procurando os dela,
secos como um deserto. — E te sou fiel até a morte.
Patrícia não respondeu, nem sequer se voltou para olhá-lo,
consolá-lo ou lhe dizer nada. Saiu da habitação e poucos segundos
depois, Nick escutou fechar a porta de entrada.
Liberar-se de repente da extrema pressão a que se viu
submetido nesse último tempo causou estragos a Nick. Primeiro se
sentiu culpado, mas ao receber a citação de divórcio e ver aparecer
as primeiras fotografias de Patrícia e seu pior competidor, Horácio
Lowenstein, juntos nas revistas, um profundo rancor lhe invadiu a
alma. Tinha sido enganado duas vezes e quem sabia quantas mais
por uma mulher, a mesma pela qual não tinha olhos nem coração
para nenhuma outra. Nick se tinha fechado aos sentimentos, porque
esse era o único modo que tinha encontrado para não sofrer.
Construiu uma vida como construía pontes e edifícios, formou
uma couraça de ferro com incrível rapidez. E embora soubesse que a
única capaz de vencê-la seria sempre Patrícia, pouco a pouco se
resignou a deixá-la ir.
A partir de então, Nick demonstrava que era um desgraçado,
um cínico e um Dom Juan com quantas mulheres parecidas com
Patrícia cruzasse por diante. Jamais havia tornado a tomar a
nenhuma a sério, todas eram iguais para ele porque assim as elegia:
capazes de ser compradas. No fim de contas, não havia mulher
dessas que escolhia que não procurasse seu atrativo físico, seu
dinheiro ou sexo.
Nesses cinco anos que tinham estado divorciados, Patrícia tinha
voltado para sua cama algumas vezes, todas com o objetivo de aliviar
o aborrecimento que experimentava no sexo com o Horácio
Lowenstein, seu segundo marido. Embora Nick conhecesse estas
razões e era consciente de que ela não o amava, acessava porque ele
se convencia de que a amava e por isso a necessitava. O sexo com a
Patrícia era como voltar a respirar depois de fazer vãos intentos por
ingressar nos pulmões ínfimas partículas de ar.
Nesse tempo, raras as vezes que dormia em sua casa, porque
para dormir com suas mulheres utilizava o quarto do hotel. Por isso Fi
já não ia com ele para o escritório, tinha que fazê-lo sozinha, e
embora o ritmo de vida acelerado e superficial que ele levava a tinha
preocupado, compreendia-o e preferia vê-lo desse modo antes do que
sofrendo como o tinha feito pela perversa e egoísta Patrícia Cólon.
Nick queria amá-la e lhe seria fiel até a morte, tal como lhe
tinha prometido, porque ao dizer isso Nick não falava de sexo. Falava
de amor.
Capítulo 16
E chegou o dia do desembarque do Paradise, Nick esperou o
chamado de Lavínia toda a semana. Sua amiga se havia sentido
ofendida pela oferta de dinheiro em roupa e ele não tinha sabido
explicar suas intenções, mas mesmo assim acreditava que ela devia
perdoá-lo. Sua mãe sempre o perdoava, Fi o perdoava, por que não
podia fazê-lo também Lavínia?
Embora estivesse ocupadíssimo com o trabalho atrasado, igual
a ela, não deixava de pensar nessa mulher que sofria como já o tinha
feito ele, só que agora ele tinha a culpa.
Equivocou-se com a Lavínia, não entendia como lhe tinha
ocorrido levá-la para a cama se ela não era como todas as demais,
não sabia o que lhe tinha passado para equivocar-se tanto ou para
não ter podido conter-se. Esse era o problema, nunca outra mulher
que não fora Patrícia tinha despertado nele um sentimento, um
desejo irrefreável de passar tempo com ela.
Mas Patrícia era a mulher de sua vida, a que devia ocupar o
lugar de esposa. Fi o de mãe, Pablo o de seu melhor amigo... Lavínia
o de sua amiga. Tinha-lhe devotado isso porque não a queria longe,
necessitava-a perto porque lhe fazia bem, mas não podia lhe dar
mais.
Apesar dos cálculos de Nick, Lavínia não chamou. Nick esteve a
ponto de discar seu número várias vezes, mas em todas desistiu. Ele
já tinha feito sua parte, havia dito a ela que eram amigos, muito mais
do que qualquer um podia esperar lhe ouvir dizer. Tinha aberto o
círculo para alguém mais depois de havê-lo mantido fechado durante
muitos anos, inclusive lhe tinha confessado alguns segredos de sua
alma, embora com cautela, com certo hermetismo, porque sabia
muito bem que abrir o coração sempre fazia danos. Era ela quem
tinha que ligar, e se não o fazia, estaria desprezando sua amizade e
sua entrega, valentia que tinha demonstrado ao lhe confiar algo.
À medida que passava o tempo sem que Lavínia ligasse, tratou
de convencer-se de que não lhe importava que o fizesse. Fez uso de
sua couraça protetora, tão efetiva com o resto do mundo, mas logo
alcançou a cobrir com ela uma porção do vazio que sentia ao saber-
se traído de novo. Além disso, sentia-se culpado. Com Lavínia sim
tinha sido um desgraçado, e embora sempre tivesse acreditado que
levava isso nos genes graças a Octávio, por culpa da parte que
correspondia a sua mãe resultava impossível não reconhecer que se
equivocou e que tinha ferido Lavínia injustamente.
Lavínia, por sua parte, se propôs a se afastar de Nick e
desterrar a sua vida. Ele não era homem para ela, jamais poderia
amar a alguém frio, insensível e carente de afeto. Não era o que tinha
demonstrado a noite que tinham passado em seu quarto, mas era o
que ele queria que todos acreditassem, e se era o que desejava, lhe
daria o gosto. Não havia lugar para ela em sua vida despreciada, em
seu corpo formoso, nesse coração de gelo, e Lavínia não queria
migalhas. Não queria sua lástima.
Dois dias depois de ter abandonado o Paradise, um empregado
de um correio privado golpeou a porta de sua casa e lhe deixou sua
valise, a que tinham perdido os empregados de Nick.
— Bem a tempo - brincou ela. O homem pensou que falava a
sério.
Os dias que seguiram ao desembarque, Nick se transformou em
um chefe ocupadíssimo e em um professor mal-humorado,
acreditando que só existia uma razão pela qual Lavínia não o ligava, e
essa razão era o aluno que lhe tinha falado dele a Lavínia e que agora
tentava fundir a moderna tecnologia de um hospital com a história e
a arte de um edifício histórico da cidade.
— Não - disse-lhe Nick cruamente. — Em lugar de um hospital,
parece um centro comercial. Se isso for o que vai apresentar, não me
faça passar vergonha e melhor espere outro quadrimestre que deve
ver se lhe esclarece que isto é o último ano, não um berçário. Não me
faça perder mais tempo. Quem segue?
Assim, o moço passava suas noites desenhando, enquanto Nick
pensava em Lavínia e fazia amor com todas as mulheres que
encontrasse disponíveis.
— Não - disse-lhe na classe seguinte. — Agora o centro
comercial tem uma galeria de arte. Não lhe repetirei o que já lhe
disse. Quem segue?
Tomas não conseguiu compreender seu admirado professor até
que a este lhe escapou uma indireta.
— Sua namorada lhe deve ter recomendado isso que fez neste
ponto - assinalou o plano. — É evidente que ela nada sabe de
circulações, porque se você puser uma coluna aí...
— Mi... namorada? - indagou o moço, preocupado e confundido.
Nick elevou o olhar. Que não pretendesse fazer-se de
desentendido com ele, que para algo tinha mais idade que todos
esses rapazes.
— Como está ela? - sorriu com ironia. — Contou-lhe como
passou em meu cruzeiro?
— Desculpe?
— Lavínia - pronunciou Nick entre dentes - lhe deu a ideia de
unificar história e tecnologia, certo?
— Lavínia? - repetiu o menino, antes de defender. — A ideia é
minha! Você sabe disse: isso da arte e a razão. Porque eu sou
escultor... presto-lhe atenção.
— Siga trabalhando - repreendeu-o Nick, acreditando que tinha
confirmado suas suspeitas. — Não pense que se obtém um bom
projeto dedicando-se a ele apenas uma hora por dia.
O menino não devia dormir fazia semanas, Nick sabia, mas não
podia com seu mau gênio. Estava exigente e crítico com todos, mas
muito mais com Tomas e consigo mesmo.
Na quarta-feira da terceira semana depois do desembarque,
Lavínia viu Tomas saindo de um McDonald's com dois ou três amigos.
Estava pálido e cansado, como se se tivesse mantido com esse tipo
de comidas durante muito tempo.
— Tomas ! - chamou-o.
Todos voltearam. O aspecto dos outros não distava muito do
que tinha o moço, mas a ele algo parecia atormentar de modo
distinto.
— Não quero falar com você - espetou-lhe o menino - muito
menos que nos vejam juntos.
Lavínia riu, sem poder acreditar o que escutava.
— O que? – perguntou. — Por quê?
— Ainda pergunta! - exclamou ele. Lavínia coçou a cabeça.
Sorria.
— Não te entendo, sério - replicou.
— Vou muito mal, Lavínia - respondeu o menino. — Tenho que
te ignorar se não quiser que vá muito pior.
Lavínia não sabia o que pensar. Ficou séria e preocupada.
— Do que fala? – perguntou. — Me explique algo pelo menos,
por favor.
Tomas suspirou. O notava esgotado.
— Do Hagen, de que mais poderia estar falando?
— O que há com ele?
— Vamos, Lavínia! Não sei o que lhe haverá dito, mas me está
pondo louco. Está-me matando. Acredita que estamos saindo, ou algo
assim, e está ciumento ao ponto de jogar por terra tudo o que faço -
Tomas dizia, inclusive, temeroso. — Nunca reprovei em nada e não
vou fazê-lo porque você tenha dito que é minha namorada.
As palavras surpreenderam a Lavínia ao ponto de lhe fazer
entreabrir os lábios.
— Como pode pensar que eu lhe disse algo como isso! -
exclamou indignada. — E de onde pôde ter tirado essa ideia?
Lavínia não tinha ideia da fonte de informação que tinha
mentido a Nick em relação a sua relação com seu aluno, embora não
lhe interessava absolutamente. O único que lhe importava era pôr os
pontos nos is com esse sádico malcriado.
— Tampouco pode acreditar que de verdade Nick está ciumento
de mim – concluiu. — É orgulhoso e cínico, nada mais, e se merece
ser aprovado, Nick te vai passar, dou-lhe minha palavra.
Na quinta-feira pela manhã, Lavínia entrou no edifício de
escritórios de Nick e se aproximou dos empregados de segurança que
controlavam a entrada.
— Bom dia! - saudou-os. — Vou ao piso da Hagen e Associados.
Vestia um original conjunto de saia e casaco azul marinho,
combinados com uma camisa branca e sapatos negros de salto.
Levava o cabelo solto como chuva sobre os ombros e as costas em
cascata dourada. Seu rosto belo e angélico estava maquiado com
cores suaves, parecia que ia a uma entrevista de trabalho e essa era
a intenção. Sabia que de outro modo não conseguiria chegar a Nick.
— A recepção está no piso dezesseis - indicou a mulher do
dueto de segurança.
Enquanto isso, Lavínia tinha observado o pôster detrás dos
empregados. Nele estava escrito que os últimos quatro pisos
correspondiam a Construtora Hagen e Associados, de modo que se no
primeiro deles se encontrava a recepção, Nick, como todos os
presidentes de algo, teria escolhido o último, o de mais difícil acesso
e o de vista mais chamativa. Era uma dedução, possivelmente nem
sequer fosse real, mas valia a pena correr o risco.
Agradeceu e se encaminhou ao elevador. Marcou o número
vinte, embora subtraíssem dois mais, correspondentes a pisos que
não se alugavam porque eram o salão de usos múltiplos e o terraço,
e esperou.
Quando as portas se abriram, encontrou-se com uma vista
indescritível da cidade. Tudo ao seu redor estava vidrado, exceto a
parede da frente, revestida em madeira muito clara, e a da esquerda,
onde havia duas portas mais que conduziam a distintos salões de
reuniões, ou ao menos isso dizia os pôsteres de vidro que os
decoravam. As luzes não estavam acesas, o sol que entrava pelas
janelas bastava para iluminar o escritório no que uma mulher de ao
menos sessenta anos escrevia.
Fi elevou o olhar em seguida. A imagem de Lavínia a deixou
dura pela surpresa.
— Como chegou aqui? – perguntou. — Ninguém me avisou que
subiria.
— Sei - admitiu ela. — Estou procurando o senhor Hagen. É
este seu setor?
— Tem que anunciar-se na recepção.
— Sei.
— E o fez?
— Tanto você como eu sabe que não o fiz, e se tivesse feito,
jamais teria chegado aqui - replicou Lavínia apelando à honestidade
da mulher. Enquanto falava, tinha caminhado para ela até deter-se
frente a sua mesa. — Agora, acredito que poderia dizer ao Nick que
aqui se encontra Lavínia Dickinson. Serei muito breve, prometo, não
roubarei muito de seu prezado tempo.
— Entendo - disse Fi com ar pormenorizado. — Você é a... - e
recitou seu número de telefone. Sabia de cor. Lavínia ficou atônita.
— S... sou - balbuciou com o cenho franzido.
Fi lhe respondeu com um sorriso sereno. Em seguida lhe
avisou: — Por favor, sente-se.
Fi compreendeu com essa única olhada que tinha jogado a
Lavínia, as razões pelas quais Nick tinha inabilitado e logo habilitado
seu número. Ela não era como as demais. Era delicada, humilde, nem
por acaso rica como as outras. Sensível, profunda, teimosa igual a
ele, mas sem couraça.
Lavínia se sentou nas poltronas que se achavam perto das
portas que conduziam aos salões de reuniões, na parede oposta a
quão vidrada estava detrás da secretária.
— Senhor Hagen - escutou Lavínia que a mulher dizia ao
microfone do telefone.
— Encontra-se aqui a senhorita Dickinson e deseja vê-lo.
Nick sentiu que o coração lhe dava um tombo. Uma alegria
súbita e inacreditável se apoderou de seu rosto, após dias rígido e
carrancudo, que relaxou de repente. Entretanto, semicerrou os olhos
e recordou que Lavínia o tinha mantido à margem durante três
eternas semanas. Quem se acreditava para voltar agora como se
nada tivesse acontecido?
— Diga- lhe que vai ter que esperar - respondeu com o tom
mais frio e modesto que pôde encontrar, e cortou.
— Vai ter que esperar - repetiu Fi, obediente.
— Não há problema - replicou Lavínia com um sorriso amável, e
se fez silêncio.
Nick desejava ver Lavínia, cravava-lhe a curiosidade por
descobrir o que trazia ela entre mãos, por saber para que tinha
reaparecido, e além disso tinha medo de que se fartasse de esperar e
desaparecesse. O desejo por sair a seu encontro picou dentro dele,
mas o enterrou como se esmaga a uma mosca. Ela o tinha feito
esperar três semanas, era justo que ele se cobrasse vingança
fazendo-a esperar também. Lastimava que não pudesse deixar
acontecer semanas.
Enquanto isso, Lavínia tomou uma revista de arquitetura das
tantas que havia em um móvel junto às poltronas e começou a
folhear sem apuro. Não era consciente de que Fi a observava com
atenção, sem poder lhe tirar os olhos de cima embora tentasse
dissimular movendo as mãos sobre os papéis.
Mas que mulher peculiar! Pensava a secretária. Lembrava-se
dela, de sua voz e de seu número: era a que tinha chamado para
pedir desculpas a Nick. Achava-se por completo concentrada na
leitura e não tinha uma só gota de irritação ou modéstia porque Nick
a fizesse esperar. Estava segura de que ele o fazia de propósito, não
acreditava que estivesse fazendo algo tão importante para não
recebê-la um momento, se nem sequer estava em uma reunião ou
atendendo um chamado telefônico. Ao cabo de meia hora, Fi esteve a
ponto de entrar e ralhar com Nick pelo abuso que estava cometendo
com aquela senhorita, mas em troca falou primeiro a ela.
— Parece que está muito ocupado - comentou a secretária.
— Assim parece - respondeu Lavínia esboçando um breve
sorriso de resignação. Uma vez que tinha chegado até ali, nada a
deteria até ver Nick. Podia ser essa a única possibilidade que tivesse
para fazê-lo. Não lhe importava esperar, sempre que aparecesse. Os
seguintes dez minutos, Lavínia não separou os olhos da revista. De
repente, a porta do escritório de Nick se abriu de par em par.
— Diga ao Pablo que se comunique com o Esteban para os
detalhes do projeto da rua Esmeralda - ressonou sua voz.
Fi olhou-o com um olhar reprovador que Nick compreendeu
muito bem. Ele não tinha saído para lhe dar uma ordem que bem
podia lhe dizer por telefone, a não ser para demonstrar a essa pobre
e formosa moça que não tinha tempo para ela. Nick clareou a
garganta, incômodo pelo olhar de Fi, e decidiu voltar para os
assentos.
— Ah - fingiu indiferença - siga-me por aqui.
Lavínia se tinha posto de pé e olhava Nick com o objetivo de
não o perder de vista, agora que ele se dignou a sair de sua guarida.
— Necessita que lhe espere um pouco mais? - perguntou com
doçura e até com compreensão. Sabia bem que Nick a estava fazendo
esperar de propósito, mas não se importou. Diante dele se dava
conta de que jamais poderia esquecê-lo.
— Tomará muito tempo o que viestes dizer? - Lavínia se
surpreendeu ao dar-se conta de que ele já não soava indiferente, a
não ser modesto, possivelmente até magoado. E será que estava!
Abrira-lhe seu coração e não lhe devolvia o gesto sequer com um
chamado.
Fi também se surpreendeu por isso. Nick experimentava um
sentimento frente a alguém do grupo de seres humanos que não lhe
importavam um sentimento tão profundo que o levava a fingir-se
indiferente quando se notava com facilidade que se sentia ferido.
Ferido e zangado! Não o tinha visto zangado por algo em anos.
— Não - replicou a senhorita que o feria. — Se nos
entendermos rápido, pode tomar muito pouco tempo.
Nick assentiu com dureza e lhe indicou o caminho para seu
escritório. Lavínia o seguiu, e uma vez que ela estava dentro, ele
fechou a porta. Fi ficou olhando a porta de madeira que lhe impedia
de seguir escutando.
— Pode se sentar, se quiser - ofereceu Nick de mau humor,
embora conservasse sempre seu cavalheirismo inato.
— Não vai fazer falta - replicou Lavínia do outro lado do
escritório - vim esclarecer algo somente.
Ante a negativa de Lavínia, ele se sentou e cruzou os braços.
— Assim quer que esclareçamos algo – repetiu. — Desaparece
quase um mês, nem sequer me liga, e ressuscita uma manhã sem
razão para "esclarecer algo".
Nick se amaldiçoou internamente por ser tão estúpido. Por que
lhe reclamava, como se lhe importasse? Tinha que controlar-se,
fingir-se indiferente, de bom humor, como sempre o punham as
insólitas recriminações de suas amantes. Mas Lavínia não estava
recriminando nada, nem sequer que a tinha feito esperar de
propósito.
— Tampouco parecia muito interessado em que te chamasse -
replicou Lavínia com dignidade.
— As vezes que te chamei antes, acreditei que era um número
bloqueado ou algo do estilo.
Nick semicerrou os olhos e apertou a mandíbula. Como ela não
entendia a diferença entre essas outras vezes e a do navio? Como
não o compreendia apropriadamente sem que ele tivesse que
explicar-se?
— Disse que somos amigos - respondeu entre dentes.
— E eu não te disse isso, mas sua pena não me basta -
respondeu Lavínia com fúria reprimida. — Se não te voltei a chamar é
por isso, não por Tomas nem nenhuma outra fantasia que te asseguro
foi retorcida na mente do menino malcriado. Assim deixa-o em paz.
Os olhos de Nick não eram de gelo, eram de fogo, ardiam de ira
pelo que Lavínia lhe espetava à cara e porque não podia ficar de pé,
apanhá-la entre os braços, beijá-la e lhe lançar ele também todas as
verdades que lhe engasgavam nas mandíbulas apertadas.
— Que classe de professor, misturando seus problemas pessoais
e egoístas com o trabalho, arruinando a carreira de um estudante
excelente? - continuou ela sem medo nem piedade. Que piedade
podia sentir por um idiota insensível que só existia para transtornar a
vida dos outros? — Não estou saindo com Tomas, Nick, nem sequer
somos amigos. Só nos vimos uma vez em uma discoteca e ontem
pela rua, mas o pobre não queria nem aproximar-se de mim por
causa do leão faminto no que te transformou. Já lhe disse isso uma
vez, direi isso pela segunda, mas não haverá a terceira: nos faça um
favor a todos e me deixe em paz.
A dor sulcou os obscurecidos e entrecerrados olhos de Nick
assim que ela se deu a volta e começou a caminhar para a saída.
Estava-o deixando. Abandonava-o. Nick prometeu que não ia segui-
la. Não o faria, não! Não lhe importava e era a perversa prostituta
que ousava desprezar o presente mais valioso que ele tinha dado a
uma mulher, depois de Patrícia. Rechaçava sua confiança, ignorava
sua amizade, e isso era imperdoável.
Entretanto, queria gritar. Mas o que gritaria? Como ia gritar o
não tinha ideia do que se agitava em seu peito cada vez que a via, ou
quando ela, com sua dignidade de ferro, demonstrava-lhe em seus
olhos que o amava enquanto com a voz lhe dizia que era um
desgraçado?
Lavínia abriu a porta do escritório, não se incomodou em fechá-
la e avançou até o elevador ante o atento olhar de Fi, que não se
perdeu o instante em que ela apertou o botão de chamada e ficou ali
de pé, esperando que o cubículo aparecesse frente a seus olhos.
Tão pouco se alterou no momento em que Nick saiu de seu
refúgio dando largas pernadas como uma fera enjaulada. Hipnotizado
por seu objetivo, passou diante do escritório de sua secretária até
ficar atrás de Lavínia e assentar com força descomunal a palma da
mão na porta chapeada do elevador.
— Disse que somos amigos - repetiu entre dentes, em
sussurros sem poder dizer nada de tudo que lhe cruzava pela mente
e pelo coração. Nick se tinha fechado à comunicação e aos
sentimentos, e estes estavam fazendo estragos nele ao que parece
assim, de improviso, sem que se achasse preparado para enfrentá-
los.
— E depois me disse que eu era diferente de suas outras
amiguinhas porque sou pobre - replicou Lavínia sem dar a volta. —
Isso não se diz a uma amiga, Nick, nem se esfrega uma passagem
em seu bruto cruzeiro, nem se cala seu coração culpado com um
pouco de roupa de marca.
Fi abriu a boca como se estivesse a ponto de comer, mas só
mastigava surpresa e sem ar.
— Como é isso - resmungou ele em voz tão baixa que Fi não
alcançou para escutá-lo. — Têm que saber que não importa quão
pobre é.
Nick falava tão bem de projetos arquitetônicos frente a
centenas de pessoas que ninguém teria apostado que nesse
momento não tinha ideia de como dar-se a entender. Não sabia
explicar que não lhe tinha dado o vale por piedade nem porque
tentasse comprá-la. Não lhe tinha devotado sua amizade porque se
sentisse culpado nem porque quisesse somente sexo dela. Mas
também queria sexo dela! Por Deus, queria tantas coisas!
— Não, claro. Todas as vaginas são iguais - replicou Lavínia sem
lhe importar se a mulher mais velha escutava nem se Nick
interessava ou não o que lhe dissesse.
A porta do elevador se abriu e Lavínia entrou sem que Nick
subtraísse forças para mover-se. Ficou de pé diante da abertura,
suspenso, com o sangue lhe fervendo nas veias e as palavras
cravando-se como aguilhões na garganta.
Lavínia não permitiu porque os olhos de Nick expressassem
tortura. Tinha-os visto enterrados no piso do elevador quando tinha
tido que dar a volta para pressionar o botão que a levaria de retorno
ao andar de baixo.
Nem bem a porta se fechou, Lavínia se respaldou no espelho e
cobriu a boca com as mãos. Os olhos se encheram de lágrimas que
não demorou em derramar. Amava Nick, estava apaixonada! Por isso
se sentia tão estúpida e tão assustada de ter que lhe gritar todas
essas coisas, tanto que teria retornado sozinha para assegurar-se de
que em realidade não o tinha ferido. Não o fazia, verdade? Se a Nick
nada importava dela, nem de suas amantes, nem da gente em geral.
Nick era duro, soberbo, mal intencionado. Quem podia lhe importar
suas grosserias ou seus insultos?
Nick ficou de pé diante do elevador ausente dois, três minutos,
até que se voltou e com a mesma lentidão com a que tinha feito esse
movimento se internou de novo em seu escritório. Fechou a porta tão
devagar que não se escutou o som do trinco.
A sós, primeiro tentou refugiar-se no ressentimento. Quem se
achava essa moleca para lhe dizer o que tinha que fazer ou para
julgá-lo como professor ou pior, como pessoa? Não era mais que uma
caprichosa a quem gostava e desejava possuí-la para logo afastar-se
sem lhe dar nada em troca.
Conforme passaram as horas e chegou a noite, o ressentimento
mudou para medo. Medo de que não tivesse vontade nem ânimo para
ir às putas, nem para provar a sorte com as mulheres do bar, nem
para encher o vazio de sua existência a custa do sexo.
Foi para a cama, mas não pôde dormir. A insônia o consumiu
toda a madrugada, vingou-se dele fazendo ressoar uma e outra vez
as palavras de Lavínia, seus olhos feridos e amorosos, sua voz digna
e humilde.
"Não, claro. Todas as vaginas são iguais". Lavínia pensava que
era isso que significava ela para ele: sexo, um passatempo que lhe
tinha saído um pouco mais caro que os outros porque lhe havia
oferecido uma amizade.
Merda! Por que a tinha machucado tanto? Por que se tinha
confundido com ela? Por que se machucavam...? Se necessitava estar
perto, por que a afastava?
Não a tinha elegido, recordou-se. Tão somente lhe cruzou no
caminho e não pôde controlar sua sede dela, enquanto que às demais
as tinha escolhido com serena vontade.
Fumou um maço de cigarros até que descobriu com pesar que
não podia suportar que Lavínia acreditasse que era um desgraçado.
Jamais lhe tinha importado e até gozava com que o fizessem as
demais, mas ela não. Não queria ser para Lavínia um ser
inescrupuloso e vazio, insensível, infiel, incapaz de amar alguém. Um
ser como Patrícia, um ser como Octávio. Nick reconheceu que isso era
no que se converteu e que Lavínia... Lavínia tinha sido sua vítima,
como ele foi a vítima de sua esposa e sua mãe a de seu pai. Então se
sentiu mais morto que vivo.
— Hei, Nick! - saudou-o Fi quando entrou na cozinha com duas
bolsas cheias de mercadoria. Surpreendeu-se tanto de que Nick
amanhecesse em sua casa que lhe assentou uma mão sobre a frente
para comprovar que não tinha febre. — Está doente? - perguntou. Ele
negou com a cabeça enquanto fumava um cigarro.
A resposta era óbvia, ele alguma vez adoecia?
— O que faz aqui? - continuou a mulher. — E fumando a esta
hora da manhã! - Fi lhe arrancou o cigarro dos lábios e o atirou na pia
de lavar os pratos. Nick a observou da mesa, elevando os olhos
porque a cabeça a deixava encurvada. Ela cruzou os braços antes de
continuar: — O que aconteceu?
— Nada - respondeu ele com um tom de voz baixo e pausado.
— Mmm... - duvidou Fi. — Resulta evidente que têm um grave
problema com uma loira.
Nick sorriu, meneou a cabeça de um lado ao outro e extraiu
outro cigarro do pacote. Fi lhe golpeou, firme, mas doce, a mão.
— Quantos têm fumado? - exigiu saber. — Certo que ainda não
dormiu em toda a noite.
— É o costume - replicou ele. Ela riu.
— Prepararei o café da manhã, como nos velhos tempos.
Lembra?
Nick sorriu.
Passou a sexta-feira no trabalho e com o passar do dia
prometeu que essa noite sim iria às putas. Não lhe desejava muito
uma prostituta, ia ver sorte no bar com alguma mulher que lhe
recordasse que todas procuravam o que ele estava disposto a dar.
Entretanto, chegada a noite, voltou para sua casa, tal como tinha
feito na quinta-feira. Desta vez, a falta de sono do dia anterior lhe
jogou uma boa passada e logo dormiu.
No sábado passou percorrendo obras e controlando projetos até
às seis da tarde. Ao retornar a casa encontrou-se com Fi que tinha
preparado o traje que usaria essa noite para a inauguração do Centro
Médico. Não podia faltar, era o engenheiro que tinha construído essa
maravilha que todos admirariam com o qual ele mesmo se sentia
admirado, mas com o traje em uma mão e a honestidade na outra,
reconheceu que não tinha ânimo de ir. Estava acostumado a gostar
das reuniões sociais porque ali conhecia muita gente nova, também
muitas mulheres, e falava trivialidades com todo mundo. As pessoas
o admiravam, surrupiavam-lhes informação, criticava-o nas suas
costas. E ele os observava fingindo-se um deles, mas sabendo quais
eram seus movimentos exatos.
Esse traje que jazia sobre a poltrona de passagem de seu
quarto representava todo mundo superficial e vazio que tinha
construído a seu redor, esse no que ele se sentia tão cômodo porque
não lhe pedia nada verdadeiro a mudança, mas de uma vez tão
ausente.
Conhecia-o muito bem, muito melhor que outros que o
formavam, porque ele tinha sido um observador fazia muito tempo,
em uma época que se esforçava por enterrar na memória. Eram
esses tempos, entretanto, a única verdade que Nick levava em sua
alma.
Não queria voltar para um mundo superficial. Algo o tinha
reencontrado com sua mãe, com seu sofrimento por causa de seu
pai, com o estudante tímido que tinha sido, e não queria deixá-lo ir.
Quem era ele? Por que não podia combinar ambos os mundos?
Às dez da noite, jazia sobre sua cama, observando o forro do
teto do quarto. Não tinha acendido a luz, tudo o que tinha era a
claridade que entrava pela janela apesar dos cortinados fechados. A
fumaça do cigarro saiu lenta e preguiçosa de sua boca, estendeu-se
em uma nuvem que lhe impediu de ver a sombra do abajur do teto
projetada no branco da pintura.
Então se ergueu como impulsionado por uma força inesgotável.
Apagou o cigarro no cinzeiro que sempre tinha ao lado da cama,
abarrotado de cinza e bitucas, e se dirigiu à poltrona. Tomou o traje
envolto em um náilon transparente, estudou-o um momento e o
deixou cair como se fossem os últimos objetos que usaria no mundo.
Capítulo 17
Lavínia adicionou ao desenho de uma odalisca uns tecidos mais
largos. Queria que seus trajes para a amostra do Instituto de Danças
tivessem mais movimento e cor para que se distinguissem de outros
e pensava consegui-lo com acrescentados originais. Pintava os novos
traços de vermelho quando ressonaram três golpes à porta.
Desligou a música que provinha baixa do rádio e olhou a hora.
Às onze da noite. Aproximou-se com passo lento à porta, temendo se
tratasse de um ladrão, que não eram escassos no bairro.
— Quem é? - perguntou. Ninguém respondeu. — Não tem graça
– reclamou. — Fale ou chamo a polícia.
— Sou eu.
O rosto da Lavínia se converteu em pedra. Ficou pálida e lhe
tremeram as pernas. A voz era suave, serena, pacífica, mas era a voz
dele. Ainda era a voz de Nick. Então abriu a porta de par em par.
Ele tinha um antebraço apoiado no marco da porta e a frente
sobre o dorso da mão. Lavínia se encontrou com seu atrativo rosto
levemente inclinado para baixo, mas os olhos elevados para cima,
estudando-a. Era seu traje. Nick levava o traje que ela tinha
confeccionado com suas próprias mãos e não um smoking!
— Estava saindo para uma reunião social, mas tive um
problema com um botão de seu casaco - disse ao tempo que estendia
a mão livre com o botão na palma. — Perguntava-me se podia
costurá-lo e em pagamento aceitar que te leve a festa.
Lavínia não recordava como se fazia para respirar. Tinha a boca
aberta como um peixe sem que o ar pudesse encontrar o caminho até
seus pulmões. De repente ele franziu o cenho, tinha passado a
preocupação.
— Têm algo para vestir? - adicionou com o mesmo tom de voz
suave. — Porque se não tiver nada, então nenhum dos dois irá a uma
festa. Ficarei aqui, com você. Posso passar um pouco de tempo com
você, Lavínia? Um pouco... nada mais.
Lavínia ainda estava muda, com a boca entreaberta e os olhos
como pratos. Ao fim colou os lábios e deixou escapar o último resto
de ar que ficava.
— Sim – disse. — Sim tenho - esclareceu. De repente tinha
esquecido o vocabulário, mas com uma palavra respondia ambas as
perguntas.
— Entre.
Nick não esperou que Lavínia insistisse. Entrou no apartamento
e ficou ali parado até que ela fechou a porta, trancou com a chave e
voltou a olhá-lo nos olhos.
Muito tinha trocado. Para começar, Nick já não estava
acelerado, nem forçava um olhar implacável. Tampouco pretendia
levar o mundo por diante.
— Eu... - balbuciou ela sem saber bem o que dizer. — Têm um
momento?
— Estou chegando bastante tarde, mas sim, é obvio que tenho
um momento – replicou. — Muitos momentos para você.
Lavínia não entendia nada. Depois de haver-lhe insultado e
recriminado que era um mau professor e um mau homem, ele vinha
procurá-la e lhe dizia todas essas coisas sem um desejo sexual. Ou
com muito desejo sexual, mas sem que as palavras fossem algo
superficial nem uma armação para a conquista. Eram palavras reais,
eram palavras saídas do coração. Por isso sorriu.
— Que bom - disse. Quase ao mesmo tempo se sentiu
abruptamente envergonhada. — Desculpa a desordem - desculpou-se
ao ver os desenhos e tecidos estendidos sobre a mesa, os retalhos
dispersados pelo piso.
— É que você não viu meu apartamento ainda. Se não fosse por
Fi, tampar-me-ia com lixo. Tampa-me a minha caminhonete.
— Fi? - indagou Lavínia, ainda sem poder acreditar a
conversação que mantinham. Não lhe ocultava nada.
— Fi, minha secretária, a mulher que conheceu em meu
escritório.
— Ah, sim - assentiu ela, conforme. Mas ele não ficou calado.
— Em realidade ela é muito mais que minha secretária –
continuou. — Fi é uma velha amiga, uma segunda mãe para mim. E
de quem gosto muito.
Lavínia assentiu sem entender essa estranha confissão de Nick,
como se ele quisesse dizer-lhe tudo.
— Está bem - disse sorridente. — Suponho que isso é bom para
você.
— É.
Fez-se silêncio, mas nem por isso deixaram de olhar-se. Lavínia
lia tanto nesses olhos que sentiu medo, porque embora reconhecesse
que havia muito por dizer, era mais o que se esforçavam por calar.
— Vou trocar de roupa – anunciou. — Não se preocupe porque
não sou de demorar muito.
— Que bom - replicou ele. — Eu também sou muito rápido para
tudo, inclusive para me vestir.
Lavínia sorriu enternecida.
— Sim, é evidente - disse a respeito da velocidade que sempre
levava Nick, que saltava à vista em tudo.
Ele também sorriu. Sorriu de verdade, sem reticências, sem
temor de que um sorriso significasse ceder ante as intenções
desconhecidas de alguém, porque ele acreditava conhecer as de
Lavínia. Lavínia era uma pessoa de sua confiança.
Ela correu para seu quarto. Tinha mentido, não tinha vestidos
de festa que pudessem fazer honra a uma da categoria a que
certamente estava pensando em levá-la Nick, mas podia levar o
vestido romano que confeccionou para o casamento de Tamara.
Enquanto Lavínia se vestia, penteava e maquiava, Nick deu
uma volta pelo pequeno apartamento desordenado. A mesa estava
cheia de tecidos vermelhos e amarelos, lentejoulas, moedas, fios e
agulhas. Também havia alguns desenhos. De fato descobriu que
Lavínia desenhava muito bem, se é que os tinha feito ela. Não
ficaram dúvidas quando encontrou os lápis de cores com os quais
pintava.
Junto ao telefone havia um porta-retratos. Nick sorriu quando
viu sua fotografia com uma mulher e seu cartão. Como se chamava
essa garota? Não o recordava, mas se algo lhe desgostou foi que
Lavínia tivesse que vê-lo com uma mulher cujo nome ele nem sequer
se lembrava, como souvenir da porcaria que ele tinha sido. Que era.
Que não queria ser.
Caminhou junto à parede até um manequim onde havia um
vestido de namorada ainda não terminado. Alguém se casava. Depois
se sentou na cadeira que antes tinha ocupado Lavínia.
Pensou por um momento que ela o faria aguardar uma hora ou
mais em vingança porque ele a tinha feito esperar em seu escritório
na quinta-feira, mas isso não ocorreu. Apenas vinte minutos depois
de ter entrado no quarto, saiu envolta em um maravilhoso vestido
comprido cor verde maçã, com o cabelo recolhido em uma cauda alta
e o rosto maquiado com tons suaves. Sentado como estava, Nick
estirou as pernas e cruzou os dedos detrás da nuca.
Lavínia notou que ele a devorava com o olhar. Umedeceu os
lábios ressecados sem poder evitar ruborizar-se. Assentou uma bolsa
de mão da cor do vestido sobre a mesa e dali extraiu um brilho labial
transparente e um espelho. Começou com a tarefa de pintar os
lábios.
Nick sentiu tanta satisfação de vê-la fazer isso que o corpo se
cobrou a modéstia. Traduziu o prazer em uma pressão no peito e um
desejo desconhecido de que aquela ação natural e cotidiana se
repetisse incansáveis vezes até que pudesse dizer que ela era sua
família, que nunca estaria sozinho.
Lavínia roçou um lábio com o outro enquanto fechava o espelho
e o batom. Nick tinha recuperado seu bom humor, sua picardia e sua
impaciência, mas de um modo diferente. Tornou-se para frente e
apoiou os cotovelos sobre os joelhos.
— Assim têm umas bodas - arriscou.
— Sim - respondeu Lavínia enquanto guardava as coisas em
sua bolsa. — Casa-se minha melhor amiga.
— E eu estou convidado? - perguntou ele. — Porque eu penso
convidá-la para a nossa.
Lavínia sorriu com a insinuação, mas não se deixou enganar.
Nick era muito instável, muito imprevisível para pensar que o dizia a
sério. Em um momento a fazia esperar quarenta minutos fora de seu
escritório como se ela não valesse nada e no outro insinuava que se
casaria com ela. Lavínia o olhou com amor, mas sem um ápice de
ilusões.
Nick soube que não lhe acreditava e não a culpou. Sabia que
não tinha dado mostras de segurança antes e não podia pretender
que ela esquecesse todo o passado porque as dava agora.
— Têm o botão? - pediu Lavínia com amabilidade. Nick não
deixava de olhá-la, nem tinha soltado o botão em todo esse
momento, porque abriu a mão e ali estava.
Lavínia enfiou o fio na agulha e se ajoelhou frente a ele para
fazer seu trabalho. Nick a observava com tanta intensidade que a pôs
nervosa e a fez cravar um dedo. Depois de deixar escapar um suave
gemido, levou a ferida à boca. Nick tomou a mão e aproximou
delicadamente a seus lábios, entre os seus apanhou o dedo
machucado. Lavínia tragou com força. Saía-lhe sangue. Nick não
pareceu lhe importar. O que fazia era como uma amostra de
confiança ou uma mensagem que ela não alcançava interpretar. Nick
caminhava pelos extremos, gostava de ir sempre pela borda. Falava
com os atos, expressava-se com o olhar, e a atraía no jogo.
— Põem-me nervosa - confessou, vermelha como os tecidos
que a esperavam para converter-se em trajes de bailarina.
— Queria te pôr nervosa todo o tempo - replicou ele com os
lábios sujos de sangue. O sangue de Lavínia.
— Por quê? É vampiro ou algo do estilo? - brincou ela. Sentia-
se perturbada pelas abruptas mudanças de Nick, estremecida por seu
contato.
— Quero te pôr nervosa para ver-te ruborizada - repôs ele com
soltura, até com naturalidade. — Parece-se muito como quando
fizemos amor.
Lavínia sentiu que se deslizava por um turbilhão de sentimentos
até tocar no fundo suave e fofo onde a esperava Nick para recebê-la
entre seus braços. Se era correto ou não deixar-se levar e enganar
por esses sentimentos de novo não soube, mas se sentia tão bem
entrar na fantasia de que ele a amava, que não pôde resistir à
tentação e sucumbiu ao sonho. Entregou-se ao amor que albergava
por ele em suas vísceras.
Elevou-se para lhe rodear o pescoço com os braços e Nick não
deixou de responder ante seu gesto. Também a abraçou, acariciou-
lhe o cabelo com ternura e a beijou no alto da cabeça.
— Não quero te machucar - prometia a Lavínia. — Quero te dar
razões para sorrir.
Durante o curto trajeto que fizeram no automóvel de Nick que
Lavínia desconhecia, pois sempre o tinha visto na caminhonete que
ele usava para visitar as obras, deixou-se levar pela sensação de que
flutuava em uma nuvem.
Deixaram o carro no estacionamento e Nick a abraçou pela
cintura até o lugar aonde se desenvolveria a festa: o novo Centro
Médico. No caminho a pé lhe contou algumas questões da construção
e respondeu a duas perguntas que Lavínia lhe formulou em relação
com o desenho, curiosidades que estavam acostumados a atacar a
qualquer um.
O interior do edifício era tão majestoso como o que se via na
fachada. A festa se desenvolvia no último piso, que se utilizaria para
congressos e reuniões sociais. Nem bem os viu entrar, Pablo se
equilibrou sobre eles dando o braço a sua esposa.
— Nick! – exclamou. — Esperava-te faz duas horas. Que se
passou?
— Nada - respondeu ele. — Já estamos aqui. Lembra-se de
Lavínia?
Lavínia sorriu ante o olhar confundido de Pablo.
— Margarida Farias? - recordou-lhe ela sorridente. O homem
caiu na conta muito rápido porque jogou a cabeça atrás e deixou
escapar uma exclamação de assombro.
— Ah! A desenhista! - exclamou. Os três envolvidos riram.
Lavínia se deu conta de que muitos olhares reparavam em Nick,
sobre tudo os de mulheres. Entretanto, preferiu ignorar esse
pensamento. Essa noite, Nick era dela, e embora na manhã seguinte
voltasse a sentir-se como qualquer uma de suas amiguinhas, por
essa vez queria viver o momento.
— Hagen! - exclamou uma voz proveniente de suas costas.
Tanto Nick como Lavínia deu a volta para receber quem se
aproximava. Um homem mais velho avançou para eles até estreitar a
mão que Nick lhe oferecia amavelmente.
— Doutor Dickinson – disse - apresento a minha namorada.
O homem olhou a Lavínia e estreitou sua mão, mas ela
congelou.
— Muito prazer - disse-lhe o médico, que logo a soltou e passou
a olhar outra vez para Nick. — Tem tão bom olho para escolher
namorada como para a construção.
Nick assentiu com um movimento da cabeça e um sorriso.
— Ela é minha pequena luz no final do túnel - afirmou
estreitando-a mais contra seu flanco.
O médico sorriu ante os apaixonados e logo se afastou quando
outra pessoa o chamou.
Nick convidou Lavínia a sentar-se com ele em umas poltronas e
lhe pós a mão pela cintura para mantê-la abraçada. Necessitava-a
perto, necessitava seu contato.
— O que quer tomar? - ofereceu-lhe. O cinza de seus olhos
afligia, olhava a Lavínia como procurando que lhe internasse dentro.
— O que seja - respondeu ela, deixando-se afligir.
Nick chamou o moço com um gesto de mão e tomou duas taças
de champanhe da bandeja. Depois que o jovem se afastou, voltou a
falar.
— Espero que não esteja chateada- disse antes de beber um
gole.
— Por que teria que estar? - indagou ela.
— Porque te chamei minha namorada.
Lavínia pestanejou em procura de ordenar seus sentimentos,
alvoroçados como poucas vezes os tinha notado antes.
— E o sou? - perguntou.
— É - assegurou ele.
Lavínia sentiu que o coração lhe enchia de mariposas, fazia
cócegas e a levava a sorrir. Não podia apagar a curva de seus lábios.
— Nesse caso, não estou zangada, estou feliz – afirmou. Nick,
que até esse instante procurava concentrar-se em sua taça, olhou-a
nos olhos. — Amo-te.
Nick a observou, calado entre o murmúrio da gente que falava
trivialidades e da música que ali não soava tão forte. Elevou uma mão
e acariciou uma bochecha de Lavínia, venerava-a.
— É a melhor mulher que conheço, Lavínia - respondeu.
Ela compreendeu a razão pela qual Nick não podia dar resposta
a sua confissão de amor apesar de considerá-la sua namorada e
apresentá-la como tal diante de todos. Nick não a amava.
Necessitava-a, mas isso não era o mesmo que amar. Mesmo assim,
não se atreveu a afastar-se. Possivelmente algum dia ele descobrisse
que albergava também esse sentimento como acabava de descobrir
que lhe era necessária.
— E te sou fiel até a morte - adicionou Nick imediatamente.
Uma lágrima abandonou os olhos de Lavínia e deslizou por sua
bochecha rosada até chegar ao dedo de Nick, que a escorreu com
calma.
Ele não falava de amor, falava de sexo, mas por algo se
começava.
— Que bom - replicou ela, conformando-se com o que Nick
pudesse lhe dar. Já não lhe valiam o orgulho nem a dignidade porque
o amava. Oh, quanto o amava! E sem ele simplesmente ficaria sem
ar. — Porque eu também o sou.
Nick olhou a pista de baile. Queria fazer feliz a Lavínia e para
isso jamais lhe mentiria e faria sempre o que sabia que a
reconfortava. Podia suprir a falta de amor com o imenso afeto que
sentia por ela, com ações que a manteriam flutuando entre as
nuvens. Não podia amá-la, ele já tinha prometido isso a outra
pessoa, a alguém que podia suportar um amor egoísta e duro como o
seu. Porque ele era como seu pai, e pessoas como Octávio só sabiam
ferir.
— Dançamos? - perguntou-lhe. Lavínia gostava de dançar e ele
estava disposto a lhe dar tudo para compensar a proibição de lhe
retribuir o amor que lhe dava.
— Acreditei que não dançava - replicou Lavínia esforçando-se
por sorrir.
— Mas quero dançar esta canção com você - respondeu ele.
Lavínia sorriu e se deixou levar a improvisada pista de baile,
onde Nick a estreitou contra seu peito e a transportou ao mundo que
sonhava com a canção “If you leave me now”.
No transcurso da noite, todos se aproximaram para saudar
Nick. Fazia-se evidente que era reconhecido em seu ambiente e que a
partir desse dia ninguém teria dúvidas de que Lavínia era sua
namorada, porque assim a tinha apresentado acima de tudo ao
mundo.
Uma fotografia coroou o momento, uma que Nick não se negou
a que tirasse abraçado a Lavínia. Inclusive pediu ao fotógrafo uma
cópia que o homem prometeu lhe fazer chegar.
Nick tinha o mundo a seus pés. Era tão arrumado, tinha um
sorriso tão encantador e um olhar um tão sensual que Lavínia não
alcançava a compreender como ou por que a tinha eleito para essa
velada e todas as demais que lhe tinha prometido agora que era sua
namorada.
Capítulo 18
Retiraram-se da festa às quatro e meia da madrugada. Uma vez
no automóvel, Nick ligou o motor e começou a circular muito lento.
Com a desculpa de um passeio, estendia as horas junto à Lavínia.
— Qual é o parentesco com o diretor do centro médico? -
interrogou de repente. A pergunta sacudiu a Lavínia porque não
estava preparada para recebê-la. Nick notou e se desculpou por isso.
— Perdão, não sabia que podia te resultar incomodo que lhe
perguntasse isso.
— Não, não me resulta incômodo - apressou-se a repor ela com
um suspiro.
— É uma história muito longa. Como te deu conta?
— Levam o mesmo sobrenome, embora nunca me tivesse
ocorrido que o mundo é tão pequeno se não fosse porque hoje os vi
juntos. Senti-o - respondeu e logo sorriu com serenidade. — Sabe
que vou estar aqui para escutar se algum dia precisar falar com
alguém - ofereceu para terminar a conversa.
— É meu avô, acredito - disse ela. A resposta de Lavínia deixou
Nick emudecido. Tinha-o tomado de surpresa.
— É assim se saúdam avô e neta? - replicou.
— Não lhe disse meu nome nem meu sobrenome, não se deu
conta de que era eu porque nunca antes me tinha visto, ao menos
sendo já adulta.
— Como é isso? - depois de ter perguntado se arrependeu.
Jamais era detalhista sobre sua vida, era injusto que pretendesse que
Lavínia o fizesse. — Me perdoe. Não tem que responder.
A ela não pareceu importar. Fazia-se evidente que tinha sabido
assumir seus traumas muito melhor que ele.
— Minha mãe se casou com seu filho, que era professor de
História em seu colégio. Engravidou de mim, nasci, e em pouco
tempo meu pai foi assassinado. Trabalhava em um bairro perigoso.
Lavínia não se estendeu contando a Nick o que pensava a
respeito de sua mãe, a história com outros namorados que tinha tido,
nem a confusa procedência de sua irmã, ou a história de seu irmão e
Josué. Mas suas palavras tinham impregnado fundo em Nick. Ela
tinha tido uma vida difícil, e isso o entristeceu. Não queria que
sofresse, não queria que recordasse tempos nos que tinha sido
infeliz, se é que alguma vez tinha conhecido a felicidade.
De repente se lembrou do vento e das cortinas que se
balançavam no hotel e ela o obrigou a fechar antes de ter sexo.
— Sua mãe... - sussurrou. Tinha medo da resposta que Lavínia
pudesse lhe dar. — Teve muitos namorados depois de seu pai?
Deteve o automóvel. Nem sequer se deu conta de que o fez no
mesmo lugar onde tinha feito amor com Patrícia pela primeira vez.
Lavínia o olhou assustada. Colocou um braço por detrás de sua
cabeça e esperou com o cenho franzido a que ela respondesse.
— Desta vez não vai pedir desculpas por perguntar algo tão
íntimo? - interrogou Lavínia evidenciando o medo a dar resposta.
— Não - replicou ele com naturalidade. — Isto sim, quero que
me responda.
Lavínia baixou o olhar e umedeceu os lábios.
— E porque o pergunta – replicou. — Não chegou a acontecer,
mas esteve muito perto - suspirou e elevou a cabeça com
assombrosa força de espírito. — Já podemos ir?
Nick tinha ficado calado, olhava-a não com pena nem com
medo, a não ser com ódio.
— Eu gostaria de lhe fazer dano - confessou entre dentes.
— A mim não - respondeu ela com desencanto. — Já o está
fazendo sozinho.
— Ainda o vê?
— Não tenho mais opção que fazê-lo, é o pai de meu irmão.
Nick assentiu em silêncio. Era incrível como abrindo-se a seus
próprios sentimentos se conectava com os de outros. Como não se
deu conta do que Lavínia tinha querido lhe dizer quando pediu que
fechasse a janela para poder ter sexo? O tipo teria entrado pela
janela, estava seguro. Filho da puta.
Queria que Lavínia enterrasse essa má lembrança. Desejava
que fosse feliz, que amasse o sexo, e sabia que com sua experiência
podia ajudá-la a fazê-lo.
Voltou a sair para o trânsito e se encaminhou de retorno à zona
da qual provinham, como se não devessem havê-la abandonado.
— Aonde vamos? - perguntou-lhe Lavínia. Nick lhe respondeu
sorridente.
— Ver as estrelas.
Lavínia compendia que Nick a levava ao hotel e não pôde evitar
sentir-se frustrada por isso. Amava-o e ter sexo com ele era como
voltar a respirar, por isso não se negava, mas o fato de que fossem
fazê-lo na mesma cama que ele compartilhava cada noite com uma
amante distinta não a fez se sentir bem. Mesmo assim guardou
silêncio e se entreteve cuidadosa observando o painel. De repente se
deu conta que ele diminuía a marcha antes de chegar ao destino que
ela esperava. Deteve-se diante de um precioso edifício de Porto
Madeiro. Lavínia o olhou imediatamente.
— E onde estamos? - perguntou.
— Em minha casa. - respondeu Nick muito sereno.
Lavínia emudeceu. Tinha pensado que Nick a levaria ao hotel ou
a qualquer outro lugar alugado, entretanto acabava de deter o carro
frente ao edifício no qual tinha seu apartamento. O lugar onde ele
vivia, onde conservava todos seus segredos.
— Deixe-me imaginar que nenhuma mulher veio aqui - pediu
Lavínia com a cabeça encurvada.
Ele a segurou o queixo e a obrigou a olhá-lo.
— Não tem que imaginar - assegurou-lhe. — É assim.
Nick abriu a porta da garagem com o botão que apertou do
chaveiro e logo estacionou o automóvel em um cubículo. Subiram ao
elevador e permaneceram em silêncio até que a porta se abriu no
penúltimo piso.
— Você gosta dos lugares altos - refletiu ela uma vez no
saguão.
— Sim - admitiu marcando em um painel a chave que dava
acesso ao seu apartamento.
O piso era tão exclusivo como o edifício no que se encontrava
localizado. Estava decorado com cores escuras. Tanta escuridão não
respirava o coração de ninguém, muito menos o de Nick, mas de
frente a janela se podia apreciar meia cidade, convertendo a casa em
um lugar majestoso.
— É precioso - admitiu Lavínia em voz alta.
— Obrigado - replicou Nick retirando o casaco dos ombros. — O
que quer tomar?
Lavínia não tinha ideia de que tinha que responder. Tinha
bebido muito.
— Me surpreenda - brincou encolhendo os ombros.
Enquanto Nick se afastava para a cozinha, ela avançou um
passo mais. Passado a vista pelas poltronas negras de couro, a mesa
de centro, o vestido vermelho. Um vestido vermelho?
Aproximou-se do porta-retratos com a respiração agitada, os
músculos contraídos. Nick apareceu com duas taças de vinho tinto.
— O que faz ela aqui? - interrogou Lavínia ajoelhada frente à
mesa redonda, com ambas as mãos junto à imagem da ruiva que o
acompanhava no navio.
— É minha esposa.
A naturalidade com que Nick deixou escapar essas palavras
indignou a Lavínia ao ponto que ficou de pé e o enfrentou contraída e
com o olhar fulminante. Nick sorriu ante essa atitude de mulher
romana que ela tinha tomado, pareceu-lhe gloriosa.
— Perdão, quero dizer, minha ex - repôs. Estava tão
acostumado a pensar que Patrícia tinha que ser sua esposa porque
ele assim o tinha decidido que lhe custava fazer-se à ideia de que se
divorciaram fazia cinco anos.
Lavínia sentiu que o mundo de ilusões que tinha forjado em sua
mente se diluía com a força daquela revelação. De repente
compreendia muitas coisas, sobre tudo que Nick sem dúvida estava
apanhado nesse amor do passado, pois acompanhava à mulher no
navio e ainda tinha sua fotografia na sala de sua casa.
— Não sabia que tenha sido casado... - balbuciou cabisbaixa.
— Fui - repôs ele, ainda com ambas as taças entre as mãos. —
Isso acaso troca em algo o que temos? Estou sozinho agora. Quero
dizer, estou com você.
Lavínia voltou a olhá-lo.
— Se estivesse sozinho ela não estaria aí - assinalou a foto com
a mão. — Se estivesse comigo, muito menos.
Nick assentiu.
— Têm razão - disse. Logo deixou ambas as taças sobre a
mesa, pegou o porta-retratos e o olhou com desdém. — Na realidade
não sei por que continua aqui.
Com dois golpes pegou uma ponta da foto e retirou-a, deixando
o quadro vazio. Sem voltar a olhar a imagem, rasgou-a em quatro
pedaços e as jogou junto às taças.
— Sentamo-nos? - ofereceu.
Lavínia não tinha ideia de quão importante resultava para Nick
ter rasgado aquela fotografia que o tinha acompanhado durante cinco
longos anos, por isso deu um basta àquela ação. Ficou-se quieta,
triste e isso se notava em seu rosto adormecido. Eram cinco e meia
da madrugada e não tinha descansado da noite passada.
Nick se sentou no sofá e Lavínia suspirou sem mover-se. Tomou
a mão de Lavínia.
— Falo-lhe com suavidade, podemos desperdiçar nosso tempo,
pensando no passado, ou perdoar meus enganos e seguir com nossas
conversas. Respeito-te e se a imagem de minha ex-mulher te fez
mal, peço-te com sinceridade perdão.
Lavínia não o olhava, mas cometeu o engano de fazê-lo quando
ele terminou de falar. Era honesto, demonstrava-o em seu olhar,
diziam-no seus gestos, esse rosto tão expressivo que ele tinha.
Entretanto, o que tinha prejudicado a Lavínia não era a imagem da
ex, pois possivelmente ele não tinha pensado levá-la a sua casa
quando tinha saído e por isso não a tinha escondido, a não ser o que
de fato essa foto estivesse ainda ali implicava para Nick.
Ele não a tinha esquecido. Possivelmente a amasse e ela não
fazia mais que lutar contra o fantasma da indiferença da outra.
Lavínia não queria ser a segunda, mas tampouco queria perdê-lo.
— Perdoa-me? - perguntou-lhe Nick. Ela suspirou.
— Não faz falta que me peça perdão - resolveu. Nick não tinha
a culpa de estar apaixonado por outra e de que ela fosse tão fraca
para ignorá-lo.
— Então volte a sorrir - pediu ele, lhe dando de presente em
troca um sorriso de menino encantado. — Por favor...
Lavínia obedeceu, mas se notava que o fazia sem muito
entusiasmo. Deixou-se cair frente a Nick embora evitasse olhá-lo.
Conversaram um momento enquanto Nick, distraído e sem
segundas intenções, jogava com os bocadinhos da fotografia de
Patrícia. Devagar foi transformando em quadradinhos, logo em
bolinhas, finalmente, em ínfimas partículas brancas.
— Você gosta? - -indicou-lhe um momento depois. Lavínia
olhou para onde assinalava. Mostrava-lhe o vitral.
— Eu adoro - respondeu com sinceridade.
Nick se voltou para olhá-la e se aproximou de sua boca.
Respirou sobre seus lábios, roçou-os com a língua.
— Tenho uma vista muito mais especial dentro de minha casa -
sugeriu, mas a insinuação não provocou em Lavínia o que ele
esperava. Ela contraiu as feições, lhe entristeceu a cara.
— Me diga que não é isso tudo o que queres de mim, Nick -
pediu com um sussurro afogado. — Por favor.
— Morro por podermos fazer amor – respondeu. — Mesmo
assim, passaria todas as noites de minha vida em abstinência só por
ficar ao teu lado.
Lavínia deixou escapar um risinho sincero.
— Não precisa mentir. Sou ingênua, mas não tanto para
acreditar nisso - recriminou. Ele não riu.
— Não estou mentindo – assegurou. — O sexo não é tão
importante para mim.
— Não me diga! - ironizou Lavínia arqueando as sobrancelhas.
— O sexo não é mais que sexo - replicou ele. — Apenas uma
descarga física que te satisfaz um momento. Fazer amor é o que de
verdade importa.
— Então te passaria em abstinência de fazer amor, mas não de
ter sexo - jogou ela com as palavras.
— Ambas - replicou ele. — Sabe uma coisa, Lavínia? Aborreço-
me.
— O que te aborrece? - ela franziu o cenho.
— Na cama, com as mulheres - precisou. — Com as mulheres
que levo para a cama, quero dizer - seguiu esclarecendo. Lavínia
suspirou.
— Oh. Obrigada.
— Não com você - repôs o homem com um sorriso. Parecia um
adulto e um menino travesso.
— Tampouco com sua mulher - recriminou Lavínia com rancor,
mas em seguida se arrependeu de ter falado desse modo. — Não. Me
perdoe – pediu - não devia dizer isso, estou-me deixando levar por...
— ... ciúmes - sorriu ele.
— Não! - replicou ela horrorizada.
— Sim está ciumenta! Eu adoro.
Nick pensou que nunca o tinha sentido. Nem Patrícia, nem
ninguém. Não do modo em que o fazia Lavínia, por amor. Isso o
enterneceu ao ponto de que se arrependeu de haver dito aquilo a
respeito da abstinência e beijou Lavínia sem lhe pedir permissão nem
esperar aprovação.
Como ia passar a vida inteira a seu lado sem lhe dar amor?
Impossível! Iria convencendo pouco a pouco, para isso se treinou
tanto, mas ela ia ser sua sempre.
Não foi necessário, Lavínia respondeu ao beijo lhe rodeando a
cara com as mãos e entrelaçando a língua com a sua. Jogavam
cálidas no interior um e do outro.
O beijo se prolongou em carícias. Nick enredou os dedos no
cabelo comprido da mulher, roçou-lhe a nuca e logo seguiu a linha
reta por sua coluna passando uma unha junto ao fechamento do
vestido. Lavínia tocava o peito masculino, mas a camisa se
interpunha entre ela e suas intenções.
Desta vez não esperou que Nick lhe indicasse o que tinha que
fazer, não lhe fez falta porque se deixou levar pelo que sentia já sem
temores nem fantasmas. Precisava voltar a viver.
Impulsionada por essa premissa, apropriou-se dos botões
enquanto ele fazia o mesmo com o fecho de seu vestido. De repente
se arrependeu. Era uma pena despedir-se dos objetos, que tão lindas
sensações lhe brindavam e que serviam para ganhar novas
experiências. Para isso se deteve e se separou dos lábios de Nick;
queria atrair sua atenção. Conseguiu seu intento, porque não sabia
que fazia e o olhou.
— Está muito lindo - sussurrou ela com um sorriso travesso nos
lábios, acariciando o pescoço de sua camisa. — Nos deixemos a roupa
posta.
Nick baixou o olhar aceso para os seios de Lavínia, que
apareciam tímidos pelo decote recatado, e suspirou. Adorava a ideia
de que os objetos funcionassem como barreira; a limitação imposta
de não poder tirar as acrescentaria ao desejo, mas para falar a
verdade também morria por voltar a vê-la nua. Mesmo assim, aceitou
a proposta trazendo as mãos ao rosto da mulher e rodeando-o com
elas para lhe dar um beijo apertado.
Lavínia gemeu. A língua de Nick era cálida e se movia
preguiçosa dentro de sua boca. A lentidão do beijo afligiu os sentidos
da mulher. As mãos de Nick se deslizaram das bochechas femininas
ao pescoço, logo à nuca. Apertou-a mais contra seu rosto e então o
beijo se tornou mais exigente e possessivo, mas continuava sendo
suave. Ela se perguntou como na natureza de um homem podiam
conviver qualidades tão contraditórias. Compreendeu ao mesmo
tempo em que era graças a elas que morria de desejo. Foi o que a
impulsionou a apoiar as mãos em seu zíper.
Nick sorriu contra seus lábios. Lavínia abriu os olhos e viu os do
homem brilhar.
— Está indo rápido - murmurou ele com regozijo, voltando as
mãos às bochechas de Lavínia. Estavam ruborizadas e nelas pulsava
o mesmo desejo que ela se esforçava por reprimir mais abaixo, onde
ainda os separava um fino tecido de seda.
— Tive saudades... - atreveu-se a responder.
— E eu de você.
Nick a recostou sobre o tapete. Lavínia se removeu ao tempo
que umedecia os lábios. Pôde sentir neles o sabor de Nick, e isso lhe
fez faltar o ar. Que seus sabores se mesclassem, lhe fazia palpitar a
carne.
Introduziu uma mão por debaixo do tecido verde água,
procurava chegar à roupa interior. Ficou arrastando os dedos pela
parte interna da coxa de Lavínia, castigando-a com sua lentidão. Ela
se estremeceu. A carícia se sentia de uma vez cansada e fabulosa,
porque o fazia cócegas, mas a excitava. Repercutia em sua
intimidade, e quando as mãos do homem alcançaram o objeto
ansiado e deslizaram por suas pernas rumo aos pés, arqueou a
coluna e jogou a cabeça atrás. Apertava as pálpebras.
— Não abra os olhos - pediu-lhe Nick. Lavínia tremeu. Por quê?
Perguntou-se. Por...?
— Têm que me prometer isto - interrompeu os seus
pensamentos enquanto lhe flexionava uma perna.
Incapaz de outra coisa com tal de que a doce tortura seguisse
seu curso, Lavínia tragou com força e respondeu sem fôlego.
— Prometo.
Uma carícia cálida e úmida lhe pôs a pele arrepiada atrás do
joelho, logo na parte interna da coxa, ali por onde antes se deslizou
um dedo. Não era uma unha, não. Queria abrir os olhos, mas os
apertava com todas suas forças porque tinha prometido fazê-lo.
Tampouco era uma unha o que subiu até perder-se no lugar onde a
escuridão prometia encher-se de luz.
Enquanto a úmida calidez se movia rápida e às vezes lenta em
cada rincão daquela parte secreta da mulher, Lavínia não se dava
conta de que gemia e se retorcia, incapaz de conter-se mais. Se Nick
seguia jogando esse jogo, ela já não poderia guardar seu ponto
máximo de gozo para ele, como desejava fazer.
Se agarrou ao cabelo de Nick. Assim o apertou contra esse
lugar que estava lhe brindando tantas sensações - cócegas,
espetadas, eletricidade - e lhe pediu que seguisse com a magnífica
tortura. Uma mão penetrou pela parte superior de seu vestido, mas
como era apertado os dedos não alcançaram o lugar desejado. Como
lhe tinha ocorrido deixar-se de roupa posta? Tinha sido uma ideia
muito estúpida. Mas Nick não se dava por vencido tão rápido como
ela. Não lhe importou mais que sentir prazer e atirou com impulso e
rapidez o tecido, pretendendo rasgá-lo. Era bom, estava bem
costurado, sem dúvidas o vestido o tinha feito Lavínia porque não se
rompeu. Devorou com mais força. O tecido se rachou e seguiu
rompendo. O fato custou a Lavínia uma marca vermelha nas costas e
um ardor o que, longe de feri-la, excitou-a. Toda a situação era em
realidade muito estimulante.
Quando os dedos de Nick alcançaram seus mamilos e os
arrepiaram com movimentos circulares e ligeiros apertões, Lavínia se
queixou. Não resistia mais pressão.
— Vamos fazê-lo- murmurou ele. Deixava-lhe o fôlego sobre a
sensível pele de sua vulva. — Vou gostar de ver isto - e acelerou as
carícias com a língua, com as mãos, com os lábios.
As palavras terminaram de afligir a Lavínia. Estalou em gemidos
afogados, mordeu-se o antebraço para não gritar. E depois, agitada e
tremente, entreabriu os olhos irritados de sentir.
Nick descansava com a frente apoiada sobre sua coxa. Tinha
um braço estirado e lhe acariciava com essa mão o esterno, justo
nesse momento passava por entre seus peitos em direção ao ventre.
Os dedos baixaram devagar e se detiveram no umbigo, onde riscaram
alguns círculos. Ele também parecia cansado, e permaneceram os
dois assim incontáveis minutos.
De repente Nick apareceu por entre suas pernas, apareceu por
sobre sua pélvis. Os olhos brilhavam e sorria com cara de menino
travesso.
— Você gosta? – perguntou. — O fiz bem?
Lavínia não pôde acreditar nessa pergunta.
— Mm mm.... - resmungou. Parecia adormecida. — Dou-te um
oito.
Nick franziu o cenho e se fingiu zangado.
— Um oito é uma nota medíocre, senhorita, eu gosto do dez.
— Já sei que você é muito exigente - brincou ela - vai ter que
seguir praticando - disse. Ele riu e se sentou na posição de índio.
Brilhavam-lhe os lábios. Lavínia começou a limpar-lhe com as
mãos. Cheirava estranho. Não queria imaginar como devia saber tudo
isso que ele tinha na boca.
— Por que o fez? - perguntou. Nick se encolheu de ombros.
— A primeira razão é que não tinha preservativos na casa, e
não queria te decepcionar - respondeu. Ela continuava lhe secando a
boca com os dedos. — A segunda, me deu vontade. Em conclusão. Eu
adoro.
— Agora te devo uma - queixou-se ela baixando as mãos.
— Não se preocupe, agora me paga a dívida em casa. Olhe
como me deixou.
Tomou uma mão e a levou até sua entreperna. Lavínia sorriu.
Não fazia falta explicar com palavras como o tinha deixado. Tomou o
rosto entre as mãos e o beijou na boca. Agora ela descobria o que
sabia seu próprio corpo.
— É tão bonita - sussurro-lhe sem lhe soltar a cara. Olhava-a
encantado. — Não tem ideia do quão linda que te põe nesse
momento, quando chega ao final. Sinto-me como uma fantasia.
Lavínia sob o olhar. Ainda lhe custava acostumar-se às
conversações nas que o sexo era sinônimo de intimidade e de
confiança. Sorriu com as bochechas tintas de rubor, mas não se
intimidou. Ela também queria mais.
— Então não percamos tempo - atreveu-se a dizer. — Eu não
gosto de dever nada a ninguém.
Para levantá-la do piso, Nick lhe rodeou a cintura. Lavínia riu
porque os dedos lhe enterravam no flanco, e ela era sensível às
cócegas. Quando estava em situação, não se dava conta, mas agora
que seu corpo tinha ficado mais sensível, vibrava com qualquer
estímulo.
Nick a soltou sobre a cama, apoiada sobre seu lado esquerdo.
— Não te mova - ordenou com voz suave, prometedora, Lavínia
fechou os olhos. Já tinha comprovado que quando dava uma ordem,
vinha-se algo que a ia deixar nas nuvens.
De repente sentiu que terminavam de lhe arrancar literalmente
o vestido. O som do tecido ao rasgar-se foi tão sensual como seu roce
na pele enquanto abandonava seu corpo. Por uns segundos, ficou
sozinha na cama, e o silêncio envolveu o quarto em penumbras.
— Nick? - interrogou sem abrir os olhos.
Surpreendeu-a um tremor no colchão e logo toda a pele nua do
homem, que se pegou as suas costas. Uma mão úmida de suor lhe
apanhou os seios, quão mesmos receberam um ligeiro apertão
quando serviram de sustento para que Nick se aproximasse mais a
ela. Percebeu um grande signo de masculinidade duro e quente entre
as nádegas e com isso cresceu sua necessidade de senti-lo dentro.
— Quero-te dentro de mim - atreveu-se a mandar. Não se dava
conta do que dizia. E embora a imaginação dele voasse a fez esperar.
Foi melhor porque o desejo aumentou.
Sustentou-se sobre um cotovelo e apartou as mãos dos seios
de Lavínia para transladá-la para seu flanco.
— Você gosta disso? - perguntou-lhe com voz serena. Mas
carregada de prazer.
— Muito... - replicou Lavínia sorridente.
Começou no ombro com dois dedos que se deslizaram para as
costelas, logo à cintura, e acabaram no quadril, onde a mão se
aferrou com força, mas sem machucá-la. Enquanto fazia isso, beijou-
lhe o ombro e depois as costas. Lavínia vibrou de quão receptivo era
seu corpo ante essas carícias.
— E isto? - seguiu perguntando ele. Abandonava o silêncio em
sua pele sensível e nua.
— Eu adoro.
A mão de Nick fez outra vez o percurso, só que de forma
ascendente, até apanhar os seios de Lavínia, brincou com os mamilos
enquanto lhe beijava o pescoço até ouvi-la respirar com agitação e
senti-la tremer de ansiedade.
Como ele também queria estar dentro de Lavínia, internou-se
nela sem tempo a desperdiçar, aferrando-se ao pedido que sua
namorada lhe tinha feito momentos antes. Lavínia se queixou pela
invasão, presa de um frenesi que jamais tivesse apostado que seria
capaz de demonstrar.
— Você gosta que sejamos um? - perguntou-lhe enquanto se
movia dentro dela. — Porque eu gosto muitíssimo.
Lavínia já não respondeu, não podia fazê-lo. Abriu os olhos,
subiu um pouco a cabeça e viu as mãos de Nick lhe apertando o
busto, que se inchava para cima ou para baixo segundo os
movimentos que ele fizesse. Vendo o ato, a fricção contra a pele
sensível de seus peitos e mamilos parecia sentir mais.
Começou a ofegar. Adiante lhe doía o vazio e por isso se levou
uma mão ali, onde se produziu ela mesma agradar enquanto o
tamborilar de suas nádegas contra a parte inferior do ventre
masculino oficiava o doce castigo por detrás. A penetração era uma
força magnética que a balançava primeiro devagar, logo tão rápido
que a transportou em seguida aonde ansiava chegar.
— Ah - gemeu, mas uma mão quente lhe cobriu os lábios
procurando sua língua. Lavínia a aceitou.
Depois de acabar, ficaram quietos; Nick dentro dela, procurando
voltar a respirar. Pouco mais tarde, saiu de seu interior, tirou o
preservativo e se respaldou no travesseiro com intenção de atrair
Lavínia, mas ela já girava sobre si mesma para se ajustar contra seu
peito. Nick passou um braço por sobre seus ombros e a apertou
contra si, tão perto que podia respirá-la.
Depois de pagar sua dívida, esgotada, Lavínia adormeceu. Nick,
em troca, passou um longo momento olhando o teto do quarto
enquanto fumava um cigarro e a mantinha abraçada sobre seu peito.
Quem era ele? Por que tinha tanto medo? Podia fazer feliz a
uma boa mulher, como tinha sido sua mãe, ou acaso necessitava de
Patrícia, do ódio que lhe brindava e o forte que lhe parecia, para não
sentir temor de si mesmo? Necessitava que ela o dominasse para
assim estar seguro de que jamais a machucaria como seu pai tinha
machucado a Teresa?
Sob a cabeça. Sentiu que roçava o dourado e suave cabelo de
sua deusa romana com o queixo e soube que não podia perdê-la.
Horas mais tarde, Lavínia abriu os olhos com o temor de que
Nick tivesse desaparecido. Mas não só o viu a seu lado, ainda com
um braço debaixo de sua cabeleira, mas sim além se recordou que se
encontrava em sua casa e que não havia lugar algum onde ele
pudesse ir sem que ela o notasse.
Via-se tão juvenil quando dormia, tão lindo. Lavínia elevou uma
mão e lhe acariciou o nariz que tanto gostava. Nick reagiu com um
grunhido ao tempo que sacudia a cara. Lavínia saltou de susto e pôs-
se a rir.
— Que mau! - brincou.
Nick girou, hábil entre os lençóis e se estendeu sobre Lavínia.
Ela pensou que ia fazer amor, mas em troca a beijou na testa e lhe
sorriu.
— Convido-lhe a tomar o café da manhã - ofereceu.
— Não - respondeu ela. — Eu te convido. Posso ir à cozinha e
preparar o chocolate que você gosta tanto.
Nick assentiu e a deixou livre. Amava o chocolate e sabia muito
melhor quando era preparado com amor, por isso aceitou a oferta.
Lavínia estranhou imediatamente o peso daquele prodigioso corpo
sobre o seu, mas se sentou na cama sem emitir objeções e procurou
algo que vestir.
— Essa sim que é uma formosa vista... - comentou Nick
admirando as costas femininas nuas. Tinha as mãos detrás da nuca e
um sorriso travesso desenhado nos lábios. Os olhos, como nessas
últimas horas, expressivos.
Lavínia girou a cabeça e lhe sorriu em gesto de agradecimento.
Logo encontrou a camisa do Nick e foi isso o que vestiu, além da
calcinha, embora o objeto masculino ficasse bastante grande. Saiu do
quarto e atravessou a sala rumo à cozinha.
Ela saltou de susto. Fi a assustou.
— Oh - concluiu a mulher. — Também se encontra aqui
senhorita Dickinson. Em seu escritório, em seu apartamento... já
vejo. Estas sim que são boas notícias - Lavínia soltou uma risada. —
Sempre soube que o... seu número de telefone seria o eleito.
Nick apareceu por detrás de Lavínia com as calças como único
objeto. Rodeou-lhe a cintura com os braços e apoiou o queixo sobre
seu ombro. Sorria, parecia outra pessoa. E seus olhos brilhavam
quando Lavínia apoiou suas mãos sobre as dele para responder ao
abraço.
— Vejo que já se reencontraram – disse. — De todos os modos,
acredito que nunca as tinha apresentado formalmente. Lavínia, esta é
Fi. Fi, esta é Lavínia. Minha namorada.
— Você... namorada... - resmungou Fi, que não cabia em seu
assombro. Um medo irracional sulcou sua mente: só esperava que
essa mulher não fosse como Patrícia. Não, não o era, mas aquele
seria um temor sempre latente até que provasse o contrário.
— Prazer em conhecê-la, Fi - sorriu Lavínia. — Nick não me
falou muito de você porque na realidade não fala muito de ninguém,
mas te nomeou - brincou. Nick sorria.
Não. Essa mulher não era como Patrícia. Fi riu sem restrição.
Nick apareceu na segunda-feira na universidade. Tomas foi um
dos últimos em aproximar-se e demorou tanto que Nick chegou a
pensar que jamais se aproximaria.
— Modifiquei a localização das salas de cirurgia - explicou o
menino. Sua voz evidenciava os nervos que sentia.
— Deixe-me ver - pediu Nick, que tinha voltado para sorratear,
cortando a brecha entre ambos.
Tomas desdobrou um cilindro de papel na mesa de ensino sua
criação com medo de que Nick voltasse a mandá-lo por onde tinha
chegado. Mas o professor tinha recuperado o bom humor e a simpatia
de sempre.
— Está bem – admitiu. — De todos os modos, o que tinha feito
antes não estava tão mal. Só tenha em conta que o salão de
exposição deve estar em uma área pela que não circulem pessoas
amarguradas, entendeu-me?
— Sim.
— Longe de emergências, internação... tampouco o pode pôr
em administração.
— Sei.
— Está bem. Bastante bem. E achável - o menino, que tinha
começado a enrolar o papel para retirar-se, deteve as mãos sobre a
folha e o olhou. — Comportei-me como um desgraçado, perdoe-me.
Capítulo 19
Lavínia costurava moedas e lantejoulas a velocidade relâmpago
para recuperar o tempo que não tinha destinado ao seu trabalho
durante o fim de semana, não deixava de sorrir. Cravou-se o dedo ao
menos cinco vezes e cada vez que o levava a boca para apaziguar o
ardor provocado pela agulha, lembrava-se de Nick e de que ele tinha
feito o mesmo para lhe demonstrar algo que já não lhe importava
entender. Que ele confiava nela, possivelmente, que a queria para
sempre, que talvez algum dia a amasse. Que esse amor estava
destinado a doer e ele a sarar as feridas que lhe provocasse. Ignorou
essa última opção, não queria pensar nisso, não queria reconhecer
que se Nick amava outra pessoa, cedo ou tarde ela teria que deixá-lo
ir.
No sábado seguinte da inauguração do Centro Médico, Nick
passou por Lavínia para levá-la a uma festa que se ofereceria em
uma discoteca. Uma marca de roupa apresentava sua nova coleção e
ele queria que ela fosse estabelecendo contatos nesse mundo. Queria
que pensasse em desenhar de maneira profissional. Não o havia dito,
mas ele se encarregaria de lhe apresentar às pessoas adequadas.
Enquanto se arrumava, Lavínia o espiou do quarto. Ele se tinha
detido frente ao porta-retratos com sua imagem e manipulava algo.
Lavínia se sentiu envergonhada. Não se lembrava de que tinha
deixado ali sua foto recortada de uma revista, como uma boba.
— O que faz? - perguntou-lhe a tempo que se aproximava.
— Magia - respondeu Nick. Quando ela chegou a seu lado,
notou que ele enrugava um papel.
— O que é isso? - insistiu.
— Uma má lembrança.
Lavínia passou a vista pela mesinha do telefone e ali o viu: o
porta-retratos já não luzia aquele recorte de revista, a não ser a foto
que o jornalista tinha tirado dos dois no Centro Médico, no qual Nick
usava o traje que ela tinha confeccionado. O coração de Lavínia deu
um tombo e a impulsionou a abraçá-lo.
— Oh, Nick! – exclamou. — É tão doce!
Passaram uma noite divertida. Dançaram, tiveram muita vida
social, e sem que Lavínia sequer se desse conta, Nick a introduziu em
círculos de desenhistas profissionais e marcas de roupa. Ela estava
fascinada com tudo o que via, com as conversações que escutava e
nas quais animava a participar com entusiasmo. Nick sorria orgulhoso
cada vez que notava os olhares de aprovação de outros desenhistas
em relação às ideias de sua namorada e pensava que em dois ou três
encontros mais, acabariam lhe oferecendo um trabalho. Estava
seguro disso.
Lavínia amanheceu na casa de Nick outra vez. Fi já não se
surpreendeu de que Lavínia aparecesse pela porta da cozinha
esfregando os olhos e a saudou com familiaridade e prazer.
Desde que era a namorada de Nick, Lavínia não tinha tempo
para todos os trabalhos que tinha que fazer. Se não passava a noite
com ele e logo o dia dormindo, passava o dia pensando nele, com o
qual suas tarefas se atrasavam. Costurar uma prega, ação que
normalmente lhe demandava vinte minutos, podia lhe levar inclusive
quarenta e cinco. Suspirava, ficava olhando o vazio, as lembranças
com Nick, e marcava seu número no telefone sem levantar o
auricular, só para senti-lo perto.
Foram juntos às bodas da Tamara. Como o velho Mustangue de
seu primo, que devia levar a namorada à igreja, avariou-se, Nick
acabou transportando-a em seu Audi. Não foi o único estranho que
lhe aconteceu naquela festa, porque na recepção que se levou a cabo
em um Clube da Avellaneda, terminou jogando futebol com outros
moços, como há muito tempo não o fazia.
— Hei! - exclamou Tamara quando as damas os descobriram. —
Jogando uma partida sem avisar à torcida? Que descortesia!
Desse modo, os homens jovens da festa e alguns outros já
maiores terminaram jogando futebol como profissionais enquanto as
mulheres torciam por uma e outra equipe. Finalmente, Nick e o irmão
menor de Tamara ganharam. Ao finalizar, o menino se aproximou, ele
o elevou no ar e deram juntos o grito da vitória. Lavínia ria a
gargalhadas e tampouco se salvou da alegria desmedida dos
jogadores. Nick se aproximou, a tomou pela cintura, deu-lhe um
efusivo beijo nos lábios e justo nesse momento, alguém tirou uma
câmera.
— A ver, uma foto do jogador estrela e namorada - brincou.
Lavínia se inclinou para trás com um braço esticado fazendo
uma brincadeira e Nick fez uma careta divertida que completou seu
verdadeiro ser. A fotografia capturou ambos os corpos e se apoderou
das duas almas.
Na segunda-feira pela tarde, Nick passou por seu apartamento
para lhe avisar que iria viajar. Ligou na terça-feira e na quarta-feira
do hotel, sempre às onze da noite para assegurar-se de que ela
estivesse em casa esperando seu chamado. Não deixava mensagens,
odiava as secretárias eletrônicas.
Ele se mostrava natural e carinhoso, o qual apagou toda
sombra de temor da mente de sua namorada. Lavínia poderia ter
pensado que, estando longe, Nick ia enganá-la, ou que, acostumado
a trocar de par sexual cada noite, faria o mesmo tendo-a ou não
tendo a ela. Entretanto, acreditou no que lhe tinha prometido: que
lhe era fiel e que a respeitava.
E Nick assim o fazia. Guardava todo seu desejo e seu ímpeto
para Lavínia, porque quando estava sozinho pensava nela, em sua
namorada, que sentia saudades como poucas vezes tinha sentido
saudades de alguém. Tanto que começou a pensar no modo de
convencer que o acompanhasse em sua próxima viagem.
Não lhe interessava lhe dar de presente jóias e perfumes, isso o
tinha feito com outras. Queria passar tempo com ela, dar a Lavínia
algo que nenhuma podia obter: partes de si mesmo.
Na quinta-feira Lavínia passou pela casa de sua mãe para
visitar o Hector e terminou por levar o menino a sua casa, já que o
garoto insistiu em que queria dormir com ela e Cristina não se negou
a que o fizesse.
Nick olhou pela décima vez seu relógio de pulso. Tinha
esperado nesse corredor em penumbras uma hora. De repente, uma
voz rompeu o silêncio.
— Mas eu o queria em vermelho. Diga-lhe que troque isso.
Nick girou a cabeça. Lavínia estava de cócoras para estar à
altura de que devia ser seu irmão.
— Disse que não, Hector - dizia-lhe com voz maternal.
Acomodou-lhe o pescoço da camisa. — O quiosque não sabe de que
cor vem o brinquedo de chocolate.
Ficou de pé. Nick a observava com as costas apoiada na parede
lotada de cogumelos de umidade, com o olhar divertido que sempre o
caracterizava. Lavínia se sentiu tão feliz de vê-lo que um sorriso
radiante lhe invadiu o rosto.
— Nick! Voltou da viagem! - exclamou antes de correr para ele.
— Venho do aeroporto, não via a hora de ver-te.
Lavínia ficou na ponta dos pés para abraçá-lo. Do mesmo modo
apaixonado lhe beijou toda a cara. Sem querer, encheu-lhe o coração
de uma emoção singular. Ele se simulou aturdido e a fez rir. Logo a
beijou na boca.
— Lavi... - falou a vozinha a seu lado, então Lavínia elevou
Hector nos braços.
— Carinho, este é Nick - apresentou-os - meu namorado.
— Seu namorado? - interrogou o menino com o cenho franzido.
— Querido - replicou ela antes de olhar ao Nick. — Este é meu
irmão Hector - explicou. Quase não pareciam irmãos, não se
pareciam em nada.
— Levo o nome de um herói da Troia! - exclamou o menino que
gostava de acrescentar aquele comentário cada vez que conhecia
alguém. — Olhe o que me deu Lavi.
O menino sustentou em alto uma moeda de cinco centavos, que
era o troco que Lavínia lhe tinha dado da compra do chocolate.
— Empresta-me isso? - pediu Nick. Hector cedeu seu tesouro.
Nick moveu as mãos até que a moeda desapareceu. O rosto de
Hector se transformou em uma careta desconsolada.
— Onde está? - perguntou.
— Acredito ter visto algo por aqui... - replicou Nick enquanto
levava uma mão a sua maleta e extraía uma rosa vermelha do
compartimento exterior, abandonando ali a moeda.
O gesto paternal de Nick fez sorrir a Lavínia, deixou-a
encantada pensando em quão diferente ele era em relação ao homem
que tinha conhecido.
Quando Hector viu que sua moeda tinha dado uma rosa, saltou
dos braços de sua irmã e olhou ao estranho como se este acabasse
de lhe roubar.
— Para você - disse Nick a Lavínia. Ela sorriu e tomou a flor
iludida.
— Oh, obrigado! - exclamou.
— E minha moeda? - reclamou Hector, cruzando os braços. Nick
o olhou.
— Sua moeda se converteu nessa linda flor, mas em troca pode
ficar com isto.
Deu ao menino uma nota de dez pesos, que tinha no bolso do
casaco, e o deixou mais que contente. Mas a Lavínia não.
— Dê-me isso Hector - ordenou. Logo olhou ao Nick com pesar.
— Me perdoe, mas é muito para um menino tão pequeno.
O problema não era só Hector ser pequeno, a não ser como
ficava seu pai por uns poucos pesos e o que aquilo significaria: todos
saberiam que ela tinha namorado, averiguariam que era
endinheirado, e quereriam tirar proveito. Não estava disposta a expor
Nick a isso.
— Não! - recriminou o menino. — É meu dinheiro e não lhe
penso dar isso, estúpida!
Lavínia tremeu. Baixou a cabeça, pálida e piorada primeiro pela
vergonha, depois porque era a primeira vez que seu irmão repetia tão
claramente algo que estava acostumado a ouvir em sua casa.
— Ei, amiguinho - chamou-o Nick com simpatia. — Essa não é
forma de tratar a uma garota. Assim nunca vai conseguir uma
namorada.
Hector não respondeu por que possivelmente não entendeu a
mensagem, mas ficou olhando. Para ele não havia nada estranho em
um grito ou um insulto.
— Entremos - propôs Lavínia com a voz entrecortada.
Hector se afastou uns passos agitando sua nota qual bandeira
de triunfo e Nick aproveitou para abraçar Lavínia, que tinha ficado de
costas para ele, de frente à porta. Rodeou-lhe a cintura com os
braços, enterrou a cara entre seu cabelo e lhe falou ao ouvido para
que esquecesse o assunto de seu irmão.
— Não têm ideia de quanto senti saudades – murmurou. — De
quanto te necessito.
Lavínia sorriu involuntariamente. Conseguiu encaixar a chave
na fechadura com ajuda das mãos de Nick, que se moveram precisas
e cálidas sobre a sua até abrir a porta.
Enquanto preparava o jantar na cozinha, Lavínia se sentia
culpada porque não tivesse querido que Nick e seu irmão se
conhecessem. Hector estava perdendo a inocência, e Lavínia temia
que a fizesse passar outra vergonha como a da porta. Por outro lado,
não queria sentir-se envergonhada de seu pequeno irmãozinho. Era
um menino, não se dava conta de que alguns costumes não deviam
ser exibidos, aprendia com o mau exemplo que tinha em sua casa.
Apesar de seu medo, tudo se desenvolveu com normalidade até
a sobremesa, quando a ela lhe ocorreu reclamar a nota de dez pesos
a Hector de novo.
— Maninho, não te parece que com dois pesos seria suficiente?
— É meu. Deram-me isso, e você têm inveja - replicou o
menino.
— Não é isso, Hector. É...
Lavínia se interrompeu de repente. Não podia seguir falando
sem pôr em evidência de onde provinha, quem era sua família e
quais eram seus costumes.
— É uma porcaria, como diz Helena! - gritou-lhe Hector. — Uma
porcaria!
— Basta, Hector! - reclamou Lavínia. — Vocês pensam que falar
assim é divertido, mas não o é. Isso não é normal, nem é divertido,
nem deve fazer-se! Assim não é a vida. Não deve ser assim.
— É uma merda! - exclamou o menino sem lhe emprestar
atenção, como acontecia sempre em sua casa, que ninguém escutava
a ninguém e cada um dizia o que queria.
Lavínia o calou de uma bofetada. Uma vez sim podia tolerar
esse trato, duas não. Nick estava mudo. Imediatamente, ela reagiu e
cobriu a boca com ambas as mãos, horrorizada pelo que tinha feito.
— Me perdoe, maninho! – exclamou. — Eu não quis fazer isso,
me perdoe!
— Quero ir para a minha casa, com mamãe - reclamou o
menino.
— E tudo o que te estive ensinando? - Lavínia estava a chorar,
Nick se dava conta por seu tom de voz suave e pausado. — Tudo
desperdiçado em umas semanas com eles...
— Helena tem razão! - reclamou o menino. As lágrimas
escorregavam de seus olhos escuros e se deslizavam pela pele de
suas bochechas. — Cuida-te mais que nós. Quero ir para casa, com
mamãe - e começou a fazer manha de criança. — Quero ir para casa!
Quero ir para casa!
— Não é necessário que faça isso - interrompeu-o Lavínia. —
Posso te levar para casa se me pedir isso com modos. Junta suas
coisas.
Hector correu ao quarto. Nick ficou de pé.
— Aonde vai? - perguntou-lhe Lavínia. — Por favor, fique.
— Vou levá-los - respondeu ele, respeitoso da situação.
— Não, por favor - replicou ela. Não queria que sua mãe visse o
carro de Nick, seria ainda pior que lhe deixar saber que tinha dado
dez pesos a Hector.
— Agradeço-lhe isso, mas prefiro que me espere aqui. Se quiser
conservar seu automóvel, convém-te ficar deste lado do Rio.
— Prefiro conservar a minha namorada.
A resposta serena de Nick conseguiu relaxar um pouco a
Lavínia, embora os olhos da moça não deixassem de ver-se tristes e
úmidos. Que mais dava? Tampouco podia ocultar a Nick eternamente.
Tomou o telefone e discou um número.
— Mamãe – disse. — Estou levando ao Hector a sua casa, quer
passar a noite com você. Nos espere na porta, por favor.
Desligou muito rápido.
A viagem se desenvolveu em silêncio. Quando Nick deteve o
automóvel frente aos monoblocos, reconheceu que era o lugar onde
tinha ido procurar a Lavínia segundo o dado de seu vizinho de
negócio, mas não comentou nada a respeito. Viu a mãe de Lavínia
receber ao menino a uns metros da grade de entrada, na porta de um
dos edifícios. Cristina observou com os olhos semicerrados o carro
caro que acabava de deixar a seu filho e tentou ver quem o conduzia,
o qual não foi possível dado que os vidros eram polarizados.
Uma vez que Lavínia viu Hector com sua mãe, pediu a Nick que
arrancasse o automóvel. Retornaram em silêncio. O estacionou na
porta do edifício de Lavínia, mas não apagou o motor.
— Vai? - perguntou-lhe ela.
— Tenho que ir - respondeu ele.
— Se está horrorizado ou algo, rogo-te que me diga isso.
— Lavínia - tentou interrompê-la Nick, mas Lavínia não se
calou.
— Por favor, diga-me a verdade. Escutar essas coisas da boca
de um menino! Deve pensar que sou uma...
Lavínia não conseguiu completar a frase. Ela o olhou.
— Penso que é a mulher mais lutadora que jamais tenha visto.
Lavínia baixou o olhar. O coração lhe espremeu pelas palavras
de seu namorado.
— O diz para me consolar - argumentou.
— Não, não o digo para te consolar – defendeu-se Nick e
desligou o motor do carro. — Digo-o porquê é certo.
Lavínia não queria, mas se pôs a chorar.
— Dei-lhe uma bofetada, Nick – recordou. — Nunca tinha feito
algo como isso. Como pude fazê-lo agora? Sou uma selvagem.
Nick tomou a mão e a apertou para que ela o olhasse.
— Lavínia.
— Eu não sou sua mãe, jamais lhe bati! Resgatei-o dessa casa
quando seu pai fez o mesmo.
— Resgatou-o? - indagou ele, alertado pela frase.
— Sim... - ela dizia quase envergonhada. Baixava o olhar. —
Viveu comigo estes dois últimos anos até que me obrigaram a
devolvê-lo a minha família.
Nick expressou o orgulho que sentiu por Lavínia com seu tom
de voz.
— Você bateu nele, mas seu pai não fez o mesmo - disse em
relação ao golpe.
— Sim! Tinha-lhe batido!
— Saberá que existem distintos tipos de golpes - corrigiu-a
Nick. Ela o olhou. Ao fim se calou e o olhava com atenção. — Meu pai
nunca me bateu - continuou ele - nenhuma bofetada, nem uma
ferida, nem sequer uma palmada na cabeça por fazer uma
travessura. Não vivia comigo. Mas minha mãe o fez, muitas vezes. A
última foi quando tinha doze anos, Doze! E não era que me
entregasse às drogas ou à bebida nem nada disso, mas era insolente.
Respondia mal às vezes, e ela não o merecia.
Lavínia o olhava com olhos enternecidos, imaginando a esse
Nick adolescente que respondia mal a sua mãe e agora recordava
esses momentos com carinho tão imenso. Notava-se na suavidade
com a qual se referia à mulher, no brilho que cobrava seu olhar
quando falava dela. Era fácil deduzir que já não estava ao seu lado.
— Lavínia, se ninguém o corrigir em casa, alguém tem que
fazê-lo fora - continuou Nick referindo-se a Hector. — Esse menino
tem a sorte de ter uma irmã que lhe dê uma palmada por amor, e o
dia de amanhã te recordará como eu recordo a minha mamãe: como
a pessoa que fez tudo por amor a mim.
Lavínia suspirou mais serena e animada.
— Obrigada, Nick - e sorriu.
— É a verdade. Não fez nada mal, pelo contrário... - ela o
interrompeu.
— Obrigado por confiar em mim – esclareceu. — Por me contar
suas coisas, sei que não é fácil para você. Têm que saber que eu
jamais trairia sua confiança.
Ele ficou olhando. Não se tinha dado conta do que fazia até que
ela o fez notar, porque conversar com Lavínia se converteu em algo
natural. Embora não se arrependeu, tampouco comentou nada a
respeito e o coração lhe espremeu ao pensar que Lavínia lhe estava
prometendo cuidar de seus segredos como ele mesmo o fazia.
— Tenho que ir porque me espera Pablo para...
— Está bem - assentiu ela. — Vou sentir muitas saudades.
Abraçou-o. Nick respondeu imediatamente, mas logo a soltou
porque recordou algo.
— Tenho uma coisa para você - estirou-se para o assento atrás
e entregou a Lavínia um saco marrom que ela ficou olhando. — Não o
abre agora?
Lavínia elevou a vista e lhe sorriu. Logo se dedicou a abrir o
saco, do qual extraiu três revistas. Abriu a primeira na marca que
Nick tinha deixado.
— Oh, por Deus! - exclamou sem poder acreditar que em uma
imagem a via com um vestido branco, de pé junto a Nick na entrada
da discoteca. Leu em voz alta: — "O conhecido construtor Nicolas L.
Hagen com sua namorada, a desenhista Lavínia Dickinson" - elevou
os olhos para olhar Nick em seguida - por que dizem que sou
desenhista?
— Porque foi o que lhes disse eu.
Lavínia se ruborizou e baixou o olhar.
— Mas eu não sou desenhista, Nick – corrigiu. — Nunca
terminei a carreira. Logo sou costureira.
Elevou-lhe a cabeça tomando-a pelo queixo.
— Mas é a melhor costureira do mundo, e a melhor costureira
do mundo merece ser desenhista.
Lavínia meditou um instante as palavras, mas em seguida
baixou a cabeça de novo e encolheu de ombros.
— Obrigada, mas sei que não sou a melhor do mundo. Invento
muitas coisas, e todas me saem mal – repôs. — Hector viveu comigo
desde que tinha dois anos até não faz muito tempo. Foi porque uma
noite Josué o golpeou e eu me revoltei. Então o denunciei como
drogado e bêbado. Não passou mais de umas horas na cadeia, mas
os antecedentes e que nenhum tinha um trabalho fixo serviram para
que o juiz me desse a posse temporária.
— Foi muito valente - Nick de verdade pensava que Lavínia
tinha sido muito forte para enfrentar a sua família pelo bem de seu
irmão.
— Sim, mas não serviu de nada, só piorou as coisas -
lamentou-se ela. — Minha mãe se casou com o Josué para recuperar
Hector, o juiz o devolveu, e em umas poucas semanas ele já se
acomodou à vida com eles, aos maus costumes que minha mãe
adotou ao unir-se a Josué e que acreditei Hector não havia
interiorizado. Equivoquei-me, tem mais sangue deles que meu. Tenho
que aceitá-lo: minha vida de sacrifício não pode resultar atrativa
frente a uma vida cheia de facilidades e diversões, como a que levam
eles. Não poderei resgatá-lo, como não pude resgatar a Helena.
Nick suspirou. Teria desejado aliviar a dor de Lavínia, a vida
dura que lhe havia dado, entretanto era consciente de que quão único
podia lhe dar era um melhor presente e um futuro promissor.
— Depois meu negócio está falido - seguiu contando ela.
Ele interveio: — Isso foi sua culpa.
Lavínia o olhou surpreendida, com as sobrancelhas arqueadas.
Nick não demorou para explicar-se: — Vendia suas criações, certo?
— S... fui duro Lavínia. Não sabia o que seguia.
— Sem estar a par das tendências, sem estudar à competência.
Não olhava revistas de desenho nem podia viajar a Paris ou a Nova
Iorque, capitais da moda, para te instruir. Equivoco-me?
— Sabe que não tinha acesso a nenhuma dessas coisas.
— Então, tal como pensei, desenhava por intuição. O faz de
maneira extraordinária, seus objetos têm uma qualidade que
evidência uma capacidade com a que qualquer desenhista estaria
enlouquecido - ela baixou o olhar de novo, disposta a discutir, mas
ele não o permitiu. — Quieta - disse com o tom alto. Lavínia tragou
um sorriso enquanto secava as lágrimas com a mão. — É fabulosa,
mas aponta muito baixo e pôs um negócio como esse em pequena
escala e no bairro equivocado - Lavínia elevou os olhos para Nick, que
parecia ter feito um estudo de bens e serviços formidável em muito
pouco tempo. — Para vender teus desenhos, primeiro deveria fazê-los
em função do que demanda o mercado. Logo pôr o negócio em um
bairro onde as pessoas valorizem os objetos exclusivos: Recoleta, As
Cañitas, Porto Madeiro - lhe piscou os olhos porque era onde ele
vivia. Lavínia sorriu. — E pô-lo em grande, sempre chamando a
atenção. A gente tem que pensar que se não entrar no seu negócio,
se comprar em outro lado, é medíocre e não serve para nada.
Lavínia riu porque já tinha se dado conta de que Nick fazia tudo
assim como aconselhava, muito bem: suas construções, seu cruzeiro,
as pessoas. Nick entrava em um lugar e jamais passava
despercebido; se não obtinha a atenção de todo o mundo, não era
Nick Hagen.
— O que teria que ter posto em Avellaneda é algo que essa
gente necessita com urgência - continuou dizendo ele.
— E o que necessitam? - interrogou Lavínia, curiosa.
— Algo que está em extinção, mas sempre é útil, e para o que
só ficam quatro ou cinco pessoas em toda Buenos Aires – brincou. —
Nesse local, deveria ter colocado um imenso pôster que dissesse
"Hospital da roupa", ou algo como isso. "Reparo todos em objetos", e
essas coisas. - Pelo rosto de Lavínia, ele se apressou a esclarecer: —
Já sei, não é o que queria fazer, mas terminou fazendo de todos os
modos e em pequena escala, escondida em seu apartamento.
— Sim - assentiu Lavínia. Ele tinha razão.
— Eu também fiz coisas que não queria ao princípio. Trabalhei
em uma pizzaria, por exemplo. "o do Jun", essa era.
— Quer dizer que construiu o local - provou ela, incapaz de
pensar outra coisa. — Sim, deve ter sido uma construção muito
pequena para você.... - quase riu pela expressão que acabava de
utilizar respeito de que nada do que ele fazia passava despercebido.
— Entregava as pizzas - disse Nick sem alterar-se.
Lavínia ficou olhando, o sorriso se apagou do rosto. Nick não
parecia brincar, mas ela formou uma imagem tão soberana dele que
lhe pareceu impossível que falasse a sério.
— Minha mamãe estava doente e já não podia trabalhar -
explicou ele. — Tampouco podíamos contar com meu pai, estavam
divorciados. Teria gostado de trabalhar antes, mas se o tivesse feito
possivelmente jamais me teria formado. Como em quase tudo, minha
mãe sempre teve razão.
— Suponho então que nem sempre foi...
— O típico único filho rico e malcriado - completou ele,
sorridente. — Único filho sim, malcriado um pouco, mas rico não.
Ela também sorriu, mas com pesar. Baixou a cabeça.
— Prejulguei-te e me arrependo. Zanguei-me com você por
quão mesmo eu estava fazendo, fui muito injusta.
— Sim - deteve-a elevando uma mão. — Não seja tão dura com
você mesma, todos erramos. Muito mais se nos mostrarem uma falsa
imagem tão convincente.
Lavínia suspirou. Sabia que Nick calava muito, que guardava
em seu coração dores e pesares que, pouco a pouco, possivelmente
se atrevesse a confiar. Sempre que seguissem juntos, sempre que
algum dia a amasse.
— Além disso, esse não era o ponto - continuou Nick - se der às
pessoas o que necessitam em grande escala, esse será o meio que te
permita fazer o que em realidade quer. Sempre peça mais, nunca
aceite menos.
Lavínia estava encantada com as palavras, certas e
esclarecedoras, mas muito duras, inclusive para esses olhos que a
observavam de um abismo. Então resmungou a única ideia que o
conselho lhe trouxe para a mente: — Para sangrar como você?
Nick a olhou em silêncio. Ficou rígido um momento, sentia-se
descoberto. Pensava.
— Está sangrando de todas as maneiras - concluiu. E ela
aceitou com entrega as palavras, porque nunca lhe haviam dito algo
tão próximo à verdade.
A sensação não durou muito tempo. Logo ele se esforçou por
fazê-la sorrir de novo lhe dando um apertado abraço e um beijo na
testa. Era carinhoso, expressivo, gostava de manifestar-se através do
contato físico.
— Se prepare para sábado - anunciou com gesto travesso.
Lavínia se separou dele para olhá-lo, intrigada. — Vamos ao teatro.
— Ao teatro? Por quê?
— Porque me entregarão um prêmio.
— Um prêmio! - Lavínia sorriu e apoiou uma mão em seu peito.
— Oh, Nick! Estou tão orgulhosa de você! É o primeiro? Quantos já
ganhou?
— Algo assim como... cinco - contou ele sem um ápice de
orgulho ou soberba na voz, nem sequer com alegria. O
reconhecimento que ele de verdade esperava, jamais chegaria,
portanto outros lhe pareciam insuficientes, passavam despercebidos.
— Este será o sexto.
— É tão importante...
— Todos são importantes - replicou ele, outra vez com essa
estranha humildade que demonstrava quando se tratava de aspectos
positivos de sua pessoa.
— Não do modo em que o é você - respondeu ela. Nick sorriu,
não acreditava. — E por que é o prêmio?
— Por algo que estive desenvolvendo - contou ele. — Agora
estou com outra coisa, mas não posso falar disso por agora.
Possivelmente tenhamos outro prêmio para receber.
Lavínia se entusiasmou de só imaginá-lo.
— Tem algo que ver com os japoneses do Paradise? –
aventurou. — Me deixe dizer que pareciam mafiosos antes que
empresários.
Nick sorriu.
— Tem tudo a ver com os japoneses. Vou te contar muito em
breve.
Enquanto pensava em como voltar a ver Nick, Patrícia percorria
as páginas de uma revista da moda. De repente, os olhos verdes da
costureirinha se enterraram nos seus com singular firmeza. Era o que
a tinta depositava na ação de olhar uma e outra vez a mesma página.
"O conhecido construtor Nicolas Hagen com sua namorada, a
desenhista Lavínia Dickinson".
— Essa desenhista! - exclamou, respaldada em sua cama.
Fechou a revista e a jogou na mesa de cabeceira quando a
porta do quarto se abriu. Horácio entrou; tirando os sapatos e a
gravata. Prosseguiu depois com a camisa.
— Deveria ir a academia - espetou-lhe sua mulher, ímpia,
descarregando nele a frustração de que Nick se mostrasse em público
com uma menina de bairro. — Têm flacidez e o corpo de um velho.
Não sei como pretende me agradar, nem sequer tinge o cabelo. Nick,
em troca, tem o corpo jovem...
— Então tivesse ficado com Hagen - replicou o homem
enquanto se desprendia a calça. Horácio estava começando a odiá-la.
— Já não será possível - vingou-se Patrícia. — Deita-se com sua
filha – riu. — E tudo porque me ama!
Horácio o odiava.
Saiu de casa, internou-se em seu escritório e dali fez uma
chamada telefônica. Recebeu outra às duas horas.
— O que conseguiu? - perguntou.
— Encontramos o que procurava senhor.
— Muito bem. Nesse caso, nos veremos logo.
Patrícia não se surpreendeu de que poucos dias depois seu
marido tentasse compensar suas disfunções sexuais lhe dando o
dinheiro para uma nova cirurgia e aceitando que se levasse ao Centro
Médico construído por Nick, tal como lhe tinha pedido. Claro que não
lhe havia dito que esperava voltar a ver seu ex ali.
O último encontro que tinha mantido com Nick a tinha deixado
mais caprichosa e altiva que alguma vez. Rechaçá-la Nicolas? Pouco
lhe importava a presença de Horácio. Nick voltaria a ser dela e
quando ela desejava algo, obtinha-o como fosse.
— Olhe isto, Helena - disse uma quarentona antes de lhe lançar
a revista sobre as coxas.
Helena deixou de passar o lápis delineador pelos olhos para
reparar no que lhe tinha dado a mulher, que já se sentava na
penteadeira que estava junto a dela para maquiar seu próprio rosto.
— Página trinta e quatro - indicou. Helena deu volta as páginas
até dar com a indicada.
— É isto? - perguntou.
— Não é sua irmã?
— Onde?!
Helena chegou à fotografia quase tão rápido como abriu a boca,
surpreendida. Semicerrou os olhos e estudou melhor a imagem.
— Sim... não há dúvidas, é Lavínia. E este quem é? Será o
namorado?
— E que namorado! - exclamou a outra que se deteve detrás de
Helena, com as mãos apoiadas no respaldo da cadeira, para poder
farejar com gosto.
— Não sabe ler? - perguntou-lhe a que tinha levado a notícia. —
Note.
— "Noite de festa em..."
— Debaixo da foto, tola! - interrompeu-a a outra. Helena baixou
o olhar.
— "O conhecido construtor Nicolas L. Hagen com sua
namorada, a desenhista Lavínia Dickinson" - riu. — Desenhista? Mas
se minha irmã é uma pobre costureira que passa o dia encurvada na
máquina de costurar! Sempre quis fazer a diva, sempre. Acha-se
melhor que nós porque teve pai.
Nem bem essas palavras abandonaram sua boca, sentiu o vazio
da ausência. Lavínia... Amava-a, sempre a tinha admirado, e se
merecia algo bom na vida tão dura que havia tido, depois de lutar e
lutar em vão. Sua irmã se levou mal com ela, tinha-a deixado
sozinha, mas embora demonstrasse o contrário, em seu interior não
queria que aquela relação também resultasse um fracasso. Se Lavínia
estava saindo com alguém de tanto dinheiro, meteria-se em sérios
problemas.
Não se incomodou em terminar de delinear olhos nem pensou
que estava fugindo do lugar onde fazia pouco menos de um mês lhe
tinham dado trabalho e que era melhor que a rua. Tinha que ir para
casa.
Chegou para a hora do jantar. Com em uma rápida olhada não
viu Josué, fez uma pergunta.
— Você sabe se Lavínia esta saindo com alguém?
Cristina encolheu os ombros ao mesmo tempo em que enchia o
prato de Hector.
— Outro dia a trouxe alguém em um carro caro. Por quê? –
respondeu. — Pensa que anda em coisas estranhas? Pelo menos terá
sabido buscar um lugar digno, não como você.
A referência a seu trabalho não fez efeito em Helena. Zangada
como estava, deixou cair a revista, que aterrissou sobre a mesa,
aberta na página trinta e quatro. Sua mãe tinha que saber que
Lavínia não era prostituta. Nem fina, nem das ruas.
— Assim já sabia – resmungou. — E pensam guardar o segredo
ou tirar proveito? Porque se está pensando em tirar proveito...
— Lavínia! - interrompeu-a Cristina.
Não lhe demandou muito tempo notar que sua filha maior
destacava entre as fotografias. Vestia de branco diante de um fundo
negro com o logotipo de uma marca de roupa, e estava de pé junto a
um homem alto, grande e indubitavelmente distinto. Deixou-se cair
na cadeira e leu em voz alta.
— "O conhecido construtor Nicolas L. Hagen com sua
namorada, a desenhista Lavinia Dickinson". Com que este é o do
automóvel!
Josué saiu do banho e lhe arrebatou a revista de entre as mãos.
Helena se amaldiçoou porque não se deu conta de que ele podia estar
aí.
— É o tipo que me deu os cem pesos! - gritou.
— Deu-te cem pesos? - saltou Helena. Suas suspeitas se
confirmavam: todos tiravam proveito da Lavínia. — Quando? Por quê?
— Por que não me disse isso? - zangou-se Cristina. — Me
deveria ter dado. Depois de tudo, é o namorado de minha filha -
destacou o pronome possessivo.
— Disse-lhe isso, mas não acreditaste! - defendeu-se Josué.
— Para que poderia te dar o namorado de Lavínia cem pesos? -
insistiu Helena, preocupada. Com que até Josué já estivesse a par de
tudo e tinha começado a tirar dinheiro do moço. Josué se encolheu de
ombros.
— Não sei.
— Fale a verdade, que estava bêbado e por isso não te lembra
de nada - espetou a moça deixando cair no assento.
— Não provoque, Helena - desafiou-a a mãe. Helena apoiou as
pernas sobre a mesa em um gesto involuntariamente sensual e
colocou uma batata frita na boca. Estava acostumada a ser assim
embora essa não fosse ela em realidade.
— Não sei quem se pensa que é este bêbado imundo - seguiu
dizendo a do cabelo castanho, embora indecisa ainda sobre seus
sentimentos. De repente o rancor voltou a afligi-la. Por que Lavínia a
tinha abandonado? Por que não se precaveu do que para ela
significou "a noite trágica"? — E Lavínia, que se acreditava uma
princesa só porque teve um pai - seguiu dizendo, incompreendida.
— Cale a boca, Helena - voltou a desafiá-la a mãe.
— É a verdade, sempre lhe demos asco. Eu nem sequer conheci
o pai que me fez, e o pobre de seu filho, com este bêbado...
— Helena!
— Eu vou dormir, hoje não tenho vontade de... - ir "trabalhar" -
mas se calou bem a tempo.
Um momento mais tarde, Josué saiu em busca de seus amigos.
Retornava a casa quando alguém deu uns golpes nas costas. Voltou-
se a ponto de dar uma trombada ao ar. Só Deus sabia quão perigoso
era circular por esse bairro a essa hora da madrugada e com uma
bebedeira nas costas.
Como não se encontrou com um vadio, a não ser com dois tipos
de traje e gravata que levavam um auricular no ouvido e um cabo
que se perdia por debaixo do pescoço de suas camisas brancas, ficou
quieto. Com essa gente não se brinca.
— Gervásio reclama o que lhe deve, Perez - indicou o sujeito,
que conhecia seu sobrenome.
— Eu não lhe devo nada - respondeu Josué de mau humor. —
Que nem sonhe com que lhe pague um só peso.
Josué sentiu a ponta da arma sobre suas costelas, o calor da
ameaça nas vísceras, quase como se já lhe tivesse entrado a bala.
— Têm um filho, não? Um tal... Hector. Você não gostaria que
lhe acontecesse nada, certo? - Josué ficou mudo. — Lhe daremos
quinze dias para pagar toda a mercadoria que levou ou é passe.
Capítulo 20
Como ainda não tinha terminado de arrumar-se para ir ao
teatro, Lavínia pediu a Nick que a esperasse no salão. Quando saiu do
quarto, achou-o pinçando no bolso. Sabia que procurava os cigarros,
então o impediu.
— Não faça isso - rogou-lhe - Isso faz mal a você e eu não
gosto de te beijar com aroma de cigarro. Dê-me permissão para te
proibir uma coisa, como fazem todas as namoradas? - Nick sorriu
enquanto assentia. — Vou te proibir de fumar.
Nick mordeu o lábio inferior, divertido e de uma vez preocupado
por não poder cumprir. Tentaria não fumar pelo menos quando estava
com ela. Viu-a tirar algo da bolsa. Era uma tira de chicletes verde que
dizia algo de nicotina. Serviam para deixar de fumar.
— Tinha tudo planejado, não? - perguntou-lhe, risonho.
— Tudo - respondeu Lavínia com inocência. — Não via a hora de
que tirasse um cigarro para te dar o pacote de chicletes.
Nick riu e a beijou enternecido. Logo se encaminharam ao
automóvel.
— Estou tão excitada! - comentou ela enquanto ele conduzia. —
Um prêmio! Eu nunca ganhei nada, nem sequer um sorteio ou um
troféu por desenhos na escola - Nick só sorriu. — Mas você não está
nada excitado com este assunto, é porque está acostumado a
ganhar?
— Não... - refletiu ele. Em realidade não tinha ideia do que se
sentia estar de acordo com algo.
— Diga-me: a primeira vez que recebeu um prêmio, estava
excitado? - Ele encolheu os ombros.
— Nervoso talvez, excitado não. Cada vez que tenho que
enfrentar o público sinto que morro.
— Você? - Lavínia não podia acreditar. Ele parecia sempre tão
desenvolvido, tão simpático e cômodo quando atraía a atenção de
todos.
— Sim, olhe - disse-lhe, e assentou uma mão sobre o antebraço
dela para demonstrar-lhe que estava gelada e úmida. Lavínia sorriu.
— Não se preocupe, porque ninguém se dá conta.
Nick a olhou, fugaz.
— Me alegro de que o note você.
Lavínia se sentiu adulada por ele valorizar que ela fosse a única
pessoa de todas as que se encontrariam na sala que saberia o que de
verdade se agitava em seu interior, mas não pôde dizer nada em
seguida. Ficou pensando em outra coisa.
— É um lucro tão importante, algo que muitos querem, mas
poucos podem alcançar - adicionou pouco depois. — Por que não te
sente excitado, feliz?
Nick umedeceu os lábios e suspirou. Não sabia dar resposta a
isso porque em realidade não tinha ideia de por que nada o
conformava. Lavínia nem imaginava quão desesperador resultava
jamais sentir-se realizado com nada, ansiar sempre mais e que
quando o ansiado chegava, assemelhasse-se a nada.
— Não sei - concluiu. Lavínia lhe acariciou a bochecha com
ternura. Como se tinha detido por um semáforo que estava vermelho,
ele a olhou.
— Quando pensa parar? - lhe sorria como um anjo caído do céu
para aliviar sua pena. — Até onde pensam seguir?
Uma buzinada acabou com a filosofia. O semáforo ficou verde e
deviam ter avançado fazia um momento, só que o condutor que os
seguia não tinha paciência.
Lavínia sabia que ela estava de passagem, que não era mais
que um degrau na vida de Nick, porque ele queria mais, sempre
mais, e a imobilidade o acovardava. Nick era instável, exigente até a
indigestão, um lutador de convicções muito peculiares. Se uma
mulher poderia havê-lo retido, essa era sua ex-alma gêmea, Lavínia
sabia muito bem e isso a destroçava.
— Amo-te, Nick - sussurrou olhando as mãos. As unhas
pintadas com francesinha que tanto trabalho lhe havia dado fazer
sozinha para que Nick a visse bonita e delicada.
Como de costume, ele não respondeu, mas Lavínia não sabia o
furacão que se desatava no interior de Nick cada vez que ela dizia
essas palavras e ele ficava mudo. Ela podia resistir a seu silêncio? Até
quando? Esperava que pudesse fazê-lo durante muito, muito tempo
que passaria a seu lado embora fosse em silêncio.
— Lembra-te dos japoneses do navio?
Lavínia soube: Nick pretendia lhe pagar a falta de amor lhe
contando um segredo. Dava uma coisa por outra como se fosse o
mesmo, e ela o permitia só porque o amava e não queria perdê-lo.
Sabia que Nick se iria. Sabia e isso a desesperava porque não podia
abrir seu coração. Não podia mandar sobre seus sentimentos.
— Sim - replicou com obediência. Queria lhe gritar que não
podia viver sem amor e condená-lo a ele a viver sem amar, mas em
troca logo que sussurrava assentindo a proposta de trocar amor por
segredos.
— Investem em um projeto que estou desenvolvendo em um
lugar secreto - continuou ele.
Nick parecia mais entusiasmado porque investigava uma
novidade do que receber um prêmio por algo já conseguido. Nick
fazia isso: lutava e lutava até que chegava a um ponto que logo lhe
parecia nada, e só lhe subtraía seguir lutando. A Lavinia não tivesse
sentido saudades que ao descobrir isso que procurava naquele lugar
secreto ao que se referia, sentisse-se indiferente, depois de ter
procurado tanto.
— Se conseguir, meu nome vai passar à história - seguiu ele
ante o disperso olhar de Lavínia, que se fingia interessada no assunto
embora o que em realidade fazia era segurar o pranto.
— Procuro que meu sistema resista a qualquer terremoto, e
então estará preparado. Bonito, resistente e barato.
Lavínia assentiu com calma. Quanto estava disposta a resistir?
Quanto estava disposta a dar?
Depois da velada, acreditou que já se repôs do mau gole.
Entreteve-se vendo Nick subir ao palco para receber o prêmio,
agradecê-lo. Até a tinha saudado do camarote. Pensava em já não
dizer a Nick que o amava, e então economizaria a dor, mas lhe
escapava da alma, como aconteceu essa noite enquanto faziam amor.
Começaram no elevador, apenas com um beijo. Nick lhe
perguntou como tinha estado e se o tinha notado nervoso, lhe disse
que era o homem mais lindo do mundo e o beijou. Pretendeu afastar-
se, mas ele não o permitiu. Pôs uma mão detrás de sua cabeça,
pegou-a contra sua boca e irrompeu na dela com sua língua, que
desta vez não se movia lenta a não ser possessiva na deliciosa
cavidade da mulher. Lavínia ficou nas pontas dos pés e colocou os
braços ao redor de seu pescoço. Ele aproveitou a ação de sua
namorada para lhe rodear a cintura e arrastá-la contra a parede
espetada contra um cubículo. Amorteceu o golpe com sua própria
mão e logo aproximou as costas de Lavínia devagar.
Deixou uma mão apoiada no espelho. O frio do elemento
contrastava com o intenso calor que despedia de seu corpo e causava
uma excitante sensação de eletricidade nas costas nuas de Lavínia,
que as tinha descoberta pelo decote traseiro do vestido. Nick utilizou
a mão livre para rodear um peito de Lavínia sobre o tecido de sua
roupa. Ela gemeu. Nesse momento, ele abriu os olhos.
Viu o rosto avermelhado de sua namorada, que tinha os olhos
fechados, e o reflexo deles dois. Isso desatou sua fantasia, era tão
apaixonante que quis compartilhá-lo.
Girou a Lavínia entre os braços para deixá-la de costas a ele e
de frente ao espelho. Rodeou-lhe a cintura com um braço e lhe pegou
o traseiro a sua entreperna. Baixou uma mão e a arrastou do joelho
feminino para a coxa, levantando assim o vestido, que se enroscava à
medida que subia. Lavínia sentiu que os dedos lhe queimavam a pele
sensível da perna. Como tudo tinha acontecido tão rápido, ainda
estava confusa, então ele se explicou.
— Olhe - sussurrou-lhe ao ouvido. — Você não gosta de nos
ver?
Lavínia abriu os olhos. A imagem lhe encheu as retinas: eles
dois com as bochechas acesas de prazer, as pupilas banhadas de
paixão. Tragou com força, os lábios lhe tremeram. Nick não esperou
resposta, leu-a nos olhos de Lavínia, por isso seguiu estimulando-os.
Ela se aferrou as barras que dividia o espelho em duas metades
e entreabriu os lábios inchados e vermelhos enquanto ele se apertava
mais contra suas nádegas lhe rodeando os seios. Era a imagem mais
excitante que Lavínia tinha visto alguma vez: um braço lhe rodeando
a cintura e uma mão que, de sua perna, tinha passado a lhe friccionar
um peito por sobre o vestido. Os dedos se deslizaram por debaixo do
tecido e lhe roubaram um mamilo, que se estremeceu pelo contato.
Dali partiu uma corrente elétrica que repercutiu em seu sexo.
— Pare o... - murmurou ela. Respirava com agitação. Sentia
pulsar o desejo de Nick em suas nádegas e lhe anulava a razão. —
Detenha-o.
Referia-se ao elevador. Mas Nick não fez tempo a estirar uma
mão para o botão que se ouviu um ruído suave que indicava a
detenção. Os dois se deram a volta como meninos apanhados
fazendo uma travessura. Nick se separou dela, passou-lhe um braço
por sobre os ombros e fingiu sua melhor cara de aborrecido. A Lavínia
não resultava tão fácil enganar; com as bochechas vermelhas e o
rosto sulcado pelo desejo insatisfeito, quão único atinou a fazer foi
acomodar o vestido e logo baixar a cabeça, rogando que ninguém
desse conta do que acabava de acontecer ali dentro.
O casal, muito correto, desses que está perto das bodas de
ouro, vestia de ornamento.
— Boa noite - saudou o cavalheiro.
— Boa noite - replicou Nick com uma respeitosa inclinação da
cabeça.
— É uma noite calorosa, certo? - comentou o senhor de fraque
em relação ao clima, típica conversação de elevador compartilhada
com estranhos. Lavínia se esforçou por conter a risada, mas um som
áspero escapou de sua garganta. O casal a olhou sentindo saudades.
Nick sofreu o mesmo inconveniente.
— Nem o diga - respondeu, morrendo por dentro. Lavínia pôs-
se a rir. Já sem poder conter-se, ele a imitou. Os velhinhos de
categoria os olharam como a dois loucos, e até deram um passo para
o lado pretendendo afastar-se deles.
Descendo no piso de Nick, ainda rindo do assunto. Entretanto,
nem bem as portas do elevador se fecharam, lhe separou os pés do
piso e a arrastou contra a parede, amortecendo de novo o golpe com
o braço.
Beijaram-se como dois adolescentes apurados. Nick a elevou
sobre seu quadril e ela enredou as pernas ao redor dele. O vestido,
que tinha um comprido talho na perna direita, lhe enroscou no
quadril. A frieza da parede lhe arrepiou as costas, como antes o tinha
feito o espelho. Levantou os braços, Nick passou as mãos por detrás
deles, e foi baixando, desprendeu-lhe o fecho do vestido e logo, como
não saía pela cabeça com facilidade, rasgou-o. Um grito de êxtase
surgiu dos lábios de Lavínia. Tudo em uma fração de segundo.
— Vai rasgar todos os vestidos que tenho? - interrogou ela
fingindo-se chateada. Parecia dormida, mas estava muito excitada. E
por Deus que adorava que lhe rompesse a roupa.
— Todos. Você os arruma ou faz outros. Eu gosto de te arrancar
os vestidos - respondeu ele com tom sedutor. Lavínia riu. Era
impossível não rir com Nick.
Voltaram a abraçar-se e a beijar-se com paixão desenfreada.
Lavínia deslizou os dedos pelo pescoço de Nick até dar com a gravata
do smoking, da qual se desfez sem ver. Jogou-a no piso. E avançou
uns passos levando-a consigo até a porta, onde digitou uns números
em um painel, também sem olhar, enquanto as línguas se
entrelaçavam nas bocas, e a madeira se abria.
Ao tempo que avançavam contra a parede beijando-se, ela,
presa ao quadril masculino, procurou às cegas os botões da camisa e
começou a desprendê-los sem tempo que perder. Não chegou aos
que se escondiam dentro da calça. Passou as mãos pelo peito nu do
homem, apartou as mangas para que deixassem ao descoberto os
ombros e os beijou. Mordeu a pele e isso o fez emitir um gemido de
exaltação.
— Perdão - resmungou ela antes de lhe passar a língua
insistentes vezes onde pensou que o tinha ferido.
— Não é dor, é luxúria - explicou ele sem dar maiores voltas, e
a arrastou consigo até outra parede, cada vez mais perto do quarto.
— Me dê mais disso. Eu gosto.
Lavínia tomou o rosto entre as mãos, apertou-o e lhe mordeu
os lábios. Adorava fazê-lo. Pressionou mais as pernas ao redor do
quadril masculino para sentir a dureza de seu membro na zona
erógena dela, o que a fez gemer de prazer. Nick se apartou sem
soltá-la. Jogou um olhar aceso ao corpo que tinha diante dos olhos: a
pele branca resplandecia e o setor procurado se ocultava debaixo de
um sustento negro de encaixe bordô.
Apanhou um peito com uma mão e esfregou o mamilo por
sobre o tecido do sutiã; isso a fez umedecer. Enquanto isso beijou os
lábios que, vermelhos e entreabertos, procuravam um pouco de ar
entre tanta paixão. Colocou um polegar entre a pele e a alça do sutiã
para liberar um mamilo e beijá-lo com a língua. Ela tremeu ante a
calidez da carícia, fechou os olhos e jogou a cabeça atrás emitindo
um som afogado da garganta. Nick extraiu o outro peito, os dois se
avultavam fora do sutiã. Logo levou as mãos às nádegas de Lavínia e,
sustentando-a contra seu quadril, fez o trajeto mais largo: levou-a
para o quarto.
Depositou-a sobre a cama com suavidade, mas com urgência.
Desprendeu-se as calças enquanto ela pinçava na gaveta da mesa de
luz. Achou a caixa de camisinhas fechada e rompeu com uma unha
para tê-la pronta para quando ele estivesse completamente nu,
deslizou-lhe a calcinha pelas pernas.
— Segundos fora - brincou com a boxer enquanto se desfazia
também da mesma.
Lavínia riu, presa de um desejo entristecedor que lhe percorria
o corpo como pequenas serpentes, enquanto deslizava o preservativo
pelo membro de seu amante. Logo abriu os braços e Nick se refugiou
entre eles.
Penetrou-a de uma só vez, rápido e firme. Estirou-lhe os braços
e os colocou por sobre o cabelo, que se esparramava no travesseiro e
no edredom negro. Lavínia jogou a cabeça atrás. Sentia as mãos
quentes de Nick fechar-se em suas bochechas, as apertar até quase
lhe fazer perder a sensibilidade nos dedos. Que bom era tudo isso,
que incrível. Ele sabia exatamente o que, como e onde fazer para que
ela se esquecesse do mundo. Investia-a com tanta força que o fazia
tremer as pernas.
Abriu as pálpebras. Ele a olhava. E foram os olhos de ambos os
que gritaram antes que suas gargantas a reta final daquele encontro.
— Enfeitiçou-me - disse-lhe Nick beijando-a. Ainda não
abandonava o lugar estreito que o retinha.
Lavínia não respondeu com palavras. Mordeu-lhe os lábios,
beijou-lhe as bochechas e lhe lambeu o lóbulo da orelha. Isso os pôs
prontos de novo, as investidas se reiniciaram e não diminuíram até
que outra vez abriram os olhos e em silêncio gritaram pela segunda
vez que tinham acabado.
— É maravilhosa, Lavínia - disse-lhe Nick sobre seu corpo, lhe
beijando o pescoço, sem sair de seu interior. A rapidez tinha lugar
agora a uma lentidão dolorosa. — A mais formosa de todas - logo a
beijou nos lábios e lhe perguntou, ainda sobre ela. — Sabe por que
não te chamam Helena?
— Porque não sou a mais formosa do reino, depois de tudo? -
arriscou ela divertida, com os braços ao redor do pescoço de seu
namorado.
— O é. Mas definitivamente o romano foi um império muito
mais importante que o grego - disse Nick deslizando um dedo pelo
interior do braço da Lavínia, ainda no alto. Ela sorriu.
— Mas sem os gregos, os romanos não teriam crescido em
vários aspectos de nossa cultura - disse. Nick assentiu.
— É certo, mas a lei natural é que o aluno supere ao professor.
— Isso sim que é verdade - concedeu ela. — Quer que te
demonstre quanto te supero? - brincou. Nick tomou a sério, era uma
promessa muito tentadora para resistir.
— Eu adoraria.
Lavínia pôs as mãos sobre os ombros de Nick e o impulsionou
para trás. Ele obedeceu. Grunhiu ao sair dela, mas o mal-estar
passou muito rápido: em seguida teve que respeitar outra ordem.
Lavínia o fez inverter as posições. Nick ficou com as costas sobre o
colchão, e ela sobre suas pernas. Arranhou-lhe o peito. Percebeu que
ele se esticava de novo debaixo de seu corpo e a olhava como
drogado por seus encantos, então lhe fez uma promessa:
— Se continuar assim, não sabe o que te vai passar com o que
te vou fazer...
O membro se inchou mais. E ela se sentiu forte: tinha o poder
de pôr Nick em estado de vírgula.
Foi deslizando-se para trás lentamente, enquanto beijava e
lambia o torso masculino. Mordeu aqui e lá; escutava os sons que
escapavam da garganta de Nick cada vez que fazia isso, a respiração
que se agitava, e assim se ia pondo outra vez em circunstância ela
também.
Quando chegou ao lugar desejado, tirou o preservativo, deixou-
o cair no tapete e sucumbiu vítima da dúvida. Não sabia o que fazer,
como agradar. E também pensou que voltaria a provar sabores
estranhos. Mas não tinha sido tão mau a outra vez, de modo que só
limpou a zona com as mãos e com essas ideias em mente, exerceu
certa pressão na base e começou. Uma, duas, três vezes, cada vez
mais ao fundo da garganta, mais rápido, porque assim o exigiam
quão grunhidos ele deixava sair. Tanto fez que sentiu arcadas e Nick a
deteve segurando com suavidade o cabelo. Não aguentaria muito
mais tempo sem acabar e não queria fazê-lo dentro de sua boca.
Lavínia elevou os olhos. Escondida entre as pernas do homem,
olhou-o com uma bochecha ainda cheia e ele sorriu. Sustentava um
preservativo novo com a mão livre e em seus olhos cintilou uma luz
estranha. Foi o instante preciso em que Nick lhe cruzou pela mente
uma pergunta. O que tinha de distinto o sexo que experimentava com
Lavínia, se já o tinha feito virtualmente tudo com outras? Porque para
falar a verdade, nunca se havia sentido tão excitado e feliz como com
ela. A posição sexual mais tradicional do mundo com Lavínia era
melhor que a mais prazenteira e rebuscada com outras, inclusive com
Patrícia.
Para evitar que ele se ausentasse do ato, Lavínia ficou de
joelhos sobre a cama disposta a respeitar seu pedido enquanto Nick
colocava a camisinha. Logo a tirou do quadril e a fez sentar-se sobre
ele. Lavínia se deslizou para baixo, enterrando-se nela. Acima e
abaixo. Acima e abaixo. Dali podia dirigir o ritmo além de se fazer
muito mais cômodo porque Nick lhe acariciava os seios todo o tempo,
e às vezes deslizava uma mão por todo seu torso e seu quadril até
lhe apanhar uma nádega. Ia lento, logo rápido, de novo lento, até
que sem sair de seu interior ele a abraçou e a girou para lhe deixar as
costas sobre o edredom desordenado.
Impulsionou-se mais dentro tomando do respaldo da cama.
Estava-lhes custando chegar ao clímax porque não tinham respirado
entre uma relação e outra, e foram já pela terceira. Nick a beijou nos
lábios olhou-a com a pergunta pulsando nas pupilas e então gritaram
juntos o terceiro orgasmo.
Lavínia tomou o rosto entre as mãos, olhou-o e lhe disse a
verdade que escondiam suas pupilas.
— Amo-te, Nick. Amo-te.
Abraçou-o imediatamente, não queria que ele visse o brilho de
suas lágrimas. O não obter resposta era um pouco esperado, mas
mesmo assim quanto doía!
Horas mais tarde, enquanto amanhecia e o sol se filtrava pelo
enorme vitral do quarto, Lavínia abriu os olhos. Não estava sozinha,
os de Nick a observavam de um abismo.
Por que não posso te amar, Lavínia? Perguntava-se. Por que não
posso reconhecer que te amo?
— Diga-me o que está pensando - pediu ela em seguida. Nick
umedeceu os lábios.
— Que é formosa... - fingiu um sorriso.
— Não é verdade - replicou ela com calma. — Pensava: "por
que não posso te amar, Lavínia? por que se é bonita?".
Nick não queria ver-lhe os olhos, não queria reconhecer que ela
estava a ponto de chorar por sua culpa, por isso a estreitou contra
seu peito e a beijou na têmpora. Tinha a melhor mulher do mundo
entre seus braços e seu coração se fechava a ela como a tudo o que
alguma vez lhe tinha feito bem na vida. Era egoísta e insensato,
estava fazendo perder o tempo a seu lado, mas não podia deixá-la ir!
Necessitava-a como à própria respiração.
Lavínia se despediu de Nick antes que Fi chegasse a seu
apartamento. Ele tinha um mau pressentimento, mas se esforçou por
ocultá-lo. Lavínia estava séria, triste, suspirava.
— Levo-te ao aeroporto? - ofereceu ele. Não queria separar-se
de Lavínia e estava disposto a acompanhá-la até aparecer a Tamara,
que chegava de sua lua de mel, para passar mais tempo com ela.
— Não é necessário - respondeu Lavínia sem perder a seriedade
que a cobria. — Vou até sua casa e seu primo me leva com ele em
seu carro.
Não era irritação, não era maldade. Era frustração, pena e dor.
Nick se odiava. Não queria que Lavínia perdesse todo seu
brilho, sua alegria, por sua culpa. Não insistiu em acompanhá-la,
possivelmente ela necessitasse um tempo a sós e logo tudo voltava
para a normalidade, ao menos a que lhe impunha. Quando viu chegar
Fi, esforçou-se por fingir que tudo estava em ordem com um sorriso
falso. A mulher os achou na porta do edifício.
— Já vai? - perguntou a Lavínia.
— Sim - replicou esta sem poder sorrir como Nick fazia.
— Já vi, Fi - brincou ele com rosto exageradamente
compungido.
— Minha namorada me deixará sozinho todo o domingo.
— Me perdoe - desculpou-se Lavínia com sinceridade. — Minha
melhor amiga chega de lua de mel e quero ir recebê-la.
— Isso está muito bem - coincidiu Fi.
— Tchau, Fi - saudou-a Lavínia e deram-se um beijo.
— Tchau.
Fi a observou afastar-se e logo se voltou para Nick. Ele também
olhava a Lavínia de um lugar afastado do mundo, onde só existiam
ele e seus emaranhados sentimentos.
— Definitivamente é o homem mais afortunado do mundo -
comentou Fi, percebendo que algo acontecia. Pensava que Nick fazia
uma boa escolha em Lavínia e apostava que ele não a merecia.
— É formosa - concluiu ele.
— E te ama - repôs a mulher. — Isso é o importante.
A Nick não fazia falta que Fi lhe dissesse que Lavínia o amava.
Sua segunda mãe tampouco se dava conta do impacto que esse
comentário tinha nele em um momento como esse.
Lavínia se reencontrou com Tamara. No lar recém-estreado, os
contos dos namorados lhe fizeram esquecer por um momento a dor
que albergava em sua consciência. Entretanto, ao retornar a casa,
uma singular sensação de solidão se abateu sobre ela como o pó que
dispersava pelos móveis. Por sorte desfazendo-se dele sobre a
desordem que sempre a caracterizava, mas a dor continuava
instalada em seu peito, seguia-a como uma sombra.
Acabou sentada à mesa da sala, pensando em que não davam
cinco da tarde e ela já estava sozinha em casa, e Nick só em seu
apartamento. Queria correr para ele, passar o que ficava do dia a seu
lado, mas se conteve. Até quando faria o papel de tola, da que não se
dava conta de que desperdiçava seu amor e a vida ao lado de um
homem que não a amava? Nick era honesto, tal como lhe tinha
prometido, e nem sequer procurava lhe mentir em relação a seu
amor. Não lhe respondia quando lhe dizia que o amava. Que o tivesse
feito sem senti-lo teria sido pior, consolou-se. Entretanto, quanto
daria por uma mentira!
Tinha que ir desprendendo-se de Nick e sabia. Tinha que
abandonar o amor absurdo que albergava em seu coração, que
pulsava desenfreado cada vez que o via. Tinha que desenterrar de
sua mente, por isso não o chamou, e tentaria não fazê-lo enquanto
ainda tinha forças para resistir a seus próprios sentimentos. Falar...
não podia. Sabia como era difícil de tê-lo em sua frente, acabaria
rendendo-se a seu coração apaixonado, e assim se converteria em
um ser egoísta. Até quando poderia ele viver sem amor?
A manhã de segunda-feira passou percorrendo comércios,
tratando de deixar objetos em consignação. Só ficaram com duas
blusas: em uma feira americana, como se seus objetos tivessem sido
usados. Sentia-se tão triste por sua má sorte sentimental e
profissional que nem sequer almoçou. Além disso, não tinha nada
para comer e não tinha cobrado seus últimos trabalhos. Estava no fim
do mês, e se as pessoas tinham que ficar devendo a alguém, era à
costureira.
Lavínia suspirou e se encurvou sobre a máquina de costurar
para terminar mais trabalhos e verificar se tinha a sorte de que essas
pessoas lhe pagassem, assim poderia comprar algo para o jantar.
Estava cansada e de mau humor para suportar que golpeassem a
porta. Mesmo assim, quando a ouviu, levantou-se e perguntou quem
era.
— Hector! - exclamou a voz de Josué do outro lado.
Josué jamais tinha pisado em sua casa. Se se atrevia a ir ali
era porque passava algo grave. Lavínia abriu sem duvidar.
O grandão cheirava a álcool e a imundície. Lavínia apertou as
mãos e tentou manter-se em seu lugar para que ele não pudesse
entrar, mas não foi possível, Josué pôs um pé dentro e empurrou a
Lavínia para trás.
— Diga-me o que se passou com Hector e vá embora agora
mesmo - indicou ela sem perder seu centro.
— Têm sozinha duas formas de fazê-lo, mas de uma ou outra
maneira o vais ter que fazer.
— Não entendo de que fala - interrompeu-o ela. — Se não veio
pelo Hector, se retire agora mesmo.
— Pelas boas ou pelas más - continuou ele, ignorando sua
ordem.
— Saia de minha casa, Josué - replicou Lavínia. — Agora!
Josué se lançou contra ela, mas não a tocou. Deteve-se um
passo. Lavínia se fez para trás para não respirar seu ar viciado.
— Necessito prata. Têm que me dar mil pesos - reclamou ele
mostrando-se perigoso. — Ninguém mais pode.
Lavínia semicerrou os olhos.
— O que se passa? - espetou-lhe. — Vá pedir a Helena ou a
minha mãe, como tem feito sempre. Nem sequer te dá vergonha que
seu filho te veja assim, que siga seu mau exemplo.
— Vai dar os mil pesos - ele soava ameaçador, mas Lavínia não
tinha medo.
— Não tenho - defendeu-se. — Estava costurando para jantar,
nem sequer almocei.
— Peça-os a seu namorado. Se sai com você nas revistas, é
porque é endinheirado.
Lavínia entreabriu os lábios. Sabia! Sabia que ser publicamente
namorada de Nick traria problemas!
— Quem te acredita que é? - enfrentou ao moreno. — Por que
pensam que pode vir e reclamar o dinheiro de alguém a quem nem
sequer conhece, porque cheira a álcool e te drogas e por isso as
pessoas de bem lhe consideram perigoso? Eu não tenho medo, e por
mim tu podes morrer antes que tirar ao Nick um só centavo para
seus vícios.
— Não vou morrer - replicou Josué elevando uma navalha. —
Antes vou te matar - ameaçou, mas Lavínia não se acovardou.
— Me mate - desafiou-o.
— Peça o dinheiro ao tal Hagen.
— Nem morta.
Depois de um intenso olhar, Josué guardou a navalha e se
encaminhou à porta ignorando aquela resposta.
— Têm uma semana – sentenciou. — Ou pode ir te despedindo
de seu enterro.
— Já não saio com Nick - informou-lhe ela, mas Josué voltou a
ignorá-la.
— Do contrário, podem ir escolhendo com quem compartilhar a
campa: com Helena ou com Hagen.
Nem bem Josué fechou a porta atrás de sua imensa e odiosa
figura, Lavínia se levou as mãos ao peito e se apoiou na parede,
incapaz de conter a agitação que a devorava. Quase não podia
respirar.
Josué se tinha tornado perigoso e macabro, tinha-a ameaçado
matando a sua irmã ou a seu namorado. Quem sabia que dívidas
tinha e por que o dinheiro que Cristina ou Helena pudessem lhe dar já
não lhe chegava. Necessitava mais, e Lavínia, através de Nick, era a
melhor opção.
Não podia permiti-lo. Sempre soube que assim que sua família
se inteirasse de que ela tinha um namorado economicamente
acomodado, as coisas se complicariam ainda mais do que já o
estavam. Somado a que Nick não a amava, o círculo fechava perfeito.
Devia deixá-lo ir.
Já não pôde trabalhar. Quando o telefone soou as onze, soube
que se tratava de Nick, mas não se atreveu a responder. Não podia
fazê-lo, acabaria cedendo, por isso se armou de coragem, tampou os
ouvidos como se com isso pudesse deixar de ouvir a campainha do
telefone, e esperou. Como odiava as secretárias eletrônicas, ele não
falou. Lavínia o agradeceu porque do contrário não sabia como ia
fazer para não levantar o telefone e lhe dizer que o amava.
Nick merecia uma despedida, mas ela não podia dar-lhe. Não
devia vê-lo de novo.
Na terça-feira a situação foi a mesma: Lavínia passou a manhã
inteira na cama, dando voltas como tinha feito toda a noite. O
telefone soou várias vezes, mas decidiu não responder. Tentou
costurar a máquina. Não pôde.
Às onze da noite o telefone voltou a soar. Lavínia não
respondeu. Ao segundo chamado, saltou a secretária eletrônica.
— Lavínia - disse a voz de Nick. A pele de Lavínia se arrepiou
ao escutá-lo, todo seu corpo tremia de impotência. Sentia-se inútil
ante as ameaças de Josué e ante o desamor de quem a chamava.
— Lavínia sou eu, Nick. Sabe que eu não gosto de falar com as
máquinas, por favor, atenda-me? - fez uma pausa. — Lavínia... Está
bem, me chame assim que possa, me tem preocupado. Deixe-me que
te dê de presente um celular? Por favor. Já o devia ter feito, teria
proposto isto antes: tenho que viajar e queria que esta vez fôssemos
juntos...
Um assobio acabou com a gravação. O tempo tinha terminado.
Lavínia se jogou sobre o telefone seguindo o impulso de chamar Nick,
mas se conteve. Com a cabeça apoiada sobre os braços estendidos,
venceu o desejo de voltar para ele, de retornar à vida.
De noite, Nick passou pela casa de Lavínia a caminho do
aeroporto. Ela, até sabendo que ele estava do outro lado da porta,
limitou-se a soluçar com o ouvido pego à madeira, pressentindo os
passos do homem, que iam e vinham pelo corredor. Antes de ir-se,
ele deslizou um papel por debaixo da porta.
"Você está estranha, estou preocupado com você. Tenho que
viajar, ficarei três dias em Rio Negro. Te ligo esta noite", leu. Debaixo
tinha anotado um número de telefone e o nome de um hotel, sem
dúvida onde se hospedaria.
Lavínia suspirou. Ele era tão sincero que quase não parecia o
homem que tinha conhecido.
Os dois dias seguintes tampouco respondeu aos chamados
telefônicos, exceto quando alguma de suas clientes falava com a
secretária eletrônica. Entre esses chamados, ressoou a voz de Fi.
— Lavínia, sou eu Fi. Nick me está pondo louca, está
preocupado porque diz que não responde seus chamados e ele não
podia suspender sua viagem. Pediu-me que te avisasse que vai ligar
hoje às onze da noite e que se não atender volta hoje mesmo e põe a
porta abaixo, assim será melhor que responda. Assim é como me
disse isso, e sabe que tenho uma arte para repetir o que me dizem.
Adeus. Espero que esteja bem. Fale para me deixar tranquila.
Quando o telefone soou às onze, Lavínia não teve mais opção
que atender. Para isso se cobriu de um ar de indiferença, tão falso
como se Nick não lhe importasse absolutamente.
— Por Deus! - exclamou ele nem bem ela respondeu o
chamado. — Estava preocupado, por que não respondia, onde
estava?
— Por aí - replicou ela o mais breve possível.
— "Por aí"? Está bem?
— Muito bem - depois de dizer isso, Lavínia fez silêncio. Escutou
a respiração de Nick, quase parecia atemorizado.
— Passa algo?
— Estou ocupada, Nick, nada mais - respondeu ela, escassa de
paciência. Pensava que, se seguisse falando, já não poderia sustentar
a farsa.
— Está zangada? - repôs Nick com voz paciente. — É porque
viajei? Juro-te que tentei me comunicar, mas não consegui. Se até
falei com a secretária eletrônica por você! Sabe que odeio isso -
pretendia soar divertido, fazer rir a Lavínia ou ao menos lhe arrancar
um comentário gracioso, mas ela se manteve em silêncio. O vazio do
outro lado da linha era frustrante. — Lavínia?
— Disse-te que estou ocupada, Nick - repetiu ela de mau modo.
— Volto na sexta-feira. Posso passar aí?
— Não te incomode, tenho um compromisso.
Nick se perguntava o que a fazia ser tão cortante e nervosa,
mas podia intuí-lo. Ele tinha um passado e jamais poderia apagá-lo.
Possivelmente alguma mulher tinha reaparecido, ou alguém havia
dito a Lavínia que ele continuava levando uma vida que tinha
abandonado.
Por Deus que tinha abandonado tudo por ela! Porque não o
necessitava. Não necessitava nada mais que a Lavínia.
— No sábado, então – tentou. — Diga-me a que hora estará
livre e eu...
— Não estou livre no sábado - interrompeu-o Lavínia. — Não
venha. Disse-te que tenho um compromisso e não penso dizer qual é.
— Não ia perguntar.
— Saudações, Nick. Boa sorte.
Depois de cortar o chamado, Lavínia estalou em pranto. Só
Deus sabia quanto amava a esse homem, mas por um lado, não
estava disposta a ser o prêmio de consolo de um namorado
apaixonado por outra. Por outro lado, não podia condená-lo a uma
vida sem amar. Por último, Josué o tinha na mira, e Lavínia não
queria expor Nick às perversas ações de sua família.
Nick não voltou a chamar até a sexta-feira de noite, embora
não o fez às onze, a não ser às oito. Deu-se conta de que chamava
em um horário inesperado, era mais provável que ela respondesse.
— Têm um melhor dia hoje? - disse nem bem escutou a voz da
Lavínia, triste e apagada, do outro lado da linha.
— Disse-te que tinha um compromisso hoje a noite - replicou
ela, tão dura como foi possível. — Ligou para me controlar? Nem
todos mentimos tão bem como você, Nicolas.
Que ela dissesse seu nome completo lhe provocou uma
sensação tão desagradável que ele também esteve a ponto de ficar
muito sério, quase como quando se ofendeu com aqueles primeiros
chamados que tinha feito a Lavínia. Entretanto, conseguiu vencer
todo o desgosto e se reconheceu culpado do vazio de seu anjo.
Lavínia era boa e não atuaria desse modo se não se devia a que ele a
tinha magoado.
— O que aconteceu, Lavínia? - perguntou com a voz afogada. —
O que fiz? O que fiz mal esta vez?
Lavínia se sentiu morrer. Pensou em lhe dizer a verdade, em
que ele não tinha feito nada mal porque amar a outra pessoa não
significava ser perverso e que Josué a pressionava, mas guardou
silêncio. Não podia dizer todas essas coisas, não resistiria.
— Estou ocupada, Nick - argumentou.
— Compreendo - respondeu ele - Não te incomodarei mais.
— Obrigado.
Lavínia desligou primeiro. Já não tinha lágrimas que chorar,
mas em troca podia destroçar suas costas encurvada frente à
máquina de costurar, e assim o fez. Toda a madrugada.
Nick pensou em fazer algo de sua vida, não queria passar a
noite sozinho. Entretanto, não tinha vontade de sair, não sem Lavínia.
O que ia fazer em um bar ou em uma discoteca, se não tinha
interesse em ninguém mais que em sua namorada? Além disso, era-
lhe fiel. Tão fiel que não sentia ânimo de notar se alguém o
provocava, nem desejos de provocar. Tampouco desejava outro corpo
que não fosse o dela.
Josué entupiu a secretária eletrônica de Lavínia com mensagens
arrepiantes, mas ela em nenhum momento pensou em trair Nick lhe
pedindo dinheiro para Josué. O marido de sua mãe estava louco se
pensava que o faria.
Quando Fi chegou no sábado pela manhã a casa de Nick,
surpreendeu-se de não achar Lavínia com ele que ficava dormindo
algumas sextas-feiras e todos os sábados.
— E Lavínia? - perguntou enquanto servia duas taças de café.
— Brigaram?
— Ela tinha um mau dia - explicou ele com voz serena.
— E você teve algo que ver com isso?
Nick elevou o olhar. Fazia-se evidente que Fi o estava acusando
e que não acreditava nem por acaso que Lavínia pudesse haver-se
zangado sem que ele fosse a causa.
— Não - respondeu sucintamente. — Não que me tenha dado
conta.
Fi sentou na borda da mesa e cruzou os braços.
— Nick. Essa garota é boa.
— Já sei, Fi - ele franzia o cenho. A mulher sorriu e lhe
acariciou o cabelo que, sem gel, caía-lhe em algumas mechas sobre a
frente. Sempre o levava curto e polido, mas nesse momento não era
mais que um matagal sem forma que lhe dava um ar sensual
involuntário.
— Toma o café - disse lhe estendendo uma xícara. — Eu vou
arrumar sua casa.
— Não têm que fazer isso - pediu ele. — Sente-se.
— Quero fazê-lo. E depois te preparo chocolate.
Os olhos do Nick brilharam. Sorriu. Não havia modo de impedir
Fi de fazer o que se propunha.
No sábado, Nick resistiu a solidão à força de trabalho atrasado e
café. Evitou o cigarro com os chicletes que Lavínia lhe tinha
comprado. No domingo, esperançado em que ela melhorasse de
ânimo, foi ao seu apartamento.
— Quem é? - perguntou Lavínia de mau modo, pensando que
se tratava de Josué. Se cumprisse com o prazo estabelecido,
retornaria pelo dinheiro na segunda-feira, e já não a encontraria
despreparada, mas se se tinha adiantado, tampouco.
— Nick.
Ante a voz, o corpo de Lavínia, fraco de suportar tudo com
grande esforço, tremeu.
— Estou ocupada, Nick - falou. - Ele se deu conta de que a voz
da Lavínia não soava como de costume, parecia ter chorado ou estar
doente. Graças a isso acreditou dar-se conta da razão pela qual ela se
negava a vê-lo. Mas acaso podia ocultar-se só por uma gripe?
Preferiu pensar que era assim.
— Três vezes a mesma desculpa? – brincou. — Parece-me que
está perdendo originalidade.
— Vá embora, de verdade estou ocupada.
— E doente - sorriu ele em resposta. — Agora entendo por que
não queria obrigá-la. Não se preocupe, não tenho medo, eu nunca
fico doente. Lavínia? - ela se tinha afastado. Ele soube e não pôde
resistir. A incerteza chegaria até esse ponto, não mais.
A porta se abriu de uma patada, com tanta força que a
fechadura se rompeu e a madeira golpeou contra a parede. Lavínia,
que lavava um lenço na pia da cozinha, saltou de susto e voltou no
momento em que Nick lhe aproximava sem permissão.
— Não! – exclamou. — Que parte não entendeu de que já não
quero te ver?
Nick a sujeitou pelos braços e a sacudiu. Toda essa reação não
lhe parecia normal, nem sequer possível.
— O que fiz? – indagou. — O que lhe disseram que fiz?
Pensava que alguém podia lhe ter mentido, lhe haver dito que
ele a enganava ou que o tinham visto com outra mulher. Não sabia o
que pensar.
— Não quero voltar a ver-te! - reclamou ela em um grito de
fúria e de impotência.
Nick não gritou, não a sacudiu nem lhe disse nada, somente a
abraçou. Apertou-a contra seu peito e lhe beijou a testa.
— Tem febre - anunciou em sussurros.
— Já não me serve - espetou-lhe ela com crueldade. —
Aborreceu-me. O que te passa? – ironizou. — Acredita que é o único
que pode aborrecer-se de suas amantes e desfazer-se delas como de
um par de meias?
Nick a ignorou. Feriam-no suas palavras, mas as perdoaria.
Perdoava-as sozinho porque a necessitava para seguir vivendo. Não,
isso não era amor, repetiu-se. Mas tampouco soube dizer do que se
tratava então.
— Deixe que cuide de você - pediu-lhe. Lavínia sentiu que se
rasgava de dor.
— Nicolas, falo a sério - replicou, mas lhe tremeu a voz.
Aí estava esse maldito nome. Para Nick soava tão frio, tão duro
e distante... Odiava que o chamassem assim, em troca quando as
pessoas, embora fosse um estranho, chamava-o "Nick", ele se sentia
querido. Esse mal-estar não se transmitiu em sua voz sempre serena,
sempre longe de suas emoções.
— Sente-se - pediu.
— Não. Vá!
— Está doente - repetiu ele pinçando no bolso do casaco.
Procurava seu telefone. — Não é bom que esteja sozinha. Deixa que
chame Fi e suspenda tudo. Fico aqui com você. Vou cuidar de você,
vou fazer você se sentir melhor.
Lavínia o empurrou para trás. Não tinha forças, mas conseguiu
que ele se apartasse por si mesmo. Respirava com agitação para não
dar-se por vencida.
— Falo a sério – assegurou. — Aqui termina tudo, Nick. Não te
quero.
Ele a observava em silêncio.
— Isso é o que quer? - perguntou indignado. — É sua última
palavra?
— É minha última palavra.
Nick baixou a cabeça e apertou as pálpebras antes de abri-las
de novo. Jogou-lhe um último olhar, logo se voltou para a porta e
caminhou uns passos até a saída. Voltou-se na soleira e semicerrou
os olhos de fogo.
— Nunca te traí. Sabe, não? - perguntou. A Lavínia não bastou
o coração para mentir. Ela poucas vezes mentia, e quando o fazia,
tudo saía mal.
— Sim - confessou com os olhos úmidos.
— E com você fui o melhor que posso ser, dava o melhor de
mim – continuou. — Acredito que ao menos não merecia que
pretendesse terminar com o que tínhamos me ignorando. Acaso te
dava a impressão de ser um homem com o qual não podia se
justificar?
— Não... - a resposta de Lavínia foi quase imperceptível, disse-
a em um tom baixo e pausado, em um sussurro. Sentia-se mal-
agradecida e cruel.
— Então quero que me diga uma só coisa. Por quê? Quero dizer,
por que me deixa – esclareceu. — Há algo que queira me dizer?
Lavínia apertava os lábios. Não podia dizer a metade do que
acontecia, mas sim o que se agitava em seu próprio coração. Elevou
a cara e deixou que uma lágrima abandonasse seus olhos verdes.
— Você não me ama - replicou afogada. — Quer que descreva
como vejo esta relação? Aqui eu não sou mais que uma adolescente
junto à rádio, e você o grande cantor.
Nick sentiu que as palavras abriam uma ferida fechada à força
em sua alma e em sua memória. Octávio fazia quão mesmo Lavínia
descrevia com Teresa, e ele morreria se fazia isso a sua namorada.
— É isso que te faço sentir? - perguntou tremente. Quase
parecia capaz de chorar. — Possivelmente ao princípio, mas quando
de verdade me conheceu... isso é o que sou?
Lavínia tragou com força, incapaz de dar uma resposta. A
verdade era que Nick não a amava e que sua família queria
aproveitar-se dele, nada mais. O resto eram invenções apoiadas em
assuntos que, tal como Nick anunciava, só se tinham dado no início.
Sabia que ele estava sendo honesto, possivelmente muito.
Podia sentir sua dor, e embora desconhecesse a causa, era consciente
de que ela o estava provocando.
— Não me ama, Nick - recordou-lhe. — Me ama? - Nick apertou
os punhos e tragou com força, mas guardava silêncio. — Me ama? -
repetiu Lavínia com um tom baixo de voz. Nick baixou o olhar. Ela se
voltou de costas. — Vá embora, por favor. Não temos nada mais que
falar.
Lavínia escutou fechar a porta de casa e pensou que esse era o
último dia de sua vida, ao menos da que tinha conhecido em
companhia de Nick. Não estava disposta a expô-lo aos caprichos de
sua família, nem ela se resignava a passar a vida junto a alguém sem
amor. Se Nick não a amava, mas ela sim o amava, era melhor deixá-
lo livre, que pudesse lutar pela mulher que de verdade queria e
então... então ser feliz. Ele o merecia. Necessitava-o.
Capítulo 21
Era segunda-feira. Lavínia não queria abandonar sua casa, mas
estava consciente de que se não se medicasse, a febre ia seguir
subindo. Adoecia seguidamente para ser verão, pensou. Sem dúvidas
as necessidades econômicas, o trabalho constante e a tristeza por
Nick a estavam consumindo mais rápido do que o esperado.
Abrigou-se mais da conta para a época do ano em que se
encontravam, recolheu o último trabalho que tinha terminado e saiu
de sua casa rumo à de seu cliente.
Secou o nariz com o lenço. Como não fosse suficiente, soprou,
e mesmo assim não pôde respirar com normalidade. Tocou a
campainha. A mulher abriu a porta com gesto sério. Fazia-se evidente
que a visita de Lavínia lhe incomodava.
— Desculpe - disse-lhe ela esforçando-se por falar sem
interromper-se pela falta de ar e a dor de garganta - ficou de passar
para pegar sua roupa no sábado e como não veio...
— Irei mais tarde - replicou a mulher.
— É que não posso esperar até mais tarde - respondeu Lavínia.
— Desculpe, mas por fazer este trabalho que você me pediu para o
sábado deixei de fazer outros, e se não cobrar, não posso comprar
uma medicação. Será possível que lhe entregue meu trabalho em
troca me dê o dinheiro?
A mulher soprou, recolheu a bolsa de mau modo e se meteu em
casa. Lavínia suspirou e se abraçou para dar-se calor. Não fazia frio,
mas lhe parecia que estavam em pleno inverno. Tiritava e quase não
podia manter-se em pé.
A cliente demorou eternos minutos em voltar a sair, como se
Lavínia fosse uma moléstia, como se a estivesse ofendendo lhe
aproximando o objeto reparado e lhe reclamando o dinheiro como se
ela não fosse pagar.
Lavínia se sentia envergonhada de ter que expor sua situação
para cobrar, parecia mendigar em lugar de estar trabalhando. Quando
Hector vivia com ela, mendigava a quem fosse necessário para lhe
encher a barriga, lhe oferecer água, luz e gás, mas agora que estava
sozinha podia deixar de fazê-lo. Se não fosse porque estava doente e
porque se não se curava não podia seguir trabalhando, não teria
pedido nada. Tampouco estava com ânimo para fazê-lo, só queria
deitar-se na cama e chorar.
Com os vinte pesos que acabava de cobrar nas mãos, caminhou
rumo à farmácia que estava perto de sua casa. Transitava por uma
rua do bairro até que um automóvel se deteve a seu lado e abriu uma
porta. Não fez tempo a olhar do que se tratava o assunto que um par
de braços fortes a pegou pela cintura, elevou-a no ar e a introduziu
no carro.
Lavínia pensou em seguida que eram os sujeitos que
pressionavam ao Josué. Era o dia que o marido de sua mãe tinha
disposto como limite e estava segura de que, para tirar-lhe de cima, o
muito covarde lhes haveria dito que ela lhes pagaria. Possivelmente
até lhes tinha falado de seu namorado rico e de todas as fantasias
que ele tecia em sua mente em relação a esse assunto.
O namorado rico que não a amava.
Só isso lhe faltava, que um par de mafiosos a sequestrasse e
pretendesse lhe tirar o pouco que tinha, quer dizer, os vinte pesos
que acabava de cobrar.
Subiram-na a um veículo negro de vidros polarizados. Embora
sentisse medo, não o demonstrava. Podia tentar uma defesa, mas
não viu sentido em fazê-lo. Sentia-se tão mal que lhe faltavam as
forças e, além disso, era melhor parecer entregue que fazer-se de
valente porque possivelmente assim a deixariam em paz logo.
Esperava que lhe cobrissem o rosto para lhe impedir de ver o
traficante, entretanto isso não ocorreu. As portas do BMW de
assentos de couro se travaram e Lavínia duvidou se olhava ou não ao
sujeito que pressentia a sua esquerda. Finalmente, a ansiedade por
saber foi mais forte que o medo e girou a cabeça.
Tratava-se de um tipo vestido com um traje tão exclusivo como
os de Nick. Embora tivesse aparência jovem, seu cabelo era grisalho
e em seu rosto despontavam algumas linhas de expressão. Soube
que era judeu porque levava uma kipá. Muito estranho, para ser um
mafioso.
— Não tenho mais que estes vinte pesos que pensava usar para
comprar um remédio para a garganta - disse Lavínia com pesar.
Notava-lhe na voz que estava doente, que já não aguentava mais. Ele
mostrou a nota.
— Tudo o que Josué lhe disse é mentira. Não tenho um
namorado rico nem posso pagar suas dívidas. Lamento que se tome
tanto trabalho comigo.
Horácio Lowenstein elevou suas povoadas sobrancelhas
grisalhas e cruzou os braços. Seu chofer já fazia andar o automóvel.
Estirou um braço e golpeou a janela de madeira que os separava.
— Rogério - disse quando esta se abriu. — Primeiro pare em
uma farmácia.
Nick não deixava de pensar em Lavínia. Embora um cliente
tivesse chegado com uma boa proposta à primeira hora da manhã,
ele não tinha prestado muita atenção. Era consciente de que Lavínia
tinha todo o direito do mundo de deixá-lo se ele não podia lhe dizer
que a amava. Tinha razão, por Deus, mas desejava retê-la a seu lado
assim, no silêncio, sem que ela esperasse nada em troca! Por que as
mulheres como Lavínia não podiam viver sem que seu parceiro lhes
dissesse que as amava? Por que ele não podia dizê-lo?
A muita gente era fácil fingir, diziam-se "amo-te" como "chove"
ou "faz frio", embora isso não despertasse um só sentimento. Que
singelo seria poder fazer o mesmo com Lavínia, mas ele não era
capaz. As palavras não abandonavam sua boca se não jogassem
raízes em sua alma. Além disso, ela teria se dado conta de que
mentia e de todos os modos o teria abandonado, porque Lavínia
tampouco era dessas tantas pessoas capazes de fingir toda a vida por
conformismo. Acaso o era ele? Não, com ela não.
Podia deixar passar o tempo e logo tentar voltar com ela. Sim,
isso seria apropriado para que os dois ordenassem suas emoções.
Enquanto ele se debatia entre desenvolver esse interessante
projeto que acabavam de lhe oferecer nos Emirados Árabes e seus
alvoroçados sentimentos, Fi abriu a porta do escritório sem golpear e
avançou até seu escritório. Nick elevou a cabeça imediatamente. Sua
secretária parecia preocupada no momento em que colocou um papel
sobre a mesa de madeira.
— Atenda a linha um e leia isso - indicou.
Nick não estava com ânimo para falar com clientes
demandantes nem para suportar resultados de inspeções.
— Agora não posso - respondeu com falta de ânimo. — É muito
urgente?
— É Eduardo já sabe de onde - respondeu a mulher. — Não
responda ao chamado antes de ver isso – assinalou. — E permaneça
tranquilo, estas coisas passam.
Fi saiu por onde tinha entrado antes que Nick respondesse o
chamado.
— Os japoneses desistiram do projeto, Nick - indicou a voz do
outro lado da linha. — Já leu sobre isso? - pelo silêncio, deduziu que
não. — Leia e não te desespere.
— Viu-me alguma vez desesperado? - replicou Nick com certa
graça.
— Suponho que esta será a primeira vez.
Em cima da mesa estava uma revista de desenho em que sua
assistente tinha marcado uma página com um marcador. Nick abriu
onde se especificava e leu o título da nota com discreta inquietação.
"Uma empresa que resiste a tudo", leu. O cabeçalho rezava:
"Construtora Lowenstein lançará no mercado um novo e
revolucionário sistema construtivo".
— Filho de puta - resmungou Nick. — Não quero pensar que é o
meu...
— Nos adiantou, Nick - exclamou a voz no telefone. — E os
japoneses já não querem investir em algo que lhes trará perdas.
Nick não se deixou derrubar pela informação. Apesar do
crescente ódio que experimentava por Lowenstein, serenou seus
ânimos e suspirou.
— Está bem, Eduardo – replicou. — Já me ocorrerá algo. Você
seguirá como vínhamos até agora, não detenha nada.
Inclusive antes de cortar a comunicação, Nick sentiu que seu
telefone celular vibrava em seu bolso. Poucas pessoas tinham acesso
a esse número: Pablo, Fi, Patrícia e Lavínia.
Pensando que era ela, extraiu-o do bolso e olhou a tela.
Número restringido. Podia ser Lavínia de um telefone público ou com
um emprestado. Atendeu sem duvidá-lo.
— Para este momento já devem te haver chegado as boas
notícias - disse a reconhecível voz de Horácio Lowenstein do outro
lado da linha. — Quero que saiba que como você fode a minha filha e
a minha esposa, do mesmo modo eu fodo seus negócios e a sua
namorada. Se ainda têm dúvidas, pode vir ao Hyatt. Estarei entrando
com ela em... - olhou seu relógio de pulso - quinze minutos.
Nick ficou gelado, com as palavras engasgadas. Antes de ser
sua esposa era a minha, pensou em relação a Patrícia, você me tirou
isso primeiro, agora assuma as consequências.
Mas em lugar disso, se tinha que escolher uma só coisa para
fazer saber a seu inimigo antes que o chamado acabasse, era que
não se atrevesse a meter-se com Lavínia. Isso foi o que lhe saiu do
coração.
— Se puser um só dedo em cima de Lavínia...
Lowenstein desligou. Não lhe deu tempo sequer para entender
o que era esse misterioso "setenta e quatro" que lhe pareceu escutar
detrás da voz do homem quando lhe falava.
Horácio elevou a mão com o celular ainda na outra mão e se
aproximou da empregada da farmácia, sorteando o tumulto de gente
que se amontoava frente ao mostrador.
Antes de subir outra vez no carro, perguntou ao chofer se
Lavínia havia trazido problemas, mas este lhe disse que não, que ela
não tinha tentado abrir as portas travadas ou golpear os guichês para
que alguém a ajudasse do exterior. Parecia tomar as coisas com uma
calma que assustava. Ao parecer já se deu conta de que ele não era
perigoso e de que não vinham a lhe cobrar nenhuma dívida, como
tinha deixado notar ao princípio.
Horácio não pôde com seu gênio e sentiu lástima. Pensou que a
namorada de um filho da puta como Nicolas Hagen viveria em um
palacete de Las Cañitas e que seria tão ou mais perversa que sua
própria esposa, mas em troca se encontrou com uma costureira que
habitava um bairro humilde e perigoso, tanto que pensava que a
estavam sequestrando uns mafiosos.
No interior do automóvel, Lavínia esperava.
— Você não vem pelo Josué, certo? - interrogou ao vê-lo ocupar
seu assento.
— Absolutamente - replicou Horácio amavelmente. — Não
tenho ideia de quem é Josué, nem sequer o conheço.
— Não se preocupe - respondeu Lavínia - não perde nada.
Horácio riu. A atitude relaxada do homem conseguiu abrandar
um pouco mais a Lavínia, que também se serenou quando seu
sequestrador foi à farmácia para comprar os remédios em pessoa e
ainda por cima não aceitou seus vinte pesos em troca.
Horácio sentiu-se mal por arruinar a relação de Hagen com essa
garota. Não por esse pedaço de ególatra desalmado, mas sim por ela.
Embora, por outra parte estava seguro de que lhe fazia um favor.
Qualquer que estivesse perto de Hagen era vítima de seu
egocentrismo. Isso o impulsionou a seguir adiante e não levá-la ao
hospital ou a sua casa.
— Aonde nos dirigimos? - interrogou Lavínia a seguir.
— A um hotel - Horácio percebeu o alarme na moça porque
encolheu as pernas, por isso se apressou a repor. — Não se preocupe,
sou casado.
Lavínia arqueou as sobrancelhas.
— Não acredito que essa seja uma garantia de nada - replicou.
— Para mim sim.
— E o que lhe faz pensar que vou entrar em um hotel com
você? - perguntou ela com toda razão. Horácio suspirou. O namorado
abatido, triste, melancólico.
— Que seu namorado a engana com minha esposa,
possivelmente - respondeu.
Lavínia baixou o olhar. Nick não a enganava, não, lhe havia dito
que lhe era sexualmente fiel até a morte enquanto permanecessem
juntos. Fazia apenas umas horas que o tinha deixado, podia acaso
haver-se deitado com uma mulher casada e que seu marido se desse
conta e armasse toda essa armadilha para ele em tão pouco tempo?
Era impossível. Nick tinha que haver-se deitado com essa mulher
muito antes que ela o deixasse, possivelmente antes de ser seu
namorado. Mas se tinha deixado de ver a mulher desse, que agora
lhe parecia um pobre homem destroçado pelo amor não
correspondido que sentia por sua esposa, que sentido teria que o
marido tratasse de lhe dar uma lição levando a sua namorada a um
hotel?
Lavínia sentiu asco por Nick e pena por esse sujeito que
pretendia associar-se a ela por despeito e por desespero. O primeiro
que pensou foi negar-se à oferta porque apesar de tudo, amava a
esse déspota que tinha sido seu namorado e não queria lhe fazer
dano, nem sequer em seu orgulho machista, mas duvidou. Duvidou
porque queria desfazer-se dele quanto antes, arrancá-lo de seu
coração e lhe dar uma lição por todas as vidas que Nick tinha
arruinado, como a desse sujeito que se apresentava ante ela agora.
— Com quem tenho o gosto? - perguntou elevando uma
sobrancelha. O homem estendeu uma mão.
— Oh, lamento-o, que descortês que sou - desculpou-se -
Horácio Lowenstein.
Ela sorriu e estreitou a mão que lhe oferecia.
— Lavínia Dickinson - apresentou-se.
— Sim... sei - disse ele. — Não posso acreditar que tendo a seu
lado a uma mulher como você o idiota do Hagen ainda insistisse em
deitar-se com a minha - Horácio percebeu a dor que suas palavras
provocavam em Lavínia, por isso calou. — Desculpe-me de novo,
senhorita Dickinson - expressou respeitoso - mas ele não merece seu
amor nem sua pena.
— E sua esposa sim merece a sua?- replicou Lavínia. Horácio
suspirou.
— Tampouco.
— Então compreenderá que nada se pode fazer contra os
sentimentos - repôs ela com serena resignação. — Um luta e luta,
mas aí estão, carcomem-nos a alma e o cérebro.
Horácio assentiu.
— O que diz, senhorita Dickinson? - indagou uma vez que o
carro se deteve na porta do hotel. — Aceita que passemos umas duas
horas conversando em um quarto de hotel? Não temos que falar
desta situação, podemos conversar a respeito da vida, do que
gostamos.
Lavínia suspirou, indecisa. Pensava que Nick se sentiria ferido
se soubesse que ela se hospedou em um hotel com outro homem, o
qual sem dúvidas ocorreria. Do contrário, para que quereria esse
sujeito entrar com ela no hotel e passar ali duas horas, o que
pudesse durar uma aventura? Era consciente de que Nick passaria a
vê-la como a uma trepadeira, como às demais amantes que tinha
tido, e que isso destroçaria sua imagem. Que importância teria?
Pensou. Nick não a amava e se a via entrar em um hotel com outro
homem só sofreria em seu orgulho, não em seus sentimentos. Mesmo
assim, não resultava suficiente. Não queria ferir Nick nem em seu
orgulho nem em nenhuma outra forma possível, de modo que faria o
que o tal Lowenstein lhe pedia sozinho por uma razão válida.
— E me diga, senhor Lowenstein. Acredita que isto poderá reter
a sua esposa a seu lado? Porque se o faz sozinho para vingar-se de
Nick...
— Não - replicou ele antes de que ela pudesse terminar a ideia
que expressava. Baixou o olhar para confessar o resto: — Se lhe
dissesse que mesmo perversa como ela é eu a amo... você... iria
acreditar?
Como não lhe acreditar, se lhe ocorria o mesmo? O sentir-se
identificada com esse homem a impulsionou a tomar sua mão.
— Então o fazemos - consentiu.
Nick merecia uma lição, pensou Lavínia. Não podia andar pela
vida das pessoas destroçando matrimônios como se fossem peças de
xadrez. Sabia que elegia bem a suas amantes e segundo as palavras
do tal Horácio Lowenstein, sua mulher era merecedora de um caipira
como Hagen, entretanto, havia um homem detrás, um homem que
sofria pelo engano de sua esposa tanto como ela pelo desamor de
Nick.
Nick viu os ocupantes do veículo porque a luz do sol os
mostrava através do vidro polarizado. Apertou o volante tratando de
sufocar a dor que ia afogando e esperou. Podia não ser Lavínia, podia
ser uma mulher parecida, porque ela jamais o enganaria com seu
pior inimigo.
Viu-os descer do automóvel. Horácio rodeou a cintura de quem
o acompanhava. Não havia dúvida: era ela, com seu loiro e comprido
cabelo sujeito em um rabo de cavalo, com os delicados objetos que
confeccionava roçando a mão de outro homem, o pior com o que
podia havê-lo enganado.
Como era possível que todas as mulheres que lhe importavam
acabassem enganando-o com Horácio Lowenstein? Por que ele não
merecia mais que traição e desprezo? Não valia a pena comportar-se
bem com as mulheres porque todas eram iguais. Todas eram como
Patrícia e Lavínia.
Reparou na sacola da farmácia, nas figuras que de costas se
internavam pela entrada do Hyatt. Ficou ali, escondido em seu carro,
até passados ao menos dez minutos de que entrassem no hotel.
Queria assegurar-se de que não se tratava de uma entrada e
saída fictícia, embora o duvidasse. Por que podia Lavínia fazer algo
como isso? Ela o tinha enganado sem pudor e sem lástima, tal como
tinha feito Patrícia.
Agora compreendia por que a distância repentina, por que a
ausência de explicações, e compreendeu que a tivesse matado para
que não o abandonasse, que morreria ao não ser capaz de matá-la.
No quarto do hotel a cama parecia e jamais se desarmou.
Lavínia e Horácio se sentaram a uma mesa onde havia fruta e
champanhe, mas embora o homem servisse ambas as taças, nenhum
dos dois bebeu. Passaram um momento assim, em silêncio, até que
decidiram falar com uníssono. A coincidência os fez rir.
— Você primeiro - disse-lhe ele.
— Cedo-lhe a honra - replicou Lavínia com a mesma
amabilidade.
— Primeiro as damas - brincou o homem. Ela assentiu
agradecida.
— Como o descobriu? - perguntou então.
— Que coisa?
— O de sua esposa.
Horácio pareceu triste. Suspirou, olhou o forro do teto jogando
a cabeça atrás e depois voltou a olhar a Lavínia.
— Não o descobri, mas sei - respondeu. Tinha os olhos
cansados.
— Não entendo. Se não o descobriu, o que lhe faz pensar que é
a amante do Nick?
Agora ambos luziam preocupados, taciturnos, associados por
uma mesma causa: o amor a um ser indiferente a eles.
— Se o dissesse, Lavínia, morreria - replicou ele. — Você está
apaixonada pelo Hagen, nota-se em seu olhar quando algo faz
referência a ele.
Lavínia assentiu.
— Que esteja apaixonada não significa que não tenha bem claro
quem é Nick - replicou. Horácio arqueou as sobrancelhas.
— E quem é Nick? - indagou.
— Um homem preso a seu passado - explicou ela com
sinceridade. — Conserva fotografias de sua ex-esposa em seu
apartamento, isso deveria deixá-lo tranquilo em relação à sua. Nick
não tem olhos para ninguém mais que sua ex-mulher - baixou o
olhar. — Por ela ele não tem coração sequer para mim.
Lavínia não tinha ideia da destruição moral que suas palavras
produziam no homem, que não pensava lhe dizer que a ex-mulher de
Nick a que ela se referia não era mais que sua própria esposa. Nada
dessa dor se evidenciou em suas facções contraídas.
— E quem é Nick para você? - interrogou ela a seguir.
— Um idiota - replicou ele lhe devolvendo a honestidade. — Não
posso entender como tendo a uma mulher como você insiste com a
minha, que é má e egoísta; perversa como poucas.
— Agradeço-lhe a cortesia - respondeu Lavínia com um sorriso.
— Me permita lhe dizer que sua esposa também é uma idiota.
Desperdiçar o amor de um homem como você...
— Patrícia é o mais longínquo a uma idiota - repôs ele.
— Não, além de idiota é... - Lavínia se interrompeu. Não queria
ferir Horácio ainda mais. Dizer-lhe que sua mulher era uma puta teria
sido o mesmo que dizer que Nick era um pervertido.
— O que é? - interrogou o homem, mas Lavínia não se atreveu
a responder.
— Esqueça-o, senhor Lowenstein – pediu. — Agora me diga isso
que ia dizer-me quando cedeu o turno da fala.
Horácio sorriu com pesar.
— Ia oferecer-lhe um copo de água para que possa tomar os
remédios. Espero ter comprado o que corresponde para a febre.
Lavínia lhe devolveu o sorriso.
— O agradeço.
As duas horas se estenderam porque se sentaram um a cada
lado da cama, acenderam o televisor e viram juntos Cúpulas
borrascosas em sua versão de 1939. Coincidiram em que ambos
eram peritos conhecedores desse filme e graças a isso puderam
discutir cenas e fazer comentários em relação à trama sem roçar um
cabelo e quase sem sequer enrugar o cobertor.
Acabada a sessão de cinema, Horácio levou a Lavínia até sua
casa e se despediu no interior do automóvel.
— Como Hagen pode não amar um anjo como você! - exclamou
o homem tomando as mãos.
— Do mesmo modo que você não poderia - replicou ela com
pesar - porque ama a outra. Não se preocupe, senhor Lowenstein,
estou segura de que sua esposa comprovará que Nick só tem coração
para sua ex-mulher e retornará a seus braços. O garanto.
Horácio suspirou-se fosse cumprido o que Lavínia pressagiava
ambos perderiam as suas pessoas amadas, mas não o disse por
piedade ou por temor.
Despediram-se e Lavínia entrou em seu apartamento. Por sorte
não havia rastros de Josué. Ela se recompôs momentaneamente
graças à medicação que Horácio Lowenstein lhe tinha comprado,
sentou-se diante da máquina de costurar e seguiu trabalhando para
tentar cobrar algo mais que os vinte pesos que tinha. Enquanto dava
pontos recordava o encontro que tinham mantido. Sentia-se
orgulhosa de quão adulta tinha sido em relação a dor de jamais ter
Nick e de sua solidariedade com aquele homem que tão bem a tinha
tratado. Quase tanto como a tratava o que ela amaria até que suas
forças o permitissem.
Nick trabalhou encerrado em seu escritório até tarde. Parecia
uma máquina imparável e Fi pensava que se devia ao desgosto que
se levou com seu projeto secreto. Era uma segunda-feira
entristecedora no que se deu conta de que sua confiança tinha sido
traída pela segunda vez em sua vida. Lowenstein também lhe tinha
roubado seu projeto, mas de um inimigo era o esperado, inclusive
podia esperar o de Patrícia, em troca o de Lavínia...
Tratou de concentrar-se no projeto dos Emirados Árabes, que
lhe outorgaria maior riqueza e renome. Era um bom salto para sua
companhia e para seu sobrenome, que era o de sua mãe.
Desconectou o telefone e pediu a Fi que não o interrompesse por
nada do mundo. Riscou desenhos à mão elevada provando se suas
ideias eram o suficientemente boas para aceitar o projeto, mas nada
o conformava. Quando acabou dando-se por vencido, rodeava-o um
amontoado de papéis amassados ao redor de sua cadeira. Anoitecia e
nem sequer se incomodou em fechar as cortinas da janela. Uma
janela maior que a que seu pai tinha detrás quando ele o visitava em
seu escritório, pela qual se podia ver meia cidade.
Lavínia... Lavínia o tinha traído de um modo muito mais cruel
que Patrícia. Tinha-o extorquido, porque quando Patrícia se foi com
Lowenstein, este só era sua competência, em troca agora era seu
inimigo. Detento desse rancor correu ao bar.
Embora passasse vários semáforos em vermelho, como se sua
vida não valesse nada, o caminho se fez interminável. Tinha entre as
mãos as graves perdas econômicas produzidas pelo roubo de seu
invento e possivelmente Lavínia tinha colaborado também com isso.
Entretanto, esse problema lhe importava muito pouco frente ao vazio
espiritual que voltava a abrir-se em seu interior ao saber que Lavínia
era a amante de quem lhe tinha roubado a sua esposa, que tudo
tinha terminado, e que cada vez que confiava a alma a alguém
acabava ferido.
No bar escolheu um lugar escuro e oculto de olhares
indiscretos, mas de onde a música soava a volume muito alto e podia
ver o salão e a porta de entrada.
— Senhor Hagen! - exclamou o garçom lhe aproximando um
menu. — Quanto tempo.
— Não faz falta - brincou ele. — Começo com um uísque duplo.
Tal como anunciou, Nick começou com um uísque duplo, mas
conforme foram passando as horas, uma variada quantidade de goles
desfilou por suas mãos e por sua boca. Esquadrinhou um comprido
momento às mulheres do salão. Algumas o olhavam, outras se faziam
de interessantes, mas nenhuma o conformava. Às duas da
madrugada, fez um chamado telefônico.
— Roberto.
— Senhor Hagen! - replicou a voz no telefone. — Tanto tempo
sem saber de você.
— Quero que me envie uma mulher ao bar - a voz de Nick
soava distorcida pela dor e a bebida que tinha consumido, mais do
que podia suportar. — Mas me escute bem – ordenou. — Tem que ser
loira, de preferência a quero de olhos verdes. Não, tem que ter os
olhos verdes. Magra e branca. Muito branca. Também vestida de
branco.
— Sim, acredito que posso cumprir com isso - indicou o regente
do prostíbulo de categoria ao que Nick chamava de tempos em
tempos.
— Quero-a doce e inocente - seguiu dizendo Nick. — Delicada,
cândida e jovem.
— Um anjo - brincou o outro.
— Uma puta - repôs ele com o tom áspero dos desenganados.
Não havia anjos entre as mulheres. Não havia mulheres depois de
Lavínia.
Desligou. Como sua mente continuava pensando em Lavínia, e
a dor, em lugar de desaparecer, se fazia cada vez mais forte, pediu
outros dois goles até que o enjoo e as náuseas o deixaram com a
frente apoiada em uma mão e o cotovelo sobre o joelho. Passou um
momento assim, internado em seu próprio mundo, até que pressentiu
algo. Então se ergueu devagar, como se movia desde que estava
ébrio, e nesse instante uma estridente cor vermelha o cegou. Seu
olhar se encontrou com Patrícia, que lhe sorria de pernas cruzadas,
sentada na mesa de centro.
— Sabia que te encontraria neste bar - disse com gesto triunfal.
— O que fazes aqui? - perguntou-lhe ele com voz áspera.
— Ah, tive de reconstruir meu tabique nasal - replicou ela com
desdém. — Ou te refere ao bar?
— Já disse o que faz no bar?
— O que te preocupa, Nick? - interrogou ela tal como uma
professora de escola seduzindo-o.
— Que veio para me buscar - arriscou ele. Ela negou com o
dedo de uma vez que estalava a língua e movia a cabeça em gesto
negativo.
— Que soubesse que te encontraria aqui não quer dizer que
tenha vindo por você - riu na cara dele. — Nick! Mudou, sim, por um
momento acreditei que muito, mas no fundo é o mesmo de sempre -
aproximou-se de sua boca. — Um menino. Mas eu gosto. Deus, eu
gosto e muito!
Aturdido como estava, Nick apertou as bochechas de Patrícia
entre os dedos até lhe enrugar a boca e lhe atirou um beijo sobre os
dentes. Alagou a cavidade feminina com sua língua úmida de álcool e
de lágrimas que não deixava cair, que lhe oprimiam o peito como
adagas, mas sempre às escondidas. Patrícia respondeu ao beijo com
paixão e desenfreio. Assim gostava de Nick, muito mais que antes.
Assim era como lhe divertia.
De repente ele a soltou. Girou a cabeça bruscamente e
vomitou. Patrícia fez uma careta de asco, mas não se moveu da mesa
de centro que lhe servia como assento. Uma loira de cabelo comprido
vestida com uma calça branca e uma regata vermelha se aproximou.
— Senhor H? - perguntou. Nick elevou a cabeça e estudou a
prostituta com desencanto.
— Disse que a queria vestida de branco - espetou.
— Tenho as calças no tom - indicou a moça com voz libidinosa.
Patrícia soltou uma sonora gargalhada que ultrapassou o nível da
música, que nesse momento estalava ao ritmo da insônia.
Nick comprovou que nem sequer com dinheiro podia comprar
uma beleza pura e digna como a de Lavínia. Observou que a moça se
sentava a seu lado na poltrona, e se pudesse se teria afastado dela
como de um fantasma.
— Assim vamos fazer um trio - comentou a garota vendo
Patrícia. — Isso não me avisaram.
— Como queira? - burlou-se a outra com o tom mais
depreciativo que encontrou a seu alcance. Vir a confundi-la com outra
prostituta!
— Me beije - ordenou Nick. A jovem, obediente, fez-lhe o gosto.
Para isso a tinham contratado. Uma vez que se separaram, passou-se
as mãos pelos lábios.
— Que gosto estranho – resmungou. — O que é?
— Um novo licor - respondeu Nick sem fazer referência ao
vômito. Patrícia soltou outra gargalhada. Com essa maldade,
incomum nele, Nick lhe pareceu muito mais atrativo que nunca.
Meia hora depois, ele teve à loira no quarto do hotel e só se
preocupou com jogá-la sobre a cama. Resultava evidente que tinha
bebido demais, mas ela, acostumada a seu trabalho, permaneceu em
seu lugar. Nick tirou o casaco do traje e o jogou sobre uma cadeira.
Depois se estabeleceu sobre o corpo magro e pálido da prostituta, tão
distinto do que havia perdido. Começou por lhe beijar o pescoço e
enquanto fazia isso lhe pressionou com força um seio. Ela emitiu um
suave gemido. Afrouxou a mão. Podia controlar seu ódio, disse-se.
Tinha que fazê-lo, a mulher não era culpada de nada.
Tudo se descontrolou quando lhe introduziu os dedos dentro da
calça e pretendeu manipular seus genitais. Que quisesse masturbá-lo
rompeu com a fantasia que Nick pretendia criar em sua mente
turvada, então a odiou. Não era cândida nem inexperiente, era uma
puta. Ele havia dito a palavra ao telefone, mas claramente tinha
pedido justamente o contrário. O que pretendia que lhe enviassem de
um centro de mulheres fáceis?
Separou-se dela violentamente.
— O que faz? - arreganhou-a - Disse que te queria
inexperiente.
— Posso ser o que quiser - tentou conformá-lo ela, mas Nick
não se deixou enganar.
— Não – disse. — Essa atitude também é de puta - resmungou
e ficou de pé cambaleando-se. A garota riu. — Do que te ri? - gritou-
lhe ele. — Responda! - ela ficou confundida. Franziu o cenho,
temerosa. A Nick não importou, tampouco se tinha dado conta do
efeito que causava na moça. — O que é, mais troca?
Ofendida, a garota ficou de pé e recolheu sua roupa. O cliente
se havia posto violento e temia que a coisa se complicasse.
— Está louco - espetou-lhe com ira contida.
— E você? - perguntou-lhe ele deixando cair sentado sobre a
borda da cama. — Você gosta de fazê-lo com qualquer um? Acredita-
te bonita por isso? Acredita-te mulher?
— Sou uma mulher, filho da puta! - bradou ela colocando-se
torpemente as calças. Nick soltou uma gargalhada dessas que
sempre escapavam a Patrícia.
— Você é uma puta - replicou com voz poderosa. — Puta. E não
vale nada. Usam-lhe e lhe desprezam como a um preservativo. Você
gosta de te sentir isso, um lixo?
— Vai à merda - insultou-o ela antes de sair pela porta o mais
rápido que pôde.
Nick a viu desaparecer, viu a porta fechar-se com um golpe
seco e as lembranças voltar. Não havia modo de arrancar de sua
mente, não existia remédio para desenterrar os de seu coração.
Olhou as mãos suadas. Tremiam igual a seus lábios; os olhos
avermelhados, cansados de conter o pranto. Tragou com força o nó
que lhe tinha formado na garganta e descobriu que lhe custava
respirar.
— Perdão - sussurrou sabendo-se um monstro, embora fosse
consciente de que a prostituta já não o ouvia. — Me perdoe, por
favor... Você não tem culpa.
Com boa sorte conseguiu chegar à recepção do hotel e falar
com a recepcionista.
— Encontre alguém que me leve a casa, por favor - pediu.
Entrou em seu apartamento aos tombos. Ao passar junto à
barra da sala, recolheu a garrafa de vodca e se inteirou em seu
quarto.
Fi o pressentia. Bastou-lhe abrir a porta do apartamento de
Nick para sentir o aroma de fechamento que impregnava a casa e o
calor do verão ancorado nas paredes. O sol se filtrava pelas janelas
fechadas, por isso tudo estava em penumbras. O aroma e a
temperatura se faziam insuportáveis, cresciam à medida que
avançava por volta do quarto.
Tal como tinha pensado, ali estava Nick, estendido na cama. O
ar condicionado não estava ligado, entretanto se coberto com os
lençóis, a manta e o cobertor de inverno até passar a cabeça, como
um cadáver no inferno. O calor resultava cansativo, ele o produzia. Fi
se sentou a seu lado, sabia que estava acordado.
— Está doente? - perguntou, embora conhecesse a resposta.
Ele nunca adoecia. — Por que não foi trabalhar? Deixou plantado o
senhor Ferreira. Graças a Deus o velho o adora e esperaria por você
até o fim do mundo - não obtinha resposta. — Nick - tentou lhe
descobrir o rosto, mas ele sujeitava com força seu esconderijo.
— Está doente? Fale-me, por favor.
Fi fingiu que se cansou de tentar tirar as mantas e afrouxou a
tensão. Ao perceber que Nick fazia o mesmo do outro lado, retirou-as
com força e o descobriu banhado em lágrimas, encolhido como um
menino, tremente e destruído. Ao vê-lo assim o coração lhe desabou,
a pena lhe espremeu a garganta.
— O que acontece, filhinho? - perguntou-lhe com infinita
ternura ao tempo que lhe acariciava o cabelo curto. Nick chorava
fundo em um mundo de pesares, em seu verdadeiro mundo, tal como
uma vez o tinha visto chorar por sua mãe.
— Diga-me o que se passa, por favor - suplicou.
— Vá, Fi - respondeu ele. Quase não parecia sua voz.
— Não, não penso ir até que me diga o que te tem assim hoje.
— Quero estar como sempre - pediu ele - sozinho.
— Sente-te sozinho? - interrogou ela. — Sei que não sou muito,
mas estou aqui, com você.
— Não me querem, Fi - queixou-se ele. — Nem sequer ela me
quer.
— Ela? Patrícia? - pela imobilidade de Nick, Fi soube
imediatamente que o problema não era essa mulher, então arriscou:
— Lavínia?
Nick não foi consciente de que se largou a chorar ainda com
maior vigor. Estendeu um braço para o flanco da cama e pretendeu
agarrar a garrafa de vodca que tinha deixado ali, mas Fi o impediu.
— Quer-te, Nick – afirmou. — Eu sei que te quer - ele insistia
em pegar a garrafa. — Deixa isso, por favor!
Nick apartou à mulher com suavidade, mas com determinação e
se sentou na borda da cama. Estava de cueca, até parecia tremer de
frio enquanto ali fazia um calor de mil demônios. Cobriu-se o rosto
com as mãos.
— Ele me roubou outra vez! - gritou antes de voltar a falar em
sussurros. - Não posso contra ele como não posso contra ninguém.
Elas o preferem, elas me engaram.
— Do que está falando, meu céu?
— Do Lowenstein!
Fi soltou uma risada suave e amarga.
— Ah, Nick! – exclamou. — Duvido muito que Lavínia possa te
enganar com o Lowenstein como o fez Patrícia. De onde tirou isso?
— Vi-os... - resmungou ele. — Vi-os com meus próprios olhos.
Fi arqueou as sobrancelhas.
— Seria uma boba se fizesse algo assim.
— É minha culpa - assegurou ele.
— Sua culpa? - repetiu a mulher. — Por que poderia seria sua
culpa?
— Porque sou um medíocre, por isso! – afirmou. — Porque não
sou nada, porque não sei dar amor...
— O que diz? - arreganhou-o ela com uma mão sobre seu
ombro. Sentia tanta dor por Nick que podia tornar-se a chorar
também. — Nunca vi alguém amar tanto como você.
— Sou um medíocre, Fi - repetiu ele tratando de respirar. —
Medíocre para estudar, medíocre para trabalhar, medíocre para
viver...
— Está louco, sabia? - espetou-lhe a mulher, enérgica. — Não
vê tudo o que conseguiu, tudo o que é teu?
Nick passou o transpirado dorso da mão pelo nariz e voltou a
deixá-la cair sobre sua perna como uma parte morta de seu corpo.
— Não tenho nada... – chorou. — Eu não sou ninguém...
— Isso não é verdade - corrigiu-o Fi. — E tudo o fez com suas
próprias mãos, com sua inteligência e sua força de espírito.
— Não sou nada - lamentou-se ele. — Não sei fazer nada bem.
— Isso não é certo - insistiu ela. — Todos estamos tão
orgulhosos de você...
Nick elevou uma sobrancelha quase sem forças, e sem
esperanças.
— E quem são todos? - ironizou ao tempo que levantava a
cabeça. Seu olhar causou calafrios a Fi. Ele tinha as íris cinzas
azuladas pelo pranto, o rosto molhado de suor e água que
escorregava de seus formosos olhos, deslizava-se por suas bochechas
e acabava no vazio. — Você? Minha mamãe? Minha mamãe! -
exclamou ao tempo que voltava a esconder o rosto entre as mãos. —
Quero a minha mamãe, Fi! Quero a minha mamãe comigo! O que
daria para poder abraçá-la! Por que me deixou sozinho? Por que lhe
fiz tanto mal?
Fi o estreitou entre os braços como ao filho que jamais tinha
tido. Beijou-o na cabeça e o protegeu com seu amor até que sentiu
que podia falar sem estalar em pranto.
— Não diga que lhe fez mal - reclamou cheia de dor. Também
lhe custava recordar a sua amiga sem sofrer sua falta. — Foi a
felicidade de sua vida e merece encontrar a tua, porque é formoso.
Não sabe quão bem sua mãe me falava de você. Amava-te e por isso
sei que sanará sua alma desde qualquer lugar que esteja. Foi um filho
excepcional e têm o coração maior e sensível que eu jamais tenha
visto.
Fazia muito tempo que Fi não o encontrava tão deprimido.
Embora estivesse acostumado a ter desigualdades anímicas e
episódios de pranto, a última vez que o tinha visto em tanto
desconsolo tinha sido quando sua mãe tinha morrido. Porque quando
Nick sofria, lembrava-se de todas suas penas juntas.
Por volta das duas da tarde conseguiu convencê-lo de que
deixasse a cama e se sentasse à mesa da cozinha. Preparou-lhe um
sanduíche, mas ele não provou nenhum bocado. Partia-lhe a alma vê-
lo ali sentado, com o olhar avermelhado e extraviado na mesa, o belo
rosto coberto de uma tristeza profunda e inesgotável.
— Nem sequer ele me quer - comentou em sussurros. Fi, de pé
com a mão apoiada na borda da mesa e os braços cruzados diante do
peito, soube que agora Nick pensava em Octávio.
— Quer-te, Nick – replicou. — A sua maneira, mas te quer.
— Que maneira de querer! - ironizou ele. Depois a olhou: —
Será que eu também só sei querer assim?
— Você não é como ele - tentou convencê-lo. — A relação com
Octávio, tens que pensar que nem todos têm a mesma capacidade de
querer.
— Não é casualidade que ninguém tenha essa capacidade para
querer a mim.
— Eu te amo, Nick - respondeu Fi, quase chata pela negação de
Nick. — Pablo te quer, seus alunos lhe admiram, todos lhe querem.
Sua mãe te amou.
Ele elevou um dedo e deixou de olhá-la.
— Não é o mesmo admirar que querer, nem querer que amar -
repôs antes de umedecer lábios avermelhados. — É meu próprio pai e
não me quer.
— E porque ele supostamente não te quer ninguém pode fazê-
lo?
— Eu não tenho a capacidade de me fazer querer.
— Ah, Nick! - reclamou ela com ímpeto e se aproximou da
mesa, onde apoiou ambas as mãos para lhe falar cara a cara. —
Pensa que eu não te quero?
— Não.
— Então?
Nick tragou com força. Olhou-a. Os olhos carregados de largas
e grossas pestanas voltaram a encher-se de lágrimas.
— Penso que algum dia também me vai faltar – disse. — E
então ficarei ainda mais sozinho.
O coração de Fi voltou a espremer-se, umedeceu-lhe os olhos e
a impulsionou a abraçá-lo. Ele se prendeu ao quadril da mulher para
ocultar seu rosto molhado.
— Sempre haverá alguém para te querer, Nick, sempre -
prometeu-lhe Fi.
— Se eu não posso amar, como alguém pode amar a mim? Sô
minha mãe e você... nem sequer eu mesmo me quero.
— Não diga isso, Nicky, eu não sou a única que te quer. Têm
uma vida, se esquece? Têm amigos, clientes, mulheres... - Nick
deixou escapar um som parecido a uma risada de brincadeira. Fi
compreendeu o que ele pensava em seguida. — Já sei, sei que
nenhuma é a que quer, mas nem sempre na vida obtemos o que
desejamos.
— Eu não obtenho nada.
— Acredito que tem tudo o que conseguiste, que é mais do que
qualquer se atreveria a sonhar.
— Não o quero!
Fi já sabia. Nada de tudo o que Nick tinha o enchia por
completo, nenhuma dessas coisas podia sanar um coração que vinha
sofrendo e padecendo desde que era muito pequeno.
Por isso não pôde lhe responder mais que lhe dando um beijo
na cabeça e com mais carícias.
— O que fiz de mal, Fi? - perguntou-lhe ele. — No que me
converti?
— Este é um mundo cruel e muitas das pessoas que o habita
são perversas, Nick. Você não fez nada mal, absolutamente nada. E é
bom e formoso.
Ninguém apostaria jamais que Nick tinha passado a terça-feira
em sua casa, com a sensação de que tinha morrido em vida e com
sua secretária como única companhia. Como alguém o tinha visto no
bar, todos pensaram que sua noite de farra lhe havia afetado na
terça-feira e ele se esforçou porque esse pensamento se... Ninguém
apostaria nunca que Nick, o gracioso, o desenvolto e bem-sucedido
empresário, entrava às vezes nesses estados depressivos dos que lhe
demandava bastante tempo sair. Só Fi conhecia essa verdade e as
que se enfureciam com ele quando o ruído se debilitava e o silêncio o
abatia.
Quem sou? Perguntou-se antes de dormir.
Ninguém.
Capítulo 22
Pesar de que a parte mais grave do episódio diminuiu na terça-
feira de noite, a busca de respostas não cedeu. Nick ainda se
perguntava no que tinha falhado, como tinha podido deixar-se
enganar por uma mulher outra vez. Primeiro Patrícia, agora Lavínia.
Nenhuma valia a pena. Entretanto, embora tentasse deixar de sentir,
pensava todo o tempo nela, na boa atriz que tinha sido, no estúpido
que tinha sido ele.
Lavínia era muito pior que Patrícia, pensava Nick, porque ao
menos sua ex-mulher não ocultava sua verdadeira personalidade.
Mostrava-se tal qual era, não lhe importava ir de uma cama à outra e
não fingia que era boa e cândida. Era simplesmente uma puta.
Esse pensamento lhe gelou o sangue. Patrícia era sua esposa,
tinha prometido amá-la para sempre e se estava deixando enganar
por uma mentirosa como Lavínia. E ele, que a tinha acreditado uma
vítima de seu egocentrismo e ressentimento!
Não se podia confiar nas pessoas. As pessoas eram perversas e
se valiam das debilidades dos outros para prevalecer, por isso teria
que mostrar-se sempre firme, sempre soberbo e feliz. Como Octávio
e Patrícia, que conheciam seus pontos débeis para humilhá-lo, agora
Lavínia tinha o mesmo poder, e ele se arrependia de ter sido tão bobo
de dar–lhe isso. Era sua culpa, sua inteira culpa, mas mesmo assim
não alcançava a explicar-se como ou por que ela o tinha traído. Só
tinha a si mesmo.
Sua mãe tinha lhe aconselhado que não pedisse tantas
explicações à vida, mas neste caso... neste caso as necessitava.
Refugiou-se no trabalho. Confirmou sua participação na
construção do parque de diversões sobre gelo nos Emirados Árabes e
essa faísca acendeu um instante de esquecimento nele, embora
durasse um suspiro. Todos se davam conta de que Nick andava em
outro mundo: estava triste, lhe notava na cara e na obscenidade de
seus movimentos. Quase parecia que tinha morrido alguém.
Na quarta-feira pela manhã, Lavínia gastou os vinte pesos que
lhe tinham ficado dos remédios que pagou Horácio Lowenstei. Pela
tarde visitou a feira americana para ver se tinham vendido suas
blusas, mas a notícia foi negativa. Então percorreu alguns locais
mais, nos que até se negaram a recebê-la.
Como ia progredir alguém se nem sequer lhe davam uma
brecha de onde renascer? Se Nick tinha sido entregador de pizzas e
agora era um grande construtor, devia existir uma maneira.
Possivelmente se tratasse de que Nick apontava alto sem lhe
importar quanto lhe custasse chegar ao topo. Em troca ela voava
baixo, jamais se tinha proposto alcançar a cúpula da montanha,
porque sua resignação pela base da colina sempre prevalecia.
Lavínia descobriu que estava pensando de novo em Nick e se
amaldiçoou por fazê-lo. Ele não a tinha incomodado mais, tal como
lhe tinha exigido. Possivelmente já tivesse visto as provas de que
andava com Lowenstein e a odiasse por isso, além que ela tinha
acabado com seu orgulho de ser o que sempre deixava às mulheres.
Em vingança por isso e para demonstrar que ele seguia tendo o
poder, estava segura de que se tinha ido às putas. Aí ficava o quão
fiel Nick podia ser.
Mas apesar de todas essas questões, às vezes se arrependia de
havê-lo deixado. Lavínia suspirou, relegando aquele sentimento. Não
podia viver sem amor e não era justo que Nick vivesse sem amar.
Que voltasse para as putas ou para sua ex-mulher, pensava. Se em
realidade o amava, deixá-lo ir era o melhor que podia fazer por ele.
Ocupava-se de aumentar a cintura de uma calça. Voltou a
cravar o dedo, como lhe acontecia desde que passava o tempo
pensando em Nick, e o levou a boca. O sabor do sangue lhe recordou
a noite em que ele tinha ido procurá-la, e quase lhe escapou uma
lágrima. Não tinha que chorar, disse-se. Tinha tomado a decisão
correta. Até quando ia condenar ao Nick a viver em sua fantasia de
princesa de conto de fadas?
Dispôs-se a seguir costurando, mas o telefone interrompeu sua
tarefa.
— Falo com a Lavínia Dickinson? - perguntou uma voz. — Você
deixou um curriculum como oficina de costura faz mais ou menos um
ano? - Lavínia tragou com força. Havia-se posto nervosa.
— S... sim - balbuciou.
Naquela época trabalhava com Tamara, agora teria que fazê-lo
sozinha, mas só Deus sabia que o tentaria porque necessitava um
trabalho mais estável. As fábricas que enviavam material às oficinas
de costura não o eram, a quantidade de trabalho que tivesse
dependia da época do ano e do que fizessem outras oficinas. Quando
procuravam a alguém novo geralmente era para um trabalho
temporário porque os de sempre não davam provisão com a produção
que necessitavam, mas mesmo assim era uma grande oportunidade.
Se virem quão bem ela trabalhava, que era pontual na entrega e
cuidadosa, isto é, que não tinham que lhe devolver nada porque
ficassem inconformidades com a confecção, podia converter-se em
uma oficina real, em uma das que a marca preferisse.
— Queremos que faça uma amostra de trabalho. Poderá enviar
a alguém para recolhê-la e entregá-la para amanhã? Pagaríamos as
dez camisas que faça.
Lavínia assentiu. Quis ocultar seu entusiasmo, mas foi
impossível. Disse que já enviaria a alguém a procurar os materiais e
que levaria de volta os objetos ao dia seguinte. Indicaram-lhe por
quem perguntar e ela saiu correndo. A quem ia enviar, se sua oficina
de costura era unipessoal?
Retornou a casa com a esperança depositada nas dez camisas
femininas que devia confeccionar como mostra para o dia seguinte,
ordenadas por uma das marcas mais importantes do país.
Permaneceu na mesa de sala cortando os tecidos até que sentiu
fome. Ocorreu-lhe olhar o relógio de parede e descobriu que eram
dez e meia da noite e não tinha comprado nada para comer. Foi à
geladeira, sobre a qual tinha sua lata com algumas notas que tinha
começado a guardar para pagar o aluguel, mas ao contar o dinheiro
descobriu que não lhe sobrava para nada. Sem negócios abertos a
essa hora onde poder comprar embora fosse uma guloseima e muito
menos poder pedir comida fora, revolveu as despensas. Entre latas
de tomates e uma garrafa de azeite com os que não poderia fazer
muito, encontrou uma caixa de cereais aberta que tinha vencido no
dia anterior. Tinha ficado ali de quando Hector vivia com ela, mas
desde que estava sozinha se arrumava com algo. Às vezes pulava
uma refeição, mas por correr a procurar as camisas tampouco tinha
almoçado e sentia fome. Iria se arrumar com os cereais.
Enquanto comia o cereal açucarado, recortava e armava as
camisas. Às onze da noite, ressonaram fortes golpes à porta. Lavínia
elevou a cabeça para o relógio e imediatamente sentiu um brilho de
luz em seu interior seguido de um intenso temor. Primeiro pensou em
Nick, mas embora esse horário se convertesse em algo significativo
para eles, ele não golpeava de forma tão violenta. Josué tinha se
atrasado em ir procurar o dinheiro, Lavínia tinha chegado a pensar
que possivelmente até estivesse morto, e embora lhe causasse pena
porque era um ser humano que merecia uma oportunidade como
todos, não podia negar que muitos dos problemas de sua família se
resolveriam se ele desaparecia de suas vidas.
Com medo e com precaução se aproximou da porta, onde
ressoavam novos golpes. Tal como tinha prometido, desta vez Josué
não a encontraria despreparada, por isso se preparou mentalmente
para a defesa.
— Quem é? - perguntou.
Não pôde reagir. Um golpe sobre-humano abriu a porta de uma
sacudida, arrojando-a para trás. Deu-se conta de que tinha fechado
os olhos porque de repente os abriu e tudo o que viu foi a porta
fechada como fundo do rosto feroz de Nick. Ao parecer ele a tinha
tomado pela cintura para que não caísse pela força do golpe e a
velocidade do movimento com que a arrastou até deixá-la contra a
parede. Como quando faziam amor, tinha amortecido o golpe com
seu antebraço para não machucá-la.
Parecia que ia matar, Lavínia não se defendeu, mas em troca
ele falou com um tom de voz tão rígido que quase parecia outro
homem.
— Perguntei-te se havia algo para me dizer, Lavinia, e não o fez
- espetou-lhe tão perto de seu rosto que podiam respirar-se, tão
perto de seus lábios que apenas se atrevia a olhá-los. Falava com
essa voz forte, poderosa e rouca que às vezes escapava de sua alma
avivada.
— Nick - tentou falar ela, mas ele não o permitiu. Terminou de
encurralá-la entre a parede e seu pesado corpo e a apertou contra
seu peito, como se desejasse introduzi-la em seu interior para que
não escapasse, para que não se fosse de sua vida como antes seu
cabelo se escorria por seus dedos.
— Por que pretendia me deixar como ela, sem me dizer que me
enganava na cara? - reclamou com voz afogada. — Acaso é isso o
que eu provoco em vocês engano e silêncio? Isso é o que mereço?
Lavínia não tinha ideia do que lhe falava Nick. Possivelmente
tivesse recebido as provas de Lowenstein. Sim, tinha que ser isso o
que o trazia tão irrefletido, mas não chegava a compreender o da
outra mulher.
— Nick, não está escutando - tentou, mas outra vez ele a
interrompeu.
— Não, você vai escutar isso de mim. É uma covarde e uma
mentirosa. Jamais tinha pensado isso de você.
— Me escute, por favor - suplicou ela com olhos angustiados.
Nunca tinha visto Nick tão desencaixado, tão ferido. Tanto valia seu
orgulho? Tanto valia sua dignidade?
— Não! - gritou ele em resposta. O poder inato de sua voz fez
tremer a Lavínia. — E se pergunta isso, sim, estou ferido.
— Em seu orgulho! - replicou ela em um grito de
aborrecimento.
— Em meus sentimentos! - recriminou-lhe ele.
— Não pode ferir seus sentimentos alguém a quem não ama.
Só fere seu orgulho, mas é tão soberbo que já nem sequer nota a
diferença.
Nick ignorou tudo isso. Ignorou-o porquê não ia responder o
que ela queria.
— Por que com ele? - perguntou em troca num sussurro. — Por
que se é velho e desleal e rouba as mulheres de outros?
Possivelmente até lhe vendeu meu projeto!
— O que? - agora sim estava completamente perdida nas
insinuações do homem. — Está blefando!
— Estou blefando? - perguntou-lhe ele aproximando-se
perigosamente da sua boca. Os olhos tinham se transformado em
duas fossas profundas pelos quais se vislumbravam a alma turvada e
sozinha. — Não vai perguntar como soube que me enganava?
— Se escutasse, saberia por que não o faço - replicou ela,
embora cada palavra de Nick a fazia tornar um passo mais atrás de
lhe dizer a verdade. Tinha sentido lhe sanar o orgulho ferido? Não,
que aprendesse a lição de que nem tudo respondia a seus caprichos.
— Não há nada mais que falar, Lavínia, já está morta para mim.
- Nick se voltou para a porta. Lavínia pensou que devia deixá-lo ir e,
pelas palavras que ele tinha articulado, o teria feito, mas seus olhos o
impediram. Puxou-o do braço tentando retê-lo. Ele se voltou
violentamente.
— Não me toque! - bradou. A sensação que lhe tinha produzido
a atitude de Lavínia ao pretender retê-lo tinha sido tão intensa que
temia não poder controlá-la, por isso voltou a abandoná-la contra a
parede, e ela se deixou abandonar. — Mentiu-me! - recriminou.
— É orgulhoso e presunçoso - começou ela. Ele a interrompeu.
— E você uma qualquer! Até deixou te comprar os remédios!
Que mais te comprou Horácio Lowenstein? Assim é como te paga?
Pediria mais, Lavínia! Vocês valem muito mais que uns remédios e
um momento em um hotel de luxo!
Isso não o ia permitir. Lavínia sabia muito bem a diferença
entre ser uma qualquer, como eram as amantes desse que a acusava,
e ser uma prostituta, como era sua irmã. Sabia a diferença entre ser
estúpida e estar desesperada. E por Deus que sabia a diferença entre
ser honesta e ser desavergonhada!
— Acredita que sou como suas amiguinhas - murmurou para si
com aborrecimento, olhando os sapatos brilhosos e caros de Nick. Do
contrário, tinha que lhe dar uma bofetada.
— Traiu-me! - acusou-a ele.
Lavínia elevou o olhar. Em suas pestanas tiritavam as lágrimas.
Tremiam-lhe as pernas e uma palidez mortal se deu procuração de
seu rosto. Apesar de tudo, elevou um dedo com integridade e
replicou: — Passei a manhã tentando vender um objeto e jantei
cereal vencido. Não acredito que saiba o que é a dignidade, mas
antes de te trair, preferiria estar morta.
Foram as únicas palavras que de verdade Nick se permitiu
escutar. Então uma catarata de sentimentos se apoderou de seu
interior constipado e congelado: piedade, carinho, confusão. Teria
desejado ser tão forte para vencer suas barreiras e estreitar a Lavínia
entre os braços, lhe pedir perdão por quão idiota tinha sido e ignorar
as provas que a condenavam, rezando para que ela o perdoasse.
Tivesse desejado não ser tão estúpido para negar-se a amá-la.
Por que a castigava por seu engano, se a Patrícia tinha tratado
de contentá-la em todos os seus caprichos? Por que a Lavínia a
enfrentava como se esperasse lhe trocar os pensamentos e as ações
de uma sacudida? Como os meninos, queria que só beijá-la e abraçá-
la servisse para que ela o amasse incondicionalmente, para que lhe
perdoasse todos seus enganos e não o deixasse sozinho, que não o
abandonasse.
Lavínia tinha ficado frouxa entre seus braços, que a
sustentavam entre a parede e seu peito. Nick respirava com agitação
sobre a frente de Lavínia, ambos em silêncio, até que lhe atirou um
pouco parecido a um beijo nesse setor onde seu ar se mesclava com
o aroma do delicioso cabelo loiro. Possivelmente só a roçou com os
lábios, mas se sentiu como um beijo. Tinha-o sido.
— Me perdoe, sou um bruto - resmungou em voz muito baixa.
Queria falar mais, mas não podia fazê-lo, tinha um nó na garganta.
Por que alguma vez falava no momento indicado, por que não podia
soltar todas as coisas que sentia? Elevou uma mão, mas apenas lhe
roçou o cabelo, não se atreveu a tocá-la. — Por favor, diga-me que
não te machuquei, jamais me perdoaria disso - arrependeu-se de o
haver pedido. Não sabia se a tinha ferido fisicamente, mas não lhe
cabia dúvida de que o fazia em seu espírito. — Me desculpe -
adicionou antes de afastar-se para a saída.
Nick a soltou de maneira tão repentina que Lavínia não teve
tempo de restabelecer-se. Tremeram-lhe as pernas e se encostou na
parede para não cair. Nem bem Nick desapareceu do outro lado da
abertura, ela estalou em pranto.
Permaneceu sentada no piso, abraçada aos joelhos um longo
momento, até que golpearam a porta. Estava farta de que nesse
edifício entrasse e saísse gente como se fosse a via pública, mas se
nem sequer havia campainha, como não iam entrar?
— Quem é? - perguntou, sem ânimo.
— Seu pedido.
A Lavínia soou suspeito. Ela não tinha pedido nada e ainda
tinha medo de que Josué passasse a cobrar a dívida que ela não
tinha.
— Eu não pedi nada - replicou de mau modo.
— Jun me advertiu que você diria isso - respondeu a voz do
outro lado da porta - mas é dela.
Só escutar o nome do Jun serviu a Lavínia para saber de onde
vinha tudo aquilo. Abriu a porta e se encontrou com um entregador
muito jovem que lhe dedicou um sorriso. Assim que alguma vez, Nick
se tinha parecido a esse menino. Entregando as pizzas do Jun.
— Quanto lhe devo? - perguntou ela.
— Nada - respondeu o moço - já está pago.
Lavínia se debateu entre aceitar a pizza ou negar. Segundo
Nick, que Horácio Lowenstein lhe tivesse comprado seus remédios era
um modo de lhe pagar por ser sua amante. Seguindo essa hipótese,
aceitar a pizza seria tomar o pagamento que Nick lhe dava, o qual já
tinha feito com as passagens do Paradise. Com razão não lhe custava
trabalho pensar que ela se vendia por uns remédios. Isso diziam as
palavras, mas também estavam em seus olhos, e neles a pizza era
um modo de protegê-la, de cuidá-la, e não um pagamento. Negá-la
poderia voltar a feri-lo, se é que alguma vez o tinha feito, assim a
aceitou.
Agradeceu, despediu-se do moço e fechou a porta. Lavínia não
sabia o que pensar, se Nick a odiava, como tinha demonstrado, ou ao
menos a queria; se tinha feito bem em deixá-lo ou se sempre teria
saudades. Resultava evidente que ele não ia voltar. Esse era o final.
Nick fez um novo intento por voltar a gozar do sexo com uma
prostituta, que era o mais fácil de conseguir e desprezar, mas não se
atreveu a chamar o lugar de sempre e desconfiava de outros.
Comportou-se tão mal com essa pobre garota que lhe tinham
mandado, que merecia converter-se em um cliente indesejado.
Foi ao bar, mas a verdade era que tinha cara de velório e assim
que começou a ver figuras conhecidas, preferiu voltar para o
automóvel. Não tinha sentido forçar as coisas, devia retornar a casa e
chorar se queria chorar romper se queria romper. Fingir uma
personalidade lhe estava fazendo cada vez mais difícil.
Com o passar dos dias, entretanto, pôde compor algo de seu
personagem e voltou a ser o que todos conheciam: vaidoso, seguro
de si mesmo, sempre de bom humor, um conquistador infalível. Em
um tempo, os números para bloquear voltaram a aparecer. Na sexta-
feira um, na segunda-feira três.
Mesmo assim, nada o conformava. Se antes se contentou com
essa vida, era porque sentia que nela se escondia algum propósito,
que era demonstrar ao mundo e demonstrar a si mesmo que era
igual a Octávio, ou que ele também podia ser igual a Patrícia.
Possivelmente que podia ser o que ela esperava, ou que podia fazer o
que lhe faziam, embora não o tinha conseguido com ninguém mais
que com Lavínia. Não lhe dava a alma para conquistar boas mulheres
e as abandonar, por isso a passava com putas e prostitutas, que bem
sabia eram duas coisas distintas. As primeiras eram na maioria das
vezes ricas ou aspirantes a ricas, em troca as segundas pelo geral
não tinham outra opção. Podiam ser mães, filhas, irmãs carinhosas
que vendiam seu corpo e por isso as tratava melhor que às outras,
embora não lhe dava a maldade para tratar mal a ninguém. Todas se
foram contentes de sua cama porque era generoso, gentil e perito.
Tinha que fazer algo de sua vida, algo distinto, algo que
aparentasse voltar a enchê-la. O que podia ser isso que fazia falta?
Pensou em Lavínia, pensou em outro salto, um trabalho muito
grande, pensou em Horácio Lowenstein. Se podia lhe arrebatar a
Patrícia, possivelmente... possivelmente se sentisse realizado.
Tomou seu telefone celular e discou um número.
— Nick - responderam-lhe do outro lado. A mulher tinha lido
seu nome na tela de seu telefone.
— Espero-te em nosso bar às dez.
Soava sereno, especulativo, quase parecia a ponto de fechar
um negócio. Com a mesma sobriedade vestiu o casaco e saiu do
escritório.
Não olhou o relógio e igual soube que já tinham dado as dez,
entretanto, ainda estava sozinho. Tinha bebido apenas um uísque
sem gelo e observava ao redor com os olhos entrecerrados. Fazia
muito tempo que não ia a esse lugar, ficava perto do bar ao que ia
com frequência, mas não era o mesmo. Neste tudo cheirava a
Patrícia, em troca no outro tudo cheirava a ele.
Primeiro sentiu um perfume muito forte e logo um comichão na
nuca. Em seguida um par de mãos lhe cobriu os olhos. Não alcançava
a ver as unhas vermelhas e largas, os braceletes de ouro que
pendiam dos braços, mas sabia pelo aroma e pelo tato que se tratava
de Patrícia.
— Quem sou? - perguntou a voz feminina atrás de suas costas.
Nick tomou as mãos que lhe cobriam os olhos, esses dedos
cheios de anéis dourados, e as separou de sua cara. Patrícia riu e se
sentou no sofá, a seu lado. O vestido vermelho que tinha posto era
decotado e tinha um talho que lhe deixava meia perna ao descoberto.
Quase parecia uma bailarina de tango antes que uma esposa, mas
essa era ela e ao menos não o ocultava como Lavínia.
— Que lástima! - exclamou a mulher com divertimento. Nick
permanecia muito sério, tanto como quando tinha sido seu marido e
seu namorado, como quando o tinha conhecido na universidade. Pior.
Com ela já não era ingênuo nem inexperiente nem carinhoso.
— Que coisa? - perguntou ele sem perder a calma.
— Que não esteja ébrio - respondeu Patrícia, ligeira de
palavras. Logo se inclinou para frente para lhe falar em sussurros,
com toda intenção de lhe mostrar mais de seus seios nus debaixo do
tecido vermelho do vestido. — Põem-te muito mais interessante
quando está bêbado.
— Patrícia! - exclamou uma voz feminina que correspondia a
um corpo que já se aproximava. — Olá, Nick - continuou dizendo a
mulher, embora não emprestou a ele maior atenção que um olhar
fugaz. Depois a loira se sentou sobre a mesa de centro e começou a
falar com sua amiga ruiva. Mantinham uma conversação leviana.
Nick pinçou em um bolso e extraiu um cigarro. A última vez que
tinha fumado como um condenado tinha sido a noite que Lavínia o
tinha enganado com Lowenstein. Lowenstein... .
Fumou até que a amiga da Patrícia se afastou, então apagou o
cigarro e falou com ela de mau humor.
— Têm que se distrair? - queixou-se. — Ainda faltam muitas
mais?
Patrícia o olhou como se lhe estivesse expondo que amanhã se
acabava o mundo.
— O que passa Nick? - espetou-lhe com o cenho e a boca
franzidos. — Se queria estar sozinho, não me tivesse convidado.
— Pensei que ia estar com você, não com seu séquito de
amigas - respondeu ele para surpresa de Patrícia.
Tratava-a mal. Nick lhe falava como a uma qualquer! Duvidava
que fizesse o mesmo com suas amiguinhas. Tinha que lhe pôr os
pontos logo.
Ergueu-se no assento e se acariciou o tabique nasal insinuando-
se. — Não me irritas com nada? - preguntou ela com desdém. Não
levou a mal a ausência de resposta Nick com aspecto taciturno. Ela
sabia que ele queria, mas também que ele a amava, ela nunca seria
sua.
— Você gosta de meu nariz? - perguntou, divertida. Nick
encolheu os ombros. Se tinha que dizer a verdade, não notava
diferença alguma com o que tinha antes. Não tinha por que mentir.
— É o mesmo de sempre - respondeu.
— Nick! - ofendeu-se ela, sempre em brincadeira. — Custou-me
dois mil dólares!
— A você ou ao Horácio? - espetou ele com os olhos
entrecerrados.
Horácio Lowenstein. Ela riu a gargalhadas e se jogou em cima
como uma puta.
— Ai, meu amante ciumento! - brincou antes de beijar Nick na
ponta do nariz tão bonito. — Eu gosto, eu gosto que me zele, que me
deseje. — Deseja-me, Nick?
Ela meneou os ombros. Nick umedeceu os lábios.
— Eu gosto desta canção - disse. Referia-se ao Mysterious
teme, entoada com a suave voz de Tina Cousins, que soava a todo
volume.
— Não me convida para nada? - perguntou ela com desdém.
Não se levou a mal a ausência de resposta de Nick a respeito de se a
desejava. Estava com ele e não só sabia que a desejava, e não só
que a amava, que ele nunca deixaria de ser dela.
— Pede o que quiser - respondeu Nick sem vontade de distrair
sua atenção com Patrícia, preferia escutar a música. Podia lhe pagar
uma bebida, se ela quisesse.
Patrícia ficou com a boca aberta num enorme O. Ao Nick lhe
cruzou pela mente a ideia de que com essa expressão se parecia com
uma boneca amante de borracha, razão pela qual lhe formaram duas
covinhas sobre as comissuras dos lábios, sinal de que evitava a
risada.
— Para isto me chamou? - reclamou ela séria, mas em seguida
recuperou o tom grosseiro. — Parece-me que está de mau humor e
isso só se tira de uma maneira... - se insinuou não só com palavras,
mas também com o corpo, porque o pegou tanto ao dele que quase
parecia um. — Você querido Nicolas, de mau humor?
Nick a olhava com seus olhos cinzas entrecerrados. De repente
viu os de Patrícia, e neles, seu passado. O corpo de sua esposa tinha
mudado, quem sabe em quantas camas tinha dormido, mas não por
isso deixava de ser essa mulher que ele havia amado quando ainda
era quase um adolescente. Mesmo assim, não podia sentir amor. Nick
não experimentava mais que indiferença, e isso era angustiante.
Pensou que com ela voltaria a sentir algo. Pensou que com ela
voltaria a sentir-se, pelo menos, encaminhado em algo, embora fosse
ódio. Equivocou-se.
Elevou uma mão para o empoeirado rosto e se aproximou dos
lábios pintados de vermelho. Quase parecia devorar a mulher com o
olhar, mas o que ele procurava não era a ela, a não ser seu passado,
por isso pescava nesses olhos vazios. Nada ficara nele desse moço ao
qual Patrícia conseguia acelerar o coração, nada dela o abrandava,
não despertava uma só fibra de seu corpo.
Apesar disso, beijou-a. Beijou-a lhe apertando a boca com fúria
desmedida. A língua se moveu no interior dela com violência, sem
cuidado nem muito menos amor. Tratava melhor às putas. Tratava
melhor às damas do prostíbulo. Tratava melhor a seu automóvel.
Patrícia merecia esse trato, que era o mesmo que ele se dava a
si mesmo, porque agora os dois correspondiam ao mesmo mundo de
frieza e desencanto no qual Nick tinha assumido sua vida desde que
ela o tinha deixado.
Com o mesmo desenfreio, acabaram no quarto do hotel, onde
fizeram amor. Nick tinha adquirido uma experiência extraordinária; se
a tinham dado todas as amantes que tinha tido, Patrícia lhe estava
agradecida. Só havia uma que lhe preocupava, uma a que ainda
queria esmagar como a uma mosca, e essa era a costureirinha.
Pressentia que Nick a recordava, não tinha sido para ele como as
outras, embora tampouco chegasse a significar tanto como ela. Por
isso deduziu que o melhor para conseguir esse objetivo era recuperá-
lo. Sim, ficaria com Nick e a costureirinha os veria felizes e juntos em
todas as revistas.
Sorriu com esse pensamento. Nick, embora acabassem de
manter relações e a tinha ainda nua a seu lado, na cama do hotel,
não lhe emprestava a mínima atenção. Nem sequer a abraçava.
Tampouco lhe havia dito que a amava quando se derramou no
preservativo, como cada vez que se viam depois do divórcio. A
tratava fingindo-se alienado, mas quando tocava o céu com as mãos,
acabava por confessar. Esta vez não confessou, mas o sentimento
estava aí, intacto. Tinha que estar, pensava Patrícia. Ela se ocuparia
de que o gelo em que se converteu seu Nick voltasse a derreter-se.
Passaram o domingo juntos. Tiveram sexo e foram às compras.
De noite Nick a levou até sua casa de automóvel, esperançado de que
Horácio Lowenstein os visse pela janela ou que ao menos o vigilante
de seu bairro privado lhe informasse que tinha sido ele quem levasse
a sua esposa até em casa.
Não fez falta. Em efeito, Horácio observou Patrícia descer do
automóvel de Nicolas Hagen com atitude felina, inclusive beijá-lo nos
lábios antes de baixar-se, e pensou que esse tipo sim que era um
estúpido.
Podia ser muito atrativo, jovem e forte como o descrevia
Patrícia, mas era um burro. Ter tido a uma mulher como Lavínia e
pretender ainda a puta que o tinha abandonado!
Patrícia entrou na habitação marital momento depois, mas
Horácio não lhe disse nada. Reclamou seus direitos de marido, ao que
ela respondeu com menos desejo que de costume, que desde fazia
um bom tempo sempre era pouco.
Na segunda-feira pela manhã, perto do meio-dia, Fi se paralisou
com a figura que desceu do elevador no escritório.
— Nick está? - interrogou Patrícia sem sequer saudar. Percebia
que Fi a olhava como se do cubículo metálico se escapasse o muito
mesmo demônio, mas não lhe importou. Quanto mais a odiasse essa
velha estúpida seria melhor. Patrícia vivia disso, vivia de atuar com
indiferença frente aos outros.
Fi morria por lhe dizer que Nick não estava e que o deixasse em
paz, mas sabia que Teresa não o teria feito porque respeitava a
intimidade de seu filho, e por isso tampouco o fez ela. Pensou-o:
quão único faltava para tornar os dias do Nick ainda mais amargos!
Patrícia Cólon!
— Patrícia - foi tudo o que pôde balbuciar, a secas e com os
olhos entrecerrados.
Justo nesse momento, a porta do escritório de Nick se abriu. Do
interior da sala saíam ele e outro homem ao qual lhe estreitou a mão.
— Fi - disse enquanto isso - reserve uma entrevista para o
senhor Latif para esta quarta-feira.
Nick reparou em Patrícia uma vez que o sujeito já se
encaminhava ao elevador. Não emitiu palavra, tão só a olhou com as
mãos nos bolsos, perguntando-se quem se acreditava ela para invadir
seu escritório dessa forma, mas guardou silêncio. Lembrou-se de
repente de que estava interessado em recuperá-la.
— Convido-te a almoçar - disse ela sem esperar que ele falasse.
Sempre fazia o mesmo, não perdia o costume. Nick, beneficiado por
essa atitude, aceitou.
Depois do almoço, retornou ao escritório sozinho. Patrícia
percorreu comércios, comprou uma camisa vermelha e depois
retornou para casa. Ao chegar a casa, encontrou-se com Horácio
sentado na borda da cama, quase do mesmo modo em que tinha
visto pela última vez ao Nick quando ainda era seu marido.
— De onde vêm? - perguntou o homem.
— De onde acredita? - burlou-se ela elevando a bolsa que
continha a camisa, em cuja frente se via o logotipo da marca.
— Não sou adivinho - replicou Horácio, esgotado.
— Não sabe ler? Estive no shopping - Patrícia deixou cair a
bolsa sobre a penteadeira para tirar o objeto. Pretendia ignorar seu
marido, quem apesar de seu desdém, não se deu por vencido.
— E de onde mais vêm? - perguntou. Patrícia deixou o que
fazia, cruzou os braços e o olhou. Em seus olhos brilhavam a soberba
e a brincadeira.
— De um almoço com Nick.
Horácio a conhecia. Sabia que não tinha escrúpulos, entretanto
quando tinha sido seu amante, cuidou de Nick, até tinha pretendido
deixá-lo sem que ele notasse. Em troca agora, com ele, não tinha
nenhum reparo em lhe dizer o que fazia, em fazer-se levar até sua
casa no carro de seu amante, que resultava ser seu ex-marido. Tão
estúpido o considerava ela? Tão pouco homem?
Queria golpeá-la, lhe dar seu castigo, mas fazer isso a uma
mulher, por mais perversa que esta fosse, não era de homem.
— Vamos à casa dos Estados Unidos esta noite - anunciou
ficando de pé. — Arrume sua mala.
— Não posso ir, Horácio, ainda tenho duas visitas pendentes a
meu cirurgião - replicou ela sem dar importância à ordem. Horácio
pretendia sair do quarto, mas se deteve ante as palavras de sua
esposa. Ainda o era, maldição! Era sua esposa!
— E quantas ao Nicolas Hagen? - replicou com voz murcha.
— As que considere convenientes.
Horácio se voltou para ela como um touro furioso, mas não a
tocou.
— Que puta você é! - exclamou. As palavras doeram mais a ele,
um homem adulto e necessitado de afeto, que a ela.
— E você um estúpido - lançou Patrícia sem piedade ao tempo
que se adiantava um passo para ele. — Já está velho, Horácio.
— Acreditei que tinha deixado Nick porque era um menino -
espetou-lhe ele. — Agora me engana porque sou um velho. O que
quer, Patrícia? O que procura?
— Descobri que os meninos são muito mais atrativos e
poderosos que os anciões - burlou-se ela. Até sorria. — Além disso,
você... você já nem sequer me satisfaz - uma dor profunda sulcou o
olhar de Horácio Lowenstein. Logo viu sua esposa voltar-se para a
cama e recolher o controle remoto do ar condicionado. — Vai embora
só aos Estados Unidos, Horácio - disse ela indiferente. — Eu fico em
Buenos Aires.
— Como preferir - assentiu ele, e abandonou o quarto.
— Nick - disse Fi a seu chefe pelo intercomunicador - é Javier
Gonzaga na linha um.
Fi sabia muito bem para que chamava Gonzaga porque este o
tinha explicado, e depositava suas esperanças em que o sucesso
servisse para que Nick se afastasse de Patrícia Cólon. Respondeu ao
chamado do seu escritório.
— Nick! - exclamou o sujeito com ar alegre. Contrastava com o
de seu interlocutor. — Incomodo-te porque estive tratando de me
comunicar com sua namorada, a desenhista, mas não consigo
encontra-la. Possivelmente me deram o número errado. Estou
interessado em uma ideia que disse ao passar, algo sobre umas
calças que não vem ao caso explicar, e queria lhe fazer uma oferta.
Sabe se já está desenhando para alguma marca ou se está
independente?
Nick arqueou as sobrancelhas. Não tinham feito falta dois nem
três encontros para que Lavínia começasse a receber ofertas de
trabalho, tinha bastado com um. Lavínia, repetiu em sua mente.
Apertou-se as pálpebras com os dedos, suspirou e teve que admitir o
mais triste.
— Já não estou com a desenhista - reconheceu com pesar.
— Oh, quanto o lamento! - disse o outro só por cortesia, pois
Nick sabia que lhe interessava resolver seu próprio problema, que
nesse momento era localizar Lavínia, e não a situação sentimental de
seu interlocutor. Comprovou-o quando o homem seguiu falando. —
Poderia me confirmar se este for seu número?
Nick não precisou procurar na agenda para saber que esse era
o telefone de Lavínia. O que não entendia era por que não podiam
localizá-la. Embora não quisesse fazê-lo, preocupou-se.
— Poderia me dar seu endereço, ou localizá-la por mim, por
favor? - pediu Javier. — De verdade é uma oferta que não acredito
lhe interesse recusar.
Nick sabia quanto necessitava Lavínia um trabalho estável no
que não tivesse que ser costureira, a não ser desenhista. Além disso,
havia se proposto no Paradise a ajuda-la de todas as formas
possíveis, como o tinham ajudado Fi e Pablo. Pedir a Javier que fosse
a casa de Lavínia a poria em evidência de que em realidade só tinha
trabalhado como costureira e tinha tentado vender seus desenhos
sem êxito.
Suspirou outra vez. Não queria enfrentar-se a Lavínia de novo,
mas tampouco podia renegar ao Javier, evitar lhe dar o endereço e
que ela perdesse uma oportunidade tão importante. Teria que admitir.
— Sim, está bem - disse muito sereno, como nunca antes o
tinha percebido Javier. — Eu vou dar seu número. Se lhe interessar
receber ofertas, entrará em contato com você - adicionou para dar
mais importância a Lavínia.
Por experiência própria, Nick sabia que era melhor fazer-se
desejar que correr com desespero a um trabalho novo. Quanto mais
importante parecia o candidato, mais lhe ofereciam para retê-lo e
mais se convenciam de que não podiam deixá-lo escapar, e ele queria
que a Lavínia oferecessem tudo.
Javier agradeceu e desligou. Nick pensou em transmitir a tarefa
a Fi, que ela chamasse a Lavínia e lhe desse o número do Javier.
Entretanto, algo em seu interior o levou a ficar de pé e recolher o
casaco do respaldo da cadeira.
Queria estar perto de Lavínia, necessitava-a. Não ia para vê-la,
disse-se, tão só lhe deixaria uma nota por debaixo da porta e se
contentaria sabendo que ela estava ou tinha estado do outro lado.
Mas se Javier não tinha podido localizá-la, como saber que ela
continuava ali? E se tivesse mudado? O que aconteceria se o papel
que ele deixasse jamais chegasse a suas mãos?
Até sabendo-se infantil, escreveu-o de todos os modos. Um
direto "Javier Gonzaga tem uma oferta de trabalho para você.
telefone-lhe ao...", e o número de telefone. Levou-o consigo se por
acaso fosse necessário e saiu do escritório.
O tiro lhe penteou o cabelo pego ao crânio. Nem bem se deu
conta do que tinha acontecido, Josué se agachou. Isso não o privava
do calor das balas se a seus perseguidores lhes ocorria e disparar de
novo, mas ao menos entendia o que vinha a seguir. Não sabia se era
melhor estar a par de que queriam matá-lo ou não, porque isso o
fazia tremer, mas foi um alívio quando, em lugar de disparar, alguém
o puxou pela camisa e o levantou de um puxão.
— Seguimos esperando o pagamento - espetou o sujeito com
tom perigoso.
— Já mesmo o levava, estava passando para cobrar - mentiu
Josué.
— Semanas depois do dia acordado? - replicou o homem. — Já
lhe demos muita droga.
— Se querem cobrar, me vão ter que deixar ir.
O que o tinha agarrado pelo pescoço da camisa olhou ao outro,
que assentiu com a cabeça e em silêncio. Então se voltou para Josué
e resmungou: — Se amanhã não fizerem a entrega na praça, vamos
lhe deixar feito um coador.
Soltaram-no. Josué se quadrou de ombros, colocou a mão no
bolso e respirou aliviado.
Tinha levado a navalha.
Capítulo 23
Eram apenas três da tarde e Lavínia já voltava para casa depois
de entregar seus trabalhos. Tinha compreendido que as pessoas eram
uma grande montanha que jamais ia a ela, que era a parte do ditado
que dizia "Maomé", sobre tudo quando se tratava de retirar um
trabalho e pagá-lo, assim Maomé ia à montanha.
Retornou a seu edifício com cinquenta pesos e a alegria de que,
no dia seguinte, a marca de camisas lhe daria um modelo para
confeccionar em cinco dias. Deu-se conta de que a estavam tomando
como confeccionadora de modelos de prova para breve, talvez, lhe
dar a produção. Estava feliz: possivelmente as coisas ao fim se
encaminhassem e pudesse dizer que tinha mudado sua sorte.
A sensação durou pouco tempo. Nem bem entrou em casa,
encontrou-se com Josué, que jogava com sua navalha sentado à
mesa. Primeiro deu um salto de susto, mas em seguida se repôs e
não pensou nem por um instante em acovardar-se.
— Como...? - interrompeu-se. Ia perguntar-lhe como tinha
entrado, mas descobriu que pouco lhe importava isso. Só que ele se
retirasse. — Saia já daqui - ordenou sem fechar a porta. — E a
próxima vez que te encontre invadindo minha propriedade privada,
chamo à polícia. Sabe que o faço.
Josué ficou de pé, fingia que ia sair, mas ao ficar junto à Lavínia
fechou a porta de uma patada e lhe imobilizou as mãos deixando-a
entre a parede e seu imenso corpo. Sentia-se muito distinto ao de
Nick, pensou Lavínia, e ao fazê-lo odiosas lembranças se amontoaram
em sua mente. Não era a primeira vez que Josué a cobria com esse
horrível peito e esse gasto aroma de álcool. Sentiu que podia matá-
lo, mas se conteve muito bem de não fazer movimentos.
— Preparou-me puta? - perguntou ele lhe colocando a navalha
perto da cara. — A pediu a seu namorado rico?
Lavínia respirava com agitação, mas não se mostrava temerosa.
— Já te disse que não saio mais com o Nick - expressou com
dor na voz. — E se o fizesse, tampouco permitiria que ele pagasse
suas dívidas. Tampouco o farei eu, assim pode ir por aonde chegou.
— Antes te mato.
— É tua decisão se quer ir deixando um cadáver que te condene
a vinte anos de cadeia - espetou ela, inflexível. — Não tenho dinheiro
e se o tivesse, nem pense que lhe daria. É hora de que te faça cargo
de seus enganos.
Josué compreendeu que com ameaças de morte não obteria
nada de Lavínia. Ela tinha descoberto que ele era um covarde quando
era uma adolescente, não podia pretender que agora pensasse o
contrário. Estava ficando sem armas em seu favor, carecia de poder, e
isso o fez sentir desesperado.
Baixou a navalha devagar, com o rosto rígido e as mãos
brandas.
— Se não lhes pago, matam-me – confessou. — Também ao
Hector. - Lavínia suspirou. Ainda lhe dava asco sentir o corpo do
Josué tão perto do dela, mas a honestidade que ele de repente
demonstrava a abrandou um pouco. Tinham ameaçado ao Hector e
odiava ao Josué por colocar em perigo a vida de seu irmão, mas ele
acabava de justificar-se e soube que tinha que lhe demonstrar que
assim era melhor, que com a verdade se conseguiam as coisas e não
com ameaças ou maus tratos.
Tragou com força de uma vez que meditava o que fazer. Jamais
pensaria em Nick como fonte de dinheiro, só sabia que ela não
dispunha da quantidade que necessitava Josué. Nem sequer se
aproximava dessa soma.
— Eu não tenho esse dinheiro, Josué - confessou com voz
afogada. Tivesse desejado ter para lhe demonstrar que, se lhe pedia
as coisas com boa maneira e com a verdade, ela o ajudava, mas o
certo era que não podia fazê-lo. — Nem sequer paguei a conta do
telefone, com o que me faz falta para trabalhar, e me suspenderam a
linha.
Ele elevou os negros olhos para ela. Parecia decepcionado,
nervoso.
— Pede a seu namorado rico! - bradou.
— Estou-te dizendo que já não vejo Nick - insistiu Lavínia.
— Diga-me então por que ainda têm sua fotografia com você
junto ao telefone - assinalou em direção ao lugar ao que se referia
com a navalha.
Lavínia passou a vista pela imagem de maneira fugaz, vencida
pela dor que lhe produzia recordar aquela época, pensar que ela
conservava a imagem de Nick como Nick conservava a de sua ex-
esposa.
Tragou com força e baixou o olhar.
— Isso é coisa minha - resmungou.
— Quero o dinheiro! - exclamou ele. Algo em seu olhar tinha
mudado, em sua voz, em seus movimentos. As drogas começavam a
fazer seu efeito e se fazia evidente que muito em breve Josué não
responderia por seus atos.
— Por favor, Josué - rogou-lhe ela, que estava comprimida pelo
peso do corpo do homem e a parede. — Te afaste um pouco.
Procuremos uma solução que não requeira a ninguém mais que a nós
dois.
— Eu tenho a solução - replicou ele violentamente. — Eu vou
dar a solução.
Voltou a elevar a navalha, mas sua intenção já não era matá-la,
não no momento. Lavínia soube quando uma mão do homem se
deslizou por sua perna, sobre o cós, rumo ao fechamento das calças.
Então reagiu. As atrozes lembranças do intento de abuso que
Josué tinha cometido em seu quarto em sua adolescência foram mais
fortes que sua prudência e a fizeram responder ao novo ataque.
Naquela época não estava capacitada para defender-se, mas sim o
estava agora, e jamais lhe permitiria voltar a tocá-la.
Elevou o joelho impulsionando-se para frente graças à parede.
Sua rótula impactou na virilha de Josué e o obrigou a se tornar atrás
tomando os testículos com as mãos. Então voltou a atacar. Golpeou-
lhe os ouvidos com a palma das mãos e logo atacou a garganta de
seu agressor com o antebraço. O passo seguinte era jogá-lo no piso
utilizando a força do corpo do oponente, mas essa parte lhe saiu mal.
Não era o mesmo praticar defesa pessoal com companheiros de
classe que com um atacante verdadeiro, e que a rotina se
desarmasse lhe fez perder o equilíbrio.
Josué elevou a navalha sem um ponto certeiro de ataque, só
para defender-se, e a folha cortou a Lavínia a palma da mão. A dor
não se fez sentir em seguida, pelo qual pôde continuar com a defesa.
Além disso, o estado psicológico no que se encontrava não lhe
permitia pensar em nada mais que em suas lembranças e em quem
os provocava.
— Era um bebê! - gritou desencaixada, sem recordar que com
isso desperdiçava energias para seu ataque. — Era um bebê, filho da
puta! Doente! Não me vais fazer o mesmo agora! Antes lhe mato!
Não lhe importou que o atacante não tivesse cansado. Lançou
um golpe de punho à cara do Josué e outra patada a seus genitais. O
homem se dobrou em dois e estirou os braços para frente, o qual
permitiu a Lavínia colocar-se de costas, tomar a mão do homem e lhe
fazer soltar a navalha. Com o mesmo movimento conseguiu
acontecer o braço por sobre seu ombro e dobrar-lhe. Não conseguiu
quebrá-lo porque estava nervosa e assim perdia precisão, mas pelo
gemido que emitiu Josué soube que lhe tinha doído. Girou sobre os
pês, pegou-lhe com o punho no nariz, chutou-lhe o estômago e
finalmente lhe deu tal golpe na nuca com o antebraço que Josué caiu
tendido a seus pés, inconsciente.
Lavínia deu um passo para trás aturdida, tremendo como um
papel ao vento. Um suor copioso lhe percorria o rosto pálido banhado
em lágrimas.
— Josué... - balbuciou com a voz afogada. Não obteve resposta.
Cobriu-se a cara com as mãos.
E se tinha morrido? O que acontecia se o tivesse matado? Um
secreto terror se apoderou dela ao ponto que deu um grito, abriu a
porta e correu pelo corredor com tanta má sorte que quase tropeçou
no intento de fuga. Sustentou-se da parede para manter-se em pé e
seguiu.
Baixou as escadas sem olhar à frente, presa do medo de ser
culpada. Chegando à planta baixa se chocou contra um corpo alto e
forte que a sustentou pelos braços e acabou de joelhos com ela
quando se debilitou, amortecendo sua queda com sua resistência.
— Me ajude! - gritou Lavínia desencaixada. — Me ajude, por
favor!
Nick ficou gelado. Ela tinha uma mancha de sangue no rosto,
mas não a via ferida. Então baixou o olhar em busca do lugar onde
Lavínia podia ter sido machucada e se encontrou com sua mão.
Elevou-a no ar, observou o corte. O sangue buliu em suas veias.
— Filho da puta - resmungou furioso, com essa voz poderosa
que às vezes emanava de sua garganta. Pensou em seguida no pai do
irmão de Lavínia. Em quem mais podia pensar? — Vou mata-lo.
Lavínia elevou o olhar. Que fazia Nick aí? Como ela não se deu
conta de que era ele quem a sustentava pelos braços?
Não teve tempo de formular uma hipótese para essas
perguntas por que Nick ficou de pé e subiu as escadas de dois em
dois, tão rápido que ela teve que correr para alcançá-lo. Ao chegar a
seu piso, viu que desaparecia no interior de seu apartamento.
— Não, Nick! - gritou-lhe ela quando chegou dentro. — Já o
matei! - estava desesperada, tão assustada que parecia que sofria
um ataque de nervos. — Matei-o! – gritou. — Matei a um homem, ao
pai de meu irmão!
Nick chutou a navalha e se ajoelhou junto ao suposto cadáver
que jazia de barriga para baixo junto à mesa da sala. Girou-o sem
delicadeza alguma e assentou dois dedos sobre uma veia do pescoço.
Pôs o ouvido sobre o nariz.
Os instantes que ele demorou para fazer isso pareceram
eternos, o tempo se suspendeu naquelas ações, até Lavínia deixou de
respirar.
Então viu que Nick ficou de pé, meditou algo um breve segundo
e logo lançou uma patada ao corpo. Deu-lhe no ventre. Outra patada
mais nos testículos.
Nick o reconheceu. Era o tipo que lhe tinha pedido dinheiro na
Avellaneda, esse ao qual tinha dado cem pesos. De ter sabido a quem
se enfrentava, o teria destroçado naquele momento. Sentia tanta
bronca que se o maldito não estivesse morto, era capaz de matá-lo
ele.
— Não faça isso! - bramou Lavínia, outra vez cobrindo a cara.
Nick pareceu reagir e recordar que ela se achava ali, esperando
notícias do morto. Então se deu a volta e a tomou pelos braços para
sacudi-la.
— Não está morto, Lavínia, fique tranquila - falou-lhe com voz
tão tensa que quase não parecia ele. Fazia-se evidente que esperava
serená-la, mas que por dentro estava tão ou mais furioso que ela.
— Matei-o! - insistiu Lavínia.
— Digo que não está morto - repetiu Nick com voz poderosa. —
Juro-lhe isso.
As pernas da Lavínia perderam as forças e voltou a cair de
joelhos, como na escada, onde se tinha encontrado com Nick. Ele se
deixou cair a seu lado e a estreitou contra seu peito, procurando
contê-la. Aliviado porque ela estava a salvo, beijou-a na cabeça.
— Terá que chamar à polícia - anunciou. Quase ao mesmo
tempo pinçou no bolso do casaco, extraiu o telefone celular e discou o
número sem soltar à mulher que chorava, débil e temerosa, entre
seus braços.
Antes que chegasse a polícia, Nick chamou Fi e avisou que não
acreditava retornar ao escritório essa tarde. Em efeito, não o fez
porque levou Lavínia à delegacia de polícia para declarações. Depois
de ter terminado, indicaram-lhes que deviam sentar-se em um banco
em um corredor desolado e esperar a declaração de Josué.
Lavínia suspirou. Olhou a mão que lhe tinha enfaixado a médica
da ambulância e pensou no que acabava de passar. Tinha Nick a seu
lado, não sabia explicar por que ele tinha ido a seu edifício e
tampouco se atrevia a perguntar-lhe. Não se esquecia de como
tinham acabado a última vez que se viram.
Sobressaltou-se quando ele se moveu. Foi lhe colocar o casaco
de seu traje sobre os ombros. Nesse momento Lavínia se deu conta
de que tinha estado tremendo.
Nick não sabia se Lavínia tiritava de frio ou de nervos, mas fez
o que acreditou conveniente para acautelar as sensações que a
afligiam. Queria abraçá-la, mas não se atreveu. Pressentia que ela
não tremia de frio, porque ali fazia calor, a não ser presa do que tinha
acontecido.
— Dói? - perguntou-lhe em relação à mão. Soava preocupado e
não podia deixar de está-lo. O que tinha escutado ela relatar à polícia
a respeito de Josué, o modo em que este a tinha ameaçado e como
ela se defendeu o tinha deixado assombrado.
— Um pouco - reconheceu Lavínia sem ânimos soando débil.
Nick ficou de pé e pretendeu afastar-se, mas ela o deteve.
— Aonde vai? - perguntou-lhe.
— Pedir algum analgésico para a dor - respondeu ele.
— Não, está bem - apressou-se a indicar Lavínia. — Obrigado.
— Está segura?
Lavínia assentiu e Nick voltou a tomar assento. Então se
produziu um breve silêncio que resultou incômodo para os dois. Nick
o rompeu com uma pergunta.
— Por que não me disse isso?
Lavínia, que até esse momento estudava a parede, olhou-o.
— O assunto do Josué? - perguntou. Nick assentiu em silêncio.
— Porque não. Não tinha por que te envolver.
Nick não deu resposta. Ele tampouco sabia explicar por que
tinha preferido que ela o envolvesse e não que o pusesse de lado.
— Pensa que se pagássemos sua dívida aprenderia a lição? -
interrogou. Lavínia o olhou com seus olhos verdes muito abertos;
havia algo que não entendia.
— "Pagássemos"? - repetiu.
— Sim - assentiu ele. — Já sabe, lhe dar o dinheiro para que
saldasse sua dívida para que seu irmão não corra perigo. Acredita
que Josué aprenderia e não voltaria a meter-se com gente tão
pesada?
Lavínia inspirou profundo antes de voltar a falar. Os
pensamentos se amontoavam em sua mente sem uma direção
precisa.
— Primeiro, não acredito que pagar a dívida solucione algo em
longo prazo, Josué jamais aprende. Segundo, não entendo por que te
referiu a pagá-la em plural. Em caso de que alguém pague a dívida
do Josué, o farei eu.
Nick não queria ser duro com ela, mas compreendeu que devia
sê-lo se desejava resolver esse problema.
— Com o que? - perguntou. Lavínia o olhou como se acabasse
de acusa-la de um crime.
— Perdão?
— Não acredito que esses tipos se tomem tanto trabalho por
cem pesos, eu acredito que o débito de Josué é de muito mais -
replicou Nick. — Se não me equivocar, disse mil. Minha pergunta é de
onde os vai tirar.
Lavínia suspirou. Deixou de olhá-lo.
— Um empréstimo - disse de modo reflexivo. Era a ideia que
lhe tinha ocorrido quando Josué a tinha aprisionado contra a parede.
— E pagar os juros abusivos que te cobrariam? - intrometeu-se
Nick. — Por que não te faço eu o empréstimo, sem interesses?
Lavínia lhe dedicou um sorriso sem graça.
— Primeiro, porque isso ataria você a mim – explicou. —
Segundo, porque não quero sua caridade. Aprecio sua preocupação,
mas não têm que fazer nada por mim. Arrumarei-me sozinha, como o
fiz sempre.
Nick pensou em seguida em Horácio Lowenstein. Possivelmente
Lavínia estivesse pensando em lhe pedir o dinheiro, depois de tudo,
era seu amante.
A quem queria enganar? Lavínia tinha menos probabilidades de
havê-lo enganado com o Lowenstein que ele de ser perfeito na
segurança e higiene de suas obras. Então, que fazia entrando em um
hotel com seu inimigo?
— Vai me explicar por que entrou em um hotel com Horácio
Lowenstein? - perguntou com tom pétreo. Lavínia se surpreendeu
pela abrupta mudança de conversação, sobre tudo porque se fazia
impossível seguir o fio dos pensamentos de Nick.
— Tentei fazê-lo, mas não me deixou, lembra-te? - respondeu
ela sem intenções de vingança.
— Necessitava que fizesse silêncio para falar?
— Necessitava que estivesse disposto a escutar.
Nick olhou para outra parte. Ele não era um homem ciumento,
Oh, não! Primeiro Tomas, depois Horácio... quem mais seria vítima de
seus odiosos pensamentos?
— Não passou absolutamente nada, Nick - continuou ela ao
notar a repentina ausência mental do homem.
— Então entrou em um quarto com ele - Nick sentia que lhe
ardiam os olhos e as bochechas. Um calor súbito lhe percorria o
corpo.
— É obvio - indicou Lavínia a seguir. — A que se vai a um hotel?
Tínhamos que entrar.
— E deitou com ele - Nick fulminava a parede com o olhar.
— Não, isso não. Bom, sim, mas não.
Agora fulminava a ela.
— Não lhe parou - lançou com os dentes apertados.
— Nick! - arreganhou-o Lavínia com um grito afogado. — Como
pode pensar que dormiria com Horácio Lowenstein?
— Não digo que tenham dormido precisamente... - replicou ele,
irônico.
— O que seja! Primeiro nos sentamos à mesa e ele serviu duas
taças de champanhe, mas nem sequer a provamos.
Nick voltou a olhar a parede.
— Claro, devia estar muito apurado por te levar a cama antes
de que lhe acontecesse o efeito do Viagra.
Lavínia soltou uma gargalhada.
— Não posso acreditar! – exclamou. — Já nem sequer tomo
como um insulto que seja tão presunçoso.
— Presunçoso eu? - respondeu ele voltando a olhá-la. — Nisto?
— Nick. Com o Horácio vi Cúpulas borrascosas e resultou que
os dois sabíamos bastante do tema, então passamos conversando
mais de duas horas.
Ao Nick revolveu o estômago que ela o chamasse "Horácio".
— Duas horas conversando sobre um estúpido filme? - não
sabia se dava crédito ao que ouvia.
— E sobre o livro - esclareceu Lavínia. — A ver, diga-me, quem
o escreveu? – o pôs a prova.
— É também um livro?
— Qual das irmãs Bronte? - tentou orientá-lo, mas não houve
caso.
— Havia mais de uma?
Lavínia riu, mas em seguida voltou a ficar séria, quase parecia
uma professora a ponto de dar um sermão a um menino com má
conduta.
— Olhe, Nick, acredito que deveria deixar de ser um hipócrita e
reconhecer seus próprios enganos - disse amargamente. — Não culpe
Horácio pelo que você mesmo provocou.
Nick a olhava com o cenho franzido, seus belos olhos
entrecerrados.
— O que eu provoquei? - repetiu destacando o pronome.
— Se te deitar com mulheres casadas, têm que aprender a
viver com as consequências.
Nenhum soube a qual dos dois doeu mais essas palavras
porque o celular de Nick interrompeu a conversa. Ele tirou o telefone
do bolso e olhou a tela. Era Patrícia. Não queria responder, mas se
obrigou a fazê-lo porque as palavras de Lavínia o tinham deixado
desconfortável, machucado, embora não o demonstrasse em uma só
fibra de seu corpo.
— Alô.
Lavínia se surpreendeu de que essa fosse a voz de Nick. A
quem atendia com um tom tão duro?
— Estou na delegacia de polícia. Não importa por que.
Falava muito pouco, com a voz gélida.
— Sim, posso te dar o endereço, mas não quero que venha -
fez-se uma pausa. — Sei que se lhe dou, virá.
Que mais faltava? Pensou depois. Que Lavínia conhecesse a
mulher que Horácio Lowenstein tinha como esposa.
— Está bem.
Acabou por dar a direção e cortou sem sequer se despedir.
Lavínia sabia que Nick não tratava assim a suas amantes. A ela, que
tinha sido uma, tinha-a tratado com suavidade, pressentia que fazia o
mesmo com as outras porque assim se percebia no ar.
Nick se arrependeu imediatamente. O que ganhava
aproximando Patrícia e Lavínia? Só fazer mais vulnerável à segunda
frente à primeira. Então discou um número.
— Não venha - disse outra vez sem saudar. — Já vou.
Desligou. Lavínia não emitia palavra, olhava para outra parte,
mas se fazia evidente que Nick não estava de ânimo para que o
perseguissem e que, além disso, mentia, porque não sabiam quanto
tempo mais teriam que passar ali. O que pretendia ele, enfrentá-la
com sua amante de volta como ela o tinha enfrentado a ele com o
suposto amante? Era óbvio que Nick não tinha acreditado em uma
palavra e pensava que ela era a amante de Lowenstein. Nick vivia
nesse mundo, pensava que todas as pessoas eram como ele e que...
— Acredito em você - Nick disse e interrompeu todo
pensamento de Lavínia, que o olhou com os olhos muito abertos,
surpreendida por essas palavras que escapavam de sua boca. — Têm
o coração tão grande que é capaz de ajudar Lowenstein a recuperar a
sua... esposa - indicou ele. — Embora isso signifique me trair.
Nick se referia a que, ajudando Lowenstein a conservar Patrícia,
Lavínia estava dobrando em seu contrário, porque primeiro Patrícia
tinha sido sua esposa. Nem sequer lhe interessava falar do assunto
de seu projeto secreto, porque em seu interior jamais tinha
suspeitado de Lavínia, embora lhe houvesse dito o contrário à cara.
Lavínia ia pedir-lhe uma explicação, mas nesse momento um
policial se aproximou e anunciou que podiam retirar-se. Nick ficou
primeiro de pé, perguntou o que aconteceria com Josué e lhe
informaram que passaria umas horas mais na delegacia. Estava
seguro de que queriam lhe tirar informação sobre o tipo ao que devia
dinheiro. Não emitiu palavra a respeito e se balançou para a saída.
Na porta do edifício, deteve-se para deixar passar a Lavínia. Em
lugar de fazê-lo, ela ficou olhando, intrigada pela conversa truncada
que acabavam de manter.
Nick ficou preso no verde de seus olhos, parecia-lhe que neles
se estendia um campo que o conduzia a um lugar incerto, ao futuro
sonhado.
Lavínia soube que ele estava a ponto de falar. Ia convidá-lo
para tomar um chocolate ou algo, porque entreabriu os lábios e não
precisamente para colocar um cigarro entre eles. Entretanto não pôde
fazê-lo porque alguém interrompeu suas reflexões.
— Nick.
Nick girou a cabeça com brutalidade. Ficou perplexo, esqueceu-
se por completo de que Patrícia podia aparecer em qualquer
momento.
— Estava perto e vim te buscar - explicou ela ante seu
assombro.
Os olhos do homem se tornaram frios, displicentes. Lavínia se
deu conta e temeu aquele olhar. O corpo de Patrícia padeceu uma
sacudida. Não havia rastro algum de veneração ou sentimentos no
homem que até não fazia muito tempo estava louco por ela, e isso só
podia dever-se a uma razão.
Patrícia olhou em seguida a essa razão, que era a costureirinha
em quem tinha reparado desde que cruzava a rua em direção à
delegacia de polícia. Notou que a dor atravessava as pupilas verdes
da garota, e se aproveitou disso para sair triunfante da silenciosa
briga que lhe apresentava.
Pegou o braço de Nick e fingiu um sorriso que deixou a
descoberto o descontentamento que se esforçava por ocultar. A
costureirinha levava o casaco de seu marido sobre os ombros e isso
terminou de zangá-la.
— Não vai nos apresentar? - reclamou ao Nick. Também
pretendia fingir que o assunto lhe importava muito pouco, mas se
notava a simples vista que isso não era certo.
Lavínia sentia que podia tornar-se a chorar a qualquer
momento, mas resistia e o ocultava. Nick tinha voltado com sua ex-
mulher, a das fotos que conservava em seu apartamento, a do navio
e isso a destroçava por dentro. Sabia que o tinha perdido.
Por um momento se arrependeu de havê-lo deixado. Se ela
tivesse suportado em silêncio e se conformado com seu carinho,
possivelmente ele não teria tornado a procurar a sua esposa. Mas em
seguida pensou que não podia enganar-se mais. Cedo ou tarde, Nick
teria voltado com sua mulher, e se desse modo era feliz, ela tinha que
aceitá-lo, porque somente assim se amava de verdade. Talvez algum
dia outro homem cruzasse por sua vida e fosse ela a que
permanecesse em silêncio quando esse outro lhe dissesse que a
amava. Então poderia compreender em carne própria o que
significava sentir-se como Nick.
Apesar de que Patrícia era a que falava, Nick não a olhou. Seus
olhos estavam enterrados em Lavínia, como se ainda quisesse
convidá-la a alguma parte ou fazer de conta que ninguém interrompia
sua conversa.
— Esta é minha ex-mulher - disse para lhe dar o gosto a que
lhe apertava o braço como se desse modo procurasse evitar que ele
pudesse escapulir. O corpo de Nick não se ia, mas sua alma vagava
muito longe de Patrícia, só que ela não o reconhecia.
Patrícia apertava as mãos ao redor do braço de Nick porque
sentia ódio e ressentimento. Ele a tinha apresentado antes a
costureirinha como sua ex-mulher, sendo que antes sempre a
chamava "minha esposa", inclusive quando já estavam divorciados.
Por outra parte, não a tinha renomado à outra, e Patrícia sabia muito
bem que se devia a que a estava protegendo dela. A vantagem era
que a costureirinha desconhecia essas intenções, notava-se em que
tudo o que Nick dizia lhe parecia com ela uma adaga que lhe
enterrava no peito.
Patrícia sabia que estava perdendo Nick e não tinha ideia do
que devia fazer para retê-lo.
Lavínia, ao ver que Nick nem sequer desejava que sua ex-
mulher soubesse que ela era sua amiga, tal como ele a tinha
proclamado no navio, compreendeu que estava a mais nesse
encontro e se despediu.
— Tenho que ir – disse-lhe estendendo o casaco que ele tomou
sem apuro. — Obrigado por tudo, Nick. Estou em dívida com você.
Nick se adiantou um passo para que ela não se fosse, embora
Patrícia seguisse sujeitando-o. O apertão foi insignificante como
intento de que ele não se movesse.
— Quer que te leve até sua casa - perguntou. Lavínia não
entendia nada, em um momento a omitia na apresentação e ao outro
lhe oferecia levá-la até sua casa ainda contra o olhar que nesse
momento lhe lançava sua ciumenta mulher. Lavínia se esforçou por
soar tão amável e distante como ele, embora o tom rígido da voz de
Nick fosse impossível de imitar.
— Vou estar bem, não se preocupe – replicou.
— Ele não se preocupará, querida - repôs sua esposa com ares
de superioridade - só trata de ser cortês - logo olhou ao Nick. —
Vamos, querido – pediu. — Disse ao chofer que levasse o carro.
Nick não se dignou a olhá-la em toda a conversação. Ficou
calado, vendo como Lavínia se surpreendia pela resposta de Patrícia e
tentava ocultá-lo em um sorriso rígido. Notava-se em suas pupilas
que estalaria de dor a qualquer momento, e ele se sentiu morrer.
Lavínia se voltou e começou a caminhar rumo a sua casa. Nick
teria deixado Patrícia para seguir Lavínia, teria se esquecido do
mundo para levá-la até seu apartamento, deitá-la em sua cama,
despi-la, lhe beijar os lábios enquanto lhe sussurrava que... que a
amava não, que lhe faria amor. Queria anunciar o que ia passar
para... para que se ruborizasse e lhe demonstrasse que o amava
tanto como ele necessitava que o fizesse.
— Vamos, Nick - insistiu Patrícia. Nick não tinha escutado que a
mulher já lhe tinha pedido o mesmo fazia um momento.
Como sempre: quando queria falar, ficava calado; quando
queria correr, ficava quieto.
Deu-se a volta e foi até o automóvel sem mediar palavra com
Patrícia. Nem sequer por cortesia esperou a que ela caminhasse
adiante ou ao mesmo tempo em que ele. Nick fazia o que queria e
isso matava Patrícia.
Sentado no automóvel, pôs o motor em marcha, mas não
moveu o veículo do lugar.
— Pobre moça! - comentou Patrícia sem medir seu ódio. — Tem
menos aula que suas prostitutas.
Mas com pesar se deu conta de que Nick não lhe emprestava a
mínima de atenção, nem sequer a tinha escutado. Ficou olhando o
corpo de Lavínia fazer-se pequeno e logo desaparecer no espelho
retrovisor.
As noites na delegacia de polícia sempre eram duras. Josué
tinha dormido em uma cela quando a presunçosa da Lavínia o tinha
denunciado por drogado, e tinha passado outra porque a princesinha
o tinha moído a paulada. Não tinha ideia de como ia pagar sua dívida
nem de como ia salvar-se das balas, e tampouco se preocupou.
Preferia olhar a televisão do outro lado da mesa na qual se
encontrava Helena, com o controle remoto reparado na mão e os pés
elevados a uma cadeira. Cristina tinha saído para fazer as compras
com Hector. Josué adormecia sobre a mesa até que ressonaram uns
golpes à porta.
Ali viviam delinquentes, mas como não se roubavam entre eles,
podia-se confiar nas pessoas. Essa foi a razão pela qual Josué abriu a
porta sem perguntar quem a golpeava. Crasso engano.
Nick se jogou em cima como uma fera e o espremeu contra a
parede. Antes de falar olhou para o lado, onde Helena ainda estava
sentada com os pés sobre a cadeira, mas com o olhar marrom
cravado nos dois homens. A boca entreaberta, o chiclete suspenso
sobre sua língua.
— Não te mova - ordenou. A garota se encolheu de ombros,
indiferente.
— Nem o pensei.
Por ela podiam matar Josué que lhe faziam um favor. O que em
troca lhe tinha acelerado o pulso era ver em pessoa ao namorado de
sua irmã, o que fosse. Era muito mais atrativo, forte e capitalista do
que se via nas revistas, e além não tinha medo em tornar-se em cima
de um tipo grande e burro como Josué. E mais, tinha-o deixado
contra a parede como se fosse uma pluma. Resultava evidente que
Josué era puro tamanho, mas não tinha nada de coragem e muito
pouca força. A bebida e as drogas o teriam consumido todo.
Os olhos de Nick brilhavam de tão escuros e azuis quando
voltou a olhar ao moreno. Queria matá-lo, o teria assassinado com
suas próprias mãos para vingar quão terrível tinha sido esse homem
com Lavínia, mas soube que fazer isso não seria mais que condenar a
si mesmo e salvar a seu oponente da vida miserável que levava. A ele
sozinho interessava proteger o mais prezado.
— Já pagou sua dívida? - perguntou-lhe com rudeza. Quando
falava assim, a voz lhe voltava rouca e poderosa, e conseguia fazer
tremer a todo mundo. O homem agitou a cabeça em gesto negativo.
— Eu a pagarei - anunciou Nick a seguir. Josué esboçou um sorriso,
esse tipo sim que era uma bênção! Cada vez que aparecia era para
resolver um problema.
Entretanto, o sorriso se apagou do rosto nem bem Nick lhe
apertou a garganta com o antebraço e voltou a falar com tom e gesto
ameaçador. — Não te ria - ordenou-lhe. — Não te penso dar o
dinheiro a você. E mais te vale manter a essa gente fora da vida de
Lavínia, porque se voltarem a pô-la em risco a ela ou a qualquer de
sua família que nada tem que ver com seus assuntos, eu mesmo me
encarrego de que esses tipos lhe voem a cabeça, vou arrumar com
eles. Não quero que te aproxime de Lavínia nunca mais. Aproxime-se,
e lhe fuzilam. Agora diga onde posso encontrá-los.
Helena estava absorta no que via, mas não se atrevia a mover-
se nem queria fazê-lo, porque assim teria arruinado um momento
sublime para ela, como esse o era. Sentia que algo tinha trocado em
seu interior: nem todas as pessoas eram tão distintas a ela,
possivelmente o namorado de sua irmã lhe parecesse mais do que
tivesse imaginado. Sentiu que ao fim tinha encontrado um espelho no
qual seu verdadeiro ser se refletia.
Josué cuspiu uma direção e Nick o soltou com tanta brutalidade
que o outro se cambaleou depois da partida. Helena viu sair Nick da
casa deixando a porta aberta. Sorriu de verdade, sem careta sensual
nem fingimento. Amava a esse homem.
Lavínia tratava de seguir com seu trabalho. Tinha que fazer as
camisas para a marca de roupa porque isso podia assinalar seu início
como oficina de costura e lhe contribuir um ingresso um pouco mais
amplo e seguro que os clientes particulares. Como a mão machucada
atrasava seu trabalho, pediu ajuda a Tamara, que acudiu nem bem se
liberou de suas tarefas.
— Não estas como sempre, Lavi - comentou a morena
enquanto recortava um molde. O que se passa?
— Nada - respondeu Lavínia, ocupada na máquina de costurar.
— Diga-me o que se passa, não confia em mim?
— Claro que confio em você, Tami, é que não quero falar de
nada.
Uns golpes à porta interromperam a conversa. Lavínia, que
tinha ficado temerosa de que os traficantes a buscassem atrás do
acontecido com Josué, pensou que podia tratar-se deles e tremeu
involuntariamente. Tamara se deu conta.
— O que acontece, Lavínia? - perguntou assustada.
Ao parecer quem se achava do outro lado da porta também
pensou no medo que Lavínia podia sentir, por isso falou.
— Lavínia, sou eu, Nick. Está aí?
— Ah, entendo! - riu Tamara. — Terei que deixá-los sozinhos? -
brincou.
Lavínia não lhe tinha contado ainda que tinha rompido com
Nick. Tamara estava muito ocupada com sua nova vida de mulher
casada e se viam pouco. Olhou sua amiga com desencanto.
— Não diga nada, Tami, por favor - pediu ao mesmo tempo em
que ficava de pé para dirigir-se à porta. Embora a outra não
entendesse o motivo do pedido, aceitou.
Lavínia abriu com o rosto contrito. A expressão de Nick não era
muito distinta.
— Como está? - perguntou. Lavínia não tinha aberto a porta de
tudo, como se não desejasse que visse o interior de seu apartamento.
Mantinha-o a distância.
— B... bem - Tampouco tinha contado a Tamara o acontecido no
dia anterior, havia-lhe dito que o corte da mão o tinha feito com um
prato na cozinha, pareceu-lhe o melhor para preservar a segurança
de sua amiga. Rogava a Nick que não deixasse escapar nada que a
pusesse em evidência.
— Como está a mão? - continuou perguntando ele.
— Bem - respondeu ela. Nick assentiu.
— Contudo ontem me esqueci da razão pela qual tinha vindo -
explicou com simplicidade. — Javier Gonzaga, um dos responsáveis
por uma marca que conheceu em uma festa, tem uma oferta de
trabalho para você - Lavínia entreabriu os lábios, surpreendida. —
Disse-lhe que o chamaria se te interessava receber esta proposta.
Estendeu para ela o papel que tinha escrito em seu escritório no
dia anterior e Lavínia o recolheu. Estava confusa e desconfiada.
— Se teve algo que ver com esta oferta... - começou.
— Juro que não - interrompeu-a ele. — Quando te levei a festa
sim quis te apresentar a todas essas pessoas, mas ao Javier o
conquistou por sua conta.
Lavínia tomou uma funda baforada de ar, sem poder acreditar a
possibilidade que Nick acabava de colocar entre suas mãos.
— Por que não responde o telefone? - perguntou-lhe ele em
seguida. Lavínia não quis lhe dizer que não tinha podido pagá-lo.
— Estou sem linha - explicou muito breve.
— Quer que chame a manutenção?
— Não, está bem, já o fiz.
Nick assentiu. Apertou os lábios antes de falar.
— Ainda não aceita que te dê de presente um celular? -
perguntou. Lavínia suspirou. Se não o tinha aceito antes, quando
eram namorados, agora menos que nunca.
— Não - replicou.
Nick não queria ir-se, mas tampouco se atrevia a pedir a
Lavínia que o deixasse entrar. Compreendendo que ela não o faria,
disse-lhe adeus e refez o caminho para a escada. Em seu coração
esperava que ela o chamasse, mas em troca só escutou fechar a
porta.
Não podia culpá-la. Ele havia voltado com Patrícia.
— Essa é a maneira em que se saúdam e se falam dois
namorados? - perguntou Tamara cruzando os braços diante da
máquina de costurar. Lavínia baixou o olhar.
— Já não somos namorados - resumiu com dor.
— Então era o que se passava e não pensava dizer isso.
— Por favor, Tamara, não estou certa que suporte que te
ofenda.
— O que aconteceu? Enganou-te?
— Não.
— Então por que te deixou?
— Não me deixou, eu o deixei. Agora falemos de outra coisa,
por favor.
— Por que você o deixou? Porque te enganou!
— Não. Nick não me enganou. Agora basta. Fale-me de você.
Fi se sentia desesperada cada vez que Patrícia Cólon cruzava a
porta do elevador. Pensava que Nick havia tornado a ser o cachorro
dessa perversa prostituta, que lhe dava todos os gostos e a tratava
como uma servente à rainha.
Arrogante, altiva e soberba, Patrícia passava por cima de Fi
como a uma estátua. E Fi, embora morresse por lhe soltar umas
quantas verdades na cara, calava por amor a Nick. Se falou foi
sozinho porque ele a obrigou a fazê-lo com a novidade que lhe fez
saber quando lhe entregava uns papéis.
— Quero que hoje jante em casa, Fi - disse-lhe enquanto
estudava o que ela acabava de lhe entregar.
— Festejamos algo? - perguntou a mulher, risonha.
— Patrícia deve jantar hoje conosco.
O sorriso do Fi se apagou como se lhe tivessem atirado uma
bofetada. Até esse momento, Patrícia não tinha pisado no
apartamento de Nick, o mesmo que uma noite tinha abandonado.
— É hora de que vocês duas se deem uma oportunidade -
seguiu ele, ainda ocupado em falar e em manipular as pastas.
— Não há trégua, Nick - replicou a secretária. Ele se
surpreendeu, porque elevou os olhos para ela e quase por milagre só
se concentrou no que falavam.
— Necessito que façam as pazes - explicou sucintamente, como
se se tratasse das cláusulas de um contrato - dentro de pouco penso
pedir a Patrícia que volte a viver comigo lá.
— O que? - Fi acabava de elevar a voz. Nick era um estúpido.
Tão inteligente e tão idiota!
— O que escutou. É minha esposa e vou recuperá-la.
— Não é sua esposa - espetou-lhe Fi. A Nick não pareceu lhe
importar.
— Por isso mesmo, tem que voltar a sê-lo.
— Não conte comigo para isso - Fi soava na verdade zangada.
Nick nunca a tinha escutado dessa maneira.
— Por que diz isso?
— Porque não serei mais a testemunha silenciosa de sua
decadência. Sabe que é minha vida e que te amo, mas se quer te
destruir, vai ter que fazê-lo sozinho.
Nick ficou perplexo com a resposta; calado pela primeira vez
em muito tempo.
— Não seja tão dura, por favor - pediu em voz muito baixa.
— Não espere que eu volte a pisar em sua casa enquanto essa
perversa tenha um só pé posto nela - seguiu Fi, ignorando sua
súplica.
— Isso é injusto! - reclamou ele respaldando-se no assento.
— Injusto?
— Obriga-me a escolher entre ela ou você.
— Claro que não te peço que escolha - corrigiu-o Fi, ofuscada.
— Não te estou oferecendo nenhuma opção. Leve-a para viver com
você!
— A custa de que saia de minha vida.
— Seguirei trabalhando para você, mas só como sua secretária.
Não quero pisar em sua casa enquanto ela a pise, nunca mais.
— É minha segunda mãe, não pode me fazer isto - Nick soava
desanimado, e o estava, porque nada saía como o tinha planejado.
— Já não - replicou a mulher com os olhos úmidos. Nick sentiu
que o peito lhe fechava.
— O que diz? - balbuciou. Não podia acreditar que Fi lhe
dissesse aquilo, era impensado.
— Uma boa mãe jamais permitiria que seu filho destroce a vida,
e eu não tenho garra para impedi-lo - replicou ela com pesar. — E
Lavínia? O que tem ela?
Nick preferiu fechar os ouvidos ao nome e congelar a palavra
quando ele mesmo a pronunciasse.
— Lavínia se foi - recordou à sua secretária.
— Você a deixou ir!
— Patrícia é minha esposa, tem que sê-lo - defendeu Nick em
um intento desesperado por convencer-se ele mesmo do que dizia.
- — Não vai me fazer acreditar nessa mentira! - gritou-lhe a
mulher. — Ou vai me fazer pensar que o que diz as pessoas é
verdade.
— E o que dizem as pessoas? - replicou ele entre dentes.
— Que é um presunçoso orgulhoso. O que quer, Nick?
Demonstrar ao Lowenstein que pode recuperar sua amante, como
uma vez demonstrou ao Octávio que podia ser muito mais que ele?
Nick tragou com força.
— Está machucando, Fi - resmungou. Dizia desorientado, não
podia digerir a dor, nunca tinha sabido fazê-lo.
— Na verdade acredita que ainda ama a Patrícia? Acredita
poder amar a uma mulher como essa depois de ter conhecido
Lavínia?
— Parece que Lavínia é sua filha, não eu - concluiu ele. — Basta
- indicou depois inclinando-se para frente - não tolero isto.
— Porque não pode tolerar a você mesmo - espetou-lhe a
mulher sem pestanejar. — Faça-te o gosto! Reúna a Patrícia uma vez
mais!
Depois de soltar essas palavras, Fi girou sobre os saltos e saiu
do escritório sem olhar para trás.
Capítulo 24
Lavínia respondeu ao telefone que tinha podido pagar graças ao
trabalho das camisas com um gosto na boca. Tinha chamado ao tal
Javier Gonzaga e este a esperava para a entrevista de trabalho em
uma hora. Estava entusiasmada e nervosa.
— Lavínia? - disse a voz do outro lado. Soava angustiada, presa
de pranto, e conseguiu alarmá-la.
— Mamãe?
— Necessito que me ajude. Pode me ajudar?
— S... sim - titubeou primeiro, pela entrevista e pela surpresa.
— Sim! - adicionou depois. Lavínia estava assustada: jamais sua mãe
tinha tido uma atitude semelhante. — O que necessita?
— Necessito que venha.
— Agora? Estava saindo a um encontro muito importante.
Passou algo com Hector?
— Não - replicou sua mãe compungida e também algo
temerosa. — Quando vier, golpeia cinco vezes de forma pausada para
saber que é você.
Lavínia tremeu. Tinha medo de que os que reclamavam o
dinheiro ao Josué tivessem invadido sua casa e assustado a sua
família. E se sua mãe a fazia ir porque eles estavam dentro e a
oferecia a ela como isca, porque era a única que, insistiam, podia
pagar? Era sua mãe capaz de tanto?
Se essa não era a razão de sua urgência, possivelmente se
achasse assustada porque a tinham ameaçado e de verdade estivesse
procurando sua ajuda. Lavínia não tinha pedido o empréstimo porque
queria ver o que acontecia na entrevista de trabalho e com a
confecção de camisas para a marca importante, mas nesse momento
em que ouvia sua mãe tão angustiada pela primeira vez na vida,
arrependeu-se de não havê-lo feito. Com o empréstimo, a dívida já
teria sido saldada e nada disso estaria passando. Teria que suspender
a entrevista.
— Está bem, mamãe. Passo por sua casa em um momento -
consentiu.
Depois de desligar, chamou o Javier e se desculpou porque não
poderia assistir à entrevista. Tinha medo de que já não a quisessem
para o trabalho, de que a considerassem irresponsável, mas ao Javier
não pareceu lhe importar. Quase parecia esperar que Lavínia
suspendesse o encontro. O que ela não sabia era que gente
importante estava acostumada a suspender entrevistas e fazer-se
desejar pelos empregadores e que Nick já tinha aplainado esse
terreno. Ela não se considerava alguém importante e desconhecia
essa tradição. O assunto a beneficiou sem querer, como a
beneficiavam tantos outros nesse último tempo, embora ela
acreditasse produto de sua má sorte.
Lavínia chegou a casa de sua mãe e respeitou o código dos
golpes à porta por segurança. Apesar disso, a voz de Cristina
perguntou quem era com tom desagradável e Lavínia se apressou a
identificar-se.
A mulher abriu apurada. Lavínia soube em seguida o que tinha
passado porque não fazia falta nada mais que olhar o rosto e os
braços de sua mãe para notá-lo. Tinha a bochecha vermelha e
torcida, nodoas negras nos braços e debaixo do olho esquerdo.
— Sabe que isso não acontece sempre... - tratou de justificar-
se Cristina antes que Lavínia dissesse "olá".
— Mas ocorre, e não deveria - corrigiu-a a filha. — Até quando,
mamãe? Até quando pensa suportar isto?
Cristina baixou o olhar.
— Até agora.
Lavínia elevou o rosto lhe sustentando o queixo. Estudou o
golpe mais notório e insultou ao Josué entre dentes.
— Por que te fez isto? - interrogou pensando nos malfeitores
que o perseguiam. — Queria que lhe desse dinheiro, não?
Cristina negou em silêncio.
— Estava zangado – explicou. — Seu namorado... -
interrompeu-se. Lavínia soltou o ar que levava nos pulmões.
— Mas por que não me acreditam que já não tenho namorado!
– exclamou. — De fato acredito que jamais o tive. Jamais o tive em
realidade - refletiu com tristeza. Se Nick não a amava, Nick não tinha
sido dela.
— Então me explique por que diz Helena que é um deus na
Terra, que ameaçou ao Josué como um valentão, que o jogou contra
a parede com tanta força que Josué parecia uma pluma e todas essas
coisas - soltou Cristina. — Não fez mais que me falar de seu Nick em
uma hora!
— Isso é impossível! - clamou Lavínia até contendo a risada. —
Nick jamais faria uma coisa assim.
— Por que está tão segura?
— Porque sei. Ele não é assim. Ele passa a vida detrás de um
escritório dando ordens, tirando contas, riscando linhas em papéis.
Nick não ameaça gente, não se chateia em fazer algo por alguém que
nem sequer lhe importa. E, sobre tudo, não pertence a nosso mundo.
Cristina a olhava com as sobrancelhas arqueadas. Helena tinha
aparecido com as botas até o joelho, a minissaia e o espartilho pela
porta do quarto e cruzava os braços apoiada na parede. Mascava
chiclete com a boca aberta.
— Seu namorado entrou como uma tromba por essa mesma
porta que acaba de atravessar você – contou. — Jogou Josué contra
essa parede – assinalou - e lhe disse que ia pagar sua dívida.
Possivelmente você saiba do que estava falando.
Lavínia ficou pálida. No silêncio, Helena fez uma bola de chiclete
e esta arrebentou fazendo saltar a todos, menos a ela.
— Nick disse que... pagaria sua... dívida - resmungou Lavínia.
Ninguém mais que Nick, Josué e ela sabiam a respeito disso, Helena
não inventava.
— E também lhe disse que se voltasse a nos pôr a qualquer de
nós em perigo, ou que se voltasse a aproximar-se de você, o ia
mandar matar.
— Impossível! - exclamou Lavínia. — Esse não era Nick! Deve
haver algum equívoco.
Helena semicerrou os olhos. Odiava que a tomassem por
estúpida, porque de boba não tinha um só cabelo.
— Eu acredito que você não tem nem ideia de quem é seu Nick
- replicou orgulhosa. Lavínia se viu derrotada por sua irmã e por seu
pronto interrogatório, por isso calou.
— Qual é o ponto de discutir isso agora? – disse. — Não
permitirei que pague nenhuma dívida e ponto.
— Ao que parece já é tarde para que faça isso - respondeu
Helena muito rápido. — Por isso Josué zangou-se, sentiu-se o que é,
um covarde, e se agarrou com a única pessoa que ainda lhe cede o
poder. É uma merda de homem um filho da puta. Nem meus... -
interrompeu-se antes de dizer um inapropriado "clientes". — Nem
meus amigos tratam assim a uma mulher - arrumou.
— Helena... - balbuciou Cristina, cabisbaixa.
— Para que me chamou mamãe? - perguntou Lavínia
pressentindo que sua mãe se guardava algo mais.
— Não quero que volte a entrar em casa - disse. Em seguida
olhou a sua filha de novo. — Até que se reponha.
Lavínia pensava por que sua mãe não afastava Josué de sua
vida para sempre e não o calou.
— Não entendo como pode querer a um homem como esse -
reclamou. Cristina franzia o cenho, pesarosa.
— Josué é um bom homem – assegurou. — E sim, eu o quero,
mas se estivesse recuperado, já não teríamos que viver assim.
Lavínia assentiu. O que podia reclamar ela a sua mãe, se
também estava apaixonada por um homem indesejável, embora em
outros sentidos. Um tipo mulherengo, que andava com esposas de
outros homens, que rompia famílias e que ainda por cima não soltava
um sentimento nem que estivessem a ponto de fuzilá-lo.
Mas pretendia protege-la de Josué...
Não podia pensar nisso agora.
— O que quer que faça? - perguntou a sua mãe.
— Agora se foi de volta a tomar com seus amigos - contou
Cristina - mas quando voltar, não lhe permitirei entrar na casa.
Helena me ajudou a pôr sua roupa em bolsas e penso jogá-las. Não
me sentiria segura sem que estivesse comigo.
Lavínia se sentiu comovida. Não podia acreditar que sua mãe
ao fim tivesse reagido a respeito de Josué, que lhe impusesse como
requisito sua recuperação se queria voltar a ver sua família.
— Me perdoe - choramingou Cristina cabisbaixa. — Se eu
soubesse que Josué era assim, teria ficado sozinha com vocês duas.
Lavínia sabia muito bem que Josué se embebedou várias vezes
antes que Cristina decidisse viver com ele e pensava que isso deveria
haver servido a sua mãe como amostra de seu futuro, mas calou.
Não queria desperdiçar a possibilidade de que Cristina tivesse aberto
os olhos e finalmente estivesse decidida a pôr fim à situação que
tinha sofrido tantos anos.
— Seu pai era tão diferente... - continuou Cristina com um nó
na garganta. Helena escutava sem alarmar-se, na mesma posição
que tinha adotado ao sair do quarto. Podia passar horas como uma
estátua. Lavínia, em troca, não podia acreditar o que ouvia. Cristina
sorriu com melancolia: — Ele me tratava bem e me ensinou tantas
coisas... Quando o conheci, admirei-o no primeiro momento.
Os olhos de Lavínia se encheram de lágrimas.
— Nunca me havia dito todas essas coisas - sussurrou
emocionada. Sua mãe se encolheu de ombros. — Que sentido teria?
– chorava. — Para que lhe ia dizer isso, para que sentisse saudades
tanto como eu? Quando me tiraram isso, pensei que minha vida tinha
terminado.
— Mas foi - recordou-lhe Lavínia. — Não demorou para sair de
noite, em...
— Era jovem - replicou Cristina. — Sabe que me casei com seu
pai aos dezenove anos, e quando tinha sua idade, já estava viúva.
Senti que minha vida tinha terminado. Amava-o tanto... Todas
minhas ilusões morreram no dia em que soube que me tinham
arrebatado isso, tão jovem, tão forte, tão formoso...
Lavínia cobriu a boca com as mãos. Seu coração não alcançava
experimentar tantas emoções.
— Mamãe... - balbuciou. Cristina continuou falando angustiada.
— Passei muito tempo triste, nem sequer te olhava porque seus
olhos me recordavam os dele – contou. — Imagine o que se sente ao
perder a pessoa que mais ama no mundo, com ela se vão sua vida,
suas ilusões, sua juventude.
Os lábios de Lavínia tremeram. Nick não era dela e sabia, mas
só pensar que pudesse morrer a aterrava. Não. Até esse momento
jamais tinha compreendido a sua mãe, nem ela se feito compreender.
— Mas depois minha mãe, minha irmã e minhas amigas me
obrigaram a seguir adiante - continuou dizendo a mulher. — Tinha
você, eu era jovem e devia te dar um pai. O mau foi que, depois de
seu pai, sempre me apaixonei pelas pessoas erradas - Cristina sorriu.
Parecia necessitada de recordar. — Gostava de colecionar coisas -
disse pensando em Carlos. — Tinha muitos, muitos livros, amava a
leitura. Sempre líamos juntos... Líamos Eneida, por isso quando
nasceu quisemos que te chamasse Lavínia. Foi o primeiro livro que li
em minha vida. Que diferente teria sido tudo se não me tivessem
matado isso!
Helena não se sentia ciumenta das notícias que estava
ganhando sua irmã, embora ela jamais pudesse as ter. Seu pai tinha
sido um amor fugaz de Cristina e nem sequer sabia quem era. Ou ao
menos isso dizia ela.
— Vou sentir saudades até meu último dia - acabou dizendo
Cristina, presa do pranto.
Lavínia se inclinou para ela e a estreitou entre os braços.
Cristina respondeu a seu contato.
— Sinto muito, mamãe - desculpou-se Lavínia em seguida, ao
tempo que secava as lágrimas que lhe rodavam pelas bochechas com
a mão. — Se tivesse sabido tudo isto antes...
Helena jamais chorava e não queria fazê-lo, por isso olhou para
outra parte que não fosse sua irmã e sua mãe e pensou em algo que
não fosse aquela cena, mas as três estavam comovidas.
O ambiente se rompeu quando se moveu o trinco e, como
Cristina tinha posto chave, a porta não se abriu. As três olharam a
fechadura, a mãe com medo, as duas filhas com valor. Quase
pareciam duas jaquetas: uma de saia azul até o joelho e a outra de
minissaia negra que apenas lhe tampava a bunda.
— Vai lhe dizer que se vá, Lavínia? - perguntou a mãe referido-
se a Josué. Lavínia se deu a volta.
— Não – disse - O vai fazer você. Ninguém mais pode lhe pôr
fim a isto - Cristina assentiu em silêncio, sabia que Lavínia tinha
razão. — Tudo vai sair bem, mamãe - tentou tranquilizá-la. — Helena
e eu estaremos na sua casa, pendentes de tudo.
— Entretenham Hector - pediu Cristina, de repente preocupada
antes por seu filho que por ela mesma. — Seria muito duro para ele
se escutasse algo.
— Fique tranquila por isso - prometeu Lavínia enquanto sua
irmã, que parecia misteriosamente disposta a lhe fazer caso, abria a
porta da casa.
Quando Lavínia entrou em quarto, Hector abriu os braços.
— Lavi! - exclamou. Ao parecer se esqueceu de como tinham
terminado a última vez que se viram. Assim funcionava a mente dos
meninos, desprezavam o mau e entesouravam o bom. Lavínia
desejava poder fazer o mesmo com os últimos encontros que tinha
mantido com Nick.
Os gritos de Josué não se fizeram esperar. Cristina, em troca,
não gritava. Logo alcançava para ouvir que lhe pedia que se fosse,
que levasse suas coisas e retornasse quando estivesse recuperado.
— Esta é sua família e lhe queremos - dizia ela - mas não
assim. Assim não!
Essa casa tinha sido comprada com o dinheiro que o seguro de
vida pagou pela morte de Carlos, o pai de Lavínia. Ao Josué não
correspondia nada e nada ia se levar mais que suas poucas coisas.
Quando se ouviu um golpe, Lavínia foi primeira em sair, mas
Helena não ficou atrás. Enquanto a primeira enfrentou Josué, a outra
se aproximou de sua mãe para lhe revisar o novo golpe. Josué elevou
o punho para Lavínia, mas não se atreveu a deixá-lo cair. Ela o
enfrentava com as mãos no quadril, ela o tinha moído a pauladas.
— Não me golpeia! - recriminou-lhe à cara. — Faz o que diz
minha mãe ou chamo à polícia. Ou melhor, chamo Nick para que te
mande matar.
— Como prometeu. Procure ajuda, Josué - ordenou depois. —
Se quiser voltar para esta casa, vais ter que fazê-lo são.
Josué baixou o braço com o que ameaçava Lavínia, de mau
grado recolheu a bolsa com seus escassos objetos de vestir, deu-se a
volta e partiu. Cristina chorava, abraçada por Helena. Lavínia se
voltou.
— Trocaremos a fechadura - determinou.
Fi conservava a distância que tinha imposto entre Nick e ela. Só
ia trabalhar no escritório e lhe dirigia a palavra unicamente no que
referia aos negócios.
Nick tinha a coragem de fazer-se de ofendido e praticar com Fi
a mesma indiferença que ela fingia com ele. Seu apartamento estava
um alvoroço, em uma semana se transformou em uma desordem
descomunal que logo que pôde acomodar um pouco a empregada
doméstica que lhe enviaram de uma agência a que se viu obrigado a
chamar. Ele tinha prometido que jamais contrataria uma, mas se não
o tivesse feito, a imundície o teria abafado.
Para falar a verdade, era bastante desordenado, sempre o tinha
sido, e não queria empregadas porque se lembrava de sua mãe e de
sua tola ideologia de que era injusto que alguns nascessem para
servir e outros para mandar.
Amaldiçoava-se por ser tão estupido. Para ele era importante
que as coisas fossem feitas com amor: o café da manhã, o
acondicionamento da roupa, a limpeza. Pensava, como um bobo, que
o amor que se depositava nas ações se levava na alma ao beber o
chocolate matutino, vestir a roupa, aspirar o aroma de uma casa
limpa. Agora o chocolate o preparava uma máquina, a roupa a lavava
um tanque e a casa limpava uma empregada muito bem paga que
não queria ter. E embora desejasse conformar-se com todas essas
coisas, não podia evitar que lhe faltasse algo.
Fi ocultava sua preocupação a Nick, mas a sentia na alma.
Procurava a maneira de que ele reagisse a respeito de Patrícia, que a
desprezasse de uma vez como tinha feito com tantas amantes ao
longo desses anos. Não queria pensar que ele era tão idiota para
entregar-se a uma promessa que tinha feito que já não tinha nenhum
valor, porque tinha deixado de senti-la.
Foi uma tarde que, procurando essa luz que iluminasse a vida
de seu filho postiço, chamou Lavínia.
— Fi! - recebeu-a ela com surpresa e alegria. — Que bom ouvir
sua voz!
Fi não soava feliz igual a Lavínia, embora estivesse contente de
voltar a falar com ela. A moça sempre conseguia lhe transmitir um
pouco de paz.
— Está ocupada? - perguntou, taciturna.
— Não - contou Lavínia - Acabo de chegar de uma entrevista de
trabalho – disse. — Estou tão feliz! Querem que trabalhe como
desenhista! Nick me passou os dados; aceitei trabalhar para o Javier
Gonzaga, conhece-o?
— Sim.
Fi estava triste, silenciosa.
— O que te passa, Fi? - indagou Lavínia. — Está bem?
— A verdade é que não - respondeu a mulher sem ânimo de
nada, e conseguiu assim preocupar a Lavínia.
— O que acontece? - disse enquanto aproximava uma cadeira
até o telefone com o pé, logo se deixou cair nela.
— É Nick.
— O que acontece com Nick?
— Tem-me preocupado muito.
— Está bem? Passa-lhe algo?
— Você é única que pode ajudá-lo.
Lavínia se levou uma mão ao peito, com os olhos muito
abertos.
— Eu? - replicou.
— Só você pode resgatá-lo, Lavínia.
A urgência e o desespero com o qual falava Fi conseguiram
alarmar ainda mais a Lavínia. Assim, não tinha ideia do que a mulher
falava.
— Do que poderia eu resgatara Nick? - perguntou.
— De Patrícia Cólon.
— Sua amante - Lavínia recordava que Horácio Lowenstein
tinha renomado a uma tal Patrícia, tinha-a definido como sua esposa.
— Amante? - replicou Fi. — Que amante? Sua ex-mulher!
— A esposa de Horácio Lowenstein - respondeu Lavínia, muito
convencida do que dizia.
— A de Nick.
Lavínia entreabriu os lábios, franzia o cenho e já não respirava.
Não podia ser certo, devia haver duas Patrícias, depois de tudo não
era o nome mais estranho do mundo, não se chamavam "Lavínia".
— Entendo – disse. — As duas se chamam Patrícia.
— Que duas? - Fi tampouco entendia uma palavra.
— A do Nick e a do Lowenstein - repôs Lavínia. Fi negou com a
cabeça.
— Lavínia, não entendo nada – disse. — Patrícia Cólon é uma
só, e casou-se com os dois.
— O que diz? - sobressaltou-se Lavínia. — É bígama?
— Lavínia... - uma sensação de alarme invadiu o interior de Fi.
Possivelmente Nick tinha sido tão estúpido que nem sequer havia dito
a sua namorada que alguma vez tinha estado casado. — Nick não te
havia dito que era divorciado?
— S... sim... - balbuciou Lavínia. Isso serenou a mulher. Ao
parecer seu filho não era tão idiota, depois de tudo.
— Não sei o que te terá contado Nick, mas é melhor começar
desde o começo – resolveu. — Nick nem sempre foi o que conheceu.
— Sim, isso já sei - interrompeu-a Lavínia um momento. Tinha
soltado a carteira ao lado da cadeira.
— Nick era um jovem convicto estudioso, responsável, tímido.
— Tímido Nick? - riu ela.
— Mais do que poderia imaginar - replicou Fi muito séria. Não
se incomodou porque Lavínia não lhe acreditasse de entrada o que
lhe contava; não era para menos, depois do que aparentava Nick. —
Tinha sofrido muito pelo divórcio de seus pais, inclusive tinha
padecido antes que, graças a Deus, Octávio Larrazábal os
abandonasse a ele e a Teresa, sua mãe. Porque o primeiro
sobrenome de Nick, pelo que o conheceu quase toda sua vida, não é
Hagen, que era o sobrenome da Teresa, é Larrazábal. Octávio foi
sempre seu pesadelo, sua sombra opressora.
Lavínia tremeu. Apertava tanto o tubo do telefone que parecia a
ponto de quebrá-lo em dois. Nick não abreviava um segundo nome
com um L, a não ser um sobrenome. Começava a compreender...
Quando se sabiam certas coisas, tudo se fazia tão claro.
"Arquiteto. Meu pai era arquiteto", havia-lhe dito com a voz
apagada, com o olhar escuro, quando fez a pergunta sem ter ideia do
que esta agitava em seu interior.
— Nick era tão sensível que... - começou Fi. — Ainda o é -
repôs com amargura na voz.
Lavínia tragou com força um nó de dor.
— É tão sensível que sempre sofreu muito. Se agora o vir desta
maneira, imagine o que era quando começava a ser um moço. Não
sabia esconder suas emoções, não sabia dirigir seus sentimentos. E
em meio de todo esse terremoto, apareceu ela: Patrícia Colón, a filha
de seu professor mais admirado. Se visse como a amava, Lavínia!
Tinha depositado todas suas ilusões nessa relação.
Lavínia umedeceu os lábios. Não queria ouvir o que já sabia,
que Nick amava com loucura a outra pessoa. Nick era esse menino
instável, de emoções flutuantes, que era de uma vez capaz de fazer
as maiores loucuras por amor, as que os adultos não se atreveriam a
fazer.
Não queria saber tudo o que tinha feito por Patrícia Colón, não
queria pensar que essa puta o tinha ferido.
— Sei que te dói, Lavínia - seguiu dizendo Fi pressentindo as
emoções de Lavínia por seu silêncio - mas têm que escutar. Patrícia
jogou um tempo sendo a namorada de Nick. Ele fazia tudo por ela,
até trabalhou para Octávio, seu pai, com o estrago que isso lhe
causava. Tudo por ganhar algum dinheiro para ela. Teresa e eu fomos
empregadas domésticas, Nick não tinha um centavo para pagar os
gostos a essa descarada, e ela não soube valorizar tudo o que ele
fazia para satisfazê-la. E mais, quando o deixou lhe disse que ele era
muito novo para ela.
— Pobre Nick... - refletiu Lavínia em voz alta. Não tinha querido
dizer isso, mas lhe tinha saído da alma.
— Octávio o humilhou até a indigestão - continuou Fi. — Sei
que se Nick souber que te estou contando isto vai se enfurecer
comigo, assim, por favor, conserva-o em segredo.
— Fi...
— Sim?
— Não quero que me conte coisas que ele não me diria - pediu
Lavínia entristecida. — Se Nick quer seguir sendo para mim o amante
descarado, simpático e febril que mostra a todo mundo, aceitarei
antes que saber quem é em realidade por outra boca. Será melhor
que deixemos de lado esta conversa.
— Lavínia... - Fi quase suplicava. — Não faz falta que Nick te
dissesse todas estas coisas porque ele havia tornado a ser ele mesmo
enquanto estava com você. Não faziam falta as palavras.
Lavínia logo tomou um pouco de ar. As observações de Fi a
deixaram débil e tremente. Nick não tinha sido ele mesmo com ela,
não o era com ninguém. Por que essa mulher lhe estava dizendo
isso?
— Ria e conversava. Dançava com você, Lavínia! - clamou Fi
com entusiasmo. — Tinha deixado de fazê-lo por culpa das demandas
de Patrícia. Mas isso aconteceu quando foi sua esposa. Pressionou-o
tanto que Nick acabou destruído. Fumava, não dormia, não vivia por
conformá-la.
— Acredito que me perdi de algo... - interrompeu-a Lavínia.
— Sim, claro, desordenei a informação - explicou Fi.
— Disse-me que Patrícia foi sua namorada e que o tinha
deixado.
— Assim foi - assentiu a mulher. — Em pouco tempo Teresa
descobriu que estava doente e veio a falecer - a voz se tornou
sombria. — Nick sofreu tanto por isso! Sua mãe era tudo para ele, a
pessoa que mais amava no mundo.
"Esse nenê tem a sorte de ter uma irmã que lhe dê um tapa por
amor, e o dia de amanhã te recordará como eu recordo a minha
mamãe: como a pessoa que fez tudo por amor a mim", havia-lhe dito
ele.
"Sonho com o sorriso de minha mamãe quando me trazia uma
xícara de chocolate bem quente em meu quarto enquanto eu
estudava. Esse sorriso consegue me temperar nos momentos mais
frios, mais escuros", tinha-lhe contado.
Nick sim tinha se aberto com ela, até antes de proclamá-la sua
namorada!
Lavínia começou a chorar sem poder ocultar o pranto.
— Sinto muito, Lavínia - desculpou-se Fi no mesmo estado. —
Não quero te fazer dano, mas precisa saber tudo isto. Foi depois da
morte de sua mãe quando Nick começou a mudar. De repente tinha
fé em si mesmo, ou isso aparentava, conquistava a todos com seu
bom humor, seu aspecto físico, sua lábia. Se algo não pôde deixar de
ser, é inteligente. É uma luz para tudo! Mas se finge frívolo,
superficial, despreocupado. Sou testemunha de que, se triunfa nos
negócios, é porque realmente trabalha. Ninguém tão estúpido pode
crescer tanto. O certo é que seu primeiro lucro como engenheiro lhe
deve ter contado pela metade, mas ao menos lhe terá insinuado isso.
— Sim - assentiu Lavínia, quase sem voz - sim o fez.
— Obteve-o inclusive antes de graduar-se. Pablo o ajudou com
sua assinatura, porque já estava formado. Dá-te conta? Se em algo
as pessoas têm razão é em que é uma eminência.
— Sim, eu também o penso - demarcou Lavínia um pouco mais
serena. Sorria.
— Então Patrícia teve a maldita ideia de voltar - seguiu Fi. Seu
ressentimento para com essa mulher se fazia evidente em sua voz. —
Sentiu-se atraída por um guerreiro, uma ave fênix, e todo esse poder
que Nick emanava de repente a enfeitiçou. O qual sonhava formando
uma família...
— Nick uma família...? - sussurrou Lavínia sem poder acreditar
no que escutava e repetia.
— ...aceitou-a. Aceitou-a porque ao tê-la com ele pensava que
voltava para o passado, mas só arruinou sua vida. Casou-se com ela,
mas como era de esperar-se, em pouco tempo Patrícia se aborreceu e
então arranjou amantes. Entre eles apareceu Horácio Lowenstein.
— Horácio Lowenstein! - exclamou Lavínia ao tempo que
saltava da cadeira.
"Tem o coração tão grande que é capaz de ajudar ao
Lowenstein a recuperar a sua esposa. Embora isso signifique me
trair", havia-lhe dito Nick. Ela o tinha acusado de deitar-se com uma
mulher casada, de destroçar uma família e ele... ele sozinho tratava
de recuperar o que tinha sido dele, essa odiosa mulher que o pegava
pelo braço no navio e à saída da delegacia de polícia. Lowenstein era
o que tinha destroçado sua família imaginária, e nem sequer tinha
tido o valor de dizer-lhe em mais de duas horas que tinham ficado
juntos no hotel. Lowenstein e essa horrível mulher tinham sido uma
ruína para Nick, depois de que ele tivesse superado outras.
Lavínia esteve a ponto de romper algo. Odiava-a! Patrícia Colón
tinha enganado a seu Nick, tinha-o feito sofrer! A teria matado.
— Nick lhe deu tudo - seguiu dizendo Fi. — Sei que queria
tratar a sua esposa como Octávio não tinha feito com sua mãe, que
queria demonstrar a si mesmo que não era como ele. Mas Patrícia
não o permitiu, pelo contrário, foi o novo Octávio na vida de Nick
quando ele ao fim se desfez do outro. Transformou as ilusões e
princípios de Nick em debilidade, e quando se aborreceu disso
também, então se foi com seu amante. Divorciou-se de Nick e se
casou com Horácio Lowenstein, que até o momento não tinha sido
mais que um oponente de trabalho de Nick, como qualquer outro - Fi
tomou um momento para respirar. — Patrícia é um demônio, por isso
se veste de vermelho.
Lavínia teria rido daquela afirmação, mas não pôde soltar
palavra. Seus pensamentos iam e vinham em todas as direções.
— Patrícia destrói tudo de bom nos homem que cruzam em seu
caminho - assegurou Fi.
— Nick tampouco é um cão - espetou Lavínia fazendo uso de
sua estranha convicção.
— Não é - afirmou Fi. — Está longe de ser um cão, graças a
Deus. Mas você não conhece toda a verdade, nem sequer imagina, e
eu não sei se possa dizê-la neste momento. Ainda fica mais que não
conhece dele.
Lavínia não tinha dúvida de que assim era, mas saber que na
realidade ele sim se tinha aberto com ela, embora não tivesse podido
interpretá-lo, consolou-a.
— Acredito que me havia dito todas essas coisas depois de tudo
- concluiu com voz pausada - mas o fez de forma tão velada que se
faz difícil chegar até o final.
— Não sente saudades - assentiu Fi. — No fundo está
apavorado de não ser amado. Nick não havia tornado a confiar em
nenhuma outra mulher, nem tampouco se relacionou mais com
garotas como você.
— Com garotas como eu?
— Mulheres dignas de serem amadas.
Lavínia suspirou. Sabia o rumo que tomava a conversa e não
desejava ouvi-lo.
— Realmente aprecio o que me diz, Fi, mas...
— Suplico-lhe isso! - interrompeu-a a mulher sem ocultar seu
desespero. — Nick necessita a um anjo como você.
— Mas ama o demônio - interpôs-se Lavínia - e não há nada
que possamos fazer a respeito.
— Rogo-lhe isso, Lavínia... Se reaparecesse em sua vida...
— E condenar a minha ao lado de um homem que me fará
amor pensando em outra? - reclamou Lavínia. Doíam-lhe o peito e a
alma ao pronunciar essas palavras, mas não ia enganar-se com
eufemismos. — Sinto muito, mas me quero mais que para acabar
desse modo.
— Esse é o problema, que Nick não se quer nem um pouco -
refletiu Fi amargamente. — Tem a autoestima pisoteada, inclusive
diria que se odeia. Do contrário não seguiria pretendendo convencer-
se de que ama a essa puta.
— É que a ama, Fi! - replicou Lavínia ofuscada.
— Isso é um capricho - assegurou a mulher - isso não é amor.
— Pois enquanto esteja apaixonado, encaprichado ou o que seja
com outra, por mim pode arder em seu próprio inferno - soou dura.
Era dor, não ressentimento. — Me perdoe - adicionou em seguida
para compensar o que disse anteriormente. — Entendo sua
preocupação, mas não há nada que eu possa fazer. Quero seguir em
contato com você, podemos ser amigas, mas não falemos mais de
Nick. Por favor.
Fi suspirou. Não era o que ela esperava, mas devia conformar-
se com isso. Compreendia a Lavínia e sua determinação.
Capítulo 25
Apesar da conversa que tinha mantido com Lavínia e da paz
que essa jovem lhe tinha irradiado, Fi não podia ficar tranquila.
Assim, dissimulava sua crescente preocupação diante de Nick e se
mostrava séria e distante. Só falavam de assuntos de trabalho e
quando ele tratava de lhe falar de seu distanciamento, com toda a
dor da sua alma Fi lhe perguntava se lhe oferecia algo mais, ele
calava-se em seu intento de comunicar-se com ela, e acabavam
separando-se de novo.
Nick acreditava ter superado o fato de que seu pai se
esquecesse de chamá-lo a cada três de março para seu aniversário
quando ele ainda esperava seu chamado, o qual aconteceu até seus
vinte anos. Entretanto, agora que cumpria trinta e quatro e estava
afastado de Fi, recordou-o. Por outra parte pensava que a mulher não
suportaria ignorar essa data e então teria oportunidade de
reconciliar-se com ela, mas foi chegar ao escritório e dar-se conta de
que desta vez, Fi não o perdoaria.
Depois de uma noite de sexta-feira muita agitada, esse sábado
Nick desceu do elevador e se encontrou com Fi que já estava sentada
a seu escritório. Não estava acostumado a trabalhar no escritório nos
fins de semana, mas como tinham vários assuntos atrasados, tinham
acordado fazê-lo. Em outras oportunidades, ela tinha ido a sua casa,
tinha-lhe preparado um café da manhã especial, tinha-o
acompanhado e logo até se incomodado em surpreendê-lo com uma
torta no trabalho. Sempre de chocolate e mouse, como ele gostava.
Nada disso se concretizou esse dia.
Ele passou por diante de seu escritório, ainda pensando que
podia obter algo mais que uma saudação, o qual tampouco
aconteceu.
— Olá, Fi - tentou. Ela não levantou a vista de seus papéis.
— Olá - respondeu por mera educação.
Fi desejava saltar da cadeira, abraçar Nick e enchê-lo de beijos
enquanto lhe entoava feliz aniversário, mas resistiu estoicamente os
embates de seus sentimentos. Queria que Patrícia fosse quão única
possivelmente, se suas demais atividades vazias o permitiam,
desejasse um feliz aniversário a Nick, e que então ele se desse conta
de se essa única saudação era o que necessitava.
Decepcionado pela atitude de Fi, mas incapaz de dar o braço a
torcer, Nick acendeu o primeiro cigarro às nove da manhã. Precisava
relaxar-se para poder pensar com clareza e resistir a todas as
obrigações. Quase não dormia porque tinha insônia, fumava mais de
vinte cigarros por dia e não abandonava a noite. Se não podia dormir,
como não queria pensar, terminava no bar.
Lá pelas dez e meia, tinha fumado cinco cigarros, tinha
discutido com um sindicalista e tinha mais vontade de estar no bar do
que de trabalhar. No escritório não deixava de pensar em que era seu
aniversário e Fi nem sequer o tinha saudado, em que Patrícia não
fazia mais que sair às compras e em que Lavínia o mantinha inquieto.
Por que ainda tinha que lembrar-se dela? Por que não podia
desprezá-la e focalizar-se em seus objetivos? Mas quais eram esses
objetivos em realidade, se tudo o que fazia era recordá-la?
Tinha calor, mas não tirava o casaco deu-se conta inclusive de
que algumas gotas de suor lhe percorriam a fronte e de que lhe
estava custando respirar, entretanto, não abria a janela. Não porque
não quisesse, mas sim porque não se dava conta de que tinha os
sentidos mitigados. Não soube até que seu escritório deu voltas a seu
redor a ponto de que lhe pareceu que podia vomitar.
Todo esse mal-estar tinha que acontecer. Tinha que passar, sim.
Não era mais que a lembrança das noites de insônia.
Mas piorou depois de que lhe doesse o pescoço, uma espécie de
eletricidade se estendeu por seu braço esquerdo. Estirou a mão
rápido, dobrou os dedos várias vezes pensando que se tratava de
uma cãibra, mas tampouco serviu. Pensou que tinha apertado o
punho muito forte, que jamais lhe tinha doído nada, que o ar se
negava a entrar em seus pulmões, que a dor se fazia insuportável. E
então sentiu: o peso de uma imensa grua em seu peito, como um
parafuso que lhe provocava uma opressão e lhe impedia de mover-se
ou respirar.
Não, isso não era nada conhecido, não podia ser normal. Sentiu
medo, um terror como jamais tinha experimentado, e o desespero de
morrer sem haver encontrado essa luz que lhe tinha sido prometida.
Tinha sido sua culpa. Sim, tudo era sua culpa.
Estava se dando por vencido. Ele nunca fazia isso, brigava até o
final sem importar nada; as coisas jamais deviam deixar-se na
metade e sempre era melhor saber até onde se podia chegar, qual
era o final do túnel, e não a incerteza.
Com as forças brotadas desses pensamentos, conseguiu fazer
chegar a mão ao intercomunicador e pressionar o botão que o
conectava com sua secretária. Fi recebeu o chamado.
— Sim? - perguntou. Esperava a ordem que lhe daria seu chefe,
mas não obteve resposta. — Nick? - insistiu. Possivelmente ele se
equivocou de botão. Mas por que não falava? Por que não cortava a
comunicação? — Nick?
Levantou-se da cadeira e quase correu até o escritório,
pressentindo algo. Intuição de mãe, possivelmente. Quando abriu a
porta e o viu estendido sobre a mesa, rodeado do estranho silêncio
que invadia o escritório, soube que não estava dormindo, nem
chorando, muito menos lhe fazendo uma brincadeira.
O ar do Centro Médico a cortava como facas. Fi caminhava de
um extremo ao outro do corredor, ia e vinha da porta da sala de
emergências até a que comunicava com uma sala de espera inútil. Ela
não podia sentar-se e esperar. Nem bem viu aparecer um médico,
correu para ele.
— Por favor, me diga que está bem - suplicou com os nervos a
flor da pele, os olhos úmidos e a respiração agitada.
— Foi um pré-infarto.
Fi levou ambas as mãos à boca, logo as deixou cair
bruscamente para interromper. Não se deu conta de que, é obvio, o
médico não ia deixar a frase só nesse anúncio.
— Mas é muito jovem! - exclamou.
— Não há idade para estas coisas, senhora - replicou o homem.
— Fique tranquila. Estamos tratando de estabilizá-lo e de avaliar o
alcance dos danos.
Fi sabia por conhecimento popular que era mais difícil que um
homem jovem resistisse um infarto que um ancião, e se ainda
estavam tratando de estabilizá-lo, isso queria dizer que o perigo não
tinha passado.
O médico seguiu seu caminho. O medo percorreu cada
centímetro do corpo da mulher. Fi tragou com força e se perguntou o
que devia fazer. Sem duvidá-lo se encaminhou ao telefone público e
discou um número.
— Olá - respondeu a voz aos gritos. Fi tentou falar, mas se fazia
impossível. Lavínia também se deu conta. — Não ouço – disse. —
Espere que abaixe volume da música, por favor.
Fi sentiu que Lavínia se afastava. A música acabou e ela
retornou ao telefone.
— Agora sim – disse. — Diga.
— Lavínia, sou eu, Fi.
— Ah, olá, Fi! - recebeu-a moça, sempre amável, lhe dando as
boas-vindas. — Como está?
Fi não podia responder a essa pergunta.
— Lavínia, me escute...
A voz de Fi conseguiu alarmar a Lavínia, a fez franzir o cenho e
tomar uma inspiração profunda.
— Algo está mau? - inquiriu com voz tremente.
— É Nick.
— O que acontece com Nick?
— Está no Centro Médico que conhece.
Lavínia sentiu que seu mundo se desmoronava, quase caiu ao
piso de medo porque soube pela voz de Fi que Nick não estava em
um centro médico por um dedo machucado, nem ele teria ido por
uma coisa tão simples. Nick nunca adoecia.
— Bateu o carro? - arriscou o primeiro que lhe veio à mente.
Tinha-o visto conduzir e sabia que quando dirigia ia rápido, fazia
manobras temerárias e parecia atender vários assuntos de uma vez,
com o qual podia haver-se acidentado.
Fi se esforçou por soar tranquila, mas mesmo assim não pôde
esconder seu temor.
— Teve um pré-infarto.
Lavínia abandonou tudo que estava fazendo e, tal como estava,
largou-se a correr pelas ruas úmidas. A chuva a apanhou quando
desceu do coletivo.
Chegou ao Centro Médico empapada e tremendo de nervos. O
cabelo lhe caía pesado sobre as costas e algumas mechas loiras se
aderiam ao rosto compungido. Tinha a regata branca pega ao peito,
as calças esportivas pesadas e as sapatilhas emitiam um splash
estremecido. Aferrou-se ao mostrador da recepção para não cair
redonda ao piso de preocupação.
— Procuro Nicolas Hagen - alcançou a explicar.
— É um paciente internado? - perguntaram-lhe em resposta.
— Não sei, mas foi uma urgência.
O moço ingressou os dados no computador. Os instantes que
demorou em brindar alguma informação se fizeram eternos para
Lavínia, que estirava a cabeça em um intento vão por interpretar algo
do que se reproduzia no monitor.
— Está na sala de estabilização - comunicaram-lhe por fim.
— E onde é isso? - perguntou ela.
— Não pode entrar, tem que esperar aqui - ordenou-lhe o moço
em resposta a seu pedido.
— Mas isso não pode ser, sua... mãe está com ele - disse sem
pensar em quem era Fi em realidade. — Tenho que saber algo mais.
— Desculpe, mas deverá esperar aqui - insistiu ele.
— Não vou esperar! - replicou Lavínia, que de uma vez pensou
em utilizar a única arma disponível. — Chame o doutor Dickinson, é o
diretor deste lugar – disse. — E é meu avô. Estou segura de que ele
me permitirá passar.
— Senhorita...
— O que? Também se nega a chamar a meu avô? - O menino
olhou a seu companheiro. Este assentiu com a cabeça, então tomou o
telefone.
— Sente-se, por favor - pediu a Lavínia. Embora ela quisesse
escutar o que dizia o jovem, obedeceu.
Enquanto o menino se comunicava com o diretor da clínica, Fi
apareceu. Viu Lavínia sentada em uma das cadeiras da sala de
espera, jorrando água e com a maquiagem deslocada pelas
bochechas, e o coração lhe encolheu. Essa moça sim que amava Nick.
Ela de verdade o queria!
— Lavínia - disse uma vez que chegou a seu lado. Lavínia ficou
de pé imediatamente, até esse momento tinha estado tão metida em
seus pensamentos que não tinha notado a presença de Fi.
— Já lhe disseram algo mais?
— Conseguiram estabilizá-lo.
O anúncio de Fi serenou um pouco a Lavínia, embora não levou
seu temor. — Mas tem apenas trinta e três anos! - exclamou, incapaz
de acreditar que um homem tão jovem pudesse estar sofrendo um
pré-infarto.
— Trinta e quatro - repôs Fi cabisbaixa. Sentia-se terrível por
não ter feito nada por Nick nesse dia, por havê-lo ignorado. Lavínia
franziu o cenho, então se viu obrigada a fazer uma elucidação: —
Hoje é seu aniversário.
Nesse momento, o doutor Carlos Dickinson se aproximou delas
depois que seu empregado de recepção assinalasse em direção à
mulher que o buscava.
— Aquela jovem diz ser sua neta - tinha-lhe explicado.
— Senhoras. Buscavam-me? - perguntou uma vez junto à
Lavínia e a Fi. Seu olhar estudava a moça, que acabava de levar uma
surpresa. Lavínia tinha se esquecido por completo de que havia dito
ser a neta desse homem e agora teria que responder ante seu
engano.
— Desculpe, fui eu - explicou Lavínia. — Mas já não é
necessário, agradeço-lhe sua pronta resposta. - Ele franzia o cenho.
— Conhecemo-nos? – perguntou. — Oh, sim! - repôs em
seguida. — Conhecemo-nos na inauguração deste lugar, como
esquecê-la? É a namorada de nosso engenheiro.
— Sim - assumiu Lavínia sem ânimos de explicar ao médico os
pormenores de sua relação com Nick. — Vimo-nos na inauguração -
adicionou.
— Não me digam que o senhor Hagen requereu nossos
serviços.
— Está na sala de estabilização. Sofreu um pré-infarto -
explicou Fi, apanhada pela possibilidade de que o mesmo diretor do
Centro Médico se fizesse cargo de Nick. Foi o que o homem ofereceu.
— Santo Deus! Ocupar-me-ei eu mesmo dele - A conversa se
interrompeu quando uma voz se interpôs, ignorando todas as outras.
— O que passa aqui? - Patrícia reclamava. Não perguntava, não
se preocupava, exigia. — Cheguei ao escritório e uma empregada me
disse que levaram Nick em uma ambulância e não sei quantas coisas
mais. É um menino, sempre chamando a atenção! O que lhe
aconteceu agora?
— E quem é esta simpática senhora? - ironizou o doutor.
Patrícia, altiva, dignou-se a olhá-lo.
— A esposa.
Lavínia baixou o olhar. Não só sentia que lhe enterravam uma
adaga, além disso, tremia de ira. Agora que podia estudar a tal
Patrícia Colón de perto, notava a grossa capa de maquiagem que
recobria seu rosto, o quanto tinha a cara operada, quanto se
esforçava porque seu corpo parecesse firme, e soube que tudo isso
não era mais que uma máscara. Essa mulher só tinha um corpo, não
tinha alma. Era uma vasilha vazia.
Perguntou-se como podia entrar destrambelhando contra Nick
como se o tivessem levado em uma ambulância porque tinha uma
unha partida, e quase se sentiu capaz de lhe dar uns quantos golpes,
como tinha feito com Josué. Tinha saudades do saco de boxe.
— Mas como... - balbuciou o doutor Dickinson, sem entender
uma palavra. Nicolas Hagen tinha esposa e namorada. Bom, podia
ser, embora a que tinha pinta de esposa era a que vestia de branco e
de amante a que vestia de vermelho, não ao reverso.
— Teve um pré-infarto - replicou Fi. Notava-se em seu tom de
voz e em seu olhar que acusava abertamente a Patrícia do mal que
Nick tinha padecido, mas esta nem se deu por aludida.
— E como não me chamou? - espetou-lhe. — Me inteirar por
uma empregada enquanto ela já está aqui! - assinalou a Lavínia sem
voltar-se, como se a costureirinha não valesse sequer um olhar. —
Você a chamou?
— Sim - respondeu a secretária.
— E o que te fez pensar que ela era necessária?
— Lavínia... - começou a responder Fi, mas sua frase foi
truncada pelo médico, que tinha enterrado os olhos verdes em
Lavínia.
— Lavínia... – resmungou. — De verdade é você?
Lavínia ainda não se atreveu a elevar a cabeça.
— Sim, sou eu - replicou.
— Por Deus, quanto cresceu! - exclamou o doutor. — Como
duvidar de que é você! Se for... é seu fiel retrato.
Ninguém mais que o médico e Lavínia entenderam que se
referia a seu pai.
— Não pertencemos a esta conversa, Filomena - interveio
Patrícia sem escrúpulos. — Me indique onde posso achar Nick, a ver
se deixa de joguinho e posso ir para minha casa.
— Que merda te acredita que é? - começou Lavínia, que já se ia
em cima de Patrícia com os punhos apertados aos flancos do corpo,
incapaz de conter-se, mas o médico interrompeu essa ação.
— Estabeleçamos prioridades - disse. Procurava romper com a
briga que intuía vir. — Primeiro visitarei o senhor Hagen e depois
quero falar com você, Lavínia. Assim, por favor, não vá.
O doutor Dickinson se encaminhou ao corredor e Patrícia o
seguiu, mas antes de avançar além de Fi, deteve-se e a olhou.
— Você também podem ir - ordenou-lhe. — Tampouco é
necessária aqui.
Lavínia tinha a boca aberta, não podia fechá-la. Fi se
estabeleceu a seu lado para ver, como ela, o odioso corpo de Patrícia
afastar-se atrás do doutor Dickinson.
— Vê o que te digo? - falou-lhe ao ouvido. — É uma puta. A
odeio. A odeio!
— Só me incomoda que maltrate ao Nick - disse Lavínia com
resignação. — Pelo resto, tem razão.
Fi a olhou sem poder acreditar o que escutava.
— No que tem razão? - perguntou.
— Eu não tenho nada que fazer aqui - Lavínia pensava que
tinha que assumir essa verdade indiscutível.
— E vai lhe dar o gosto? Eu não penso ir.
— Porque você é como uma mãe para o Nick. Em troca eu o
que sou?
— O que diz? Nick te adora.
— Ande, Fi - insistiu Lavínia, temendo o que essa mulher
pudesse fazer ao Nick tendo-o só para ela. Ele não estava em
condições de suportar seus embates. — Eu espero aqui. Já viu que o
médico é um familiar longínquo que não tinha visto por anos e me
pediu que o esperasse.
— Está segura? - Fi duvidava.
— Sim - sorriu Lavínia. — Me mantenha informada.
Fi se afastou. Nem bem Lavínia a viu atravessar a porta que
conduzia ao corredor pelo que antes se internaram Carlos Dickinson e
Patrícia, não esperou. Retornou para casa.
Patrícia odiava os problemas, odiava perder tempo em um
hospital. Horácio Lowenstein nunca havia infartado, e tinha vinte e
seis anos mais que Nick, e vinha a fazê-lo ele.
O primeiro que inquiriu Patrícia foi se esse inconveniente em
seu coração lhe produziria algum tipo de disfunção sexual.
Perguntou-o sem reparos, sem disfarces, mas ao menos o fez pelas
costas de Nick.
— De maneira nenhuma - explicou-lhe o médico. —
Absolutamente nada. Se tudo sair como esperamos, poderá ter uma
vida normal. Isso sim: longe do cigarro e, se possível, do álcool.
Que demônios importava a ela. Se Nick ia seguir lhe fazendo
amor tão bem como o fazia até esse momento, um cigarro e um par
de taças não podiam lhe fazer dano.
No dia seguinte, Lavínia não saiu de casa esperando o chamado
de Fi, que não ocorreu até a tarde.
— Você se foi - reclamou-lhe a mulher. — Por quê?
— Já lhe disse isso, Fi - Lavínia soava esgotada, não tinha
dormido toda a noite por temor. — Diga-me como está Nick.
— Como se nada tivesse passado - largou a mulher.
Lavínia sentiu que se desmoronava. Tinha passado tantas horas
de tensão, pensando nele sem poder estar ao seu lado, que o alívio a
deixava agora débil e tremente.
— Os médicos dizem que saiu do episódio virtualmente ileso e
que poderá ter uma vida normal logo, mas o doutor Dickinson ainda
quer controlá-lo, por isso não o deixa ir para casa ainda. Isso sim:
fizeram-lhe uma ameaça coletiva em relação ao cigarro, à noite e o
álcool.
Lavínia se tinha posto a chorar. O medo que tinha atravessado
todas essas horas a tinha deixado sensível, ainda pensando que Nick
podia ir-se e ela morreria se lhe chegava a faltar.
— Essa bruxa! - exclamou Fi ante o silêncio de Lavínia. — Se
pudesse dar ao Nick uma caixa de cigarros em plena clínica, a daria.
— Não quero saber deles, Fi - pediu Lavínia com pesar. — Dói-
me muito, por favor... não me diga nada. Só quero saber sobre a
saúde de Nick, nada mais. Eu desejo que ele seja feliz, tão feliz que
nem sequer se lembre de mim. Nunca mais.
Por piedade, Fi evitou lhe dizer que Patrícia não podia fazer feliz
a ninguém. Se Lavínia não queria ouvir nada a respeito dessa mulher,
teria que respeitar sua decisão. Então lhe deu seu número de telefone
pessoal e lhe pediu que por qualquer necessidade não duvidasse em
chamá-la. Lavínia agradeceu.
De noite, não pôde jantar. Fazia mais de vinte e quatro horas
que não provava nada e tampouco sentia que pudesse fazê-lo em
algumas horas mais. Tinha acordado com Javier Gonzaga que faria
algumas mostra de trabalho para lhe ensinar suas ideias, mas
tampouco podia concentrar-se nelas.
Precisava ver Nick, embora fosse uma última vez, por isso foi
ao Centro Médico, aonde chegou perto das onze. O recepcionista de
internação lhe informou que o horário de visita tinha terminado às
sete. Ante essa resposta, Lavínia, que se tinha feito uma perita
usurpadora de identidades, disse-lhe que era a substituta de quem o
tinha acompanhado até esse momento e que vinha a cuidá-lo toda a
noite.
— Sua esposa... - indagou. Tinha-lhe doído tanto dizer isso que
quase esteve a ponto de sair correndo e esquecer-se da tarefa que
tinha se proposto desempenhar. — Encontra-se com ele?
Queria saber se Patrícia estava no quarto, porque nesse caso
não poderia ver Nick.
— Avisou-me que saía um momento - replicou o guarda. — Ela
tem o passe, mas está bem, pode passar e que logo o entregue
acima quando voltar a subir, mas não poderão permanecer as duas
no quarto.
Era perfeito, justo o que necessitava. Iria antes que Patrícia
voltasse.
— Entendido.
O homem disse o número do quarto e ela subiu de duas em
duas as escadas, para fazer mais rápido.
Antes de avançar espiou o corredor da sala de espera do setor
de cardiologia, em caso de que Patrícia tivesse subido sem que o
guarda se desse conta. Estava vazio. Avançou até o quarto
correspondente e abriu um pouco mais a porta, que estava
entreaberta. Nick dormia, e ao vê-lo, já não resistiu ao impulso de
entrar.
Escorreu-se como uma sombra até a cadeira que havia junto à
cama e se deixou cair ali. Colocou os braços sobre o colchão e
escondeu o rosto entre eles, incapaz de evitar o pranto.
— Oh, quanto o sinto, Nick... - sussurrou consciente de que ele
não podia escutá-la.
Mas o que estava fazendo? Ele não tinha morrido, estava mais
vivo que nunca e assim que saísse dali seguro desejaria deixar de
perder tempo e recuperar sua vida junto a sua esposa. Então para
ela, Nick morreria nesse quarto, nesse preciso instante.
Elevou a cabeça e ficou olhando. Via-se tão atrativo e jovem
quando dormia, tão capaz de amar, porque nesses momentos parecia
que sua inocência nunca se perdeu, que sua alma seguia habitando
seu corpo formoso.
— Um dia vais despertar a seu lado - vaticinou com um sorriso
de tristeza e de amor nos lábios. — Será muito, muito velho, e
pensará vendo-a jazer em sua cama: "Aquela menina de nome
estranho... quanto me amava!".
Esse era o fim, essa era sua despedida. Até que um feixe de luz
artificial a cegou e a fez afastar-se de Nick como se só de estar
sentada a seu lado pecasse. Girou a cabeça e se encontrou com
Patrícia destilando ira pelos olhos.
Lavínia correu para a porta, não ficava mais opção que
aproximar-se do demônio para sair do quarto. Patrícia se apartou
para lhe dar passo, claro que desejava que Lavínia se retirasse! A
costureirinha passou ao lado pretendendo ocultar suas lágrimas.
Quem se acreditava para aparecer por ali! Quem se acreditava para
chorar por Nick!
— Ei, pequena! - chamou-a. Lavínia se deteve em seco. O que
devia fazer? Sem dúvidas o mais apropriado era ir-se, agachar a
cabeça e partir como o faria qualquer que na vida de Nick não fosse
ninguém, como ela, mas se voltou. — O que pensa que está fazendo?
Todo o valor e a força perdidos voltaram de repente para o
corpo da Lavínia. Voltou os poucos passos que a tinham afastado da
mulher e a estudou com asco e com lástima. Como Nick podia estar
apaixonado por esse ser vazio e inescrupuloso? Se antes lhe tinha
parecido uma mulher sublime, altiva e imponente, agora não lhe
parecia mais que uma egoísta malcriada.
Meneou a cabeça com resignação e se voltou. Não encontrou
sentido em gastar uma só palavra com alguém tão frívolo e estúpido.
— Não te atreva a me dar as costas, moça! - bramou a outra
com esplendor.
Lavínia se deteve de novo. Ir-se? Ir-se sem lhe dizer nada? Por
quê?!
Em apenas três passos voltou a estar frente à ruiva.
— O que quer perguntar? - soltou-lhe à cara.
— Não vou te perguntar nada - replicou a outra, pretendendo
soar ameaçadora. — Vou te advertir. Não te interponha em meu
caminho - Lavínia lhe riu na cara. De verdade, sem fingimentos. E
Patrícia não pôde suportá-lo. Ela era a que ria! Ela ria de Nick, não
uma costureira dela! — Do que ri, estúpida?
— De que me têm medo - respondeu Lavínia gozando-a.
Essa resposta foi quão pior Patrícia poderia ter escutado. Medo
ela? Medo de uma costureira? Soltou uma de suas falsas e
estrondosas gargalhadas, essas que utilizava para atrair a atenção de
suas amizades.
— Me escute bem, trepadeira - quis seguir falando.
— Trepadeira eu? - Lavínia não se incomodava em deixar de
sorrir.
— É uma completa ingênua se pensa que Nick pode estar
verdadeiramente interessado em você! - pretendeu ferir a Lavínia. —
Faltam-lhe anos e experiência, neném. Ele te deixou, pode entender?
Ou é tão ignorante que não pode entender isso?
Lavínia arqueou as sobrancelhas. Mordiam-se os lábios para
não rir na cara.
— Nick me deixou? - já não pôde aguentar a risada. — Se eu o
deixei!
A fúria se pulverizou por Patrícia como uma serpente que ia
envenenando. Ninguém mais que ela tinha deixado ao Nick, por isso
ele a amava! Adiantou-se um passo e se pegou ao corpo de seu
oponente, que era uns quantos centímetros mais baixa que ela.
— Não te meta em meu caminho, costureirinha, porque vai ver
isso comigo. Escutou? - ameaçou. Lavínia franzia o cenho, divertida.
Sentia-se milagrosa! Não tinha medo, não se sentia inferior a Patrícia,
nem sequer lhe provocava dor, só pena. Uma pena imensa por ela.
— É patética - lhe escapou. A outra montava mais e mais em
cólera. Não entendia como era possível que essa menina não
estivesse tremendo de medo.
— Como se atreve a me dizer isso? - clamou.
— Que é uma besta - Lavínia de verdade pensava que Patrícia o
era. Desperdiçar o amor puro de Nick!
— Serei uma besta, mas ele é meu. E você... - assinalou-a com
o dedo, olhou-a da cabeça aos pés. — Você não é mais que uma
pobre costureira que cedo ou tarde se dará conta de que não tem um
ápice de possibilidade com Nick. Nick jamais se interessaria por uma
mulher como você.
— Não, claro - assentiu Lavínia, cheia de paz. — Porque Nick
gosta das putas - sorriu para adicionar com um tom musical - como
você.
Acabada a luta por sua parte, deu-se a volta e transitou o
corredor sem atender as reclamações que fazia a outra, sem lhe dar a
mínima atenção. Seus ouvidos se fecharam a aquelas palavras vazias
e se sentia tão bem em tanto tempo que o sorriso não se apagou da
cara até que chegou a casa e chamou por telefone a Fi.
— E então me disse que eu não tinha nenhuma só
probabilidade com Nick - contou. Fazia quinze minutos que falava de
Patrícia, esqueceu-se por completo de que tinha exigido a Fi que não
o fizessem nunca mais.
— E o que você respondeu? - Fi estava mais que interessada no
assunto que Lavínia lhe contava com tanto entusiasmo. Por isso lhe
resultava impossível dissimular seu assombro e curiosidade.
— Disse-lhe que isso era algo óbvio, porque Nick gosta das
putas.
— Oh, meu Deus, Lavínia! - exclamou a mulher, boquiaberta. —
Esteve genial! E o que te respondeu?
— Ah, não sei - encolheu os ombros Lavínia, indiferente. —
Afastei-me tão morta de riso que não escutei nada mais – suspirou.
— Ai, Fi, acredito que têm razão. Nick não pode estar apaixonado por
essa coisa - a expressão deu risada à mulher.
— Disse-lhe isso, Lavínia, disse-lhe isso.
— O problema é que me nego a que Nick seja um troféu de
guerra - adicionou Lavínia muito séria. — Além disso, ele sozinho está
interessado em um dos bandos, e esse não sou eu.
Depois a conversa se transladou a uma dívida que Nick tinha
pago por ela e que Lavínia desejava lhe retribuir. Evitou esclarecer a
Fi do que se tratava o assunto completo, e, a mulher tampouco
perguntou.
— Vai ser melhor que se esqueça disso - sugeriu a Lavínia. —
Nick jamais permitiria que lhe devolva dinheiro de uma dívida que ele
quis te pagar.
Lavínia não estava disposta a resignar-se e pensou em lhe fazer
chegar o dinheiro assim que pudesse, do modo que fosse. Entretanto,
desistiu pouco depois, pensando que seria melhor deixar as coisas
como estavam. Depois de tudo, ele já não teria que lhe pagar mais
dívidas, porque jamais voltariam a ver-se e não queria lhe dar
motivos para fazê-lo, por exemplo, lhe devolvendo o dinheiro que ele
já tinha investido nela. Depois de tudo, estava acostumada à
resignação. Poucas vezes na vida tinha obtido o que desejava. Era
melhor fazer uma conta nova.
Além de lhe proibir fumar e beber mais da conta, os médicos
lhe indicaram reabilitação e lhe recomendaram que tirasse férias, mas
Nick se negou e pediu que no trabalho ninguém fizesse referência
alguma ao acontecido. O primeiro dia que voltou para o escritório,
seus empregados lhe fizeram um festa de boas-vindas no que ele se
mostrou, como nunca antes, envergonhado. O certo era que se
acreditava tão forte que a vergonha a sentia por ter estado doente e
porque nunca tinha gostado de ser o centro de atenção em nada que
lhe rendesse algum tipo de reconhecimento. Não queria que se
fizesse referência a seu acidente, pretendia que todos fizessem de
conta que isso nunca tinha acontecido.
Entretanto, quando escapou da multidão, fechou a porta de seu
escritório e se sentou sozinho no escritório, não pôde deixar de
pensar em que, em efeito, essa manhã poderia ter assistido a um
banquete também, mas do céu. Um convite porque ele tinha morrido
e todos acompanhavam a seus seres queridos, que não eram mais
que dois. Três, corrigiu-se. Fi, Pablo e... Patrícia? Não podia ter em
conta a Lavínia, ela já não era parte de sua vida.
A quem queria enganar? Não pensava em ninguém mais que
em Lavínia e se passava o tempo tratando de enterrar sua lembrança,
repetindo-se que essa história era uma mais do montão que tinha em
seu passado e que devia encontrar o rumo. Quanto mais agora que
não estava morto.
Passou em torno de meia hora em silêncio, quieto, com as
mãos sobre o escritório e as costas pega ao respaldo do alto assento
de couro. Não se dava conta de que os minutos corriam no relógio a
menor velocidade da que vagavam seus pensamentos.
Reconheceu que tinha chegado a um ponto de sua vida no que
parecia ter tudo: êxito no trabalho, uma segunda mãe excepcional,
um sócio que valia ouro. Como não se deu conta antes de todas essas
coisas que eram dele? Além disso, a coroação dessas magníficas
circunstâncias era que tinha recuperado a sua namorada da
adolescência, sua primeira relação a sério, sua ex-mulher...
— Merda.
Nick se tomou a cabeça entre as mãos. Não podia sequer
pensar "a mulher que amo" quando se lembrava de Patrícia.
Suspirou e voltou a tornar-se para trás. Agora as mãos pendiam
frouxas sobre suas pernas. O que estava fazendo de sua vida? Que
curso tomaria agora que tinha nascido de novo?
"Quero-a", repetiu-se. "Quero ter Patrícia, é o que tive
saudades todos estes anos, o que esperava, poder tirar-lhe de
Lowenstein como ele me tirou isso primeiro". Tragou com força,
voltou a suspirar.
Estava embevecido aí, no assento, sem poder concentrar-se em
nada mais que em si mesmo.
Tudo isso soava a paraíso, mas mesmo assim não conseguia
encontrar estabilidade, não achava a calma. Ainda não havia paz de
espírito no que fazia, tudo era uma rotina, um costume, uma
necessidade de encher o vazio que ainda sentia na alma.
Apertou os olhos para não pensar, não queria fazê-lo. Apertou
os olhos e as lembranças, concentrou-se no presente e no que o
destino lhe oferecia, e assim conseguiu armar um pouco parecido a
uma vida. Entusiasmava-o mais o projeto nos Emirados Árabes que o
matrimônio com Patrícia, mas ela representava o que sempre tinha
desejado recuperar. O passado.
Resignou-se a que ele nunca ia experimentar mais que pressões
e indiferença a respeito de tudo. Se alguns costumes tinham acesso a
seu coração de gelo na altura era o projeto da ponte, alguma outra
construção quando já era um engenheiro reconhecido, Fi e as
memórias de sua mãe. Mas nada igualava o sorriso da Lavínia.
— Lavínia...
Sorriu. Sorriu com sua lembrança e se apressou a afastá-la
para não sentir saudades. Não tinha possibilidades com ela, tinha que
deixá-la ir.
Ele nunca teria uma vida que de verdade lhe parecesse
excitante, viveria de aparências, porque assim tinha nascido. Octávio
tampouco a tinha, estava seguro disso. Mas outros podiam tê-la,
aqueles que se atreviam a ser. Pablo, por exemplo. Seu sócio estava
casado e fazia anos que não podia ir-se de férias com sua esposa
porque sempre ocorria algo que o retinha em Buenos Aires, Nick
sentiu-se culpado por isso: como ele não tinha uma vida, outros
também relegavam a sua. Prometeu que isso já não aconteceria ou
fez alguns planos. Não para ele, a não ser para seu sócio. Pablo
merecia um descanso.
Esse dia, todos notaram distinto ao Nick. Não corria, quase não
falava, não fumou um só cigarro.
Nick não tinha ideia do que fazer com sua vida, mas em troca
sabia muito bem o que fazer com a de Pablo, visitou seu escritório
sem demora.
— Nick! - exclamou o homem, que tirava a cabeça do
computador, só para atendê-lo. — Está bem?
Ao que parece não tinham entendido que não queria que se
fizesse referência ao que tinha passado, pensou Nick, mas a razão da
pergunta de Pablo não era que pensasse todo o tempo no pré-infarto,
Pablo pensava em que jamais tinha visto um Nick tão sereno como
esse.
— Muito bem - repetiu fazendo-se de uma cadeira para sentar-
se.
— Estava modificando o teto do salão para que... como se
chama?
Nick parecia um pouco ausente.
— Quem?
— O menino novo que está no computador número três.
— Brian.
— Esse mesmo, Brian! - retomou Pablo seu anúncio. — Para
que Brian o passe no Auto CAD.
— Que coisa? - perguntou Nick em seguida. Pablo elevou as
sobrancelhas.
— Distraído você? – brincou. — Mas te arruinou o cérebro ou o
coração?
Nick não pôde evitar rir. Quando foram ao primário, Pablo tinha
sido uma porcaria. Carregava-o, incomodava-o, tinha chegado a lhe
deixar bolas negras nos joelhos ao lhe fazer uma trava enquanto
corria por um corredor da escola. Nick já não se lembrava disso,
porque embora ele fosse o nerd e seu companheiro do colégio, os
dois eram excelentes profissionais agora, eram realmente bons no
que faziam, e se revelaram excelentes.
— É que não vim para que falássemos de trabalho - explicou.
Sempre que se via com o Pablo terminavam falando de projetos e da
companhia. — Vim te dar algo.
— Minha demissão? - voltou a burlar o homem.
Nick só sorriu enquanto mexia no bolso interno do casaco e
extraía dali dois ingressos brancos.
— Quero que Juliana e você vão viajar por seu aniversário.
Pablo arqueou as sobrancelhas, surpreso.
— Oh, não, Nick! – exclamou. — Não penso te deixar sozinho
agora, depois de...
— O que te disse? - advertiu-o Nick apontando-o com um dedo.
Pablo tragou com força.
— Sei que não quer que se faça referência alguma a sua saúde,
mas é impossível não pensar nisso – confessou. — Não posso te
deixar só quando mais sou necessário.
— Te enganas - replicou Nick. — Esteve aqui quando eu mais
necessitava e se não fosse por você, hoje eu não estaria aqui. Se
esquece quem assinou o projeto dessa ponte?
— Ah, por favor! - exclamou o outro. — Nós dois sabemos que
não movi um dedo até que vi a carta que nos tinham mandado. Tudo
foi você.
— Mas você assinou, Pablo, confiou em mim mais do que eu
confiava em mim mesmo - confessou Nick tão sério que afligia com
esse olhar profundo, sincero, aberto. Pablo não podia acreditar. —
Isso não o fez outra pessoa, o fez você. Nem sequer o teria feito meu
pai.
Pablo ficou um momento em silêncio.
— Agradeço-lhe isso – disse. — Obrigado, Nick.
— Eu é que te devo agradecer obrigado - ficou de pé e deixou
as passagens do Paradise sobre o escritório. Decidiu tirar um pouco
de dramatismo à situação, por isso sorriu. — Veja se aproveitam a
viagem e me dão um afilhado.
Pablo riu.
Nick tinha encaminhado a vida matrimonial de Pablo, agora
tinha que encaminhar da sua. Convidou Patrícia ao bar ao que
estavam acostumados a ir e a esperou.
Ela entrou radiante como sempre, saudando gente com a mão
direita e com a esquerda. Gente, gente e mais gente, até que chegou
a ele e se sentou na poltrona. Não foi suficiente. Agitou a mão para
saudar outra pessoa mais que não era Nick.
— Olaaa! - cantarolou para sua amiga.
— Patrícia - resmungou ele. A voz serena, o olhar profundo.
Dedicou-lhe apenas um instante de sua atenção antes de voltar-se
para as mesas de novo.
— O que?
— Estou aqui.
— Ah, Nick! - queixou-se Patrícia, ao fim olhando para ele. —
Por que sempre está tão sério? – disse-lhe apertando o queixo. Nick
apartou a cara com suavidade.
— Quero te falar e você não faz mais que saudar as pessoas -
explicou.
— Recém cheguei, Nicolas - argumentou ela. — Peça ao garçom
uma garrafa do melhor champanhe que tenham.
Nick obedeceu. Beberam uma taça enquanto Patrícia criticava a
uma das mulheres que tinha saudado.
— Acaba de entrar Loreley - anunciou-lhe Nick, irônico. — Não
pensa saudá-la também?
Patrícia, como de costume, não entendeu o sarcasmo. Nick
antes pensava que se fazia de boba, agora se dava conta de que
jamais tinha compreendido em realidade o que era uma ironia porque
não se fazia de boba: era-o.
— Está louco? - ofendeu-se. — Não viu a gorda que ficou? Se a
saúdo, outros vão pensar que eu me posso pôr igual.
Nick não acreditava nessa resposta. Mas ela sempre as tinha
dado, por que logo agora lhe soavam tão... estúpidas?
— O que importa o que pense essa gente? - replicou.
— O que importa? - repetiu ela, como se não tivesse entendido
a pergunta.
— Por que poderia te importar?
— Porque ninguém interessante se aproximaria com ela ao meu
lado, por isso - protestou Patrícia de mau humor. Em realidade lhe
estava custando interpretar e seguir Nick. Estava acostumada a
conduzir a conversa. — O que opina de meu novo nariz? - perguntou
acariciando o tabique nasal. Tentaria recuperar as rédeas da
conversa. Para Nick soou a um deja vú.
— Já me perguntou isso antes e te disse que não noto a
diferença - respondeu indiferente.
— E se me fizesse uma cirurgia nos seios? - Patrícia mordeu o
lábio inferior e acariciou, sugestiva, a parte de seu peito que o decote
do vestido vermelho deixava ao descoberto. — O que diria?
Nick suspirou. O ar viciado do lugar já não se sentia ameno
como antes.
— Que estão muito bem como são – disse. — Embora tivesse
sido melhor que lhe deixasse isso como eram ao natural.
— Não me daria de presente isso, Nickito? - perguntou ela com
tom falsamente ingênuo, ignorando a asseveração de Nick.
— Sabe que te presentearia com tudo o que queira - respondeu
ele. — O dinheiro não é o importante.
— Essa é a parte que mais gosto de você - respondeu ela,
omitindo o assunto do dinheiro e sua importância. Acariciou-lhe a
ponta do nariz. — Que me ama.
Nick não respondeu. Bebeu de um só gole o resto de
champanhe de sua taça e recarregou forças para o que seguia.
— Patrícia.
— Mmm...
— Seria apropriado que voltasse a viver comigo.
— Aí está Sabrina! - gritou ela, fora de contexto, e começou a
agitar a mão à mulher com um enorme sorriso em gesto de
saudação.
Nick observou seu rosto resplandecente de maquiagem, seu
sorriso de plástico, seu cabelo do Barbie, e sentiu aborrecimento.
Essa era a atitude petulante de uma mulher que se acreditava uma
diva e em troca era... era uma pobre iludida.
— Estou te falando, Patrícia - disse em um sussurro que a
música não conseguiu apagar.
— Ela fez as maçãs do rosto - continuava dizendo a ruiva em
relação à outra, preocupada ainda pelas cirurgias estéticas.
— Patrícia.
— Mmm... Sirva-me mais champanhe - agitou a taça no ar sem
olhá-lo. Nick não se moveu. Continuava falando com esse tom de voz
pausado e sereno, entrecerrando os olhos como um apostador frente
às cartas.
— Vai voltar comigo?
— Claro, Nickito! - riu ela. — Logo me terei mudado para sua
casa.
— Quero ter filhos - adicionou ele. Sabia que isso incomodaria
Patrícia.
Dizia-o de propósito, para estudar sua reação, para saber até
onde podia chegar. Mas se tinha que dizer a verdade, não o sentia, ao
menos não com ela. Não queria filhos de Patrícia, Deus o liberasse de
atar-se de alguma forma a essa mulher ou de trazer vida ao mundo
graças a esse ventre. Até lhe resultava ridículo imaginar que um
pouco tão importante os unisse.
— Ah, Nick! - exclamou ela, sorridente. — Já tinha que arruinar
tudo!
— Por quê? - perguntou ele semicerrando os olhos. — Por que o
arruinaria?
— Porque isso já não vai ser possível, liguei as trompas - Nick
ficou calado, não emitiu gesto algum, não sentiu nada. A confissão de
Patrícia o deixou indiferente. Por que não sentia dor, por que não se
amargurava? Porque não queria filhos dela. Porque não lhe
importava. Sua expressão não trocou. — Não ia me deformar, Nick -
continuou dizendo Patrícia, como se tivesse pedido alguma
explicação. — Isso nem em sonhos! - voltou a lhe roçar a ponta do
nariz com a unha. — Divirta-se, tolo - aconselhou.
Patrícia colocou as mãos no bolso do casaco de Nick e extraiu
os cigarros que ele ainda comprava. Tirou um do pacote, o meteu na
boca, acendeu-o e deu uma tragada. Olhava ausente o tumulto do
outro lado da fumaça que escapava por seus lábios vermelhos.
— Sim... – murmurou - Logo mudarei para sua casa...
Nick não se interessou por saber o que era que tinha cruzado a
mente de Patrícia nesse momento para dizer que se mudaria a sua
casa. Tampouco por saber que benefícios poderia lhe dar ele que não
lhe desse Horácio Lowenstein. Juventude, sem dúvidas. Bom sexo.
Tudo de lhe resultava indiferente.
Capítulo 26
— Escritório Hagen - respondeu a voz de Fi, tão cordial como
sempre.
— Olá - saudou-a um homem. — Fala o doutor Dickinson.
Recorda-se?
— Sim, claro! - replicou Fi com alegria. — Como se encontra?
Precisa falar com o Nicolas?
— Não em realidade - o homem fez uma pausa. Fi soube que
lhe custava dizer o que seguia. — Perguntava-me se você poderia me
dar o número de Lavínia.
Lavínia não reconheceu a voz de quem lhe falava até que o
sujeito se identificou.
— Sou o doutor Dickinson, Lavínia - disse o homem.
Imediatamente ela sentiu um comichão na boca do estômago. —
Perguntava-me, se não esta ocupada, claro, se quisesse... almoçar
comigo. Eu gostaria que de falar com você, eu gostaria de saber de
você.
De fato nesse momento tinha a mesa cheia de desenhos
rabiscados que tratava de encontrar os desenhos justos para levar ao
Javier Gonzaga, mas não podia negar-se de novo ao convite. Não
tinha esperado pelo doutor quando o tinha pedido no Centro Médico
porque não resistia sentir-se completamente alheia à vida de Nick,
mas em seu interior também albergava certo rancor pelo médico.
Não entendia por que ele e sua esposa não haviam tornado a
vê-la desde que seu pai havia falecido, por que não a tinham visitado
em casa de sua avó materna ou por que não a tinham ajudado a sair
do inferno no que se consumia sua vida quando era adolescente. Os
Dickinson se desentenderam dela, e não estava segura de perdoá-los
por havê-lo feito.
Apesar dessa sensação que sempre lhe atava o ventre, aceitou.
Ficaram de ver-se na recepção do Centro Médico e para ali partiu,
deixando tudo a um lado para reencontrar-se com seu avô.
Na recepção já a esperavam, porque nem bem disse quem era
e a quem procurava, conduziram-na por um corredor interno até o
escritório do diretor, que era o doutor Carlos Dickinson. O médico
ficou de pé para recebê-la e se estreitaram as mãos antes de tomar
assento. Lavínia notava que ele a estudava abismado e até lhe
pareceu notar um brilho de melancolia em seu olhar.
— Espero não tenha estado ocupada - disse-lhe. —
Possivelmente me precipitei um pouco para que viesse, mas não via a
hora de que pudéssemos nos falar. Como está sua mãe?
— Bem - limitou-se a responder Lavínia, pensando que tinha
deixado de lado um trabalho tão importante com a possibilidade de
mudar rotundamente de vida para encontrar-se com o médico.
— Soube que tem outro irmão.
— Assim é - respondia, quase parecia não querer falar. — Como
soube?
— Quero que me chame Carlos, por favor - pediu ele. — Minha
irmã Alícia se encontrou com sua mãe pela rua faz pelo menos um
ano.
— Ah.
— Quero que me conte de você. O que é de sua vida? Por que
não me disse quem era na noite da festa?
A porta se abriu detrás após dois ligeiros golpes, impedindo a
Lavínia responder. Um homem menor, mas muito parecido ao Carlos
pai entrou.
— Fernando! - exclamou este. Lavínia girou a cabeça para ver
de quem se tratava. Seu avô a assinalou: — Esta é Lavinia, lembra-te
dela? A filha de Carlos - referia-se a seu filho. — Este é seu tio,
Lavínia, o irmão de seu pai.
— Lavínia... - deixou escapar o outro médico aproximando-se
dela para lhe estreitar a mão.
— Almoça conosco? - perguntou Carlos.
— Neste momento estava indo à sala para uma cirurgia -
desculpou-se o outro; seu olhar admirando muito a moça, que era o
retrato de seu irmão falecido. — Mas eu adoraria que pudéssemos
nos reunir em outro momento.
Lavínia assentiu em silêncio. Pai e filho intercambiaram duas ou
três palavras a respeito de um paciente, que era para o que Fernando
tinha entrado no escritório, e logo este se retirou.
Carlos levou Lavínia a almoçar ao restaurante do pessoal da
clínica, onde serviam o menu geral e se sentaram.
— Me conte, Lavínia - pediu-lhe ele. — Estudou? Têm uma
profissão?
— Fiz a escola secundária - contou ela. Teria gostado de
terminar sua carreira de Desenho, mas isso não tinha sido possível
porque ninguém podia pagar seus estudos e, quando pôde fazê-lo
ela, teve de se encarregar de seu irmão.
— Têm trabalho? - Carlos parecia preocupado.
— Sou costureira - disse ela - mas estou concursando para um
trabalho como desenhista - seu olhar se iluminou. Fazia-se evidente
que guardava uma grande ilusão.
— Isso é genial! - exclamou o doutor. — Ninguém colhe os
frutos de seu engenho em tempo imediato - adicionou. Exceto Nick,
pensou Lavínia, mas isso não o expressou. — Não pensou em ser
médica?
— Sou muito impressionável.
— Oh! - exclamou o doutor com olhar indecifrável. — Tal como
seu pai!
A Lavínia enchia a alma que lhe dissessem isso, que lhe
falassem de seu pai. Não tinha sabido nada dele até esses dias nos
que todos pareciam necessitados de lhe contar coisas, de fazer
comparações.
— Eu gostaria que conhecesse minha casa algum dia - sugeriu
ele. — A sua avó adoraria ver-te. Pode trazer o engenheiro.
O coração de Lavínia deixou de pulsar com força por causa de
seu pai e lhe cravou por causa de Nick. Baixou a cabeça
imediatamente.
— Já não saio com Nick - explicou sucintamente.
— Que pena! - replicou o médico. — Faziam um casal
estupendo.
Lavínia elevou o olhar e fingiu um sorriso. Não tinha vontade de
sorrir.
— Obrigado - replicou para ser amável.
De repente o homem ficou pesaroso, tenso e algo triste. Baixou
o olhar e se esforçou por expressar-se.
— Se não voltamos a ver-te foi porque sua mãe se mudou e
sofremos tanto a perda de seu pai que...
— Não tem que dar explicações - repôs Lavínia quando
percebeu que os olhos de seu avô se umedeciam. — Haverá tempo
para isso, porque aceito o convite que me propôs - sorriu como um
anjo e encheu assim de sorte o coração perturbado do homem.
O encontro terminou quando o doutor recebeu um chamado no
que lhe pediam que se apresentasse com urgência na terapia
intensiva.
Pediu perdão a Lavínia por ter que suspender o almoço, lhe
disse que não se preocupasse com a interrupção e se despediram.
Enquanto isso acontecia, ela pensou em lhe pedir explicações
pelo abandono, em lhe recriminar veladamente os anos que tinham
passado, na aparência despreocupada por ela, entretanto, não falou.
Não encontrou sentido de pedir razões quando a vida lhes
apresentava uma nova oportunidade, para que viver pendentes do
passado? Haviam-se desencontrado, agora voltavam a reunir-se, isso
era o que importava.
Acabou com o almoço, como lhe tinha pedido seu avô que
fizesse, e depois, já que estava no centro, deu uma volta pelo Além
em direção ao Retiro.
— Faça-os ficar de casaco, Arturo! - bramou Nick um pouco a
sério, outro pouco em brincadeira, assinalando em direção a um
capataz. Normalmente Pablo se encarregava de visitar a metade das
obras enquanto ele fazia a outra parte e o árduo trabalho de
escritório, mas na ausência de seu sócio, agora tudo recaía em suas
mãos. — Não queremos que nos passe com esta obra o que nos vem
passando com todas - adicionou em voz baixa. — Inspeções são
nosso pesadelo.
— Entendido, senhor Hagen - assentiu o homem.
Os operários de Nick estavam acostumados a serem pessoas
felizes com seu trabalho, porque Nick gostava de tê-los contentes.
Exceto alguns sindicalistas que, de acordo com o que Nick pensava,
sempre semeavam a discórdia, seus empregados não renegavam de
suas condições de contratação, que eram muito boas. Além disso, os
chefes não eram inalcançáveis, mantinham-se perto e em contato
com eles, conversavam e até brincavam juntos, e isso lhes dava mais
confiança. Jamais tinham recebido um trato diferente porque eram
operários e não engenheiros ou arquitetos, nem se haviam sentido
relegados.
Nick lhe aplaudiu o ombro e agradeceu.
— Por isso confio em você - disse-lhe. Gostava de fazer sentir a
seus empregados importantes, porque o eram, sem eles nada
funcionaria. — Vemo-nos amanhã.
O som de uma perfuratriz interrompeu a conversa que, de
todos os modos, já se tinha dado por terminada. Então Nick elevou
uma mão no ar em gesto de saudação e o operário respondeu do
mesmo modo antes de voltar para o trabalho. Tal como seu chefe lhe
tinha indicado, colocou o casaco amarelo para dar o exemplo a seus
companheiros.
Nick cruzou a rua até a Praça Roma. Internou-se por um dos
caminhos para cortar a distância entre ele e seu automóvel, que tinha
ficado em um estacionamento pela Avenida Eduardo Madeiro, e
enquanto pensava na obra que visitaria na hora seguinte, o destino
interveio outra vez em seus planos.
Lavínia elevou a cabeça como por instinto. Tremeu dos pés a
cabeça quando a escassos metros de distância, viu parado Nick.
Tragou com força, as mãos se transformaram em punhos apertados e
suarentos aos flancos do corpo. Ele não deixava demonstrar suas
emoções, mas tinha sofrido o mesmo sobressalto que Lavínia. Quase
parecia que se encontravam com um fantasma e não como um ex-
casal.
Foi ele quem desprezou rápido essas sensações que o tinham
deixado paralisado e se aproximou. Nick sempre tinha sido mais
veloz, para ele ocultar as emoções resultava muito mais singelo que
para ela porque estava acostumado a fazê-lo.
Embora pôde mover-se, não pôde falar. Estava perto de Lavínia,
mas mudo. Aquele sentimento era muito forte, muito difícil de
dominar: enchia-o por completo. Tendo-a perto, não podia existir o
vazio, parecia que jamais tivesse existido.
— Olá - alcançou a pronunciar em voz baixa e pausada.
— Olá - respondeu Lavínia. Fazia-se evidente que sua
respiração estava agitada, que o coração lhe pulsava tão rápido que
ainda tremia.
O olhar deles se achou depois de uma árdua busca. Lavínia se
surpreendeu de que em nenhum momento o cinza azulado dos olhos
do Nick pretendeu lhe ocultar nada.
— Como está? - perguntou ele. Lavínia se deu conta de que sua
voz também soava transparente, distinta.
— B... bem – replicou. — Acabo de almoçar com o Carlos. O
doutor Dickinson - corrigiu. Nick sorriu. Em seu rosto havia paz, havia
descanso.
— Isso é muito bom – refletiu. — Eu venho de visitar uma obra.
Lavínia se forçou a sorrir.
— Suponho que isso é bom também - disse. Nick a notava com
falta de ânimo, e se sentiu culpado.
— Como foi com o Javier? - indagou.
Nick era um bom amigo, pensou Lavínia. Nada mais. Mas ao
menos a pergunta lhe recordou que a vida lhe oferecia algo pela
primeira vez em muitos anos e que tinha motivos para seguir adiante,
para desfrutar.
— Bem - respondeu. Agora sorria de verdade. — Ficamos de
que apresentaria alguns modelos e ele me dirá se podemos inclui-los
em sua coleção ou se requererem alguma modificação. Se escolhê-
los, comprarão os modelos e possivelmente até me deixaria
trabalhando para ele. Não é genial? Obrigado, Nick. Devo-te isso -
interrompeu-se. Ficou séria de repente. — E outras coisas mais... -
disse recordando o assunto do Josué.
Nick também sorriu. Lavínia pensava que se via tão arrumado
com o jogo de luzes e sombras das árvores lhe dando de cheio na
cara, as covinhas que lhe formavam sobre a boca quando sorria e o
olhar risonho, que sentiu que podia lhe roubar um beijo, como na
pista de baile do Paradise. Mas se conteve. Limitou-se porque Nick já
não lhe pertencia. Jamais o tinha feito, em realidade.
— Não me deve nada – replicou ele. — Sou eu o que te deve
muito - seguiu dizendo com ar melancólico. Teve que tomar uma
profunda inspiração antes de continuar: — Sinto muito, Lavínia, de
verdade.
Lavínia franziu o cenho. Que ele não se atrevesse a lhe pedir
desculpas!
— Por que? - perguntou. Enterrava-se ela mesma a adaga.
— Patrícia e eu...
— Cale-se, por favor - interrompeu-o elevando uma mão em
gesto preventivo. Pensou que voltaria a sentir-se ofendida, como
quando tinha entendido que lhe oferecia roupa para calar sua
consciência culpada, mas em troca só pôde sentir amor. Um amor
imenso que era tão generoso para deixá-lo ir. — Não tem que me
pedir perdão por isso - assumiu. — Está bem. Tanta gente passa pela
vida procurando e procurando algo que jamais encontrará... Nick
suspirou; encheu seu olhar dessa branca criatura que lhe roubava o
coração. — Você conseguiu achá-lo e nada deve te importar mais que
conservar isso que todos procuram, mas poucos podem encontrar: a
felicidade. Se ela for sua felicidade, é na verdade muito afortunado,
como todos dizem. E não pode deixá-la passar.
Lavínia voltava a sorrir sem disfarces, sem temores nem falsas
esperanças. Sorria de verdade e ele, afligido por sua generosidade,
sentia que podia elevá-la no ar, dar voltas com ela em meio da praça
e lhe gritar tudo o que guardava dentro. Teria sido lindo, mas o fez
pela metade.
— É tão boa, Lavínia... - expressou com admiração. — A melhor
de todas.
— Mas isso não é suficiente, Nick - interrompeu-o ela,
compressiva. — Não se pode ater a vida ao lado de alguém só porque
é uma boa pessoa. A vida é tão curta... - pensava em seu pai,
pensava nela mesma. — Se tiver a sorte de ter enchido seu espírito
com ela, não pode deixá-la ir. Não importa o que digam outros, não
importa quem esteja em seu contrário, tão só viva.
— É mi... amiga.
Nick não podia falar. Ficou sem palavras, como o dia em que a
tinha conhecido, vendo nesses olhos verdes somente futuro. Podia
acaso viver sem o passado? Onde o encontraria se não era em
Patrícia?
Muitos pensamentos sulcaram a mente de Nick nesse breve
instante. E ele se estremeceu pensando que, quando morresse, todos
eles se perderiam no silêncio: uma tenda, que se chamava Sonhos,
extraviada na imensidão do mundo, quão nervosa Lavínia ficava
enquanto lhe mentia, o tremor de seus dedos quando tomava
medidas. Não eram mais que pequenos pontos na eternidade do
tempo, mas para ele significavam o universo.
Sorriu encantado com as lembranças, que eram o presente que
ainda podia agarrar estirando só uma mão.
— Obrigado - disse em troca, imóvel.
Como ela não queria que ele notasse suas lágrimas baixou a
cabeça. Por isso logo que pôde ver que um sapato brilhoso e negro se
aproximava; o resto a tomou de surpresa. Foram os braços de Nick,
que a rodearam e a apertaram contra o firme torso masculino.
Nick percebeu que Lavínia tremia, sem dúvida experimentava
as mesmas sensações que ele, e também outras que jamais diria,
que morreriam em seu silêncio.
Jamais, jamais poderei ser sua amiga! Clamava o coração de
Lavínia, mas em troca limpou o nariz com a mão que lhe tinha ficado
pega à cara e murmurou: — Sempre vou estar para você. Sempre -
notava-se em sua voz que chorava. Não queria que isso acontecesse,
mas tampouco podia evitá-lo.
Nick fechou os olhos para sentir com maior plenitude como sua
alma retornava ao corpo, a calidez de Lavínia a devolvia. Como viver
sem essa chama? Como apagar algo que lhe queimava por dentro?
Lavínia temeu não poder ir-se nunca mais daqueles braços que
deviam embalar a outra, por isso se separou dele, e Nick permitiu
que o fizesse.
— Desejo-te o melhor, Nick, de verdade - disse ela secando as
bochechas.
— E eu a você, Lavínia - replicou ele. — Merece isso e sei que o
conseguirá.
Ela agradeceu com um ligeiro assentimento.
— Tenho que ir – anunciou. — Adeus.
Nick descobriu que se ela não o fazia, ele jamais se despedia. O
que pretendia, passar a eternidade aí, estagnado em meio de uma
praça, como se esse fosse o único instante de todo seu tempo?
— Adeus - devolveu a cortesia com as mãos nos bolsos e não
se incomodou em mover-se enquanto Lavínia dava uns passos atrás.
Ela elevou a mão em gesto de saudação e ele respondeu da
mesma maneira. Então Lavínia se voltou e começou a caminhar com
pressa em procura de fugir de seu olhar. "me chame", sussurrou. "me
chame, por favor, diga meu nome", sonhou. "Diga meu nome..."
Nick sentiu uma urgência, uma chamada interior que o fez dar
um passo à frente. Abriu a boca, ia chamá-la, mas se conteve.
Lavínia retrocedia os passos que a tinham conduzido para ele,
ia em direção contrária a que devia levar. Resultava evidente que
desejava escapar da fonte de dano, e Nick sabia que era ele porque,
ao estar ferido, só podia ferir. Era involuntário, não o fazia de
consciência.
Baixou a cabeça. Não podia seguir sendo tão cruel e egoísta
com Lavínia, que não era mais que uma vítima de seus vaivéns
emocionais, de seus fracassados intentos por voltar a ser quem era.
Descobriu com pesar que isso jamais aconteceria, nunca
voltaria a ser ele mesmo. O tempo tinha passado e nem sequer
Patrícia poderia lhe devolver seu passado. Então a deixou ir. Deixou
que Lavínia se afastasse como se afastavam os pássaros no céu
pressagiando uma tormenta e o futuro se perdia entre as sombras
das árvores.
Essa noite tinha chamado Patrícia e depois ela ia se mudar a
seu apartamento, aproveitando a ausência do Horácio Lowenstein. Ia
deixá-lo como tinha pretendido deixá-lo a ele. Voltaria a ser sua
esposa, como sempre devia ter sido.
Tal como tinham convencionado, às nove esteve no bar. Em
lugar de ir beber, tinham acordado um jantar. Nick pensou que, dadas
às circunstâncias de reconciliação, tratar-se-ia de um encontro
íntimo, mas foi chegar ao bar e descobrir que todas essas hipóteses
não eram mais que falsos conceitos que sempre tinha albergado a
respeito de Patrícia. Que era uma mulher feita e direita, que era a
melhor mulher do mundo. A melhor mulher do mundo! Patrícia não
era nada mais que um pequeno ponto na imensidão de seu universo,
um ponto escuro e sinistro, antes que luminoso.
Não lhe incomodou a atitude da mulher, a não ser o fato de ver-
se obrigado a passar largas horas rodeado de gente que não
contribuía em nada para sua vida, gente que na realidade o
aborrecia.
Ela estava sentada à mesa, rodeada de sua grande quantidade
de amigos entre os quais falava e ria e se levava uma parte de carne
à boca. Era grotesca, era hipócrita, era má, pensou Nick, mas mesmo
assim avançou. Seguiria até o final, até tocar fundo, até as últimas
consequências, porque a queda para o abismo era o único modo em
que Nick sabia subir com mais força depois, como a ave fênix que
sempre tinha sido. Só descendo ao inferno se alcançava o céu.
Ocupou a cadeira que estava junto à de Patrícia, que tinha
estado esperando-o.
— Olá - resmungou com desagrado a outros integrantes da
larga mesa. Alguns responderam com uma inclinação da cabeça,
outros nem se incomodaram em notar sua chegada.
— Chegou tarde - reclamou-lhe ela.
— Disse às nove.
— Mandei-te uma mensagem de texto para que estivesse às
oito e meia - Nick não respondeu. Não tinha olhado o celular em toda
a tarde. — Obrigado que pudesse te reservar um lugar. Apresse-te a
pedir, que já devem estar por trazer nossos pedidos.
Nick não se negou a pedir, mas sim a cruzar palavra com outros
convidados. Se lhe perguntavam algo, que de igual maneira nunca
era muito elaborado, limitava-se a responder com monossílabos e a
cortar com a conversação o antes possível.
— Troque a cara agora mesmo - ordenou-lhe Patrícia baixo. —
O que se passa?
Nick a olhou incrédulo, enojado. Patrícia só se preocupava em
ficar bem com seus amigos, não pelo que ele estivesse sentindo, por
isso o desejasse, e Nick estava farto de ceder e ignorar. Fazia tempo
se dava conta de que já não suportava Patrícia, mas a indigestão era
toda uma novidade.
— Pensei que estaríamos sozinhos - resmungou entre dentes.
— Qual é o problema? - respondeu ela, como se nada
acontecesse. — São nossos amigos.
— Não - interrompeu-a Nick entrecerrando os olhos, que lhe
ardiam pelo ar viciado. — Não são meus amigos, Patrícia, são os
teus. E sabe o que mais? Em realidade não quero estar aqui - dispôs-
se a levantar do assento ao mesmo tempo em que recolhia seu
casaco do respaldo da cadeira. — Vou para casa - anunciou.
Patrícia tinha ficado boquiaberta, surpreendida. Não tinha ideia
de como controlar Nick. Ao parecer as técnicas de sempre já não
serviam, e ela não sabia fazer nada mais que ferir. Depois de
conquistar com o corpo, sabia reter com humilhações, mas não podia
aplicar essa técnica diante de seus amigos.
Tomou ao Nick pelo antebraço para detê-lo.
— Não quero ir ainda - espetou-lhe.
— Não te pedi que fosse - replicou ele. — Só te avisei que vou.
Como alguns amigos tinham começado a murmurar e já os
olhavam de esguelha, Patrícia fingiu um sorriso e soltou o braço de
Nick, quem sem esperar um segundo nem despedir-se, aproximou-se
da porta.
— Me espere no hotel, amor! - alcançou a gritar ela antes que
ele se afastasse o suficiente para não escutá-la.
Nick a ouviu, mas não se voltou para lhe assegurar nada.
Esperaria no hotel só se tinha vontade. Patrícia não queria ir para
casa, queria ir ao impessoal quarto de um hotel porque não lhe
interessava uma família, nem o amor, nem ele. Patrícia perseguia
seus próprios interesses, que não eram de maneira nenhuma os seus.
No automóvel, pensou em ir para casa como tinha planejado,
mas queria saber até onde podia chegar, quanto mais podia descer se
já vagava no inferno fazia anos. Ir ao hotel seria um modo de ficar a
prova, de indagar quanto desamor podia suportar, quanto era capaz
de relegar sozinho para derrotar Lowenstein.
Nem bem abriu a porta do quarto, o aroma dos tecidos limpos e
as cortinas recém-engomadas lhe recordou a pureza que podia
encontrar em um só lugar, esse que se chamava Lavínia.
"Acaso não o vê? Estou vestida com suas cortinas", havia-lhe
dito ela. O poder que tinha a lembrança o fez sorrir. Com as costas
apoiada na porta mexeu no bolso do casaco em busca de um cigarro,
mas se lembrou de outra coisa que o acautelou de seguir revolvendo
entre as chaves do automóvel e o acendedor. "Isso faz mal a você e
eu não gosto de te beijar com aroma de cigarro". Voltou a sorrir como
um bobo, como um apaixonado, e deixou esse bolso em paz para
procurar algo no outro.
Dali extraiu um pacote de chicletes para deixar de fumar, abriu
um dos pacotes enquanto caminhava para a cama e introduziu a
borracha de mascar na boca. Sentou-se sobre o colchão, elevou os
pés e se respaldou com as mãos detrás da nuca. Sentia-se em paz,
como se voltasse a ser um menino e em sua mente se imprimissem
sozinha boas lembranças.
Fez uma bola que lhe cobriu a boca, queria ver quão grande
podia fazê-lo, se conservava essa faculdade de sua infância que o
fazia ganhar os campeonatos entre seus vizinhos.
"Deixa de comer chiclete, que te estraga os dentes e quando
dorme com ele na boca o perde e depois o tenho que remover do
pijama eu", estava acostumada a ralhar sua mãe. O chiclete era uma
guloseima barata, por isso passava com um na boca na falta de
chocolates ou alfajores. Essas sim que eram lembranças
maravilhosas!
Em seu apartamento, Lavínia desenhava uma blusa com
estranhos cortes nas mangas. Queria terminar o quanto antes os
desenhos com o estilo que lhe tinha solicitado Javier e confeccionar
os objetos para que fossem avaliados. O fazia em companhia do
rádio, que embora apresentasse a mesma programação musical que
a noite anterior, porque era automática, sempre gostava. Desfrutava
dos clássicos dos anos oitenta. Interrompeu sua tarefa para atender
ao telefone, e resultou que era Fi.
— Estava ocupada? - perguntou-lhe. Lavínia se encolheu de
ombros.
— Não sei o que te responder porque estava ocupada, mas não
é algo urgente – disse. — Não me pediram isso para uma data em
especial, até parecesse que me deram todo o tempo do mundo para
fazê-lo, mas sou eu a que quer terminá-lo rápido e deixar de viver
nesta incerteza. Recorda-se dos desenhos que me pediu Javier
Gonzaga? - não esperou resposta. — Bom, estava-os desenhando.
— Desenha? - surpreendeu-se Fi.
— Sim, claro, necessita-se para o desenho de indumentária -
assentiu Lavínia sorridente. — Não sendo convencida, mas o faço
bastante bem.
— Que maravilha! - exclamou a outra em resposta. — Nick
também desenha muito bem. De fato desenhar era seu passatempo
favorito na adolescência.
— Ah, sim? - Lavínia se sentiu ditosa de que não lhe escapasse
uma lágrima apenas um sorriso melancólico ao falar de Nick, mas sim
experimentava uma estranha satisfação. Não sabia por que. — E o
que desenhava? - interessou-se.
— Quadrinhos.
— Quadrinhos?!
— E o fazia bem! - elogiou Fi. — Sem dúvida sua melhor
criação, uma das mais complexas, foi o Senhor H.
— O Senhor H? - riu Lavínia.
— Não te soa conhecido? - brincou a mulher. — Sempre soube
que era um álter ego dele mesmo - de repente a voz de Fi se tornou
triste, sombria. — Tenho medo pelo Nick, essa é a verdade -
confessou.
— Mas eu o vi muito bem - contou Lavínia. — Cruzei com ele
hoje na Praça Roma, disse-me que vinha de verificar uma obra. Vi-o
tranquilo, detido no tempo, como nunca o tinha visto antes. Até
parecia em paz.
Lavínia escutou que Fi tomava ar pela boca.
— Nick é muito... instável - explicou a mulher. Lavínia
pressentiu que tinha duvidado sobre que palavra utilizar porque
estava escondendo algo.
— Isso já sei - respondeu.
— Não, não sabe - assegurou a secretária. — Nick sofreu muito,
não é como você pensa.
— E o que sabe como o penso eu?
— Estou segura de que não o pensa deste modo.
Produziu-se um instante de silêncio. Desde suas primeiras
conversas telefônicas sabia que Fi guardava algo, mas não imaginava
o que. É que com Nick nunca se sabia o que pensar, isso era parte de
seu mistério, de sua magia.
— Diga-me já, por favor - pediu.
— Nick... sofre às vezes de estados depressivos.
Lavínia deixou escapar uma risada de incredulidade.
— Nick depressivo? – repetiu. — Não, isso não pode ser.
— Passa da euforia ao pranto como podemos trocar de canal no
televisor. Acredite quando te digo que nada é o que parece, que
Patrícia Cólon quão único pode fazer por ele é devolvê-lo às sombras
das que você o tinha tirado. Resgate-o, Lavínia – suplicou. — Salve-o.
— Eu não posso fazer isso, Fi - respondeu-lhe ela, triste, mas
inteira. — Ninguém pode fazê-lo. Só Nick pode resgatar a si mesmo.
Patrícia entrou no quarto do hotel duas horas depois de que
Nick a abandonasse no restaurante. Tirou o casaco de couro
vermelho, jogou-o no sofá junto com sua bolsa e ficou de pé diante
da cama. Observou Nick aí sentado, com o olhar perdido em um
ponto do quarto, e se deslizou para ele como uma serpente.
— O que mastiga? - perguntou-lhe, sugestiva. Como toda
resposta, Nick fez uma bola que lhe explodiu sobre os lábios. — Não
me pretende ficar fazendo isso como um adolescente, não? Atire-o ao
lixo - ordenou.
Nick girou a cabeça e cuspiu o chiclete para um lado da cama.
Sua boca voltou a encher-se, esta vez da língua de Patrícia, que o
beijou com esforço.
— Façamos amor - sugeriu sem apartar-se dos lábios
masculinos. — Pode ser que essas extraordinárias habilidades que
têm na cama me façam esquecer um pouco o que me fez no
restaurante - insinuou ela enquanto deslizava uma mão pela coxa de
Nick, através da calça. Ele não a olhou.
— Eu não te fiz nada - disse.
— Isso me passa por tratar com criaturas.
Nick não ia responder. De ter querido, tampouco teria podido
fazê-lo porque Patrícia lhe deu outro beijo apertado e caloroso, um
com o que reclamava tudo o que alguma vez lhe tinha dado.
— Me beije - ordenou-lhe ela.
Acaso não o estava fazendo? Pensou Nick. Não, não o fazia.
Estava disperso, em outro mundo, com a boca frouxa e a língua
quieta, e Patrícia se dava conta. Entretanto, ele não se esforçou por
modificar essa situação.
Em poucos minutos se encontrou nu sobre o corpo de Patrícia,
colocando um preservativo como se fosse um ser inerte. Ela não
podia ficar grávida, mas ele se acautelava de outras enfermidades.
Sempre usava camisinha, sempre.
Nick não a olhava, via um nada sobre a mesa de luz e nesse
nada se desenhava o rosto de Lavínia. Não, de maneira nenhuma
estava sua alma nessa situação, nem sequer sua mente, apenas seu
corpo, que respondia a instintos básicos, mas não à vontade.
Patrícia já não lhe exigiu que a beijasse, nem sequer que a
olhasse. Nick seguiu o curso da situação com a vista extraviada em
seu próprio mundo e até deixou de mover-se por um momento sem
dar-se conta. Soube sozinho porque lhe apertou o braço e lhe exigiu:
— Te mova, Nicolas. O que aconteceu? O pré-infarto te deixou débil?
Então Nick se moveu. Sem paixão, sem gozo, sem espírito. Por
fim se deteve quando escutou que ela tinha terminado de gritar. Nick
não chegou a atravessar barreira alguma de prazer. Esse momento
que teve sexo com Patrícia foi como emprestar o corpo a uma dama
para que se entretivesse. Tinha-o passado milhões de vezes melhor
com as prostitutas.
Do mesmo modo disperso saiu do interior da mulher e se
respaldou de novo na cama. Tirou o preservativo vazio e depois
voltou a ficar assim, quieto e entretido com seu nada, que para ele
era tudo.
Lavínia sorria quando ele a abraçava. Lavínia tinha cócegas em
todo o corpo. Lavínia sonhava que Hector, o herói, era uma criança.
Nick sorriu. O sorriso se converteu em uma suave música que
abandonou sua garganta no meio do silêncio.
— Do que ri? - espetou-lhe a achatada voz de Patrícia. Nick não
lhe prestou atenção.
Lavínia pintava os lábios com brilho. Lavínia tinha medo do
vento. A Lavínia não gostava do dentifrício branco.
Nick se perguntou o que estava fazendo de sua vida,
esbanjando o tempo ao lado de uma mulher a que não amava.
Pensou no que ia ser dele ao lado de Patrícia, infeliz até que ela o
abandonasse de novo.
Voltava a conviver com essa mulher. E depois o que?
Perguntou-se. O que havia depois desse topo? Mais indiferença. Mais
dor. Quanto mais podia descer? Quanto mais podia suportar? Acaso
fazia falta? Não era esse o final, não era esse o inferno em seu grau
mais profundo?
— Passava melhor com meu marido - riu Patrícia,
interrompendo seus pensamentos. Ria sozinha.
— O que? - Nick de verdade não a tinha escutado, fez-lhe a
pergunta só por amabilidade. Tampouco era questão de que um ser
humano lhe falasse e ele o passasse por cima, sua mãe não o tinha
criado para ser assim mal educado. Patrícia soltou uma gargalhada.
— Mmm... – gemeu - Que é forte, firme e atrativo – disse. — E
que é incrível a experiência que adquiriu te mofando dessas
mocinhas. Fez-me voar! - Voar? Esse sexo vazio e ausente fazia voar
a Patrícia? Nick não respondeu.
— E que o passava melhor com meu marido é o que disse ao
Horácio antes de deixá-lo - continuou dizendo ela. Voltou a rir como
um espasmo. — Perdeu seus dotes de bom amante, converteu-se em
um velho puritano sendo que antes até gostava que se a... -
interrompeu-se para fazer um gesto com as mãos. — Você sabe. Até
lhe entreguei meu cu. Imagine, agora às vezes nem sequer conseguia
manter seu pênis de pé para me penetrar pela frente!
Nick sentiu asco. Imaginou o motivo pelo qual aquele homem
tinha perdido até a capacidade de manter uma ereção: as exigências
e demandas de Patrícia. Ela o teria torturado tanto com suas
reclamações de quarto que ele teria chegado a tal extremo de tensão
e medo de não satisfazê-la que a concentração o teria abandonado
por completo, como o tinham abandonado uma vez a vontade de
dançar.
Além disso, agora podia ver com claridade que ela não tinha
escrúpulos e que, pelo visto, era também egoísta e perniciosa. Não
tinha reparos em falar com ele de sua intimidade com Horácio
Lowenstein, não se perguntava se lhe doía ou se queria que lhe
contasse essas coisas, como se nada tivesse passado, como se ir e vir
de uma cama à outra fosse o mais normal do mundo. E, para cúmulo,
abandonando aos amantes destroçados. Patrícia só se ocupava dela
mesma e outros podiam morrer sem obter dela uma só gota de
atenção verdadeira, nenhuma só atitude honesta.
Podia ver tudo com tanta claridade que se atemorizava com ter
escolhido viver enganado tantos anos, tudo porque isso era mais fácil
que arriscar os sentimentos. Tudo porque se esqueceu de que, por
mais que se esforçasse por fingir-se diferente, sempre seria esse
menino adulto que não teve infância e que gostava de sexo como
manifestação da alma, a comida caseira e o amor. De convicções
profundas, com uma visão filosófica da vida e ofegante de receber e
dar afeto.
Patrícia não despertava ira, nem ilusões, nem muito menos
carinho. Já nem sequer a queria para vingar-se de Lowenstein, que
agora não lhe parecia mais que outra vítima, outro Nick.
E descobriu que ainda era jovem. Soube que estava vivo.
Quem era ele?
Um ator. Uma fantasia. O pior inimigo de si mesmo.
O que era sua vida?
Uma peça de teatro que tinha chegado a seu fim. Tinha baixado
o pano de fundo.
Sem dizer uma palavra, levantou-se. Revolveu os lençóis até
dar com suas cuecas negras. Uma vez que a teve posta voltou a
sentar-se à beira da cama para vestir as calças. Patrícia cruzou os
braços.
— Aonde vai? - interrogou com voz feroz.
— Para casa - respondeu ele. As palavras tinham saído bruscas,
duras, com essa voz rouca que às vezes lhe escapava de dentro.
— Ah, não, Nick! - reclamou Patrícia e logo deu uma ordem. —
Eu não quero ir ainda. Vamos mais tarde.
— Não disse que fôssemos - repôs ele calçando os sapatos, sem
perder uma gota de paciência. — Só lhe disse que vou.
Ficou de pé para fechar a calça. Patrícia saltou da cama,
arrancou os lençóis brancos e com eles cobriu sua nudez, que pela
primeira vez a incomodava.
— O que diz? - bradou.
— O que ouviu - replicou ele procurando a camisa. — Que vou,
Patrícia. Vou.
— Não pode ir! - gritou a mulher.
— O que não? - Nick já se prendia os primeiros botões.
— Porque têm que ir comigo.
— Que tenho que ir com você... - repetiu ele. Não podia
acreditar na ingenuidade dessa mulher.
— Voltamos a viver juntos! - reclamou ela com um grito. Nick
não perdeu a calma.
— Já não.
Como ele se afastava, Patrícia mudou de lado na cama e ficou
sentada na borda traseira do colchão.
— Como já não? - bradou colérica.
— Já não, Patrícia - respondeu de pé diante dela. — Não quero
viver com você - soltou com naturalidade. — Não a amo.
As palavras retumbaram nos ouvidos de Patrícia como o repicar
de um tambor errático.
— Mas eu já abandonei ao Horácio! – disse. — Tenho minhas
valises em outro quarto deste mesmo hotel!
— Esse é seu problema - respondia Nick, indiferente.
— Qual é o jogo? - ela começava a se tornar irritante,
pretensiosa, mas a Nick já não o afetava. — Sente-se - ordenou.
— Vou.
Nick colocou o casaco sobre um ombro. Patrícia caiu presa de
sua altivez e da única verdade que, de todas as que se desvelavam,
alcançava sem compreender: Nick não se deitou com Patrícia
Lowenstein por ela, mas acabava de deitar-se com ela por Lavínia
Dickinson.
— Acreditei que tinha mudado, que te tinha feito homem,
Nicolas - começou com seus insultos. Sabia que Nick odiava seu
nome completo e acreditou que odiava sentir-se vulnerável como o
menino que, em efeito, era, por isso lhe dizia essas coisas. Mas com
isso não fez mais que dar outra patética amostra de seu desespero
por ver seu capricho burlado.
— Não me importa, Patrícia - respondeu-lhe ele. — Não me
importa não ter mudado, se nunca quis fazê-lo!
— Não é mais que o mesmo perdedor de sempre! - ela seguiu
destilando veneno. — Um menino incapaz de satisfazer a uma
mulher! O filho de uma faxineira que só pode se contentar com uma
costureira da mesma índole que sua mãe! - Patrícia soltou uma
gargalhada. Nick ia para a porta. — Pobre garotinho que não foi
amado!
Ele se voltou sem pressa nem dor, sereno como nunca antes.
— Não me ligue - pediu em um tom de voz baixo e pausado. —
Vou bloquear seus números.
A porta se fechou sem que Patrícia pudesse reagir. Nick a
ignorava. Nick lhe havia dito que não a amava, Nick a abandonava.
Nick se aproximou do mostrador da recepção do hotel e falou com
empregado.
— Pode dispor de meu quatro – anunciou. — Não o usarei mais.
— Algum problema com o hotel, senhor? - preocupou-se o
jovem.
— Nenhum - explicou Nick com a mesma amabilidade que os
empregados do hotel sempre tinham mostrado para ele. — É um
lugar excelente, tão somente não o quero mais. Pode cobrar os
gastos produzidos até esta noite. Se a saída se produzir amanhã
depois do horário disposto por vocês para o abandono do quarto,
esses gastos já não correrão por minha conta.
Patrícia não se moveu do quarto. Nick voltaria. Tinha que fazê-
lo, não toleraria perdê-lo. Mas isso não ocorreu. Despertou ao meio-
dia, só quando dormiu, e compreendeu então que já não tinha a Nick,
mas ainda ficava Horácio.
Dirigiu-se ao quarto onde tinha deixado suas valises e logo se
encaminhou à planta baixa para sair do hotel. Aproximava-se da
porta de saída quando alguém a chamou e teve que voltar-se.
— O que aconteceu? - interrogou, altiva. Em seguida visualizou
o papel que lhe estendia o recepcionista.
— Sua conta.
Como era possível! Nick nem sequer tinha pago a conta dos
quartos! Extraiu seus cartões de crédito e entregou primeiro com o
Gold. O sistema não o aceitou. Entregou os outros três que tinha,
mas nenhum funcionou. Pareceu-lhe estranho. Só isso lhe faltava,
que Horácio os tivesse cancelado! Terminou pagando com o único
dinheiro de que dispunha.
Chegou à casa de Horácio carregando as valises que o taxista
não se incomodou em recolher. Procurou a chave de sua casa, meteu-
a na fechadura, mas não dava a volta. Pensou que se equivocou de
chave, olhou as outras duas que pendiam do aro prateado, mas não,
tudo estava em ordem, essa era a que abria a porta de entrada.
Provou outra vez. Nada. Tocou a campainha.
Pensava que se encontraria com Norma, a empregada, mas foi
Horácio quem a recebeu sem pestanejar. Não esperava que ele
estivesse ali, pensou que se achava em sua casa dos Estados Unidos.
— O que está fazendo por aqui? - bradou ela. Ainda sentia que
tinha direito a arreganhar, exigir e manipular.
— Isso é o que me pergunto a respeito de você - espetou
Horácio sem piedade.
— Trocou a fechadura?
— É obvio que troquei a fechadura. O que pensava, que iria
entrar e sair de minha casa como entra e sai de camas alheias?
Esqueça, Patrícia. Já te denunciei por abandono de lar e não pode
voltar. O que aconteceu, Hagen se fartou de você e tampouco te quer
mais?
Patrícia ardeu de ira.
— Velho de merda! - exclamou.
— Puta! - replicou ele, e lhe fechou a porta na cara. Se Hagen a
tinha deixado também, esse era seu dia de sorte.
Patrícia ficou aniquilada, em silêncio.
— Horácio... - resmungou com voz doce, suave - Carinho...
Não obteve resposta.
Capítulo 27
Domingo, apesar de ter negado sua assistência ao encontro que
tinham organizado seus alunos formados da universidade, Nick se
encontrou conduzindo seu automóvel rumo à quinta casa onde lhe
tinham indicado que se reuniriam.
Surpreendeu a todos com sua chegada e os meninos o
surpreenderam, porque nem bem dois ou três deles o viram
aproximar-se pelo caminho de terra depois de ter deixado o carro a
certa distância, correram a saudá-lo. Quase todos os professores
convidados tinham aceitado o encontro, ele tinha sido um dos poucos
em dizer que não iria, e foi o único em desfazer essa palavra.
Nick tinha compreendido que nada na vida era estático, nem
devia ser tão categórico. A engenharia nem sempre servia para o
coração. A combinação perfeita era razão e arte, ele mesmo o tinha
assegurado, razão e paixão.
— Que bom que tenha vindo! - exclamou um dos alunos que
tinha se aproximado.
Nick lhe devolveu a amabilidade com um sorriso. Queria-o.
Queria a seus alunos, até esse dia não tinha se dado conta.
— Olhe, mamãe - falou uma garota ao ouvido de sua mãe. —
Esse que vê aí era meu professor de Estruturas.
A mãe elevou ambas as sobrancelhas.
— Mmm... Que lindo! - exclamou.
— Mamãe! - ralhou a filha.
— Diga-me que você nunca o pensou.
A filha riu antes de fazer sua própria confissão.
— Todo o tempo.
Muitos alunos se aproximaram de Nick com seus pais, queriam
que o conhecessem. Nick quase não parecia o mesmo que tinha sido
para eles todo o curso, mostrava-se tímido e retraído ante as
adulações que todos lhe proferiam, humilde, calado.
Entre esses meninos e suas famílias, também queria aproximar-
se Tomas junto a seu pai, mas Nick não lhe deu tempo porque foi ele
quem se aproximou deles.
— Tomas - chamou-o a suas costas. O menino voltou-se, pálido
e nervoso.
— S... Senhor Hagen - murmurou. Logo abriu a roda para que
sua família visse Nick. — Papai, este é meu professor de Estruturas, o
Engenheiro Nicolas Hagen.
O pai de Tomas, um sujeito alto e forte, estendeu a mão para
Nick, que a estreitou.
— É um orgulho para nós que um homem como você tenha sido
professor de nosso filho - manifestou com genuíno agradecimento. —
Ele nos falou muito de você.
Nick olhou imediatamente a Tomas, que morria de vergonha
pelo que lhe parecia uma pisada de bola de seu pai. Claro que não
tinha ideia da dimensão que essas palavras tinham cobrado para seu
professor.
Nick ficou calado, estudando os olhos de Tomas. Não sabia até
esse instante, mas sem dúvida a vida de Tomas tampouco tinha sido
fácil. Fazia-se evidente que provinha de uma família que tinha feito
muito sacrifício para que ele estudasse, e isso o desarmou.
Esse menino o admirava, soube em seguida, e se perguntou
como lhe tinham passado por cima tantos olhares iguais que tinha
recebido ao longo de sua carreira.
"Porque eu o escuto... presto-lhe atenção", recordou que lhe
havia dito Tomas. Um estranho em representação de muitos outros
que lhe tinham expressado pensamentos similares. Outros alunos, os
entregadores de pizzas do Jun, os membros do governo quando
apresentou seu projeto da ponte, colegas, clientes.
Pareceu-lhe a glória. Tinha esperado escutar essas palavras da
boca de seu pai trinta e quatro anos, sem dar-se conta de que a falta
de um admirador, tinha centenas. Esse tipo de adulações tinham o
mesmo ou maior valor se partiam da honestidade que levava a um
desconhecido a manifestar semelhantes sentimentos para outro
estranho que se partiam da boca de alguém que nunca o tinha
valorizado. Possivelmente ele jamais tinha formado sequer parte dos
desejos de seu pai.
E com a única razão do olhar e as palavras daquele aluno, Nick
perdoou.
"Não viva pedindo explicações à vida. Não guarde rancor em
seu coração, porque isso amargurará seus dias", recordou. Como em
tudo, sua mãe tinha tido razão. Podia perdoar a Octávio por não ter
sabido comunicar-se, por não havê-lo desejado. Podia fazê-lo ele.
Que exemplo dava a seus alunos, que eram como seus filhos
postiços? Que exemplo lhes daria a partir de agora?
— O orgulho é meu - replicou ao pai de Tomas, e deu ao
menino uma palmada no ombro, como teria feito com um filho dele.
— Estou seguro de que será um arquiteto brilhante porque foi um
aluno excelente.
Ouvir que seu professor mais admirado dizia isso dele e o fato
de que o peito de seu pai se enchesse de orgulho, emocionou a
Tomas, que nesse momento não pôde evitar sorrir, ainda um pouco
avermelhado.
— Meu filho é arquiteto... - comentou o pai do menino com
orgulho. — E eu sou um operário.
Nick lhe sorriu.
— E que arquiteto! – exclamou. — E mais, tenho uma oferta de
trabalho para ele - soltou, agora muito sério. Já tinha pensado antes
nessa ideia, mas lhe ocorreu que esse era o momento indicado para
fazer. Tomas não cabia em seu assombro e tampouco seu pai. —
Claro que tudo dependerá de seu interesse em trabalhar comigo.
Nick dizia "trabalhar comigo", nunca "trabalhar para mim".
Além disso, pensava que podia ajudar a outros, como alguma vez
tinham feito Fi e Pablo com ele.
— Sim... - respondeu Tomas com a voz apanhada em um
sonho. Nick soube que o menino não podia falar, não porque não
tivesse nada que dizer, mas sim porque estava tão emocionado que
tinha esquecido o vocabulário.
— Nesse caso, ligue para meu escritório amanhã - indicou lhe
entregando um cartão. — Ou quando estiver disponível. Minha
secretária lhe atribuirá uma entrevista.
— Obrigado - disse o pai.
— Oh, sim, obrigado, senhor Hagen - replicara a mãe e Tomas
quase em uníssono.
— Não têm que me dizer obrigado - respondeu Nick. — Seu
filho soube ganhar.
Depois de dizer isso, afastou-se. Embora logo fosse incluído em
outra roda de conversação, não pôde deixar de abstrair-se daquela
realidade, ainda preso da outra.
Tomas e seu pai olhavam o cartão que ele acabava de lhes
entregar e liam seus dados com a boca um pouco aberta, com os
olhos ainda redondos e molhados.
— Tenho trabalho, papai - soube que Tomas dizia. O pai, cheio
de orgulho, deu-lhe um abraço.
A satisfação que experimentou Nick ante essa cena o deixou
perplexo, acovardado. Fazia tempo que não se sentia desse modo.
Nick descobriu que nem todos os pais eram como o seu, que ele
não tinha que ser como Octávio, que podia ser feliz se levava essa
felicidade a outros pais e a outros filhos cuja relação fosse distinta da
que ele tinha tido com seu pai. Este jamais o tinha abraçado nem se
havia sentido orgulhoso dele. Nunca lhe havia dito uma só palavra de
fôlego ou de admiração, entretanto, já não lhe faziam falta. Nem
todos os moços sofriam o mesmo que ele, e isso lhe bastava. Seus
filhos não sofreriam o mesmo que ele, e isso o agradava.
Como não abraçar a uma criatura com os olhos verdes de
Lavínia, ou a uma menina com seu cabelo loiro? Como não imaginar-
se a levando sobre os ombros a percorrer a casa linda e grande que
lhes compraria? Como não imaginar-se dando uma reprimenda a um
adolescente que em lugar de estudar matemática a passasse jogando
bola?
Como não querer filhos com Lavínia, se lhe enchia a alma dessa
felicidade que jamais pensou que lhe estava destinada? Ele, que não
podia ou não sabia ser feliz, agora se sentia ditoso só observando o
abraço de um filho e um pai enquanto em sua mente tecia a fantasia
de dar um abraço próprio. Não como filho, mas sim como pai.
— Pensa aceitar a cadeira na pós-graduação, senhor Hagen? -
perguntou-lhe uma das jovens que o rodeavam.
— Sim, suponho que sim - respondeu Nick abandonando seus
pensamentos. — Só porque se trata de superestruturas, porque bem
sabem que jamais poderia ter ensinado algo relacionado com
segurança e higiene.
Os meninos riram com a brincadeira tão típica de seu professor;
todos sabiam dos resultados desastrosos que arrojavam as inspeções
que faziam a suas obras. Por mais esforço que ele pusesse em fazê-lo
bem, havia algo que o atava a essa desgraça eterna que era a
segurança no trabalho, embora jamais nenhum empregado seu
tivesse sofrido um arranhão.
Possivelmente não o fazia tão mal, depois de tudo.
Possivelmente os inspetores às vezes a agarravam como seu ponto
fraco.
— Nesse caso, nos vamos voltar a ver - expressou um dos
meninos que o rodeavam. — Não pensávamos cursar essa matéria se
você não tomasse essa cadeira.
Nick ficou olhando. Não podia acreditar que tanto
reconhecimento sempre tivesse estado aí e ele tivesse passado por
cima. Atrever-se a aceitá-lo o enchia de orgulho, o fazia sentir-se
vivo. Ele transmitia saberes, mas sentia que estava em dívida com
seus alunos, porque estes lhe tinham dado muito mais. Davam-lhe
paz, energia, felicidade. Quando estava frente à classe, era fiel a si
mesmo.
Fazia-se evidente que não só era bom para construir, mas
também para ensinar, sempre o tinha sido. De menino aprendia algo
na escola e já queria explicar a sua mãe, que sempre o escutava
atenta e amorosa.
"Quando for grande, te vou levar a dar uma volta em um
destes", tinha-lhe prometido Nick assinalando um lindo navio que
tinha pegado na pasta de Ciências Naturais. Tinha que explicar como
flutuava na água. Tinha-lhe revolto o cabelo e lhe tinha sorrido.
Ele sempre a levava a dar uma volta em seu navio. Levava-a na
alma.
Na cozinha de Cristina, Lavínia batia ovos em uma tigela
enquanto sua mãe lubrificava uma assadeira.
— Vai me contar o que aconteceu com esse engenheiro com o
que saía nas revistas? - perguntou a mulher.
— Já não saio com ele, disse-lhe isso - respondeu Lavínia
depois de duvidar.
— Foi pelo Josué? - interrogou Cristina a seguir. — Se foi pelo
Josué, Lavínia, não deveria...
— Não - apressou-se a responder ela. Sua mãe parecia disposta
a enfrentar outra vez a esse mau homem para que ela voltasse com o
Nick, isso a surpreendeu. - Não foi pelo Josué – explicou. — O que
passou com ele me fez tomar a decisão mais rápido, mas a verdade é
que eu já sabia que ia ter que deixar Nick. Já está bem de vitamina?
- pretendeu trocar de conversação inclinando a tigela para sua mãe.
— Falta um pouco mais - disse a mulher. — Enganou-te?
— Não.
— Queira ou não, foi melhor que o deixasse.
Lavínia deixou quieta a colher e a olhou.
— Por que o diz? - interessou-se. Cristina se encolheu de
ombros.
— Os homens como esses têm uma só intenção com as
mulheres como nós - assegurou Cristina enquanto fazia a manteiga a
uma inclinação e assentava a fonte sobre a massa. — Os ricos se
burlam das moças pobres.
Lavínia alcançou a vislumbrar a raiz de muitos prejuízos
injustos que tinha sustentado por volta de Nick e pensou que
possivelmente esses mesmos pensamentos eram os que não lhe
tinham permitido compreendê-lo apesar de quão veladas sempre
resultavam suas confissões. De todos os modos, não podia culpar
disso a sua mãe. Desde pequena se criou em um bairro no qual os
ricos se viam como seres de outro planeta.
— Não - respondeu com segurança, fazendo alarde de uma
invejável convicção. Sentia-se tranquila, segura. — Burlava-se de
muitas mulheres, mas de mim não. Nick escolhia muito bem com
quem dormir, eu fui um acidente em seus cálculos, algo que escapou
de seu controle, mas por sorte para ele, já terminou. Não falemos
mais, por favor. Tombo a massa no molde?
Cristina a respeitou.
— Não - respondeu. Falava da massa. — O segredo de que
meus biscoitos saiam tão altos é que sempre os bato um pouco mais.
Ensinou-me isso sua avó.
Na segunda-feira, Nick entrou no escritório cedo e saudou Fi
com um sorriso radiante.
A mulher o notou imediatamente. Não era para menos, nunca o
tinha visto assim desde que era um menino.
— Mas o que tem de tão bom humor esta manhã? - perguntou.
Fazia-se evidente que Nick apresentava um bom humor sincero, não
como o que mostrava fazia tanto tempo.
— Muitas coisas - generalizou ele. — Entre elas, que estou a um
ponto de cumprir um pequeno sonho a uma das pessoas mais
importantes de minha vida.
Se algo privou Fi de resmungar um insulto pensando em que a
pessoa a que se referia Nick era Patrícia, foi o fato de que, se fosse
assim, pressentia que ele não estaria tão radiante. Notava-se no ar
que Nick se sentia satisfeito.
Fi tragou com força, o que arrancou outro sorriso a seu chefe
que, a diferença dela, falava como o homem mais tranquilo do
mundo.
— Refiro-me a você - esclareceu parecendo lhe haver lido a
mente.
— Oh! - surpreendeu-se Fi com uma mão no peito, tanto pela
abertura com que Nick lhe manifestava um sentimento como pela
intriga. Qual podia ser esse sonho dela que ele ansiava cumprir, se já
a tinha mandado dezenas de vezes ao cruzeiro e outras viagens?
Nick não a fez esperar para dizer-lhe, extraiu do bolso um papel
e o assentou sobre a mesa.
— Bloqueie estes números, por favor. Serão os últimos que
bloqueará em minha vida - afastou-se antes que Fi pudesse ler o
papel que lhe tinha entregado. — Que o desfrute.
Ao encontrar-se com os telefones de Patrícia, Fi se sentiu tão
feliz que gritou entre risadas. De verdade acabava de cumprir um
sonho.
Desde esse momento em diante, a manhã se apresentou
agitada. Com Pablo recém-chegado de sua segunda lua de mel e a
promessa de que tinha tomado em conta o pedido de Nick a respeito
de um afilhado, as coisas poderiam ter-se aliviado um pouco, mas
isso não aconteceu.
Em primeira instância, porque Uyardo voltou a chamar Nick
para lhe passar parte de certos avanços em seu projeto. Embora
continuasse trabalhando, e notava desanimado. Sabia que se o
projeto cancelava, perdia-se um grande trabalho, mas não servia
para mentir, e menos a Nick, que sempre tinha sido tão bom
empregador.
— Não entendo para que seguimos com isto se Lowenstein já
deve estar planejando a apresentação oficial de nossa ideia, mas com
sua marca - disse a modo de lamento.
— Não vou me retirar - respondeu-lhe Nick. — Jamais o fiz em
nada que me tenha proposto na vida, e tampouco o penso fazer
agora. Chegaremos até o final, custe o que custar.
Uyardo não se sentia tão entusiasmado como ele.
— Sei que nos enviam tudo o que podem, mas sem o dinheiro
dos japoneses a coisa se faz muito cara - replicou.
— Não importa quanto tempo nos leve - recordou-lhe Nick. — E
se Lowenstein sair do mercado com o que tinha sido nossa ideia, já
me ocorrerá algo mais que nos diferencie, algo que nos faça
melhores. Não quero que pense nessas coisas, siga adiante como
vínhamos que eu me ocupo do resto.
Uyardo não soou tão convencido nem otimista como Nick, mas
assentiu.
— Está bem, sim. Farei o que diga. É o chefe, não? - Nick
semicerrou os olhos. Perguntava-se se convinha remover algo já
enterrado no passado, mas lhe pareceu que se desejava fechar um
círculo, tinha que fazê-lo por completo, sem deixar gretas. De modo
que decidiu colaborar suas suspeitas.
— Diga-me uma coisa – pediu. — Quando os japoneses se
comunicaram com você para te anunciar que se retiravam do projeto,
não lhe disseram nada mais?
— Algo que não lhe hajam dito quando chamaram a você? -
quis esclarecer o homem, confundido.
— Sim, algo mais, o que seja.
— N... não - duvidou Uyardo. Nick quase podia ver como se
encolhia de ombros do outro lado da linha.
— Algo a respeito de como pôde haver-se vazado nossa
informação - explicou Nick para limitar as possibilidades. — Tenho
uma suspeita e...
— Ah, sim, isso sim! - interrompeu-o o outro. — Disseram-me
que lhes pareceu muito desonesto de sua parte não lhes haver
advertido que a mulher com a que conversavam tinha algo que ver
com Lowenstein.
— A mulher com a que... conversavam - repetiu Nick, sacudido
pela confirmação de sua suspeita, mas não assombrado. Não
entendia como não se interessou por essa informação antes.
— Sim, "a que vestia sempre de vermelho" - Uyardo repetiu a
informação que lhe haviam dito os japoneses e logo guardou silêncio.
Nick tampouco falou. Sempre soube em seu interior: Lavínia
possivelmente não falasse inglês e para comunicar-se com os
japoneses era necessário fazê-lo. Por isso do primeiro momento tinha
suspeitado de Patrícia. Era ela quem mais perto estava de Lowenstein
e quem podia gozar arruinando um negócio alheio; se arruinava
vidas, quanto mais um negócio! Arruinaria só por sentir-se poderosa,
só por diversão. Mas que os estúpidos dos japoneses não tivessem
sabido guardar um segredo corporativo o fazia impossível. Exceto,
claro, que Patrícia... deitou-se com algum deles.
Nick riu. Que puta! Pensou depois. E essa foi a última vez que
Patrícia Cólon se cruzou por sua mente fora de sua vontade.
Uma hora mais tarde, recebeu outro chamado que lhe anunciou
Fi. Era de Ernesto Echegaray, o responsável por uma marca de roupa
que pisava em forte no mercado local.
— Perguntava-me se poderia me contatar com sua namorada, a
desenhista - explicou o homem. — Nós gostamos do modelo que
usou na festa em que nos vimos e queremos ver mais material dela.
Um sorriso luminoso embelezou o rosto juvenil de Nick.
Assentiu em silêncio antes de responder.
— Neste momento se encontra em uma viagem de negócios –
mentiu pela metade - mas nos vamos reencontrar logo. Assim que a
veja, dou-lhe seu número.
— Agradecemos.
Depois de tomar nota do número do sujeito, Nick se respaldou
no assento, pôs os braços detrás da nuca e com um sorriso vago nos
lábios soube que era tempo de dar o seguinte passo. O que estava
esperando? Teria que acostumar-se a uma esposa muito solicitada no
ambiente da moda e que deixasse dispersado pela casa retalhos de
tecido, tesouras, alfinetes. Arte. Arte pura em uma vida rígida e
racional como a de um engenheiro.
O casal perfeito, pensou.
Fi deu dois golpes à porta e entrou no escritório de Nick sem
esperar sua permissão. Estava apressada. Aproximou-se do escritório
com duas pastas marrons e um papel amarelo, esses que tomava
nota das mensagens que deixavam as pessoas cujo chamado não
acessava a seu chefe.
— Este é o contrato dos Emirados - começou a explicar ao
tempo que assentava a primeira pasta sobre a mesa. — Diz Gregório
que o revise e que anote o que adicionar ou modificações que
requerem - Gregório Furtado era o advogado que se ocupava desses
assuntos. Nick só escutou o nome, porque ao resto não lhe
emprestou atenção.
— Fi - disse.
— Esta outra pasta contém... O que? - perguntou.
— Necessito que me ajude.
A serenidade de Nick afligiu à secretária. Brilhavam-lhe os
olhos, não lhe apagava o sorriso da cara. Entretanto, o tema Patrícia
Cólon ainda conseguia atemorizar a mulher. Tinha medo de que seu
chefe se arrependesse de bloquear os números dessa puta e que a
ida e volta entre eles voltasse a começar. Sempre começava.
— Nick... - começou a falar. Ia se desculpar se o assunto se
tratasse de Patrícia, com quem Nick ia e vinha todo o tempo, mas ele
a interrompeu outra vez. Não queria que Fi sofresse incertezas, por
isso soltou as palavras como lhe vieram à mente, com naturalidade,
sem cálculos nem premeditação.
— Quero Lavínia comigo.
O coração do Fi deu um salto. Abriu a boca surpreendida e ao
fim respirou.
— Claro, Nick! - replicou. Arrojou a pasta marrom e o papel
amarelo sobre o escritório sem prestar muita atenção, só podia olhar
Nick, que nesse momento tirava os braços de detrás da nuca e se
incorporava no assento. — Você dirá - continuou. Ele ainda sorria.
— Quero que consiga um espaço em todos os jornais - indicou
apressado. — Também quero um contrato com as páginas de Internet
mais importantes para que apareça uma mensagem quando
carregarem suas direções. E chame o letrista; quando o localizar, me
passe o chamado.
— Vai pintar as paredes? - ria Fi.
— Algo muito melhor - prometeu ele. — Também necessito que
me contate com rádios e canais de televisão. Todos os que possa
conseguir.
— Nick! - gritou ela. Ele se inquietou.
— O que? - perguntou ainda com esse tom tranquilo, mas
definido; franzia o cenho preocupado. — Acredita que seja muito
exagerado?
— Por que não só compra um lindo buquê de flores e vai até
sua casa?
Nick voltou a relaxar-se e sorrir, esta vez com incredulidade.
Como Fi ia sugerir algo tão insubstancial?
— Porque isso seria muito pouco – argumentou. — Muito
ordinário, não assinalaria diferença alguma com outras pessoas, não
nos definiria.
— E.. - sugeriu Fi com entusiasmo.
— E porque sabe que eu gosto de fazer tudo muito bem. E
porque Lavínia é especial - o olhar de Nick se iluminou, também seu
sorriso. — É importante e eu me portei muito mal com ela. Não posso
começar a ressarcir todo esse dano com apenas um buquê de flores.
— E.. - insistiu Fi com os nervos a flor da pele. Nick soltou a
gargalhada que se aguentava desde que havia dito isso de que
Lavínia era especial, momento no qual o rosto de Fi se transformou
em uma careta de reclamação.
— Está bem – consentiu. — Suponho que, depois de tudo,
sempre se inteira primeiro de todas minhas coisas - disse recordando
o projeto da ponte. Depois adicionou as palavras esperadas sem
sequer pestanejar, iluminando seu rosto por um sorriso radiante. — E
porque a amo, Fi - disse com um tom juvenil, completamente
renovado. — A amo mais que tudo no mundo.
— Oh, Nick! - exclamou ela com alegria desmedida. Se não lhe
tivessem doído os joelhos pela idade, teria dado um salto. — Esse é
meu moço!
— Nem sequer têm medo de que me expulse - brincou ele. Já
não sentia o temor de esforçar-se para acabar indiferente ante o
triunfo. Pressentia que, se obtivesse Lavínia de volta, sua vida jamais
voltaria a ser a mesma. Era ela, estava seguro. Era ela esse futuro
que lhe tinha sido prometido, a interminável felicidade predestinada.
— Claro que não! - exclamou Fi, segura como nunca antes o
tinha estado de nada. — Lavínia te ama.
— E, além disso, sabe que não me deterei por nada do mundo -
recordou-lhe - que sempre chego até as últimas consequências
embora me sangre no intento, certo? - Fi serenou seu espírito, que
saltava em lugar de suas pernas, e assentiu.
— Suponho que é um lutador depois de tudo – disse. — Só que
tem uma forma muito estranha de lutar - Nick lhe sorriu como gesto
de assentimento. — Eu me encarrego de tudo - assegurou ela, feliz.
— Está bem, a rádio e a televisão contate a você, do resto me
ocuparei pessoalmente quando conseguir me comunicar com seus
encarregados - decidiu para ter tudo sob controle. — Quero que às
onze da noite, todas as noites, apareça no pé da tela de todos os
canais de televisão que possamos conseguir e que digam na rádio
uma mensagem que eu vou dar. Para os periódicos e as páginas de
Internet, pensei algo melhor. Poderá lhes explicar isso? Diga-lhes que
vou pagar o que for.
— Claro Nick - disse ela. — Sabe que eu também consigo o que
seja.
— Por isso é minha mão direita - recordou-lhe Nick em seu fã
por fazer sentir importante a cada pessoa que o rodeava, porque em
realidade o eram. — Agora diga-me, o que era essa outra coisa que
me trazia?
Fi olhou a pasta e o papel amarelo com indiferença.
— Ah, frente ao que acaba de dizer, não têm importância -
replicou.
— Não importa, diga-me.
— O da pasta é a autorização para o novo trajeto do Paradise,
que por fim chegou para dentro de três semanas.
Era uma grande notícia. Uma notícia que não podia chegar em
melhor momento.
— E o papel amarelo? - interrogou ele. Se se tratava de outra
notícia como a do navio, estava em um de seus dias de sorte.
— Uma mensagem.
— De quem?
— De Horácio Lowenstein.
Nick entrou no cassino, dirigiu-se ao empregado de segurança
que lhe tinha sido indicado e se apresentou, tal como tinham
acordado. Depois que o homem se comunicou por transmissor com
alguém, um sujeito de traje apareceu para escoltá-lo a sala escondida
no fundo. Um lugar escuro, impregnado de aroma de cigarro,
iluminado pelo foco de um abajur de pé.
Horácio Lowenstein o esperava sentado à mesa octogonal em
que tinha jogado e perdido tudo mais de um homem. Eles também
tinham uma parada que disputar e vários assuntos sobre os que
disputarem.
Lowenstein ficou de pé para recebê-lo. Os contrastes entre
ambos se faziam evidentes, sobre tudo quanto à idade. Nick avançou
até a cadeira que estava frente à que ocupava seu inimigo e apenas o
saudou com um leve movimento da cabeça. Nenhuma expressão
permitia adivinhar um sentimento em seu rosto magnífico. Os olhos
de ferro de Nick permaneciam semicerrados, ocultando seus
pensamentos.
Depois que Lowenstein também respondesse com uma
inclinação de cabeça, tomaram assento.
O dilema de quem diria a primeira palavra demorou para se
resolver. Ambos se estudavam em silêncio, como dois duelistas
medindo-se no perímetro. Um guarda-costas que lhes provia o
cassino vigiava a silenciosa luta, de pé junto à porta fechada.
— É justo que eu inicie esta conversa, dado que o convidei -
decidiu falar Lowenstein. — Foi uma coincidência muito conveniente
que tivéssemos este amigo em comum para que nos emprestasse
este espaço.
Referia-se ao gerente daquele lugar de jogo, que tinha cedido
um lugar neutro para o encontro.
— Sim, foi - assentiu Nick com a voz dura, medindo cada
palavra. Produziu-se outro instante de silêncio, porque Lowenstein
também media as suas.
— Devemo-nos uma conversa - disse por fim. — E eu lhe devo
uma desculpa.
Nick piscou. Estudou a expressão de seu competidor, tão
sincero como jamais tivesse apostado que podia ser. Acaso pensava
desculpar-se por haver tirado a sua esposa? Nick sempre tinha
pensado que se alguma vez Horácio fizesse isso se sentiria furioso,
mas como Patrícia não importava um caralho, resultou-lhe
indiferente.
— Pode seguir com seu projeto - continuou dizendo Horácio.
Respondia assim a dúvida de Nick sem que este a tivesse
manifestado. Possivelmente tinha cometido o engano de que se
espelhava em seus olhos. — Segue sendo secreto.
— Desculpe? - interveio Nick quando lhe pareceu que o outro se
calaria. Não ia lhe permitir que deixasse uma confissão aberta, logo
que insinuada.
— O que saiu nas revistas não foi mais que uma farsa -
explicou Horácio com sinceridade. Nick não demonstrava, mas não
podia acreditá-lo. — Uma fachada para a imprensa. Merda, Hagen!
Você sim tem todo um mistério, tão bem escondido esse sistema que
jamais pude acessar a um só dado a respeito. Por isso me vali da
ingenuidade de sua esposa - pronunciou com um sotaque de
esperança que não passou despercebido a Nick.
— A sua - repôs ele muito firme, quase parecia que se tentasse
encostar de novo a Patrícia poderia renunciar antes à vida.
Lowenstein arqueou as sobrancelhas escuras, assombrado por essa
falta de interesse de Nick em Patrícia Cólon.
— Eu casei primeiro - reconheceu.
— Nesse caso, eu também lhe devo uma desculpa - soltou Nick
sem pensar se fazia bem ou não em confessar-se como estava
fazendo o outro. — Eu a tirei sem uma razão válida. Se a amei
alguma vez foi quando tinha meus vinte anos, depois não.
Lowenstein deixou escapar um sorriso indecifrável. Tirou um
cigarro de um pacote importado e ofereceu um a Nick.
— Não, obrigado - respondeu este. Lowenstein se tomou seu
tempo para responder a desculpa de Hagen. Acendeu o cigarro e deu
uma tragada.
— Nós dois sabemos que Patrícia vai e vem sozinha - disse com
ar melancólico. — Mas algo do que há dito é certo: se eu a tirei, foi
porque a amava.
Algo se rompeu em Nick, um mito que o tinha mantido alerta
todos esses anos. Comprovava, como tinha suspeitado fazia pouco
tempo, que Lowenstein não era o que ele tinha acreditado em
princípio, quando o rancor por ter perdido Patrícia nublava a razão.
Esse fragmento rachado se transmitiu em seu olhar; nela se rompia
também uma parte desse gelo que a revestia.
— Ela voltará para você - consolou-o. — Eu já não a quero
mais, e o deixei muito claro.
Lowenstein deixou escapar uma risada muda.
— Já voltou – contou. — Mas do que me serve que retorne só
porque você já não a quer? Para que esteja ao meu lado por
comodidade, eu tampouco a quero, embora a ame - Patrícia passava
de uma boca à outra como ia e vinha das camas, como sempre tinha
sido, como acabava sendo para todos os homens: nada mais que um
objeto. Horácio encolheu os ombros: — Que importância tem? –
disse. — Estou velho e já não tenho que dar voltas em busca de uma
mulher que me queira. Me dedicarei a meus filhos, aos que por ela
tinha descuidado, começarei a pedir um neto...
Nick já não semicerrava os olhos por desconfiança, mas sim por
empatia. Lowenstein estava passando, graças a Patrícia, por tudo que
ele já tinha superado. O homem que até esse momento tinha
acreditado ser seu pior inimigo acabava de confessar-se, e ele não
sentia satisfação alguma por isso, nem tampouco indiferença. Sentia-
se agradecido. Tanto que, com quanto lhe custava, rachou outra parte
de seu próprio gelo. Inclinou-se levemente para frente como gesto de
confiança.
— Não se dê por vencido, Lowenstein - sugeriu com tom baixo
e pausado. — Sua vida não está acabada. Eu também me acreditei
morto durante muitos anos.
— Mas você é jovem! - exclamou Horácio com honesta
indignação, como se o ser jovem não desse direito a sentir-se morto.
Nenhum dos dois reparou em que o havia falado, como se com isso
fizesse caso da confiança que Nick lhe demonstrava com suas
palavras.
— Às vezes não nos sentimos jovens em nosso interior - repôs
Nick com a certeza de que ele mesmo o tinha padecido. Logo inspirou
fundo e se largou a falar do coração. — A maioria das vezes não
mostramos quem na verdade somos. Ao longo do tempo nos
convertemos em personagens e representamos a peça de teatro de
outra pessoa, acreditando que somos fortes. Mas só estamos vazios e
ansiamos nos encher de nós mesmos. Nada é mais estranho que a
alma quando a deixamos de lado. Não seja estúpido como eu; não
deixe morrer a sua.
Lowenstein arqueou as sobrancelhas, surpreso pelos
sentimentos que as palavras de Hagen despertavam e por quão
profundo lhe parecia. Perguntava-se onde tinha ficado o solteiro
mulherengo e viciado que acreditava que tinha sido. O filho da puta
dos negócios, o idiota presunçoso das festas. Essas ideias sobre Nick
se esfumaram em sua mente, quase parecia que jamais tinha
existido, o mito se quebrou. Então descobriu que sim havia valido a
pena ter um inimigo como esse.
— Você é inteligente - ia começar um discurso, mas o
interrompeu para contar uma anedota. — Que curioso, Patrícia me
disse que você era muitas coisas, mas ao parecer jamais se precaveu
disso. Que você era atrativo, jovem, forte, poderoso e não sei
quantas coisas mais, mas de sua inteligência, nem notícias. Por algo
será - Nick sufocou uma risada ante a referência a uma Patrícia vazia
e pouco chicoteada, capaz para a matemática, mas inútil para a vida.
Demonstrou que o comentário lhe tinha feito graça curvando seus
lábios. — Voltando ao ponto, sendo você tão preparado, não entendo
por que continua comportando-se como um idiota. Com todo
respeito, tal como você me chamou estúpido - repôs em seguida.
Nick franziu o cenho.
— Acredito que não o compreendo - murmurou. Não se sentia
ofendido nem insultado, alcançava a distinguir uma cota de
recriminação sobre o que Lowenstein lhe dizia, quase parecia que o
arreganhava como um pai.
— Falo-lhe de Lavínia, Hagen - esforçou-se por esclarecer
Horácio. Nick respirou aliviado. — Saiba que essa entrada no hotel
com ela também foi minha mentira.
— Já sei - assentiu Nick, ainda cabisbaixo.
— Que mulher! - refletiu Horácio sem prestar atenção ao que
Nick lhe dizia. — Se uma moça assim se apaixonasse por mim, eu
jamais a deixaria ir.
De só recordar a Lavínia, Nick sorriu. Baixou a cabeça para
ocultar o brilho que tomava seu olhar cada vez que se lembrava dela,
o vulnerável que se voltava quando imaginava, e replicou: — Não se
preocupe. Eu tampouco a vou deixar ir.
Lowenstein assentiu em silêncio, a ponto de sorrir, careta que
dissimulou muito bem. Nick elevou a cabeça e lhe estendeu uma
mão.
— Foi um bom encontro - concluiu. Lowenstein estreitou a mão
que lhe oferecia com firmeza, apertou-a forte.
— Assim acredito - assentiu.
Horácio pensou que estava estreitando a mão que havia
soqueteado a sua filha e por um instante sentiu o impulso de dar na
cara de Hagen. Entretanto, o desejo se diluiu logo. Hagen não era o
que tinha pensado, e quase podia afirmar que era uma lástima que
sua filha tampouco fosse uma moça muito séria. De havê-lo sido, até
lhe teria gostado que seu genro fosse como o homem do qual se
despedia.
Enquanto durava o aperto de mãos, Nick pensou na filha de
Lowenstein. Catalina, assim se chamava, e lhe tinha feito amor em
duas oportunidades. Pensou em pedir desculpas ao pai por isso, mas
guardou silêncio. Tampouco tinha abusado dela, Catalina não era
nenhuma santa e o tinha passado muito bem. Além disso, ele não
tinha conhecido sua verdadeira identidade até que se beijaram e se
correspondiam para o sexo. Além disso, se pudesse escolher um
sogro, não lhe teria aborrecido que fosse como Lowenstein.
Capítulo 28
Tamara sentou no sofá, junto a seu marido. Dobrou os joelhos,
elevou os pés e se colocou em seu lado com a cabeça apoiada sobre
seu peito. Sempre viam juntos o jornal das onze, que às vezes
noticiava às onze e quinze. Ainda não terminava o programa de jogos
anterior ao que esperavam quando, debaixo e em letra pequena,
apareceu algo que chamou a atenção da mulher a ponto de fazê-la
baixar os pés do sofá e inclinar-se para frente para ler melhor.
— "Quero que o mundo inteiro saiba que sonho com você de
noite e de dia, dormindo ou acordado. Quero que o mundo saiba que
é minha luz no final do túnel, lembra disso? Quero que o mundo saiba
que não há vida sem você, que vivo para te amar. Senhor H" - leu em
sussurros. Logo olhou a seu marido: — Oh, Por Deus! O que foi isso?
Que romântico! - exclamou com emoção. Suspirou. Levava no rosto a
excitação que as palavras lhe tinham produzido. — Seria capaz de
fazer uma coisa assim por mim?
— Se tivesse o dinheiro que deve estar investindo esse tipo em
publicar essa mensagem, faria o que fosse por você... – respondeu.
— Menos isso.
Tamara o golpeou com suavidade no peito enquanto ria com
sua brincadeira e depois se recostou sobre seu ombro.
Mas ela não foi quão única notou as mensagens. Milhões de
pessoas se fizeram fanáticas pelo misterioso Senhor H com o que
suspiravam, sonhavam, divertiam-se; viciadas em suas mensagens
de amor.
“Sou sua e venho do mar para te levar longe, ao reino onde as
mariposas sussurram e não existe o vento, disposto a derrotar a
qualquer um que se atreva a te fazer pensar que não nascemos para
estarmos juntos".
"Você dá os pontos e eu as linhas, e com elas vamos riscando a vida
que nos espera ao final da costa, no topo onde o sol nasce para
dissecar os espinhos e sanar tantas feridas que estes possam nos ter
feito. Essas que, em comparação com nossa felicidade, terão que
consolar-se tendo sido nada mais que arranhões".
"Não existem as trevas quando está pura e cheia de luz, a meu lado.
Não existe a solidão quando sua alma me acompanha, porque contigo
estou no paraíso e um só olhar tem o poder de aniquilar a morte".
Circulavam todas essas mensagens por rádios, páginas de
Internet, periódicos, publicidades, e canais de televisão, todos
assinados pelo misterioso Senhor H a quem já até lhe dedicavam
colunas nos programas porque era toda uma curiosidade.
As mulheres o amavam, os homens o admiravam, alguns
maridos o teriam assassinado. Despir assim os sentimentos, para
qualquer um, para todo mundo, só porque uma mulher o fazia sentir
forte! Esses gestos punham às demais mulheres exigentes.
Lavínia, ocupada como estava com a confecção de camisas para
a marca que finalmente tinha contratado sua oficina para o trabalho e
com os desenhos que já tinha começado a fazer para Javier, nem
tempo tinha de ligar o velho televisor que ocupava espaço em sua
sala. Escutava a rádio, mas não prestava muita atenção e sempre de
noite ouvia a programação automática.
Numa dessas largas jornadas de trabalho, cansou-se das
mesmas canções de sempre e decidiu que podia destinar um minuto
de sua ocupada vida para trocar o dia. Ficou de pé, chegou ao rádio e
moveu o botão.
"Não existem as trevas quando está...", escutou ao passar, mas
seguiu trocando. "O poder de aniquilar a morte", escutou por outro
lado, mas seguia movendo a botão até dar com uma canção que
desejava escutar.
Ao deter-se na emissora que passava música eletrônica, soube
com claridade que nunca lhe tinha atraído esse tipo de música, mas
ficava ouvindo sozinha porque assim sentia Nick um pouco mais
perto.
Tinham passado duas semanas da última vez que o tinha visto.
Perguntou-se o que seria de sua vida, se já estaria planejando suas
segundas bodas com Patrícia, e o coração lhe espremeu um
momento.
"Não existem as trevas..." interrompeu a canção, mas Lavínia
já tinha desligado o rádio em busca de esquecimento.
Do mesmo modo, um desses dias tinha passado debaixo de um
cartaz no qual se lia um simpático: "Espera-te um encontro com a
fortuna, deusa romana. Não resista. Senhor H", mas ela não o tinha
visto. Ia pensando no difícil que lhe estava resultando conseguir a
pintura que procurava para a calça desenhada para Javier.
Às seis da manhã, depois de ter passado a noite sem dormir
por trabalhar nas camisas, soube que jamais daria conta de tudo o
que tinha para terminar essa semana.
— Tami? - chamou a sua amiga.
— Lavínia! - recebeu-a esta, feliz. — Estava para ir à cafeteria.
Quando tinha fechado sonhos, Tamara tinha conseguido
trabalho como garçonete. E Lavínia se envergonhava de lhe oferecer
de novo trabalho para ela, sendo que tinha tanta má sorte e qualquer
desses golpes de fortuna que ao parecer tinha recebido podia durar
um suspiro. Mas, como se sentia agradecida e em dívida com sua
amiga, queria que esta soubesse que a primeira pessoa em que
pensava quando as coisas fossem melhor, era nela.
— Imaginava, sei que seu turno começa cedo - respondeu
Lavínia antes de tomar ar para dizer o mais difícil. — Dá-me
vergonha, Tamara, e medo, mas queria te perguntar algo.
— Ai, amiga! - exclamou a outra. — Não me ponha nervosa. O
que aconteceu?
— Não é algo mau - sorriu Lavínia. — É muito bom,na
realidade.
— Solta-o rápido então! - reclamou Tamara.
— Lembra-se das amostras que me ajudou a costurar quando
tinha a mão machucada?
— Claro.
— Finalmente me deram o trabalho para esse modelo de
camisa.
— Oh, é genial! - Tamara saltou literalmente de alegria.
— Isso não é tudo.
— Ainda há mais?
— Um representante de uma marca de roupa reconhecida me
pediu amostras de desenhos criados por mim sobre a base do que
quer para sua próxima coleção.
— É brincadeira ou fumou algo?
Lavínia riu com a expressão de assombro de Tamara.
— Ao parecer algo me sai bem depois de muito tempo –
refletiu. — Não sei se os deuses que me castigavam, ou seja, por que
pecados de meus antepassados ficaram dormindo ou foram
derrotados por... algo um pouco mais forte - seguiu. Tamara não
entendeu nada da referência que Lavínia fez aos pecados de deuses
gregos, e a esse algo um pouco mais forte que era Nick e a outros
conceitos que pouco importava para essa conversação. — Enfim, sei
que o que possa te oferecer não será algo fixo, você sabe, não
sabemos em que momento Poseidon ou Éolo se podem zangar e me
atirar tudo pela amargura, mas queria que soubesse que penso em
você como minha primeira empregada. Como minha sócia para a
oficina - corrigiu-se - ou colaboradora para o desenho.
— Oh, amiga! - enterneceu-se Tamara, que era tão doce como
Lavínia. — Fico muito feliz que comece a ir tão bem, merece isso. E
eu adoraria trabalhar para você. Não posso renunciar tão rápido a
meu novo trabalho...
— Já sei, sei - apressou-se a responder Lavínia.
— ...mas se necessitar minha ajuda, em minhas horas livres
posso ir a sua casa costurar, e cortar, ou o que necessite.
Lavínia sorriu com agradecimento.
— Viria bem uma ajuda esta semana – assentiu.
— Claro, aí estarei - prometeu Tamara. — Tudo para que minha
amiga se converta na Carolina Herrera de Buenos Aires! - brincou.
Lavínia riu e se despediram.
Ao terminar o café da manhã, Tamara soltou a xícara, que se
cambaleou sobre o prato ao ter sido abandonada no ar. Logo recolheu
sua bolsa, beijou a seu marido e se foi.
Passou uma hora desde que chegou ao trabalho até que
levantou de uma mesa o jornal que sempre tomava o café da manhã
nesse lugar e lia todos os jornais. Recolheu o material, pendurou
cada exemplar no exibidor e ficou com um para folheá-lo enquanto
não a chamasse um cliente.
Passou páginas e páginas até dar sem querer com algo que lhe
arrancou um sorriso.
Outra vez o Senhor H deixava uma mensagem, só que desta
vez, diferente das anteriores, ocupava uma página inteira do jornal,
como uma publicidade de um supermercado.
O fundo negro, as letras brancas e um excelente desenho no
que se apreciava um Super-Homem de olhos azuis e traje escuro,
compunham a página. No peito, um H.
"O tempo se esgota, mas o farei eterno. Nunca me rendo e não
me deterei até que volte para mim, embora a próxima vez tenha que
ocupar todo o jornal ou uma hora inteira de televisão" - leu Tamara.
Soltou um riso.
"Apareceu em minha vida com o sorriso de um anjo depois de
que os demônios me tinham consumido no inferno. Fez-me reviver,
devolveu-me a luz, e ainda tenho o descaramento de te pedir algo
mais: outra oportunidade, a de te fazer a mulher mais feliz do reino,
você é a mais formosa, embora a mitologia diga o contrário, porque
estou seguro de que o lugar ao que pertence é ao meu lado, não
importa onde".
— Oooh! - suspirou Tamara com o cotovelo apoiado no
mostrador e o queixo sobre a mão. Já a tinham chamado com gestos
em duas mesas, mas ela se abstraiu do mundo.
"Não me alcançará a vida para te compensar tanto, mas se me
perdoa, estarei no porto do Rio de Janeiro no sábado às seis da tarde
para que juntos..."
Os lábios da Tamara se abriram tanto que quase parecia que
nunca iriam se fechar. Tirou o avental que formava parte do
uniforme, sujeitou o jornal contra o peito e anunciou aos gritos: —
Tenho que ir! Cobre-me, Maria! Tenho que sair correndo!
Todos ficaram olhando.
— Lavínia! - gritava Tamara dando golpes à porta. — Abre
rápido!
Lavínia abriu a porta desencaixada. Sua amiga nunca a tinha
insultado, pensou que lhe ocorria algo grave.
— Está bem? - perguntou-lhe quando a teve diante de si, lhe
apertando os braços contra o corpo.
— Têm que ler isto! - Tamara avançou com passos largos e
ágeis até a mesa. Lavínia a seguiu lenta, com os olhos muito abertos,
sem entender nada. — Sugiro que se sente - indicou sua amiga. —
Ou vai cair redonda no chão.
Agora era Lavínia a que tinha a boca entreaberta. Ainda
aturdida pela velocidade que levava sua melhor amiga, sentou-se à
mesa e a outra fez o mesmo frente a ela.
— Sabe quem acredito que é o misterioso Senhor H? -
perguntou Tamara com a voz velada no mistério e o assombro.
Lavínia franziu o cenho.
— Quem? - interrogou com o sobrecenho franzido. Não tinha
ideia do que lhe estava falando sua amiga, mas o pseudônimo lhe
gelou o sangue. Segundo Fi, era o que Nick usava em um super-
homem que tinha criado quando era adolescente. — Não deveria
estar na cafeteria? Não...?
— Silêncio! - gritou-lhe Tamara. — A sério não viu nem ouviu
nada sobre o Senhor H? Não há mulher neste país que não esteja
falando dele!
Lavínia tragou com força. Ainda não tinha ideia do que lhe
falava Tamara, mas que tivesse repetido o pseudônimo não lhe
deixava dúvidas de que não tinha escutado mal nem se tratava de
uma fantasia: Tamara tinha pronunciado bem claro e duas vezes
"Senhor H".
— Não leste nenhuma de suas mensagens? Não escutou nada?
- seguiu perguntando Tamara. Lavínia negou com a cabeça. — Ai,
eram formosos, tão românticos! Acredito que descobri sua
identidade. E não sei por que me parece que você vai descobrir isso
também...
Estendeu o jornal e o abriu na página trinta e nove. O primeiro
que Lavínia viu foi o desenho, que a deixou paralisada.
— Leia! - insistiu sua amiga.
Lavínia tragou com força, mas lhe tinha formado um nó na
garganta tão fechado que lhe doeu. Não sabia do que ia tudo isso,
mas pressentia algo grande. Muito para o que poderia sequer sonhar.
Elevou, tremente, uma mão e acariciou a figura de capa e
máscara que com os braços no quadril exibia seus poderes ante o
mundo. Depois voltou os olhos para as letras.
— "O tempo se esgota, mas o farei eterno. Nunca me rendo e
não me deterei até que volte para mim, embora a próxima vez tenha
que ocupar todo o jornal ou uma hora inteira de televisão" - leu em
sussurros. Se o fazia difícil falar, respirar e ler com os olhos nublados
de lágrimas.
— Continua! - insistiu-a Tamara ante o silêncio.
— "Apareceu em minha vida com o sorriso de um anjo depois
de que os demônios me tinham consumido no inferno" - Lavínia
umedeceu os lábios, por sua bochecha rodava uma lágrima.
— "Fez-me reviver, devolveu-me a luz, e ainda tenho o
descaramento de te pedir algo mais: outra oportunidade" - cobriu a
boca com uma mão, de sua garganta estrangulada escapou um
soluço - "a de te fazer a mulher mais feliz do reino, já é a mais
formosa, embora a mitologia diga o contrário" - Lavínia riu entre
lágrimas - "porque estou seguro de que o lugar ao que pertence é ao
meu lado, não importa onde". — Oh, Meu deus... - resmungou. De só
pensar que Nick despia seu interior ao mundo por ela se sentiu
amada, embora ele se esforçasse por negá-lo, ocultá-lo ou o que
fosse que pretendesse fazer com seus sentimentos, e queria sair
correndo para ele sem importar nada.
— Leia, Lavínia, leia! - reclamou Tamara.
— Não posso seguir... - chorou angustiada. — Não posso...
— Continua!
Com a voz transformada pelo pranto e intercalando palavras
com soluços, Lavínia seguiu lendo para sua amiga e para ela mesma.
— "Não me alcançará a vida para te compensar tanto, mas se
me perdoar, estarei no porto do Rio do Janeiro no sábado às seis da
tarde para que juntos..." - elevou o olhar, passou o dorso da mão
pelo nariz molhado, voltou para o papel - "...para que juntos, Minha
Lavínia, não contemplemos, mas sim vamos até as estrelas, prometo
te levar cada vez que eleve o olhar e sejam meus olhos os que lhe
admirem. Amo-te com o corpo e com a alma, mais do que alguma
vez acreditei que era capaz de amar. Senhor H".
Lavínia voltou a elevar o olhar avermelhado e úmido para sua
amiga, incapaz de acreditar o que acabavam de pronunciar seus
lábios. Tremia de emoção. Duas singelas palavras ressonavam em
sua mente por sobre todas as outras, que também eram
maravilhosas, e não se cansavam de relembrar: "Amo-te". "Amo-te".
Era a primeira vez que se inteirava abertamente de que Nick a
amava, e acontecia por escrito. Não tinha maneira de inteirar-se!
— Para mim? - interrogou levando uma mão ao peito.
— E ainda o pergunta! - replicou sua amiga, fora de si. — Têm
que ir, Lavínia - insistiu tomando as mãos. — Têm que chegar aonde
vai estar te esperando!
— Não posso - respondeu Lavínia com pesar. — Isso é muito
longe, necessitaria uma passagem de avião. E se for pelo que penso,
ele tinha pensado fazer chegar seu cruzeiro até o Caribe. Eu não
tenho vistos, nem sequer um passaporte, e segundo o que diz o
jornal, a partida é em três dias. Três dias! Diga-me como faço para
conseguir todas essas coisas em tão pouco tempo e sem dinheiro.
Necessito dinheiro para o passaporte, vistos, uma passagem de
avião.
— Empenhamos esse televisor velho e feio que têm sempre
desligado e o rádio - Lavínia se sentiu um pouco ofendida pelo pobre
televisor e sabia quanto lhe custaria desfazer-se do rádio, mas
tampouco viu muitos objetos mais que pudesse empenhar nem
outras formas de conseguir dinheiro. — Eu te dou o pouco que ficou
das bodas...
— Oh, não, isso não - replicou Lavínia. — Sentiria-me muito
mal de...
— Do que? - interrompeu-a a outra. — Se vai me devolver!
Alguns golpes à porta interromperam a conversação. Como
Lavínia estava imóvel pelo pranto, que só tinha diminuído um pouco
desde que começara, Tamara foi quem abriu a porta. Helena entrou
com as botas vermelhas de salto, a minissaia negra, o espartilho
também vermelho. Levava o cabelo solto e volumoso, os olhos mais
belos que nunca. Não disse nada. Só assentou umas quantas notas
enrugadas sobre a mesa e ficou olhando a sua irmã, que em lugar de
correr, estava detida.
— O que está esperando? - espetou-lhe. Lavínia olhava as
notas, congelada.
— Do que fala? – perguntou.
— Do Nick! - reclamou a outra. — O que está esperando? Quase
parece que não te deu conta até esta manhã de que essas
mensagens do famoso Senhor H eram para você!
— M... mas... - balbuciou Lavínia.
— Aí têm - sua irmã assinalou o dinheiro - estou certa de que o
que te retinha era o dinheiro, mas agora não. Compra uma passagem
para o Rio do Janeiro ou algo que te leve aonde diz que vai estar te
esperando.
— Não posso - respondeu Lavínia. — De onde tirou esse
dinheiro? Como...?
— São minhas economias - replicou Helena. — Não pode
acreditar que dava tudo ao Josué - adicionou orgulhosa. — Mamãe
também contribuiu o pouco que tinha – riu. — E Hector.
— Hector? - Lavínia elevou a cabeça, incapaz de pensar sequer
em aceitar esse dinheiro que sua irmã lhe oferecia. Helena riu.
— Sim, tinha dez pesos escondidos em um sapato velho, mas
não duvidou em tirá-los quando comentava com mamãe que deixaria
passar a oportunidade porque não têm onde cair morta - disse com
ternura incerta, que Lavínia nunca tinha conhecido desse modo. Ela
também sorriu. Com certeza eram os dez pesos que lhe tinha dado
Nick.
— Não posso aceitá-lo – disse. — Não posso. Melhor o chamar
por telefone e pronto.
Helena apoiou as mãos sobre a mesa. Os braceletes plásticos
que levava se chocaram contra a fórmica; com isso fez ruído de
propósito, pretendia parecer perigosa. Apontou para Lavínia com um
dedo indicador comprido e rodeado por um anel com uma enorme
pedra azul.
— Está louca? – reclamou. — Ele se esforça para fazer da
reconciliação algo especial e você está pensando em arruinar tudo
com uma ordinária chamada telefônica - ofuscou-se. — Além disso,
quero esse cunhado. Se não me trouxer esse cunhado, não penso te
deixar sair com outro.
— Helena... - suplicou Lavínia.
— Tem um cruzeiro! - exclamou a outra elevando as mãos num
gesto impaciente. — Acredita que não te permitirá me devolver os
poucos pesos que agora te estou emprestando?
Lavínia franziu o cenho. Dava-se conta de que sua irmã não
fazia referência ao cruzeiro ou ao dinheiro de Nick por interesse
próprio, a não ser para tranquilizá-la em relação ao empréstimo que
não se atrevia a tomar. Mesmo assim, não tinha ideia de como Helena
tinha chegado a essa informação.
— E você como sabe isso? - indagou preocupada.
— Todo mundo sabe! - replicou Helena. — Internet é um mundo
de informação, Lavínia, deveria te atualizar um pouco. Nem telefone
celular tem, vive nas cavernas, com essa televisão velha que até
deve ser preto e branco!
Lavínia olhou seu pobre televisor de quatorze polegadas contra
o que todos pareciam implicar nesse dia e até se sentiu culpada de
ter pensado em empenhá-lo. Umedeceu os lábios e voltou a olhar a
sua irmã porque esta seguia falando.
— Invadiu todas as páginas de Internet importantes com essas
mensagens para você - contou. Lavínia abriu a boca surpreendida,
tinha o cenho franzido.
— Também na Internet? - exclamou.
— Em todas partes - contou Helena. Tamara assentia com a
cabeça. Começou a enumerar com os dedos: — Vi suas mensagens
na Internet, na televisão, em jornais, revistas, reclames, pôsteres
publicitários, coletivos... e até escutei que liam algo seu na rádio!
Lavínia não podia acreditar. Agora resultava que todo mundo
estava a par das mensagens do Nick, menos ela.
— E se não for para mim? - temeu.
— Ah, sim, porque em nosso país sobram as Lavínias! - ironizou
Helena.
Lavínia tragou com força. Limpou as bochechas úmidas com as
mãos e tomou ar para serenar seu coração alvoroçado. Logo se
tomou a frente com as mãos.
— Está louco - sussurrou enquanto negava com a cabeça. —
Ficou louco.
— Louco de amor por você - repôs Tamara com um sorriso.
Lavínia suspirou.
— Está bem – disse. — Tenho que fazê-lo, devo arriscar, não?
Quem não arrisca, não ganha.
Tamara e Helena gritaram e saltaram de alegria.
Esgotado o dinheiro de que dispunha, Patrícia soube que já não
podia viver em um hotel de luxo e decidiu ir para casa de seu irmão,
que tinha mudado ao Neuquén a construtora que alguma vez tinha
liderado seu pai em Buenos Aires. E a Patrícia também pertencia
parte dessa herança, mas nunca se preocupou com ela porque tinha
outros lugares melhores onde conseguir dinheiro: seu marido e seus
amantes.
Tinha visto as mensagens que invadiam os meios de
comunicação, esses que seu ex-marido dedicava à costureira. Cada
vez que aparecia um sentia que podia arrebentar de raiva. Mas não
fazia nada. O único que lhe importava era voltar a sair nas revistas,
de braço dado com alguém importante, resguardada na fantasia de
que Nick ia procurar toda imagem em que ela aparecesse para lhe
seguir os passos. Ainda queria enganar-se pensando que ele sentia
saudades, embora muito dentro de si soubesse que isso não era
verdade.
A noite de sua chegada na casa de seu irmão, um velho amigo
da família apareceu para jantar. A Patricia nem sequer gostava, mas
não queria sentir que vivia da caridade de seu irmão e que habitava
uma casa em que não tinha nenhum poder, onde sua cunhada a
olhava com receio e seus sobrinhos não lhe levavam bem. Uma casa
onde ela era um quadro falso que decorava muito mal na parede.
Queria sair dali e esse homem podia ser sua porta de escape.
Por isso aproveitou uma breve ausência do resto dos integrantes da
mesa para estirar uma perna e acariciar com o pé a do homem, que a
olhou sem sobressalto.
— Queres que te mostre o jardim? - ofereceu Patrícia, mas o
que na realidade fazia era oferecer-se ela mesma. O homem retirou a
perna e a cadeira um pouco mais para trás, para que ela não o
roçasse.
— Eu gosto das mulheres mais jovens - replicou sem piedade.
— Lamento, mas você já está um pouco velha para estas coisas, não
lhe parece? Alguém tem que fazê-la notar se não se dá conta por si
mesma.
Patrícia abriu desmesuradamente os olhos e a boca, isso era o
pior alguém podia lhe haver dito. Dispunha-se a responder, mas teria
significado ficar em evidência, já que os outros tinham retornado e se
serviam a sobremesa que ela não ia comer. Tinha sido ferida em seu
ego, no mais profundo.
Capítulo 29
Lavínia tinha três dias para resolver a maior quantidade de
trâmites que pudesse e para terminar o trabalho das camisas, por
isso correu a fazer o passaporte no mesmo dia que tinha decidido
viajar. Para que o tramitassem como expresso, teve que pagar a
metade do que tinham arrecadado entre todos os que a tinham
ajudado a reunir dinheiro para a viagem. Soube que não lhe
alcançaria para a passagem de avião porque tinha que tomar um voo
direto e saía mais caro que os que faziam escala. Assim podia chegar
em três horas, em troca se tomava um com escala, demoraria entre
seis e oito. Se saísse antes, não chegaria a tempo o passaporte. Tudo
era uma complicação, mas confiava em que iria resolvendo pouco a
pouco.
Necessitava mais dinheiro, assim por sorte em uma casa de
penhores. Para isso recolheu todos os objetos que tinha
confeccionado, as que ficavam de quando as tinha exibido em Sonhos
e algumas próprias que já não usava, e as levou a direção
correspondente. Ali lhe disseram de muita má vontade que eles não
aceitavam roupa em troca de lhe dar o empréstimo.
Então retornou a casa e se aproximou do televisor.
— Sinto-o tanto - falava-lhe. — Prometo-te que te vou resgatar
logo.
— Está louca, sabia? - repreendeu-a sua irmã, mascando
chiclete de braços cruzados, com o quadril apoiado na parede. —
Falava com um televisor - Lavínia a olhou por sobre o ombro, sem
ocultar sua chateação. Que sua irmã se atrevesse a lhe impedir de
despedir-se de seu querido aparelho, que tinha comprado em uma
loja de usados quando se mudou, atou-lhe o coração. Estava tão
nervosa que chorava por tudo. Helena descruzou os braços e avançou
para ela. — Não sente saudades que com uma namorada assim
louca, e meu lindo cunhado também faltem um par de jogadores.
Pelo menos dois deve ter no banco de suplentes.
Ia desfazer-se do televisor, mas Lavínia a deteve, incapaz de rir
com a brincadeira. Tinha os olhos úmidos.
— Quero te agradecer, Helena – disse. — Eu nunca pensei que
você fosse ...
— Te ajudar? - completou a irmã. Lavínia encolheu de ombros
sem atrever-se a dar resposta. Helena riu. — É que eu também quero
viajar no cruzeiro de seu namorado, e para isso tenho que fazer que
se sigam vendo - brincou para não responder com a verdade.
Tampouco era mentira que queria ganhar a viagem, mas não era a
razão que a movia a fazer tudo o que estava fazendo.
Lavínia riu e permitiu que ela a ajudasse a carregar o rádio e o
televisor. Não obtiveram muito com ambos os empenhos, mas isso e
o dinheiro reunido antes alcançariam para a passagem e para que
Lavínia ficasse um resto por via das dúvidas.
Helena a acompanhou também à agência de turismo. Lavínia
explicou que necessitava uma passagem direta para o Rio do Janeiro
e que tinha que ser para sábado, que lhe permitisse chegar ao porto
às três da tarde. Pensava que com três horas entre sua chegada e a
partida do navio seria suficiente para dirigir-se ao porto, completar os
trâmites e abordar.
Necessitava da maior quantidade possível de horas em Buenos
Aires para dar tempo a que lhe chegasse o passaporte. Dos vistos
teria que esquecer-se porque não lhe chegava o dinheiro, o tempo
nem a informação disponível para os conseguir. O que mais lhe
importava era chegar ao Rio do Janeiro.
Depois de introduzir os dados no computador, a recepcionista
anunciou que dispunha de um voo para sábado ao meio dia e meia,
era o que partia permitindo chegar no horário e lhe poupava a maior
quantidade de tempo para receber o passaporte. Lavínia acessou a
reservar um espaço nesse voo. Para isso disse seu nome e
sobrenome.
— Ah, não - retratou-se a mulher de repente. Elevava suas
sobrancelhas marrons. — Desculpe, não sei por que primeiro me
apareceu uma coisa e agora outra - tocava o monitor. — Esse voo
está completo. Todas as passagens para esse dia estão esgotadas.
A alma de Lavínia estremeceu. E agora o que faria? Se não
estava em casa até o último momento, não receberia o passaporte.
Como viajaria sem ele? Não poderia sair do país, com sorte a
deixariam passar e procurar Nick no navio, porque se chegavam a lhe
solicitar a documentação para lhe permitir abordar, estava perdida.
Teria que chegar ao Rio do Janeiro para nada.
Teria que renunciar, como a tantas coisas na vida, só que esta
era a mais importante que jamais tinha resignado. De repente a
mulher voltou a arquear as sobrancelhas.
— Ah - pronunciou esse som muito rápido - mas você já tem
uma reserva nesse voo.
Lavínia franziu o cenho. De repente o coração lhe pulsou de
novo.
— Impossível – replicou. — Eu não reservei nada. - Helena lhe
pegou na perna para que se calasse. Sua irmã não podia ser mais
boba e tão honesta que era! A empregada da agência riu. Escutou-se
o ruído do globo de chiclete arrebentar nos lábios de Helena.
— Ao que parece estava pensando em viajar muito - disse a
senhora - porque de fato tem uma reserva na primeira classe de cada
voo com destino ao Rio do Janeiro de todas as linhas há uma semana
até o sábado.
Lavínia quase se escorregou do assento.
— O que? - balbuciou a beira de um desmaio. Helena se
inclinou para frente.
— Pode imprimir a passagem ou um comprovante, ou algo? -
pediu muito rápido, com os olhos chicoteados. Desde não ter sido por
ela, Lavínia teria saído do negócio sem poder articular palavra, não
teria se dado conta de pedir o comprovante de sua passagem.
— Sim, claro - respondeu a vendedora amavelmente.
— Peço que desculpe - disse-lhe Helena. — Minha irmã não tem
nem a menor ideia de quem é seu namorado - sorria enquanto
mascava o chiclete.
Em qualquer outra oportunidade, Lavínia teria ralhado com o
olhar por fazê-la ficar mal frente à alguém, mas não o fez. Não podia
mover-se, ficou com os olhos fixos no bordo do escritório e as mãos
caídas sobre as pernas.
Tudo era para ela. Já não havia dúvidas, Nick estava fazendo o
impossível para recuperá-la, inclusive enfrentar-se aos deuses
inimigos. Isso a fez tremer. Deixou-a muda, quieta, emocionada até
as lágrimas. Um mortal que se acreditava tão onipotente para
desafiar o mesmo destino não podia ser outro louco pago de si
mesmo mais que Nick.
Se não fosse por Helena, não teria levado a passagem nem
teria se levantado do assento da agência. Do mesmo modo silencioso
e abstraído do mundo caminhou até sua casa, escoltada por sua irmã,
que a levava pelo braço.
— Troque de cara - ordenou-lhe Helena. — Em lugar de que irá
te encontrar com o amor de sua vida parece que morreu alguém.
É que tinha morrido alguém, pensou Lavínia. O Nick que tinha
conhecido. Tinha medo, estava nervosa, tudo tinha sido tão rápido
que lhe parecia uma loucura. Rápido como se movia o antigo e o
novo Nick.
Chamou Javier e se desculpou de novo por não poder cumprir
mais rápido com o programado; pediu-lhe desculpas mais vezes das
que lhe tivesse parecido apropriado pedir em qualquer outra ocasião.
Ele a compreendeu, só que lhe fez a advertência de que não podia
esperar mais de um mês porque queria lançar essa coleção para o
verão seguinte.
Lavínia trabalhou sem descanso para terminar as camisas e até
com ajuda de Tamara não pôde adiantar tudo o que necessitava. Foi
então quando apareceu Cristina e também ficou a trabalhar. Era boa
costurando, descobriu Lavínia. Possivelmente sim tinha algo de sua
mãe, depois de tudo, era essa capacidade. Até pensou em lhe
oferecer trabalho se crescia como escritório de costura.
Helena também colocou mãos à obra. Ela não era nada boa
com a máquina, mas servia para pregar botões.
— Não sei como vou lhes pagar isto - dizia Lavínia enquanto
engomava e acomodava as camisas que levaria a marca ao dia
seguinte.
— Somos nós as que estamos em dívida com você - replicou
Helena. Cristina tinha ficado calada.
Tanto trabalharam que o dia da viagem chegou logo. Lavínia
armou uma bolsa singela, com poucos objetos e elementos de
higiene. Pensava que poderia levar consigo para evitar uma possível
perda.
Se algo a punha nervosa era que o passaporte não chegava. Às
dez e meia da manhã, decidiu ir por ele.
No escritório lhe disseram que não estava pronto, que tinha
sido processado como uma solicitação normal.
— Senhora - voltou a explicar Lavínia - eu paguei por um
trâmite expresso. Note-se neste papel que vocês mesmos me deram
– mostrava-se a borda do pranto.
— A ver - intrometeu-se Helena - procure, por favor. Só
procure. Possivelmente aí lhe diz que o processaram como um
trâmite normal, mas igual se fez expresso, como devia ser.
— Se aqui disser que se tramitou como normal, deverá esperar
os trinta dias que demora em chegar a sua casa - replicou a mulher,
inflexível.
— Faça o que diz minha irmã - rogou Lavínia. — Por favor.
Helena fez de sua boca um imenso círculo. Tirou os óculos de
sol só porque sem eles poderia ver melhor a sua vítima, que andava
entre os empregados, controlando.
— Iujuuu, Franciscooo! - clamou elevando um braço, com um
tom de voz fingido. Lavínia a olhou com o cenho enrugado igual ao
homem, que correu para ela.
— Por favor, aqui não – suplicou. — Silêncio!
Helena lhe sorriu. Conheciam-se. Não fazia falta saber de onde.
— Eu me calo com gosto, mas poderia nos fazer um favor?
Em menos de meia hora, Lavínia teve seu passaporte na mão.
Tinha estado guardado em um armário errado.
Embora a coisa ficasse feia, depois se arrumava. Quase parecia
que duas forças se opunham em um plano que ela não podia
controlar, dirimindo se lhe correspondia ou não chegar até Nick.
Leandro, o primo de Tamara, esperava-as fora para leva-las ao
aeroporto, só que seu velho Mustang não queria arrancar.
— Parece mentira! - exclamou dando uma patada na direção. —
Cada vez que temos que fazer algo importante esta sucata deixa de
funcionar! - queixou-se. Tal como tinha acontecido no casamento da
Tamara.
Lavínia sabia: tudo lhe saía mal, e ainda faltava mais. Justo
esse tinha que ser um dia de má sorte.
Nervosa e triste como estava, resignou-se a seu destino.
— Isto não tem nenhum sentido, Helena - disse cabisbaixa. —
Faltam menos de oito horas para a partida do Paradise e eu ainda
estou aqui, turma de trabalhadores em Buenos Aires.
Tamara, que também estava ali, se aproximou.
— Deixa de ser boba e tomemos um coletivo - propôs.
— O aeroporto é longe não chegaríamos a tempo.
— Toma um táxi com o dinheiro da passagem até o Rio -
sugeriu Helena - depois de tudo, não teve que gastá-lo. Nós lhe
acompanhamos e voltamos de trem ou de coletivo.
Claro! Como não lhe tinha ocorrido antes? Ainda havia
esperanças, ainda ficavam armas para lutar. E as coisas voltavam a
resolver em um abrir e fechar de olhos.
Lavínia correu a fazer o que sua irmã lhe tinha sugerido, mas
foi Helena a que conseguiu deter um carro, porque a Lavínia todos
passavam por cima. Quem não ia parar para a atrativa que era sua
irmã e da forma que se vestia? As três subiram junto com a bolsa e
pediram ao taxista para chegar ao aeroporto de Ezeiza o mais rápido
possível. Leandro as saudou agitando a mão junto a seu Mustang.
Contudo, chegaram às onze e meia. Lavínia correu para
apresentar-se no check-in, onde aprovaram sua passagem, mas não
sua bolsa.
— Isso tem que despachá-lo - disseram-lhe.
— Não! - reclamou ela e abraçou com mais força seu pequeno
tesouro. — A bolsa vem comigo ou nenhum viaja.
— Nesse caso, nenhum sobe ao avião - respondeu o
empregado.
— Dê-lhe, Lavínia, deixe que o levem - sugeriu Tamara.
— Não pode ocorrer a mesma desgraça duas vezes, não? -
demarcou Helena, que já estava ciente do conto da perda da valise e
os vestidos feitos de cortinas.
— A mim sim - respondeu Lavínia.
— Mas esta vez não... - tentou convencê-la Helena. — Tome.
Pegue a carteira. Ponha aqui os papéis, o dinheiro, as coisas básicas,
ora.
Apressada, Helena esvaziou a bolsa, grande mistério feminino,
nas mãos de Tamara, que ia guardando tudo nos bolsos. Dela caiu
um batom vermelho, vários bilhetes enrugados, um pacote de lenços
descartável, lenços higiênicos para bebê - lenços higiênicos para
bebê? Perguntou-se Lavínia com o cenho franzido - o cartão de
identidade, moedas, uma tira de chicletes, um alfinete de gancho,
uma almofada, pastilhas anticoncepcionais e três preservativos que
aterrissaram sobre os pés da Lavínia. As três se agacharam para
recolhê-lo ao mesmo tempo, mas Helena o fez com pressa.
Com a mesma velocidade, passaram os documentos, o dinheiro
e outras coisas de Lavínia à bolsa de Helena, e com o ânimo de sua
irmã e sua melhor amiga, Lavínia acessou a despachar a bolsa. O fez
com receio, abraçou o objeto o maior tempo possível e o deixou na
esteira como que velando-o.
Uma vez que a mala vermelha desapareceu de sua vista,
dedicou-se a abraçar Helena e a Tamara e a escutar os conselhos de
último momento que lhe saudaram.
— Muito cuidado nessa cidade que quase não conhece disse
Tamara.
— Toma um táxi até ao porto - demarcou Helena.
— Não se preocupe por nada, desfrute da viagem, as tensões, o
reencontro - sonhou sua amiga. Tomava uma mão e Helena a outra.
— Fica com os chicletes - adicionou Helena lhe pondo a tira
verde na mão. — Dizem que nos aviões se tampam os ouvidos e é
bom mastigar e tragar saliva para aliviar. E o mais importante: traga-
me algo lindo de lembrança.
Lavínia só assentia com a cabeça e agora também se aferrava à
tira de chicletes como fazia um momento à bolsa.
— Vamos, ande! - exclamou Tamara. — Tchau!
— Tchau - respondeu Lavínia, ainda aturdida pela velocidade
que levava tudo e pelo pouco que tinha dormido nesses três dias.
— Adeus! - saudou-a Helena, sorridente, vendo-a afastar-se.
Passou pelo controle de segurança. Apanharam-na em
migrações.
— Senhorita Dickinson? - perguntou-lhe um militar. Lavínia
arqueou as sobrancelhas.
— S... sim... - assentiu com medo.
— Vai ter que nos acompanhar.
Sentaram-na em uma sala e lhe fizeram todo tipo de perguntas.
— Por que tinha reservado todos esses voos?
— Por que insistia em levar a mala com você no avião?
— Por que seu passaporte não tem mais de três dias?
— Não leve a mal, senhorita Dickinson. Fizemos para sua
própria segurança e a dos passageiros.
Ela olhava alternadamente a cada homem, pálida e confundida.
Ali fazia tanto frio que tremia. Possivelmente eram os nervos, não se
dava conta, porque outros pareciam bastante acalorados.
Teria que ter chamado Nick há três dias e deixar de poder. Não
fazer caso a Helena e embora sua reconciliação fosse a mais ordinária
do mundo, não arriscar-se a que jamais existisse. Devia de ter
pensado antes, dado seu amontoado de má sorte.
— Tenho que apanhar esse avião – disse. - Espera-me um
cruzeiro no Rio de Janeiro...
— Vai para um cruzeiro? - intrometeu-se outro, assinalando-a
com o dedo.
Lavínia sabia que estava desalinhada e isso lhe jogava contra
para que lhe acreditassem. Não se tinha posto mais que um jeans e
uma regata, a maquiagem devia haver se deslocado pelo suor e as
lágrimas retidas, e com a agitação do passaporte e o táxi devia ter o
cabelo como uma vassoura, mas tampouco era essa justificativa para
que pensassem que ela era uma espécie de terrorista.
— Perguntamo-nos com que ganhos pôde você ter reservado
uma passagem na primeira classe de todos os aviões com destino ao
Rio do Janeiro de toda a semana.
— Eu não o fiz - replicou Lavínia, mas não acabou de falar, pois
um sujeito de terno entrou em quarto trazendo sua mala vermelha.
— Encontramos sua bagagem - anunciou.
Lavínia olhou seu relógio de pulso. O voo partia em cinco
minutos.
— Vou perder o avião – disse - e de verdade tenho que estar no
Rio do Janeiro às cinco da tarde.
Um dos tipos de terno cruzou os braços.
— E por que tanta urgência? - perguntou especulativo.
Lavínia não podia acreditar. Queria gritar, queria golpear a
alguém, mas em troca estava calada e pálida na cadeira. Resignação.
Isso era o que sempre tinha tido a respeito de tudo, e teria que
aplicá-lo também nisto. Tinha visto as mensagens do Nick graças a
sua irmã, que tinha feito uma boa recopilação de quase todos. Tinha
chorado e rido com o que Nick lhe tinha escrito, mas por sobre todas
as coisas se deu conta de que sim tinham que estar juntos.
Agora pensava, em troca, que não havia anjo algum que
pudesse contra seu infortúnio, e que possivelmente o destino os
queria separados.
Olhou o relógio: Meio dia. Baixou a cabeça, resignada. Tinha
perdido o voo.
— Aqui não há nada mais que roupa, roupas femininas,
desodorante... - enumerou o que, agora Lavínia notava, tinha
revistado sua bolsa. E não tinha reparos em despir sua intimidade,
punha-a em evidência em frente de todos.
— Bom, ao parecer vai chegar ao cruzeiro - adicionou o outro.
Lavínia pensou que estava brincado com ela, mas o pior foi descobrir
que o dizia a sério.
Quando a liberaram, eram já meio dia e meia. O próximo voo
saía as duas, com sorte poderia chegar ao Rio de Janeiro às cinco.
Carregaram sua bolsa com as malas do outro avião e a fizeram
esperar até que lhe permitiram abordar.
Lavínia olhava para todas as partes. Só lhe faltava que outra
coisa mais se interpusesse em seu caminho. De todos os modos não
ia entusiasmada, não avançava pelo corredor comprido e fechado
com o coração emocionado, a não ser cansada e taciturna.
Quase não tinha dormido nem comido em três dias, tinha
suspenso outra vez a grande oportunidade de sua vida no terreno
econômico, e tudo por seguir uma ilusão que se diluía com cada
segundo que corria no relógio.
A viagem de avião não apresentou maiores complicações,
exceto os ouvidos lhe tamparam e acabou enfiando na boca três
chicletes dos que lhe tinha dado Helena. Logo chegaram as
turbulências. Por momentos o avião se agitava como uma
coqueteleira e em outros se deslizava pelo céu como água por um
tobogã. Durante os movimentos, Lavínia se agarrava com força aos
apoios de braços e pensava que odiava com toda a alma voar, que
não queria fazê-lo nunca mais. Quase parecia com o bordo de
desmaiar, mas não. Resistia a tudo até que a máquina se suspendia
serena no céu da tarde e então a experiência já não lhe parecia tão
odiosa.
Levava a bolsa de Helena com o dinheiro e os documentos.
Nem sequer tinha outros misteres pessoais, o que era isso? Sentia-se
estranha, desolada, como se em lugar de ir-se a outro país estivesse
indo fazer um recado ao armazém da esquina.
Por sorte a viagem não se estendeu mais de três horas. No
Aeroporto Internacional do Galeão, Lavínia correu à esteira de
bagagem e esperou. E esperou, e esperou, e esperou, mas, como não
podia ser de outra maneira, sua querida bolsa vermelha jamais
apareceu.
Olhou seu relógio de pulso. Não tinha tempo de entender-se
com uma empregada que falava português para terminar assinando
um formulário de reclamação sem promessa de achar o que
procurava. Não valia a pena perder o tempo com isso quando eram
cinco e meia da tarde.
De modo que, como costumava fazer na vida, resignou-se
sobre a bolsa vermelha em função de não resignar a Nick. Se ela não
se apresentava, ele sentiria que o tinha desprezado, que o negara, e
ela não podia permitir-se isso. Era tão tarde que ele certamente já
pensava que não apareceria.
Passou bem por migrações e pela alfândega, não levava nada
que revisar nem bagagem que declarar, mas teve que completar um
formulário e isso também lhe levou tempo.
— E agora o que? - perguntou-se em voz alta enquanto corria
para a saída, obstinada à carteira como se nela levasse a vida.
Não podia ser que não se passasse mais nada. Esperava o
seguinte, sabia que viria, e em lugar de resignar, começou a
preparar-se para o próximo infortúnio.
A multidão se amontoava com malas, carrinhos, chapéus
estrambóticos e caras de feliz aniversário enquanto Lavínia sabia que
seu rosto não devia refletir mais que esgotamento físico extremo e
uma desnecessária sensação de leveza.
Fora, os táxis partiam um após o outro levando aos
passageiros. Fez gestos com as mãos e até com uma perna, mas,
como era de esperar, nenhum parava. De repente, de um nada, um
ao que ela nem sequer tinha visto se deteve a seu lado e lhe abriu a
porta. Lavínia sorriu. Um deus que sem dúvidas não era o seu
acabava de lhe colocar um táxi a seu serviço, mas assim que meteu
um pé, outra se interpôs e pretendeu lhe arrebatar o tesouro tão
prezado. Lavínia semicerrou os olhos.
— Nem sonhe - resmungou. E arrancou à loira descarada que já
subia no automóvel.
— Louca! - gritou a mulher em perfeito castelhano quando ficou
parada em meio das pessoas, vendo o carro arrancar. —
Desenquadrada!
Lavínia não lhe emprestou mais atenção. Eram já cinco e
quarenta da tarde e ainda lhe faltava um trajeto de pelo menos trinta
minutos para chegar ao Paradise. Entre transporte e papelada,
atracaria tarde. Muito tarde. Mas não se permitiu pensar nisso.
— Senhor - falou o tripulante as costas de Nick. Ainda com as
mãos no corrimão do balcão, ele se deu a volta.
Tinha posto um traje cor nata e uma camisa branca sem
gravata. Com o rosto iluminado pelo sol de verão e o olhar tão sereno
como o espírito, escutou um pouco abstraído o que o tripulante tinha
para dizer.
— Já é hora de partir – anunciou. — Os passageiros estão
começando a inquietar-se. Zarpamos?
Nick voltou a olhar o mole com os olhos entrecerrados.
— Não - replicou com extraordinária segurança. — Ela virá,
estou certo. Esperaremos.
O táxi não avançava, estava estagnado em meio de uma
avenida. O taxista lhe deu um par de explicações em português, mas
Lavínia entendeu pouco. Pela patente, deu-se conta de que um
automóvel de turistas argentinos se deteve um pouco mais adiante,
então pediu ao homem que a esperasse e desceu do carro para
aproximar-se do outro.
Assim que cercou diálogo com as pessoas do Fiat cinza, Lavínia
lhes perguntou se sabiam a que se devia a tardança e se o porto se
achava muito longe. Informaram-lhe que estavam reparando a rua,
por isso a demora, e que o porto estava relativamente perto.
Indicaram-lhe como chegar graças a um mapa que levavam no
porta-luvas e ela agradeceu, lhes desejando boas férias.
Retornou ao táxi, pagou sua viagem com os poucos reais que
tinha trocado antes de sair de Buenos Aires e agradeceu ao condutor,
disposta a correr até seu destino. Tantos anos de praticar esportes
deviam servir para algo.
Nada era tão fácil. De repente e sem que o sol desaparecesse,
caíram grandes e pesadas gotas de chuva.
Só isso lhe faltava, ser vítima do clima tropical e molhar-se até
a medula. Mas em lugar de chorar por sua patética situação, Lavínia
riu. Riu com vontade; não tinha roupa para trocar, nem sequer
passagens de volta a Buenos Aires, e se não conseguisse dar com o
Nick, ficaria na turma de trabalhadores em um país desconhecido,
entre estranhos, com gente que falava outro idioma e sem uma só
pessoa que a resgatasse. Entretanto, já não se sentia triste, nem
nervosa, nem tinha medo.
Que mais dava? Por que tinha que resignar-se sempre? Por que
não podia fazer como Nick e chegar até as últimas consequências, até
onde caísse rendida não pela resignação, mas sim pela morte,
embora sangrasse lentamente no intento? Podia renunciar a tudo,
menos a ele.
Então descobriu que a chuva lavava seus pensamentos, que o
único ao que tinha que resignar-se era a sua má sorte, e a que a
batalha entre deuses se desenvolvesse no céu.
"Não são os eventos, mas sim como toma, o que assinala um
bom ou um mau dia", havia-lhe dito Nick. Eram umas das primeiras
palavras que lhe tinha dedicado e Lavínia alcançava às compreender
logo agora.
Rir de sua má sorte foi o mais formoso que lhe pôde passar
entre tanta injustiça e a impulsionou a seguir adiante.
Chegaria até as últimas consequências. Até o final.
Atracou no porto feito um trapo molhado e, como não podia ser
de outra maneira, nem bem pôs pé debaixo do teto, deixou de
chover. Dentro do recinto, dirigiu-se ao empregado de abordagem e
ali lhe explicou, agitada, sem fôlego, que tinha uma reserva no
Paradise, mas que não dispunha das passagens. Quando lhe disse seu
nome, ele nem sequer introduziu seus dados no computador.
Respondeu com o sorriso amável, característica dos aldeãos que se
dirigisse a migrações com o papel que lhe estendia.
— Alguma bagagem que despachar? - perguntou com o mesmo
sorriso complacente.
Lavínia a devolveu.
— Não trago bagagem - respondeu. Ele assentiu em silêncio e
lhe indicou com a mão a direção de migrações.
Lavínia se perguntava o que seguiria. Possivelmente algum
terrorista famoso levava seu nome e a detinham por isso. Ou talvez a
vissem tão desalinhada que acreditassem que ia tomar um cruzeiro
para um assalto. Nada disso aconteceu. Por milagre, tudo parecia
haver-se detido, como se seu deus vingativo se tomasse um
descanso ou um anjo o tivesse amordaçado. Sentia-se como quando
cobriam a boca a alguém para que não pudesse falar.
O trâmite foi muito rápido, mas mesmo assim como tinha medo
de que o navio se afastasse sem ela, correu. Com tanta má sorte que
pisou de mau jeito e torceu um tornozelo, caiu de boca no piso e lhe
doeu até a alma. A remadora branca, da cor que para ela e para o
Nick resultaria significativo, dando o toque final de
desproporcionalidade de sua imagem.
Golpeou o piso com a mão, sentia bronca e vontade de
destroçar algo, mas para não romper um osso, o qual era bastante
provável dada a rajada que trazia, seguiu caminhando.
Como ascensão ao navio, só ficava a plataforma que não
conduzia ao interior do casco do navio, a não ser mais acima, por isso
era larga e levantada. Lavínia se sentiu aliviada de vê-la e apurou o
passo até que se deteve paralisada. Reencontrava-se com o formoso
e imenso cruzeiro, mas só com suas características físicas, porque
esse não era o Paradise.
A alma caiu aos pés. Como podiam existir dois navios gêmeos?
Como podia um navio idêntico ao Paradise chamar-se...?
Abriu a boca, os olhos se encheram de lágrimas.
Lavínia. O cruzeiro se chamava Lavínia. Diziam-no as letras
negras que manchavam sua imaculada brancura.
Largou-se a chorar. Tremia e se cobria a boca com as mãos
para não gritar. Isso não era certo, não podia ser real. Tantos
sentimentos ao descoberto a deixaram indefesa.
Avançou até o pé da plataforma ascendente, onde voltou a ficar
paralisada. Conduzia a um topo que era um balcão terraço decorado
com grinaldas e flores brancas. De pé, com as mãos no corrimão e
um sorriso preguiçoso nos lábios, estava Nick. Tão arrumado que a
deixou sem fôlego, tão sereno que parecia nunca ter duvidado de que
ela iria a seu encontro.
O céu, de um vivido azul, abatia-se sobre ele e o fazia parte de
uma pintura, a de um herói mitológico. De fato Nick não tinha
chegado de avião até Rio do Janeiro, a não ser nesse mesmo navio,
tudo para cumprir sua promessa de ser o N que resgatasse a Lavínia.
A guerra da que N provinha, já a tinha brigado, e tinha durado muitos
anos.
Parecia que jamais tinha chovido. O sol o iluminava por
completo, brilhava como uma imensa bola de fogo suspenso sobre
sua cabeça e não se cobriu porque ele se movesse para um lado,
onde o corrimão estava aberto para permitir o acesso ao balcão, com
intenção de esperá-la.
Não podia sentir-se mais satisfeito, mais amado. Depois de
lutar e sangrar-se, ali estava o topo, uma que jamais poderia lhe
resultar indiferente. Sentia que a alma se elevava, voava longe do
passado e se abria ao futuro. O coração lhe pulsava como nunca
antes o tinha percebido. Havia muito mais que ambicionar, mas o
lucro que tinha ante seus olhos encheria sua vida para sempre. Só
faltava que Lavínia também subisse ao céu.
Lavínia sentia que o peito lhe ia estalar. Não podia ser mais
feliz. Não podia sentir-se mais afortunada. Avançou um passo e para
dar o outro se cambaleou por causa da dor em seu tornozelo. Ao vê-
la, uma ternura inusitada invadiu o interior de Nick, que sorriu ante a
imagem.
Lavínia estava empapada, com a roupa branca suja, o cabelo
emaranhado e, além disso, mancava. A imaginação do homem não
alcançava a precisar as vicissitudes pelas que ela teria passado
sozinha para reencontrar-se com ele no navio.
Não podia ser mais feliz. Não podia amar mais.
Queria protegê-la, cuidá-la, lhe fazer esquecer todo o mal e
jamais permitir que algo a fizesse chorar de novo, nem sequer ele.
Por isso abriu os braços para recebê-la sem poder apagar o sorriso de
seu rosto e o olhar iludido.
Em meio da levantada plataforma, Lavínia acreditou que cairia
redonda no chão. Não lhe subtraíam forças, entretanto escalava, não
perdia de vista seu objetivo banhado de sol e avançava embora lhe
tremessem as pernas e o pé lhe impedisse de caminhar com soltura.
Cada vez faltava menos, o caminho se cortava e finalmente,
depois de ter alargado os últimos passos, chegou ao topo.
Nick a apanhou entre os braços, pegou-a a seu peito e a
apertou com força, Lavínia se pôs a chorar, incapaz de reter as
lágrimas, que eram a amostra da explosão de emoções que
experimentava. Entre esses braços não se sentia esgotada, nem
temerosa, nem sozinha. Todo cansaço tinha desaparecido dando
passo a uma energia desconhecida.
Nick fechou os olhos, detento da intensidade do amor que
sentia, da mescla de sentimentos que se agitavam em seu interior
como vaga-lumes e lhe umedeciam o olhar.
— Sabia que viria - disse-lhe com alívio.
— Perdão por chegar tarde - desculpou-se ela, ainda contra seu
peito. Meus fatos não me permitiam o avanço.
Nick abriu os olhos e deixou escapar a risada.
— Não se preocupe - consolou-a. — Minha deusa é muito mais
forte e pode contra todos.
Lavínia entendeu que Nick se referia a sua mãe e se deixou
vencer outra vez pelo pranto que não era por escutar que a passarela
se movia. Separou-se de Nick com urgência. Elevou os olhos úmidos
para ele, que não lhe liberava a cintura.
— Não posso abandonar o porto - anunciou com pesar. No olhar
de Nick havia tanto amor e tanta ternura que Lavínia se sentiu capaz
de tornar-se a chorar de novo.
— Por que não? - perguntou ele, sem preocupação alguma.
— Não tenho visto, não me deu tempo para isso - respondeu
Lavínia com a voz afogada. — Logo que tenho isto...
Elevou a mão tremendo e mostrou ao Nick o passaporte, o
documento de identidade e outros registros que correspondiam a
migrações e à mala que tinham perdido no aeroporto. Todos esses
papéis estavam enrugados, e a palma da mão raspada pela queda
quando lhe tinha torcido o tornozelo.
Nick baixou o olhar, estudou rapidamente o que Lavínia lhe
mostrava e voltou para ela com serenidade.
— Perdão - desculpou-se. — Não podia te ajudar com isso -
referia-se ao visto; trâmites que deviam realizar-se pessoalmente e
que, se pudesse, também teria arrumado por ela, só para lhe facilitar
a chegada. — De todos os modos, não têm que preocupar-se –
continuou - nem todos os lugares que vamos pedem que apresente
um visto.
— Ah... - replicou Lavínia, surpreendida. Olhou seus papéis na
mão ainda estendida e logo voltou a olhá-lo. — E você sim têm todas
as permissões como deve ser? - indagou. Parecia assombrada,
incapaz de acreditar que Nick a sustentava ainda entre seus braços.
— Sim - respondeu ele com sinceridade. - Mas isso não importa
- adicionou em seguida. — Chegaremos tão longe como pudermos,
mas sempre juntos. Ficarei com você no último porto ao que
possamos acessar sem um visto.
— E depois? - perguntou ela. Nick sorriu.
— E depois voltamos a começar. Conseguimos o visto que
necessite para a próxima vez, porque haverá uma próxima, e nessa
oportunidade, chegaremos ainda mais longe. Assim até que voltemos
a começar muitas vezes, cada uma nos impulsionando com mais
força, até que alcancemos as estrelas.
Lavínia sorriu encantada, incapaz de acreditar o que vivia.
Parecia-lhe um sonho e tinha medo de que não fosse real. Nick
notou, por isso baixou um pouco a cabeça e se aproximou do rosto de
Lavínia para respirá-la. Não podia deixar de olhá-la, não podia ficar
calado.
— Sabe que não sou bom para falar do que sinto - disse.
— Não importa - interrompeu ela. — Escreveu tudo e, além
disso, é bom com os atos. Olhe tudo o que fez - indicou separando os
braços do corpo. — Isso é o que importa.
— Agora que quero falar, não me deixa. - brincou ele. Lavínia
soltou uma risada entre lágrimas. — É que com você não posso ficar
calado - seguiu dizendo. Logo seu olhar, que já era por si profundo,
transformou-se, dando passo a mais entristecedora das carícias sem
tato que ela jamais tinha experimentado. — Lavínia... és o futuro
grandioso que me prometeu minha mãe - Lavínia voltou a chorar. Ele
beijou suas lágrimas. — Não quero que chore, nem sequer de
felicidade. Quero que me perdoe, quero que me escute. Para mim é a
pessoa mais especial e formosa do mundo. Não imagina como senti
saudades, o que me custou esperar até hoje para que este dia, o
primeiro do resto de sua vida, seja completamente distinto ao de
qualquer outro mortal - ela sorriu entre lágrimas. Nick tomou o rosto
entre as mãos sem deixar de olhá-la com esses olhos cinzas que
devoravam o universo. — Quero que saiba que eu adoro seus olhos,
sua maturidade, sua dignidade. Que quero passar o resto de meus
dias com você, que não imagino filhos meus que não sejam os teus.
Mas tudo isso não me basta. E tampouco é suficiente para mim.
— É tudo, Nick... - falou ela, afogada de emoção.
— Não, não é - respondeu ele. — Não é nada sem que a tudo
isso adicione que te amo. Amo-te, Lavínia, como jamais acreditei que
seria capaz de amar.
Lavínia tremeu. Pensou que tendo lido resultava suficiente, mas
assim que escutou Nick pronunciar essas palavras, soube que isso
não era certo. Ouvir de seus lábios se sentia como música, como um
encantamento. Saber que ele se entregava a ela em corpo e alma,
que lhe confiava seu interior e seus fundos sentimentos, deixou-a
débil e afligida.
— Oh, Nick... - balbuciou. Agora era ela a que não sabia
pronunciar palavra. — Diga-me outra vez, por favor – pediu. — Uma
vez mais.
— Muitas vezes mais - repôs ele. — Penso lhe dizer isso a toda
hora, todos os dias. Ligarei-te do escritório para dizer isso. Deixarei
escrito isso em mensagens por toda a casa, direi-lhe isso ao
despertar, ao dormir, ao morrer.
— Diga-me agora... - pediu ela. — De novo.
Lavínia tinha fechado os olhos. Como Nick lhe apertou
ligeiramente a cara, ela os voltou a abrir. Ele queria que seus olhares
se encontrassem para pronunciar essas palavras.
— Amo-te – repetiu - amo-te, amo-te, amo-te...
Disse-o tantas vezes que Lavínia lhe deu um beijo para calá-lo.
Depois ele a elevou ao colo e a carregou até o quarto para que não
caminhasse dolorida. Um tripulante se aproximava do balcão para
fechar a porta: Lavínia zarpava da costa.
Capítulo 30
Nick deixou Lavínia sobre a cama. Embora quisesse chamar o
médico por telefone para que visse seu pé ferido, não pôde afastar-se
de seu lado. Ela tremia de emoção cada vez que ele a olhava, porque
a observava com tanta intensidade que a fazia sentir grande e
pequena de uma vez, fazia tremer a alma.
— Perdão - desculpou-se tocando o belo traje claro de Nick. —
Sujei-o.
Nick jogou um olhar fugaz ao traje sujo e úmido, e logo voltou
para Lavínia sorridente.
— Não tem importância – assegurou. — Com uma esposa
desenhista pouco me importa perder um traje - Lavínia sorriu. Ele,
em troca, ficou muito sério. — Sei que a primeira vez que te disse
que convidaria para nossas bodas não me acreditas-te. Espero que o
faça agora. Não quis ser prescritivo e sei que você não gosta de fazer
as coisas às pressas, mas já sabe... não posso com meu gênio.
Possivelmente não possa trocar isso e espero que me perdoe se não
puder.
Lavínia se deu conta de que Nick estava a ponto de dizer algo
importante.
— Eu não quero que mude - recordou-lhe. — Amo-te assim
como é.
Nick sorriu, a curiosidade matava Lavínia, mas ela se manteve
em silêncio, com os olhos muito abertos, tratando de respirar.
— Era uma surpresa, mas a estou arruinando - lamentou-se ele
cabisbaixo. — Pensava perguntar primeiro. Não agora, a não ser em
um mês, mais ou menos, tendo preparado algo que não te faça
duvidar da resposta. - Lavínia tragou com força. Esqueceu-se o
vocabulário.
— Eu nunca poderia duvidar dessa resposta - comentou como
ao passar.
— Argh! - rugiu Nick. — Mas por que sou tão estúpido?
— Não é estúpido - repôs ela lhe acariciando a cara. Ele voltou
a olhá-la.
— Tinha pensado em te levar a uma manhã de campo, a um
lugar onde estivéssemos sozinhos - contou com emoção. — Ia
escrever com flores que te amo, e ia fazer que um avião passasse
imprimindo minha pergunta no céu.
Lavínia tremeu. Sim, Nick falava a sério. Era capaz de fazer isso
e muito mais. Umedeceu os lábios ressecados, espremeu uma mão
com a outra. Nick franziu o cenho.
— É muito clichê, não? – interrogou. — Devia ter pensado algo
mais original. Algo digno de você.
— É perfeito - replicou Lavínia com voz afogada. — Assim, tal
como o está fazendo agora - sorriu emocionada. Nick lhe devolveu o
sorriso.
— Já nos reservei casamento para dentro de seis semanas -
anunciou ele vendo o acolchoado branco sob suas mãos. — Se
também quiser que o façamos na igreja, tome você a decisão. Me
basta com o símbolo.
Lavínia franziu o cenho e suspirou. O corpo lhe encheu de
cócegas.
— Nick... - balbuciou.
— Ah, sim,a pergunta - reagiu Nick. — É que ainda não tinha
pensado algo lindo para dizer, e se a faço só agora vou dizer o
primeiro o que me venha à mente. Não importa?
Lavínia não tinha murmurado seu nome para ouvir a pergunta,
o que podia lhe importar a estúpida pergunta, se ele já o estava
dizendo tudo com suas palavras? Mas sim porque lhe escapava pelo
amor que a invadia. Igual escutou em silêncio quando os olhos de
Nick voltaram a afligi-la.
— Lavínia... - começou ele - quero um apartamento - o discurso
parecia toda uma incoerência, mas tinha sua lógica. Lavínia o
descobriu quando Nick continuou falando. — Mas não quero fazê-lo
sozinho, quero que o escolhamos e o decoremos juntos. Quero que
juntos escolhamos muitas coisas. E que quando comprarmos outro
carro ajude-me a lavá-lo. Assim como está agora, com uma roupa
branca posta, toda molhada, pega a sua pele enquanto eu morro por
mandar o automóvel à merda e fazer amor entre o barro. Oh, sim,
isso eu gostaria! - Lavínia não pôde evitar rir com os olhos cheios de
lágrimas. — Que um cão corra entre suas pernas e você salpique isso
a cara - sorriu ele com emoção e se deitou sobre ela. As pernas de
Lavínia ficaram entre as do homem, que estavam abertas. — Esse dia
faremos nosso primeiro menino. Não volte a chorar - pediu ao ver
que Lavínia lacrimejava. — Não chore, se não estou dizendo mais que
incoerências.
— Não quero que calcule nada - disse-lhe ela. — Continue,
continue falando com o primeiro que te saia.
Ele sorriu. Assentiu e continuo dizendo tudo o que lhe cruzava
pela mente.
— Quero te dar tudo, que nunca te falte nada, muito menos
amor e sonhos. Quero que tenhamos filhos que se pareçam com os
dois, e que a gente nos pergunte sempre "para quando será o irmão"
- Lavínia riu encantada. — Quero chegar velho e despertar vendo-a a
meu lado enquanto penso: "Lavínia, minha esposa de nome
estranho... quanto a amo!”.
Lavínia entreabriu os lábios para poder respirar. Como que ele a
tivesse escutado! Nick sabia que ela o tinha visitado no hospital. Isso
a fez chorar.
— Oh, Nick... - murmurou.
— Necessito-te, Lavínia. Amo-te e não quero que seus fados te
separem de mim nunca, por isso tenho que te manter muito perto -
continuou ele. Ela riu. — Quer ser a mãe de meus filhos, a desenhista
de todos meus trajes, a vítima de meus abraços, a tumba junto a
minha tumba? Lavínia... quer ser minha esposa?
— Com todo meu coração! - respondeu ela sem medo, sem
mais que sentimentos que deixou entrever em seu olhar e no abraço
que deu ao Nick nem bem terminou de falar.
A habitação se iluminou com a luz que só o sorriso de Lavínia e
sua felicidade podiam outorgar, e Nick resplandeceu entre essas
emoções.
Depois de revisar o pé da Lavínia, o médico lhe sugeriu que
tomasse um banho - como se ela não houvesse se dado conta de que
necessitava um - colocasse gelo e fizesse repouso por umas horas
para baixar o inchaço do tornozelo. Deixou-lhe uns analgésicos e se
foi.
Nick não lhe permitiu levantar-se da cama até que teve a
banheira cheia e mesmo assim a levou em seus braços até o banho.
— Têm fome? - perguntou-lhe. Havia tantas questões urgentes
que atender a respeito de Lavínia que não sabia por qual começar
primeiro.
— Sim - respondeu Lavínia com sinceridade. Ele já a deixava
sobre a tampa da privada para que tirasse a roupa. — Estes três dias
fiz tudo tão rápido que até parecia que tinha um clone - brincou. Nick
riu.
— Enquanto te despe e te mete na banheira, eu vou pedir algo
rico para comer – anunciou. — Parece-te bem que peça que o tragam
em meia hora?
— Sim, está bem.
Até estando separados, Nick e Lavínia tinham os mesmos
pensamentos. Tudo era novo e excitante para eles, mas não deixava
de resultar estranho. Esses eram os primeiros passos que davam em
uma vida juntos, a partir de então descobririam mais aspectos do
outro, mais segredos. Poderiam ser eles mesmos.
Quando Nick retornou ao banho, o fez descalço e sem camisa.
Lavínia se sentiu um pouco envergonhada porque estava nua na
banheira e Nick era tão lindo que ficou vermelha. Sentia-se como a
primeira vez que o tinha visto. Riu cobrindo os seios com um braço
enquanto encolhia as pernas. Ao Nick pareceu um ato tão inocente e
ela tão maravilhosa que acabou na água antes do esperado, sem
calça e também sem cueca.
Sobre Lavínia, sorriu, beijou-a lentamente na boca e
murmurou: — Por sorte me ocorreu lhes dizer que trouxessem a
comida em uma hora.
Lavínia riu. Recebeu as carícias dos lábios de Nick sobre os
seus, rodeou-o com os braços e depois ficou quieta.
— Me prometa que isto é real - pediu séria e temerosa. — Me
prometa que...
— Que este é um sonho do qual nunca vamos despertar -
interrompeu-a ele, lendo seus pensamentos, escravo da mesma
preocupação. — Prometo-lhe isso. Agora você me prometa que nunca
me faltará.
Lavínia se apertou contra Nick vendo-o os olhos. Podia sentir
seu desejo pugnando por unir-se a seu corpo e não se atreveu a
retroceder. Necessitava-o tanto como ele a ela.
— Prometo-lhe isso - disse com um nó na garganta, o mesmo
que se desarmou quando Nick entrou nela, fechou os olhos e deixou
cair uma lágrima. Lavínia a secou com o dedo.
Primeira investida dentro de seu corpo.
— Eu nunca te vou faltar - disse-lhe ela, também com os olhos
úmidos. — Porque te amo.
Segunda investida dentro de seu corpo.
— Me perdoe, Lavínia. Eu sei que te fiz muito dano.
Terceira investida dentro de seu corpo.
— Eu sei que é uma pessoa complexa, mas têm que saber que
também é maravilhoso - tomou o rosto entre as mãos e o obrigou a
olhá-la. — Entendeu-me? Tem que te valorizar porque é formoso, não
me ocorre os adjetivos para te descrever, qualquer outro ficaria curto,
te amo. Com todos esses contrastes, é a pessoa mais fascinante que
jamais tenha conhecido.
Quarta...
— Estou quebrado, louco, destruído. Mas você... - olhava-a
como a ninguém mais no mundo, e com os olhos ainda úmidos sorriu.
— Você é minha salvação. Com você sou feliz e sei que não é algo
passageiro. Por fim me sinto eu mesmo de novo e não sei se sou
capaz, mas tudo o que quero é te fazer sentir tão completa como me
sinto estando com você.
Quinta...
— Se você ama isso, se os dois nos amarmos como somos, não
há dificuldades que valham. Eu também sou feliz ao teu lado. Você é
minha felicidade.
Sexta.
— Amo-te - sussurrou ele.
— Amo-te – replicou ela.
— Lavínia... Formosa... - Continuou dizendo Nick. E levou uma
mão, a cara para olhá-la nos olhos e tremeu. — Te vou fazer amor.
O anúncio a fez estremecer. Sabia a diferença abismal que
existia para Nick entre ter sexo e fazer amor, e soube que nesse ato
lhe entregaria sua alma. E ela estava disposta a lhe dar também a
sua, como sempre tinha desejado fazer.
O primeiro que fez Nick foi sair de seu interior e deslizar-se
para o outro lado da banheira. Ao parecer seu conceito de fazer amor
ia muito além de uma penetração porque estirou uma perna e
impediu a ela mover-se para ir com ele. Respaldou-se na parede de
louça, Lavínia fez o mesmo, e logo compreendeu que o que
experimentariam estava além da razão.
Em princípio, o olhar. Nick enterrou seus olhos de céu escuro
nos seus e inspirou profundo. Parecia-se com a primeira vez que
tinham tido sexo, mas agora a observava com muita mais
intensidade. Já não admirava seu corpo nu, a não ser seu interior, e
tão insistente era no que fazia que a Lavínia lhe agitou a respiração e
lhe pareceu que ele se internava dentro como ela se introduzia nele.
Nick semicerrou os olhos, de tanto desejo, mas não deixou de
olhá-la. Tragou com força e se tencionou. Os dois foram respirando
cada vez com maior agitação. Sentiam o desejo pulsar em suas
vísceras e se perguntavam até quando poderiam aguentar, se
convinha lhe pôr fim.
Ele não quis fazê-lo. Encolheu uma perna e logo voltou a
deslizar pelo fundo da banheira até dar com as dobras vaginais de
Lavínia, onde um pé começou a investigar a zona até fazê-la gemer.
Ela fechou os olhos e jogou a cabeça para trás, mas como Nick
continuava olhando-a, não quis romper com esse outro meio de
excitação que tão bem o fazia e se endireitou em seguida.
O dedo gordo se misturou por sua cavidade um momento, logo
saiu e desenhou círculos ao redor de seus clitóris. Ela tremeu de
ansiedade e fechou os olhos um momento, mas os abriu de novo para
não acabar com o contato visual. Umedeceu os lábios, mordeu o
inferior. No silêncio só se escutava o som de sua respiração e a de
seu amante, que gozava com só vê-la em estado de êxtase.
O segredo radicava não só no físico, a não ser no jogo mental.
O olhar de Nick era tão intenso, se fazia evidente que ele desfrutava
tanto de vê-la a borda do abismo, que Lavínia o imaginava sobre ela,
dentro dela, beijando-a compulsivamente, e isso a desatou.
Esqueceu-se de olhar e jogou a cabeça atrás com os olhos fechados.
Apertou os lábios, foi presa das sensações, chicotadas que lhe
sulcavam o corpo, e se levou uma mão ao mamilo. Estimular-se e ser
estimulada lhe arrebatou um grito de prazer que sucumbiu ante o
poder do orgasmo.
Não teve tempo de reagir. Até antes de trazer a cabeça para
frente Nick a cobriu com seu corpo e lhe abriu mais as pernas.
Lavínia pôde sentir o membro erguido lhe roçando a intimidade, mas
ele não se impulsionou dentro dela. Sorriu.
— Agora vamos fazer amor - anunciou com voz gutural,
esforçando-se por não soar tão agitado como se encontrava.
Esticou um braço sem deixar de olhá-la e recolheu um sabão
líquido que descansava no bordo da banheira. Os olhos de Lavínia se
irritaram e não se atrevia a dizer uma palavra, salvo a dar suaves
gemidos de excitação, marcados pela intriga do que vinha depois.
Queria tocá-lo, era uma sensação tão irresistível que a deleitava.
Passou os dedos pelo ombro de Nick e logo os levou para trás, onde
os músculos de suas costas se tencionaram e distendiam porque ele
se enchia a palma de sabão.
Nick esfregou uma mão com a outra e logo assentou ambas
sobre os seios de Lavínia, os quais embalou deleitando-se com sua
suavidade. O frio elemento contrastou com o calor da água e o corpo
da mulher, fazendo-o estremecer. O olhar de Nick se dirigiu, como
antes tinha feito suas mãos, para os seios femininos. Os dedos
escorregavam pelos mamilos graças ao sabão, e Lavínia gozava das
cócegas eletrizantes que isso lhe produzia. Então também quis
apoderar-se do peito masculino e trouxe as mãos para frente.
Rodeou o quadril de Nick com as pernas para apertar o sexo.
Embora ele não resistisse, tampouco se uniu a Lavínia ainda.
Enquanto suas mãos continuavam estimulando os mamilos, os lábios
se assentaram sobre a tensa pele da bochecha feminina,
avermelhada pelo calor da água e do prazer. Do mesmo modo fizeram
seu caminho para a boca, onde os recebeu a úmida língua de Lavínia.
Ela o empurrou dentro. O entrou sozinho um pouco.
— Não, ainda não - resmungou, incapaz de resistir mais, mas
ainda o fazia.
Então a segurou pelo quadril e girou com ela nos braços até
ficar respaldado na banheira e Lavínia sobre seu corpo. Deu-lhe as
costas e se sentou sobre suas pernas. A água se balançava pelo veloz
movimento dos corpos emitindo um som que evocava as ondas do
mar balançadas pelo vento.
Lavínia esperava que Nick a sentasse sobre seu membro, mas
ele não o fez. Apanhou-lhe o cabelo em um punho à altura da nuca e
deslizou os dedos da outra mão desde sua cabeça para as pontas.
Abriu o punho para deixar acontecer os dedos que se escorreram
muito rápido entre o cabelo empapado.
— Eu gosto de te pentear – sussurrou. — Eu gosto de seu
cabelo.
Logo depois de falar, beijou-a detrás da orelha, fez-lhe cócegas
com a respiração. Lavínia tragou com força e, incapaz de resistir
mais, elevou-se colocando ambas as mãos no bordo da banheira e a
penetrou, com tanta ansiedade que não teve tempo para pensar em
algo mais.
Ela se movia para frente e para trás, acima e abaixo, com
lentidão, gozando do espaço que ficava entre uma e outra ação.
Pouco a pouco, foi cobrando velocidade e ganhando prazer. Um
antebraço de Nick lhe cobriu os peitos, dois dedos lhe apanharam um
mamilo, e os da outra mão lhe estimularam o clitóris. Ela entreabriu
os lábios, presa do frenesi, e entre a água, o sabão e a banheira e
acabaram gritando juntos que tinham alcançado o clímax.
— Amo-te - sussurrou-lhe Nick ao ouvido agitado, enquanto lhe
acariciava o ventre.
— E eu amo você - respondeu ela sem fôlego, com os olhos
fechados e a cabeça arremessada levemente para trás. O cabelo que
ele lubrificou caía como chuva sobre o ombro masculino e se perdia
em suas costas.
Permaneceram quietos um momento, tratando de recuperar o
ar. Depois Lavínia se recostou em seu peito e lhe deu um braço por
sobre os ombros. Sentia-se tão em paz, tão protegida, que inclusive
lhe pareceu que se estava ficando adormecida. As carícias que os
lábios de Nick lhe proferiam na frente lhe provocavam o sonho.
Abriu os olhos logo quando escutou que golpeavam a porta.
Sem dúvidas se tratava do serviço de quarto.
— Pode sair da banheira sozinha? - perguntou ele antes de
afastar-se dela, preocupado por seu tornozelo. Lavínia lhe sorriu e
deu um beijo rápido na bochecha como gesto afirmativo.
Nick se envolveu em uma saída de banho branca e foi procurar
a comida. Agradeceu a seu empregado e quando voltou com a
bandeja, quase lhe caiu de entre as mãos. Tragou com força.
— Sinto-me um pouco vestido - brincou.
Lavínia tinha ficado de pé na entrada do banho, com um ombro
apoiado no marco da porta e de braços cruzados. Completamente
nua.
— Te ponha a tom - seguiu ela com a brincadeira. Arqueou as
sobrancelhas, com seu rosto sempre tão expressivo.
— Em onde ficou minha garota vergonhosa, essa que encolhia
as pernas na banheira? - mofou-se. Lavínia riu.
— Foi-se - respondeu avançando para a mesa. Sentou-se assim
como estava. — O que está esperando? Morro de fome!
Se assim ia ser sua vida a partir desse momento, de tão bom
humor, tão cheia de sexo e de liberdade, Nick se sentia no paraíso.
Demonstrou-o com um sorriso de menino travesso e o brilho peculiar
que cobrava seu olhar quando se iludia com algo.
Lavínia o notou imediatamente. Dava-se conta de que o
conhecia tão bem, era uma das poucas e afortunadas pessoas que
realmente o conheciam no mundo, se não a única que o conhecia
tanto, que pressentia um matrimônio excelente: com um sujeito
complicado, difícil de conter, mas o mais lindo do mundo, em todos os
sentidos que uma pessoa podia sê-lo.
Deixou a bandeja sobre a mesa e se desprendeu do roupão.
— Dá-me vergonha - brincou com tom falsamente lastimoso
antes de deixá-lo cair ao chão. Lavínia riu. Depois viu aterrissar o
robe aos pés de seu dono e a este sentar-se frente a ela. O suspirou.
Não lhe apagava o sorriso da cara, e até abriu os braços antes de
falar. — Isto sim que é vida! - exclamou vendo-se nus e vendo a
comida: gula e luxúria, duas de suas paixões mais profundas.
Lavínia atacou sua perna de frango. Nick, em troca, ficou
imóvel. Quando ela elevou a vista, encontrou-o com outro olhar e
outro aspecto. Parecia desiludido, olhava a bandeja de comida como a
um berço vazio.
— O que? - Pergunto-lhe ela com a boca cheia.
— Minha torta.
— O que aconteceu com a torta?
— Não me trouxeram - Lavínia arqueou as sobrancelhas. Não
era de que o mataria por uma porção de torta fosse certo e ela
estivesse a ponto de vê-lo. De Nick podia esperar algo, sempre séria
imprevisível, pressentia que com isso ia se divertir muitíssimo. — Eu
encomendei torta de chocolate para a sobremesa, mas não está aqui.
Deveria despedir esse empregado!
Lavínia se pôs a rir com tanta ternura que se esqueceu da fome
que até o momento lhe tinha feito ranger a barriga. Ficou de pé,
sentou-se escarranchada sobre as pernas de Nick e apoiou uma mão
em cada um de seus ombros.
— Não se preocupe - disse-lhe beijando o nariz que ela tanto
gostava. — Eu sou sua sobremesa.
O semblante de Nick mudou, tornou-se ingênuo e divertido; os
olhos muito abertos.
— Que lindo! – exclamou. — Assim é muito fácil esquecer-se de
qualquer problema.
Lavínia o beijou na boca para que se calasse.
— Está-me calando? - perguntou-lhe ele, lendo suas intenções.
— Fala muito - disse-lhe ela em brincadeira, lhe roçando os
lábios com os seus. A carícia os estava pondo pontos a ambos.
— Mas se tiver problemas para me comunicar!
Lavínia não pôde conter a risada, nem ele o desejo. Voltou a
beijá-la, os lábios de ambos se encontraram em uma carícia
irrefletida, e as mãos do homem se deslizaram pelo torso nu que o
aprisionava contra a cadeira.
— Quero te beijar toda - disse-lhe.
— E eu quero seus beijos - replicou ela. Já lhe ocupava a boca
com a sua.
Nick a fez levantar-se a tomando pelo quadril e a que se
deixasse cair de novo sobre ele, esta vez onde seus corpos podiam
fazer-se um. As mãos de Lavínia se moveram imprecisas pelas costas
masculina, por seu peito e ventre nus, até chegar aonde os dois se
encontravam unidos. Tocar essa fusão fez gemer a Lavínia, e o
acendeu seu gemido. Elevou-a lhe cobrindo as nádegas com as mãos
e a levou até a cama, onde a depositou procurando não afastar-se
muito de seu corpo.
— Ainda quer a torta? - provocou-o ela, sorridente, enquanto
encolhia as pernas como lhe expondo um desafio: Nick devia escolher
entre ela ou o doce.
— A torta vai ter que esperar - replicou ele, que a escolheria
por sobre qualquer outra coisa do mundo. — Neste momento estou
ocupado com outro tipo de tentação, embora algum dia poderíamos
fundir ambas - sonhou acordado. — Te passar chocolate - acariciou-
lhe o lado interno do braço - por aqui - acariciou-lhe a perna. — E
aqui - lambeu-lhe o umbigo.
Ela riu e voltou a atrai-lo para si tomando-o pela cabeça. De
repente sentiu que o fogo de uma mão de Nick lhe acariciava a pele
do ventre, avançava para cima, mas nunca chegava aonde ela queria.
Ele ia devagar, como lhe prometendo algo, e foi esse jogo o que
despertou suas fantasias. De imaginar o instante em que esses dedos
lhe roçassem o busto se sentiu possuir.
Mas a mão se apartou sem lhe tocar nada. Em troca subiu de
repente até seu rosto e se assentou sobre seus lábios, os que dois
dedos intrépidos abriram e acariciaram. Abriu as pálpebras. Nick a
estava vendo, e em seus olhos se refletia tanto amor e desejo que
uma eletricidade lhe sulcou o ventre estremecido. Esses dedos a
queimavam como fogo e para apagá-lo deu um beijo. Acabaram em
sua boca, esquentados com sua língua.
Ele baixou a cabeça e percorreu com seus lábios cada parte do
corpo que adorava. Primeiro o pescoço, onde a ponta de sua língua
deu alguns toques entre carícias com os lábios. Lavínia estremeceu,
arqueou-se para ele e seu sexo roçou a perna de Nick, fazendo-os
sonhar a ambos.
Como o roçar acidental resultou tão estimulante, lhe ofereceu o
joelho para que se esfregasse tudo o que quisesse, e Lavínia assim o
fez. Enquanto isso, os beijos desceram do pescoço ao peito e do peito
passaram por entre seu busto rumo ao ventre, onde se detiveram um
momento. Para poder baixar mais, Nick teve que retirar o joelho, mas
em troca lhe deu de presente uma carícia de sua língua no clitóris.
Lavínia se aferrou ao cabelo que ele levava apenas um pouco
mais comprido que o resto, presa no frenesi. Tremiam-lhe as pernas
de aguentar e o ventre de sentir.
Enredou uma perna na de Nick para atrai-lo para cima. Ele
obedeceu, mas não entrou nela. Com o meio corpo sobre Lavínia e a
outra metade a um lado, acariciou a pele tensa da mulher do ombro
até o quadril, passando pelo braço e a cintura. Voltou a levar a mão
acima para lhe embalar um seio sem tocar o mamilo. Beijou o outro
procurando tampouco roçar esse lugar, esfregou o rosto por ali sem
chegar mais longe. Eram todas insinuações que mantinham Lavínia
úmida e espectadora. Além disso, exigente, porque tomou o braço e o
atirou para seu lado. Queria senti-lo sobre ela e também dentro.
Nick obedeceu sem duvidar, ele tampouco resistia mais.
Estabeleceu-se sobre Lavínia e se internou em seu corpo devagar,
desfrutando de cada milímetro do lugar que o recebia, enquanto
tomava uma mão por sobre o travesseiro. Os dedos se enredaram
igual às pernas, apertaram-se uns com os outros ao tempo que as
bocas se encontravam em um beijo.
Lavínia o amava e ele a amava. Lavínia o fazia sentir vivo e
derramar-se em seu interior era como lhe dar de presente tudo o que
levava dentro. Tinha-o conservado intacto para ela.
— Pensar que vais levar meu anel nesse dedo - murmurou ele
sobre seus lábios lhe acariciando o anular. Lavínia sorriu. Não
deixavam de mover-se, não podiam respirar.
— E você um meu... - ofegou Lavínia.
Quase ao mesmo tempo lhe cobriu as nádegas com as mãos
para apertá-lo contra seu sexo, tudo que pudessem para sentir-se
um. Juntos decidiram em silêncio que queriam ver o amálgama que
formavam seus corpos, por isso baixaram a cabeça e Nick se separou
um pouco. Assim podiam observar e expressar quanto gostava do
que viam.
— Te amo - deixou escapar ele quase sem fôlego.
— Te amo - replicou Lavínia lhe acariciando uma bochecha. —
Te amo muito.
Nick rompeu a imagem pegando-se de novo ao torso de
Lavínia. Procurou sua boca, deram-se um beijo úmido e logo se
olharam. Seus corpos se agitavam cada vez com mais violência, o
quadril dela se elevava enquanto ele investia e o mundo ao redor se
esfumava.
Sustentaram o olhar. Era formoso, era uma fantasia, e entre a
excitação e o sonho, chegaram finalmente às estrelas, como tantas
vezes se prometeram.
Não apareceram pela recepção de boas-vindas. Lavínia
despertou duas ou três vezes na noite. As duas primeiras, encontrou
Nick dormindo; a terceira o achou contemplando-a.
— Quase pensei que nunca nos encontraríamos - disse ele com
um sorriso e um braço debaixo do pescoço de Lavínia. — Despertei
duas vezes enquanto dormia.
— Eu também - sorriu ela. — E para que queria que
despertasse? - interrogou, brincalhona, pensando que ele queria fazer
amor de novo. Mas Nick tragou com força e voltou a lhe dedicar um
sorriso sereno antes de responder com voz rouca.
— Para te dizer que te amo.
Passaram o dia seguinte encerrados no quarto. Não podiam
deixar de contemplar-se, não alcançavam os atos para demonstrar-se
quanto se amavam. Tampouco as palavras, que escapavam da boca
de Nick com frequência. Faziam amor desprotegido, sem pensar em
nada mais que em estar unidos.
— Lavínia - disse-lhe ele em uma dessas oportunidades,
enquanto lhe beijava o ventre nu. — Quero ter um filho.
Lavínia sentiu que a alma lhe alagava de sorte. O corpo já não
era capaz de suportar mais dessas sensações.
— E eu um teu - replicou com a voz afogada. — Te amo.
Depois do meio-dia seguinte, chegaram ao primeiro destino,
Salvador, Bahia. Lavínia tinha contado a Nick o acontecido com sua
bolsa, toda a odisseia que tinha atravessado para chegar ao cruzeiro,
e por isso Nick lhe deu como primeiro presente um biquíni branco.
Queria lhe dar de presente muito mais, desejava lhe dar tudo, mas
iria pouco a pouco. Tinham todo o tempo do mundo para estar
juntos.
Lavínia pensou que Nick a fazia provar o biquíni para
acompanhá-lo à piscina do cruzeiro enquanto ele lia um jornal em
uma cadeira, mas quando saiu do banho o encontrou também vestido
para a água. Ela não pensava lhe pedir que fossem à praia porque
sabia que Nick não gostava do mar, nem sequer das piscinas, mas
não fez falta que dissesse nada. Ele a surpreendeu lhe arrojando uma
toalha que Lavínia apanhou no ar.
— Vamos? - perguntou-lhe Nick com ar risonho.
— Aonde?
— Me ensinar a nadar contra corrente.
Nick nunca se banhou no mar. Não o tinha conhecido enquanto
era menino e quando foi grande, já tinha medo, mas com Lavínia
nem se lembrou de seu temor. Era tão cálida a água, tão serena sua
cor e se sentia tão forte junto a ela, sabendo que era capaz de dar a
vida para protegê-la de tudo, que o desfrutou como fazia muito
tempo não desfrutava de nada que não fosse sua desenhista. Até foi
ele quem terminou tirando Lavínia da água, carregando-a como a
uma namorada.
Pela tarde, ficaram dormindo. Quando Lavínia despertou,
anoitecia. O quarto estava vazio, mas Nick lhe tinha deixado uma
nota sobre a mesa de luz.
"Estou resolvendo um problema em uma obra de Buenos Aires,
mas nos encontramos as dez para o jantar", leu. Sentiu saudades que
Nick não lhe escrevesse um "te amo", mas imaginou que teria escrito
a nota às pressas e com isso seu coração se consolou. Olhou o relógio
despertador que estava junto ao abajur. Eram já nove e meia, tinha
que arrumar-se se quisesse estar pronta a tempo. Tinha dormido
mais de quatro horas, Nick a deixava esgotada.
Foi sentar-se na cama e tornou a rir. Nick não só lhe tinha
deixado um magnífico vestido negro sobre uma poltrona e, debaixo,
um par de sapatos de salto, mas sim, além disso, tinha enchido o
quarto de notas.
Lavínia se levantou de um salto, feliz, e leu uma por uma.
Todas diziam "Te amo": na borda da cama, na parede, na porta do
banheiro, sobre o vestido, sobre os sapatos, nas paredes, na janela...
Nick a encontrou na hora prometida, e Lavínia estava ali para
recebê-lo com um beijo e um abraço.
— Senti tantas saudades! - exclamou ele. — Quase parecia que
esses chamados não me iam deixar em paz - queixou-se elevando-a
no ar. — Amo-te - sussurrou-lhe sobre os lábios - amo-te, não quero
me afastar de você.
Cada vez que pronunciava essas palavras sentia que sua alma
se liberava, que tudo era possível. E Lavínia voava quando as ouvia.
— Amo-te! - respondeu ela com a mesma ansiedade. — Eu
tampouco quero me afastar de você!
Nick a deixou sobre a cama. Se não fosse porque ela já estava
vestida, e tão formosa, teria feito amor de novo.
— Está preciosa, que lindo vestido! – sussurrou. — Não fica
como seus próprios desenhos, mas é um começo - Lavínia acreditou
que Nick brincava, por isso riu, mas ele falava muito a sério. — Muito
lindo para rasgá-lo, mas primeiro pensei em te convidar para jantar e
ir ao cassino. Mais tarde lhe arranco isso - sussurrou-lhe ao ouvido.
Lavínia estremeceu só de escutá-lo.
— É o que mais quero - respondeu, feliz.
Ele recordava que o passeio que Lavínia tinha pretendido dar no
cassino de seu cruzeiro se interrompeu pela acusação de roubo, por
isso pensava em levá-la ali primeiro. Nick queria cumprir todos seus
desejos sem que ela tivesse que manifestá-los, queria conhecê-los
com um olhar.
Jantaram no restaurante mais fino do cruzeiro. Entretanto, os
dois eram muito singelos. Lavínia tinha terminado de comer, mas Nick
parecia nunca acabar. Tinha que repor energias de tantas que investia
fazendo amor.
— Vai comer isso? - perguntou assinalando com o garfo uma
parte de salmão rosado que Lavínia tinha deixado no prato.
— Não - replicou ela.
— Dê-me isso.
Nick agachou um pouco a cabeça e só movendo os olhos olhou
para ambos os lados da mesa para comprovar que ninguém visse o
transpasse. Lavínia o imitou.
— Agora - ordenou-lhe ela em um sussurro, como dois
cúmplices de um assalto. Então ele cravou com o garfo e em um
rápido movimento teve a vítima em seu prato. Não lhe deu tempo de
nada, em seguida cortou e voltou a comer.
Lavínia riu. Sentia tanta ternura, tanto amor, que escapava por
seus olhos, sua pele e sua voz. Nick elevou o olhar para ela e lhe
sorriu com certa inocência. Enrugava-lhe a frente. Lavínia lhe
acariciou uma bochecha.
— Amo-te - disse-lhe ainda rindo. Tomou a mão e lhe beijou os
nódulos.
— Eu amo você - respondeu. O garçom os interrompeu.
— Necessita algo mais, senhor? - interrogou. Nick o olhou.
Jogou uma rápida olhada aos objetos da mesa e finalmente replicou:
— Sim. Sirva mais vinho a minha esposa, por favor.
Disse-o com tanta naturalidade que Lavínia estalou o coração.
Depois do jantar, acabaram na roleta. Nick falava com um
homem que o tinha entretido, enquanto Lavínia perdia e perdia
apostando sempre no oito. Tinha que sair em algum momento, a
sorte não podia esquivar-se tanto.
Um par de mãos fortes e cálidas se fecharam sobre sua cintura.
Lavínia se estremeceu com o contato, e o calor que se expandiu por
suas bochechas a obrigou a sorrir.
— É uma completa perdedora - sussurrou-lhe Nick ao ouvido.
Lavínia riu.
— Mas ganhei o homem mais formoso do mundo, em todos os
sentidos – replicou. — Isso me converte em uma afortunada.
Nick lhe beijou o ombro nu, tirou-lhe duas fichas da mão e as
jogou sobre o limite entre o nove e o seis. Logo beijou a Lavínia na
cabeça enquanto voltava a abraçá-la para que as costas feminina se
recostassem sobre seu torso.
— Não têm que apostar nos plenos até te haver feito de certo
capital - explicou-lhe Nick. Ao parecer sua boa fortuna não dependia
só da sorte, mas também de estratégia. Claro, ele era muito racional
e sensível de uma vez, pensava em tudo. — Primeiro aposta em dois,
às cores, às dezenas...
Antes que o croupier pusesse a correr a bola, Lavínia se
apressou a mover sua aposta. Retirou-a do oito e a compartilhou
entre o trinta e cinco e o trinta e seis.
— Assim? - perguntou. Nick negou com a cabeça.
— Não - respondeu Nick. — Esses números são muito altos, não
sinto que vão sair.
— Apostas encerradass! - clamou a voz. A roleta girou. A sorte
pôs-se a correr. — Vermelho nove!
— Ganhou! - exclamou Lavínia para Nick. Ele sorriu, faltando
pudor.
Retiraram-se as fichas do tabuleiro e se abriram de novo as
apostas. Lavínia se estirou e depositou uma ficha entre o vinte e
cinco e o vinte e seis.
— E aí, oráculo? - perguntou a seguir. — Qual vai sair agora?
— Não sei qual - respondeu Nick entrecerrando os olhos - mas
pressinto que será um vermelho.
— Eu apostei em um vermelho! - exclamou ela.
— Um vermelho que de maneira nenhuma será esse.
Lavínia fingiu uma manha de criança e ele a beijou na
bochecha.
— Já te disse que te amo? - perguntou-lhe ao ouvido.
— Não - mentiu ela. — Acreditei que jamais o diria.
— Amo-te.
— Vermelho quatorze - cantou o croupier.
Lavínia mordeu o lábio e riu. Era uma perdedora, sim, mas
tinha ganhado a felicidade.
Às oito, o navio tinha abandonado o porto para entrar outra vez
no oceano e percorrer assim a distância que os separava do seguinte
ponto, que era Fortaleza. Já quase amanhecia e no balcão do quarto,
Lavínia contemplava o horizonte onde despontavam umas linhas
amarelas e outras rosadas. Estava sentada em uma cadeira de
madeira, abrigada pelo acolchoado da cama. Não tinha dormido em
toda a noite.
Nick se aproximou vestido somente com as calças e a levantou
do assento para ocupá-lo ele e deixá-la sobre suas pernas, rodeada e
protegida por seus braços. Lavínia se aconchegou contra seu peito,
mas não deixou de olhar o céu.
— Estamos contemplando o amanhecer - sussurrou comovida.
Não só tinha retornado a esse lugar de sonhos, tal como tinha
prometido a si mesmo, mas sim, além disso, já não se sentia sozinha.
Estava com Nick, estavam completamente apaixonados. Não podia
pedir mais a uma vida que isso, tinha-lhe dado tudo.
Pouco tempo depois, encontrou-se na cama, coberta pelo corpo
e os beijos de seu futuro marido, tão feliz que nem sequer se
precaveu de que a porta do quarto tinha ficado aberta e as cortinas
brancas se balançavam com serena vontade, impulsionadas pela
suave brisa do mar e amendoados pelo brilho do sol.
A única testemunha de tudo aquilo, sempre seria o vento.
Fim
Sobre a autora
Anabella Franco (às vezes sob o pseudônimo Anna Karine) é
escritora de novela romântica e docente de Literatura nascida no
Quilmes, Buenos Aires, Argentina. Estudou Letras e Correção
Literária, e começou a escrever a tenra idade, o qual se converteu
logo em sua profissão. Leu sua primeira novela romântica aos quinze
anos e isso a apaixonou pelo gênero.
Desempenhou como jurada em diversos concursos literários e
como coordenadora de oficinas em escritura. Ganhou vários
certámenes de conto e publicou seu primeiro relato em 2005. Após
vieram a luz muitas publicações em antologias até que em 2011
publicou seu primeiro livro.
Sua última novela, "Más intenções", foi lançada no mercado em
2012 por Edições B na Argentina.
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