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Nada, Espírito e Saudade em José Marinho 1 Paulo Borges (Universidade de Lisboa) Antes de abordarmos propriamente o pensamento de José Marinho, permitimo-nos convidar os leitores para que nos transportemos, mediante a imaginação criadora e seguindo o roteiro de um dos textos mais significativos da cultura medieval portuguesa - A Demanda do Santo Graal - , ao dia e festa de Pentecostes, nos quais, pela primeira e última vez, todos os cavaleiros da Távola Redonda se encontram na corte e paço de Camelote. Ao anoitecer, e já sentados em torno da ampla mesa comum, eis que se ouve um imenso trovão, pelo qual tudo estremece, seguido do jorro duma luz incomum, que ilumina o paço mais do que se dia fosse. Surpreendemo-nos então cheios da graça do Espírito Santo e, contemplando-nos mutuamente, descobrimo-nos muito mais belos do que o habitual, o que nos deixa longo tempo suspensos num silêncio maravilhado. É agora que o Santo Graal entra no paço, coberto por um véu branco e suspenso no ar, sem ser visível alguém que o transporte. Um magnífico odor enche a atmosfera e, à medida que o vaso sagrado circula ao redor da mesa, esta é repleta de tal manjar qual cada um de nossos corações o deseja. Saciado o apetite, o cálice deixa a sala, sem que alguém saiba por onde nem para onde. Só então a palavra 1 - O presente texto nasceu de uma conferência proferida no Centro de Estudos Portugueses, no IADE, em 18 de Junho de 1991, integrada no ciclo sobre A filosofia de José Marinho. Subordinado inicialmente ao tema A ideia de Homem em José Marinho, o estudo, por razões inerentes ao aprofundamento do pensamento do autor, evoluiu para a temática enunciada, convertendo-se num ensaio bastante mais amplo que apenas aqui publicamos parcialmente. Agradecemos a todos os conferentes a contribuição, ainda e sobretudo pelo confronto de perspectivas antagónicas, para a leitura que aqui se apresenta, cientes de que, pela natureza singular, difícil e ainda pouco explorada de um pensamento que se assume na instância interrogativa, ela jamais poderá considerar-se definitiva, evitando o mesmo enigma do interrogar-se cujo sentido persegue. Poderíamos assim subscrever, a respeito da nossa interpretação, o que o pensador afirma, na introdução à obra onde expõe o pensamento da "longa [...] viagem insituada" de toda uma vida : "A teoria, concludente em sua origem, é inconclusiva na finalidade aberta : o de que partiu, o autor tacitamente o sabe, o por que passou, aproximadamente o sabe, o a que chegou, mais o ignora" - Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimarães Editores, 1961, p.14

Nada Espirito e Saudade Em Jose Marinho

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  • Nada, Esprito e Saudade em Jos Marinho 1

    Paulo Borges

    (Universidade de Lisboa)

    Antes de abordarmos propriamente o pensamento de Jos Marinho, permitimo-nos

    convidar os leitores para que nos transportemos, mediante a imaginao criadora e seguindo

    o roteiro de um dos textos mais significativos da cultura medieval portuguesa - A Demanda

    do Santo Graal - , ao dia e festa de Pentecostes, nos quais, pela primeira e ltima vez, todos

    os cavaleiros da Tvola Redonda se encontram na corte e pao de Camelote. Ao anoitecer, e

    j sentados em torno da ampla mesa comum, eis que se ouve um imenso trovo, pelo qual

    tudo estremece, seguido do jorro duma luz incomum, que ilumina o pao mais do que se dia

    fosse. Surpreendemo-nos ento cheios da graa do Esprito Santo e, contemplando-nos

    mutuamente, descobrimo-nos muito mais belos do que o habitual, o que nos deixa longo

    tempo suspensos num silncio maravilhado. agora que o Santo Graal entra no pao,

    coberto por um vu branco e suspenso no ar, sem ser visvel algum que o transporte. Um

    magnfico odor enche a atmosfera e, medida que o vaso sagrado circula ao redor da mesa,

    esta repleta de tal manjar qual cada um de nossos coraes o deseja. Saciado o apetite, o

    clice deixa a sala, sem que algum saiba por onde nem para onde. S ento a palavra

    1 - O presente texto nasceu de uma conferncia proferida no Centro de Estudos Portugueses, no IADE, em 18 de Junho de 1991, integrada no ciclo sobre A filosofia de Jos Marinho. Subordinado inicialmente ao tema A ideia de Homem em Jos Marinho, o estudo, por razes inerentes ao aprofundamento do pensamento do autor, evoluiu para a temtica enunciada, convertendo-se num ensaio bastante mais amplo que apenas aqui publicamos parcialmente. Agradecemos a todos os conferentes a contribuio, ainda e sobretudo pelo confronto de perspectivas antagnicas, para a leitura que aqui se apresenta, cientes de que, pela natureza singular, difcil e ainda pouco explorada de um pensamento que se assume na instncia interrogativa, ela jamais poder considerar-se definitiva, evitando o mesmo enigma do interrogar-se cujo sentido persegue. Poderamos assim subscrever, a respeito da nossa interpretao, o que o pensador afirma, na introduo obra onde expe o pensamento da "longa [...] viagem insituada" de toda uma vida : "A teoria, concludente em sua origem, inconclusiva na finalidade aberta : o de que partiu, o autor tacitamente o sabe, o por que passou, aproximadamente o sabe, o a que chegou, mais o ignora" - Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimares Editores, 1961, p.14

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    retorna, para testemunhar da alegria comum e dar graas pelo dom concedido - em particular

    o rei, cujo reino acaba de ser distinguido com bno at ento desconhecida.

    Mas um cavaleiro - Galvo, ou um de ns... - ergue-se e adverte Artur : "Senhor, h

    ainda nisto algo que vs no cuidais. Sabei que no houve cavaleiro que no frusse quanto

    pensou em seu corao, e isto nunca aconteceu em nenhuma corte, a no ser na do rei Peles.

    Contudo fomos enganados, pois no vimos o Vaso seno coberto. Ora, por mim, aqui

    prometo a Deus e a toda a cavalaria que de manh, se Deus me quiser atender, entrarei na

    Demanda do Santo Graal e jamais tornarei corte, acontea o que acontecer, at que melhor

    e mais a meu prazer veja o que ora vi. S voltarei se tal for impossvel". Eis-nos em silncio

    at ao fim da refeio, mas, logo aps, todos nos dirigimos a Artur, repetindo a mesma

    promessa: partir e jamais suspender a Demanda at contemplar e fruir, agora des-velado e

    desnudo, o que s nos foi dado encoberto, se tal for outorgado por "af" e "trabalho" que

    possamos suportar 2.

    Continuando ou no, por mediao do psicodrama proposto (s o leitor decidir se, e

    o modo pelo qual doravante nele se integrar), esta potica de ns mesmos, ou o outrar-se

    (como diria Pessoa), mais inicitico que somente heteronmico, pelo qual desde j

    assumimos a "viagem na qual nasce o prprio viajante" 3 que o pensar com Jos Marinho

    exige, demais no ser lembrar que Galvo, aquele que tem a iniciativa da Demanda - ou

    seja, da Questa, constitutiva do questionar enquanto busca do desconhecido, apenas re-

    velado -, por excelncia o cavaleiro mal-aventurado, sendo responsvel pela morte de

    muitos irmos de armas, tal como desde incio profetizado. Alis, a prpria Demanda

    parece marcar o incio da runa definitiva do reino de Logres, com o ocultamento do Graal e

    a consequente desgraa. De todos os que partem sabemos que, na verso portuguesa, s

    doze cavaleiros, sendo o primeiro e o ltimo Galaaz, tero a viso do Clice, j ento no

    2 - Cf. A Demanda do Santo Graal, edio de Joseph-Maria Piel, concluda por Irene Freire Nunes, introduo de Ivo de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1988, XXV-XXVII, pp.16-17 (adaptao do texto e itlicos da nossa autoria).

    3 - Jos Marinho, Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimares Editores, l96l, p.65.

  • 3

    referido como encoberto 4. Pertinente ser pois recordar alguns dos atributos caractersticos

    deste Galaaz que, logo aps a viso, morre, em estado de graa: filho ilegtimo de

    Lancelote, nascendo em pecado 5; penetra misteriosamente no pao de Camelote, com as

    portas e janelas fechadas, ao mesmo tempo que uma luz faz perder a fala a quantos a esto 6, aparentando-se pois com o prprio Graal...; ocupa o lugar perigoso, na Tvola, investindo

    a condio profetizada daquele que cumpriria "as aventuras do Santo Graal" 7; vence a prova

    da espada, extraindo-a do padro onde estava implantada 8; o nico que se recusa a levar

    escudo para a Demanda, partida e por sua prpria iniciativa, protestando que seu mal faria

    se assim o fizesse e fazendo votos de s o aceitar quando a ventura lho conceda 9; e,

    finalmente, virgem, assim vendo o Graal e morrendo 10.

    Bom, e Jos Marinho ? - interrogar-se-o os atentos mas porventura perplexos

    leitores, tanto mais perplexos quanto menos disponveis para aceitar que o pensamento

    tambm, e no poucas vezes com o rigor de uma maior e mais autntica profundidade, se

    implica em obras de "literatura" - como tende a acontecer na cultura portuguesa - ,

    fornecendo preciosa matria inquirio e hermenutica filosficas mais exigentes. Como

    resposta a tal interrogao, que eventualmente s ser explcita no fim do presente texto e

    dependendo da disponibilidade do leitor para se assumir protagonista activo do mesmo - ,

    permita-se-nos que, na liberdade e intemporalidade do esprito, desloquemos a demanda da

    vossa ateno para o primeiro captulo - Da Viso Unvoca - da Teoria do Ser e da Verdade,

    redigido e publicado cerca de sete sculos aps a provvel data do texto medieval portugus.

    4 - Cf. A Demanda do Santo Graal, ed. cit., DXCVIII-DXCIX e DCXXVIII, pp.407-409 e 427-428.

    5 - Cf. A Demanda do Santo Graal, ed. cit., V, p.3.

    6 - Idem, Ibidem, XVI, p.10.

    7 - Id., Ibid., XVI-XVII, pp.10-11.

    8 - Id., Ibid., XIX, pp.12-13.

    9 - Id., Ibid., XLI, p.27.

    10 - Id., Ibid., DCXXVII, pp.427-428.

  • 4

    Eis-nos perante o testemunho de algum a quem "foi dado" (o itlico nosso) ver e

    ser "plenamente", no excesso de todo o ver e ser finitos e na coincidncia sem fissura de ser

    e saber, ou, melhor, de ser e verdade. Na "intuio pura" que, no "instante" da "mais pura

    alegria", e concentrando todas as potncias do "ser, sentir e pensar", ela mesma se anula, e

    "razo", no "ser uno da verdade", a negao de toda a forma finita de ser, saber e viver j o

    "afirmar, e afirmar-se no no-ser do homem, o nico", ou "absoluto", anulando toda a

    relao onto-lgica entre diferentes, complementares, contrrios ou contraditrios.

    "Intrmina viso meridiana", sem crepsculo auroral ou vesperal, alheia ao sentido

    da sucesso e da transitividade, a "viso unvoca" manifesta, desde o incio do seu eclodir,

    uma relao ambgua com o que parece ser apenas a sua circunstncia humana.

    Denunciando o conhecimento como "milenrio e vo propsito frustrado ou adiado dos

    filsofos imprudentes em sua mesma prudncia" - e assim tambm a todo o amar, crer e agir

    precrios, como "filhos comuns do homem e da iluso do homem, da vida e da iluso da

    vida" - , assumido pelo "absoluto" como o que e se manifesta no "no-ser do homem", esse

    que o testemunha no deixa de se confessar, simultaneamente, como o que "humanamente"

    vive no seio do tempo, da finitude e da mortalidade, se bem que apenas como o que a tudo

    isso nega e anula, na implcita afirmao daquele uno e nico absoluto 11.

    Depara-se-nos ento o modo incomum de um ser que, vendo e sendo absoluto - um

    absoluto ileso da correlao criador/criatura, princpio/origem, vida/morte - ,

    cumulativamente exerce a vida humana. Vivendo apropriado pela "viso unvoca" - a qual,

    eterna e meridiana, o auto-desvelamento do que no tem outro que o interprete - , sendo

    "onde" "a noite no foi, nenhum sol teve ocaso, nada se deu na diversidade da luz, do que

    traz a luz ou a oculta, nada nasceu, no h morte" 12, com este absoluto humano ou no

    homem contrastam os "homens". Designa-se assim o estado comum dos que, seus

    semelhantes segundo o existir e a vida, dele diferem quanto hesitao e suspeita com que

    recebem a mesma viso unvoca, a qual se d e renova sempre em e "para alm de toda a

    11 - Cf., para tudo o que considermos, Jos Marinho, Teoria do Ser e da Verdade, pp.19-22.

    12 - Id., Ibid., pp.21-22.

  • 5

    idade e todo o tempo" e "de todo humano ou divino ser", e da qual a seu modo participa tudo

    quanto ou existe. Ao patenteador de absoluto, que "como filsofo se apresenta", chamam

    os homens "mstico extraviado", apressando-se por todos os meios, quando no a dizer

    irreal, a "tornar alheio e distante" - pretrito, passado, enclausurado na histria das ideias e

    na subjectividade de alguns pensadores - , "o nico que pode dizer-se presente", ou seja, o

    ver-ser irrelativo e incondicionado 13. Reclama-se porm filsofo o que aqui diz da sua

    afectao pela verdade, assumindo e transportando o pelo qual assumido e transportado: o

    que mais ou s importa (radicalizando a expresso que Marinho colhe de Plotino), por cuja

    insustentao se constituem, no prprio acto de o negarem e diferirem, as modalidades de

    um mesmo, mais fundo e inaparente senso comum, culto ou inculto, religioso ou ateu,

    filosfico ou no.

    Mas este - cuja humanidade alterada pela verdade, no sentido de uma viso

    henolgica radical, se indefine e imponderabiliza na absoluteidade que a absorve, tornando-

    o, "no ser, outro que ser" - ainda passvel de surpresa. Ele, que pressupe ser e ver

    "plenamente", sabendo "para sempre toda a verdade", sbito apercebe que, se um e o mesmo

    so ser e verdade, e se esse o "uno, eterno e absoluto", o que se designa por Deus, no

    pode s-lo ento para si prprio, no pode saber-se: uno, eterno e absoluto, Deus, ser e

    verdade, tal s o no para si mas para outro; em si, o que absolutamente , -o sem se

    saber. Funda "turbao" avassala ento o que se presumira ciente da verdade na "viso

    unvoca", revelando-se-lhe sumamente enigmtico o seu ver e saber do que assim v e sabe

    como s podendo ser sem viso e saber de si. Perante a manifesta incoincidncia do "ser da

    verdade" - o que o sem se saber - e da "verdade do ser" - o saber-se do que -, da

    inscincia do absoluto e da vidncia do mesmo, de algum modo outra que ele mas dele

    procedente e fonte de todo o discurso possvel a seu respeito, aquele "que pensara na

    anulao de todo o pensamento" descobre a no-verdade do ver e dizer a verdade no "ser

    da verdade" e, assim, a intrnseca qualidade de ciso do que antes reputava por unio pura e

    absoluta. E neste transe crtico, como um vir luz para fora do que se tinha pela prpria

    13 - Id., Ibid., pp.22 e 139.

  • 6

    luz, que homem e viso unvoca "mais intimamente" nascem, outros do que aparentavam

    ser: um homem interrogando-se sobre a estranheza de uma viso mista de pleno saber e

    ignorar, e que a surpreende agora "inumana, ou desumana de outra desumanidade" que

    aquela que na absoluteidade primeva j se lhe patenteara, apropriando-o; uma viso que, na

    mesma interrogao do homem, de si para si se interroga como enigma e mistrio, enquanto

    no uno absoluto como o que afirmando a sua verdade imediatamente a nega, pois tal

    verdade no o para si mesma: "a verdade [...] no para o mesmo ser da verdade". Ao

    filsofo, que antes como tal se apresentava, mas "que s agora o propriamente", desvenda-

    se ento o at a ignorado - o "esprito", paradoxal unio/ciso - , bem como, nele, a

    "profunda razo", que se antecipa como "a razo da razo", de os "humanos, sbios e

    ignorantes", por ele o negarem e "viso unvoca". A simples possibilidade de a negar

    evidencia, contudo, o sab-la, patenteando ainda o "esprito" como o nela implcito e

    afirmado no acto mesmo do neg-lo, enquanto secreto e ignoto sujeito de todo o pensamento

    e forma de conscincia 14.

    O que interroga e se interroga ento o "esprito", por Marinho reinterpretado e

    rebaptizado como "insubstancial substante", haver irrelativo a ser ou estar algum,

    subsistindo em toda a substancialidade do que ou est, corpo e alma, apenas enquanto

    "passa", ou perpassa, "como sopro e vento" 15. A actividade do esprito, a qual, "no sendo

    vida, condio de toda a vida" 16, a perene demanda da interrogao, que de si e de tudo

    - ser, verdade, sua relao e outro que ser e verdade, na coincidncia plena que os anula -

    para si reflui, e sem a qual no h pensar autntico. Mas o pensamento j no pode,

    doravante, consistir apenas na viso unvoca que absoluteidade supe aceder, como o que

    nela, ciente dela, se anula. So o prprio ser da viso unvoca - no qual se sabe agora "toda a

    verdade" e "todo o engano", pelo desvendamento dos limites inerentes ao que sabe o uno e a

    tal saber, na incindvel relao de saber e ignorar, afirmar e negar e, logo, de unio e ciso

    14 - Id., Ibid., pp.22-25.

    15 - Id., Ibid., p.55.

    16 - Id., Ibid., p.55.

  • 7

    cumulativas, conforme Marinho desde 1944 o adverte 17 - e o correlato uno absoluto nele e

    para ele, como outro do em si ausente de para si mesmo,que se desvelam mistos de iluso,e

    passveis de serem considerados como o que de algum modo no ou s emerge como

    primordial fenomenalizao de um "mais profundo Nada" 18.

    Eis-nos, segundo cremos, no cerne da incomum e difcil teorese de Marinho.

    Anterior a, e condio de, qualquer possibilidade de viso, representao metafsica e

    discurso ontolgico, plasmando-se segundo as grandes figuras do pensamento universal -

    Deus, homem, mundo - , correlatos no seu ser suposto consistente e dado evidncia no

    pensamento, encontramos o inesperado enigma de um uno absoluto que re-velao, de si

    para si mesmo, ou seja, manifestao e ocultamento simultneos. Essente, ciente de si,

    pensvel e dizvel, o absoluto s o no e pelo esprito, para-doxal haver de uma alteridade

    no seio do que s nela e por ela se pensa como o mesmo, sem que na unio-ciso das suas

    correlatas figuras onto-lgicas tal absoluto efectivamente se altere ou mesmifique.

    Inaltervel e pleno como Nada, irrelativo dualizao sujeito-objecto por que se gera e

    persiste toda a forma de conscincia - ainda na simples viso intuitiva - , o uno absoluto para

    si o advm como outro-mesmo relativamente ao intrnseco Nada, que a unio-ciso do

    esprito oculta na mesma "viso genesaca" que d luz o "nico necessrio" 19.

    Mas se na "viso unvoca" o esprito, primeira instncia de uma "especulao" pura,

    absoluta e instantnea, v sem se ver no ver do que v - na gnese de uma viso que,

    simultaneamente, em si e para si gera o visto enquanto cega para esse mesmo processo de

    constituio de si no constituir do seu objecto - , j na descoberta deste seu ver como

    intrnseca ciso tudo se altera. No s agora v que o absoluto que v sem se ver, quanto

    se v ainda como o ver gerador da visibilidade desse, ou disso, que sem se ver 20. O

    17 - Cf. Id., Ibid., p.54 e Id., "Relao verdica do saber e do ignorar", in Litoral, 4 (Out./Nov. 1944), pp. 357-362.

    18 - Id., Teoria do Ser e da Verdade, p.24.

    19 - Cf. Id., Filosofia - Ensino ou Iniciao ?, Lisboa, Instituto Gulbenkian de Cincia, 1972, pp.28, 45-46 e 65.

    20 - Cf. Id., Teoria..., pp.54-55.

  • 8

    esprito assim, pelo saber-se unio e ciso cumulativas, no s o a quem se re-vela o

    absoluto como Nada (por sua mesma plenitude, irredutvel a qualquer determinao onto-

    lgica, positiva ou negativa, transcendendo o ser e o no-ser), mas ainda o que re-apropria

    essa absoluteidade, sob condio de se assumir, ele mesmo, uma insubstancialidade

    emergente do, no e para o Nada abissal 21, como o princpio de toda e qualquer

    manifestao, porm no em si mas nela e por ela.

    Decisivo ser compreender que, em todos os aspectos e instncias desta

    fenomenologia primordial, jamais ela escapa ao Nada, o qual, se no se pode dizer sujeito,

    o sem-fundo in-fundante mas omni-englobante do emergir, sem-razo mas fonte de toda a

    razo, da subjectividade fundamental e infinita do esprito. Legtimo portador de todos os

    atributos da representao do uno, nico, eterno e absoluto, o esprito o ver-se, interrogar-

    se e gerar-se (enquanto tal) da Verdade como enigma para si mesma. Inaltervel na mesma

    alteridade que , e que para si, uma vez dito - no derradeiro captulo da Teoria - liberdade

    e Deus 22, surpreende-nos aqui um Deus que s ocultando-se, ou ocultando em si o uno

    absoluto, se conhece e , primeiro personagem do ilimitado processo pneumo-teo-onto-

    cosmognico no qual, comeando na "ciso divina" - a "ciso em Deus", que o multiplica

    em "avatares" e "pessoas", e, num sentido mais fundo, a "ciso primeira e absoluta (...) pela

    qual Deus" - e culminando na sua "contrapolar" e "sensvel" "ciso extrema" 23, a partir do

    e no "uno ser da verdade", "impessoal mas no negando a pessoa e as pessoas" 24, se

    aparenta um intrmino jogo de mscaras onde cada ser s "" pelo encobrimento essencial

    do ser para si e para outrem, na teia de cintilaes do mltiplo a tremeluzir recortando o

    sem-fundo do Nada.

    21 - "Tal o insubstancial substante, o que se diz como o que , mas verdadeiramente no , ou s pela assuno do Nada" -Id., Ibid., p.11.

    22 - Id., Ibid., pp.161 e 166.

    23 - Id., Ibid., pp.91-93.

    24 - Id., Ibid., p.117.

  • 9

    Falando de processo pneumo-teo-onto-cosmognico, aportamos a uma questo

    essencial. que, na unio e ciso cumulativas do haver do esprito, e ainda no seu

    instantneo unir para infinitamente cindir, no seu infinito cindir para absolutamente unir 25,

    no s o absoluto se v e , emergindo do indeclinvel Nada, mas ainda nele se vem e so,

    ou so sem se verem, sendo apenas para outrem, todos os seres e modos de ser,

    comungantes no substante do insubstancial sopro. Tudo importa compreender ento que

    nesta comunidade primordial - cuja omni-abrangncia, como na lio de Sampaio Bruno,

    no exclui sequer as prprias coisas 26, ou o que no pensa nem consciente, surgindo

    "apenas como objecto, imagem para a conscincia finita" 27 - , emergindo constelada do

    Nada pela simultaneidade unitiva-separativa do esprito, tudo outro do que aparenta ser

    para a representao que se constitui no esquecimento, ou na ruptura unilateral, da

    coincidncia entre unir e cindir, saber e ignorar, afirmar e negar. A ciso originria, pela

    qual toda a origem e noo de origem 28, , pois, intrnseca unio. Tal a instncia da "ciso

    autntica" 29 (cuja relao com a "ciso divina" se nos afigura pouco explcita), anterior e

    oculta a todo o pensamento no assumido e transfigurado na "sabedoria inicitica" do

    esprito 30, pela qual se revela o expresso nas decisivas palavras :

    "E o sentido autntico do absoluto aqui surge : como o que se separa ou de si

    tudo separa como ser da verdade, mas no para si separa, como esprito e verdade" 31.

    25 - Cf. Id., Ibid., pp.76, 98 e 169, entre outras.

    26 - Cf. Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, Porto, Livraria Chardron Lello & Irmo, Editores, 1902, p.470. 27 - Jos Marinho, Teoria..., p.113. Cf. tambm p.114.

    28 - Cf. Id., Ibid., p.94.

    29 - Cf. Id., Ibid., pp.71-72.

    30 - Id., Ibid., p.169.

    31 - Id., Ibid., pp.76-77 (o negro nosso).

  • 10

    Se o absoluto, enquanto na pura inscincia do que "no pode mais que ser sem se

    saber", no sendo verdade para si mesmo 32, no sendo, no-no sendo nem sendo para ser

    ou no ser, se intui como a transcendncia pura do Nada virgem de qualquer afirmao-

    negao, j no seu ser para si mesmo, que vimos inerente ao haver do esprito, como

    mesmo-outro e idntico-diferente no Nada abissal, tudo para ser possvel no seu tornar-se

    "esprito e verdade". A re-velao/gerao de Deus a/por si mesmo, enquanto emerge do

    sem-fundo do Nada pelo ver-se esse mesmo sem-fundo, , simultaneamente, a re-

    velao/gerao de todos os seres, possibilitando-os a partir da a-possibilidade primordial

    do Nada, mas em si e para si, no e para o esprito, verdade e liberdade que Deus , no neles

    e para eles, que jamais so ou so para ser em si mesmos. Assim, tal como este mesmo

    Deus-esprito-verdade-liberdade - no qual emerge todo o oculto sentido do divino que

    Marinho desde cedo sondou como o esquecido nas prprias "revelaes religiosas" e logo

    nas representaes teolgicas e teodiceicas dominantes e comuns 33 - , segundo o

    pensamento finito, a face que do Nada podemos reconhecer, tambm nele tudo se possibilita

    e vem a ser na "plenitude do Nada", s velado pelas formas de saber que na iluso

    substancial e entitativa se firmam, como se o que mero trmite ou momento de um

    processo de ser, ou de ser em "esprito e verdade", fosse j plenamente ou fosse para ser.

    Tudo depende de se compreender como a ciso, em Marinho, no se reduz nem se

    identifica mera negatividade, ou separatividade da "ciso extrema", pela qual emerge a

    multiplicao centrfuga, divergente e opositiva dos modos de ser e de saber, mas que ela

    antes refere o pelo qual toda a unio, harmonia e comunho dos mltiplos na plenitude

    inefvel so possveis e pensveis. Tal como o pensamento, ou liberdade, sendo a vida do

    32 - cf.Id., Ibid., p.23.

    33 - Cf., por exemplo, "Reflexes e Aforismos", Presena, n32 (Maro-Junho de 1931), pp.2-4, p.2; in Aforismos sobre o que mais importa, edio de Jorge Croce Rivera, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1994, p. 397; "Reflexes sobre Religio, Deus e Mandamento", Ibid., n 46 (Outubro de l935), pp.4-6; "Sobre o Juzo Tcito", Revista de Portugal, n 3 (Abril de 1938), in Significado e Valor da Metafsica e outros textos, edio de Jorge Croce Rivera, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996, pp.164-168, pp. 167-168; Dialctica e Dianoia", Espiral, n 10 (Lisboa, Vero de 1966), pp.46-54, pp.50-51 e 53-54; "Aforismos", Dirio do Minho, 13 de Outubro de 1973; Aforismos sobre o que mais importa, pp. 161-162, 198, 211, 300, 304, 319, 341-342, 354-355, 370.

  • 11

    prprio absoluto enquanto esprito, excede, antecede e possibilita a determinao do ser dos

    seres, tambm a qualidade propriamente nefasta da ciso reside no em si, ou no ser nela e

    por ela, mas no ignor-la como a indeclinvel condio de possibilidade de toda a

    manifestao e ainda como inerente antes ao plano do ver do que ao do ser 34. Saber da

    ciso, ou seja, da ciso como unio e integrao cumulativa, na co-incidncia dos opostos

    que no absoluto se anulam, , em Marinho, o prprio saber-se do esprito, idntico

    liberdade e divindade do seu haver insubstancial.

    Saber(-se) da unio-ciso que, cremos, o mesmo saber(-se) da Saudade, a qual,

    numa interpretao convergente com a do seu tratamento por Pascoaes, parece designar o

    esprito enquanto instncia matricial, em cuja impassvel pulso genesaca tudo

    coincidentemente presena-ausncia, distncia-proximidade, luz-treva, eterno-temporal,

    incriado-criado, solitrio-comungante, si mesmo e todo o outro, no seio do Nada insondvel

    e pleno. Que Saudade seja o nome assumido na alma portuguesa pelo Esprito, ou pela re-

    velao genesaca do Nada abscndito e patente no seu mesmo revelar-se - na ecloso de um

    Tempo primordial no cindido seno enquanto unido ao Eterno, irrelativo profuso dos

    seres nele e por ele gerados e assim irredutvel a qualquer ontologia, sendo no entanto o que

    a possibilita - , deixou-o Marinho interrogativamente sugerido na aluso ao "mistrio" de

    "outra Saudade mais que humana" 35. Comentando a funda intuio de Pascoaes - o qual,

    nos trs versos finais do Marnos, indica a abissalidade meta-ntica e meta-antropocsmica

    da Saudade : "Pois tudo, tudo, h-de passar, enfim ! / O homem,o prprio mundo passar, /

    Mas a Saudade irm da Eternidade" 36 - , Marinho, interrogando o tema pascoaesiano do

    34 - Cf. Id., Teoria..., p.66. Aqui se apercebe uma divergncia significativa de Marinho relativamente ao influxo do pensamento de Sampaio Bruno, no qual a ciso, alm de essencialmente negativa, parece afectar o Absoluto antes ao nvel do ser do que do saber.

    35 - Id., Verdade, Condio e Destino no Pensamento Portugus Contemporneo, Porto, Lello & Irmo, 1976, p.230. Cf. tambm: "O mistrio da saudade ento, com o mistrio do homem e do ser para homem (sic), o enigma do Tempo ?" - Ibid.

    36 - Teixeira de Pascoaes, Marnus, in Obras Completas, III vol., As Sombras, Senhora da Noite, Marnus, Lisboa, Bertrand, s.d., p.303.

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    renascimento do "ser com a verdade de tudo", adverte que "a Saudade (...) na relao de

    ser e nada", e que "no s do que foi, do que e do que h-de ser" tm os homens saudade,

    pois "a Saudade tambm do que no para ser". Ela , assim, "divina", mas "por razes

    mais fundas" que as enunciadas por Frei Agostinho da Cruz ou por Cames: ou seja,

    "porque o profundo ser de tudo e tudo quanto foi, e ser, ou no sabemos que para ser,

    Saudade". "Sempiterna", ou aquela mesma "vida eterna", de unio-ciso, em "esprito e

    verdade", que o pensador, na Teoria, diz "nem mortal nem imortal" 37, o "ser subtil e

    insubstancial da Saudade" a matriz da gerao e necessrio devir cclico dos seres,

    incluindo os deuses 38. Enquanto "tempo csmico", ela desvela-se-nos na "relao com o

    37 - Jos Marinho, Teoria..., pp.76-77.

    38 - Sobre a virtude teo-onto-cosmognica da Saudade, em Pascoaes, afim ao sentido da manifestao primordial que o esprito, na Teoria, cf. Sant'Anna Dionsio, O Poeta, essa Ave Metafsica, s.l., Seara Nova, 1953, p.54: "(...) para Pascoaes, a Origem no est em Deus, mas na Saudade. Assim como os primitivos Gregos davam a entender, por meio das suas ingnuas cosmogonias, que o primeiro Ser teria sido Cronos (ou seja o Tempo) e que dele teriam nascido os deuses, assim o Poeta, com uma audcia e uma ingenuidade que nada lhes fica a dever, afirma que a madre espiritual e transcendente, criadora do cu e da terra, a Ansiedade que tudo envolve, incluindo a prpria alma divina. Deus como criatura da saudade, - eis, em suma, o mais alto axioma teodiceico do Poeta". Tambm Marinho apreendeu o fundo alcance deste aspecto da viso pascoaesiana: "A grandeza especfica de Pascoais que o [[coloca]] por cima de toda a poesia portuguesa, ter visto que [[esse]] volver cclico fatal coage [[os prprios]] no s os homens [[mas]] os outros seres de que podemos ver o nascimento e a morte, como tambm os prprios deuses. Deste modo, para alm do Cristianismo e do correspondente humanismo moderno, liga-se o nosso genial poeta tradio milenria a que pertencem entre os maiores Hesodo e squilo. [[Enquanto]] Ora preciso ter longamente e em diversas idades [[ter]] meditado a Genealogia dos Deuses e o Prometeu para entender tudo quanto aqui significo" - Nova Interpretao do Sebastianismo, in Jorge Rivera, A Meditao do Tempo no Pensamento de Jos Marinho, Anexo, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1990, p.112 [policopiado]. Com este apontamento, Marinho coloca a meditao da Saudade no difcil mago da histria mtica do mundo, em particular no que respeita sua relao com o sentido pr-indo-europeu da Terra ou da Deusa Mater e, no mbito da tradio grega, com o segredo detido por Prometeu, o tit protector dos homens, acerca de algo que excede o prprio deus supremo, Zeus, e que o obrigar fatal sucesso, caso no liberte Prometeu e obtenha o seu apoio - cf. squilo, Prometeu Agrilhoado. No poderemos aqui desenvolver toda a ampla gama de sugestes destes temas. Segundo a nossa interpretao, a leitura final que Marinho faz de Pascoaes contrasta obviamente com a do juvenil ensaio no qual a Saudade se interpreta como "um sentimento humano ou uma atitude humana nunca identificvel com a eternidade, apesar de poder revel-la", acrescentando-se: "O poeta fez sem razo da Saudade no Maranos o que com mais razo fizera Dante do Amor na Divina Comdia. Porque a Saudade no , com efeito, um sentimento que nos d como o amor a plenitude do ser, o que no Maranos est provado pela prpria dualidade Eleonor-Saudade" cf. Ensaio sobre a Obra de Teixeira de Pascoaes, in Teixeira de Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade e outros textos, edio de Jorge Croce Rivera,

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    que em ns transita e regressa enquanto surdo desejo e lembrana flor da memria - desejo e

    lembrana de outro que o vivido ou para viver-se ainda". Na tenso criadora para uma

    eternidade que, por essa mesma viso-vida primordial que de si para si se constitui, no

    imvel, a Saudade manifesta-se como um Logos genesaco e palingensico, que Marinho

    afirma estar "antes de toda a razo sem-razo [sic] genesaca", descerrando-se-nos

    porventura nas experincias-limite, ou nas quais o aparente limite se converte em limiar 39,

    como na "relao da loucura e do sentido profundo da morte". A Ressurreio na e pela

    Saudade, ou a Ressurreio que j e sempre a Saudade, como num instantneo, sempiterno

    e suspenso recompor-se do estremecimento de uma queda que nunca houve como por

    vezes ao adormecermos - , descobre-nos nesse parto virginal, para-doxal e im-possvel, do

    Absoluto que, na mesma viso unvoca, enquanto viso do "ser que no ", "a todo o

    instante se cinde de si para regressar a si", no "evanescente instante" que "todo o tempo da

    Saudade, do amor, da f profunda, do pensamento". Unificadora de contrrios, cerzindo a

    fissura no ver pelo ver(-se) da prpria ciso, pelo qual esta como o que no , ou em si

    mesma se anula, a Saudade instantaneamente transfigura e para escndalo da conscincia,

    sobretudo ocidental no apenas reversibiliza todo o curso temporal, adunando plenitude

    os seres s aparentemente, ou seja, na viso no saudosa, precipitados na ciso sem recurso,

    como torna mesmo reversvel o aparente processo de constituio do existir, do indivduo

    e do mundo, raiz da iluso pela qual se pensa em termos de tempo e Origem.

    Como diz Marinho: "J pela montanha ascende todo o humano e todo o criado e

    incriado ao ser da luz eterna, j a Saudade brandamente impele, seduz ou arrebata todo o

    demonaco e todo o proscrito desde o mais fundo inferno para a radiosa comunho no ser, na

    verdade e na luz" 40. E como diz Pascoaes: Tambm h-de chegar o dia em que eu prprio

    Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005, p.147, e Significado e Valor da Obra de Teixeira de Pascoaes, in Ibid., p. 195. Sobre a Saudade e sua relao com o Amor, em Pascoaes, cf. Paulo Borges, A iniciao amorosa no Marnus, de Teixeira de Pascoaes, in Pensamento Atlntico. Estudos e Ensaios de Pensamento Luso-Brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002, pp.202-208.

    39 - Cf. Eudoro de Sousa, Mitologia, Editora Universidade de Braslia, 1980, 38, p.98.

    40 - Cf. Jos Marinho, "Pascoais, poeta da viso unvoca", Dirio de Notcias, 24 de Janeiro de 1963. Cf. ainda: "Com o Regresso ao Paraso o divino poder da Saudade liberta de todo o mal os homens

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    nunca existi. E h-de chegar tambm o dia em que o mundo nunca existiu: o mundo, o Sol e

    as estrelas... 41; H horas em que Deus no existe, em que nada existe ! 42; Esta questo

    da Origem mostra o desejo de definir, - desejo, que o prprio mbil da alma, pois definir

    equivale a ver, o que seria a tentao da morte 43; O existir cria a iluso de Tempo, a

    qual, por sua vez, cria a iluso de Origem 44. De notar que, nestes dois ltimos excertos,

    como bem o nota Marinho, pelo menos aparentemente, o pensamento de Teixeira de

    Pascoaes se volta contra si prprio 45.

    Surge assim a Saudade, simultaneamente, como via gradual e instante realizao da

    Demanda tal a do Graal, para indicarmos o s sugerido nexo com a narrativa medieval - ,

    inerente libertadora e mais que humana e divina desmesura do esprito que tudo abandona

    e arrisca pelo ver(-se) sem vus, reconhecendo a incircunscrita e omnipresente abertura do

    Tudo para Todos, para alm de quaisquer motivos ticos, filosficos ou religiosos,de origem

    humana ou divina,mas conferindo-lhes a nica justificao possvel. O que, desde logo,

    convoca a Saudade ao sacrifcio de si, na consumao do para alm do qual nada mais h

    ao qual tende, o que o prprio auto-sacrifcio instante e constitutivo do haver do esprito,

    que s "" e "" autenticamente pela assuno do Nada.

    neste duplo e uno vector, de uma radical exigncia de i-legitimao e superao da

    finitude enquanto acesso total e imediato emergncia autntica e in-finitizante de sentido 46

    condenados, revela noutra anglica excelsitude todo o demonaco e satnico" - Id., Verdade, Condio e Destino..., p.231. Na mesma obra, e comentando um dos aspectos da viso da Saudade em Leonardo Coimbra, como ntima a uma fenomenologia da conscincia espiritual, Marinho escreve que "a Saudade atendida no apenas como objecto de uma razo constituda, apologtica ou crtica, mas como o que emerge da mais autntica e profunda subjectividade, no trnsito do esprito anterior a todas as determinaes para as determinaes possveis do pensamento"- p.239.

    41 Cf. Teixeira de Pascoaes, O Bailado, introduo de Alfredo Margarido, Lisboa, Assrio & Alvim, 1987, p.94. 42 Cf. Ibid., p.113. 43 Cf. Id., Verbo Escuro, in Verbo Escuro / A Beira (num relmpago), edio do autor, Paris/Lisboa, Livrarias Aillaud & Bertrand, s.d., p.53. 44 Cf. Ibid., p.54. 45 Cf. Jos Marinho, Teixeira de Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade e outros textos, p. 236. Cf. tambm p. 238. 46 - Cremos culminar assim em Marinho uma das vertentes mais significativas do pensamento portugus

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    - o que no exclui que tal acesso no seja seno possvel no acto mesmo do sacrifcio de si e

    desta emergncia, ou seja, que o ganho da plenitude de sentido coincida com a sua abissal e

    total perda - , que interpretamos tanto a recomendao final da Teoria - "Para compreender

    quanto dissemos, importa, entretanto, no dizer como os que disseram que o filsofo tudo

    medita menos a morte ou como os que asseveraram que do Nada nada sai" 47 - quanto a sua

    advertncia inicial: "O autor [...] foi levado pelo ltimo sentido do insubstancial substante

    para uma doutrina efectiva de libertao. Coube-lhe mostrar, a ele tambm, que desde a

    sensao ideia todo o pensamento por mais modesto liberta, e que verdade no que

    permanece escravo ou fautor de servido, no tem sentido algum" 48. Aqui, porm, onde

    outros textos, compreensivelmente de maior e mais imediato impacto nos vrios planos de

    institucionalizao do pensar (desde o mental ao cultural e ao escolar), primam pela atitude

    ttica ou antittica, a teorese em Marinho reflui para o instante da mesma e jamais exaurida

    interrogao pela qual infinitamente se abre, mostrando no definitiva nem nica qualquer

    forma ou via de re-velar a verdade 49, ou seja, aquilo que s enquanto re-velao j do

    nico absoluto: o Nada pleno 50.

    contemporneo, a qual tende a assumir a inautenticidade, ambiguidade e/ou malignidade de uma manifestao ou criao intrinsecamente finitizante, ou das vises religiosas e metafsicas que assim a representam. Tal como j em Leonardo Coimbra, que no Criacionismo afirma a radical ilimitao de todas as mnadas, no apenas as humanas, na vida originria em Deus (cf. Obras, I, seleco, coordenao e reviso pelo Prof. SantAnna Dionsio, Porto, Lello & Irmo Editores, 1983, p.391), a tese aqui frontalmente contestada aquela que assume a "imperfeio" constitutiva e a "limitao essencial e original" dos existentes, na dependncia criatural de Deus, consoante as transparentes formulaes de Leibniz: Principes de la Nature et de la Grce fonds en Raison, 9; Principes de la Philosophie ou Monadologie, 42; Paris, PUF, 1986, pp. 49 e 95.

    47 - Cf. Jos Marinho, Teoria..., p.168.

    48 - Ib., Ibid., p.13.

    49 - Cf. Id., Ibid., p.168.

    50 - Que o Nada irrelativo mera negao e privao de existncia, ser e sentido, sendo apenas o termo menos desadequado para dizer uma transcendncia, ou plenitude intrinsecamente excessiva de todas as determinaes positivas e negativas, parece sugeri-lo a etimologia do seu equivalente latino. Contrariamente ao que indica a provvel origem do sentido comum da palavra nada na locuo latina "nulla res nata" ("nenhuma coisa nascida"), a origem de nihil advm da aposio da partcula negativa ne ao substantivo neutro hilum, i, o qual j tem o sentido de "quase nada, nada, um nada", sendo assim sugerido, pela negao deste, o algo misterioso (ou seja, etimologicamente, inefvel) do que no coisa alguma nem

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    a sua negao.