Upload
francisco-serpa
View
4
Download
2
Embed Size (px)
Citation preview
Nada, Esprito e Saudade em Jos Marinho 1
Paulo Borges
(Universidade de Lisboa)
Antes de abordarmos propriamente o pensamento de Jos Marinho, permitimo-nos
convidar os leitores para que nos transportemos, mediante a imaginao criadora e seguindo
o roteiro de um dos textos mais significativos da cultura medieval portuguesa - A Demanda
do Santo Graal - , ao dia e festa de Pentecostes, nos quais, pela primeira e ltima vez, todos
os cavaleiros da Tvola Redonda se encontram na corte e pao de Camelote. Ao anoitecer, e
j sentados em torno da ampla mesa comum, eis que se ouve um imenso trovo, pelo qual
tudo estremece, seguido do jorro duma luz incomum, que ilumina o pao mais do que se dia
fosse. Surpreendemo-nos ento cheios da graa do Esprito Santo e, contemplando-nos
mutuamente, descobrimo-nos muito mais belos do que o habitual, o que nos deixa longo
tempo suspensos num silncio maravilhado. agora que o Santo Graal entra no pao,
coberto por um vu branco e suspenso no ar, sem ser visvel algum que o transporte. Um
magnfico odor enche a atmosfera e, medida que o vaso sagrado circula ao redor da mesa,
esta repleta de tal manjar qual cada um de nossos coraes o deseja. Saciado o apetite, o
clice deixa a sala, sem que algum saiba por onde nem para onde. S ento a palavra
1 - O presente texto nasceu de uma conferncia proferida no Centro de Estudos Portugueses, no IADE, em 18 de Junho de 1991, integrada no ciclo sobre A filosofia de Jos Marinho. Subordinado inicialmente ao tema A ideia de Homem em Jos Marinho, o estudo, por razes inerentes ao aprofundamento do pensamento do autor, evoluiu para a temtica enunciada, convertendo-se num ensaio bastante mais amplo que apenas aqui publicamos parcialmente. Agradecemos a todos os conferentes a contribuio, ainda e sobretudo pelo confronto de perspectivas antagnicas, para a leitura que aqui se apresenta, cientes de que, pela natureza singular, difcil e ainda pouco explorada de um pensamento que se assume na instncia interrogativa, ela jamais poder considerar-se definitiva, evitando o mesmo enigma do interrogar-se cujo sentido persegue. Poderamos assim subscrever, a respeito da nossa interpretao, o que o pensador afirma, na introduo obra onde expe o pensamento da "longa [...] viagem insituada" de toda uma vida : "A teoria, concludente em sua origem, inconclusiva na finalidade aberta : o de que partiu, o autor tacitamente o sabe, o por que passou, aproximadamente o sabe, o a que chegou, mais o ignora" - Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimares Editores, 1961, p.14
2
retorna, para testemunhar da alegria comum e dar graas pelo dom concedido - em particular
o rei, cujo reino acaba de ser distinguido com bno at ento desconhecida.
Mas um cavaleiro - Galvo, ou um de ns... - ergue-se e adverte Artur : "Senhor, h
ainda nisto algo que vs no cuidais. Sabei que no houve cavaleiro que no frusse quanto
pensou em seu corao, e isto nunca aconteceu em nenhuma corte, a no ser na do rei Peles.
Contudo fomos enganados, pois no vimos o Vaso seno coberto. Ora, por mim, aqui
prometo a Deus e a toda a cavalaria que de manh, se Deus me quiser atender, entrarei na
Demanda do Santo Graal e jamais tornarei corte, acontea o que acontecer, at que melhor
e mais a meu prazer veja o que ora vi. S voltarei se tal for impossvel". Eis-nos em silncio
at ao fim da refeio, mas, logo aps, todos nos dirigimos a Artur, repetindo a mesma
promessa: partir e jamais suspender a Demanda at contemplar e fruir, agora des-velado e
desnudo, o que s nos foi dado encoberto, se tal for outorgado por "af" e "trabalho" que
possamos suportar 2.
Continuando ou no, por mediao do psicodrama proposto (s o leitor decidir se, e
o modo pelo qual doravante nele se integrar), esta potica de ns mesmos, ou o outrar-se
(como diria Pessoa), mais inicitico que somente heteronmico, pelo qual desde j
assumimos a "viagem na qual nasce o prprio viajante" 3 que o pensar com Jos Marinho
exige, demais no ser lembrar que Galvo, aquele que tem a iniciativa da Demanda - ou
seja, da Questa, constitutiva do questionar enquanto busca do desconhecido, apenas re-
velado -, por excelncia o cavaleiro mal-aventurado, sendo responsvel pela morte de
muitos irmos de armas, tal como desde incio profetizado. Alis, a prpria Demanda
parece marcar o incio da runa definitiva do reino de Logres, com o ocultamento do Graal e
a consequente desgraa. De todos os que partem sabemos que, na verso portuguesa, s
doze cavaleiros, sendo o primeiro e o ltimo Galaaz, tero a viso do Clice, j ento no
2 - Cf. A Demanda do Santo Graal, edio de Joseph-Maria Piel, concluda por Irene Freire Nunes, introduo de Ivo de Castro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1988, XXV-XXVII, pp.16-17 (adaptao do texto e itlicos da nossa autoria).
3 - Jos Marinho, Teoria do Ser e da Verdade, Lisboa, Guimares Editores, l96l, p.65.
3
referido como encoberto 4. Pertinente ser pois recordar alguns dos atributos caractersticos
deste Galaaz que, logo aps a viso, morre, em estado de graa: filho ilegtimo de
Lancelote, nascendo em pecado 5; penetra misteriosamente no pao de Camelote, com as
portas e janelas fechadas, ao mesmo tempo que uma luz faz perder a fala a quantos a esto 6, aparentando-se pois com o prprio Graal...; ocupa o lugar perigoso, na Tvola, investindo
a condio profetizada daquele que cumpriria "as aventuras do Santo Graal" 7; vence a prova
da espada, extraindo-a do padro onde estava implantada 8; o nico que se recusa a levar
escudo para a Demanda, partida e por sua prpria iniciativa, protestando que seu mal faria
se assim o fizesse e fazendo votos de s o aceitar quando a ventura lho conceda 9; e,
finalmente, virgem, assim vendo o Graal e morrendo 10.
Bom, e Jos Marinho ? - interrogar-se-o os atentos mas porventura perplexos
leitores, tanto mais perplexos quanto menos disponveis para aceitar que o pensamento
tambm, e no poucas vezes com o rigor de uma maior e mais autntica profundidade, se
implica em obras de "literatura" - como tende a acontecer na cultura portuguesa - ,
fornecendo preciosa matria inquirio e hermenutica filosficas mais exigentes. Como
resposta a tal interrogao, que eventualmente s ser explcita no fim do presente texto e
dependendo da disponibilidade do leitor para se assumir protagonista activo do mesmo - ,
permita-se-nos que, na liberdade e intemporalidade do esprito, desloquemos a demanda da
vossa ateno para o primeiro captulo - Da Viso Unvoca - da Teoria do Ser e da Verdade,
redigido e publicado cerca de sete sculos aps a provvel data do texto medieval portugus.
4 - Cf. A Demanda do Santo Graal, ed. cit., DXCVIII-DXCIX e DCXXVIII, pp.407-409 e 427-428.
5 - Cf. A Demanda do Santo Graal, ed. cit., V, p.3.
6 - Idem, Ibidem, XVI, p.10.
7 - Id., Ibid., XVI-XVII, pp.10-11.
8 - Id., Ibid., XIX, pp.12-13.
9 - Id., Ibid., XLI, p.27.
10 - Id., Ibid., DCXXVII, pp.427-428.
4
Eis-nos perante o testemunho de algum a quem "foi dado" (o itlico nosso) ver e
ser "plenamente", no excesso de todo o ver e ser finitos e na coincidncia sem fissura de ser
e saber, ou, melhor, de ser e verdade. Na "intuio pura" que, no "instante" da "mais pura
alegria", e concentrando todas as potncias do "ser, sentir e pensar", ela mesma se anula, e
"razo", no "ser uno da verdade", a negao de toda a forma finita de ser, saber e viver j o
"afirmar, e afirmar-se no no-ser do homem, o nico", ou "absoluto", anulando toda a
relao onto-lgica entre diferentes, complementares, contrrios ou contraditrios.
"Intrmina viso meridiana", sem crepsculo auroral ou vesperal, alheia ao sentido
da sucesso e da transitividade, a "viso unvoca" manifesta, desde o incio do seu eclodir,
uma relao ambgua com o que parece ser apenas a sua circunstncia humana.
Denunciando o conhecimento como "milenrio e vo propsito frustrado ou adiado dos
filsofos imprudentes em sua mesma prudncia" - e assim tambm a todo o amar, crer e agir
precrios, como "filhos comuns do homem e da iluso do homem, da vida e da iluso da
vida" - , assumido pelo "absoluto" como o que e se manifesta no "no-ser do homem", esse
que o testemunha no deixa de se confessar, simultaneamente, como o que "humanamente"
vive no seio do tempo, da finitude e da mortalidade, se bem que apenas como o que a tudo
isso nega e anula, na implcita afirmao daquele uno e nico absoluto 11.
Depara-se-nos ento o modo incomum de um ser que, vendo e sendo absoluto - um
absoluto ileso da correlao criador/criatura, princpio/origem, vida/morte - ,
cumulativamente exerce a vida humana. Vivendo apropriado pela "viso unvoca" - a qual,
eterna e meridiana, o auto-desvelamento do que no tem outro que o interprete - , sendo
"onde" "a noite no foi, nenhum sol teve ocaso, nada se deu na diversidade da luz, do que
traz a luz ou a oculta, nada nasceu, no h morte" 12, com este absoluto humano ou no
homem contrastam os "homens". Designa-se assim o estado comum dos que, seus
semelhantes segundo o existir e a vida, dele diferem quanto hesitao e suspeita com que
recebem a mesma viso unvoca, a qual se d e renova sempre em e "para alm de toda a
11 - Cf., para tudo o que considermos, Jos Marinho, Teoria do Ser e da Verdade, pp.19-22.
12 - Id., Ibid., pp.21-22.
5
idade e todo o tempo" e "de todo humano ou divino ser", e da qual a seu modo participa tudo
quanto ou existe. Ao patenteador de absoluto, que "como filsofo se apresenta", chamam
os homens "mstico extraviado", apressando-se por todos os meios, quando no a dizer
irreal, a "tornar alheio e distante" - pretrito, passado, enclausurado na histria das ideias e
na subjectividade de alguns pensadores - , "o nico que pode dizer-se presente", ou seja, o
ver-ser irrelativo e incondicionado 13. Reclama-se porm filsofo o que aqui diz da sua
afectao pela verdade, assumindo e transportando o pelo qual assumido e transportado: o
que mais ou s importa (radicalizando a expresso que Marinho colhe de Plotino), por cuja
insustentao se constituem, no prprio acto de o negarem e diferirem, as modalidades de
um mesmo, mais fundo e inaparente senso comum, culto ou inculto, religioso ou ateu,
filosfico ou no.
Mas este - cuja humanidade alterada pela verdade, no sentido de uma viso
henolgica radical, se indefine e imponderabiliza na absoluteidade que a absorve, tornando-
o, "no ser, outro que ser" - ainda passvel de surpresa. Ele, que pressupe ser e ver
"plenamente", sabendo "para sempre toda a verdade", sbito apercebe que, se um e o mesmo
so ser e verdade, e se esse o "uno, eterno e absoluto", o que se designa por Deus, no
pode s-lo ento para si prprio, no pode saber-se: uno, eterno e absoluto, Deus, ser e
verdade, tal s o no para si mas para outro; em si, o que absolutamente , -o sem se
saber. Funda "turbao" avassala ento o que se presumira ciente da verdade na "viso
unvoca", revelando-se-lhe sumamente enigmtico o seu ver e saber do que assim v e sabe
como s podendo ser sem viso e saber de si. Perante a manifesta incoincidncia do "ser da
verdade" - o que o sem se saber - e da "verdade do ser" - o saber-se do que -, da
inscincia do absoluto e da vidncia do mesmo, de algum modo outra que ele mas dele
procedente e fonte de todo o discurso possvel a seu respeito, aquele "que pensara na
anulao de todo o pensamento" descobre a no-verdade do ver e dizer a verdade no "ser
da verdade" e, assim, a intrnseca qualidade de ciso do que antes reputava por unio pura e
absoluta. E neste transe crtico, como um vir luz para fora do que se tinha pela prpria
13 - Id., Ibid., pp.22 e 139.
6
luz, que homem e viso unvoca "mais intimamente" nascem, outros do que aparentavam
ser: um homem interrogando-se sobre a estranheza de uma viso mista de pleno saber e
ignorar, e que a surpreende agora "inumana, ou desumana de outra desumanidade" que
aquela que na absoluteidade primeva j se lhe patenteara, apropriando-o; uma viso que, na
mesma interrogao do homem, de si para si se interroga como enigma e mistrio, enquanto
no uno absoluto como o que afirmando a sua verdade imediatamente a nega, pois tal
verdade no o para si mesma: "a verdade [...] no para o mesmo ser da verdade". Ao
filsofo, que antes como tal se apresentava, mas "que s agora o propriamente", desvenda-
se ento o at a ignorado - o "esprito", paradoxal unio/ciso - , bem como, nele, a
"profunda razo", que se antecipa como "a razo da razo", de os "humanos, sbios e
ignorantes", por ele o negarem e "viso unvoca". A simples possibilidade de a negar
evidencia, contudo, o sab-la, patenteando ainda o "esprito" como o nela implcito e
afirmado no acto mesmo do neg-lo, enquanto secreto e ignoto sujeito de todo o pensamento
e forma de conscincia 14.
O que interroga e se interroga ento o "esprito", por Marinho reinterpretado e
rebaptizado como "insubstancial substante", haver irrelativo a ser ou estar algum,
subsistindo em toda a substancialidade do que ou est, corpo e alma, apenas enquanto
"passa", ou perpassa, "como sopro e vento" 15. A actividade do esprito, a qual, "no sendo
vida, condio de toda a vida" 16, a perene demanda da interrogao, que de si e de tudo
- ser, verdade, sua relao e outro que ser e verdade, na coincidncia plena que os anula -
para si reflui, e sem a qual no h pensar autntico. Mas o pensamento j no pode,
doravante, consistir apenas na viso unvoca que absoluteidade supe aceder, como o que
nela, ciente dela, se anula. So o prprio ser da viso unvoca - no qual se sabe agora "toda a
verdade" e "todo o engano", pelo desvendamento dos limites inerentes ao que sabe o uno e a
tal saber, na incindvel relao de saber e ignorar, afirmar e negar e, logo, de unio e ciso
14 - Id., Ibid., pp.22-25.
15 - Id., Ibid., p.55.
16 - Id., Ibid., p.55.
7
cumulativas, conforme Marinho desde 1944 o adverte 17 - e o correlato uno absoluto nele e
para ele, como outro do em si ausente de para si mesmo,que se desvelam mistos de iluso,e
passveis de serem considerados como o que de algum modo no ou s emerge como
primordial fenomenalizao de um "mais profundo Nada" 18.
Eis-nos, segundo cremos, no cerne da incomum e difcil teorese de Marinho.
Anterior a, e condio de, qualquer possibilidade de viso, representao metafsica e
discurso ontolgico, plasmando-se segundo as grandes figuras do pensamento universal -
Deus, homem, mundo - , correlatos no seu ser suposto consistente e dado evidncia no
pensamento, encontramos o inesperado enigma de um uno absoluto que re-velao, de si
para si mesmo, ou seja, manifestao e ocultamento simultneos. Essente, ciente de si,
pensvel e dizvel, o absoluto s o no e pelo esprito, para-doxal haver de uma alteridade
no seio do que s nela e por ela se pensa como o mesmo, sem que na unio-ciso das suas
correlatas figuras onto-lgicas tal absoluto efectivamente se altere ou mesmifique.
Inaltervel e pleno como Nada, irrelativo dualizao sujeito-objecto por que se gera e
persiste toda a forma de conscincia - ainda na simples viso intuitiva - , o uno absoluto para
si o advm como outro-mesmo relativamente ao intrnseco Nada, que a unio-ciso do
esprito oculta na mesma "viso genesaca" que d luz o "nico necessrio" 19.
Mas se na "viso unvoca" o esprito, primeira instncia de uma "especulao" pura,
absoluta e instantnea, v sem se ver no ver do que v - na gnese de uma viso que,
simultaneamente, em si e para si gera o visto enquanto cega para esse mesmo processo de
constituio de si no constituir do seu objecto - , j na descoberta deste seu ver como
intrnseca ciso tudo se altera. No s agora v que o absoluto que v sem se ver, quanto
se v ainda como o ver gerador da visibilidade desse, ou disso, que sem se ver 20. O
17 - Cf. Id., Ibid., p.54 e Id., "Relao verdica do saber e do ignorar", in Litoral, 4 (Out./Nov. 1944), pp. 357-362.
18 - Id., Teoria do Ser e da Verdade, p.24.
19 - Cf. Id., Filosofia - Ensino ou Iniciao ?, Lisboa, Instituto Gulbenkian de Cincia, 1972, pp.28, 45-46 e 65.
20 - Cf. Id., Teoria..., pp.54-55.
8
esprito assim, pelo saber-se unio e ciso cumulativas, no s o a quem se re-vela o
absoluto como Nada (por sua mesma plenitude, irredutvel a qualquer determinao onto-
lgica, positiva ou negativa, transcendendo o ser e o no-ser), mas ainda o que re-apropria
essa absoluteidade, sob condio de se assumir, ele mesmo, uma insubstancialidade
emergente do, no e para o Nada abissal 21, como o princpio de toda e qualquer
manifestao, porm no em si mas nela e por ela.
Decisivo ser compreender que, em todos os aspectos e instncias desta
fenomenologia primordial, jamais ela escapa ao Nada, o qual, se no se pode dizer sujeito,
o sem-fundo in-fundante mas omni-englobante do emergir, sem-razo mas fonte de toda a
razo, da subjectividade fundamental e infinita do esprito. Legtimo portador de todos os
atributos da representao do uno, nico, eterno e absoluto, o esprito o ver-se, interrogar-
se e gerar-se (enquanto tal) da Verdade como enigma para si mesma. Inaltervel na mesma
alteridade que , e que para si, uma vez dito - no derradeiro captulo da Teoria - liberdade
e Deus 22, surpreende-nos aqui um Deus que s ocultando-se, ou ocultando em si o uno
absoluto, se conhece e , primeiro personagem do ilimitado processo pneumo-teo-onto-
cosmognico no qual, comeando na "ciso divina" - a "ciso em Deus", que o multiplica
em "avatares" e "pessoas", e, num sentido mais fundo, a "ciso primeira e absoluta (...) pela
qual Deus" - e culminando na sua "contrapolar" e "sensvel" "ciso extrema" 23, a partir do
e no "uno ser da verdade", "impessoal mas no negando a pessoa e as pessoas" 24, se
aparenta um intrmino jogo de mscaras onde cada ser s "" pelo encobrimento essencial
do ser para si e para outrem, na teia de cintilaes do mltiplo a tremeluzir recortando o
sem-fundo do Nada.
21 - "Tal o insubstancial substante, o que se diz como o que , mas verdadeiramente no , ou s pela assuno do Nada" -Id., Ibid., p.11.
22 - Id., Ibid., pp.161 e 166.
23 - Id., Ibid., pp.91-93.
24 - Id., Ibid., p.117.
9
Falando de processo pneumo-teo-onto-cosmognico, aportamos a uma questo
essencial. que, na unio e ciso cumulativas do haver do esprito, e ainda no seu
instantneo unir para infinitamente cindir, no seu infinito cindir para absolutamente unir 25,
no s o absoluto se v e , emergindo do indeclinvel Nada, mas ainda nele se vem e so,
ou so sem se verem, sendo apenas para outrem, todos os seres e modos de ser,
comungantes no substante do insubstancial sopro. Tudo importa compreender ento que
nesta comunidade primordial - cuja omni-abrangncia, como na lio de Sampaio Bruno,
no exclui sequer as prprias coisas 26, ou o que no pensa nem consciente, surgindo
"apenas como objecto, imagem para a conscincia finita" 27 - , emergindo constelada do
Nada pela simultaneidade unitiva-separativa do esprito, tudo outro do que aparenta ser
para a representao que se constitui no esquecimento, ou na ruptura unilateral, da
coincidncia entre unir e cindir, saber e ignorar, afirmar e negar. A ciso originria, pela
qual toda a origem e noo de origem 28, , pois, intrnseca unio. Tal a instncia da "ciso
autntica" 29 (cuja relao com a "ciso divina" se nos afigura pouco explcita), anterior e
oculta a todo o pensamento no assumido e transfigurado na "sabedoria inicitica" do
esprito 30, pela qual se revela o expresso nas decisivas palavras :
"E o sentido autntico do absoluto aqui surge : como o que se separa ou de si
tudo separa como ser da verdade, mas no para si separa, como esprito e verdade" 31.
25 - Cf. Id., Ibid., pp.76, 98 e 169, entre outras.
26 - Cf. Sampaio Bruno, A Ideia de Deus, Porto, Livraria Chardron Lello & Irmo, Editores, 1902, p.470. 27 - Jos Marinho, Teoria..., p.113. Cf. tambm p.114.
28 - Cf. Id., Ibid., p.94.
29 - Cf. Id., Ibid., pp.71-72.
30 - Id., Ibid., p.169.
31 - Id., Ibid., pp.76-77 (o negro nosso).
10
Se o absoluto, enquanto na pura inscincia do que "no pode mais que ser sem se
saber", no sendo verdade para si mesmo 32, no sendo, no-no sendo nem sendo para ser
ou no ser, se intui como a transcendncia pura do Nada virgem de qualquer afirmao-
negao, j no seu ser para si mesmo, que vimos inerente ao haver do esprito, como
mesmo-outro e idntico-diferente no Nada abissal, tudo para ser possvel no seu tornar-se
"esprito e verdade". A re-velao/gerao de Deus a/por si mesmo, enquanto emerge do
sem-fundo do Nada pelo ver-se esse mesmo sem-fundo, , simultaneamente, a re-
velao/gerao de todos os seres, possibilitando-os a partir da a-possibilidade primordial
do Nada, mas em si e para si, no e para o esprito, verdade e liberdade que Deus , no neles
e para eles, que jamais so ou so para ser em si mesmos. Assim, tal como este mesmo
Deus-esprito-verdade-liberdade - no qual emerge todo o oculto sentido do divino que
Marinho desde cedo sondou como o esquecido nas prprias "revelaes religiosas" e logo
nas representaes teolgicas e teodiceicas dominantes e comuns 33 - , segundo o
pensamento finito, a face que do Nada podemos reconhecer, tambm nele tudo se possibilita
e vem a ser na "plenitude do Nada", s velado pelas formas de saber que na iluso
substancial e entitativa se firmam, como se o que mero trmite ou momento de um
processo de ser, ou de ser em "esprito e verdade", fosse j plenamente ou fosse para ser.
Tudo depende de se compreender como a ciso, em Marinho, no se reduz nem se
identifica mera negatividade, ou separatividade da "ciso extrema", pela qual emerge a
multiplicao centrfuga, divergente e opositiva dos modos de ser e de saber, mas que ela
antes refere o pelo qual toda a unio, harmonia e comunho dos mltiplos na plenitude
inefvel so possveis e pensveis. Tal como o pensamento, ou liberdade, sendo a vida do
32 - cf.Id., Ibid., p.23.
33 - Cf., por exemplo, "Reflexes e Aforismos", Presena, n32 (Maro-Junho de 1931), pp.2-4, p.2; in Aforismos sobre o que mais importa, edio de Jorge Croce Rivera, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1994, p. 397; "Reflexes sobre Religio, Deus e Mandamento", Ibid., n 46 (Outubro de l935), pp.4-6; "Sobre o Juzo Tcito", Revista de Portugal, n 3 (Abril de 1938), in Significado e Valor da Metafsica e outros textos, edio de Jorge Croce Rivera, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996, pp.164-168, pp. 167-168; Dialctica e Dianoia", Espiral, n 10 (Lisboa, Vero de 1966), pp.46-54, pp.50-51 e 53-54; "Aforismos", Dirio do Minho, 13 de Outubro de 1973; Aforismos sobre o que mais importa, pp. 161-162, 198, 211, 300, 304, 319, 341-342, 354-355, 370.
11
prprio absoluto enquanto esprito, excede, antecede e possibilita a determinao do ser dos
seres, tambm a qualidade propriamente nefasta da ciso reside no em si, ou no ser nela e
por ela, mas no ignor-la como a indeclinvel condio de possibilidade de toda a
manifestao e ainda como inerente antes ao plano do ver do que ao do ser 34. Saber da
ciso, ou seja, da ciso como unio e integrao cumulativa, na co-incidncia dos opostos
que no absoluto se anulam, , em Marinho, o prprio saber-se do esprito, idntico
liberdade e divindade do seu haver insubstancial.
Saber(-se) da unio-ciso que, cremos, o mesmo saber(-se) da Saudade, a qual,
numa interpretao convergente com a do seu tratamento por Pascoaes, parece designar o
esprito enquanto instncia matricial, em cuja impassvel pulso genesaca tudo
coincidentemente presena-ausncia, distncia-proximidade, luz-treva, eterno-temporal,
incriado-criado, solitrio-comungante, si mesmo e todo o outro, no seio do Nada insondvel
e pleno. Que Saudade seja o nome assumido na alma portuguesa pelo Esprito, ou pela re-
velao genesaca do Nada abscndito e patente no seu mesmo revelar-se - na ecloso de um
Tempo primordial no cindido seno enquanto unido ao Eterno, irrelativo profuso dos
seres nele e por ele gerados e assim irredutvel a qualquer ontologia, sendo no entanto o que
a possibilita - , deixou-o Marinho interrogativamente sugerido na aluso ao "mistrio" de
"outra Saudade mais que humana" 35. Comentando a funda intuio de Pascoaes - o qual,
nos trs versos finais do Marnos, indica a abissalidade meta-ntica e meta-antropocsmica
da Saudade : "Pois tudo, tudo, h-de passar, enfim ! / O homem,o prprio mundo passar, /
Mas a Saudade irm da Eternidade" 36 - , Marinho, interrogando o tema pascoaesiano do
34 - Cf. Id., Teoria..., p.66. Aqui se apercebe uma divergncia significativa de Marinho relativamente ao influxo do pensamento de Sampaio Bruno, no qual a ciso, alm de essencialmente negativa, parece afectar o Absoluto antes ao nvel do ser do que do saber.
35 - Id., Verdade, Condio e Destino no Pensamento Portugus Contemporneo, Porto, Lello & Irmo, 1976, p.230. Cf. tambm: "O mistrio da saudade ento, com o mistrio do homem e do ser para homem (sic), o enigma do Tempo ?" - Ibid.
36 - Teixeira de Pascoaes, Marnus, in Obras Completas, III vol., As Sombras, Senhora da Noite, Marnus, Lisboa, Bertrand, s.d., p.303.
12
renascimento do "ser com a verdade de tudo", adverte que "a Saudade (...) na relao de
ser e nada", e que "no s do que foi, do que e do que h-de ser" tm os homens saudade,
pois "a Saudade tambm do que no para ser". Ela , assim, "divina", mas "por razes
mais fundas" que as enunciadas por Frei Agostinho da Cruz ou por Cames: ou seja,
"porque o profundo ser de tudo e tudo quanto foi, e ser, ou no sabemos que para ser,
Saudade". "Sempiterna", ou aquela mesma "vida eterna", de unio-ciso, em "esprito e
verdade", que o pensador, na Teoria, diz "nem mortal nem imortal" 37, o "ser subtil e
insubstancial da Saudade" a matriz da gerao e necessrio devir cclico dos seres,
incluindo os deuses 38. Enquanto "tempo csmico", ela desvela-se-nos na "relao com o
37 - Jos Marinho, Teoria..., pp.76-77.
38 - Sobre a virtude teo-onto-cosmognica da Saudade, em Pascoaes, afim ao sentido da manifestao primordial que o esprito, na Teoria, cf. Sant'Anna Dionsio, O Poeta, essa Ave Metafsica, s.l., Seara Nova, 1953, p.54: "(...) para Pascoaes, a Origem no est em Deus, mas na Saudade. Assim como os primitivos Gregos davam a entender, por meio das suas ingnuas cosmogonias, que o primeiro Ser teria sido Cronos (ou seja o Tempo) e que dele teriam nascido os deuses, assim o Poeta, com uma audcia e uma ingenuidade que nada lhes fica a dever, afirma que a madre espiritual e transcendente, criadora do cu e da terra, a Ansiedade que tudo envolve, incluindo a prpria alma divina. Deus como criatura da saudade, - eis, em suma, o mais alto axioma teodiceico do Poeta". Tambm Marinho apreendeu o fundo alcance deste aspecto da viso pascoaesiana: "A grandeza especfica de Pascoais que o [[coloca]] por cima de toda a poesia portuguesa, ter visto que [[esse]] volver cclico fatal coage [[os prprios]] no s os homens [[mas]] os outros seres de que podemos ver o nascimento e a morte, como tambm os prprios deuses. Deste modo, para alm do Cristianismo e do correspondente humanismo moderno, liga-se o nosso genial poeta tradio milenria a que pertencem entre os maiores Hesodo e squilo. [[Enquanto]] Ora preciso ter longamente e em diversas idades [[ter]] meditado a Genealogia dos Deuses e o Prometeu para entender tudo quanto aqui significo" - Nova Interpretao do Sebastianismo, in Jorge Rivera, A Meditao do Tempo no Pensamento de Jos Marinho, Anexo, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1990, p.112 [policopiado]. Com este apontamento, Marinho coloca a meditao da Saudade no difcil mago da histria mtica do mundo, em particular no que respeita sua relao com o sentido pr-indo-europeu da Terra ou da Deusa Mater e, no mbito da tradio grega, com o segredo detido por Prometeu, o tit protector dos homens, acerca de algo que excede o prprio deus supremo, Zeus, e que o obrigar fatal sucesso, caso no liberte Prometeu e obtenha o seu apoio - cf. squilo, Prometeu Agrilhoado. No poderemos aqui desenvolver toda a ampla gama de sugestes destes temas. Segundo a nossa interpretao, a leitura final que Marinho faz de Pascoaes contrasta obviamente com a do juvenil ensaio no qual a Saudade se interpreta como "um sentimento humano ou uma atitude humana nunca identificvel com a eternidade, apesar de poder revel-la", acrescentando-se: "O poeta fez sem razo da Saudade no Maranos o que com mais razo fizera Dante do Amor na Divina Comdia. Porque a Saudade no , com efeito, um sentimento que nos d como o amor a plenitude do ser, o que no Maranos est provado pela prpria dualidade Eleonor-Saudade" cf. Ensaio sobre a Obra de Teixeira de Pascoaes, in Teixeira de Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade e outros textos, edio de Jorge Croce Rivera,
13
que em ns transita e regressa enquanto surdo desejo e lembrana flor da memria - desejo e
lembrana de outro que o vivido ou para viver-se ainda". Na tenso criadora para uma
eternidade que, por essa mesma viso-vida primordial que de si para si se constitui, no
imvel, a Saudade manifesta-se como um Logos genesaco e palingensico, que Marinho
afirma estar "antes de toda a razo sem-razo [sic] genesaca", descerrando-se-nos
porventura nas experincias-limite, ou nas quais o aparente limite se converte em limiar 39,
como na "relao da loucura e do sentido profundo da morte". A Ressurreio na e pela
Saudade, ou a Ressurreio que j e sempre a Saudade, como num instantneo, sempiterno
e suspenso recompor-se do estremecimento de uma queda que nunca houve como por
vezes ao adormecermos - , descobre-nos nesse parto virginal, para-doxal e im-possvel, do
Absoluto que, na mesma viso unvoca, enquanto viso do "ser que no ", "a todo o
instante se cinde de si para regressar a si", no "evanescente instante" que "todo o tempo da
Saudade, do amor, da f profunda, do pensamento". Unificadora de contrrios, cerzindo a
fissura no ver pelo ver(-se) da prpria ciso, pelo qual esta como o que no , ou em si
mesma se anula, a Saudade instantaneamente transfigura e para escndalo da conscincia,
sobretudo ocidental no apenas reversibiliza todo o curso temporal, adunando plenitude
os seres s aparentemente, ou seja, na viso no saudosa, precipitados na ciso sem recurso,
como torna mesmo reversvel o aparente processo de constituio do existir, do indivduo
e do mundo, raiz da iluso pela qual se pensa em termos de tempo e Origem.
Como diz Marinho: "J pela montanha ascende todo o humano e todo o criado e
incriado ao ser da luz eterna, j a Saudade brandamente impele, seduz ou arrebata todo o
demonaco e todo o proscrito desde o mais fundo inferno para a radiosa comunho no ser, na
verdade e na luz" 40. E como diz Pascoaes: Tambm h-de chegar o dia em que eu prprio
Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005, p.147, e Significado e Valor da Obra de Teixeira de Pascoaes, in Ibid., p. 195. Sobre a Saudade e sua relao com o Amor, em Pascoaes, cf. Paulo Borges, A iniciao amorosa no Marnus, de Teixeira de Pascoaes, in Pensamento Atlntico. Estudos e Ensaios de Pensamento Luso-Brasileiro, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002, pp.202-208.
39 - Cf. Eudoro de Sousa, Mitologia, Editora Universidade de Braslia, 1980, 38, p.98.
40 - Cf. Jos Marinho, "Pascoais, poeta da viso unvoca", Dirio de Notcias, 24 de Janeiro de 1963. Cf. ainda: "Com o Regresso ao Paraso o divino poder da Saudade liberta de todo o mal os homens
14
nunca existi. E h-de chegar tambm o dia em que o mundo nunca existiu: o mundo, o Sol e
as estrelas... 41; H horas em que Deus no existe, em que nada existe ! 42; Esta questo
da Origem mostra o desejo de definir, - desejo, que o prprio mbil da alma, pois definir
equivale a ver, o que seria a tentao da morte 43; O existir cria a iluso de Tempo, a
qual, por sua vez, cria a iluso de Origem 44. De notar que, nestes dois ltimos excertos,
como bem o nota Marinho, pelo menos aparentemente, o pensamento de Teixeira de
Pascoaes se volta contra si prprio 45.
Surge assim a Saudade, simultaneamente, como via gradual e instante realizao da
Demanda tal a do Graal, para indicarmos o s sugerido nexo com a narrativa medieval - ,
inerente libertadora e mais que humana e divina desmesura do esprito que tudo abandona
e arrisca pelo ver(-se) sem vus, reconhecendo a incircunscrita e omnipresente abertura do
Tudo para Todos, para alm de quaisquer motivos ticos, filosficos ou religiosos,de origem
humana ou divina,mas conferindo-lhes a nica justificao possvel. O que, desde logo,
convoca a Saudade ao sacrifcio de si, na consumao do para alm do qual nada mais h
ao qual tende, o que o prprio auto-sacrifcio instante e constitutivo do haver do esprito,
que s "" e "" autenticamente pela assuno do Nada.
neste duplo e uno vector, de uma radical exigncia de i-legitimao e superao da
finitude enquanto acesso total e imediato emergncia autntica e in-finitizante de sentido 46
condenados, revela noutra anglica excelsitude todo o demonaco e satnico" - Id., Verdade, Condio e Destino..., p.231. Na mesma obra, e comentando um dos aspectos da viso da Saudade em Leonardo Coimbra, como ntima a uma fenomenologia da conscincia espiritual, Marinho escreve que "a Saudade atendida no apenas como objecto de uma razo constituda, apologtica ou crtica, mas como o que emerge da mais autntica e profunda subjectividade, no trnsito do esprito anterior a todas as determinaes para as determinaes possveis do pensamento"- p.239.
41 Cf. Teixeira de Pascoaes, O Bailado, introduo de Alfredo Margarido, Lisboa, Assrio & Alvim, 1987, p.94. 42 Cf. Ibid., p.113. 43 Cf. Id., Verbo Escuro, in Verbo Escuro / A Beira (num relmpago), edio do autor, Paris/Lisboa, Livrarias Aillaud & Bertrand, s.d., p.53. 44 Cf. Ibid., p.54. 45 Cf. Jos Marinho, Teixeira de Pascoaes, Poeta das Origens e da Saudade e outros textos, p. 236. Cf. tambm p. 238. 46 - Cremos culminar assim em Marinho uma das vertentes mais significativas do pensamento portugus
15
- o que no exclui que tal acesso no seja seno possvel no acto mesmo do sacrifcio de si e
desta emergncia, ou seja, que o ganho da plenitude de sentido coincida com a sua abissal e
total perda - , que interpretamos tanto a recomendao final da Teoria - "Para compreender
quanto dissemos, importa, entretanto, no dizer como os que disseram que o filsofo tudo
medita menos a morte ou como os que asseveraram que do Nada nada sai" 47 - quanto a sua
advertncia inicial: "O autor [...] foi levado pelo ltimo sentido do insubstancial substante
para uma doutrina efectiva de libertao. Coube-lhe mostrar, a ele tambm, que desde a
sensao ideia todo o pensamento por mais modesto liberta, e que verdade no que
permanece escravo ou fautor de servido, no tem sentido algum" 48. Aqui, porm, onde
outros textos, compreensivelmente de maior e mais imediato impacto nos vrios planos de
institucionalizao do pensar (desde o mental ao cultural e ao escolar), primam pela atitude
ttica ou antittica, a teorese em Marinho reflui para o instante da mesma e jamais exaurida
interrogao pela qual infinitamente se abre, mostrando no definitiva nem nica qualquer
forma ou via de re-velar a verdade 49, ou seja, aquilo que s enquanto re-velao j do
nico absoluto: o Nada pleno 50.
contemporneo, a qual tende a assumir a inautenticidade, ambiguidade e/ou malignidade de uma manifestao ou criao intrinsecamente finitizante, ou das vises religiosas e metafsicas que assim a representam. Tal como j em Leonardo Coimbra, que no Criacionismo afirma a radical ilimitao de todas as mnadas, no apenas as humanas, na vida originria em Deus (cf. Obras, I, seleco, coordenao e reviso pelo Prof. SantAnna Dionsio, Porto, Lello & Irmo Editores, 1983, p.391), a tese aqui frontalmente contestada aquela que assume a "imperfeio" constitutiva e a "limitao essencial e original" dos existentes, na dependncia criatural de Deus, consoante as transparentes formulaes de Leibniz: Principes de la Nature et de la Grce fonds en Raison, 9; Principes de la Philosophie ou Monadologie, 42; Paris, PUF, 1986, pp. 49 e 95.
47 - Cf. Jos Marinho, Teoria..., p.168.
48 - Ib., Ibid., p.13.
49 - Cf. Id., Ibid., p.168.
50 - Que o Nada irrelativo mera negao e privao de existncia, ser e sentido, sendo apenas o termo menos desadequado para dizer uma transcendncia, ou plenitude intrinsecamente excessiva de todas as determinaes positivas e negativas, parece sugeri-lo a etimologia do seu equivalente latino. Contrariamente ao que indica a provvel origem do sentido comum da palavra nada na locuo latina "nulla res nata" ("nenhuma coisa nascida"), a origem de nihil advm da aposio da partcula negativa ne ao substantivo neutro hilum, i, o qual j tem o sentido de "quase nada, nada, um nada", sendo assim sugerido, pela negao deste, o algo misterioso (ou seja, etimologicamente, inefvel) do que no coisa alguma nem
16
a sua negao.