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Produzido pelos alunos do curso de jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba - Unimep Ano 4 - Edição 22-B Dezembro/2010 JORNAL LABORATÓRIO Vivemos a realidade do mendigo, do andarilho, do varredor de rua, do cadeirante, do professor de escola pública, do coletor de latinha... Para escrever com mais propriedade Sentir na carne para REPORTAR

Na Prática Ed. 22B

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Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Unimep - Dezembro de 2010

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Produzido pelos alunos docurso de jornalismo da Universidade Metodista de Piracicaba - Unimep

Ano 4 - Edição 22-B Dezembro/2010 JORNAL LABORATÓRIO

Vivemos a realidade do mendigo, do andarilho, do varredor de rua, do cadeirante, do professor de escola pública, do coletor de latinha... Para escrever com mais propriedade

Sentir na carne para reportar

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Dezembro/20102

Lavínia vasconceLos

Ser repórter requer mais que estudo, requer muita dedicação e empenho no que se dispõe a fazer, requer uma descoberta profunda para se ter um mínimo de propriedade sobre o que

se vai reportar. Sair para as ruas atrás de um assunto que chame a atenção pelo

interesse público, a ponto de virar pauta, e logo depois matéria apurada é relativamente fácil. O mundo está aí, as pessoas estão por toda volta, fatos acontecem a cada segundo. É só correr atrás, averiguar, entrevistar duas, três ou um grupo de “fontes” e pronto, a matéria está pronta para ser diagramada e virar página de jornal. O difícil é o repórter escrever com a disposição de conhecer cada realidade e sentimento envolvido no fato, de descobrir como é realmente aquilo sobre o que ele está escrevendo, falando, filmando. Assim, a matéria ganha mais verdade.

Nesta edição, buscamos ser repórteres no sentido mais amplo da palavra. E com muita humildade. Despidos de todo preconceito que se tem quando se olha para uma pessoa ou situação diferente do mundo a que estamos acostumados a vivenciar (sobre o qual muitas vezes que já se tem uma opinião formada antes mesmo de se conhecer a real situação), saímos a campo livres de julgamentos e abertos para experiências desafiadoras.

Nosso desafio foi mais que reportar. Foi vivenciar o dia-a-dia árduo ou prazeroso de uma profissão ou situação, foi experimentar o “lado” do entrevistado, indo além de apenas observá-lo e se achar no direito de falar sobre sua condição apenas com um bloquinho na mão e o poder de mídia a que a profissão nos concede.

Cada repórter se entregou literalmente de corpo e alma para que sua matéria que consta nesse jornal saísse com vida. E aqui citamos um trecho do texto de Manuel Bandeira, segundo o qual

Saímos às ruas para algo além que olhar e escrever. Saímos às ruas para vivernossas pautas

EXPEDIENTE - Jornal Laboratorial dos alunos do 6º semestre de Jornalismo da Unimep - Reitor: Prof. Dr. Clóvis Pinto de Castro - Diretor da Faculdade de Comunicação - Belarmino Cesar Guimarães da Costa - Coordenador do Curso de Jornalismo: Paulo Roberto Botão - Edição: Marcos Brogna / Mtb 30465 - Editora Assistente: Lavínia Vasconcelos - Editora assistente de fotografia: Lavínia Vasconcelos Repórteres: Anderson Junque, Alexandre Almeida, Bruna Sampaio, Bruno Bianchim, Camila F. Duarte, Cynthia da Rocha, Daniele Zanin, Débora Ferneda, Fernando Henrique, Ivaneide dos Santos, Jackson Rossi, Janaína Moro, Larissa Molina, Letícia Costa, Maria Elvira Evangelista, Mariana Fiocco, Marina Campos, Syndi Siqueira, Suzana Storolli, Thiago Sanchez Gapareto, Vieira Júnior e Vinícius Boer - Arte Gráfica: Sérgio Silveira Campos (Lab. Plan. Gráfico/Unimep) - Correspondência: Faculdade de Comunicação - Campus Taquaral, Rod. do Açúcar, km 156 - Cx. Postal 68 - CEP 13.400.911 - Tel. (19) 3124-1677

Viver para reportared

itoria

l “há uma gota de sangue em cada poema”. Pois buscamos colocar uma gota de sangue em cada página deste jornal, não o sangue do sensacionalismo muito visto na mídia, mas o sangue da vida, que vai além de números e estatísticas.

Não é fácil jogar todos os preconceitos de lado e sair pelas ruas sujos, mal vestidos, recolhendo lixo, latas ou então empurrando com as próprias mãos a cadeira de rodas que nos sustenta por todo o caminho repleto de obstáculos que um cadeirante precisa vencer diariamente. Foi isso que fizemos, pois entendemos que, assim, pudemos conjugar da forma mais desafiadora o aprender jornalístico, pois vivendo na prática a realidade do nosso personagem, nos incumbimos de olhar todos os próximos personagens de nosso trabalho com menos preconceito e mais atentos à sua condição. E esse é o trabalho do jornalismo: ater-se à verdade, não dando a ela nenhuma cor além das que estão ali, a serem observadas e não julgadas, relatadas e não escondidas ou supervalorizadas em nome de ibope.

Vivenciar e escrever traz a sensação de que agora sim pode-se falar com mais propriedade sobre a condição de um mendigo, de um lixeiro, um catador de latas, de um cadeirante, de uma acompanhante de idosos, de um acompanhante de órfãos, de um professor de escola pública ou de quem se dispõe a levar sorriso a enfermos, entre muitos outros que experimentamos ser. Passamos por situações que jamais pensamos passar e de forma extraordinária, pois enxergamos a grandeza que há em cada profissão e o respeito que toda condição merece ter. Essas realidades estão descritas em cada matéria de cada página desse jornal.

Nas próximas páginas convidamos você a rir, indignar-se ou emocionar-se, a conhecer um mundo que está à sua volta e merece sua atenção. Convidamos você à realidade que não apenas estamos descrevendo, mas nela mergulhando de corpo e alma. São histórias reais que merecem atenção e respeito, sem julgamento de nossa parte.

Graças a muito trabalho, empenho, dedicação, suor, alegria, tristeza e até mesmo medo desses repórteres que se atreveram a tal tarefa inédita nesta universidade (e que ainda nem são formados), o jornal está pronto e livre de todo preconceito que infelizmente ainda prevalece entre as pessoas. E buscamos, acima de tudo, mostrar que jornalismo só se faz com humildade, no mesmo nível dos fatos, nunca acima deles.

Boa leitura!

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Larissa MoLina

“Dona, quem cursa faculdade tem que estudar muito?”. Foi esta a pergunta fei-ta por um estudante de ensino médio de escola pública. Além do valor da men-salidade, é essa a preocupação de alunos do colegial que, em geral diferentes de estudantes de escolas privadas, não são pressionados a conquistar uma vaga em universidades públicas.

Eram 20h45 de uma quinta-feira quan-do eu estava, em uma escola estadual, diante de 30 alunos do 2° ano do Ensino Médio. Para eles, a curiosidade pairava no ar. Havia alguém desconhecido com um giz na mão e em frente à lousa. Para mim, pairava a preocupação. Eu con-seguiria fluir, durante os 45 minutos de aula, apenas crescimento intelectual? Eu seria capaz de demonstrar credibilidade e silenciar o alvoroço de todos aqueles jovens? A responsabilidade de professor pesou no coração repórter.

A partir dali, eu teria de ser suficiente para conquistar a atenção de todos aque-les adolescentes que beiravam os 17 anos. Eles não mostravam cansaço pelo dia de trabalho enquanto se extasiavam em as-soviar ou perguntar uns aos outros quem realmente era aquela à frente deles. De qualquer forma, eu teria de exaltar minha voz e fazê-la preencher mais do que todas as 30 vozes, uníssonas.

“Boa noite pessoal” - foi a forma que escolhi para acalmá-los. Caso não fosse suficiente, tentaria bater na mesa com um livro, ou espalmar a lousa com força, ou ainda, quem sabe, fechar a porta da sala e encará-los com a expressão fechada, já que em minha lembrança adolescente, havia professores que agiam exatamente dessa forma. No entanto, não houve ne-cessidade. Todos se sentaram e declara-ram com os olhos que eu havia me tor-

nado o único foco. Anunciei, em seguida, o que trabalharíamos naquela noite: A Ideologia da TV.

Seriam todos os minutos de aula com duas ferramentas: voz e lousa. A escola possuía 27 salas e três aparelhos de da-tashow. A coordenadora ofereceu um

NA CLASSE | Diante de 30 alunos, vivi apenas um pequeno exemplo de tanto tempo dedicado por professores ao desafio de ensinar em escola pública

caMiLa Duarte

Para Vanessa Querido, professora de Português, a maioria das escolas pú-blicas são boas, e a mídia vende uma imagem muito distorcida da instituição. “Eu acredito na escola”, diz. A relação amigável da professora com os alunos reflete essa convicção: “Eu tento mos-trar para os meus alunos que há coisas que a gente escuta uma vez na vida”. Um exemplo de quando precisou cha-mar a atenção dos alunos e “cutucar na

feridinha” foi quando leu para eles o poema ‘O Operário em Construção’, de Vinícius de Moraes.

No entanto, essa paixão pela profis-são de ensinar não é compartilhada por todos. Danielle Rodrigues de Sousa, 16, comparava sua prova do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) com as co-legas, que haviam realizado como “trei-neiras” durante o final de semana. Está se preparando para o vestibular, mas não pensa em ser professora: “As pesso-as desrespeitam muito o professor”, diz.

De repente, eu sou uma professora diante de 30

alunos em escola pública e sinto o desafio diário de quem vive dessa profissão

Quando coloquei os pés para fora da sala, notei que estavacompletamente rouca

Com equipamentos multimídia, eu nunca conheceria a realidade de um professor de escola pública

destes para minha exposição. Porém, deixou-me claro que, com equipamentos multimídia, eu nunca conheceria a reali-dade de um professor de escola pública. “Cada dia que entramos na sala de aula, é uma luta”, disse.

A partir de dois autores, eu informei àqueles jovens quais eram, realmente, as engrenagens que movimentavam a tele-visão - o objeto que fazia parte do coti-diano de cada um deles. Busquei pala-vras simples, exclui as técnicas. Ao falar sobre mártir, me questionaram o sentido do vocábulo. Entendi que deveria simpli-ficar um pouco mais. Foi quando decidi tirar dois livros de minha bolsa: um de Arbex Junior e outro de Eugênio Bucci, ambos tão conhecidos no universo jorna-lístico. Incentivei-os, com esse gesto, à

Crença e descrença na missão de ensinarSER PROFESSOR

VIVENDO A EDUCAÇÃO ESTADUAL

e muita coragemLousa, giz, voz

leitura. Esclareci que o que eu os falava, descobri lendo.

“Dona, quem faz faculdade tem que ler bastante?”, perguntou um deles. Diante de minha resposta afirmativa, a expressão facial do jovem se alterou e ele se pôs a deitar-se na carteira. “Sabe que horas eu acordei hoje? 5h30, eu estou cansado”, continuou ele. “Os estudos podem mudar essa realidade”, eu o rebati.

O sinal anunciou o término de minha aula. Agradeci a eles pelo silêncio e pela atenção. O mesmo jovem que a pouco me questionara sobre leitura confessou: “Se vier na última aula, verá a bagunça. Dona, você teve sorte!”.

Quando coloquei os pés para fora da sala, notei que me esforçava para conse-guir falar. Estava rouca sem nem ter pre-cisado gritar para chamar-lhes ou acal-má-los. Se, realmente, essa fosse a minha profissão, cerca de doze classes espera-riam minhas aulas diariamente. E eu teria que usar minha voz para todas elas.

No caminho para a sala da coordena-ção, eu ouvi estudantes dizerem que pre-feriam ir embora a ficar ali. Vi outros pe-dindo para serem liberados. Diziam que não teriam aulas, mas uma palestra sobre o Saresp (Sistema de Avaliação de Rendi-mento Escolar do Estado de São Paulo).

Cheguei até a coordenadora, e antes de nos despedirmos, ela esclareceu que, independente do curso, as portas estavam abertas para todos os estudantes universi-tários que desejassem dar aulas. O motivo é que o número de profissionais, forma-dos em licenciatura, não atende mais a demanda de alunos.

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eDuarDo casteLar

São 14h30 em Piracicaba e hoje vou passar parte do meu dia exatamente igual ao cotidiano de 15% da população brasi-leira, ou cerca de 25 milhões de pessoas. Nesta sexta-feira, 19, sou cadeirante. E como tal, utilizo a cadeira de rodas para exercer meus diretos básicos como: ir e vir, usar o transporte público e também tirar dúvidas sobre minha previdência so-cial, entre outros.

Subo em minha nova companheira e, de imediato, sinto dificuldades em fazer cur-vas e meias voltas. Parece fácil. Mas, para se virar é necessário segurar uma das rodas e movimentar a outra, conforme a direção em que se quer ir, e até a coordenação mo-tora aprender isso já gastei alguns minutos. Passada meia hora, já estou mais familia-rizado e sigo para o ponto de transporte público localizado na Av. Carlos Martins Sodero, em frente ao cursinho Avante. A força que faço para vencer as eventuais “subidinhas” que surgem é imensa.

Ao chegar ao local, vejo que tenho de ficar no sol, pois a única sombra disponí-vel é para as pessoas que sentam no banco

sinDy siqueira

É com um ar de vencedor que Re-nato Bueno de Camargo Laurente, 48, relata como foi enfrentar as barreiras que a vida lhe propôs. Há 25 anos, enquanto graduava na faculdade de Educação Física, aconteceu o aciden-te que mudou sua vida completamen-te. Na estrada indo para Ubatuba, so-freu um acidente com consequências trágicas. Ficou internado quatro me-ses e não esquece quando entrou uma psicóloga no quarto e disse que ele estava tetraplégico, sem movimentos dos membros superiores e inferiores. “Depois do dia em que a psicóloga falou isso para mim, eu achava que enquanto não voltasse a andar minha vida não teria sentido”, conta Lau-rente.

A aceitação de que ficaria assim para sempre foi acontecendo natu-ralmente. Conversa com psicólogo

desde que sofreu o acidente e viu que é capaz de fazer muito, sempre se de-safiando a adaptações.

Uma das coisas que mais inco-moda a maioria dos deficientes é a dependência que eles têm de outros para certas atividades que não conse-guem realizar sozinhos. Após o aci-dente, Laurente se dedicou muito ao conhecimento de vida dos cadeiran-tes e começou a participar de ONGs para deficientes durante muitos anos, dava aulas, palestras, contava sua história e ajudava outras pessoas que passam pela mesma situação que ele.

Hoje, tem uma empresa, chamada “Como ir!”. É uma empresa de im-portação e exportação de produtos para quem tem deficiência ou mobi-lidade reduzida, como preferem que falem. Do sentimento de inutilidade que o tomou quando soube de sua sina até hoje, muito mudou e Lauren-te se tornou um empreendedor.

PERNAS DESATIVADAS |Eu vivo o dia de um cadeirante e aprendo o quanto precisamos respeitá-los mais com a estrutura urbana

A única sombra disponível é para as pessoas que sentam no banco do ponto

O motorista do ônibusmostra total despreparo para ajudar um cadeirante

VIDA DE CADEIRANTE

Lição de vida na luta pela conquista dos cadeirantes

Trocando as

Só quem precisa se locomover em uma cadeira de rodas sente de verdade a falta de preparo das cidades

rodaspernas por

do ponto, que é coberto. Minha angústia parece que vai durar pouco porque o pri-meiro circular aparece dez minutos após minha chegada. Mas, para meu azar, ele está quase lotado e, apesar de possuir a adaptação, é mais fácil e rápido embar-car os passageiros não deficientes. De-cido esperar. Meia hora depois, surge outro ônibus, mas este não conta com o elevador e o motorista nem sequer parou no ponto, pois, no momento, já não havia mais ninguém ali, além de mim, é claro.

O terceiro transporte público enfim possibilita meu embarque. Mas o moto-rista mostra total despreparo para ajudar um cadeirante. Ele até foi atencioso ao descer do veiculo e me ajudar, mas con-fessou não saber muito lidar com o apare-lho e nem como agir comigo. Isso aliado à minha falta de experiência como porta-dor de necessidades especiais, me deixou muito constrangido e a todos dentro do ônibus também.

A experiência me mostrou que talvez a maior dificuldade encontrada pelos por-tadores de necessidades especiais seja a falta de informação das demais pessoas em como tratar e ajudar os cadeirantes. Afinal, muitos avanços já foram conquis-tados por esses cidadãos, mas o esclare-cimento geral da nação ainda atrapalha muito o cotidiano.

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Letícia Da costa coeLho

suzana storoLLi

Imagine aquele sol de duas horas da tar-de. É quente! Isso porque o Verão ainda não chegou. Mas, enfim, estávamos nes-se horário percorrendo o Centro de San-ta Bárbara d’ Oeste com vestimentas tão diferentes do que estamos acostumadas e diante de um trabalho ainda mais inusita-do. Preparávamo-nos para algumas horas experimentando a profissão de varredoras de rua (Letícia, vestida e equipada para varrer; Suzana, para registrar tudo). Um trabalho que desde antes de começar a executá-lo já merece nossa valorização, pois além de essencial para deixar a nossa cidade limpa, conta com profissionais que precisam aturar a ignorância de certas pes-soas que jogam o lixo no chão.

O lixo que mais se notava no chão eram embalagens de sorvete na calçada e na grama, e isso não é falta de lixeira, pois no local havia várias, era preguiça mesmo. Os funcionários do local relatam que as pessoas jogam muito lixo no chão, e que a maior quantidade é no período da manhã.

Tudo começou quando saímos do carro parado em um estacionamento razoavel-mente distante da praça de Santa Bárbara d’Oeste. A roupa e estilo (de Letícia) esta-vam de acordo com a situação. Com boné cobrindo quase tudo, zero de maquiagem, uniforme oficial da limpeza da cidade, tê-nis para conseguir percorrer longos cami-nhos, uma vassoura e muita simpatia.

Chegamos à praça, nos afastamos para perto da polícia e buscamos o carrinho para coletar a sujeira. Começou oficial-mente a prática da profissão. Andamos, observamos o chão e é hora de varrer, varrer, varrer. Além de arrumar os ban-cos, cumprimentar a população, que res-ponde com certa pena de uma menina jovem estar limpando as ruas da cidade.

Descemos para a Rua XV de Novem-bro, uma das mais movimentadas e tra-dicionais. Olhares de verdadeira piedade dos pedestres e motoristas. Algumas pes-soas de dentro de seus carros davam pre-ferência àquelas mulheres “guerreiras”, lutando pelo seu ganha-pão, embaixo

de um sol de 35 graus. Subimos a Rua General Câmara (no meio do caminho, o carrinho passa sobre o pé de uma se-nhora, que sorriu como se dissesse: “Não tem problema, minha filha. Acontece!”). E chegamos à Duque de Caxias, onde pedimos numa loja de roupas refinadas um copo de água. Com muita simpatia, as funcionárias atendem ao pedido e até cumprimentam. E nosso longo caminho pelas ruas barbarenses continua.

MUITO LIXO | As pessoas ainda consideram o chão de uma cidade um espaço onde se pode jogar lixo, como se não fosse público

NAS RUAS

varrendo o chão

O sol está quente e há muito o que coletar pelas calçadas e praças, uma profissão tão invisível quanto essencial

que todos pisam

Estamos cansadas e com muito calor. Discretamente, resolvemos ver a reação de mais duas lojas do mesmo estilo pe-dindo água. No caminho, percebemos o quanto as ruas são mal planejadas para de-ficientes, ou qualquer outro objeto grande que tenha que passar por uma rampa (o nosso caso era o carrinho de lixo).

Levar o carrinho gerava dificuldade toda vez que se precisava atravessar a rua. Após tanto varrer, chega um jovem

e diz “Moça, não se preocupa não porque mais limpo que está você não consegue mais”. E saiu. Voltamos para guardar o carrinho na área reservada para isso, e chegamos até o estacionamento voltando à rotina de vida de estudantes de Jorna-lismo. Mas, nos sentindo mais capazes de escrever sobre quem varre ruas, quando tivermos de fazer isso.

(Agradecimento Prefeitura de Santa Bárbara d’Oeste)

TIRANDO A SUJEIRA | Sob o sol quente, empurrando o carrinho e com a vassoura na mão, é possível valorizar muito mais essa profissão essencial

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Dezembro/20106

Janaína Moro

Como é bom poder voltar para casa, ou melhor, saber que tenho um teto para me abrigar e descansar após um longo dia de trabalho e estudos.

Ter acesso a saúde, estudos, moradia é direito de todo cidadão. Isso é o que diz a lei, no papel, mas na prática esses con-ceitos básicos estão longe de serem reais.

Em minha experiência no dia 17 de

novembro de 2010, foram poucas horas, mas o suficiente para sentir na pele o que é viver sem tudo isso e, o pior, não ter es-peranças de mudanças. Pelo que percebi, é esse o sentimento de quem anda sem destino, come o que encontra no lixo e dorme em qualquer canto da cidade. Es-tar na pele de um mendigo é sentir o pre-conceito, a discriminação e o desprezo do ser humano.

Olhares indiferentes marcaram esta vivência. O fato de estar suja e mal-trapilha faz com que as pessoas olhem para você como um ser de outro mundo. Mas o consolo é saber que ainda existem pessoas solidárias, ou que pelo menos tentam agir sem indiferenças com o pró-ximo. Fui surpreendida em algumas cir-cunstâncias, mas não deixo de frisar que a indiferença esteve presente em quase todos os momentos.

A sensação que tive é que as pessoas tentam disfarçar o que veem, mas não conseguem. Minha experiência começa com a caracterização. Escolhi uma cal-ça de moletom, camiseta e tênis velhos. Deixei o cabelo sem lavar por três dias e depois com um pente o embaracei, dei-xando unhas e sobrancelhas por fazer.

Saí pelas ruas sem saber exatamente como seria, como eu iria agir e como reagiriam a mim. Minha primeira para-da foi em uma residência, aparentemen-te de classe média, e quem me atendeu foi um garoto que parecia ter em torno de 14 anos. Recebeu-me normalmente, abriu o portão, não teve medo, mas dis-se que estava sozinho e que não poderia me ajudar. Mas assim que pedi um prato de comida, não hesitou, entrou na casa e logo voltou com um prato cheio de arroz puro. Ele teve um gesto de boa vontade, mas foi difícil engolir a seco.

Dali, parti sem rumo, e qualquer pes-soa que passava não deixava de me olhar, como se eu fosse uma criminosa. Minha próxima parada foi uma padaria, já es-tava noite, quase oito horas, a atendente estava sozinha, não deixou de me aten-

der, e nem perguntou se eu tinha dinheiro para pagar, mas vi em

seus olhos o medo.Logo mais à frente, em um salão de cabeleireiro, pedi água, o profissional até perguntou se queria natural ou gelada, desta vez eu estranhei a re-cepção, mas quando o homem veio até o por-tão, esticou o braço e me entregou o copo com certa distância. Resolvi parar em uma lanchonete,

Dignidade está longe de ser real para moradores de rua e eu senti isso na pele por algumas horas

VIVENDO A MENDICÂNCIA

SEM SENTiDO,

não fui expulsa, mas novamente os olha-res foram constrangedores.

Acompanhei de longe, algumas pes-soas de uma igreja que toda quarta-feira levam comidas em pontos da cidade de Rio Claro para esses moradores de rua. O que dói é saber que muitos deles não têm esperança nenhuma de vida e acei-tam a situação, acreditam que este é o destino, que isso foi preparado para eles, que devem se conformar.

Antes desta experiência, conheci um senhor que estava na rua, tinha vindo de outra cidade, mal conseguia parar em pé devido a um problema de saúde. Ele con-fessou que o destino dele era a rua e que znem queria mais uma moradia, estava velho demais e sem condições de cuidar de uma casa. Não casou, não teve filhos, a única irmã é casada e diz não ter como ficar com ele. Assim, resolveu pegar es-trada e cair no mundo. Ele sofre e diz que agora só está esperando para morrer.

A situação que vivi, que antes só via de longe, me acrescentou muito como pes-soa, a valorizar o que tenho, mas acima de tudo ter a consciência de que preci-samos do material, mas que isso não é tudo. Muitas dessas pessoas que vivem na rua só querem um pouco de atenção. Viver com dignidade.

Já vi de perto várias situações cons-trangedoras envolvendo pessoas que moram na rua, mas se despir de qual-quer preconceito e encarar essa missão foi emocionante. Me toma um misto de felicidade pelo desafio cumprido, mas de tristeza de viver a realidade de muitos seres humanos.

sem esperança

Saí pelas ruas sem saber exatamente como seria, como eu iria agir e como reagiriam a mim

O fato de estar suja e maltrapilha faz com que as pessoas olhem para você como ser de outro mundo

Muitas dessas pessoas que vivem na rua só querem um pouco de atenção, de dignidade

PEDINDO PARA COMER | Na casa em que pedi comida, o garoto, que estava sozinho, me serve um prato de arroz

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Dezembro/2010 7

vieira Junior

Onde dormir? Esse foi o maior desafio do dia, ou melhor, da noite em que tentei dormir na rua. Os desafios foram muitos e poucas foram as opções. Na verdade, péssimas opções.

Não há números exatos para expressar quantos moradores de rua existem no es-tado de São Paulo. Segundo dados da Se-cretaria Estadual de Assistência e Desen-volvimento Social, o estado conta, hoje, com 101 albergues que atendem a 42.999

pessoas. No entanto, estima-se que 44% dos moradores de rua não dormem em albergues, ou seja, passam a noite na rua.

Minha jornada teve início às 23 horas, no centro de uma cidade com pouco me-nos de 30 mil habitantes e que não possui albergues ou outro tipo de apoio a mora-dores de rua. Estou sem comer desde as 17 horas, o único alimento que carrego é um pão francês não muito novo.

Chinelo de dedo, a calça azul marinho quase imunda, uma camiseta de time de futebol toda desbotada e um boné que, um dia, já fora branco. Assim, eu estava preparado não só para passar a noite no relento, mas para o desprezo também.

Assento-me em uma das calçadas da principal rua da cidade. Há um certo movimento de carros e de jovens que aproveitam a noite de sexta-feira para comemorar a chegada do fim de semana. Minha primeira sensação é de estar co-metendo um crime. Parece que estou in-vadindo um espaço que não é meu, apesar de público. Talvez seja coisa da minha ca-beça, mas quem pode garantir que não é o

mesmo que os moradores de rua sentem todos os dias?

Não há tempo para me preocupar com dúvidas e paranóias. Preciso encontrar um lugar para dormir. Penso em passar a noite ali mesmo, na calçada da princi-pal rua da cidade. Parece seguro, afinal há movimento e, se alguém tentar fazer algo comigo, certamente todos irão me defender. É o mínimo esperado de um ser humano. De repente, não sei de onde, muitos carros começam a surgir. Todos me olham, me sinto envergonhado, arre-pendido de viver aquilo e até com raiva do meu editor. As buzinas são inevitá-veis. Parece ser a única forma com que os motoristas conseguem se comunicar comigo. Não entendo, me levanto, abai-xo a cabeça, escondo o rosto com o boné e ando na direção contrária dos carros. Não dá para dormir ali.

A movimentação cessa. Novamente, mudo minha direção. Sinto estar meio louco, sem rumo. Desço a rua em dire-ção à praça central da cidade. No trajeto, observo algumas lojas. Muitas roupas caras, sapatos lustrados. No chão, um anúncio de uma loja de camas e colchões. Eu paro, pego aquele folheto, e fico ob-servando aquele contraste. Eu, todo sujo, mal vestido, com fome e sem lugar para dormir e bem de frente para uma foto que demonstrava tudo aquilo que eu mais queria naquele momento. Meu maior ob-jetivo não era comprar algo novo, mudar de trabalho ou melhorar meu salário. O grande desafio era encontrar um lugar para dormir e, sem exagero, garantir que iria acordar no outro dia.

Continuo meu trajeto até a praça. No caminho, alguns jovens bebem cerveja em umas mesas dispostas na calçada do outro lado. Atravesso a rua em direção à cal-çada. Eu nem pensava em me aproximar deles, até mesmo por vergonha, mas eles estavam no caminho da praça. Quando me aproximo, cochichos. As moças parecem assustadas e apreensivas. Os rapazes me passam uma sensação de incógnita. Mas tenho certeza: se eu me aproximar não se-rei bem recebido. Então, eu paro.

Avisto a praça, vejo a igreja central da cidade. Há um número razoável de pes-soas sentadas nos bancos, minha espe-rança de aconchego. A maioria é formada por jovens. Moças, rapazes, todos muito bem vestidos. Não sei o porquê, mas isso me chamava muita atenção e, ao mesmo tempo, me deixava com um sentimento ruim. Eu era alguém privado de se divertir porque tinha de, antes, me preocupar em encontrar um lugar para dormir.

Desisto de encontrar abrigo no centro. O movimento me assustou um pouco. Caminho então pela avenida que dá aces-

Preciso encontrar um lugar para dormir. Penso em passar a noite ali mesmo

A movimentação cessa. Novamente, mudo minha direção. Sinto estar meio louco, sem rumo

As noites de verão só são quentes dentro de casa. Na rua, o sereno faz questão de castigar

so à saída da cidade. Ali, depois de ter andado um bom pedaço de chão, começo a me sentir mais seguro, mas não sei se confundo segurança com a ausência de pessoas. Pelo menos não tenho mais nin-guém me olhando e, consequentemente, não sinto mais vergonha. De longe, avisto uma cobertura. Olho no relógio, já passa da meia noite. Continuo caminhando. Al-guns carros começam a passar e quebrar o silêncio daquela avenida deserta. Co-meço a sentir medo, muito medo. Alguns cães começam a latir dentro do quintal das casas ao me ver passar, mas é melhor do que as buzinas dos carros.

Chego à cobertura. Na verdade, é um quiosque. Parece ser um bom lugar para passar a noite. Olho à minha direita e vejo uma viatura da guarda da cidade. Eu sim-plesmente congelei. Travei mesmo. Não sabia se me escondia, corria ou simples-mente esperava que eles se achegassem até mim. Por sorte, não me viram ou não se importaram.

Sentei-me no chão. Usei meu saco de recicláveis como travesseiro. Já passava da uma da manhã. Eu estava com sono. Coloquei o boné na frente dos olhos e comecei a tentar dormir. O primeiro incô-modo, naturalmente, era a temperatura do chão, muito fria. Aos poucos, meu corpo começava a esquentar o piso e o ambien-te ficava mais aceitável, não confortável. Ao longe, os cães continuavam a latir. Os carros também passavam pela avenida, parecia que os motores iam explodir de tanto que aceleravam. Neste momento, me sentia seguro. O medo somente se mos-trava quando o silêncio tomava conta do ambiente. Eu não resistia. Abria os olhos e, assustado, olhava para todos os lados. Era como se eu estivesse jogado à própria sorte, talvez eu realmente estivesse.

A noite começava a fazer frio, mas eu pensava “estamos no verão, não vai esfriar mais do que isso”. Engano. As noites de verão só são quentes dentro de casa. Na rua, por mais quente que esteja o clima, o sereno faz questão de castigar e qualquer vento parece uma tempestade.

Eu brigava com o sono. O cansaço me fazia tirar alguns cochilos. As dores nas costas, o frio, o barulho dos carros e o medo me faziam acordar a todo o mo-mento. Olho no relógio, são 3 da manhã. Seriam mais três horas até o sol nascer. De cochilos em cochilos, de sustos em sustos, eu via o tempo que teimava em não passar. Então, antes que o sol amea-çasse nascer, eu me levantei. Todo dolo-rido, parecia que acabava de vir de uma guerra. Peguei o celular e pedi para que fossem me buscar. A minha missão aca-bou. Mas quando acaba a dos milhares que a cumprem todos os dias?

VIDA DE SEM-TETO

O de tentardesafioDOrMir NA ruA

SEM RUMO | A rua é pública, mas parece uma imensidão que

não é nossa quando só temos ela para nos aconchegar

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Dezembro/20108

Acompanhamos profissionais que cuidam de idosos em asilos e nos deparamos com um trabalho pelo valor da vida em sua fase mais madura

contadas de forma a crer, que um dia, eles realmente viveram aquele momento.

A casa parece um hotel fazenda e tor-na-se o atrativo principal de passeios. “A maior vontade deles é a de voltar para casa. Eles sentem saudades da mobília, do quar-to, do jeitinho que era a casa deles”, conta Valdirene Aparecida Souza, cuidadora do Anjo da Guarda. “Sem contar quando fa-lam que o marido ou esposa, já falecido, chegou e espera por eles”, completa.

Em um trabalho nada simples, essas pessoas dedicam suas horas para cuidar de idosos que precisam de atenção e o máximo de cuidado. “São 150 fraldas por mês, além de fechamentos diários do pe-ríodo que o profissional estava presente na Casa”, conta Gisele Caputo, enfermei-ra que coordena toda área de saúde. Para Leandro Francisco Mendes, técnico de enfermagem, é difícil separar a vida pro-fissional da particular. “Temos que saber lidar e separar o profissional do pessoal, o que às vezes é difícil, já que convivemos grande parte do dia com eles. Difícil, mas não impossível”. Tentando viver um pou-co a realidade desses profissionais, vemos que a vida tem mais sentido, graças a eles.

vinícius Boer

“Sou instável, venho aqui várias ve-zes por vontade própria, mas quando bate a melancolia volto para a casa”. Esse fala é de Dalila Rodini Moraes, 76, e refere-se ao dia-a-dia vivido em local que dificilmente alguém quei-ra morar: o asilo. A idosa conta que a mãe faleceu durante a infância e o marido há 14 anos. “O tempo me fez conviver com a perda de maneira natu-ral, mas ainda sinto saudades do meu querido”. O Asilo João Kühl Filho ser-ve como refugio, mas quando ela quer, volta para residência, localizada em Limeira.

Diferentemente de Dalila, outros idosos estão alojados no asilo limei-rense e não possuem o livre arbítrio para retornarem às residências. Se-gundo a assistente social da entidade, Marilene Aparecida Bastos de Toledo,

os idosos são encaminhados para o abrigo pelo poder público, indicações de vizinhos ou dos próprios filhos. As verbas municipais, estaduais e federais representam 7% das despesas gerais. “O nosso forte mesmo são as ações so-lidários como bazar, bingos e jantares beneficentes”, afirma a assistente.

Orlando Vicente, 80, está há 5 anos no asilo. O motivo, segundo ele, foram as complicações que teve após fraturar o fêmur. “Me machuquei e as compli-cações não pararam. Meus filhos mo-ram em outra cidade e precisei vir pra cá”, diz. Sem receber visitas dos filhos afirma que o maior hobby é jogar do-minó e cuidar do jardim.

Ao conversar com outros moradores do lugar é comum receber como res-posta à pergunta “Posso conhecer a sua história? algo como: “Mas eu não te-nho história”. Nota-se um sentimento de ponto final colocado antes da hora.

VIDAS VIVIDAS | Idosos em asilo que visitamos, sempre dispostos a interagir alguém que lhes dedique atenção

IDOSOS

Fazendo a idade ter algum sentido

um ponto final antes da hora

Bruna saMpaio

A voz baixa e com dificuldade pergunta à assistente social Cássia Moraes, da Casa de Longa Permanência Anjo da Guarda, localizada em Piracicaba: “Você está ocu-pada?”, indaga. “Eu não, a senhora quer alguma coisa?”, pergunta a assistente so-cial com certa preocupação. A voz baixa volta a perguntar se a moça loira estava ocupada. “Não, não estou querida, a se-nhora quer alguma coisa?”, insiste Cássia. A resposta vem depois de um olhar pro-fundo e demorado: “Eu quero você”.

Helena Calçavari, 81, é a dona da voz bai-xa e trêmula. Ela é um dos 12 idosos que residem na Casa de Longa Permanência Anjo da Guarda. Sentados em confortáveis poltronas, os olhos permanecem perdidos na tela, mas os pensamentos são diversos. Dos 12, apenas dois não tem alzheimer. A pele enrugada mostra marcas de uma vida experiente, os fios de cabelos brancos já não estão mais escondidos e o desgaste pa-rece tomar conta de todos. Em cadeiras de rodas ou com grande dificuldade de loco-moção, eles necessitam da ajuda de quatro cuidadores, sete técnicos de enfermagem, uma enfermeira, uma fisioterapeuta, um médico, além de pessoas de apoio, como cozinheira, nutricionista, lavandeira, faxi-neira, um professor de música e um padre, que reza missa, todos os domingos.

A velhice é algo de que não há escapa-tória. Não existe remédio para ela, nem fuga. Os sintomas aparecem e são senti-dos naquela caminhada onde a falta de flexibilidade te limita, na pele que antes vistosa, carrega marcas profundas. Os cabelos perdem o comprimento, o bran-co impera e o brilho fica nas fotografias. O olhar é longo, demorado e nos estu-da como fôssemos um tesouro único e que nunca mais irá voltar. A vontade de contar, de falar, de expressar é imensa e histórias reais, na imaginação deles, são

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cynthia Da rocha

DanieLe zanin

DéBora FerneDa

GrazieLa prezotto

De repente, o alarme toca e em 30 se-gundos você tem de vestir capacete com viseiras, calças, botas, jaqueta resistente a 400º C e estar dentro da viatura pre-parado para encarar as mais diversas situações extremas que vão desde a um simples resgate de um gatinho na árvore a grandes perigos como afogamentos, in-cêndios, e tantos outros limites as vezes inimagináveis. Uma tarefa complicada, mas não para bombeiros, nossos heróis do dia-a-dia que dedicam a vida para ser-vir e proteger.

Manhã de sábado ensolarado, e lá estávamos em frente ao 16º Grupamento de Bombeiros de Piracicaba, quatro mulhe-res, estudantes de jornalis-mo que decidiram encarar o desafio de acompanhar a rotina do batalhão. O bata-lhão se divide em duas tropas, os turnos são de 24 horas come-çando às oito da manhã e terminan-do apenas no dia seguinte.

Durante o período em que lá estive-mos, infelizmente não houve nenhuma ocorrência, no entanto, a equipe simulou conosco um acidente e quais os proce-dimentos que devem ser prestados. Foi realizada com a Cynthia, uma das estu-dantes, uma simulação de atendimento, em que tivemos uma verdadeira aula de prestação de socorros.

Aprendemos que a primeira coisa que os bombeiros fazem é verificação da respiração e depois a da circulação. E mesmo em acidentes leves, em que a vítima está consciente, é obrigatório o uso do colar e da prancha rígida (maca). A utilização do cinto multiuso (aranha) é necessária em casos de transporte do acidentado, ele assegura a proteção das regiões toráxica, pélvica e membros su-periores e inferiores.

REPÓRTER BOMBEIRO | Só vestir a roupa já é um desafio para quem não conhece essa profissão de perto

FernanDo henrique

José aLexanDre

Maria eLvira

ivaneiDe

O contato do dia-a-dia com a popu-lação que procura serviço municipal da saúde de Piracicaba é bastante ten-so. Algumas horas que passamos jun-to ao centro de atendimento público, notamos o quanto é desgastante para ambas as partes.

O atendente tem de ter paciência e psicologia para poder trabalhar, assim como o paciente tem de amargar longa espera para ser atendido. Deparamos com um caso entre as dezenas que ali encontrava no momento. Silva (nome fictício) conta que seu filho ainda bebê não estava passando bem, neces-sitando de cuidados médicos. “Levei ele até o PS (Pronto-Socorro), local mais próximo de minha residência, isso por volta das 16h, para ser atendi-do e medicado”, relata.

Encontramos Silva no final da tarde ainda aguardando o atendimento para seu filho. Começamos a conversar e per-cebemos que ele estava um pouco altera-do. Procuramos nos informar do ocorri-do e, como uma forma de desabafo, ele nos relatou: “Estou aqui há algum tempo esperando atendimento para meu filho, a demora é tanta que precisei entrar nos fundos do PS para que meu filho fosse atendido, pois o médico aqui presente não tem a mínima consideração com o doente”. A história de Silva não é dife-rente da de muitos outros que passam pela saúde pública no Brasil.

Voltamos a pronto socorro outro dia e uma funcionária nos deu uma entre-vista, contando um pouco do que é es-tar do outro lado do “balcão”, mas não concordou em tirar foto e pediu para seu nome ser preservado. Ela disse que “Apesar de ser uma rotina muito cansativa e de algumas vezes as pes-soas ficarem zangadas, é gratificante poder ajudar”.

três situações em que o que vale é lutar pela vida

Maria cristina Fiocco

O Gada (Grupo de Apoio e Defesa de Animais) é uma ONG fundada em 1998 por Raquel Pícelli com a presi-dente Roberta Escrivão de Campos. Existem dois Gadas em Rio Claro, somando quase 500 cães. Mas sem-pre aparece mais. A maioria dos ani-mais são abandonados pelos próprios donos, em geral por já estarem mais velhos, dando algum trabalho ou gas-tos. Outros são enviados por maus--tratos, por denúncias de vizinhos e outros são achados na rua.

A experiência que tive foi a de amar mais ainda os animais, con-versei com alguns veterinários e tive mais informações sobre os cuidados dos animais e só não faço Veteriná-

ria por aflição quando há cirurgias. Não é fácil trabalhar como ajudan-te geral do Gada, por, em algumas consequências, ser preciso muito sangue frio, pois aparecem cachorros morrendo precisando de muito cuida-do e principalmente amor.

Assim que entrei no canil, que é um pátio enorme, a maioria dos cães vieram em minha direção querendo brincar e esperando apenas por uma atenção e carinho. Lá me deparei com cachorros doentes, idosos, ce-gos, mancos e todos muito amorosos mesmo passando por uma vida caren-te e brigas entre os outros cães.

Ficou o ensinamento de que o ser hu-mano precisa enxergar a vida de manei-ra mais ampla, além das necessidades e caprichos apenas da própria espécie.

EM ONG qUE CUIDA DE ANIMAIS

NA SAúDE PúbLICA

A difícil missão de

No Corpo de BomBeiros

No caso das principais dificuldades do ofício, podemos afirmar que aprender a lidar com o desconhecido, enfrentar locais inacessíveis, os trotes e especial-mente com o inesperado, são uma das constantes batalhas que os bombeiros enfrentam.

saLvar

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KarLaGiGo

Terça à tarde. Enquanto boa parte das pessoas estão trabalhando e as crianças estão na escola, me preparo para uma visita muito especial, com direito a ônus e bônus. Acabo de separar os objetos em sacolas plásticas e entro no carro.

Chego a uma casa térrea de fachada amarela e portões brancos na altura da cintura. Um sofá marrom pouco convi-dativo fazia conjunto a dois vasos gran-des de plantas. Toco a campainha e gen-tilmente uma senhora atende a porta. É dona Clarisse Lins, a mais velha das qua-tro mulheres que cuidam das meninas.

“O orfanato, na realidade, é uma casa transitória, as meninas ficam aqui até completarem 15 anos. Depois disso, vão para outros orfanatos, se não forem adotadas”, explica Clarisse. Ela me aju-dou a retirar as sacolas do carro. Antes de entrarmos contou como o orfanato funcionava. “São trinta órfãs. Uma tem oito meses, chegou aqui com quatro. As outras têm de 3 a 14 anos, a maior parte delas foi acolhida nas ruas com dez anos, outras deixadas aqui por parentes.”

Para manter o orfanato, elas recebem pessoas que vêm do bairro ou de empre-sas e mulheres que se dispõem de uma tarde na semana para passar o dia com as meninas. “As meninas estudam e moram aqui, portanto temos regras e horários. Para as visitas temos um horário que vai das 14h às 16h”, conta Clara Rios, a mais nova das pedagogas.

Antes de chegarmos onde as meninas brincavam, passei em frente a um quarti-nho onde tinha um berço, lá dormia uma anjinha de bochechas redondinhas. Uma das internas, que parecia ter uns dez anos, me viu observar a bebê e disse: “ela é a ca-çula, depois dela a mais nova é a Bruninha, de três anos”. E completou com ar de or-gulho: “Eu sou a nona na escala, faço parte das irmãs do meio”. E sorriu.

Chegamos a um grande quintal de con-creto. Em questão de segundos, todas estavam na minha frente me analisando como se eu fosse algo a ser desvendado. Com sorrisos estampados e com os olhi-nhos brilhando mais que arvore de Natal em início de ceia, pareciam sentir que eu trazia novidades.

Clarisse me apresentou as meninas que, em coro, retribuíram calorosamente o meu “oi”. Quando Clarisse ia começar a dizer o que eu fazia ali (já que não era a moça que geralmente visitava as meninas, naquele dia da semana), uma menininha que me pareceu ser Bruninha, muito desconfiada, falou: “Mas, cadê a tia Dede?”. Dede era

A PurEzA DAS CriANçAS É ALGO quE COMOVE E NOS CONViDA A

ENxErGAr A ViDA DE OuTrA FOrMA

NUM ORFANATO

um dia entre

ANjOSuma senhora, que fazia a visita às terças--feiras e por algum motivo não pudera ir. Então, Clara já foi logo explicando a pe-quena o que acontecera com Dinda e que especialmente naquela terça eu passaria à tarde com elas. A princípio, achei que as garotas ficariam decepcionadas, mas a reação foi surpreendente. Elas gritavam “Eeee!” e as menorzinhas até batiam pal-mas. Clara contou que elas simplesmente adoram quando alguém novo aparece por lá. Então estava tudo explicado.

Com toda aquela alegria, não pude me conter e falei: “Trouxe alguns brinquedos pra vocês”. As meninas faziam rodas em voltas dos sacolões e se divertiam com o que encontravam. Perto de mim, as pe-queninas desvendavam a sacola de bo-necas e seus pertences como sapatinhos, roupinhas e etc. Fiquei brincando com as pequeninas, que se espalharam junto aos brinquedos no chão, mesmo porque eu não conseguiria correr com as maiores com a pequenina em meu colo, mas elas estavam se divertindo muito revezado as voltas com bicicleta rosa choque que ainda esta-va com rodinhas de apoio (minha primeira bicicleta e, pelo jeito, delas também).

Quatro da tarde. Clarisse veio me avisar do horário, “Querida, tenho que fazer as meninas entrarem no banho. Até todas esta-rem prontas já é quase o horário do jantar”. Clara avisou as meninas do horário e mais uma vez em coro elas reagiram: “Ahh...”, mas desta vez com tristeza nos olhos.

Todas se despediram com beijos e abra-ços, uns mais apertados que os outros. E Bruninha continuava em meu colo, até que Clarisse a pegou. No momento que a tirou do meu colo, que estava com a marca do corpinho dela por causa do ca-lor daquela tarde, ela abriu um berreiro só. Soluçava. Chorava tanto que a cada “grito” que ela dava eu sentia como se uma faca varasse meu coração. Dei um beijinho em seu rostinho salgado pelas lágrimas, acenei e fui embora. Clarisse me convidou para voltar, mas pediu que da próxima vez ligasse com antecedência para marcar, para que não atrapalhasse os horários das meninas, já que desta vez ti-nha dado a “sorte” de uma das visitantes faltar. Agradeci, entrei no carro e parti.

Esta foi a tarde mais especial da minha vida e podem passar anos, que jamais vou esquecer. Bruninha que tão pequenininha me deu uma lição: Não importa o quanto os brinquedos são novos, amanhã também serão novos, mas as pessoas não (princi-palmente na vida delas). Por isso pareceu ser fundamental a ela aproveitar ao máxi-mo o amor e a atenção que me dispus a dar. O amor chamado incondicional.

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thiaGo sanches

Inesquecível o som das latas tilintando dentro do saco de lixo enquanto caminha-va pelas ruas da cidade. A sujeira toma conta do ambiente urbano e torna-se mo-tivo para uma nova empreitada para os menos favorecidos de benesses capitalis-tas. Homens ou mulheres, e até crianças, simplesmente juntando latas vazias em carriolas improvisadas ou grandes saco-las. Revirando as lixeiras da praça e pe-dindo recicláveis de casa em casa.

Quem contribui? Uma classe média com ar soberbo, a maioria; outros cons-cientes tornam-se notáveis, pois parecem possuir aquele conceito de separar o lixo orgânico do reciclável. Muitas pessoas fazem esse trabalho para dar uma força ao salário que ganham com outro empre-go. Um quilo de latinhas custa em média R$ 2, dependendo da cidade. Para ganhar R$ 100, é necessário juntar 50 quilos de latas, o que dá 3.150 unidades.

Passar uma tarde como catador de lati-nhas rendeu boas caminhadas, mas a expe-riência de olhar o mundo de uma perspec-tiva totalmente diferente do conforto que estamos acostumados realmente faz mu-dar os conceitos sociais de qualquer um. Vimos moradores de rua com seus cães e bêbados perambulando por aí. A pior parte foi revirar o lixo para coletar as latinhas, principalmente porque em algumas lixei-ras juntam abelhas ou vespas. Nessas ho-ras temos que deixar a “frescura” de lado.

Além de fazer a coleta nas lixeiras pú-blicas, arriscamos pedir latas em algumas residências. A maioria das pessoas contri-buiu e chegou a juntar dois sacos de lixo, daqueles grandes de 60 litros, com latas até o limite. Sentimos certa liberdade ao fazer esse serviço, pois os transeuntes não se preocupavam com a nossa presença, tal-vez por certo desprezo ou por indiferença, fator que facilitou a encenação toda.

Bruno BianchiM MartiM

Se visto aos olhos da contemporanei-dade e do mundo no qual o sustentável alça, cada vez mais seu espaço em meio a termos e teorias, o catador de latinhas é uma das mais dignas e incorruptíveis profissões do Brasil - e quase que exclusi-vamente só dele, já que em outras nações mais educadas as latas são arremessadas, diretamente, ao lixo. Afinal de contas, a reciclagem de centenas, milhares de latas de alumínios ganham um destino correto por suas mãos.

No entanto, passar o cotidiano dos ca-tadores, vivenciar suas experiências e conviver com olhares preconceituosos de quem passa ou cruza as ruas das cidades, anula essa posição de destaque da profis-são informal, mas que ajuda pais e mães de família aos montes.

Comecei as duas horas que passei ao lado de outros dois catadores, Wellington Silva, 24, e Rodney Silvestre, 36, ambos

jovens, com ambições futuras, como fa-mília e emprego fixo, mas que trabalham debaixo de sol, próximos à sujeira, lixões a céu aberto e desrespeito, em um sábado pela manhã, às 10 horas.

Não me travesti como eles, com roupas largadas e pouco limpas -até porque não sou do tipo muito comportado, preferi usar um shorts velho e uma camisa rasga-da, que uso para dormir no verão ou jogar futebol.

O trabalho começou – para mim, pois eles já não haviam nem dormido, já que trabalharam recolhendo latas em festas da noite de sexta-feira – no Centro de Pira-cicaba, em frente ao Mercado Municipal, onde não havia quase latas, mas muito lixo por qualquer local que passássemos.

Wellington, mais jovem que Rodney, era mais amigável e fácil para se levar uma conversa, talvez pela própria idade, e pelas frustrações pelas quais já tenha vivido, Rodney era mais fechado, quieto.

Com o desenrolar dos 20 minutos que

ficamos em frente ao Mercadão, começa-mos uma ‘peregrinação’ pela rua Gover-nador Pedro de Toledo, conhecida como principal corredor comercial da cidade e por seus pontos de travestis à noite. A andança foi maior que a busca, porque, pelo horário matutino, e a passagem dos caminhões de lixo de manhã, o que so-bra é pouco, mas mesmo assim, para eles, isso equivale ao almoço e a janta do final de semana.

Após percorrer a rua, os acompanhei até o depósito de latinhas, que fica na região da Paulista, há uns 40 minutos do Centro. Lá, eles revenderam os dois sa-cos que haviam colhido durante à noite, mais o trabalho da manhã e faturaram, R$ 18,74 (Wellington) e R$15,30 (Rodney), o que daria para mais um dia.

De maneira sucinta, o que passei foi para não esquecer: a importância em tra-balhar, da maneira que for, com as difi-culdades que existem e com os empeci-lhos da vida que aparecem todos os dias.

LIXO VALIOSO | Por um mundo melhor, muitas pessoas labutam coletando latinhas de alumínio

No catar de Latinhas, um mundo sustentáveLbATE-LATA

Eles vão de sol a sol coletando sementes de um mundo que aprende a se reciclar e os acompanhamos nessa labuta

O caminho do alumínio

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anDerson Junque

A vida do médico americano Patch Ada-ms, revelada num clássico filme de 1998, “O amor é contagioso”, estrelado por Ro-bin Willians, sustenta a tese que o alto as-tral e o atendimento humanizado reduz o sofrimento dos enfermados. Inspirados nesse exemplo, inúmeros grupos de douto-res da alegria surgiram por todo o mundo, como os mais diversos nomes, a exemplo dos “Hospitalhaços”. Trupe que me abriu as portas, permitindo que eu vivenciasse in louco os ensinamentos de Adams.

Para incorporar o personagem sou obri-gado, de alguma forma, a me despir da ar-madura de repórter e adentrar num “médi-co da alegria”. A experiência foi realizada no Hospital Municipal Waldemar Tebaldi, na cidade de Americana, e me permitiu compreender a rotina de quem já investe um pouco de tempo (e às vezes até de di-nheiro) na causa.

A história começa às 14H15, quando chego à porta do hospital. Não conhecia, em absoluto, nenhum integrante do grupo. Era, literalmente, um estranho no ninho.

Dou a volta até as portas dos fundos do hospital. Percebo que uma senhora me aguarda mesmo sem me conhecer. Seu olhar acompanha fixamente cada passo meu. “Você é o Anderson?”, pergunta. Respondo que sim. Gentilmente, me pede para que eu a acompanhe até uma sala já dentro do hospital. Lá sou muito bem re-cebido pelos demais integrantes da equi-pe. Por alguns instantes tenho a impressão que já sou um velho integrante do projeto.

Recebo de Nida (senhora que me recep-cionou) as primeiras orientações sobre o trabalho, entre elas a de não fotografar o atendimento nos quartos. “Essa é uma exi-gência do hospital”, alerta. Na sequência recebo um crachá em branco para preen-cher com os meus dados. “Esse é pra você circular aqui dentro”, orienta.

MESMO NA DOENÇAMAQUIAGEM

DO RISO | Mais que repórter,

sou um palhaço hoje, então

preciso ganhar cores e adereços

De repórter a palhaço, a missão de aprender que o sorriso pode transformar vidas, em quaisquer momentos

“Você não vai se maquiar?”, pergunta outro integrante do grupo. Respondo que gostaria, se possível. Esse era o meu pas-saporte para a atividade que realizaria mi-nutos depois.

O processo de maquiagem começa. O ato da partilha acontece de forma tão natural que os adereços, pincéis, e tintas vão se multiplicando das maletas dos co-legas. Em poucos minutos, estou pronto. Reconheço-me um integrante, sem antes nunca ter sido.

A todo o momento o trabalho é envolvido num clima amistoso e muito descontraído. Antes de começar, rezamos juntos a oração do Pai-Nosso. “Uma mão recebe e a outra dá”, orienta a Nida - reforçando o sentido da oração. Todos de mãos dadas agradecem a oportunidade. Pedem força e inspiração para realizar a missão daquele domingo.

Com número variável de integrantes (que alcançou 18), éramos naquela tarde apenas oito, contando comigo. Dividimo--nos em dois grupos de quatro. Sigo com um grupo rumo à maternidade.

Entro com eles no primeiro quarto. São quatro bebês, dois meninos e duas meni-nas e, já de cara, é nítida a experiência deles. As brincadeiras com os pacientes e visitantes são leves e precisas.

Acompanho tudo meio à distância. Observo a habilidade que todos, sem ex-ceção, têm na manipulação das bexigas. Pouco mais de trinta segundos são neces-sários para dar-lhes formas de cachorros, patos, pássaros, entre outros. O repertório parece se multiplicar a cada quarto visi-tado.

Discretamente tento algumas mano-bras, mas logo desisto. É atividade di-fícil demais para um mero coadjuvante. Observo que existe entre eles uma preo-cupação em contabilizar o número de pa-cientes visitados. “Até agora, foram 16”, conta um integrante. A sina continua e o grupo encontra uma gestante no corredor, descansando por um momento. Percebo um olhar desconfiado em minha direção. Sinal visível de um questionamento à vista que justificasse minha presença “es-

É PRECISO SORRIR | O grupo se prepara, unido, para a batalha da alegria, levando a enfermos esperança

pintando a Carapela alegria

tranha” ali. “Porque ele não fala nada?”, indaga.

Esse era o meu medo. Como explicar que minha função naquele momento não era exatamente a mesma dos colegas. Ra-pidamente sou salvo por um colega em tom de brincadeira. “Ele é estagiário!”, responde me livrando de uma sabatina.

A peregrinação continua. Encontramos duas senhoras que também estão nos ban-cos do corredor. Uma delas manifesta a alegria e a saudade em rever o grupo uma semana depois. Exatamente como a ges-tante, também percebe minha presença no grupo. “Esse é novo! Ele não estava sema-na passada.”, dispara na certeza que esse “novo” era realmente um desconhecido. Mais uma vez sou salvo por um outro co-lega. “Ele está começando”, me inserindo ao grupo e assim justificando minha pre-sença.

A última visita é realizada nos quartos e, na sequência, nos dirigimos para a sala de reunião de onde partimos. Lá, partici-po com todos do lanchinho da tarde: bolo de chocolate e suco de laranja doados pelo hospital.

Recebo um lenço umedecido e começo a retirar a maquiagem. Aos poucos, em frente ao espelho, o personagem da tarde vai se desfazendo e paulatinamente o ve-lho repórter de carne e osso vai voltando ao seu normal.

O período de uma tarde valeu por uma vida. A intenção, antes de tudo, foi a de contribuir com o grupo levando na ba-gagem um pouco da experiência que adquiri nos meus 33 anos de vida. Aos pacientes, um pouco daquilo que entendo como alegria e motivação de viver, ape-sar de toda inibição e falta de traquejo para o trabalho. E a você, leitor, o relato de constatar que a alegria faz toda a dife-rença à vida.