Multimodalidade na era da transmídia: um estudo do regime semiótico de emissões televisivas postadas no site YouTube

Embed Size (px)

DESCRIPTION

As práticas de linguagem em ambientes midiáticos se realizam, crescentemente, sob o impacto da transmídia (JENKINS, 2008), ou trânsito de conteúdos entre mídias. Tal migração acontece incessantemente entre ambientes como a televisão e a internet. Assim, nos questionamos como ocorre a construção de sentidos em gêneros audiovisuais que sofrem mudança de suporte. Trata-se, aqui, de traçar um paralelo entre recursos de língua/linguagem voltados para o discurso multimodal. Apropriamo-nos de reflexões como a de Kress (2010) para identificar o potencial significativo das semioses num corpus composto por três vídeos do site YouTube. A análise se baseia na categoria de metafunção (KRESS; van LEEUWEN, 2006). Observamos que a mudança de suporte ocasiona um reordenamento dessas macrofunções.

Citation preview

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    122

    MULTIMODALIDADE NA ERA DA TRANSMDIA: UM ESTUDO DO REGIME

    SEMITICO DE EMISSES TELEVISIVAS POSTADAS NO SITE YOUTUBE

    (Multimodality in transmedia age: a study of the semiotic setting from TV shows posted on

    YouTube)

    Rafael Rodrigues da Costa

    1

    (Universidade Federal do Cear)

    ABSTRACT

    Language practices in media environments take place increasingly under the impact of transmedia

    (JENKINS, 2008), or trans-media content delivery. Such migration happens incessantly in media such

    as the television and the Internet. Hence, we wonder how the construction of meaning in audiovisual

    genres is realized in different media. The intention is to draw a parallel between language resources

    and multimodal discourses. We take hold of Kress' (2010) assumptions to identify the role of semiosis

    in a corpus from three videos in the YouTube site. The analysis is based on the metafunction category

    (Kress, van Leeuwen, 2006). We note that the change of medium causes a reordering of these

    macrofunctions.

    Keywords: transmedia; multimodality, language metafunction.

    RESUMO

    As prticas de linguagem em ambientes miditicos se realizam, crescentemente, sob o impacto da

    transmdia (JENKINS, 2008), ou trnsito de contedos entre mdias. Tal migrao acontece

    incessantemente entre ambientes como a televiso e a internet. Assim, nos questionamos como ocorre

    a construo de sentidos em gneros audiovisuais que sofrem mudana de suporte. Trata-se, aqui, de

    traar um paralelo entre recursos de lngua/linguagem voltados para o discurso multimodal.

    Apropriamo-nos de reflexes como a de Kress (2010) para identificar o potencial significativo das

    semioses num corpus composto por trs vdeos do site YouTube. A anlise se baseia na categoria de

    metafuno (KRESS; van LEEUWEN, 2006). Observamos que a mudana de suporte ocasiona um

    reordenamento dessas macrofunes.

    Palavras-chave: transmdia; multimodalidade; metafuno da linguagem

    Introduo

    Traar um paralelo entre recursos de lngua/linguagem voltados para o discurso

    multimodal permite-nos ponderar, pelo menos em princpio, que em nenhum outro momento

    da histria as sociedades viveram tamanho grau de complexificao de suas prticas

    discursivas como na poca atual, em que paira sobre ns um ubquo sistema miditico. Como

    agravante, percebe-se uma espcie de empoderamento2 do pblico, agora capaz de produzir

    suas prprias enunciaes. evidente o impacto social de tal mudana de posio: aos

    1 Professor Assistente A do Curso de Jornalismo da Universidade Federal do Cear. Mestre e doutorando em

    Lingustica pela Universidade Federal do Cear. 2 Tal conceito discutido em Mazzetti (2009) e Costa (2009).

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    123

    poucos, aquilo que as primeiras teorias da Comunicao chamavam de massa poderia, hoje,

    ser melhor caracterizado como usurio-produtor de contedos miditicos ou, ao menos, leitor

    fruidor capaz de se apropriar dos smbolos circulantes nas mdias.

    Se as mdias audiovisuais, como a televiso e o cinema, ajudaram a popularizar ou

    estabelecer a onipresena da imagem e do som no cotidiano das grandes aglomeraes

    urbanas, a digitalizao e a entrada em rede dessas mesmas mdias, via internet, potencializou

    o fenmeno. Como bem observa Gomes (2007, p. 62), em sua tese de doutorado, a crescente

    ubiquidade do som e da imagem, dos filmes na TV, no computador e na internet traz uma

    complexidade multissemitica para as representaes que produzimos e vemos nossa volta.

    Essa complexidade a que se refere Gomes parece soar como um desafio Lingustica como

    cincia.

    Em poucas palavras, historicamente atenta aos fenmenos desencadeados nas e pelas

    semioses verbais (fala e escrita), a Lingustica passa a identificar, como objetos legtimos de

    estudo, mais que os recursos da linguagem verbal, os eventos comunicativos materializados

    em outras formas de semiose, como a imagem (esttica e em movimento), o som e o design

    grfico entre outros. Foi quando a ideia de visual literacy, ou letramento visual, tornou-se

    aceitvel na rea e em cincias afins 3

    . Mais recentemente, a chamada semitica social tem

    buscado no apenas sistematizar os conhecimentos nesse campo de estudos, mas trabalhar em

    bases epistemolgicas slidas. Dois estudiosos, Gunther Kress e Theo van Leeuwen (2006

    [1996]), a partir de uma teoria da linguagem de base hallidayana, reuniram elementos para

    postular a existncia de uma gramtica voltada aos signos visuais. O desenvolvimento de

    aparatos adequados de anlise de enunciados multimodais tem pautado pesquisadores filiados

    Semitica Social ao redor do mundo4.

    Neste artigo, engajamo-nos em um esforo consonante com os estudos de

    pesquisadores semioticistas. Nosso objetivo identificar, a partir dos referenciais da

    Semitica Social (KRESS, 2010; KRESS, VAN LEEUWEN, 2006; LEMKE, 2002), o

    potencial significativo de vdeos postados no site YouTube, originalmente oriundos de gneros

    televisivos. Trata-se, aqui, de buscar um paralelo entre recursos de lngua/linguagem voltados

    para o discurso multimodal. Para tanto, tambm nos amparamos nas ideias de Jost (2004)

    sobre a natureza e a organizao dos gneros televisivos.

    3 Estudos como os de Dondis (1974) surgiram como fundamentais e neles j se antevia a tentativa de dialogar

    com textos visuais a partir do referencial terico-metodolgico da Lingustica proposto por M. Halliday (1994). 4 Alm dos j mencionados, podemos citar OHalloran et al (2004) e Dionsio (2010), entre outros.

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    124

    No estudo ora apresentado, procuramos aproximar esses dois frames conceituais,

    partindo da constatao que os gneros circulam entre a televiso e a internet em razo dos

    processos de transmidiao (JENKINS, 2008), caractersticos do atual cenrio de

    convergncia das mdias. So justamente esses enquadres tericos que discutiremos

    inicialmente. Em seguida, mostraremos como construmos a metodologia de anlise, para,

    finalmente, expor os resultados obtidos, que mostram como na internet as telenovelas

    adquirem uma nova feio, sobretudo na forma como o pblico ganha visibilidade, enquanto

    fruidor, mas tambm avaliador de seus contedos ficcionais.

    2. Transmdia e web 2.0: a vez dos usurios

    A cultura contempornea abriga mltiplos exemplos de produtos capazes de atravessar

    as fronteiras de um mdium especfico para ganhar sustentculos em outras mdias, tanto por

    obra das empresas de mdias, mas tambm pela ao de pessoas annimas. o que Jenkins

    (2008) chama de narrativa transmiditica (transmedia storytelling): uma histria

    transmiditica se desenrola atravs de mltiplos suportes miditicos, com cada novo texto

    contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo (JENKINS, 2008, p. 135). Isso evoca

    as ideias de Ford (1999), para quem tal fenmeno pode ser reconhecido como sinergia, ao

    explicar a indissociabilidade entre esse trnsito de contedos e os interesses econmicos de

    grandes corporaes.

    possvel sugerir, sob esse prisma, que os sujeitos responsveis pela migrao de

    contedos audiovisuais entre televiso e internet sobretudo, aqueles capazes de acrescer ou

    salientar certas camadas de sentido a esses contedos esto criando narrativas transmdia,

    capazes de modificar o estatuto de pertena de tais narrativas a determinados gneros. Trata-

    se de sujeitos que agem, muitas vezes, sem o consentimento formal das empresas detentoras

    dos direitos sobre narrativas, personagens e ideias originalmente materializadas.

    Ressalte-se que tais prticas tm sido potencializadas, ao longo dos ltimos anos, pela

    emergncia da chamada web 2.0 (OREILLY, 2005). Nessa fase, a internet estimula a

    chamada "arquitetura de participao", algo que no se fazia presente na primeira fase dos

    servios online. A admisso da importncia do usurio aparece na abertura sua participao

    por meio de comentrios, ou pela possibilidade de intervir em processos colaborativos como a

    enciclopdia online Wikipedia. A web 2.0, seria, por assim dizer, a era da customizao de

    interfaces e plataformas, ao gosto do usurio.

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    125

    3. A teoria multimodal: alguns pressupostos

    Com base em seus estudos voltados para significados de imagens no mundo

    contemporneo e como elas desencadeam letramentos visuais, Kress e van Leeuwen (1996,

    2001) propem que o conhecimento dos diferentes modos semiticos capaz de ampliar as

    perspectivas para o estudo da linguagem. Por modo semitico, esses autores designam as

    diferentes maneiras pelas quais o ser humano pode representar sua experincia ou codificar

    significados. Assim, o modo visual discernvel do modo escrito e esses, por sua vez, do

    modo sonoro. Na definio de Kress (2010, p. 79), modo constitui um recurso (resource)

    semitico socialmente formatado e culturalmente dado para a produo de significado.

    Como exemplos de modos, o autor relaciona imagens, escrita, layout, msica, gesto, fala

    (speech), imagem em movimento, trilha sonora e objetos 3D.

    A exemplo de recursos da linguagem verbal, cada modo semitico possui,

    inerentemente, diferentes potenciais representacionais ou para formao de significados, alm

    de diferentes validaes em contextos sociais especficos. Assim, fornecem meios distintos

    para a formao de subjetividades. No entanto, os modos semiticos no se apresentam de

    forma autnoma nem so utilizados de maneira discreta.

    O cerne da proposta da Semitica Social encontra-se balizado pelas funes da

    linguagem, propostas por Halliday (1994) ampliadas em Halliday e Mathiessen (2004). Em

    poucas palavras, a teoria de uma gramtica sistmico-funcional para os fenmenos da lngua

    foi transportada para o mbito de estudos semiticos de base multimodal (KRESS, VAN

    LEEUWEN, 2006). Esses estudos se aproximam do modelo hallidayano para propor que todo

    e qualquer modo semitico abrange trs metafunes:

    - a ideacional (todo modo semitico deve estar apto a representar aspectos do mundo

    da maneira como so vivenciados pelos seres humanos). Na anlise do modo

    semitico visual, os autores passam a falar de estrutura representacional (narrativa ou

    conceitual);

    - a interpessoal (todo modo semitico deve estar apto a projetar relaes entre o

    produtor de um signo e o receptor/reprodutor desse signo, ou seja, cada modo

    semitico deve ser capaz de representar uma relao social particular entre o produtor,

    o receptor e o objeto representado). Para anlise do modo semitico visual, os autores

    recorrem ao conceito de significados interativos;

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    126

    - a textual (todo modo semitico deve ter a capacidade de formar textos, complexos

    de signos coerentes tanto internamente, entre si, quanto externamente, com o contexto

    no qual e para o qual eles foram produzidos). Os autores, aqui, analisam o modo

    semitico visual em termos de composio, e utilizam a expresso metafuno

    composicional.

    Nessa viso dos fenmenos multimodais, os signos so motivados, medida que a

    escolha de um significante corresponde aos interesses de um retor ou enunciador. Assim,

    escolhe-se as formas tidas como mais aptas para a expresso de um dado significado. Isso

    permite mostrar, por exemplo, que o uso de um tempo verbal como o passado perfeito pode

    significar distncia social (KRESS, 2010, p. 58). Nos diversos modos semiticos mobilizados

    em textos multimodais, a Semitica Social pretende esclarecer a funo de cada um dos

    modos, a relao de cada modo com os outros e as principais entidades de um dado texto que

    envolva imagem e palavra.

    4. Dos gneros televisivos e suas promessas

    Para Kress (2010), um gnero uma categoria capaz de chamar ateno para a

    emergncia semitica de organizao social, de prticas e interaes. Um gnero nomeia e

    percebe o conhecimento do mundo como ao social e interao a parte do mundo que se

    refere s nossas aes em inter-relao com outros, nas prticas sociais. Trata-se, pois, de uma

    categoria cultural, uma vez que se estabelece por meio da participao em eventos,

    perpassados por aes vividas como prticas reconhecveis. Observe-se que eventos e prticas

    so vividos pelos participantes como tendo relativa regularidade e estabilidade.

    Sugere, ainda, o referido autor que papis sociais e relaes so descritos e prescritos

    mais ou menos rigidamente dentro de um dado gnero. De acordo com Kress (2010), o gnero

    compe um sistema de produo social de sentido, no qual incidem o discurso (que aponta

    para os significados elaborados acerca do mundo) e o modo (que se refere aos recursos

    materiais mobilizados para a produo do significado). O gnero, como exposto, d a

    conhecer os papis e relaes sociais num determinado contexto, capazes de realizar a

    mediao entre o lado social e a dimenso semitica.

    Por outro lado, conforme prope Jost (2004), os gneros televisivos so objetos

    semioticamente complexos, que podem ser agrupados em trs categorias distintas, de acordo

    com as diferentes promessas de relao com o mundo, engendradas por cada um delas. O

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    127

    autor mencionado as denomina de mundos televisivos e os divide em mundo real, mundo

    fictivo e mundo ldico.

    O mundo real agrupa gneros, como o telejornal, que veiculam a promessa de

    referirem a objetos existentes no nosso mundo. O mundo fictivo corresponde ao conjunto de

    gneros que fazem referncia a universos imaginrios, paralelos, tais como os telefilmes e as

    telenovelas. J o mundo ldico comporta gneros capazes de veicular a promessa do jogo, ou

    seja, seus signos no remetem diretamente nem fico nem realidade, mas a uma espcie

    de meio termo interior (in-between), em que a prpria mediao (as regras e mandamentos do

    jogo) constitui a referncia. Nesse mundo, o espectador se engaja de maneira gratuita, sem

    esperar as compensaes da fruio do real (mundo real) ou de uma encenao (mundo

    fictivo). Os reality-shows poderiam ser ali includos, ainda que paream resvalar em outra

    categoria mais prxima ao mundo real.

    Tanto Kress como Jost sugerem uma noo de gnero fundada na percepo de que o

    manejo dos signos expressa, a um tempo, os interesses de um enunciador e as expectativas

    que esse deseja consolidar num co-enunciador ou receptor. Dessa maneira, a anlise da

    constituio semitica de um enunciado pode revelar sua pertena a um gnero, se o

    compreendermos como instncia de emergncia semitica de certas prticas sociais. Neste

    artigo, esse esforo ocorre no sentido de descrever e interpretar como os co-enunciadores

    podem ressignificar certas promessas atribudas a um gnero, ao promover a migrao de seus

    exemplares para a internet.

    5. Metodologia

    Para a anlise da construo dos significados em gneros audiovisuais, submetidos a

    uma mudana de suporte, foram escolhidos trs exemplares de vdeos postados no site

    YouTube, cujo ponto em comum a pertena original a um mesmo gnero discursivo

    televisivo, a telenovela. Conforme sinaliza Jost (2004), esse um gnero pertencente ao

    mundo fictivo e que, portanto, veicula determinadas promessas, quais sejam, a de que se

    est diante de uma construo imaginria, fora dos fatos do mundo, porm dotada de uma

    lgica prpria.

    As consideraes de Jost so, aqui, aproveitadas como estratgia metodolgica, dentro

    de uma linha contnua em termos de recepo. A Figura 1, apresentada a seguir, esquematiza

    essa ideia.

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    128

    Figura 1: Percurso da recepo dos gneros televisivos em direo ressignificao, baseado em Jost (2004)

    A Figura 1, em destaque, evoca a ideia de uma linha contnua na mesma direo, uma

    vez que, se por um ponto de partida, permite-nos eleger um gnero pertencente a um dos

    mundos televisivos e, como decorrncia dessa escolha, consentir-nos visualizar como certas

    promessas, originalmente veiculadas por esses gneros podem ser reposicionadas, ou pelo

    trabalho semitico de atores que no apenas assistem a um programa, mas podem faz-lo

    migrar para outra mdia; por outro ponto, permite-nos traar um dado trajeto percorrido pelo

    programa televisivo, no momento em que ele deixa de ser apenas um artefato semitico feito

    para ser frudo em frente televiso.

    O processo que tentamos flagrar, aqui, consiste na migrao de exemplares de

    telenovelas entre um mdium, a televiso, para a internet, em que so ressignificados, ou

    simplesmente arquivados. A migrao acontece, via de regra, quando um usurio ou grupo de

    usurios de internet obtm esse material (isso pode ser feito com discos rgidos capazes de se

    conectar televiso ou por meio de placas de captura da imagem transmitida na tev, por

    exemplo) e se dispe a reedit-lo, ou simplesmente reproduzi-lo, em canais de vdeo da web.

    Ressalte-se que o gnero em questo telenovela possui grande insero social,

    sendo aquele que tem reconhecidamente a maior audincia entre os programas televisivos da

    televiso aberta. Kress (2010), ao discutir a eleio de seus objetos de anlise, postula que os

    objetos mais banais so aqueles que mais devem interessar ao analista, pois costumam

    indiciar que todo e qualquer artefato capaz de veicular uma viso de mundo um contedo

    ideacional , para usar a nomenclatura sistmico-funcional, uma ideologia, bem como capaz

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    129

    de expor algo sobre as relaes entre atores especficos, em termos de metafuno

    interpessoal. No caso do presente estudo, a obteno de dados realizou-se na web, no site

    YouTube. Para tanto, observamos os gneros da TV no momento final de sua migrao,

    integrando as lexias do site YouTube. Os critrios de escolha foram os seguintes:

    a) pertencimento original TV aberta brasileira, atestado por algumas marcas

    paratextuais, como ttulos e descries dos produtos audiovisuais presentes nas

    lexias do YouTube;

    b) manuteno, nos vdeos postados no YouTube, da presena de participantes

    (eventualmente personagens), cenas e edio, em relao aos produtos audiovisuais.

    A comprovao da permanncia desses atributos pode ser realizada, sempre que

    necessria, mediante acesso aos originais, armazenados no portal globo.com, da

    Rede Globo;

    c) distanciamento institucional das emissoras ou produtoras dos programas ou vdeos

    originais. O presente trabalho focaliza prticas de linguagem realizadas por

    usurios potencialmente capazes de subverter as promessas originais dos produtos

    televisivos o que nos aproximaria nas mudanas nos gneros audiovisuais as

    quais intentamos flagrar. Assim, buscamos nos distanciar de canais ou usurios

    identificados como representaes oficiais de emissoras de televiso, por

    acreditarmos que tal vinculao institucional colocaria em xeque o espao para as

    transgresses que, como temos visto ao longo do trabalho, so marca desse

    ambiente transmiditico no qual o YouTube se insere;

    d) mecanismos de participao abertos e em uso. Acreditamos que a presena de

    comentrios, vdeos-resposta e outras marcas da avaliao dos usurios-

    espectadores so pistas importantes para entendermos, por exemplo, como se

    projetam certas relaes entre atores numa pgina do YouTube fornecendo-nos,

    dessa forma, elementos para discorrermos sobre as realizaes da metafuno

    interpessoal numa dada lexia.

    Selecionamos para o estudo ora apresentado trs vdeos pertencentes, originalmente,

    ao gnero telenovela. Todas so telenovelas da Rede Globo, emissora de maior audincia do

    Brasil (FELTRIN, 2010). Para identific-los, usaremos os ttulos a eles atribudos pelos

    usurios responsveis por post-los. So eles:

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    130

    1. Eu sou RICA, postado pelo usurio thiagorusso, em 22 de maro de 20105. O vdeo tem 8

    segundos e mostra, sem identific-la nominalmente, a personagem Norma (Carolina Ferraz) numa

    cena da novela Beleza Pura. A personagem se levanta e diz, em tom agressivo: Eu no vou acabar

    presa, sabe por qu? Eu sou rica! Eu sou rica!.

    2. Momento Vanesso Viver a Vida, postado pelo usurio brunodvn2, em 30 de dezembro de

    20096. Com durao de 58 segundos, esse vdeo mostra um dilogo das personagens Helena (Tas

    Arajo) e Alice (Maria Lusa Mendona), na novela Viver a Vida. Em alguns momentos do

    vdeo, so intercaladas cenas de outro vdeo, um viral do YouTube em que um travesti de

    Rondnia, conhecido como Vanesso, surge dizendo expresses iguais ou semelhantes s das

    personagens da novela, gerando um efeito cmico pautado numa espcie de intertextualidade

    involuntria.

    3. Passione 18/08/2010 Captulo 081 parte 2, postado pelo usurio gilslopes4, em 18 de agosto

    de 20107. Aqui, durante 10 minutos e 17 segundos, vemos um trecho de um captulo da novela

    Passione. A fala de um dos personagens, ao final do vdeo, interrompida abruptamente.

    Uma vez selecionados os dados, observamo-los em visitas a seus endereos no site

    YouTube (alm de armazen-los em disco rgido, por meio de ferramenta de download de

    vdeos) para, em seguida, adotar os procedimentos de anlise detalhados a seguir.

    Na primeira etapa, buscou-se uma distino das diferentes ordens de abstrao

    presentes no hipertexto, de acordo com a categorizao proposta por Chiew (2004), entre as

    quais se destacam quatro conjuntos: item, lexia, cluster e web. Ao item corresponde a

    instanciao de qualquer sistema de construo de significado (meaning-making) suportvel

    pela tecnologia hipertextual. Um item decorre de escolhas feitas na metafuno

    composicional (ou textual, em caso de textos). A categoria das lexias corresponde a uma

    pgina navegvel (scroll), atualizada em uma tela (de computador ou outros dispositivos). J

    um cluster corresponde a um nmero de lexias conectadas por associaes criadas a partir de

    links. A web designa os variados graus de associao, assim como os diferentes meios de

    associao entre lexias e clusters.

    Em seguida, buscou-se a aplicao dos modelos de Kress; van Leeuwen ([1996] 2006)

    e Lemke (2002) para identificao das macrofunes em construtos semiticos multimodais

    ou hipermodais, no caso, a partir das lexias selecionadas da ferramenta YouTube. Levou-se

    5 Disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=1G_FLcdN5tM. Acesso em 10 de setembro de 2013.

    6 Disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=YUk-O2EI_h8. Acesso em 10 de setembro de 2013.

    7 Disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=Q_5704pdpsM. Acesso em 10 de setembro de 2013.

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    131

    em conta, ainda, as consideraes de Kress (2010) sobre a natureza dos discursos, dos gneros

    e dos modos, e como eles se relacionam com as diferentes metafunes. Essa anlise nos

    permite vislumbrar como se estrutura o regime semitico de uma dada enunciao.

    O terceiro procedimento utilizado foi o comparativo, sempre que necessrio, entre

    atributos pontuais de construo de significado partilhados ou no entre os vdeos postados no

    YouTube e as emisses originais, consideradas enquanto produtos televisivos. A anlise, dessa

    forma, concentra-se nos fenmenos verificveis no mdium internet, o que corresponde

    etapa final do processo conforme mostrado anteriormente na Figura 1.

    6. Resultados e discusso

    A intensidade das modificaes a que os exemplares do gnero telenovela so

    submetidos varivel. Como construtos multissemiticos, compostos de udio (fala, msica,

    sonoplastia) e vdeo (gravaes analgicas e/ou digitais), efeitos especiais, vinhetas) e,

    eventualmente, textos (caracteres na tela), as telenovelas comportam reedies capazes de

    envolver uma ou mais dessas modalidades. Alm disso, o escopo das mudanas se estende

    sua formatao enquanto produto: na televiso, est organizada em blocos perpassados por

    intervalos comerciais, enquanto na internet est dividida em partes, em razo dos limites

    impostos por ferramentas como o YouTube.

    Todos esses recursos so, em princpio, aspectos composicionais (ou organizacionais,

    conforme sugere Lemke (2002, p. 310), da constituio semitica dos objetos aqui

    apresentados. Sempre de acordo com a autora, deve-se observar inicialmente esses elementos,

    em uma anlise multimodal, justamente pela sua natureza saliente e por serem capazes de

    guiar nosso olhar. Assim, iniciamos a anlise por esse ngulo para, em seguida, focarmos os

    demais (metafunes ideacional e interpessoal).

    Antes, porm, cabe registrar, aqui, breves consideraes sobre o contexto em que o

    YouTube se apresenta a seus usurios, conforme os passos sugeridos por Chiew (2004) na

    anlise de hipertextos. O YouTube se apresenta como um espao democrtico em que bilhes

    de pessoas descobrem, assistem e compartilham vdeos criados originalmente (cf. YouTube,

    2013). Nessa espcie de ideologia gregria, reside a linha-mestra a partir da qual a pgina se

    estrutura, seja por dar aos usurios a sensao de intensa participao, seja por figurar como

    espao livre de veiculao de todo tipo de contedo audiovisual (as categorias de vdeos,

    exibidas na homepage, sugerem essa variedade). Assim, o YouTube procura demarcar, em sua

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    132

    ambincia, os atributos de uma mdia democrtica, e materializada a partir dos anseios de seus

    usurios, antes de tudo.

    6.1 Metafuno composicional/organizacional

    No site YouTube, todas as lexias que exibem vdeos enquadram-se naquilo que Kress e

    van Leeuwen (2006) denominam de composite visuals, ou seja, artefatos compostos por vrias

    instncias de representaes visuais. Os referidos autores propem ser possvel a anlise desse

    tipo de enunciao por meio dos postulados da gramtica visual.

    Nos fragmentos recolhidos para anlise, conseguimos distinguir ao menos duas ordens

    de abstrao hipertextual: a lexia, que corresponde pgina em que os vdeos so exibidos, e

    os itens, que so unidades de sentido discernveis dentro de uma lexia. Tais configuraes so

    impensveis na televiso, o que nos mostra, em primeiro lugar, como o suporte um elemento

    importante na atualizao das semioses. Na internet, mais especificamente no site YouTube, a

    composio no se d apenas em funo do fluxo temporal pelo qual se pauta a televiso e

    seus produtos (ao assistirmos aos captulos, as cenas se sucedem no tempo, mas no no

    espao, como aconteceria se pudssemos ler as cenas impressas em papel). Por essa razo, nas

    lexias, o produto audiovisual no figura como hegemnico, embora apresente salincia em

    relao aos demais elementos da pgina, quais sejam: lista de comentrios de internautas,

    botes diversos com funes de compartilhamento e exibio do vdeo, lista de vdeos

    relacionados, cabealho com barra de busca, e outras opes secundrias.

    O valor informacional de certos elementos obtido a partir do princpio da usabilidade

    (CHIEW, 2004; NIELSEN, 2010) no hipertexto, o que se coaduna com a distino entre dado

    e novo. Os elementos novos tendem a se localizar na poro visvel da pgina, conferindo a

    eles maior valor informacional. Em uma pgina que se intitula o maior repositrio de vdeos

    do mundo, a escolha por esse padro composicional nos parece pertinente para atribuir relevo

    aos vdeos, que so a razo de ser da plataforma.

    Em termos de composio, o mdium televiso parece demandar outros tipos de

    navegao, expresso mais associada ao espao virtual. Na TV, um mdium estritamente

    audiovisual, fala mais alto a dinmica dos planos, dos enquadramentos e do uso do som,

    enquanto no site de vdeos tais convenes compem a dinmica de apenas um dos itens da

    pgina o vdeo embora este esteja saliente ao ponto de ser destacvel e migrar para outras

    plataformas, como blog e outros tipos de pgina. A salincia do vdeo demarcada por alguns

    itens textuais e links que o emolduram, como o ttulo do vdeo no alto da pgina, sua

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    133

    descrio, na parte inferior, as palavras-chave usadas para rotul-lo e a caixa de comentrios,

    disponvel aos usurios.

    Essa espcie de moldura (framing) sinaliza a centralidade do elemento audiovisual, em

    torno do qual orbitam outros arranjos semiticos, baseados no hipertexto, mais

    especificamente nas demandas e convenes da chamada web 2.0. Assim, torna-se possvel

    assistir a um vdeo para, em seguida, coment-lo, recomend-lo ou o compartilhar em

    plataformas permeveis ao contedo audiovisual.

    Nesse processo, os modos visual e sonoro dos vdeos em questo passam por processo

    de edio. O que se v na lexia, porm, o resultado dessa manipulao, iniciada j no

    processo de upload dos vdeos. Ao nos determos sobre os atributos composicionais do item

    vdeo, possvel discernir diferentes graus de ativismo com que os usurios interveem nas

    produes audiovisuais. Diante de tais intervenes, possvel estabelecer um fluxo,

    conforme apresentado na Figura 2 a seguir.

    Figura 2: Graus de interveno em termos composicionais no item vdeo

    O vdeo Passione 18/08/2010 Captulo 081 Parte 2 indicia o papel da ao de

    upload do prprio vdeo, como uma etapa que d visibilidade a um processo composicional.

    Trata-se de uma composio, no sentido em que uma unidade de sentido, originalmente

    exibida na televiso, manipulada de forma a ter excludas algumas marcas da exibio

    original, quais sejam: presena de vinhetas e intervalos comerciais. O upload a etapa final

    de um processo que pode ocorrer fora da internet, com o uso de programas de captura e

    edio de vdeo. Em um segundo momento, esse vdeo, j previamente dissociado de seu

    mdium original, a televiso, manipulado por um ator annimo e passa a habitar um

    ambiente hipertextual, no qual emerge como elemento de salincia de um site de vdeos.

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    134

    No caso do vdeo Eu sou RICA, uma unidade de sentido televisiva, como a cena de

    telenovela, reduzida a oito segundos de durao. Numa estratgia que poderamos

    denominar de metonmica, o ativismo dos usurios aqui se manifesta por meio da extrao de

    uma nica sucesso de frases da cena, que acaba servindo como carto de visitas da novela

    como um todo. O vdeo, por sua curta durao, adquire as feies de um meme (Dawkins,

    2007),: uma ideia (ou parte dela) capaz de se reproduzir na cultura. No caso, a frase Eu sou

    rica, proferida pela personagem Norma no referido vdeo, multiplicou-se pela internet de

    maneira viral, em diferentes formas de atualizao. Ainda assim, nenhuma alterao

    composicional no sentido de superpor ou incluir novas cenas foi observada.

    justamente isso o que ocorre no terceiro vdeo de nossa amostra, Momento

    Vanesso. Aqui, no se trata apenas de manipulao do fluxo temporal do vdeo, mas

    tambm de seu desenvolvimento narrativo. Um remix promovido a partir da intercalao da

    cena original da novela a uma outra, retirada de um viral do YouTube, em que um transexual

    de Rondnia entrevistado num programa de gnero policial, aps ter sido levado

    delegacia, acusado de roubo. Em termos de composio, esse o vdeo que promove as

    maiores mudanas, nos orientando a estabelecer uma relao intertextual, ainda que artificial,

    ou involuntria, entre a telenovela e um segundo contedo audiovisual, em tese, dissociado do

    primeiro. no manejo dos recursos de edio de vdeo e udio que se cria uma relao que

    repercute, como veremos, numa ideia transgressora acerca dos mundos televisivos.

    6.2 Metafuno ideacional

    De que maneira os aspectos do mundo, da forma como so vivenciados pelos seres

    humanos, so representados semioticamente? Responder a essa questo, como j se viu

    anteriormente, leva-nos a pensar nos tipos de contedos ideacionais veiculados por uma

    determinada enunciao. Mais uma vez, faz-se necessrio aludir aos dois nveis em que

    estamos operando para buscar visualizar aqueles aspectos. De um lado, as lexias do YouTube

    e, como parte delas, o item vdeo, saliente em relao aos demais.

    As lexias nos projetam em direo ideia de que o YouTube um site colaborativo,

    construdo coletivamente por usurios de todo o mundo, cujo ativismo se daria de maneira

    ilimitada, ou prximo disso. Tal senso de participao, porm, est semioticamente

    estabilizado em determinados tipos de dispositivos hipertextuais, ao mesmo tempo em que

    passa por uma regulao social, que intenta evitar fenmenos como o desrespeito a direitos

    autorais, ataques a minorias e contedo considerado imprprio. Assim, estamos diante de uma

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    135

    espcie de liberdade limitada pelas regras da comunidade, cujo exerccio ocorre em aes

    como a qualificao de um vdeo como bom ou ruim. Em termos da utilizao da plataforma

    hipertextual, essa forma de representao se une a outras, como a sinalizao de um vdeo

    como imprprio, em razo de contedos como sexo, nudez, apologia ao dio, entre outros.

    Como vimos, os vdeos oriundos do gnero telenovela se organizam

    composicionalmente de maneira a admitir diversos graus de interveno do usurio, seja por

    meio da supresso de cenas, vinhetas e intervalos, seja pela insero de outros trechos de

    vdeos. Em termos ideacionais, os vdeos tambm nos remetem a diferentes maneiras de

    conceitualizar um mundo especfico: o das fices televisivas. H, nos trs exemplares, graus

    distintos de referncias s entidades semiticas concebidas e tornadas reais nas telenovelas.

    Isso pode ser observado desde a reproduo, quase que na ntegra, da telenovela Passione, em

    um dos vdeos, at a subverso da narrativa da novela Viver a Vida, que tenciona deslocar

    nosso olhar para um fenmeno viral da internet (Vanesso). Em Eu sou RICA, por sua

    vez, tambm ocorre um repropsito do trecho original da telenovela, porm, sem meno a

    outras enunciaes. A reedio transforma a frase eu sou rica em um meme, no termo de

    Recuero (2006), ou seja, em uma ideia ou parte de ideia capaz de se reproduzir na cultura. A

    enunciao passa a repercutir em outros tipos de usos sociais, tais como a reproduo em

    outros vdeos no prprio YouTube e a criao de bordes que se espraiam por redes sociais,

    caracterizando-a como viral (Helm, 2000).

    6.3 Metafuno interpessoal

    De acordo com Kress (2010), a metafuno interpessoal a responsvel por

    estabelecer a relao entre as negociaes de sentido socialmente situadas e sua traduo nas

    entidades semiticas. Em outras palavras, a funo interpessoal que nos enderea s relaes

    entre os participantes num dado mundo. Na migrao entre televiso e internet, os trechos de

    telenovelas nos autorizam a pensar numa ideia diferenciada de audincia, e de como essa

    mesma audincia desenvolve mecanismos de responsividade em relao aos contedos da

    televiso.

    O vdeo, elemento mais saliente da pgina, surge como emblema de uma nova posio

    em relao ao ato de se assistir tev: essa experincia passa a no admitir apenas o

    referencial exclusivo do aparelho de televiso. Assim, outras territorialidades entram em jogo,

    que no aquela da sala ou do quarto das casas, ou dos lugares pblicos em que um aparelho se

    faz presente. A internet, nova ambincia possvel dessa telenovela usurpada da televiso,

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    136

    digamos assim, decreta uma relao distinta entre produtores e fruidores de contedo, em que

    at mesmo essa diviso ganha contornos imprecisos. Levadas em conta, esto as limitaes da

    plataforma, mas tambm suas potencialidades, como a interveno de usurios no papel de

    comentaristas, examinadores e debatedores do produto televisivo, outrora sacralizado. Os

    comentrios daqueles que assistiram ao vdeo, abaixo de cada vdeo postado, simbolizam essa

    potencialidade.

    Tomando em considerao, ainda, que tais negociaes de sentido ocorrem, na maior

    parte das vezes, revelia das emissoras, percebe-se aqui uma relao, marcada pela tenso

    entre um plo miditico produtor, porm, no mais senhor de seus prprios contedos, e uma

    audincia especfica alada a novos status, o que se estende desde comentaristas de

    televiso a usurios-produtores, em casos em que o gnero em questo, a telenovela, passa

    por reedies ou reelaboraes de cunho audiovisual. A caixa de comentrios , dessa forma,

    uma manifestao material desses papis sociais em deslocamento.

    Abaixo da janela de vdeo, pode-se visualizar um sistema avaliativo baseado em

    dicotomias verbo-visuais de fcil assimilao (Gostei/No Gostei; verde/vermelho), cujo uso

    restrito aos usurios cadastrados na plataforma. Essa opo parece indicar como a

    arquitetura do site torna salientes mecanismos de participao primria, que Primo classifica

    como interao reativa (2003), por se caracterizarem numa base determinstica de estmulo-

    resposta. A esses, seguiriam-se outros (comentrios e vdeo-respostas) de maior

    complexidade, mais prximos de uma interao mtua (Primo, 2003), entendida como

    capacidade de afetar um outro envolvido na interao. Em uma ou outra categoria, essas

    maneiras de se fazer ouvir, dentro do site, apontam para a inescapvel dimenso de validao

    social que acompanha o ato de postagem dos vdeos, que servem de medida da popularidade

    de certos vdeos, em detrimento de outros e determinam um certo status a seus uploaders.

    Outras relaes relevantes se estabelecem entre os prprios usurios do site por meio

    de sinalizaes diversas e j mencionadas como os comentrios, os botes de avaliao e

    na criao de conexes entre os diversos vdeos por meio de palavras-chave, por exemplo. O

    arco dessas relaes admite desde avaliaes de todo o tipo, expressas textualmente, sobre os

    vdeos (ainda que ocorram, no raro, certos desvios de tpico em direo ao comportamento

    de outros usurios ou a detalhes secundrios ou contextuais nos vdeos), rankings de

    popularidade e, em casos extremos, remoo de comentrios, de vdeos e at de contas de

    usurio em razo de violaes de privacidade, ou direitos autorais. Em decorrncia direta da

    ideia de comunidade, a existncia dos usurios do YouTube pressupe papis equnimes e

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    137

    uma autogerncia do bom andamento da prpria plataforma, a cargo daqueles mesmos

    usurios.

    Ainda assim, o YouTube no se qualifica como uma rede social, na medida em que as

    projees dos atores e das suas conexes, centrais para esse tipo de rede (RECUERO, 2009),

    aqui no intentam ocupar o lugar mais saliente, destinado aos vdeos. Observam Harley e

    Fitzpatrick (2009) que o YouTube obedece a uma arquitetura de cima para baixo (top-down).

    Em poucas palavras, trata-se de uma configurao mediante a qual os contedos veiculam-se

    a partir de um difusor/emissor hierarquicamente superior, para uma audincia, tal qual ocorre

    nos meios massivos tidos como tradicionais.

    Consideraes finais

    O presente artigo dedicou-se a distinguir traos da organizao multimodal de trs

    vdeos postados no site YouTube, todos eles originalmente oriundos de telenovelas

    originalmente exibidas na TV Globo. Intentamos observar, atravs da lente das macrofunes

    da linguagem, como os vdeos passam a integrar um ambiente hipertextual e, a partir disso,

    como subvertem traos da produo, da recepo e mesmo das ideologias do gnero

    telenovela. As principais transgresses podem ser sintetizadas da seguinte maneira nas trilhas

    da gramtica visual, de acordo com as trs metafunes a composicional/organizacional; a

    ideacional; e a interpessoal.

    Associada metafuno composicional, existe a possibilidade de manejo dos modos

    semiticos em processos de reedio dos trechos de telenovelas obtidos pelos usurios;

    adequao desses vdeos a uma interface colaborativa; remixes com outros vdeos, com

    recurso intertextualidade; metonmia. Quanto metafuno ideacional, os trs vdeos

    indiciam diferentes maneiras de se conceitualizar o mundo ficcional televisivo, indo da

    reproduo ao remix; o site, nos quais os vdeos so reproduzidos, apresenta-se como um

    misto de repositrio de vdeos e comunidade colaborativa. Por fim, voltados para a

    metafuno interpessoal, mecanismos de interao reativa e/ou mtua, presentes no site,

    tornam o processo de postagem dos vdeos uma experincia de validao social; relao entre

    produtores de televiso e audincia reposicionada.

    Em vista das consideraes apresentadas ao longo do artigo, podemos apontar como

    significativos os deslocamentos sofridos pelo gnero telenovela, em sua migrao da televiso

    para a internet. So deslocamentos que podem ser qualificados como formais, relacionais,

    ideolgicos e sociais, na medida em que envolvem um trabalho semitico capaz de

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    138

    reposicionar o papel da audincia, em direo a seu ativismo, de evidenciar negociaes e

    tenses nos processos de recepo, alm de colocar a prpria instituio social da telenovela

    sob escrutnio. Esse conjunto de fatores, trazidos tona pelas possibilidades da transmidiao,

    autoriza-nos a postular um novo lugar para os gneros televisivos, em que certamente se

    prestam a novos usos sociais e a novas experimentaes semiticas, por assim dizer.

    guisa de concluso, buscou-se traar um paralelo entre os recursos multimodais aqui

    discutidos e os elementos da linguagem verbal que, igualmente, possuem potencial

    significativo para a construo de sentidos. Considerando a organizao da linguagem em

    metafunes, que se apresentam de forma integrada tanto na linguagem verbal como em

    construtos multimodais, podemos afirmar, com Halliday e Mathiessen (2004), que a

    linguagem tem como propsitos bsicos dar sentido nossa experincia e tambm ordenar

    nossas relaes sociais. Nesse sentido, a linguagem possui um componente ideacional, que

    permite construir a experincia humana, nomeando-a, um componente interpessoal, que

    edifica na linguagem as relaes entre sujeitos, e um componente textual ou composicional,

    que se refere coerncia dos textos.

    A partir dessa base conceitual, observamos que essas metafunes operam no sentido

    de estabilizar relativamente certas prticas discursivas, ao mesmo tempo em que servem de

    parmetro para avaliar suas transformaes ou reelaboraes (COSTA, 2010). Elas ocorrem

    tanto no nvel da linguagem verbal, com prticas de remix e edio de trechos com vistas

    viralizao, como tambm dos recursos multimodais como as intervenes em vdeo

    realizadas nos exemplares analisados. Pressupondo, com Bakhtin ([1979] 2006), que os

    gneros estabelecem vnculo com os estilos que lhes correspondem, podemos concluir, com

    relao experincia de validao social que h entre produtores de televiso e audincia

    reposicionada, de tal modo que os ativismos efetuados pelos usurios so prticas de cunho

    estilstico, que repercutem no estatuto dos gneros sobre as quais incidem, o que assegura o

    papel da linguagem para mediar experincias humanas em seu dinamismo.

    Recebido em: maro de 2014

    Aprovado em: maio de 2015

    [email protected]

  • P. 122 140 Rafael Rodrigues da Costa

    139

    Referncias Bibliogrficas

    BAKHTIN, M. Gneros do discurso. In: Esttica da criao verbal. So Paulo: Martins

    Fontes, 2006[1979].

    CHIEW. A. K. K. Multisemiotic mediation in hypertext. In: O'HALLORAN, K. (Ed.)

    Multimodal discourse analysis: Systemic-Functional Perspectives. London; New York:

    Continuum, 2004.

    COSTA, R. R. Broadcast yourself: o avano do vdeo digital e o empoderamento da

    audincia. In: VII Encontro Nacional de Histria da Mdia, 2009, Fortaleza. Anais do VII

    Encontro Nacional de Histria da Mdia. So Paulo: Rede Alcar, 2009.

    ____. A TV na web: percursos da reelaborao de gneros audiovisuais na era da transmdia.

    Dissertao (Mestrado em Lingustica) Programa de Ps-Graduao em Lingustica. Universidade Federal do Cear, Fortaleza, 2010.

    DAWKINS, R. O gene egosta. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.

    DIONISIO, A. P. . Intertextualidade e multimodalidade na escrita didtica. In: MOURA, V.;

    DAMIANOVIC, M. C.; LEAL, V. (org.). O ensino de lnguas: concepo & prticas

    universitrias. 1 ed. Recife: Editora da UFPE, 2010, v. 1, p. 163-175.

    DONDIS, D. A. A primer of visual literacy. Cambridge: MIT Press: 1974.

    FELTRIN, R. Record cresce 117% em seis anos; Globo e SBT despencam. UOL Notcias -

    Ooops! So Paulo, 06 out. 2010. Disponvel em: http://noticias.uol.com.br/ooops/ultimas-

    noticias/2010/10/06/record-cresce-117-em-seis-anos-globo-e-sbt-despencam.jhtm. Acesso em

    08 set. 2013.

    FORD, A. Navegaes: comunicao, cultura e crise. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1999.

    GOMES, L. F. Hipertextos multimodais: o percurso de apropriao de uma modalidade com

    fins pedaggicos. Tese de Doutorado. Campinas: Doutorado em Lingustica Aplicada da

    Universidade de Campinas, 2007.

    HALLIDAY, M. A. K. An introduction to Functional Grammar. 3. ed., Oxford, Londres:

    Arnold, 1994.

    HALLIDAY, M. A. K.; MATHIESEN, C. M. I. M. (revised by). An introduction to

    Functional Grammar. 3. ed., Londres: Hodder Education, 2004.

    HARLEY, D.; FITZPATRICK, G. YouTube and intergenerational communication: The case

    of Geriatric1927. Universal access in the information society, Heidelberg, n. 8, p. 5-20, 2009.

    HODGE, R.; KRESS, G. Social semiotics. Ithaca: Cornell University Press, 1988.

    JENKINS, H. Cultura da convergncia. So Paulo: Editora Aleph, 2008.

    JOST, F. Seis lies sobre televiso. Porto Alegre: Sulina, 2004.

    KRESS, G. Multimodality: a social semiotic approach to contemporary communication. Nova

    Iorque: Routledge, 2010.

  • Cadernos de Linguagem e Sociedade, 16(1), 2015

    140

    KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Multimodal discourse: the modes and media of

    contemporary communication. Londres: Hodder Arnold, 2001.

    ____. Reading images: the grammar of visual design. Londres: Routledge, [1996] 2006.

    LEMKE, J. L. Travels in hypermodality. London, Thousand Oaks, CA, New Delhi: SAGE

    Publications, Vol. 1, 2002, p. 299-325.

    MAZETTI, H. M. Cultura Participativa, espetculo interativo: do empoderamento ao engajamento corporativo dos usurios de mdia. In: XIV Congresso de Cincias da

    Comunicao na Regio Sudeste, 2009, Rio de Janeiro. Anais do XIV Congresso de Cincias

    da Comunicao na Regio Sudeste, 2009.

    NIELSEN, J. Scrolling and Attention. In: Jakob Nielsens Alertbox. Disponvel em: . Acesso em: 25 mar. 2010.

    O'HALLORAN, K. (ed.) Multimodal Discourse Analysis: Systemic-Functional Perspectives.

    London; New York: Continuum, 2004.

    O'REILLY, T. What is Web 2.0. In: O'REILLY, 2005. Disponvel em:

    . Acesso em 08 set. 2013.

    PRIMO, A. A interao mediada por computador: a comunicao e a educao a distncia

    segundo uma perspectiva sistmico-relacional. Tese (Doutorado em Informtica na Educao)

    Programa de Ps-Graduao em Informtica na Educao. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

    RECUERO, R. C. Memes e dinmicas sociais em weblogs: informao, capital social e

    interao em redes sociais na Internet. InTexto, v. 15, p. 1, 2006.

    _____. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.

    YOUTUBE. Histrico da empresa. Disponvel em: .

    Acesso em 08 set. 2013.