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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13thWomen’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
MULHERES CAMPONESAS E TEORIA MARXISTA DA DEPENDÊNCIA:
APROXIMAÇÕES DA ANÁLISE SOBRE O PATRIARCADO NO CAMPO NO
CONTEXTO DEPENDENTE LATINO-AMERICANO
Larissa Carvalho de Oliveira1
Helga Maria Martins de Paula2
Resumo: As contradições no espaço agrário brasileiro apresentam-se de modo dinâmico. Entre as
possibilidades de leituras sócio-política-jurídicas atualizadas desse contexto, destaca-se uma
abordagem sobre a mulher do campo. Camponesas podem ser reconhecidas enquanto um grupo
social marcado pela diversidade de características internas, especialmente de fatores étnicos,
culturais e etários. Tendem a apresentar, coincidente ou assemelhadamente, práticas comunitárias e
desempenho de atividades produtivas para manutenção econômica autônoma. Importa identificar o
contexto de luta por direitos, a partir de um olhar acerca do espaço e da lógica campesina, frente o
expansionismo globalizante do agronegócio. Objetiva-se delinear como a base familiar e
determinada sociabilidade orientam ações contra-hegemônicas das camponesas frente ao modo de
produção capitalista e ao patriarcado. Neste estudo, as fontes bibliográficas recebem análise
comparativa, sob enfoque crítico e orientação da teoria marxista da dependência. Parte-se da
hipótese de que as camponesas integram classe social baixa e se caracterizam pela histórica
vulnerabilidade, inclusive decorrente dos conflitos territoriais e ideológicos. Inicialmente, trata-se
sobre o cenário camponês brasileiro na conjuntura de dependência capitalista. Em tom conclusivo,
são apontados elementos para se discutir a importância da atuação das camponesas quanto à
persistência e/ou adaptação de suas tradições e formas de vida.
Palavras-chave: Mulheres Camponesas; Campesinato; Teoria marxista da dependência
Introdução
O campo, em sua construção alicerçada nas relações sociais que marcam a
historicidade do Brasil e da América Latina e respectivas particularidades de seu capitalismo
dependente, traz a contextualização para a análise central do objeto de pesquisa do presente artigo: a
mulher camponesa e sua resistência e protagonismo contra-hegemônico de enfrentamento ao
modelo agrícola preconizado com a chamada “modernização do campo” no período inaugurado
pelo “desenvolvimentismo”. Esse período, no Brasil e na América Latina, foi marcado pelo ascenso
da luta de classes e pelo acirramento dos conflitos no campo, tendo sido o espaço para organização
de diversos movimentos camponeses populares, como as Ligas Camponesas no Brasil.
As relações sociais tendem a ser construídas de acordo com a época e a espacialidade que
1 Mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil. 2 Professora de Direito Público da Universidade Federal de Goiás, Jataí, Brasil. Doutoranda em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília, Distrito Federal, Brasil.
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lhes acrescentam elementos, histórias e configurações próprias. Na realidade agrária brasileira os
relacionamentos inseridos no campesinato apresentam feições comunitárias e de cuidado com a
natureza, além de enfrentamento a características próprias das relações sociais do campo, como o
coronelismo e a criminalização de organizações de trabalhadoras/es do campo.
O presente estudo enfatiza o protagonismo das mulheres camponesas na manutenção
tradicional do modelo agrícola contra-hegemônico que se afigura como condição para as suas
práticas de cultivo, seus afazeres domésticos e o costume de compartilhamento de saberes e
materialidades, sendo imprescindível para a manutenção de enfrentamentos efetivos ao modelo do
agronegócio.
Considera-se, por hipótese, que a vulnerabilidade socioeconômica comum às camponesas se
relaciona com os enfrentamentos econômicos, sociais, territoriais, políticos e ideológicos que
caracterizam suas vivências. Camponesas e camponeses predominantemente são pobres, explorados
pelos latifundiários/proprietários dos meios de produção no campo. E elas ainda são alvos das
ofensivas e dos ataques do patriarcado que invisibiliza seus trabalhos e lhes inferioriza em relação
aos homens. No campo, a ofensiva do patriarcado atrela-se à predominância de arranjos familiares
tradicionais que rejeitam qualquer inserção da mulher em espaços que não sejam espaços nos quais
o exercício de seus papéis de esposas e mães estejam presentes.
O objetivo principal do artigo é analisar a importância da atuação das camponesas,
especialmente para a questão agroalimentar no Brasil e na América Latina. Pretende-se ainda
destacar características do espaço e da lógica camponesa, cujos sujeitos lutam por direitos frente à
expansão progressiva e violenta do agronegócio em uma América Latina e Brasil dependentes.
Importa perceber o diferencial da base familiar e dos elementos sociais que pautam ações e
racionalidades contra-hegemônicas das camponesas e dos camponeses frente à lógica do capital no
campo.
Os elementos que caracterizam injustiça socioambiental, com destaque para a tensão entre
campesinato e agronegócio, justificam o desenvolvimento deste estudo que pretende destacar as
camponesas em suas dimensões de centralidade na resistência aos ataques e criminalizações
perpetrados pelo capitalismo. Mulheres que cultivam hortas e lavouras, que criam animais, que dão
o tom da organização comunitária e da ocupação de espaços e papéis para além das determinações
do patriarcado.
O contexto rural sofre as consequências diretas do modelo explorador do agronegócio, cujos
produtos se destinam majoritariamente à exportação. Trata-se de modelo agrícola que constitui uma
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das bases da dependência latino-americana quanto ao capital de empresas transnacionais do setor.
As duas partes deste estudo consideram que a atuação das camponesas está vinculada à
determinada estrutura social, econômica, política, agrária e ideológica. Suas práticas tendem a ser
comunitárias, voltadas para o autoconsumo e em áreas que, predominantemente, são alvos de
disputas territoriais. Na primeira parte do trabalho, observa-se uma caracterização de dois modelos
agrícolas que se destacam na América Latina. Os fatores de desigualdade no tratamento
institucional para cada um deles refletem-se nas condições de vida de seus membros.
As camponesas integram grupo social historicamente marginalizado, conforme se estuda na
segunda parte do texto. A importância de suas atividades é negada e ocultada como condição para a
permanência das formas de opressões da lógica patriarcal capitalista e de todo o mecanismo
explorador/opressor.
Perspectivas sobre o campo: entre resistências e expansões
O espaço rural brasileiro, na atualidade, pode ser percebido a partir de análises acerca de
determinadas características que envolvem as pessoas que nele produzem e sobrevivem. Certos
grupos sociais localizados no campo podem ser identificados mediante os vínculos que possuem
com os modelos agrícolas, especialmente com o campesinato e com o agronegócio.
O campesinato abrange um conjunto de orientações econômicas, estruturais e sociais,
pautadas na permanência sustentável no campo, na forma de uma agricultura predominantemente de
subsistência. Sua base histórica, no Brasil, revela-se com destaque nas tradições de formas de
cultivo de plantas e criação de animais, que primam pela autonomia econômica e social de
camponesas e camponeses (Wanderley, 1996). A autonomia tende a ser valorizada no campesinato
e, por este motivo, não há subordinação irrestrita às determinações do mercado (Abramovay, 1998),
ainda que o cenário hegemônico segregue, criminalize e dificulte cada vez mais as dinâmicas
campesinas.
O desenvolvimento das atividades agrárias, no campesinato, ocorre predominantemente por
meio do trabalho familiar. A prática da policultura é comum, assim como a pecuária, na medida em
que a diversificação produtiva amplia as possibilidades de manutenção independente no campo
(Wanderley, 1996).
A produção para o autoconsumo predomina no campesinato, pois são as necessidades
familiares que determinam o que vai ser produzido (Abramovay, 1998). A variedade da produção
camponesa atrela-se à diversidade dos saberes compartilhados e da perspectiva econômica
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prevalente de subsistência. As relações sociais são influenciadas por modos de racionalidade
integralizante, que ultrapassam os laços consanguíneos para serem comunitários (Wanderley, 1996).
Assim, as tradições são ensinadas a cada nova geração, mas também são incrementadas e
adequadas à contemporaneidade. Esse saber intergeracional e suas características marcantes da
oralidade e do respeito aos saberes que dialogam com as condições materiais postas, é fundamental
para compreensão da divisão dos papéis sociais das/os camponesas/es e sua complexa rede de
relações entre si e com o contexto no qual estão inseridas/os. Por isso, podemos vislumbrar, em um
mesmo espaço, o reforço dos papéis de submissão e restrição a atuação no espaço privado das
mulheres camponesas, determinados pela cultura do patriarcado, e a luta protagonizada pelas
camponesas na manutenção de modos de produção contra-hegemônicos que enfrentam a forma
hegemônica capitalista.
No entanto, a marginalidade tem sido constante na vivência de comunidades que se alinham
ao campesinato. Trata-se de marginalidade espacial/periférica, econômica, política e estrutural, pois
a pressão econômica predominante destina as melhores (e cada mais) terras para o agronegócio.
Estruturalmente, a escassez de incentivos governamentais e as dificuldades apresentadas aos
trabalhos camponeses, inclusive quanto à comercialização do que se produz, são alguns dos
obstáculos enfrentados por camponesas e camponeses. A dificuldade de acesso efetivo a
instrumentos relacionados ao plantio e à colheita que permitem uma maior inserção na circulação
daquilo que é produzido, bem como a face da superexploração3 do trabalho rural como forma de
3 Superexploração do trabalho é uma das categorias centrais desenvolvidas no âmbito da Teoria Marxista da
Dependência (TMD). Tendo como principais autoras e autores Vânia Bambirra, Ruy Mauro Marini, Theotônio dos
Santos, entre outros, essa escola teórica de análise da realidade econômica e social do Brasil e da América Latina, surge
nos anos 1960 como resposta à análise predominante na academia e nas políticas programáticas desenhadas para os
Estados à época: a leitura da perspectiva desenvolvimentista e etapista da Comissão Econômica para América Latina e
Caribe (CEPAL), que tinha Celso Furtado como um de seus principais teóricos/elaboradores. A partir do princípio do
desenvolvimento desigual, com o argumento da deterioração dos termos de troca, a CEPAL criticava os postulados da
Escola Clássica, no caso, as ideias de vantagens comparativas, ou seja, as relações internacionais equilibrariam as
desigualdades, estas eram necessárias para o bom funcionamento do mercado mundial – intercâmbio – todos sairiam
ganhando com a especialização no interior dessa nova divisão internacional do trabalho. A Teoria Marxista da
Dependência critica essa perspectiva trazendo a caracterização do capitalismo latino-americano com suas contradições
de classe e percepções das formas concretas de reprodução das relações de dependência dos países periféricos frente aos
centros imperialistas. Superava-se, portanto, o princípio do desenvolvimento desigual e, de acordo com a TMD, o
capitalismo ”sui generis” latino-americano, e sua respectiva dependência, deve ser compreendido tendo por base a
expansão da economia a qual está subordinada, como consequência dessa relação de dependência, há uma deterioração
dos termos de troca na transferência de valores dos países periféricos para os países centrais. Essas características
observadas nos países dependentes levam a um mecanismo de compensação que permite com que a mais-valia, que nos
países periféricos é produzida porém não acumulada, seja compensada pela superexploração do trabalho, isto é, salários
abaixo do valor como elemento estrutural do capitalismo dependente desses países. No caso do Brasil, podemos
expandir essa análise para uma superexploração do trabalho no campo que ultrapassa a caracterização de salários
baixos, resvalando na condição análoga a de escravidão e aprofundando, ainda mais, a dicotomia na relação
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sobrevivência no “campo moderno” são, também, obstáculos concretos observados.
Em termos espaciais, camponeses se apresentam como marginalizados ao serem afastados
dos lugares de interesse do capital. Os não lugares são-lhes destinados, a periferia da periferia do
capitalismo dependente. E a alteração da mirada, do olhar, que transforma em elementos discursivos
periferia/centro, em nada acrescenta efetivamente ao debate de forma a contribuir com os
instrumentos necessários de enfrentamento ao capitalismo por parte de camponesas/es. Os não-
lugares concretos, materiais, são os elementos que interessam à análise, pois o espaço além de físico
é funcional (Santos, 2006). Nesse sentido, os elementos que o compõe são carregados de
significados também. Esses significados são reflexos das relações sociais construídas a partir das
condições materiais e envolvem as ações humanas desenvolvidas em determinada área. O espaço,
portanto, abrange valores e desvalores.
Quanto ao campesinato, por se tratar de modelo diverso do hegemônico, estabelece-se
socialmentemarcado pela desvalorização, inclusive espacial. Ao mesmo tempo, no plano interno,
reconhece-se determinada espacialidade dinâmica, em que as atividades agrárias são diversificadas
e pautadas no interesse de manutenção coletiva sustentável, com respeito à natureza e
predominância da perspectiva de subsistência.
O espaço próprio comum aos camponeses é de pequenas áreas territoriais, inclusive e
principalmente devido aos fatores de ordem classista. Contudo, o fato de se tratar de pequeno
estabelecimento rural não pressupõe que quem o ocupa e nele trabalhe corresponda a um camponês,
nos termos aqui elencados. Considerando-se o ano de 2014, no Brasil:
Em dados absolutos, os estabelecimentos com até 50 hectares, que controlam 6,9% das
terras agrícolas, contribuíram com 41% do valor da produção, enquanto os
estabelecimentos com mais de mil hectares foram responsáveis por 24,8% da receita
agropecuária, apesar de nominalmente controlarem mais que o triplo da área dos primeiros
e terem recebido quase o dobro, em valor, dos créditos obtidos pelos primeiros (PAULINO,
2015, p. 19-20).
Desse modo, o desempenho produtivo em pequenos estabelecimentos agrícolas, incluindo-se
os caracterizados como camponeses, foi maior do que o dos grandes estabelecimentos,
historicamente controlados pelo setor agrícola patronal.
O campesinato se reafirma e reinventa cotidianamente, ao mesmo tempo em que se destaca
por determinada sociabilidade afetiva e se pauta no compartilhamento de valores e saberes. Não há
homogeneidade entre as comunidades camponesas brasileiras (Wanderley, 1996), mas muitas
capital/trabalho e a convivência de formas primitivas de acumulação do capital e suas sociabilidades com o mais
agressivo capitalismo.
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compartilham as características da necessidade da migração decorrente da pressão expansionista do
agronegócio. Por consequência, faz-se comum observar condições de precariedade entre grupos
sociais camponeses.
Em contexto capitalista, o fornecimento de alimentos pelo campesinato à população urbana
(Wanderley, 1996) não é substituído pela produção do agronegócio. Neste modelo agrícola o foco é
a produção de commodities, enquanto produtos da agricultura padronizados e avaliados segundo as
normas do comércio internacional, especialmente para fins energéticos e exportadores.
O agronegócio se constitui como sistematicidade para a produção e comercialização do que
se desenvolve no campo em larga escala, com destaque para a produção em monoculturas (em
especial com os cultivos de soja, milho e cana-de-açúcar) nos latifúndios do capital expansionista
(Delgado, 2012).
A dependência de investimentos estatais (Paulino, 2015) e privados contínuos e progressivos
é pressuposto no agronegócio. Deste modo, o desenvolvimento tecnológico e científico é fomentado
para servir apenas às práticas de ampliação territorial e econômica do modelo agrícola hegemônico.
Quanto ao elemento territorial, importa destacar que o modelo latifundiário foi inserido na
modernidade e se mantém com bases políticas e sociais (Wanderley, 1996). O latifúndio se mantém
por meio da exploração de trabalhadoras e trabalhadores do campo e da natureza. A realidade
latifundiária envolve e concentra poder socioeconômico, político e ideológico, em detrimento de
grupos sociais vulneráveis, como as pessoas inseridas no campesinato. “Controle territorial e
hegemonia são, assim, indissociáveis [...]” (Paulino, 2015, p. 12).
A concentração de terras e a hegemonia do agronegócio no Brasil e na América Latina
tornam explícita a relação de dependência capitalista que prevalece na região, com consequências
nocivas à natureza e às pessoas (Paula, 2010). Trata-se de dependência com países do Norte em
termos estruturais, financeiros, tecnológicos e científicos, cujas práticas são essencialmente
exploratórias e opressivas.
O agronegócio corresponde à face do capitalismo no campo. Assim, prima pelo lucro e pela
apropriação da mais-valia a partir da superexploração do trabalho de mulheres e homens que,
“livremente”, vendem sua força de trabalho. O capitalismo, então, pode ser compreendido como
fenômeno sócio-histórico e político, diferenciado pelo seu modo de produção. Baseia-se na
propriedade privada dos meios produtivos; no trabalho livre e assalariado; no sistema mercantil e
em racionalidades visando à exploração do mercado para se obter lucro. Entre as racionalizações
capitalistas destacam-se as de caráter produtivo, científico e as dos comportamentos humanos
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(Rusconi, 1998).
Deste modo, observa-se que o campesinato e o agronegócio não são modelos agrícolas
isolados entre si ou inflexíveis. Mas se mantêm na realidade complexa do campo, agregando
diversas estruturas socioeconômicas, históricas e políticas. São modelos que coexistem em tensão
ou em reais práticas opressivas e exploratórias.
No campo, a exploração e a desigualdade são intensas. Nele estão 75% das pessoas pobres
do mundo e a maioria delas realiza atividades agrárias (World Bank; FAO; IFAD, 2012). Entre as
pessoas pobres, as mulheres são ainda mais vulneráveis do que os homens.
As/os teóricas/os da teoria marxista da dependência já afirmavam, ainda nas décadas de
1960/1970 que no cenário do capitalismo “sui generis”, dependente, latino-americano “o
campesinato, do qual vários setores são progressivamente deslocados para as zonas urbanas-
expulsos do campo pelo monopólio da terra e pela crise provocada, por um lado, pela introdução de
máquinas e, por outro, pela decadência de setores agrícolas tradicionais-, tende a se proletarizar ou a
aumentar as filas dos vastos setores marginais.” (Bambirra, 2015, p. 208).
Na América Latina, a pobreza rural aparece nos discursos hegemônicos como consequência
do atraso e da falta de modernidade no setor agrícola. Nesta região, especialmente desde 1980,
observaram-se processos de privatização e de abertura das economias ao capital estrangeiro com
efeitos diretos na agricultura. Tais investidas aprofundaram a desigualdade social e a concentração
de terras (Brasil, 2006). Este cenário de injustiças sociais se arrasta até a contemporaneidade, de
modo a contribuir para a vulnerabilidade socioeconômica de inúmeras camponesas.
Mulheres camponesas e atividades agrárias
As mulheres que desenvolvem práticas e se relacionam socialmente sob orientação do
campesinato podem ser identificadas como camponesas. Nesse sentido, trabalham ao lado de seus
familiares, em atividades agrárias voltadas para o autoconsumo e predominantemente sustentáveis,
de modo a restringir as atividades econômicas ao suprimento das necessidades locais.
Reconhece-se que o termo “camponesas” pode abranger mulheres indígenas, quilombolas,
pescadoras, quebradeiras de coco, seringueiras, ribeirinhas e extrativistas localizadas em espaço
rural. Contudo, no presente texto, a palavra “camponesas” é utilizada como referência às mulheres
do campo vinculadas ao campesinato, no sentido apresentado acima. O grupo social composto pelas
camponesas é internamente diverso, em especial por conta de fatores culturais, étnicos, etários,
religiosos e geográficos.
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Camponesas são significativamente afetadas pela privatização da natureza promovida pelo
modelo agrícola hegemônico. Até porque, a redução da disponibilidade de elementos da natureza
estreita a variedade genética de vegetais e animais em cada região, causando a diminuição do acesso
aos alimentos por parte das comunidades.
A crítica construída em torno da dependência do setor agrícola brasileiro quanto às
tecnologias e insumos de padrão internacional faz-se ainda mais enfática quando se parte de
reflexões acerca da realidade vivenciada pelas camponesas. Tal ênfase se relaciona à
vulnerabilidade socioeconômica que atinge a maioria das camponesas, na medida em que afetadas
pela divisão sexual do trabalho, tendo que realizar atividades produtivas, reprodutivas e de cuidado
para com os membros da família.
O debate de gênero com destaque para as peculiaridades vivenciadas pelas camponesas
constitui-se com importância na questão agrária brasileira. Afinal, as camponesas têm mais
dificuldade de acesso aos créditos rurais, à titulação da terra, à capacitação em técnicas agrícolas e
às oportunidades de comercialização do que produzem se comparadas aos homens. Além disso, a
responsabilidade por cuidar de crianças e idosos tende a lhes ser atribuída com quase exclusividade
(Naciones Unidas, 2008). Há, portanto, uma divisão social e sexual do trabalho no campo que
reitera a vertente do patriarcado de designar papéis restritivos às esferas privadas às mulheres,
excluindo-as das esferas/espaços políticos decisórios, além da dinâmica estrutural de afastá-las de
forma permanente da assunção dos meios de produção no campo.
As comunidades camponesas muitas vezes se localizam em áreas que apresentam condições
desfavoráveis de fertilidade, clima e de acesso à água, aos mercados consumidores, à infraestrutura
e aos serviços públicos. As terras de melhor qualidade custam caro e tendem a ser concentradas
pelo agronegócio (Paulino, 2015).
Em contexto de hegemonia do agronegócio capitalista, as atividades realizadas por mulheres
tendem a ser desvalorizadas, assim como o seu desempenho produtivo – incluindo-se o agrário –
marginalizado ou invisibilizado (Saffioti, 2013).
No entanto, as atividades realizadas com quase exclusividade por mulheres, no interior das
casas se inserem na economia (Butto, 2009) e correspondem ao pressuposto para a realização de
outras atividades sociais.
Entende-se que as camponesas não correspondem à totalidade das mulheres localizadas na
zona rural brasileira. No entanto, os dados coletados – oriundos de fontes secundárias – não se
pautam nas especificidades que caracterizam o campesinato, conforme acima delineado e, portanto,
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não se diferenciam de acordo com tal critério. Apesar disso, destaca-se a relevância de trazê-los
para apresente análise na medida em que as camponesas se inserem no contexto rural que é
dinâmico e complexo.
Quanto às atividades agrárias, em 2006, das mulheres inseridas no setor agropecuário
brasileiro, 46,6% trabalhavam para o autoconsumo. Neste setor e no mesmo ano, 33,7% das
mulheres não eram remuneradas no exercício de suas funções (Butto, 2009). As atividades em
lavouras e na pecuária abrangem a maior parte das mulheres não remuneradas no campo (Brasil,
2006).
Muitas camponesas brasileiras trabalham com horticultura e floricultura, além de investirem
seus esforços na criação de pequenos animais e aves. A despeito de parte do que produzem destinar-
se ao comércio, a ausência de remuneração para as camponesas é constante (Brasil, 2006). O
trabalho em lavouras é comum entre as camponesas e, nos últimos anos, a exploração florestal vem
crescendo como atividade rentável (Butto, 2009).
De acordo com informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) de
2013, realizada sob orientação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase
metade das mulheres da zona rural trabalham para o consumo ou sem remuneração. 14,9% delas
trabalham por conta própria, cerca de 10% exerce atividades laborais com carteira assinada e 10%
sem carteira assinada. Além disso, somente 0,7% das mulheres rurais são empregadores, enquanto
entre os homens o número é três vezes maior (Secretaria de Políticas para as Mulheres, 2015).
Predomina socialmente determinada perspectiva discriminatória que aponta as atividades
agrárias das camponesas como ajuda aos trabalhos dos homens. Nesse bojo, tem-se uma
desqualificação das atividades domésticas e agrárias realizadas por mulheres em espaço externo à
casa, como se não fossem trabalho, mas contribuição, obrigação ou fardo feminino, decorrente da
própria condição de mulher.
Observa-se que a autonomia econômica das camponesas é um desafio. As posições
subalternas são-lhes destinadas historicamente, como um ranço da lógica patriarcal que intensifica a
vulnerabilidade socioeconômica das camponesas ainda na atualidade.
O patriarcado tende a atribuir sentido de produtivo aos trabalhos masculinos e de
improdutivo aos femininos. A materialidade das relações sociais engendradas, bem como sua
respectiva e consequente dimensão simbólica cumprem funções especiais no campo, pois algo é
produtivo ou improdutivo a partir de determinado parâmetro, por vezes não declarado. O poder de
se atribuir sentidos sociais é detido pela modernidade capitalista que, em âmbito rural, atende pelo
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nome de agronegócio.
Reconhece-se, no setor agrícola, que o modelo patriarcal capitalista predomina. O
patriarcado afigura-se como sistema ideológico pautado na exploração e dominação de mulheres.
Mantém formas de desigualdade que privilegiam os homens, estimulando práticas de controle e de
medo a que as mulheres são submetidas (Saffioti, 2015).
A luta das camponesas pela manutenção dos próprios meios e condições de sobrevivência,
com as suas tradições, corresponde a formas de resistência face ao modelo expansivo do capital
agrícola. Resistem à imposição das estruturas exploratórias. Resistem às injustiças socioambientais.
Ao resistirem constroem direitos, desde o campo e pelas margens.
Considerações finais
A partir da realização deste estudo, percebe-se que o espaço camponês atende funções
variadas, construídas pelas suas relações materiais inseridas na conjuntura econômica e política
nacional e internacional. A afirmação ideológica do campesinato demonstra ser contra-hegemônica,
inclusive por valorizar a natureza que o capital agrário não hesita em explorar e destruir. Mas não só
isso: também é contra-hegemônica no sentido de resistência e de ser protagonista dos momentos de
ascenso da luta de classes na América Latina e no Brasil.
As inúmeras atividades das camponesas contribuem para a preservação de determinada
organização social, historicamente sustentável, cuja sociabilidade valoriza o afeto e a subsistência
como base econômica. A sustentabilidade se vincula à produção e cultivo da biodiversidade, desde
os quintais das casas das camponesas.
Observa-se ser lucrativo ao capitalismo que as camponesas não sejam remuneradas na maior
parte dos trabalhos que realizam. Por este e outros fatores, faz sentido identificar esse sistema como
patriarcal capitalista.
A autonomia econômica das camponesas é basilar para que tenham oportunidade de
melhorar sua qualidade de vida e de sua família e para que possam se estabelecerem como
responsáveis pelos seus meios de produção e reprodução da vida nas relações familiares e na
própria comunidade.
Nesse sentido, a questão agroalimentar foi considerada desde a atuação das mulheres no
campo. Elas integram e significam o espaço camponês, lutam para que seja mantido e resistem à
expansão do agronegócio que corresponde à expansão de processos de destruição da vida e de um
modelo de produção coadunado com a exploração das/os trabalhadoras/es do campo.
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As abordagens estabelecidas acima reuniram determinados pontos de toque entre questões
sexuais, espaciais e classistas. O debate sobre modelos agrícolas no contexto latino-americano
desdobra-se em características de dependência econômica com efeitos sobre as pessoas, políticas,
conjunturas nacionais e internacionais e a biodiversidade. E o olhar sobre as camponesas expressa a
preocupação quanto à posição que ocupam nesse cenário.
Em suma, resta a curiosidade para que o debate iniciado nos tópicos acima seja
aprofundado, especialmente para se incentivar que a realidade das camponesas paute as reflexões e
políticas sobre conflitos agrários, terra e biodiversidade.
Referências
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Campinas: Hucitec e Editora da UNICAMP, 1998.
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Peasant women and Marxist dependence theory: Approximations of the analysis of patriarchy
in the countryside in the context of Latin America
Abstract: The contradictions in the Brazilian agrarian space present themselves dynamically.
Among the possibilities of updated socio-political-juridical readings of this context, we highlight an
approach on rural women. Peasant women can be recognized as a social group marked by the
diversity of internal characteristics, especially ethnic, cultural and age factors. They tend to present,
coincidentally or similarly, community practices and performance of productive activities for
autonomous economic maintenance. It is important to identify the context of the struggle for rights,
based on a look at space and peasant logic, in the face of the globalizing expansion of agribusiness.
The objective is to delineate how the family base and determined sociability guide counter-
hegemonic actions of peasant women in the face of capitalist mode of production and patriarchy. In
this study, the bibliographic sources receive a comparative analysis, under a critical approach and
orientation of the Marxist dependence theory. It is based on the hypothesis that the peasant women
integrate low social class and are characterized by the historical vulnerability, also resulting from
the territorial and ideological conflicts. Initially, it is about the Brazilian peasant scenario in the
conjuncture of capitalist dependence. In a conclusive tone, elements are pointed out to discuss the
importance of peasant women performance in the persistence and/or adaptation of their traditions
and ways of life.
Keywords: Peasant Women; Peasantry; Marxist dependence theory