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205 Anais do SEFiM Música e imaginário na ótica de Sartre Music and imaginary in the perspective of Sartre Abraão Carvalho Nogueira* Resumo: O presente artigo, pretende abordar inicialmente, a temática da música, a partir de passagens do romance A Náusea (1938), em que a demarcação deste tema é fixada no relevo desta obra literária do escritor e filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Uma importante chave de leitura que será explorada aqui, será o percurso através da reflexão filosófica de Sartre a partir do tema da imaginário, sobretudo em seu livro O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação (1940). E como objeto de nossa reflexão, articular, alguns indícios a respeito da música no romance sartreano, com a noção de consciência imaginante desenvolvida por Sartre, no sentido de tomar a música, no âmbito da arte, como uma esfera privilegiada de intencionalidade para esta consciência imaginante, mediada pela afetividade, na qual a negatividade do real é o ponto de encontro com a perspectiva fenomenológica elucidada pelo filósofo francês. Palavras chave: filosofia da música, imaginário, Sartre, consciência imaginante. Abstract: is work intends to approach initially, the theme of music from the novel passages Nausea (1938), in which the demarcation of this issue is fixed in this literary work of the writer and french philosopher Jean-Paul Sartre (1905-1980). An important perspective of reading that will be explored here is the route through philosophical reflection Sartre from the theme of imaginary, especially in his book e imaginary: phenomenological psychology of the imagination (1940). And as the object of our reflection, articulate, some indications as to the music in the sartrean novel, with the notion of imagina- tive consciousness developed by Sartre, to take the music in the context of art as a privileged sphere of intentionality to this imaginative consciousness mediated by affectivity, in which the negativity of the real is the meeting point with the phenomenological perspective elucidated by the french philosopher. Keywords: philosophy of music, imaginary, Sartre, imaginative consciousness. Ao tomarmos a dimensão do quão recorrente é no romance sartreano A Náusea o aparecimento da música, citada por diversas ocasiões ao percurso da leitura do livro lançado originalmente em 1938, nos deparamos com um interesse e perspectiva de abordar, e lançar ao relevo da reflexão, o tema da música, e suas relações com a perspectiva filosófica de Sartre, em um recorte de sua obra O imaginário. Esta pri- meira orientação surgiu do interesse inicial em tratar algo a respeito da música no romance citado, e passou, antes de tudo por uma primeira problematização, a saber: Qual leitura do tema da música poderá nos oferecer um caminho de interpretação para esta temática, uma vez que não encontramos uma produção sartreana especi- ficamente a respeito deste tema? Nesta direção, encontramos alguns artigos que merecem destaque nesta temática e que pudemos realizar uma leitura para este trabalho. Importante para nossa leitura *Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected].

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205Anais do SEFiM

Música e imaginário na ótica de SartreMusic and imaginary in the perspective of Sartre

Abraão Carvalho Nogueira*

Resumo: O presente artigo, pretende abordar inicialmente, a temática da música, a partir de passagens do romance A Náusea (1938), em que a demarcação deste tema é fi xada no relevo desta obra literária do escritor e fi lósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Uma importante chave de leitura que será explorada aqui, será o percurso através da refl exão fi losófi ca de Sartre a partir do tema da imaginário, sobretudo em seu livro O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação (1940). E como objeto de nossa refl exão, articular, alguns indícios a respeito da música no romance sartreano, com a noção de consciência imaginante desenvolvida por Sartre, no sentido de tomar a música, no âmbito da arte, como uma esfera privilegiada de intencionalidade para esta consciência imaginante, mediada pela afetividade, na qual a negatividade do real é o ponto de encontro com a perspectiva fenomenológica elucidada pelo fi lósofo francês.Palavras chave: fi losofi a da música, imaginário, Sartre, consciência imaginante.

Abstract: Th is work intends to approach initially, the theme of music from the novel passages Nausea (1938), in which the demarcation of this issue is fi xed in this literary work of the writer and french philosopher Jean-Paul Sartre (1905-1980). An important perspective of reading that will be explored here is the route through philosophical refl ection Sartre from the theme of imaginary, especially in his book Th e imaginary: phenomenological psychology of the imagination (1940). And as the object of our refl ection, articulate, some indications as to the music in the sartrean novel, with the notion of imagina-tive consciousness developed by Sartre, to take the music in the context of art as a privileged sphere of intentionality to this imaginative consciousness mediated by aff ectivity, in which the negativity of the real is the meeting point with the phenomenological perspective elucidated by the french philosopher.Keywords: philosophy of music, imaginary, Sartre, imaginative consciousness.

Ao tomarmos a dimensão do quão recorrente é no romance sartreano A Náusea o aparecimento da música, citada por diversas ocasiões ao percurso da leitura do livro lançado originalmente em 1938, nos deparamos com um interesse e perspectiva de abordar, e lançar ao relevo da refl exão, o tema da música, e suas relações com a perspectiva fi losófi ca de Sartre, em um recorte de sua obra O imaginário. Esta pri-meira orientação surgiu do interesse inicial em tratar algo a respeito da música no romance citado, e passou, antes de tudo por uma primeira problematização, a saber: Qual leitura do tema da música poderá nos oferecer um caminho de interpretação para esta temática, uma vez que não encontramos uma produção sartreana especi-fi camente a respeito deste tema? Nesta direção, encontramos alguns artigos que merecem destaque nesta temática e que pudemos realizar uma leitura para este trabalho. Importante para nossa leitura

*Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: [email protected].

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e que precisa um caminho de interpretação que procura relacionar a temática da imaginação com o tema da música, foi o artigo de 2006 da pesquisadora em Filosofi a da Música, Martina Stratilková, do Departamento de Musicologia da Faculdade de Filosofi a da Universidade de Palacký, na República Tcheca, de nome Music in Jean-Paul Sartre Philosophy (2011).1 Dentre outros: contamos também, como material de apoio, com os artigos de P.E. Robinson de nome Sartre on Music (1973),2 e com o trabalho de Mark Carroll, ‘It is’: Refl ections on the role of Music in Sartre’s ‘La Nausée’ (2006).3 E como apoio para a leitura do texto sartreano a respeito do tema do imaginário, contamos com o trabalho do pesquisador francês da fi losofi a de Sartre, Philippe Cabestan, em seu livro L’imaginaire: Sartre (1999).Partiremos da recorrência no texto de Sartre A Náusea (1938) ao aparecimento do tema da música. Pois a partir de alguns elementos textuais a respeito da referência à música no percurso do romance possamos articular um ponto de partida para nossa refl exão. É crucial a demarcação da música neste romance sartreano, a partir da constatação de que é por meio da música que a sensação de náusea do personagem principal Antoine Roquentin – que buscava escrever um livro a partir de “pesquisas históricas sobre o Marquês de Rollebon” (SARTRE, 1938, p. 4), e que para isso viaja para a Europa e havia se instalado no Oriente –, é superada, sendo a música o que instaura um deslocamento da situação ordinária para uma situação extraordinária:

A voz desliza e desaparece. Nada morde na faixa de aço, nem a porta que se abre, nem a lufada de ar fresco que me apanha os joelhos, nem a chegada do veterinário com a neta: a música penetra nestas formas vagas e atraves-sa-as. Mal se sentou, a criança foi arrebatada: fi cou muito direita, de olhos muito abertos; está a ouvir, e vai esfregando na mesa com o punho. Mais uns segundos, e a preta começará a cantar. Parece-me isso inevitável, tão forte é a necessidade desta música: nada pode interrompê-la, nada deste tempo em que o mundo se afundou; a música cessará por si própria, no momento preciso. Se gosto desta bela voz, é sobretudo por isso: não é pelo seu volume, nem pela sua tristeza, é que ela é o acontecimento que tantas notas prepararam, de tão longe, morrendo para que ele nascesse. E, todavia, estou, inquieto; bastaria tão pouca coisa para fazer parar o disco: uma peça que se quebrasse, um capricho do primo Adolphe. Como é estranho, como é comovedor que esta insensibilidade seja tão frágil! Nada pode interrompê-la e tudo pode quebrá-la. Extinguiu-se o último acorde. No curto silêncio que segue sinto intensamente uma mudança, sinto que alguma coisa aconteceu. Silêncio. Some of these days You’ll miss me honey. [...]

1 “Música na Filosofi a de Jean Paul-Sartre” (tradução nossa).

2 “Sartre na música” (tradução nossa).

3 “Isto é: Refl exões sobre o papel da música na Náusea de Sartre” (tradução nossa).

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O que acaba de suceder é que a Náusea desapareceu. Quando a voz se levantou, no silêncio, senti o meu corpo contrair-se, e a Náusea dissipou-se. Bruscamente... (SARTRE, 1938, p. 30-31).

Esta passagem, encontrada ao início do romance, demarca a importância da música no imaginário do personagem Roquentin em seus percursos e percalços de sua empreitada de pesquisa e redação de um livro sobre o Marquês de Rollebon. Na passagem acima, que procura descrever as minúcias do acontecimento da música, emblematizada na canção Some of Th ese Days, o momento mesmo do acontecimento da canção, é narrado como um acontecimento que transcende a temporalidade instaurada e a consciência que imagina, isto é, a consciência imaginante, e realiza a sua fi ssura entre o real o imaginário. E a música, no âmbito da arte, como uma espécie de conforto para as angústias existenciais do personagem Roquentin. De maneira geral, o lampejo que inclina para a música este conforto, como o lugar do extraordinário diante da regularidade dos acontecimentos comuns, demonstra o potencial de abrigo existencial das formas do imaginário do personagem do romance A Náusea, quando Some of Th ese Days é escutada pelo ouvinte Roquentin. Esta chave de leitura a encontramos no artigo de Mark Carroll, ‘It is’: Refl ections on the role of Music in Sartre’s ‘La Nausée’:

Music plays a pivotal role in Jean-Paul Sartre’s La Nausée (1938). It is only through music, and the ragtime tune ‘Some of these Days’ in par-ticular, that the central character Antoine Roquentin fi nds relief from the nausea caused by his otherwise all- consuming existential angst (CARROLL, p. 398, 2006).4

Contudo, faz-se necessário aqui um recuo quanto ao que podemos demarcar como participante do arcabouço teórico proposto por Sartre acerca do imaginário, para retomarmos, em seguida, a relação das noções de consciência imaginante e apareci-mento do tema da música no romance A Náusea. O contexto da refl exão sartreana, até chegar à noção de consciência imaginante, passa pela problematização com a tradição fi losófi ca até então, no que se refere à natureza da imagem e do objeto. Segundo Sartre, o problema se trata pois da compreensão de que a imagem do objeto fosse tomada ela mesma como o objeto em sua efetividade. Em sua perspectiva fenomenológica, infl uenciada por Husserl a partir da noção de intencionalidade. E justamente neste ponto Sartre demarca sua posição a respeito das problemáticas

4 “A música desempenha um papel fundamental no livro de Jean-Paul Sartre La Nausée (1938). É somente através da música, e a música ragtime Some of these days em particular, que o personagem central Antoine Roquentin encontra alívio da náusea causada por todos os seus outros modos de ser – que consomem sua angústia existencial” (tradução nossa).

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daí recorrentes, e procura, em seu livro O Imaginário sistematizar e fundamentar esta teoria do imaginário que toma como ponto de partida a negação de que o objeto mesmo, de natureza sensível, esteja abrigado na imagem, de natureza do pensamento e não sensível. Sartre aponta nesta direção quando pretende subtrair, do âmbito da natureza da consciência imaginante, qualquer substrato material, imanente, e de natureza sensorial:

O que pode surpreender é que não se tenha jamais sentido a heterogenei-dade radical da consciência e da imagem assim concebida. É porque sem dúvida, a ilusão da imanência fi cou sempre no estado implícito. De outro modo, teríamos compreendido, que era impossível introduzir esses retratos materiais numa estrutura sintética consciente sem destruí-la, cortar os contados, parar a corrente, romper a continuidade. [...] Posso, quando quero, pensar na imagem de um cavalo, de uma árvore, de uma casa. E, no entanto, se aceitamos a ilusão da imanência, somos necessariamente conduzidos a construir o mundo do espírito com objetos que seriam semelhantes aos do mundo exterior e que, simplesmente, obedeceriam a outras leis (SARTRE, 1940, p. 18).

O que Sartre chama exatamente de ilusão da imanência, é o problema em tomar a imagem como o objeto mesmo, isto esteve associado e implícito na compreensão de consciência e imagem. De tal modo que nesta compreensão que o pensamento sartreano demonstra como ilusão da imanência, resulta da tentativa frustrada de incluir substratos materiais do campo da apreensão sensorial, subentendido ou implícito quando se trata da estrutura ou natureza mesma da imagem com a consciência a concebe. Uma das consequências deste problema seria a confusão, no sentido dessa aproximação, entre mundo do espírito e mundo exterior, de modo que o ponto de confl ito do pensamento sartreano com esta visão estaria justo nesta ilusão da imanência que a proposta sartreana procura desconstruir. E é nesta direção que Sartre procura demarcar o lugar da imagem na relação entre consciência e objeto: “A palavra imagem, não poderia, pois, designar nada mais que a relação da consciência ao objeto, dito de outra forma, é um certo modo que o objeto tem de aparecer à consciência ou, se preferirmos, um certo modo que a consciência tem de se dar um objeto.” (SARTRE, 1940, p. 19). É nesta direção que Sartre pontua valendo-se da noção de intencionalidade, e afi rma que falar de consciência, é sempre afi rmar a partir da consciência de alguma coisa. Isto é, da consciência de um objeto específi co, de uma impressão específi ca, como o demonstra no exemplo da fotografi a do amigo Pierre: “Na verdade, a expressão imagem mental, presta-se a confusões. Seria melhor dizer ‘consciência de Pierre como imagem’ ou ‘consciência imaginante de Pierre’” (SARTRE, 1940, p. 19). Esta noção de consciência imaginante insere-se como desdobramento conceitual do pensamento de Sartre em sua perspectiva fenomenológica. Philippe Cabestan, em seu livro L’imaginaire: Sartre (1999), pontua alguns dos traços desta consciência

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imaginante, sobretudo no que se refere à intencionalidade manifesta por meio da afetividade, através do tópico La matière de la conscience imageante: aff ectivité, mou-vement et langage:5

Ainsi, dans la conscience d’imitation la matière aff ective de la conscience imageante est tout aussi extérieure que l’imitatrice que nous saisissons sur scène avec sa tonalité aff ective. Or, il nous faut à présent comprendre comment l’aff ectivité peut remplir le rôle de matière d’une image mentale. Dans ce but, il faut remarquer, conformément à la structure générale de l’intentionnalité, que tout sentiment en tant que conscience enveloppe un contenu primaire que vient animer une intention visant un objet. On peut en eff et distinguer dans un sentiment – comme nous y autorise la possibilité d’éprouver un sentiment en l’absence de l’objet auquel il se rapporte (p. 139) – une matière et une intentionnalité objective (CABES-TAN, 1999, p. 16).6

Nesta direção, o pesquisador francês da fi losofi a sartreana nos indica e acentua a noção de que o que participa da matière aff ective de la conscience imageante é de natureza exterior e que a recepção sensorial atua com tonalité aff ective. E justo nesta posição em que a afetividade atua na condição de possibilidade da apreensão do objeto por meio da conscience imageante, reside e se confi gura a structure générale de l’intentionnalité, que tout sentiment en tant que conscience enveloppe un contenu primaire que vient animer une intention visant un objet, como nos indica Phillippe Cabestan, demarcando que esta matéria ou conteúdo da consciência imaginante é, antes mesmo, uma intentionnalité objective. Neste contexto é que Sartre aponta, como outro ajunte de sua perspectiva fenomeno-lógica do imaginário, para a noção de analogon. Que se trata de uma mediação entre as imagens do imaginário, que é alcançada pelo recurso da analogia, que funciona como uma espécie de conteúdo primário da matéria da consciência imaginante, que demarca a intencionalidade da consciência diante de cada objeto apreendido pelo tecido sensorial. Na leitura do fi lósofo francês Cabestan em seu livro que trata de pontos chave da com-preensão de imaginário sartreana, encontramos a posição da afetividade não somente como manifesta na intencionalidade da consciência, como também, partícipe da noção de analogon, de tal maneira que neste sentido, este, seria um analogon aff ectif:

5 “A matéria da consciência imaginante: afetividade, movimento e linguagem” (tradução nossa).

6 “Assim, através da consciência da imitação da matéria afetiva da consciência imaginante, é toda exte-rior também, e o imitador que capturamos na cena com sua tonalidade afetiva. Ou, fazemos presente compreender como a afetividade pode exercer o papel da matéria de uma imagem mental. Para este fi m, devemos observar, conforme à estrutura geral da intencionalidade, que todo sentimento como consciência recorre a um conteúdo primário que vem animar a uma intenção visando a um objeto. Podemos com efeito distinguir através de um sentimento – como nos autoriza a possibilidade de provar um sentimento na ausência do objeto a que se refere – uma matéria e uma intencionalidade objetiva” (tradução nossa).

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Dès lors on peut comprendre comment la conscience imageante peut viser son objet grâce à son équivalent ou analogon aff ectif. [...] la conscience est d’abord une synthèse d’un certain savoir relatif aux mains et d’un sentiment (pour ces mains) en tant que matière; et que cette conscience devient imageante en se représentant intuitivement son objet à partir de ce savoir et de cette matière aff ective qui deviennent alors savoir imageant et matière de l’image (CABESTAN, 1999, p. 17).7

Philippe Cabestan acentua esse caráter afetivo da natureza da matéria da consciência imaginante, que segundo ele représentant intuitivement son objet à partir de ce savoir et de cette matière aff ective. Ora, neste ponto, encontramos particular relação entre o modo como o personagem Roquentin se relaciona com a música no percurso do romance A Náusea. Isto é, o recurso de audição de Some of Th ese Days, demonstra a intencionalidade da consciência imaginante em suprimir a sensação nauseante decorrente de suas angústias existenciais diante dos destinos de sua pesquisa, que resultaria em livro sobre o renomado nobre Marquês de Rollebon. A condição de possibilidade desta intencionalidade da consciência imaginante que leva o ouvinte Roquentin, da passagem da sensação nauseante para uma sensação de alívio, é alcan-çada pelo recurso da afetividade que está manifestada nos impactos extraordinários da audição de sua canção favorita sobre a consciência imaginante do personagem principal do romance de Sartre de 1938.Nesta direção, importante para tatear ajuntes e contornos para nossa interpretação acerca da relação entre consciência imaginante e música no pensamento de Sartre a partir do romance A Náusea, tentaremos dialogar neste sentido, como o trabalho da pesquisadora da República Tcheca, Martina Stratilková, do Departamento de Musi-cologia da Faculdade de Filosofi a da Universidade de Palacký, através de seu artigo Music in Jean-Paul Sartre Philosophy (2011). Segundo Martina Stratilková, é de impor-tância signifi cativa a posição dos sentimentos na relação entre as noções sartreanas a respeito do imaginário e a música: “we consider the significance of themes like the feeling or the function of consciousness in formation of ideas. In this context, we will try to outline the nature and development of Sartre’s views of music and its meaning, whereas we will start from his work L’Imaginaire” 8 (STRATILKOVÁ, 2011, p. 93).

7 “Portanto, podemos compreender como a consciência imaginante pode visar seu objeto através de seu equivalente ou analogon afetivo. [...] a consciência é principalmente uma síntese de um certo saber relativo às mãos e de um sentimento (para essas mãos) como matéria; e que esta consciência torna-se imaginante representando-se intuitivamente seu objeto a partir deste saber e dessa matéria afetiva que torna-se portanto saber imaginante e matéria da imagem” (tradução nossa).

8 “considerarmos a signifi cância de temas como o sentimento ou a função da consciência na formação das ideias. Neste contexto, vamos tentar descrever a natureza e o desenvolvimento dos pontos de vista de Sartre sobre a música e seu signifi cado, ao passo que vamos começar a partir da obra L’Imaginaire” (tradução nossa).

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Stratilková inicia seu artigo demarcando a distinção feita por Sartre entre imagi-nação e percepção. E esclarece que a imaginação é marcada por uma spontaneity, e que a percepção, em contraste, por uma passivity, sendo “that image is not a thing but act” (STRATILKOVÁ, 2011, p. 93).9 Enquanto a imaginação sendo um ato e não uma coisa, indica a possibilidade de negatividade do mundo real, na medida em que, enquanto ato da consciência imaginante, se realiza a passagem do real ao irreal. E a arte, sendo um espaço muito privilegiado dos modos através dos quais a consciência imaginante atua, uma vez que ela é um movimento, demarcada por certa intencionalidade, e não um objeto. É nesta direção que Stratilková pontua as relações entre imaginação e arte no pensamento de Sartre:

At this point we could start a significant discussion about the connection between imagination and art. Because Sartre himself mentions this con-nection, it is clear that he regards art as one of the domains of imagination. Sartre sees art objects as images that are revealed through a sensory accessible analogon… applicable, apart from other things, to all Arts 10 (STRATILKOVÁ, 2011, p. 95).

Neste sentido, Stratilková promove a indicação de que os recursos utilizados por Sartre em suas noções de consciência imaginante e analogon, embora possa ser utilizado para a refl exão de distintos temas, é também arcabouço conceitual para todas as artes. Segundo a pesquisadora, a leitura fenomenológica sartreana da imaginação tinha como um de seus principais alicerces a arte de modo geral, porém de maneira ampla e indistinta, pois segundo Stratilková: “Sartre applied his theory of imagination to a group of artforms rather indistinguishably” 11 (2011, p. 96).Esta íntima relação entre imaginação e arte é uma importante chave de leitura para realizar um melhor ajunte da interpretação referente ao aparecimento da música no romance sartreano que estamos abordando, articulado com a proposta fenome-nológica a respeito da estrutura do imaginário desenvolvida pelo fi lósofo e escritor francês existencialista. Neste sentido, para Stratilková, embora Sartre não tenha desenvolvido uma defi nição específi ca da imagem musical, a música, enquanto arte, se constitui como um objeto irreal:

9 “A imagem não é uma coisa, mas um ato” (tradução nossa).

10 “Neste ponto poderíamos começar uma signifi cativa discussão sobre a conexão entre imaginação e arte. Porque o próprio Sartre menciona esta conexão, neste contexto isto é claramente considerado por ele, que a arte é como um dos domínios da imaginação. Sartre vê objetos de arte como imagens que são reveladas através de um analogon acessível sensorialmente... aplicável, para além de outras coisas, a todas as artes” (tradução nossa).

11 “Sartre aplicou sua teoria da imaginação a um grupo de formas de arte bastante indistintamente” (tradução nossa).

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In music, we can identify some parameters, for example that of movement or intensity, and link these quantitative characteristics to different spheres of extra-musical reality; however, these spheres can hardly be specified by the music structure itself. Sartre doubts if music relates to anything irreal and he is satisfied with the evidence of our awareness of the fact that the musical work is not identical to the sounds bearing the work. Music thus also constitutes an irreal object. Sartre does not specify the nature of musical image, he just points out the conditions of its constitution (out of the real time and space; with a feeling of being given personally, although it is not present) (STRATILKOVÁ, 2011, p. 95).12

Stratilková demarca a posição da música enquanto recurso que oferece ao imaginário um analogon: “to view music as a analogon through which an image appears” (2011, p. 96).13 A música como mediação da consciência imaginante, e como vimos no caso particular do personagem Roquentin, a música, quando toca ao gramofone, instaura o analogon do conforto existencial de suas angústias, como lemos no artigo de Mark Carroll, acerca do papel e importância da canção Some of Th ese Days no romance A Náusea. Neste sentido, a arte, de modo geral, oferece para a consciência imaginante, por meio da percepção sensorial, no caso da música, em particular a audição da música pelo personagem Roquentin, um recurso de transcendência do real, real que é a imanência, ao irreal, universo do qual, segundo Stratilková, a música participa. Assim lemos no artigo Music in Jean-Paul Sartre Philosophy:

works of art are formations with a strong inner structure, they are com-posed of parts, [...] which the consciousness should respect to be able to understand the work of art through the sensory data. Th ey therefore represent a certain world, which has its rules. Maybe it would be exagge-rating to mention musical writers of the 19th century, who appreciated the beautiful world created by music, which is so different to our ordinary world (STRATILKOVÁ, 2011, p. 95).14

12 “Na música, podemos identifi car alguns parâmetros, por exemplo, movimento ou intensidade, e a ligação a estas características quantitativas para diferentes esferas da realidade extra-musical; no entanto, estas esferas difi cilmente podem ser especifi cadas pela estrutura da música em si. Sartre duvida se a música se refere a qualquer coisa irreal e ele é satisfeito com a evidência de nossa consciência do fato de que o trabalho musical não é idêntico ao som do ato de trazer à obra. Música também constitui, assim, um objeto irreal. Sartre não especifi ca a natureza da imagem musical, ele apenas aponta as condições de sua constituição – fora do tempo e espaço reais, com um sentimento a ser dado pessoalmente, embora isto não esteja presente” (tradução nossa).

13 “Para a visão da música como um analogon através do qual a imagem aparece” (tradução nossa).

14 “Obras de arte são formações com uma forte estrutura interna, elas são compostas de partes, [...] às quais a consciência deve respeitar para ser capaz de compreender a obra de arte através dos dados senso-riais. Portanto representam um certo mundo, o qual possui suas regras. Talvez seria exagero mencionar escritores musicais do século 19, que apreciavam o belo mundo criado pela música, o qual é tão diferente do nosso mundo ordinário” (tradução nossa).

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Interessante esta passagem do artigo da pesquisadora da área de Filosofi a da Música, demarcando também que é muito grande e até exagerada, a menção à música entre os escritores do século 19, que demonstravam encantamento e apreciação pelo mundo criado pela música através dos sentidos, e que este mundo instaurado pela música se apresentava de modo extraordinário em relação às regularidades do mundo real. Na leitura da pesquisadora Stratilková, a música está associada às sensações e emoções. Como sugere a situação do romance sartreano no qual o personagem principal, quando sob a condição de ouvinte da canção Some Of Th ese Days, é tomado pela sensação de alívio em relação ao seu mal estar nauseante. Segundo a pesquisadora da Repú-blica Tcheca: “associate music with high values and levels of emotional sensation” (STRATILKOVÁ, 2011, p. 95).15

Teremos neste ponto, o cuidado para demarcar que no contexto da situação de ouvinte na qual Roquentin se lança, não está em perspectiva a compreensão da estrutura musical enquanto uma qualidade racional, ao passo que a leitura aqui desenvolvida, nos aponta que, para Roquentin, o signifi cado do aparecimento da música, nos leva ao universo de emoções e sensações que a música promove no imaginário do perso-nagem do romance A Náusea. E que, é importante também reconhecer a natureza não verbal e não discursiva que a música apresenta. Esta chave de leitura é também elucidada pelo artigo de Martina Stratilková:

not strictly constitute rational quality, considering the non-discursive nature of music, but it should be regarded as an overall understanding, that is experiencing the meaning, which includes an experience component. Th e idea of conceiving emotions in close relation to understanding music therefore does not lose justness, besides according to Sartre, emotion is defined by its meaning, appointed to an object: ‘Emotion is a specific manner of apprehending the world’ (STRATILKOVÁ, 2011, p. 98).16

Nesta direção, Stratilková procura aproximar a esfera da música enquanto relacionada ao âmbito das emoções, estas que demarcam e imprimem signifi cados e sentidos associados ao objeto da emoção, no caso de Roquentin no romance A Náusea, Some of these Days e a sensação de alívio que a escuta da canção proporciona. Este caminho de leitura desenvolvido por Stratilková, é referenciado em um trabalho de Sartre, de nome Esquisse d’une théorie des émotions de 1938, texto sartreano do qual foi extraído

15 “Música associada com altos valores e níveis de sensibilidade emocional” (tradução nossa).

16 “Não constituem estritamente qualidade racional, considerando a natureza não-discursiva da música, mas deve ser considerada como uma compreensão integral, que é experienciar um signifi cado, que inclui um componente da experiência. A ideia de conceber emoções em relação próxima ao entendimento da música, que portanto, não perde a justeza, e além disso de acordo com Sartre, a emoção é defi nida por seu signifi cado, nomeado para um objeto: ‘A emoção é uma forma específi ca de apreender o mundo’” (tradução nossa).

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a frase: “Emotion is a specific manner of apprehending the world”, sentença que conclui o que Stratilková procura demonstrar na passagem acima. Procuramos alguns elementos neste texto sartreano que trata de uma teoria das emoções, alguns traços que a pesquisadora Stratilková procura alicerçar sua leitura a respeito da relação entre música e emoções em Sartre, para que possamos demarcar com melhores elementos algo relacionado às emoções, uma vez que esta relação nos indica valioso caminho de leitura a respeito do tema da música em Sartre. O fi lósofo e escritor francês no texto Esquisse d’une théorie des émotions desenvolvendo seu ponto de partida desde uma visão de uma “psychologie phénoménologique”, com sua formulação que dialoga com o pensamento de Heidegger e Husserl, promo-vendo o estudo das emoções tal como aparece e mostra-se enquanto acontecimento fenomênico de modo a tomar as emoções desde sua natureza transcendental. Assim lemos no texto sartreano: “étudiera l’émotion comme phénomène transcendantal pur, et cela, non pas en s’adressant à des émotions particulières, mais en cherchant à atteindre et à élucider l’essence transcendantale de l’émotion comme type organisé de conscience” (SARTRE, 1938, p. 19).17

Esta indicação de que na perspectiva de uma psicologia fenomenológica sartreana sustenta-se a noção: “l’essence transcendantale de l’émotion comme type organisé de conscience”, oferece-nos signifi cativo caminho de leitura leitura para o sentido das emoções associadas à execução da canção Some of Th ese Days para o personagem Roquentin do romance a Náusea. Encontrando na escuta desta canção a trans-cendência afetiva diante de sua situação nauseante. Neste sentido, esta natureza transcendental das emoções, na ótica sartreana, vai ao encontro do que a leitura de Stratilková procura explorar a respeito da relação entre emoções e música na fi losofi a de Sartre. Retomando o texto Esquisse d’une théorie des émotions, Sartre nos oferece uma possibilidade de explicação a respeito da diversidade de diferentes tipos de emoções: “l’explication de la diversité des émotions devient facile: elles représentent, chacune, un moyen diff érent d’éluder une diffi culté, une échappatoire particulière, une tricherie spéciale” (SARTRE, 1938, p. 45).18

Ora, não seria para Roquentin, Some of Th ese Days uma transcendência de natureza das emoções como uma escapatória particular da qual afi rma Sartre? Já lemos no romance A Náusea que esta canção promove uma sensação de alívio em relação à sua situação nauseante: “O que acaba de suceder é que a Náusea desapareceu. Quando a

17 “Estudar a emoção como fenômeno transcendental puro, e isto, não é abordar emoções particulares, mas buscar alcançar e elucidar a essência transcendental da emoção como um tipo de organização da consciência” (tradução nossa).

18 “A explicação da diversidade de emoções torna-se fácil: elas representam, cada uma, um meio diferente de elucidar uma difi culdade, uma particular escapatória, uma trapaça especial” (tradução nossa).

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voz se levantou, no silêncio, senti o meu corpo contrair-se, e a Náusea dissipou-se.” (SARTRE, 1938, p. 31). Em contrapartida, quando Roquentin está absorto em seus pensamentos em situação em que não há Some of these Days para confortar-lhe, isto é, quando sua música favorita está ausente, a sensação é de melancolia diante de suas angústias existenciais, como lemos na seguinte passagem do romance A Náusea:

Gostava que me dissessem se acham compassiva esta música que estou a ouvir. Há bocadinho estava decerto muito longe de nadar na beatitude. À superfície, fazia as minhas contas, mecanicamente. Por baixo estavam estagnados todos aqueles pensamentos desagradáveis que tomaram a forma de interrogações por formular, de espantos mudos, e que não me abandonam nem de noite nem de dia. Pensamentos sobre Anny, sobre a minha vida estragada. E depois, mais baixo ainda, a Náusea, tímida como uma aurora. Mas, neste momento, não havia música, estava eu melancólico e sossegado. Todos os objetos que me cercavam pareciam feitos da mesma matéria que eu, duma espécie de sofrimento ruim (SARTRE, 1938, p. 229).

Duas oscilações de emoções para Roquentin: o alívio da situação nauseante com Some of Th ese Days, e a “melancolia” ou “sofrimento ruim” quando absorto em seus pensamentos de mudo assombro diante de suas angústias existenciais. Nesta direção, a experiência estética promove atos da consciência e movimentos da consciência imaginante, e este é um dos grandes interesses de Sartre em suas observações fi lo-sófi cas ou literárias segundo a pesquisadora: “Sartre’s interesting observations on the acts of consciousness are based and which is therefore relevant for conceiving aesthetic experience” 19 (STRATILKOVÁ, 2011, p. 97).E correlato a este ato da consciência promovido através da experiência estética, e levando em consideração também que este movimento ou ato da consciência como o afi rma Stratilková a partir de Sartre, tem na experiência estética um de seus impulsos, e portanto este ato da consciência pode promover algo na direção destas oscilações de emoções das quais Roquentin manifesta no romance A Náusea. Stratilková des-taca, no âmbito das emoções, e sobretudo como um dos aspectos que garantem a natureza de transcendência da experiência estética, o que Sartre chama de aspecto mágico das emoções. Nesta direção que Stratilková nos afi rma:

In the first half of the 20th century (in consequence to formalistic aesthe-tics), we can find numerous contributions in which their authors distin-guished among ways of aesthetic perception of music, while the adequacy of the perception emerging correlatively to the musical structure became an important device. Some of these aestheticians or theorists see music

19 “Interessantes observações de Sartre sobre os atos da consciência e no que são baseados, e que isto é portanto relevante para conceber a experiência estética” (tradução nossa).

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as an art form, which is more open to emotionality and which is, due to this primacy, perceived emotionally to the prejudice of artistic message. So music could be a sphere, probably together with literature, which easily and strongly evokes the magic world of emotions (STRATILKOVÁ, 2011, p. 99-100).20

Percorrendo a leitura do ensaio de Sartre Esquisse d’une théorie des émotions, e o rela-cionando com este ponto da leitura de Stratilková, no que se refere ao “magic world of emotions” promovido pela experiência estética, como era tema de debate no contexto de formalização do campo de investigação da estética entre pesquisadores e teóricos no início do século 20, identifi camos ser este aspecto mágico promovido pela arte, no caso de nossa leitura a respeito da música no romance A Náusea, um dos traços mais importantes da leitura sartreana em sua teoria das emoções. Encontramos neste tra-balho de Sartre, algumas passagens que remetem a este aspecto mágico promovido pelo mundo das sensações, bem como a relação entre as emoções e a realidade humana:

Toutes les émotions ont ceci de commun qu’elles font apparaître un même monde, cruel, morne, joyeux, etc., mais dans lequel le rapport des choses à la conscience est toujours et exclusivement magique. [...] C’est ainsi que la conscience en réalisant par fi nalité spontanée un aspect magique du monde peut créer l’occasion de se manifester pour une qualité magique réelle. [...] L’étude des émotions a bien vérifi é ce principe: une émotion renvoie à ce qu’elle signifi e. Et ce qu’elle signifi e c’est bien, en eff et, la totalité des rapports de la réalité-humaine au monde 21 (SARTRE, 1938, p. 103, 111, 122).

E na nossa leitura o aparecimento de Some of Th ese Days preserva isso que Sartre chama de “qualité magique”. “No curto silêncio que segue sinto intensamente uma mudança, sinto que alguma coisa aconteceu”, afi rma Roquentin em um das primeiras

20 “Na primeira metade do século 20 (em consequência do formalismo estético), podemos encontrar numerosas contribuições nas quais os seus autores distinguem entre formas de percepção estética da música, enquanto a adequação da percepção emergindo correlativamente à estrutura musical e se tor-nando um importante artifício. Alguns destes teóricos da estética veem a música como uma forma de arte, a qual é mais aberta emocionalmente, a qual, devido a essa primazia, é percebida emocionalmente em prejuízo da mensagem artística. Assim, a música poderia ser uma esfera, provavelmente em conjunto com a literatura, a qual facilmente e fortemente evoca o mundo mágico das emoções” (tradução nossa).

21 “Todas as emoções possuem em comum é que elas fazem aparecer um mesmo mundo, cruel, triste, feliz, etc., mas através do qual a relação das coisas com a consciência é sempre e exclusivamente mágica. [...] Assim, a consciência efetua-se pela fi nalidade espontânea um aspecto mágico do mundo, por criar a ocasião de se manifestar por uma qualidade mágica real. [...] O estudo das emoções verifi cou este princípio: uma emoção se refere ao que ela signifi ca. E o que isto signifi ca é, com efeito, a totalidade da realidade humana como se refere ao mundo” (tradução nossa).

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menções de sua canção favorita. Esta mudança intensa da qual o personagem princi-pal do romance sartreano manifesta, se associa com a noção de Sartre a respeito das emoções e o que elas promovem para a consciência e para a realidade humana como um todo. “Des choses à la conscience est toujours et exclusivement magique”, afi rma Sartre. Portanto interpretamos como um movimento da consciência imaginante do personagem Roquentin, diante da experiência estética de ouvinte de sua canção favo-rita, uma provocação da ordem e do âmbito dos afetos, no sentido de que as emoções promovem algo de mágico como afi rma Sartre, e que atua como recurso psíquico de alívio diante da desconfortável situação nauseante resultado de suas insatisfações, incompletudes, e angústias existenciais do personagem principal do romance A Náusea.Este é o ponto de partida do trabalho de Mark Carroll, que delimita mais precisamente sua investigação a respeito da música Some of Th ese Days no romance A Náusea no sentido de tomar o acontecimento da canção como este momento de alívio: “Some of Th ese Days provides him with temporary relief because it off ers an ideal form of existence, a fl ight into a imaginary realm” (CARROLL, 2006, p. 398).22 O artigo de ‘It is’: Refl ections on the role of Music in Sartre’s ‘La Nausée’, procura desenvolver sua leitura a partir da perspectiva de oposição entre a cultura erudita e a popular e a relação disto com a consciência de classe: “music is the principal means through which Roquentin espouses Sartre’s opposition between high and vernacular art, and the relationship of this class-consciousness” (CARROLL, 2006, p. 398).23

Segundo Mark Carroll, de acordo com nossa leitura, um dos aspectos de Sartre ter escolhido uma canção de jazz, e não uma menção à música clássica por exemplo, denota o aspecto da crítica de Sartre, no que tange ao aspecto político da expressão musical, uma vez que em suas origens o jazz surge como uma criação afro-americana, e não como uma criação da alta cultura européia na expressão da música erudita. De acordo com Carrol a canção Some of Th ese Days: possui o registro da voz da cantora Sophie Tucker (1884-1966), e a canção foi escrita e composta pelo canadense Shelton Brooks (1886-1975), de descendência africana, que nesta canção teve como referência o blues de Frank Williams chamado Some o’ Dese Days, de 1905. Ainda de acordo com Mark Carroll, Sophie Tucker gravou quatro versões desta canção em que o primeiro destes registros data de 1911. E identifi ca que a versão citada por Roquentin no romance A Náusea, data de 1926, em que Tucker grava com a Ted Shapiro Orquestra. Esta versão digitalizada e remasterizada encontra-se disponível na rede iTunes no álbum Last of the Red Hot Mamas (1994). E a respeito de sua

22 “Some of Th ese Days (Alguns Destes Dias) lhe fornece um temporário alívio, pois oferece uma forma ideal de existência, um vôo para um reino imaginário” (tradução nossa).

23 “A música é o principal meio através do qual Roquentin expõe a oposição sartreana entre alta e ver-nacular arte, e a relação desta consciência de classe” (tradução nossa).

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especifi cidade musical Some of Th ese Days é um ragtime, uma derivação do jazz que surgiu entre negros afrodescendentes e americanos. O professor e pesquisador australiano do Conservatório de Música da Universidade de Adelaide na Austrália, Carroll, demarca a importância da música para Sartre, como um recurso que transcende e o desloca, no caso de Roquentin, de sua própria realidade a partir da beleza que a experiência de ouvinte lhe proporciona: “Sartre’s belief that the appreciation of music should not be a passive act, that it should entail an engagement between the listener and the world around him or her. Listening to music far removed from her own reality... by the beauty that... perceives in the music” 24 (CARROLL, 2006, p. 403).

ReferênciasCABESTAN, Philippe. L’Imaginaire: Sartre. Édition Marketing S. A., 1999.

CARROLL, Mark. ‘It is’: Refl ections on the role of Music in Sartre’s ‘La Nausée’. Music & Letters, v. 87, n. 3, p. 398-407, 2006.

ROBINSON, P. E. Sartre on Music. Th e Journal of Aesthetics and Art and Art Criticism, v. 31, n. 4, p. 451-457, 1973.

SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Trad. António Coimbra Martins. Portugal: Publicações Euro-pa-América. Acesso em: mar. 2015.

. O imaginário: Psicologia fenomenológica da imaginação. Trad. Duda Machado. São Paulo: Editora Ática, 1996.

. Esquisse d’une théorie des émotions. Paris, 1938.

STRATILKOVÁ, Martina. Music in Jean-Paul Sartre Philosophy. Musicologica Olomucensia, n. 13, 2011.

Literatura recomendadaCARROLL, Mark. Commitment or Abrogation? Avant -garde Music and Jean Paul Sartre’s Idea of Committed Art. Journals Music & Letters, v. 83, n. 4, 2002.

. Jean Paul Sartre, René Leibowitz and the Musician’s Conscience. Context, n. 22, p. 89-94, 2001.

NETTELBECK, Colin W. Jean Paul Sartre, Simone de Beauvoir, and the Paris Jazz Scene. Modern & Contemporary France, v. 9, n. 2, p. 171-181, 2001.

24 “Sartre acredita que a apreciação musical poderia não ser um ato passivo, que isto poderia ocasionar um engajamento entre o ouvinte e o mundo em sua volta. Ouvindo a música para ser removido de sua própria realidade... através da beleza que... percebemos na música” (tradução nossa).