MReal a Morte de Portugal

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  • A Morte de Portugal

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  • A MORTE DE PORTUGAL

    Autor: Miguel Real

    Capa: Campo das Letras Imagem da capa: Frontispcio da 1.- edio de Sermo de Santo Antnio, dito na

    Igreja das Chagas, em Lisboa, em 1642, por Pe. Antonio Vieira.

    CAMPO DAS LETRAS - Editores, S.A., 2007 Edificio Mota Galiza Rua JUo Dmis, 247 - 6^ El 4050-325 Porto Telef.: 226 080 870 Fax: 226 080 880 E-mail: [email protected] Site: w\A'W.campo-letras.pt

    Impresso: Tipografia do Carvalhido - Porto 1.- edio: Outubro de 2007 Depsito legal n.=: 266868/07 ISBN: 978-989-625-224-3

    Coleco: Campo da Actualidade - 100 Cdigo do livro: 1.02.100

    Com este ttulo de Miguel Real assinalamos o centsimo ttulo da coleco Campo da Actualidade.

  • Miguel Real

    A Morte de Portugal

  • Para a Filomena, o David e a Ins, um amor profundssimo

    Desde sempre que nos perseguimos [os portugueses aos portugueses] com veneno e brutalidade. Vasco Pulido Valente, Pblico, 14 de Julho de 2007

    Para Carlos Leone e os Eduardo Franco, urna estimulante amizade

    Para Fernando Caedo e Gonalo Fagundes, grandes amigos de Viana

  • [Para o Nada, a No-Existncia, caminhamos]

    Das ideias erradas o fermento produziu nova srie de infortnios:

    fomos Francos ]franceses], Hibrios [ingleses], s no fomos sensatos portugueses.

    Ah, se no renascer com a Ptria a glria,

    se a Cincia [o uso recto da razo], a Justia ainda dormitam, se a Moral no desperta, a Indstria [o esprito, o engenho] acorda,

    - Ao Nada caminhamos!

    D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna,

    Ode, 8 de Outubro de 1824

  • A Morte de Portugal

    Dilogo cruzado com Arte de Ser Portugus (1915), de Teixeira de Pascoais, Educao de Portugal (1970), de Agostinho da Silva, Labirinto da Saudade (1978), de Eduardo Loureno, Repensar Por-tugal (1980), de padre Manuel Antunes, Pela Mo de Alice (1994), de Boaventura de Sousa Santos, Portugal Hoje. O Medo de Existir (2004), de Jos Gil, e Portugal. Identidade e Diferena (2007), de Guilherme d'Oliveira Martins, A Morte de Portugal, ensaiozinho despretensioso e reflexivo de horas nocturnas, voluntariamente desguarnecido de citaes eruditas^ escrito no rescaldo dos con-gressos relativos aos 20 anos da morte de Padre Manuel Antunes e aos 100 anos do nascimento de Agostinho da Silva e nos pre-parativos de um ensaio sobre Padre Antnio Vieira, intenta de-monstrar que a constelao cultural e civilizacional por que emer-giu a realidade histrica designada por "Portugal", enquadrada em quatro complexos culturais abaixo enunciados, atingiu o seu limite de esgotamento - menos por efeito de um decadentismo poltico (temos vivido em permanente decadncia desde D. Joo III) e mais por causa de um fenmeno de aceleradssima descris-tianizao e desumanizao tica da sociedade e de uma rapids-sima submerso social numa tecnocracia cientfica annima que nivela as naes, metanaorfoseando-as em regies singulares de uma futura supranacionalidade europeia, comandada por tteres janotas que transfiguram a nobre arte da poltica numa cinzenta cadeia tcnica de raciocnios causais - e est a chegar ao fim .^

    ' A partir do primeiro captulo, "O princpio do fim", este ensaio foi escrito a pedido de Gonalo Fagundes, da direco do Centro de Formao "A Roda do Leme", dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, para acompanhar os dese-nhos e pinturas da histria da armada portuguesa, concebidos e executados pelo arquitecto Telmo Gomes, publicados nesta mesma editora.

    ^ O que, em Histria, no significa desaparecimento; antes uma transforma-o lenta, prolongada por mais de um sculo.

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  • Assim, na linha de Eduardo Loureno, este ensaiozinho dili-gencia desenhar os quatro complexos culturais por que Portugal se foi concebendo a si prprio ao longo de 800 anos de Histria: ora, segundo a tradio literria Renascentista, um pas gerado exemplarmente no mais remoto dos tempos e contra as mais difceis circunstncias (Viriato); ora um pas que, nos e aps os Descobrimentos, se v a si prprio como nao superior s demais, sintetizada na majesttica arquitectnica do Quinto Im-prio do padre Antnio Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva e na pattica [tocante, mas idoltrica] pretenso de Ftima a "altar do mundo"; ora um pas que, fracassado o sonho gran-diloquente do Imprio, se lastima e se penitencia, considerando--se nao inferior, passvel de mxima humilhao (Marqus de Pombal); ora, finalmente, pas mesquinho, venenoso e brbaro, permanentemente ansioso de purificao ortodoxa (Tribunal do Santo Ofcio; Index inquisitorial; Intendncia pombalina; Real Mesa Censria; guerra civil entre liberais e absolutistas; carbonrios e republicanos jacobinos perseguindo e chacinando instituies eclesisticas; polcia poltica e tribunais plenrios do Estado Novo, santificados pela Igreja Catlica, perseguindo, prendendo e exilando a totalidade da oposio, levando a cabo uma guerra de 13 anos nas colnias), no qual cada corrente pol-tica e intelectual tem sobrevivido da canibalizao das correntes adversrias, negando-as e humilhando-as.

    1. ORIGEM EXEMPLAR: a figurao da origem exemplar de Portugal emerge na segunda metade do sculo XVI atravs da imagem de Viriato, heri impoluto, puro, virtuoso, soldado mo-delo, chefe guerreiro ntegro, homem simples, pastor humilde que se revolta contra a prepotncia do ocupante estrangeiro, conduzindo os lusitanos a vitrias sucessivas - povo singelo e singular que, no obstante a sua fragilidade militar, vencedor das legies do imprio romano. To excelsa a aurola de Vi-riato e to recta e luminosa a sua conduta que s pela traio derrotado. Concebida por S de Miranda e Cames, prolongada heroicamente por frei Bernardo de Brito e Brs Garcia Mascare-nhas, a figura de Viriato sobressai no justo momento histrico

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  • do fim de 400 anos de ascenso vitoriosa de Portugal como povo exemplarmente catlico, desde o conde D. Henrique a D. Manuel I, vencedor e expulsador de infiis do territrio de Santa Maria, descobridor de mundos e reconvertor de pagos. Deste modelo viriatino guarda cada portugus a imagem imaculada do portugus de antanho, patriarca da nao e exemplo tico de conduta, enraizado no terrunho natal, afeito tradio, perfeito na humildade e na modstia, to sbrio e decente quanto deco-roso e conveniente - o complexo viriatino, que nos guiou em Ourique e em Aljubarrota, que orientou a conduta histrica de Egas Moniz, Nuno lvares Pereira, Afonso de Albuquerque e D. Joo de Castro e moveu fundo a poltica nacional de Oliveira Salazar; e quando, dplice, a ptria abandonou sua sorte os mazombos pernambucanos do sculo XVII, Joo Fernandes Vieira, madeirense desventurado, filho abandonado de um fi-dalgo e de uma rameira preta do cais do Funchal, fez despertar o seu complexo de Viriato e, com catanas, zagaias e arcos, iniciou a guerra de guerrilha que, anos mais tarde, haveria de expulsar os holandeses do Brasil;

    2. NAO SUPERIOR: da decadncia do Imprio a partir de D. Joo III, do fracasso de Alccer Quibir e da perda da inde-pendncia nasce o assombro de nos sentirmos insignificantes depois de nos termos sabidos gigantes na descoberta da tota-lidade do mundo. Padre Antnio Vieira, resgatando o provi-dencialismo de Ourique e o milenarismo judaico de Bandarra, deu voz majesttica a este cruzado sentimento de grandeza e pequenez, recusando testemunhar a nossa real insignificncia europeia, dourando-nos o futuro com o regresso anunciado s glrias do passado, agora sob o divino nome de Quinto Imprio. Pela arte da palavra de padre Antnio Vieira, Portugal, pas de valor exguo no sculo XVII, valendo apenas pelo legado dos territrios do Imprio, permanece desde ento sebastianistica-mente em permanente estado inquieto de viglia, aguardando o "despertar", a "Hora!" pessoana, porque de novo cruzar os mares - agora do esprito e da cultura, falhados que foram os reais, tornando-se de novo grande - o complexo vieirino, que

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  • nos determina a desejarmos mais do que nos pedem as foras e nos exigem as circunstncias, pulso social que orientou as caravelas portuguesas;

    3. NAO INFERIOR: no final do sculo XVIII, aps 250 anos de domnio exclusivo da Igreja Catlica na formao da men-talidade colectiva portuguesa, arrefecido o afluxo de ouro e pedras preciosas do Brasil ao errio rgio, Portugal reconheceu a sua pobreza intrnseca - o comrcio urbano e as exportaes nas mos dos ingleses, o po confeccionado com farinha branca inglesa, o carvo importado da Inglaterra, os trajes tecidos de seda de Lyon e de fazenda dos teares de Manchester, a loua provinda de Itlia, as berlindas armadas em Paris, escolas pbli-cas inexistentes, estradas reais inexistentes, hospitais pblicos reduzidos ao de Hospital de Todos-os-Santos de Lisboa, que se incendiara em 1750. Magro, macrrimo era Portugal; gor-do, gordrrimo o Estado de D. Joo V; magro, macrrimo era Portugal; gorda, gordrrima a Igreja de Portugal. Pela Europa culta ostentavam-se os espectculos pblicos nacionais como exemplo de barbrie e superstio: autos-de-f, procisses peni-tenciais e touradas. O Marqus de Pombal reagiu a esta situao catastrfica, revolucionando o todo de Portugal - tesouro rgio, educao, economia, urbanismo, poltica regalista - , assente na profunda convico de que a Portugal, pas em permanente esta-do de inferioridade civilizacional, nada lhe faltava para ser igual aos restantes caso se alterasse drasticamente o perfil das elites, insuflando-lhes um banho de Europa. Desde a revoluo liberal de 1820, todos os mpetos modernistas portugueses tm nascido deste complexo cultural que eleva a Europa a destino e sentido de Portugal - o complexo pombalino, hoje acfalamente pol-tica dominante do Estado portugus, que, como "bom aluno", se pe na fila das estatsticas, subordinando a sua imensa valia cultural mera e exclusiva valia dos indicadores econmicos, gerando um notrio sentimento de mal-estar e de inferiorida-de entre as actuais elites portuguesas, envergonhadas do povo rstico, bruto e arcaico que comandam, esquecendo-se de que o mesmo povo, em outros pases da Europa central, governado

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  • por outras elites, atinge indicadores econmicos valorosos e comportamentos educacionais distintos;

    4. CANABALISMO CUI_TURAL: em funo dos trs complexos refe-ridos, idiossincraticamente portugueses, se quisssemos definir o tempo moderno e contemporneo da cultura portuguesa entre 1580 - data da perda da independncia - e 1980 - data do acordo de pr-adeso Comunidade Econmica Europeia - , passando simbolicamente pelo ano de 1890 - data do Ultimatum britnico a Portugal -, atravessando 400 anos de histria ptria, defini-lo--amos como o tempo do canibalismo, o tempo da culturofagia, o tempo em que os portugueses se foram pesadamente devoran-do uns aos outros, cada nova doutrina emergente destruindo e esmagando a(s) anterior(es), estatudas estas como inimigas de vida e de morte, alvos a abater, e as suas obras como negras pe-onhas a fazer desaparecer. Catlicos ou erasmitas, papistas ou hereges protestantes, jesutas ou iluministas, religiosos ou ma-nicos, carbonarios-jacobinos ou eclesisticos, tradicionalistas ou modernistas, espiritualistas ou racionalistas, cada corrente s se entendia como una e independente quando via o seu re-flexo "puro" nos olhos aterrorizados do adversrio, quando o desapossava de bens, lhe subtraa o recurso para a sobrevivncia e, em ltima instncia, quando o prendia ou matava, por vezes mesmo "matando-o" depois de este estar morto, como sucedeu com os restos mortais de Garcia da Horta, em Goa, exumados e queimados. Porm, se umas correntes "matavam" o morto, pri-vilgio dos dominicanos da Santa Inquisio, orgulhosamente autocognominados de os "ces do Senhor", outras - animadas do mesmo dio teolgico e racionalista - "ressuscitavam-no", como aconteceu com os manicos e republicanos face ao legado pombalino, fundado numa das mais impressionantes mitologias culturais alguma vez inventadas em Portugal (cf. obra de Jos Eduardo Franco, nomeadamente O Mito dos Jesutas em Portugal, no Brasil e no Oriente (Sculos XVI a XX), 2007) erguendo a maior e mais importante esttua do Marqus de Pombal em pleno centro de Lisboa. Assassnios individuais e colectivos (perseguio dos judeus pela Inquisio; perseguio dos hereges pela Igreja; per-seguio da alta nobreza, dos jesutas, do "hertico" Cavaleiro de

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  • Oliveira e de pensadores e poetas pr-romnticos pelo Marqus de Pombal; perseguio de sacerdotes pelos jacobinos positivis-tas e republicanos; perseguio de comunistas e socialistas pela Igreja Catlica e pelo Estado Novo no sculo XX; actual persegui-o a funcionrios pblicos rebeldes pelos poderes partidrios institudos pelo governo de Jos Scrates/Cavaco Silva), prises individuais e colectivas - todos os protagonistas da histria da cultura portuguesa, com rarssimas excepes, entre as datas indicadas (1580-1980), tm as mos sujas e no poucos morreram em desespero s suas prprias mos, ora abandonando desalen-tados a cortesia do Poder (de S de Miranda, recolhido solitrio a Terras do Basto, a Alexandre Herculano, Domingos Tarroso, Jos Rgio e Miguel Torga), ora exilando-se (desde Francisco Sanches Antio Nunes Ribeiro Sanches e Lus Antnio Vemey a praticamente todos os grandes vultos da cultura portuguesa do sculo XX, de Aurlio Quintanilha a Adolfo Casais Monteiro, de Agostinho da Silva a Barradas de Carvalho e Fernando Gil, dos irmos Corteso a Eduardo Loureno, Oliveira Marques, Vitori-no Magalhes Godinho, Jorge de Sena e Jos-Augusto Frana; a imensa maioria dos pintores portugueses do sculo XX), ora sui-cidando-se (Antero de Quental, Camilo Castelo Branco e Manuel Laranjeira). Animados por um "pensamento pobre" (Pedro Ro-seta) no temos feito histria da cultura com o pensamento, mas com o sangue, sustentando-nos antropofagicamente do corpo do adversrio - complexo canibalista -, que alimenta o desejo de cada pai de famlia portuguesa de se tomar sbdito do chefe ou do patro, "familiar" do Tribunal da Inquisio, sicofanta da Intendncia-Geral de Pina Marque, "informador" de qualquer uma das vrias polcias pohticas, carreirista do Estado, devoto acrtico da Igreja, histrio da claque de um clube de futebol, bisbilhoteiro do interior da casa dos vizinhos, denunciador ao superior hierrquico.

    Por efeito do ambiente educacional e social, cada portugus percorre na sua vida, recorrente e ciclicamente, estas quatro figuraes da histria e cultura ptrias: ora se sente diminudo face riqueza econmica, ao grau cultural, ao nvel cientfico

  • e ao patamar cvico dos povos europeus do Norte, mas logo transforma a fraqueza em fora e se afirma viriatinamente como eivado de uma pureza e humildade vitoriosas relativamente ao luxo decadentista europeu e americano e como penhor de valores tradicionais humanistas e ntegros que os pases mais avanados, existencialmente desorientados, j perderam (com-plexo viriatino); ora sobreleva a insignificncia real de ser por-tugus (povo que em nada conta no mundo), levantando teorias especficas de grandiosidade montanhosa (o Quinto Imprio de Vieira e Pessoa, o saudosismo de Teixeira de Pascoais; o "gnio da raa" de Antnio Sardinha e Oliveira Salazar; a Idade do Es-prito Santo de Agostinho da Silva; cultura guardi do legado celto-mediternico da Deusa-Me, de Natlia Correia e Dalila Pereira da Costa; o Evangelho Portugus de Manuel J. Gandra), postulando-se como nao superior s demais, facto desmen-tido no presente, mas provado no passado e anunciado provi-dencialmente pela narrativa do seu futuro (complexo vieirno); ora, caindo em si, ressaltando comparaes com outros povos europeus, humilha-se, penitencia-se, desagradado de Deus ou de injustas leis histricas, consciencializando-se como nao inferior, brbara, rstica, arcaica, como desde o sculo XVIII nos temos representado a ns prprios (complexo pombalino); ora, finalmente, se sente af de uma pulso desmedida, um vigor ab-solutista de reconverso do outro, apostrofando as ideias deste, condenando-as como herticas, heterodoxas, abjectas, sugando--o canibalisticamente para as ideias prprias, em ltima anlise eliminando-o, como o fizeram o Tribunal do Santo Ofcio, o frenesi devorador pombalino, a Intendncia-Geral de Pina Ma-nique, os jacobinos da I Repblica, o Estado Novo de Oliveira Salazar e a Igreja Catlica de Gonalves Cerejeira a republica-nos, socialistas, anarquistas, esperantistas, evangelistas, homos-sexuais e comunistas na II Repblica (complexo canibalista).

    O Portugal desenhado pelos quatro complexos acima enun-ciados encontra-se moribundo, submerso pela avalanche de costumes liberais europeus e americanos, totalmente descris-tianizados e desumanizados. O alto valor concedido aos novos

  • costumes que tm por centro o corpo, erotizando a sociedade; a lei da interrupo voluntria da gravidez, secularizando a vida como um valor de mercado; a simplificao de casamen-tos e divrcios, dessacralizando-os; as previsveis leis futuras sobre a eutansia e o suicdio assistido; o previsvel futuro contrato de casamento a termo certo, anulvel ou renovvel; a manipulao gentica de carcter eugenista; o ecr da televiso permanentemente habitado por um alto grau de violncia ou de imbecilidade, fazendo p de chinelo da inteligncia; o pri-vilgio concedido a tudo o que se relaciona com a economia, sacralizando o oramento de Estado em denegrimento do bem--estar das populaes; a suspeita de futura abolio dos feriados nacionais com conotao religiosa; a mercantilizao das festas religiosas (Natal, Quaresma, Pscoa); uma incessante busca de prazer e de felicidade individuais sustentados em exclusividade no bem-estar do corpo; a progressiva e aceleradssima informa-tizao electrnica da sociedade por via de uma ideologia sem rosto nem personalidade, assente exclusivamente no controle e na segurana; a funda queda demogrfica anunciada para meados deste sculo, provam a existncia de uma profunds-sima descristianizao de Portugal, de efeitos absolutamente imprevisveis na criao de uma sociedade futura desprovida de ticas espirituais assentes em valores humanistas, porventu-ra obediente a um totalitarismo tecnocrtico e informtico, no qual os portugueses e os europeus abdicaro da sua liberdade em nome da segurana e da abastana. Desde a dcada de 1990, o aparelho de Estado, privilegiando exclusivamente um sector da sociedade - a economia -, desprezando fundo os valores morais e espirituais prprios da cultura portuguesa, tem gera-do na mente dos portugueses uma representao parcial de si prprios, que, incapaz de se elevar unidade de uma ideologia estruturada e consolidada, se caracteriza pela passividade cvi-ca, compensada por uma hipervalorizao do individualismo, assente na frmula amoral do "salve-se quem puder". Mistura de complexo pombalino com um arreigado individualismo americano, o projecto poltico portugus caracteriza-se hoje, nos comecinhos do sculo XXI, pela exaltao unidimensional do homem tcnico, o homem-eficiente, o homem-contabilista.

  • o homem-robtico, desprovido de conscincia histrica global, funcionando exclusivamente segundo o duplo horizonte de ra-ciocnios tcnicos quantitativos e consequentes objectivos. No so polticos os nossos governantes de hoje, mas tcnicos, robots substituveis uns pelos outros, possuindo o mesmo vocabulrio, aplicando invariavelmente o argumentarlo da eficincia de cus-tos e prov^eitos, totalmente desacompanhados de uma dimenso cultural e espiritual para a sociedade. No temos j "patres", mas empresrios; "doentes" no existem j, mas "utentes dos hospitais", como se ir ao hospital fosse o mesmo que entrar num transporte pblico, e os mdicos viraram "tcnicos de sade pblica"; os "trabalhadores" so agora "recursos humanos" da empresa e os "gerentes", a maioria de barriga gorda de cer-veja, administradores; os professores tornaram-se "tcnicos de educao", os funcionrios pblicos "tcnicos de administrao local, regional ou nacional"; os "contnuos" das escolas perten-cem ao quadro tcnico do "pessoal auxiliar", as criadas "em-pregadas domsticas", os operrios so tcnicos disto e daquilo. Todos somos "tcnicos", realando-se em cada "tcnico" menos o seu lado humano e mais o seu lado "eficiente" - esta a nica qualidade que interessa aos senhores do Estado, medindo-se o valor de cada cidado, segundo sinais dados pelo governo Jos Scrates-Cavaco Silva, no pelas suas qualidades humanas, pelo seu estado ou condio, mas pelo grau de "eficincia" tcnica e econmica realizado.

    Bom governo seria hoje aquele que, por mltiplos meios, apostasse, em fazer de cada portugus, no um robot tcnico de fato cinzento, camisa azul e gravata verde ou amarela (actual fato-macaco do cidado tcnico), que sempre um cidado in-conscientemente instrumento de cruis estruturas econmicas, mas um homem culto, consciente do seu lugar na sociedade e na histria. Portugal precisa menos de um choque tecnolgico (experimentado pelo pombalismo, pelo fontismo e pelo cava-quismo, cujas consequncias em nada mudaram o nosso ser, limitando-se a uma mera actualizao de instrumentos tcnicos ao servio da sociedade civil e do aparelho de Estado) e mais de um choque cultural, elevando cada cidado a um exigente patamar de conhecimento humanista e cvico que, por arrasto.

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  • geraria inevitavelmente o desejado choque tecnolgico. Primei-ro, a cultura, o esprito, o sentido da transcendncia; depois, por inevitvel arrasto de exigncia cvica, o progresso tecnolgico. A brutal inverso destes valores pelos actuais governantes evidencia tanto a sua pobreza de esprito quanto o projecto pombalino desumanamente tecnocrtico em que se encontra empenhado. Os jornais todos os dias nos fornecem exemplos deste projecto absolutamente desumano de governao. No dia 12 de Setembro, o jornal Pblico (edio do Porto) anunciava duas decises governamentais que se podem constituir como smbolos deste tipo tecnocrtico de governao: o governo Jos Scrates/Cavaco Silva recusava receber sua santidade Dalai Lama, prmio Nobel da Paz, lder espiritual budista e defen-sor da autonomia do Tibete (na Alemanha, dias depois, Dalai Lama era recebido por Angela Merkel); vinte e dois membros do governo distribuam computadores a professores e alunos, eram prometidos mais aulas prticas, mais cursos profissionais, rpido acesso Internet em banda larga, quadros interactivos em salas de aula, cmaras-vdeo em todas as escolas e a introdu-o da disciplina de Tecnologias de Informao e Comunicao a partir do 8. ano. Todas estas medidas estariam correctas se fossem acompanhadas pelo reforo de uma viso humanista e cultural da escola, tendentes a complementar tecnicamente a consolidao de um universo tico na escola fundado nos valores da dignidade, da partilha, da solidariedade, da honesti-dade, da lealdade, da honradez. Diferentemente, estas medidas tecnicistas, sem sentido moralmente transcendente, resumem-se a acentuar a vertente individualista e instrumental da escola, gerando cidados unidimensionais, submetidos exclusivamente omnipotncia do dinheiro e ao prestgio narcisista do poder, acentuando fortemente, desde a idade pr-escolar, os valores ligados tecnocracia, a inveja, a cobia, a ambio egotista, a manha, a disseno. Recentemente, a exemplo do vector ideo-lgico da sua governao, a escola converteu-se no controle es-tatstico da domesticao de cidados, verdadeira maternidade de tcnicos. A atitude mental que privilegia a vertente tecnicista da educao a mesma que recusa receber o Dalai Lama em au-dincia de Estado, estatuindo este como um poder instrumen-

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  • tal sem nobreza nem honra, desprovido de valores universais fundados na dignidade da pessoa humana. Dois dias depois, o mesmo jornal anuncia (edio de Lisboa) ter sido recusado um medicamento a um doente canceroso num hospital pblico devido ao seu elevado custo. a mesma atitude mental, funda-da na eficincia, o mesmo comportamento desumano, aliviado sem remorso do sentido de transcendncia. um novo Portugal que est nascendo, sem sublimidade, sem espiritualidade, sem projecto superior s suas foras e sua dimenso, o Portugal dos burocratas, dos tcnicos, o Portugal dos engenheiros e dos economistas, o Portugal dos pequeninos, fundado no raciona-lismo tecnocrtico, assente na omnipotncia do mercado e do dinheiro, activando ideias exclusivamente utilitrias (com estes homens, no sculo XV, nem a Madeira teramos descoberto, nem Ceuta teramos conquistado - os custos eram ento, de longe, superiores aos benefcios imediatos, desconhecendo-se totalmente os benefcios futuros, a existirem), divulgando pro-postas soberanan:\ente individualistas, um Portugal que - desos-sado de dignidade institucional, catavento que segue impulsos americanos (aprovao entusiasmada da Guerra do Iraque nos Aores) ou chineses (recusa de recepo institucional ao Dalai Lama) - se submete a ventos internacionais dominantes, seguin-do modas estrangeiras, incapaz de criar a sua prpria persona-lidade. Um governo que se recuse dar privilgio institucional a um prmio Nobel da Paz como o Dalai Lama um governo sem esprito, sem dignidade, que submete as suas decises presso e ao arranjismo da conjuntura e no a valores permanentes e universais. Submete-se a modas (quadros interactivos na sala de aula), omnipotncia do dinheiro (encerramento de maternida-des, recusa de ceder um remdio a um doente canceroso devido ao seu custo), circunstancialidade do momento (exemplo da no recepo institucional de sua santidade o Dalai Lama): um governo que separa a alma do corpo e entrega-se hedonstica e disciplinadamente, com fervor nefito, ao engrandecimento do corpo. Breve, o corpo esbelto do governo, educado em ginsios de classe mdia amorfa, bebedora de revistas de moda, se trans-figurar em corpo robtico, informatizado, suprema sentinela do Estado na vigilncia ao cidado desencarreirado. Sem va-

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  • lores a defender, tanto far que seja um ministro com ou sem barba a falar na televiso - ser apenas uma mquina-humana a debitar um texto programado internacionalmente pelos interes-ses econmicos maioritrios do planeta. Tudo o que nele fazia valer a dignidade humana, desapareceu.

    Desde os princpios deste sculo, tem-se procedido igualmen-te a uma brutal alterao na natureza do Estado. Se este, desde o 25 de Abril de 1974, representava e exprimia os interesses gerais da populao, concretizados num conjunto de direitos significantes do Bem Comum, o Estado, com o actual governo, alimentado por centenas de tcnicos no eleitos, nomeados por gabinetes ministeriais, vive para si prprio, subordinando o interesse geral do cidado ao interesse geral do oramento do Estado. O Estado subsiste por si prprio, mutilando o cidado. Mutatis mutandis, voltmos formalmente ao tempo de Pombal e de Salazar, polticos para os quais governar era menos atender aos desejos e necessidades da populao e inais aos interesses do Errio Rgio ou do Oramento de Estado, mesmo sacrificando mulheres grvidas beira de dar luz, que agora, anuncia o Pblico de 22 de Seten:\bro de 2007, vo parindo na ambulncia a caminho de um hospital estranho sua terra. Em momentos de intensa e complexa ruptura social, a actividade poltica atrai para si os melhores de ns (Mrio Soares, S Carneiro, Freitas do Amaral, Amaro da Costa, Pinto Balsemo, lvaro Cunhal, Ant-nio de Spnola, Ramalho Eanes, e todos aqueles que sacrificarana a sua vida pessoal, a sua profisso e, no raro, a sua fortuna s necessidades da luta poltica, fundando o regime democrtico em Portugal). Em momentos de normalidade, a actividade po-ltica atrai apenas os piores de ns, habitualmente conscincias sociais medocres que visam com o exerccio poltico, no o Bem Comum, mas a exposio pblica, mesmo que esta, por coao poltica, os force a praticar o mal social. O mal social consiste em diminuir o arco de amplitude da liberdade, em retirar direitos normais adquiridos expressos na lei e em subordinar a activida-de civil aos interesses de uma ideia de Estado. Em Portugal, hoje, o Estado voltou-se de novo contra o cidado, rico ou pobre: o rico sugado maximamente pela mquina fiscal; o pobre, sacrificado numa vida que desespera de melhorar; todos, trabalhando para

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  • alimentar a gigantesca mquina burocrtica do Estado que tanto mais consome quanto menos favorece o cidado. E os Ministros tornaram-se exclusivamente "tcnicos" (inclusive de propagan-da, entregue a agncias de marketing), pessoas impolutamente legais, mas eticamente pessoas ms, desprovidas de sentimentos de solidariedade e piedade, dormindo de conscincia limpa aps encerrarem escolas, maternidades e centros de sade e dimi-nurem as futuras penses de reforma. Ser provincianamente dominado pelo complexo pombalino oferecer ao desbarato computadores e desprezar o facto civilizacional de que "metade da populao portuguesa no tem como pagar dentista" privado (Pblico, 20 de Setembro de 2007). Em Portugal, a banalidade do mal comea - hoje - no Dirio da Repblica, adoado posterior-mente pela mquina de propaganda do Governo.

    Mais do que viver do passado religioso e marinheiro, como o Estado Novo o fez ao longo de 48 anos, Portugal alimenta-se do futuro desde o 25 de Abril de 1974; primeiro do futuro socialista, terra sem iTial e exemplo paradigmtico para a Europa em 1975, e, depois, desde 1980, ano do acordo de pr-adeso de Portugal CoiTiunidade Econmica Europeia, da ambio de sermos ex-clusivamente Europa, to normais quanto qualquer outro cida-do europeu - isto , "tcnicos" asspticos, inodoros, incolores e, de preferncia, sem opinio que no a do chefe. Porm, como Eduardo Loureno teorizou desde a dcada de 80, tornmo-nos europeus no exacto momento em que este continente se aban-donou a um plano mclinado decadentista, expressor de uma mortalidade anunciada a prazo, para o qual o federalismo mais sabe a uma necessidade de garantia de sobrevivncia de povos fracos comandados por chefes janotas e espertotes do que a uma refundao do antigo poder imperial. Recentemente, o Estado portugus, imitando a Europa durante escassos trinta anos, garantia sade, educao, reforma e esforo de empregabili-dade aos portugueses pobres. Sabem-se agora os portugueses conhecedores de uma outra Europa, a hidra decadentista que lhes corta maternidades e escolas e lhes suga a reforma. Esta hoje a real ideia de Europa na mente dos portugueses, com

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  • excepo da elite de 5 000 dirigentes do Estado, que continuam a visionar a Europa como terra do ouro e do mel, ambicionando fazer carreira numa das mordomias europeias. O actual Estado portugus constitui-se como a expresso ideolgica e econmica desta nova Europa que os portugueses pobres desconheciam, na qual este, o Estado, mais do que garantia de direitos cvicos, exige do cidado o estrito cumprimento de deveres tcnicos - a sua democracia, mais do que formal, goza de um estatuto meramente aparente, confundindo-se o grau de liberdade do cidado com o nvel em que se instala na hierarquia financeira. No existe democracia quando no existe uma "conscincia e uma moral comuns", isto , valores comunitrios de partilha e solidariedade como mago da vivncia social. Diferentemente, a nossa actual democracia composta por jogos de interesses oligrquicos, de grupos, de baronatos, de presses polticas e financeiras, orientados por tcnicos arranjistas que costuram leis fragmentrias tendo em conta, no o Bem Comum, mas o resultado do conflito institucional entre o interesse financeiro do Estado e os interesses grupais emergentes.

    Se, desde o 25 de Abril de 1974, o Estado esteve, melhor ou pior, ao servio do cidado, a partir de finais do sculo passado evidencia-se que, por necessidades financeiras do Estado, o pro-cesso foi invertido: o cidado encontra-se agora ao servio dos interesses do Estado.

    No justo momento em que somos de direito e de facto eu-ropeus, 250 anos aps o esforo pombalino para nos tornarmos econmica e politicamente europeus, a Europa, o continente da liberdade, da democracia, da riqueza e do humanismo, como fora idealizada pelos grandes mestres pensadores a partir do Renascimento, chega igualmente ao seu fim enquanto territrio poderoso, transfigurando-se, face aos ingentes problemas am-bientais do futuro, escassez de recursos naturais e acelerada diminuio demogrfica (cf. obra de Viriato Soromelho-Mar-ques, nomeadamente O Futuro Frgil. Os Desafios da Crise Global do Ambiente, 1998), num continente perifrico dominado por uma tecnocracia poltica, mais interessada em garantir o acesso

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  • gua potvel e rede mundial de distribuio de energia do que em votos cvicos a favor do clssico humanismo europeu.

    Portugal apanhou o comboio europeu quando este no s desacelerava do seu antigo crescente poderio poltico e cultural como, inclusivamente, j burocraticamente travava a sua velo-cidade de inovao, de criatividade, de crescimento de riqueza e influncia internacional, totalmente dependente do poderio americano, que imita como um macaco de circo, como o pro-vou a Cimeira dos Aores. O portugus, um povo que na sua longa histria nunca conhecera direitos de monta, logo que os alcanou, a seguir ao 25 de Abril de 1974, simulando-se tempo-rariamente uma genuna conscincia social europeia, breve lhes foram furtados em nome do rigor de um oramento de Estado que sempre tem sido madrasto para as populaes pobres, antes a maioria do pas, hoje cerca de dois milhes de portugueses. Tem sido exemplar a resposta da populao tecnocracia mili-tante que nos governa desde a dcada de 90: socorrendo-se de um fenmeno recorrente na nossa sociedade, cerca de 100 000 portugueses emigram por ano. Hoje, nos comecinhos do sculo XXI, cumpriu-se o desgnio pessoano, que visionava o Portugal actual como uma sociedade profundamente provinciana, isto , complexada: "o nosso provincianismo consiste em estar, em viver, numa civilizao, sem verdadeiramente fazer parte dela e do seu desenvolvimento". Foi azar, apanhmos o comboio certo no tempo errado.

    Assim, a "morte de Portugal" no significa que Portugal desaparea (Portugal "dura", escrevia Ea de Queirs durante a crise do Ultimatum; , alis, a sua grande virtude, no dar fe-licidade ao seu povo, mas durar, sobreviver, existir por existir, criando contnuas mitologias que justifiquem a sua existncia), mas, sim, que o Portugal que as geraes nascidas at dcada de 1960 conheceram, animado por aqueles quatro complexos, se encontra em vias de desaparecimento, transfigurado em mais uma das inmeras regies da Europa, governado por tcnicos medocres que, lentamente, em nome da segurana internacio-nal, da carncia de recursos naturais, ou outra justificao, pre-

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  • param uma futura ditadura tecnocrtica. No futuro, porventura no varar deste para o prximo sculo, Portugal transformar-se- em mais uma das inmeras regies singulares da Europa, cul-turalmente to importante e extico como a Alscia ou a An-daluzia, guardando dentro de si, nos seus museus regionais ou nacionais, o retrato de uma velha cultura de 800 anos morta s mos de um grupo de engenheiros e economistas sem esprito histrico, de uma tecnocracia sem rosto nem alma, para quem conta s, primeiro, a contabilidade das estatsticas, e, segundo, o sentido europeu das estatsticas. A Histria, a Cultura, a Iden-tidade, o Esprito, o sentido individual e colectivo da Transcen-dncia, a educao para a partilha e a espiritualidade, so en-carados, por esta mentalidade tcnica, como meras ccegas da alma, jarres da China sempre agradveis de ostentar no hall de entrada da vivenda suburbana. No dia em que o portugus for igual a qualquer europeu na educao, no trabalho, nas frias, nas conversas, nos divertimentos, o arcaico Portugal que ainda conhecemos, mais supersticioso (Ftima) e menos devoto, mais generoso e menos interesseiro, mais altrusta e menos egosta, mais emotivo e menos racionalista, mais comunitrio e menos calculista, mais saudoso e menos modernista, mais lrico e me-nos cientificista, este Portugal - dizamos - ter findado, dando origem a um novo Portugal onde os Bancos e as Companhias de Seguros substituiro as Misericrdias - e o Estado, mais do que garantia da existncia livre do cidado, ter-se- tornado no superior controlador da existncia individual.

    Assim, teorizadas por Teixeira de Pascoais, Francisco da Cunha Leo, Eduardo Loureno, Antnio Jos Saraiva, Agos-tinho da Silva, Guilherme d'Oliveira Martins e sintetizadas por Jorge Dias, as caractersticas classicamente atribudas aos portu-gueses, corroboradas por autores estrangeiros de passagem pelo nosso pas, como a lentido, a generosidade sem limites, um es-prito emotivo anti-racionalista, um povo voltado para o sonho e para o passado, alimentando-se espiritualmente da saudade, imprevisvel nas suas aces, desprovido de calculismo tcito, "desenrascado", capaz de fazer a ponte ("capatazia") entre gru-

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  • pos dirigentes e populaes rudes, um portugus eternamente vocacionado para a emigrao, desenvolvendo um rijo "com.-plexo de ilhu" (Vitorino Nemsio; Antnio Jos Saraiva) - to-das estas caractersticas, a que deveramos acrescentar um liris-mo espiritual congnito (Joo Gaspar Simes; Jacinto do Prado Coelho), encontram-se em vias de desaparecimento, esmagadas por uma apressada e selvagem integrao pombalina na Euro-pa, no precavendo e filtrando desta o que gradualmente se vai aclimatando ao nosso ser, mas, intempestivamente, comandada por uma nova gerao de engenheiros e econoinistas totalmente desprovida de esprito histrico, fazendo desabar sobre a cabea de cada portugus uma catadupa de costumes exticos descris-tianizados e desumanizados, revolucionando o papel do Estado no interior da sociedade, desguarnecendo de garantias de futu-ra qualidade de vida os dois milhes de portugueses pobres. O Marqus de Pombal, h 250 anos, prosseguindo a poltica rgia de D. Joo V, tudo concentrou no Estado - povo, pas, colnias, nao viviam para o Estado, recebendo deste a ilusria derra-ma de uma felicidade seinpre anunciada e nunca cumprida; as elites polticas portuguesas do sculo XXI, engenheiros e econo-mistas ignorantes da histria de Portugal, obedecendo reflexa e mecanicamente a modas internacionais, como se o Portugal de hoje fosse a Alemanha ou a Sucia de hoje, prolongam a poltica pombalina, acusando o povo - um povo com 800 anos de existncia - de arcaico, incapaz, estpido, envergonhando-se da nao genuna que comandam, estatuindo-a como supremo instrumento de entrave ao desenvolvimento do pas, esque-cendo-se (por ignorncia cultural; por modismo europeu; por mimetismo americano) o iinportantssimo papel do Estado na salvaguarda do futuro das populaes do interior e dos mais de um milho de carenciados. O endeusamento da mo invisvel do mercado por engenheiros e economistas que dominam actu-almente o Estado portugus - tcnicos sem rosto - possui valor metafsico idntico antiga crena portuguesa na mo invisvel e milagreira de Deus, crena que sustentou Portugal cerca de 250 ano, gerando a singular recepo colectiva das "aparies" de Ftima. Do final, sabe-se o resultado - povo pobre, analfabeto e supersticioso. No termo desta experincia portuguesa (mime-

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  • tizada a papel qumico do estrangeiro, desprovida de originali-dade portuguesa - como sempre funcionaram as elites pombali-nas portuguesas), Portugal permanecer, na sua posio relativa face aos pases mais ricos da Europa, como se encontra desde o reinado de D. Joo III, na base da tabela; entretanto, em nome da sade do Estado, em nome de um oramento metafsico e de uma canina imitao do pior da Europa, tero sido eliminados por este os curtos direitos ganhos pelas populaes desde o 25 de Abril de 1974 (ter escola na sua terra, ter maternidade na sua terra ter assistncia hospitalar na sua terra, ter dinheiro sufi-ciente para ir ao dentista, ter reforma garantida). um Portugal solto desregrado, cheirando alarvemente a dinheiro, os ricos por o terem, os pobres por o desejarem, todos por nas "ndias" o espreitarem, isto , na mirfica Europa. o Portugal de D. Joo III (menos de 30 anos depois de D. Joo III tnhamos sido conde-nados inexistncia por Castela), o Portugal do "Nada para que caminhamos" de Marquesa de Alorna, um Portugal merecedor de um Gil Vicente, que infelizmente no h. a orgia bquica dos tcnicos cinzentos e dos polticos janotas antes da grande derrocada, como aconteceu na segunda metade do sculo XVI e na passagem entre os sculos XVIII e XIX.

    Neste sentido, o livro maior de Cames merece ser o poema de Portugal, no porque o seu contedo literrio reflicta a ver-dade histrica sobre Portugal, mas porque reflecte em perfeio o sonho ideal do Homem Portugus e da Identidade Nacional - um povo mais do que povo, uma nao mais do que nao, uma ptria mais do que ptria, um territrio mais do que terri-trio - povo, nao e ptria escolhidos em Ourique pelo Deus novo e n'Os Lusadas pelo antigo panteo dos deuses romanos para levar bandeira da Europa ndia, frica e Amrica. Mo-mento mximo da cultura portuguesa de Quinhentos e Seiscen-tos Os Lusadas marca igualmente a passagem para o momento da decadncia - em 1578, 1580 e 1581, Portugal, pas mximo, torna-se nao msera, desabando das nuvens que o Imprio o fizera sonhar. Cames, de facto, merece ser o smbolo do povo portugus - homem azarado, poeta pobre, brigo, mulherengo.

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  • condenado pelo Estado, perseguido pela Igreja, nunca ter fre-quentado a Universidade ("saber de experincia feito"), migran-te do Imprio, ora aqui, ora acol, a sua vida, como a de Ferno Mendes Pinto, reproduz a vida dos portugueses que nunca bei-jaram a sombra do Estado, adversa s elites reitoras do Poder. E este Portugal que ora est agonizando, o Portugal das cruzadas contra os mouros, das canes da Terra de Santa Maria, da bus-ca seiTi qu nem porqu da Ilha Bem-Aventurada de So Bran-do, catorze monges abandonados no mar com os olhos fitos no Paraso, o Portugal moralmente puro do Leal Conselheiro, de D. Duarte, o Portugal das Misses e dos missionrios, o Portugal lrico das Imagens da Vida Crist, de Frei Heitor Pinto, o Portugal saudoso de Menina e Moa, de Bernardim, o Portugal herico dos conjurados de 1640, o Portugal Quinto Imprio do Mundo, de Vieira, o Portugal devoto de frei Agostinho da Cruz, o Por-tugal honesto de Re exes sobre a Vaidade dos Homens, de Matias Aires, o Portugal sofredor e romntico de valores permanentes de D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna, o Portugal-Li-berdade de Almeida Garrett, o Portugal ntegro de Alexandre Herculano, o Portugal santo de Antero de Quental, o Portugal simples de Guerra Junqueiro, o Portugal visionrio de Fernando Pessoa, o Portugal louco do Gabiru de Raul Brando, o Portugal de nvoas encantadas de Teixeira de Pascoais, o Portugal do fado doloroso de Jos Rgio, o Portugal corvo "Vicente" altivo e resistente de Miguel Torga. Venceram os juzes-desembargado-res de Gil Vicente, os cortesos endinheirados de S de Miranda, os "hipcratas" de frei Bernardo de Brito, os velhos do Restelo de Cames, os cnegos da Patriarcal, de colar ao peito de sete voltas de ouro, os inquisidores dos Estaus, olhar implacvel, cego de verdade resplandecente, queimando homens como hoje os ministros fecham maternidades e cortam benefcios a mulheres pobres; venceu a corja de Bocage, os serventurios do poder de Herculano, os bacharis do Ea, os Garcia comercian-tes a retalho de Vitorino Nemsio, os funcionrios do O'Neill, os latifundirios das finanas da Agustina, os banqueiros do Lobo Antunes, os cegos do Saramago, em suma, numa palavra, a matulatada gentalha-canalha virada "tcnica" de camisa azul e gravata verde ou amarela de Mrio Cludio.

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  • Resta aos homens de bem virarem as costas a esta nova elite tecnocrtica que assaltou e se apoderou do Estado portugus - elite de corao impiedoso e alma desprovida da graa de Deus - e, se puderem, emigrarem, clamando que aos homens--tcnicos leva-os o Tejo e o Douro nas enxurradas de Inverno, os homens-cultos, esses, permanecem, recriando a nova imagem literria, esttica e cultural por que Portugal posteriormente se rever no espelho da Histria.

    Com sinceridade nos interrogamos se a perspectiva aqui apontada estar correcta? No ser ela excessivamente pessi-mista? Estar mesmo a nascer um novo Portugal - um Portugal "eno'enheiro e economista", antecmara de uma sociedade eu-ropeia decadente, normalizada, informticamente vigiada, pre-sumvel ditadura "doce", aterrorizada pela futura carncia de recursos naturais, capaz de trocar a liberdade pela segurana?

    O livro de Guilherme d'Oliveira Martins, Portugal. Identi-dade e Diferena, publicado recentemente, desmente esta viso pessimista de Portugal. nosso honesto dever realar para o leitor essa outra perspectiva cultural.

    Com efeito, a tese de Guilherme d'Oliveira Martins defende a ingente e actual necessidade de superao das feridas histricas de Portugal, apostando num projecto tico de normalizao da nossa existncia por via da racionalizao geral das estruturas institucionais de Portugal, a comear pelo Estado. Segundo o autor, Portugal, enterrando a sua complexada identidade cul-tural passada, mas recusando simultaneamente o "triunfalismo e o miserabilismo" (p. 20), tem hoje, nos princpios do sculo XXI, integrado por inteiro na Europa, a grande oportunidade de superao dos seus traumas histricos, normalizando-se, racio-nalizando as estruturas sociais e estatais, unindo "pensamento e aco" (p. 19), vinculando ambos a um projecto complexo e multidimensional sumamente caracterizado pela abertura ao "outro". Neste sentido, Guilherme d'Oliveira Martins prope o repensamento e a revitalizao da nossa identidade histrica por via de uma abertura relacional a outras identidades (Europa,

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  • frica, Brasil...), um autntico mergulho no "outro" que provo-catoriamente viesse abalar os nossos complexos ("saudosismo, sebastianismo, lirismo sonhador, fatalismo oriental, brandura de costumes", p. 20), forando a sociedade civil a no depender em absoluto do Estado, "matando" definitivamente D. Sebastio dentro de cada portugus. Do mesmo modo, deve Portugal usar o seu estatuto de pas "semiperifrico" como "ponte" para en-cetar, enquanto criao de destino colectivo, uma "vida nova", modernizada. Para trs, nas novas praias do Restelo, restariam os complexos traumticos da nossa identidade "fechada", de que o permanente sebastianismo (a nsia por homens e medidas providenciais) se evidencia como expresso claustrofbica. Para a frente, como projecto sonhador de realizao quotidiana, per-maneceria a racionalizao do Estado e a "cultura de dilogo e de confronto, centrada no universalismo da dignidade da pessoa humana" (p. 22). Segundo Guilherme d'Oliveira Martins, eis o desafio do novo Portugal: fazer-se em confronto, abrir-se em inultiplicidade, reproduzindo actualmente a atitude psicolgica, cultural e civilizacional dos momentos maiores da nossa hist-ria. Neste sentido, para o autor, Portugal, devido sua peculiar situao histrica de permanente abertura ao "outro", encon-trar-se-ia hoje, descontado o domnio do Imprio, em situao semelhante da primeira metade do sculo XVI, tanto capaz de se afirmar positivamente no plano internacional quanto, se obstaculizado, de se apagar numa "vil e apagada tristeza", de-pendendo o resultado futuro do trabalho, do vigor e do sentido de modernizao do Estado nas actuais geraes. Se Portugal persistir vitoriosamente no seu caminho europeu, o mito de D. Sebastio tornar-se-, em menos de um sculo, no que se tornou o mito da apario de Cristo a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique: de certido de nascimento providencial de Portugal, hipostasiado como selo divino da fundao, transfigurou-se, do Liberalismo at hoje, em uma relquia arcaica nem sequer ensi-nada nas escolas do ensino bsico Orgulhosamente, se a vitria europeia de Portugal se consumar, ter sido a gerao nascida entre 1940 e 1960 a matar D. Sebastio pela segunda vez.

    Azenhas do Mar, 23 de Setembro de 2007

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  • 1

    o princpio do fim A segunda morte de D. Sebastio

    Um dos maiores equvocos dos tericos da cultura portu-guesa teiTi sido a insistncia, ao longo dos tempos, mas mais fortemente desde o final da monarquia, em 1910, na busca de um conceito absoluto, exclusivo, definidor da identidade na-cional ou do homem portugus. Desde o princpio do sculo XX, fruto da decadncia da monarquia, sentida como uma crise civilizacional rupturalizadora de 800 anos de histria, acrescida da crise mental e cultural consciencializada pela Gerao de 70, trs a quatro dcadas antes, ambas expresso da profunda crise que varrera o pas desde o consulado do Marqus de Pombal, tm-se sucedido diversas teorias sobre a identidade nacional. De facto, as teorias sobre a identidade do homem portugus, criadas ao longo do sculo XX, no escondem um intento de sublimao do projecto republicano apresentado em 1910 como acto refundador de Portugal, logo fracassado aps o curtssimo perodo de 16 anos, substitudo, at 1974, por um nacionalismo rural de fundo conservador, fortemente eclesistico e patrio-teiro. Assim se estatuem as teses rcicas sobre a identidade de Portugal no positivismo de Tefilo Braga, no saudosismo de Teixeira de Pascoais e no integralismo de Antnio Sardinha, a todos unindo a mentalidade nacionalista ps-romntica de Guerra Junqueiro, Antnio Correia de Oliveira e Mrio Beiro, teses prosseguidas, j em outra atmosfera cultural, consumado o rompimento cultural-monrquico e fracassada a I Repblica, pelo advento do novo providencialismo de Fernando Pessoa e Agostinho da Silva, continuadores da viso quinto-imperialista de padre Antnio Vieira.

    Com efeito, no existe uma universalidade do homem portu-gus, ao modo de uma espcie no interior do gnero "homem", ou uma entidade metafsica presente em todos os tempos, desde

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  • a fundao de Portugal actualidade, como se se tratasse de uma etiqueta aposta a cada homem no territrio europeu de-signado por Portugal, que, por si, definisse cada ser humano aqui nascido como o "Homem Portugus". No existe tambm urn homem portugus nico, sui generis, singular, diferente de todos os seres humanos do mundo, nem quanto sua univer-salidade absoluta, nem quanto a um conjunto permanente de qualidades que o especificariam. O homem portugus o ho-mem europeu, seja na sua origem, como a literatura, a religio, o pensamento, as crenas e os hbitos quotidianos medievais o nrovam, integrando-o no continente europeu e distinguindo-o (io homem "africano" (o "mouro", de cultura, religio e civili-zao diferentes), seja no seu percurso histrico, ora assimilado ao mesmo esprito europeu, com ele identificado (sculos XII a XIV), ora na vanguarda deste continente (sculos XV e XVI), ora dele desavindo (sculo XVII), ora na sua retaguarda e com ele conflituando (sculos XVIII, XIX e XX). Nada na cultura por-tuguesa e no homem portugus os identifica como entidades exclusivas, subsistindo totalmente parte da civilizao e da cultura europeias, seno o que conjuntural e circunstancialmen-te emerge como produto da dialctica da histria entre o agir, o fazer e o pensar colectivos, que tanto nos individualiza como a cada um dos mltiplos povos europeus. Se a originalidade das cantigas de amigo, do estilo manuelino ou a sobrevalorizao do sentimento de saudade so especficos em ns, a Histria o explica como elemento integrador da cultura portuguesa na cultura europeia e contributo especfico para a nossa identidade continental.

    Assim, a identidade portuguesa - ou o presumvel homem portugus universal, filho dilecto de Deus, elemento do se-gundo povo eleito - constitui-se como uma fico criada pelas filosofias espiritualistas da histria, crentes no absoluto de um conceito que, expressado, sintetizasse o todo de Portugal. Po-rm, no existe conceito identitrio exclusivo que vincule a uma mesma ideia a existncia de D. Afonso Henriques, D. Joo II, D. Sebastio, Marqus de Pombal, Oliveira Salazar e Mrio Soares seno um itinerrio histrico multmodo e plural, reagente a presses exteriores e a pulses interiores, congraador de povos

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  • que em continuidade habitam um mesmo territrio, exprimin-do-se pela lngua derivada do latim popular falada no tempo da Reconquista e unidos pela existncia de um Estado produtor de leis comuns. Nada que no tivesse acontecido nos restantes pa-ses europeus segundo as particularidades do desenvolvimento histrico que cada um seguiu num processo de auto-reconheci-mento e auto-identificao por via da literatura, do pensamento e de um fundo comum de prticas religiosas e sociais. Na his-tria do pensamento portugus, Teixeira de Pascoais substituiu o velho Deus providencialista dos reis portugueses pelo novo conceito de saudade, sntese aglutinadora da alma portuguesa. O providencialismo portugus, cristalizado na obra de padre Antnio Vieira, defendido por Fernando Pessoa e assumido, no final do sculo XX, por pensadores como Agostinho da Silva, Dalila Pereira da Costa e Antnio Quadros, constitui-se, no como relquia histrica de Portugal, mas como revitalizao e rejuvenescimento da ideia imperial em tempo de decadncia e desaparecimento do Imprio. Outra explicao social no existe para a proliferao de teorias providencialistas a partir da dcada de 70, substituindo, no imaginrio portugus, o im-prio vivido pela ideia de imprio, o imprio real pelo imprio cultural da lngua comum, o imprio social e econmico pela ideia providencialista, quinto-imperialista e paracletiana de im-prio, diplomaticamente designada por "Lusofonia". Desenhar uma filosofia da histria nica, que explique a singularidade portuguesa, tem sido, igualmente, o objectivo do pensamento racionalista, de Oliveira Martins a Eduardo Loureno, passan-do por Antnio Srgio, intentando, nos seus estudos, detectar arqueologicamente esse pecado ou virtude que nos tem acolhi-do desde o acto do nosso nascimento, prolongando-se, como essncia ontolgica, em cada um dos nossos posteriores actos colectivos, como motor que, oculto, move a mquina - a pulso decadentista existente em ns, estado ou qualidade patolgica, que em outros povos europeus no existiria. Culpa-se-nos de, constitutivamente, no possuirmos virtualidades para o pensa-mento racional, a metafsica ou cincia, mas, logo se constata, historicamente, que o praticmos fortemente nos sculos XV e XVI, quando a tal as condies nos obrigaram, bem como nos

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  • finais do sculo XX, com a emergncia de um fluxo quantitativo de novos cientistas desde a dcada de 80.

    A explicao histrica da permanente criao de teorias so-bre a originalidade da identidade portuguesa tem por causa a abrupta interrupo, nos filiais do sculo XVI, da nossa contnua e progressiva ascenso histrica desde a fundao do Condado Portucalense at ao afundamento colectivo de Portugal em Al-ccer Quibir, em 1578, e consequente perda da independncia, em 1580. Efeito de uma permanente fuso entre elites e povo, a prineira comandando, a segunda agindo, ambos fazendo um desde a batalha de Ourique explorao das capitanias do Brasil e conquista e evangelizao dos territrios do Oriente, ambos recobertos sob o capelo da mesma enformao ideolgi-ca vinculada religio catlica, a continuidade da histria de Portugal foi violentamente quebrada com o desaparecimento da elite cavaleiresca da nobreza portuguesa de Aviz em Alccer Quibir, gerando um povo sem chefe nem dirigentes, nem co-mando, causa da origem do mito de D. Sebastio, um povo apri-sionado ou forado por governantes em quem no confiava nem se revia. Existe, de facto, um bloqueio histrico em Portugal na segunda metade do sculo XVI que, anulando a anterior linha histrica ascendente, iniciado no escasso territrio do condado de Guimares e finalizado com domnio de territrios em todos os continentes, tendo como momento central paradigmtico a assinatura do Tratado de Tordesilhas, deixa Portugal coroado de um passado de virtudes hericas, um presente minorizado, fragilizado, e um futuro vazio, futuro que, paradoxalmente, s ganha consistncia de salvao quando, em 1690, so des-cobertas as primeiras minas de ouro em territrio de Minas, ento capitania do Rio de Janeiro, hoje Minas Gerais. Em vo, nos finais do sculo XVII, o Conde da Ericeira tentara atrair o esprito manufactureiro para Portugal, tornando o nosso pas autnomo em termos de produo e consumo - a chegada da frota do Brasil carregada de ouro gorara-lhe as intenes e a fr-gil elite portuguesa oriunda da Guerra da Restaurao, pobre de trigo, de cavalos e de trajes, v-se inesperadamente carregada de ouro, de farinha branca inglesa, vestindo-se de seda de Lyon e transportando-se em berlindas aparelhadas ao modo parisiense.

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  • Enriquece a corte, engorda o Estado entrada do sculo XVIII, adquire gostos europeus luxuosos, eruditos e pomposos, imita-tivos de cortes europeias, cria vastas bibliotecas e pinacotecas, constri igrejas luxuosssimas (a igreja da Patriarcal, o convento de Mafra), como s em Roma existiam. A populao, porm, encarada como serva e no como cidad, permanece ao nvel do sculo XVII em termos de sobrevivncia e hbitos quotidianos. Estava definitivamente cavado o divrcio entre elites e popu-lao, que 1820, 1910 e 1974 tentaro preencher, retornando a esse momento mtico de fuso entre os Afonsos e os Sanchos e os seus servos na luta contra os mouros ou entre o capito e os colonos no acto de criao de novas cidades no Brasil. O mito de D. Sebastio significa, assim, na conscincia colectiva portu-guesa e no imaginrio ficcional criado em torno da sua figura, a total ausncia, solidamente sentida, emocionalmente vivida, do poltico, do sacerdote, do capito, do nobre, do jurista, do sbio intimamente ligados ao povo, figuras sociais intrinsecamente experimentadas at instaurao da Inquisio, em 1536, e derrota de Alccer Quibir. D. Sebastio representa a personifi-cao do rei-bom, o nobre compreensivo, sofredor com os seus cavaleiros, o governante orientador, ordenador, esclarecedor, inspirador, vigilante, providencial, que se aventura no mesmo feito com o seu povo, ganhando ou perdendo, como procediam, com excepes, os reis da I Dinastia, os nobres e dirigentes fundadores da de Avis, os nobres e os capites fidalgos dos navios que demandavam o Atlntico e o ndico. Com a cen-tralizao rgia de D. Joo II, a transforiT\ao da empresa dos Descobrimentos em emprio comercial e o Imprio concebido como simples estratgia militar internacional, nasce o primeiro n\onnento de divrcio entre a elite e a populao portuguesa, que a criao da Inquisio consolida, transformando a Igreja em uma instituio repressiva, perseguidora, controladora de crenas e hbitos, esmiuando o interior do lar, expondo-lhe a intimidade, dividindo famlias. Alccer Quibir, expresso do desejo de retornar ao tempo da unidade colectiva em aco, re-mata definitivamente a diviso esboada, transformando-a em ruptura e ferindo Portugal at nossa entrada na Comunidade Econmica Europeia, em 1986. O retrato desse tempo anterior.

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  • tempo doravante considerado modelar, matria de que os mitos so feitos, guarda-se em dois livros sagrados: Os Lusadas, de Cames, figurao da mxima heroicidade atingida por Portu-gal, buscando e atingindo o Oriente, tornando este seu, como se hoje, buscando e atingindo a Europa, nos tornssemos mais do que ela e para ela modelo; e Peregrinao, de Ferno Mendes Pin-to, retrato sem herosmo de um povo abandonado a si prprio nos confins do Oriente, mercadejando e missionando, usando de manha, perfdia, mentira e f para sobreviver, povo uma santo e velhaco, heri e rapace, como o milho de emigrantes que na dcada de 1960 fugiram "a salto" de Portugal, entranhando-se pela Europa central sem outra ajuda que o acaso das circunstn-cias. Desse tempo de fuso colectiva permanecer na nossa me-mria, recriada imaginariamente por un\a abundante literatura, a sombra desse reino paradisaco que fora o Portugal medieval da F e da Lei, a bem com Deus, reconquistando territrios em Seu nome, e o Portugal dos Descobrimentos, a bem com o mun-do, deste reitor. Depois de Alccer, subordinados Inquisio, sentimo-nos mal com Deus, um Deus que deixara de ser vivido e se oficializara nos tratados de teologia e nos regimentos inqui-sitoriais. Do mesmo modo, por via do Estado, sentimo-nos mal com o mundo, que nos desprezava, ora nos ameaando (sculo XVII), ora nos caluniando de africanos da Europa (sculos XVIII, XIX e XX). Se Portugal persistir vitoriosamente no seu actual ca-minho europeu, o naito de D. Sebastio tornar-se-, em menos de um sculo, o que se tornou o mito da apario de Cristo a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique: de certido de nasci-mento providencial de Portugal, hipostasiado como selo divino da fundao, metamorfoseou-se, do liberalismo at hoje, numa relquia arcaica no j ensinada nas escolas do ensino bsico. Orgulhosamente, se a vitria europeia de Portugal se consumar, ter sido a gerao nascida entre 1940 e 1960 a matar D. Sebas-tio pela segunda vez.

    Em 1580, com a perda da independncia poltica, Portugal conquista a independncia mtica: torna-se um pas cultural-mente carregado de desejo e de sonho. Entre o reinado de D. Afonso Henriques e finais do sculo XVI conquistmos definiti-

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  • vmente essa capacidade de viver menos em funo do presente e mais do passado e do futuro, corporizando estas duas dimen-ses da histria na figura de D. Sebastio, ou - na permanente falta deste - em cada poltico ou heri cuja oratria encantada substitua a crua realidade. Portugal permaneceu bloqueado naquele fatdico ano de 1578. A imagem do rei desaparecido ficou pairando como um fantasma no imaginrio portugus e todos e cada um dos nossos actos colectivos so submetidos ao crivo da comparao com o Portugal da Expanso. A sombra de Alccer Quibir estende-se por todo o pas, avoluma-se e escu-ra-se, esmagando a possibilidade de ressurreio, o Imprio abandonado sua sorte desde D. Joo III, prossegue por si, ora obedecendo a interesses castelhanos, ora desafiado por interes-ses holandeses, franceses ou ingleses; Pernambuco e Maranho so dados por perdidos pela Coroa e recuperados por ingentes esforos dos prprios colonos braslicos. Tal como Peregrinao, de Ferno Mendes Pinto, O Soldado Prtico, de Diogo do Couto, retrata a podrido espiritual prevalecente na zona oriental do Imprio, narrativas s entendveis como expresso de um Im-prio deriva.

    Com efeito, s no incio deste momento histrico (sculo XVII) se levanta a distino entre a cultura portuguesa e a cultura europeia. Por via da autonomia das comunas italianas renascen-tistas, do progresso mercantil europeu suscitado pela segunda Expanso Ultramarina, pela revoluo cientfica operada na Europa desde os finais do sculo XVI, com Bacon, Coprnico, Galileu, Harvey, Descartes, Kepler, desenha-se uma Europa rica, culta e progressiva, protestante, defensora da separao entre o poder do Prncipe e o poder da Igreja, contraponto a uma Europa absolutista e contra-reformista, de que a Espanha de Carlos V e dos Filipes e Portugal de D. Joo III se tomam como exemplos paradigmticos. O squito cultural e cientfico levado pelo conde Maurcio de Nassau para Pernambuco (pintores, cosmgrafos e astrlogos ou astrnomos, zologos e botnicos, arquitectos militares e civis, engenheiros de portos) constitui um corte ci-vilizacional no triste territrio brasileiro at ento ocupado pela explorao intensa da cana-de-acar pelos reinis portugueses, dotados de exclusivas preocupaes religiosas e mercantis. De

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  • facto, no justo momento histrico em que a Europa desenha a trao forte os contornos de uma nova e requintada civilizao ( uma mercantilista, liberal, cientfica e politicamente regalis-ta, prenncio da futura soberania dos parlamentos e senados), Portugal, que se encontra na origem deste novo mundo, sofre o entorse de um bloqueio mental ou, melhor, sofre uma cristaliza-o da sua evoluo histrica, submetida a interesses espanhis e a ditames eclesisticos da vertente do cristianismo ligada Igreja Catlica contra-reformista. As duas palavras cientficas que tinham feito o Portugal dos Descobrimentos - descobrir e inovar - desaparecem do lxico portugus, substitudas por outras duas inspiradas pela Igreja: vigiar e punir. Se a cultura europeia se mercantiliza e cientifiza, descobrindo a armadura de "fbricas" mecnicas no corpo do homem e sistemas objectivos e regulares nos cus do firmamento, matematizando ambos, a cultura portuguesa e o homem portugus atravessam o sculo XVII ora copiando modelos cultos espanhis (poesia, narrativa, teatro...), ora registando avulsamente (cronistas, missionrios, jesutas...) as novidades presentes nos territrios e povos do Imprio, ora, relembrando a antiga magnificncia, levantada no arquiprojecto de padre Antnio Vieira designado por Quinto Im-prio do mundo. Com efeito, entre 1580 e o final do sculo XVIII, a cultura portuguesa desdobra-se no levantamento avulso, por iniciativa de cada autor, do inventrio das descobertas do Imp-rio (Diogo do Couto, frei Joo dos Santos, frei Salvador Vicente, os jesutas Antnio de Andrade e Bento de Gis...), levando aos quatro cantos do mundo a cultura europeia dos sculo XV e XVI, isto , a cultura europeia dos dois sculo anteriores, totalmente em desarmonia com a nova cultura europeia racionalista, expe-rimental, cientfica e antiescolstica dos sculos XVII e XVIII, exactamente aquela que Maurcio de Nassau transporta nos seus barcos quando ocupa o Pernambuco. So duas faces da Europa a expandir-se, a primeira, a nossa, a da aurora da Europa moder-na; a outra, a da Europa matura. No cmputo histrico, perdeu a primeira, perdeu Portugal.

    justamente na aurora deste novo tempo histrico que emerge a relao conflituante entre o intelectual portugus e o Estado. Nesta relao, o intelectual, afastado das institui-

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  • es que regem poltica e socialmente o todo de Portugal e em explcita oposio a estas, por elas perseguido ou delas volun-tariamente ausente e distante, sofre na sua vida individual o drama existencial da ptria, dividida entre um corpo coeso de polticos e funcionrios, reitor do destino conjuntural da nao, dominando os rituais do poder e dos costumes, e um grupo culturalmente minoritrio que exige para Portugal um modelo social outro que, posteriormente, passado o tempo de uma, duas geraes, se revela como salvador. Cumprindo a sua funo, o intelectual, de actividade social marcante na histria de Portu-gal, no tem sido o erudito, o estudioso, o acadmico, ao modo de Descartes ou de Kant, construtores de novos sistemas teri-cos do mundo, que posteriormente influenciam todas as esferas da actividade humana, revolucionando a sociedade, mas aquele que no seu destino individual, no seu sofrimento existencial e na sua obra, habitualmente criada em condies pungentes ou dramticas, se oferece como sentido de uma alternativa ptria, exprimindo uma alternativa social e cultural que posteriormen-te se revela mais acertada. A relao intemporal entre o intelec-tual portugus e as instituies socialmente dominantes podem resumir-se em trs momentos paradigmticos: 1) uma fase de aproximao, de empenhamento e de voluntria adequao ou de tentativa de transformao do destino geral de Portugal; 2) por motivos circunstanciais, que muito diferem de autor para autor, vinculando-o ao seu tempo, o intelectual portugus so-fre, em certo momento, um profundo desencantamento com o estado conjuntural do pas, cuja consciencializao o fora ou a desistir de transformar Portugal, interiorizando-se ou exilando--se no estrangeiro, abandonando o seu antigo empenhamento, concentrando-se na sua obra esttica ou filosfica individual; ou a reiterar o seu compromisso de transformar Portugal, criando uma obra alternativa viso social e poltica dominante; 3) no final da vida ou aps a morte, a obra do intelectual portugus recuperada pelas instituies dominantes do Estado, da Univer-sidade ou da Igreja, que a estatui como um dos mais salientes vectores da cultura portuguesa, passando ento a ser to santifi-cada pelas novas geraes escolares quanto antes fora abomina-da e desprezada pelas anteriores.

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  • Este triplo momento, possuidor de uma configurao unl-versalizante, mas tambm adequada existncia concreta de cada intelectual portugus, tem constitudo, de certo modo, de\'ido contnua repetio das condies sociais e polticas ge-rais conjunturais desde os finais do sculo XVI, uma invarivel recorrente da cultura portuguesa. Em sntese, tm estas condi-es polticas e sociais gerais obedecido a um modelo cultural e civilizacional de manifesta fidelidade a princpios polticos e re-ligiosos reinantes na Europa do Sul desde o final dos Descobri-mentos - e desde este perodo a intelectualidade portuguesa tem provocado rupturas com esta viso geral do mundo, buscando alternativas que tanto se tm identificado com o racionalismo presente na Europa Central e do Norte quanto, por vezes, com gste divergente, como no caso de Agostinho da Silva, buscando alternativas genuinairiente portuguesas.

    O alheamento, e mesmo a contraditoriedade, entre a viso terica pessoal criada pelo intelectual portugus e a mentalida-de portuguesa dominante encontra a sua gnese e o seu princ-pio modelar em S de Miranda. Com efeito, este ter frequen-tado os Estudos Gerais, onde se doutorou, e onde ter exercido funes docentes, integrando-se posteriormente no ambiente social do pao de Lisboa, praticando as formas poticas domi-nantes na Corte. Numa longa viagem pela Espanha e pela It-lia S de Miranda conviveu com nveis superiores de requinte civilizacional, nomeadamente no Norte de Itlia. No regresso, estanciando junto de D. Joo III em Coimbra, ter-se- surpreen-dido pelo baixo nvel de maneiras civilizacionais e pelo alto n-vel de interesse financeiro e patrimonial dos fidalgos cortesos portugueses, exteriorizando uma real inadaptao ao ambiente reinante na Corte, isto , S de Miranda entra em conflito com a mentalidade dominante nas instituies portuguesas e com o prprio ambiente poltico. Isola-se, busca o exlio interior _ interior no duplo sentido tanto de isolamento no "interior" do pas quanto no de isolamento no "interior" de si prprio. Esta atitude de S de Miranda constituir-se-, doravante, como uma das vertentes do paradigma existencial portugus: o afas-tamento voluntrio dos centros oficiais de deciso poltica e cultural, a desistncia expressa de nestes intervir, o isolamento

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  • interno, buscando num local rotineiro e pacfico a regenerao espiritual por que vai construindo a sua obra, num ensimes-mamento prprio que se estatui como exlio no interior de si mesmo, gozando, tanto quanto lhe permitem as possibilidades polticas conjunturais do pas, uma urea mediocritas que toma para si como forma estrutural e existencial de vida. Com efeito, um ano aps o regresso da Itlia culta e renascentista, vanguar-da europeia da arte, da tcnica e da cincia, resultado do duplo legado greco-romano e da cria medieval papal, S de Miranda incompatibiliza-se com a elite dirigente de Portugal, os modos destas, a sua viso do mundo, o seu calculismo, o seu privilgio concedido ao interesse material, e abandona a Corte, refugian-do-se na regio de Cabeceiras de Basto, Entre-Douro-e-Minho, onde viveu cerca de trinta anos (1528-1558), carteando-se com e respeitando a famlia real, mas afastando-se decididamente dos cortesos e da nova orientao poltica do reino de resfriamento do Humanismo europeu por via do bloqueamento da reforma da Universidade de Coimbra, do manifesto desejo de transfor-mao do Imprio em emprio comercial e do afunilamento da conscincia religiosa por via da recente instaurao da Santa In-quisio em Portugal. Centro de uma pequena corte de aldeia, o exlio interior de S de Miranda evidencia-se como uma atitude funda e recorrente do comportamento reactivo do intelectual portugus; um exlio interno e interior, que o protege dos sinais polticos decadentistas, repressores e isolacionistas de Portugal face Europa culta do Centro e do Norte, vivendo na solido e no silncio poltico uma espcie de autoculpabilizao ou ex-piao do que Portugal poderia ser ou ter sido (tendo todas as condies para isso), mas no ou no foi devido brutalidade de rapinagem econmica e especulativa das classes economi-camente intermdias e da funda ignorncia histrica e cultural das elites polticas portuguesas.

    Assim, esta vertente do paradigma mental, existencial e cultural do intelectual portugus evidencia-nos, primeiro, um momento social de participante empenhamento cultural, po-ltico, filosfico, esttico, cientfico; segundo, um momento de fundo conflito entre os ideais pessoais regeneradores do pas e as ideias cristalizadas nas instituies culturais e polticas.

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  • criadoras e reitoras da mentalidade conjuntural e popular de Port sal' terceiro, como reaco, um momento de abandono, de desistncia de intentar reformar esttica, religiosa, social, cult ralmer''^ '^ o pas, evidenciando um cruzar de braos e um sentimento individual de impotncia face ao carreiro maiorit- desenho previsvel das coisas, a um futuro colectivo que

    lhe Darece inelutvel e onde, sobretudo, domina o gosto comum da Dopulao, no raro disseminado pelas elites e por estas d f ndido. Este terceiro momento paradigmtico no raro vivencialmente sofrido pelo intelectual portugus segundo um cunho penitencial, no sentido de, sabendo-se de gosto e viso diferentes dos da maioria da populao, uma autocondenao ou autoculpabilizao por no conseguir esclarecer e rectificar o eosto comum do pas, amargurando-se e penalizando-se inte-riormente, transformando o seu afastamento dos centros decis-rios em um verdadeiro degredo ou exlio.

    S' de Miranda abandonou Lisboa e Coimbra, a corte e a nob za senhorial, assumindo conscientemente que s assim,

    , gos centros corruptos e corruptores do pensamento, po-deria construir a sua obra potica. Como referimos, esta atitude individual de S de Miranda - o primeiro intelectual portugus a viver existencialmente os trs momentos referidos - comporta

    dimenso unlversalizante no seio da cultura portugus, j que em outros tempos, outras conjunturas histricas e por via de outros condicionalismos sociais e individuais, a sua atitude evidencia-se paradigmtica, repercutindo-se na existncia de inmeros outros intelectuais portugueses: Matias Aires, Alexan-dre Herculano, Antero de Quental, Manuel Laranjeira, Teixeira de Pascoais, Sampaio Bruno, Jos Rgio, Almada Negreiros, An-tnio Srgio, Slvio Lima, de certo modo Joaquim de Carvalho, os Marinho, Miguel Torga..., e sobretudo Fernando Pessoa,

    na sua ltima dezena e meia de anos de vida, transfigurou Lisboa principalmente o quarteiro da "Baixa", em terra de ex-lio interno e interior. A vida de Fernando Pessoa ps-escndalo de Orpheu (1915), figura-se como mximo exemplo desta verten-te existencial do intelectual portugus.

    neste modo, um importante ncleo de autores criador de inmeras obras de maior relevncia na cultura portuguesa

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  • viveu e sobreviveu contra e paralelamente s formas institucio-nais e conjunturais dominantes da cultura portuguesa. De Ma-tias Aires, refugiado nos ltimos anos de vida na sua quinta da Agualva (Cacm), a Alexandre Herculano, refugiado em Vale de Lobos, a Manuel Laranjeira, vivendo uma existncia cptica e pessimista em Espinho, escrevendo uma obra amargurada que rpido o conduziu ao suicido, a Teixeira de Pascoais aps o abandono da direco de A guia, acolhido em Gato, e a Jos Rgio e Miguel Torga, recolhidos em Portalegre e Coimbra. En-tre todos, distinguem-se Antero de Quental e Fernando Pessoa, o primeiro revolucionando potica ("Questo do Bom Senso e do Bom Gosto"), cultural (as "Conferncias do Casino") e politi-camente (ligao portuguesa Internacional dos Trabalhadores e fundao do Partido Socialista) Portugal, conclui pela existn-cia de um bloqueamento institucional que fere de morte todos os que ousam afrontar as instituies portuguesas dominantes, isola-se, peregrinando por vrias terras, suicidando-se um ano aps a derradeira tentativa de reformulao de Portugal atravs da criao da Liga Patritica do Norte; o segundo, aps o fracas-so total dos dois nmeros publicados de Orpheu, no se suicida fisicamente, como o seu ntimo amigo Mrio de S-Carneiro, mas "suicida-se" socialmente, vagueando por quinze quartos alugados em vinte anos de existncia solitria, embebedando-se dia a dia de aguardente e poesia, morrendo pouco depois de ter dado estampa uma nova viso da histria de Portugal atravs dos versos de Mensagem (1934). Antero interiorizou a decadncia de Portugal, que sabiamente tinha analisado em 1871 em Causas da Decadncia dos Povos Peninsulares, forando a sua decadncia pessoal, maravilhosamente registada no volume dos Sonetos, e Pessoa, do mesmo modo sentindo aquela decadncia desde o seu regresso da Africa do Sul aos dezassete anos, incorporou-a num arrastamento de intelectual solitrio, abdicando de vida pblica, vivendo como se para tudo no existisse excepto para a sua obra. Constituem, Antero e Pessoa, os dois maiores exem-plos da primeira vertente existencial do intelectual portugus.

    A vida de Agostinho da Silva obedece a uma outra vertente - a da opo pelo exlio externo aps o conflito registado entre a viso pessoal do autor e a viso colectiva gravada com o selo

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  • do poder institucional. Sendo o paradigma o mesmo, existe jg-ualmente um primeiro compromisso activo com Portugal, uma vontade de converso das instituies e das pessoas no gentido perspectivado pelo intelectual portugus, habitualmen-te expressa na primeira fase da sua obra, como aproximao ou contestao (ou as duas) das instituies dominantes; rpido, a insatisfao cultural cu poltica (ou as duas) vai crescendo ga-lopantemente, emerge o choque, circunstancial ou premedita-damente acontecido, o intelectual sofre amargamente os efeitos este choque, afastado ou afasta-se (ou as duas hipteses), si-lencia-se ou silenciado, as portas fecham-se-lhe, quer publicar, no lho consentem, quer ensinar, probem-no, marginalizado ou preso e deportado, exilado ou exila-se voluntariamente. Qe qualquer que seja a forma, quaisquer que sejam as circuns-tncias individuais, o exlio torna-se o seu destino pessoal, sofrendo duplamente a amargura de uma ptria a seus olhos torta e incorrigvel (como os intelectuais da primeira vertente) e a amargura da ausncia desta, duplo hmus donde frutificar a sua obra posterior, cruzando e unindo o lirismo melanclico motivado pela ausncia da ptria ao revolucionarismo cultural das suas ideias de endireitamento da histria de Portugal. Ao exlio (externo) acresce, no raro, um exlio interior, psicolgico, elevando as mltiplas carncias econmicas sofridas e a consci-ncia da insatisfao pessoal figura de um calvrio resignado como resgate do estado decadentista de Portugal.

    O exlio externo (na Europa ou peregrinando nos longes do Imprio) tem sido, desde o sculo XVI, a marca mais pertinente do intelectual portugus. Uns, no deixando de se preocupar com Portugal, desinteressam-se do destino poltico deste, bus-cando no estrangeiro ou na solido do Imprio a realizao da sua obra numa atmosfera social mais propiciatria: Garcia da Horta, Francisco Sanches, Cames, o padre jesuta Incio Monteiro e Manuel Teixeira-Gomes, mas tambm Damio de Gis, Adolfo Casais Monteiro, Manuel Valadares, Fidelino de Figueiredo, Manuel Rodrigues Lapa, Fernando Gil, bem como inmeros pintores portugueses do sculo XX exilados em Paris e Londres (Vieira da Silva, Paula Rego, Lourdes de Castro, Cos-ta Pinheiro, Ren Bertholo, Jorge Martins...).

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  • Outros, representados pelos casos modelares de Cavaleiro de Oliveira, Bocage, Ea de Queirs, Jorge de Sena, Jos-Augus-to Frana e Eduardo Loureno, intentam, segundo o seu mnus esttico, descrever com realismo o "reino cadaveroso" e a "vil e apagada tristeza" dominante em Portugal. Constitui este grupo o exemplo do mais impiedoso intelectual portugus, cuja obra analisa, ao bisturi do realismo da sua poca, o conjunto de mal--formaes polticas e culturais que concorrera para enfermar Portugal de um secular atraso relativamente aos pases da Eu-ropa Central. Entre todos, a obra de Ea de Queirs, no campo da fico, e a de Eduardo Loureno, no campo do ensaio, cons-tituem-se como as duas obras mais relevantes desta vertente do paradigma do intelectual portugus.

    Finalmente, ainda no campo do exlio externo, emerge o in-telectual que exprime na sua obra, no o Portugal do presente, o Portugal por si vivido, mas o Portugal desejado, reflexo de um passado glorioso, agora actualizado e projectado num Portugal futuro, pelo qual o intelectual luta, dedicando-lhe a sua exis-tncia. Antnio Ribeiro Sanches, Jacob de Castro Sarmento, D. Lus da Cunha, Lus Antnio Verney, Teodoro de Almeida, no campo do racionalismo e do modernismo europeus, e Padre An-tnio Vieira e Agostinho da Silva, no campo do espiritualismo e do providencialismo genuinamente portugueses, constituem--se como as mais importantes figuras deste tipo de intelectual. Ainda que de provenincias filosficas e culturais diferentes e, at, contraditrias, todos comungam de um desejo de redeno futura da ptria, de crtica e de subverso das instituies domi-nantes, substituindo o Portugal real pela projeco histrica de momentos exaltantes do Portugal passado, fundindo o conte-do destas duas dimenses do tempo na realizao futura de um novo e glorioso Portugal. Se, no campo do racionalismo, Lus Antnio Verney se evidencia como a personificao deste tipo de intelectual portugus, padre Antnio Vieira e Agostinho da Silva, no campo da tradio providencialista, assumem ambos idntica personificao, o primeiro por via do majestoso e impe-rial uso da Lngua Portuguesa, o segundo por via da criao, em plena poca de dominncia do materialismo e de omnipotncia do dinheiro, de uma alternativa espiritualista para Portugal,

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  • ambos sendo, simultaneamente pensadores do Imperio, o pri-meiro de um Imprio territorial, militar e religioso, o segundo de um Imprio cultural e espiritual.

    Fundado nas obras de Cames, Padre Antonio Vieira e Fer-nando Pessoa, entroncado na viso milenarista europeia e na viso nacional sebastianista, a obra filosfica e cultural de Agos-tinho da Silva constituiu-se como uma das mais fundas e per-manentes alternativas especulativas ao dominio institucional do racionalismo, do cientifismo e do positivismo europeus, que tm maioritariamente influenciado a cultura portuguesa desde os finais do sculo XVIII, e corresponde, decerto, a uma especifi-cidade cultural portuguesa desde a lenda da apario de Cristo a D. Afonso Henriques na batalha de S. Mamede e, sobretudo, desde a criao de as Trovas de Bandarra e da derrota nacional em Alccer Quibir, em 1578. Subtrado deste circunstancialismo histrico e elevado a esquema mental unlversalizante, o provi-dencialismo portugus, de que Agostinho da Silva foi mximo representante na segunda metade do sculo XX, alimenta e per-sonifica-se nas obras dos trs maiores escritores de lngua por-tuguesa (Cames, Antnio Vieira e Fernando Pessoa), gozando igualmente de amplo privilgio nas obras de D. Joo de Castro neto, frei Bernardo de Brito, frei Sebastio de Paiva, Teixeira de Pascoais, Sampaio Bruno, Augusto Ferreira Gomes, Antnio Quadros, Antnio Telmo, Dalila Pereira da Costa, Manuel Joa-quim Gandra, e, de certo modo, Paulo Borges, mas tambm, numa vertente laica e vanguardista, do ltimo Antnio Jos Saraiva. O providencialismo no , em Portugal, exclusiva e intrinsecamente religioso; pelo contrrio, as diversas revolues que, de cinquenta em cinquenta anos, o pas tem sofrido desde 1820 comportam sempre - e exultantemente -, uma vertente sagrada e escatolgica^ de fundo providencialista e milenarista, pela qual os seus dirigentes e participantes sonham ser a "hora!" ou o momento mtico refundador ou recriador do mundo, como se de novo se instaurasse o momento colectivamente pulsional das Descobertas ou se definitivamente se instaurasse o Portu-gal que nunca houve. Nesta vertente da cultura portuguesa, Agostinho da Silva estabelece a ponte, por um lado, entre o providencialismo clssico de Cames e padre Antnio Vieira,

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  • o primeiro fundado em parmetros medievais e renascentistas e o segundo em parmetros bblicos e missionrios, ambos pos-tulando um quinto-imperialismo das armas e das conscincias, o providencialismo potico de Fernando Pessoa e Augusto Fer-reira Gomes da primeira metade do sculo XX, fundado j num quinto-imperialismo da lngua e da cultura, e, por outro lado, a nova mentalidade europeia de Portugal.

    Paixo de f e paixo potica fizeram nascer Portugal. A primeira gerou o esprito de cruzada durante o longo perodo da Reconquista, entre os reinados de D. Afonso Henriques e D. Afonso 111; a segunda, dominante ao longo do reinado de D. Dinis, sintetizou a mentalidade colectiva dirigente, cristalizan-do-a na poesia. Numa mo a espada, na outra a pena - as duas condensando um esprito lrico, que tanto intenta reconverter o outro pelo domnio da f (o mouro, o africano, o ndio, o chi-no...) quanto se exprime sentimentalmente pela poesia. Neste sentido, o homem portugus nascente menos atreito a jogadas palacianas e a enredos cortesos e mais disposto s expedies militares de expulso ou reconverso dos infiis, envolvendo estes no grande aafate por que os oferece a Deus num lirismo pungente de f. F e lirismo constituram a dupla matriz por que emergiu a cultura portuguesa neste canto peninsular, quase nsula recndita da Europa, mas Europa.

    A guerra de reconverso religiosa, evidenciando um por-tugus obsessivamente tocado pelo sagrado, permanecer at ao sculo XX como um dos traos profundos da cultura por-tuguesa, quebrando o seu nimo tolerante e determinando-a como uma das culturas mais absolutistas da Europa, sempre motivada a postular o outro, no como contendor, mas como inimigo, liberal ou absolutista, republicano ou monrquico, manico ou eclesistico, conservador ou progressista. O fer-vor purificador do Tribunal da Santa Inquisio, o fervor ra-cionalista do Marqus de Pombal, no menos desvairado que o anterior fervor eclesistico, ambos prendendo, torturando, n\atando pelo fogo ou degredando os seus inimigos; o fervor monrquico absolutista e o fervor salazarista, duas diferentes espcies da mesma altivez por que se perspectiva o outro, tra-

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  • A -o absorvendo-o, eliminando-o, contrasta, em absoluto, ^^^ ,v,'=,iP
  • De facto, quanto maior o estado de decadencia do Imprio - e mais os negocios individuais superavam a ordem do Estado -, mais crescia nas conscincias catlicas a necessidade de um re-torno ordem inicial evangelizadora dos Descobrimentos. Com efeito, o quase limite mximo atingido pela expanso do Imprio e a incapacidade administrativa e militar de um controle rigoroso de todas as suas reas territoriais, bem como a apetncia mercan-til de povos europeus que iriam desencadear uma segunda ex-panso (Holanda, Inglaterra, Frana), tinham criado, no reinado de D. Joo III, uma desorientao social e mental que se exprimiu tanto no arrojo da modernizao da Universidade de Coimbra (posteriormente travada), quanto na insistncia do estabeleci-mento da Inquisio como modo oficial de filtrar e de eliminar as doutrinas exteriores oficialidade eclesial catlica.

    A educao herica, ortodoxa e absolutista de D. Sebastio, fundada nos ideais de um proselitismo catlico e de uma viso magnnima da histria de Portugal, gerara na estrutura mental do jovem rei tanto o desejo de emulao dos antigos feitos dos portugueses quanto a necessidade de o provar atravs de uma empresa inesquecvel que pudesse fazer retornar Portugal aos antigos tempos de D. Joo II e D. Manuel I.

    O desastre de Alccer Quibir, o estado de decapitao fi-nanceira do reino e o enigma que ficara a pairar sobre a morte de D. Sebastio, seguidos da perda da independncia, geraram uma miscelnea cultural e social suficiente capaz de gerar a criao popular de uma vaga esperana de que, se D. Sebastio de facto no morrera, seria presumvel que, depois de expiar o seu erro numa peregrinao Terra Santa, regressasse para restabelecer em concreto o esprito de justia e de bem-estar. A prova da existncia generalizada pelo pas desta esperana messinica concentrada em D. Sebastio d-se justamente pelo aparecimento de quatro falsos D. Sebastio entre 1584 e 1602. Ora, justamente neste ltimo ano que frei Bernardo de Brito faz publicar a Crnica de Cister, onde afirma ter encontrado, em 1597, no cartrio do mosteiro de Alcobaa, um pergaminho em latim jurado por D. Afonso Henriques e assinado por D. Teo-tnio, confessor do rei, e pelos bispos de Braga e de Coimbra, em que se narra a apario e anunciao de Cristo a D. Afonso

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  • Henriques na noite anterior batalha de Ourique. Neste per-gaminho narra-se que Cristo aparecera em sonho a D. Afonso Henriques, enviando-lhe posteriormente um velho ermito que lhe dissera:

    Senhor, tende um nimo cheio de confiana, porque sem dvida vencereis no sereis vencido nesta batalha; sois particular mimoso de Deus e sobre vs e vossos descendentes tem postos os olhos de sua misericrdia at dcima sexta gerao, na qual se diminuir uma descendncia, e nela assim diminuda e quase extinta, por ele os olhos e ver o que mais lhe convm...

    O prprio Cristo anuncia a D. Afonso Henriques:

    Tem confiana, Afonso, porque no s vencers esta batalha, mas todas as mais em que pelejares contra os inimigos da Cruz. Achars tua gente pronta e animosa para a batalha; e pedindo-te que entres na peleja com nome de rei, no lhe ponhas dvidas em nada, mas concede livremente quanto te pedirem, porque eu sou o fundador e o destruidor dos Imprios e Reinos, e quero fundar em ti e em tua gerao um Imp-rio, para que meu nome seja levado a gentes estranhas. E para que teus descendentes conheam de cuja mo tm o Reino, compors o escudo de tuas armas do preo com que eu comprei o gnero humano (e so as cinco chagas), e daquele porque fui compra