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Sessão temática Cidade - 911
MOSAICOS URBANOS:
DO PROJETADO AO APROPRIADO
OS CASOS GUAJUVIRAS E MORADA DO VALE I
William Mog1
Resumo
O artigo pretende analisar as formas de transformação do espaço habitacional pelos
atores sociais no cotidiano da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). Para
alcançar esse objetivo, pretende-se realizar um estudo entre dois momentos temporais
importantes na consolidação de loteamentos habitacionais: o projeto espacialmente
concebido e a apropriação socialmente vivida. Serão abordados os loteamentos
Guajuviras em Canoas e Morada do Vale I em Gravataí como lócus dessa análise
comparativa. O método a ser empregado se baseia em imagens do passado e do presente
de ambas as localidades. A intenção é enfatizar a importância da correspondência
estrutural entre o projetado e o apropriado na constituição de espaços urbanos com
interfaces entre o público e o privado adaptáveis às necessidades das práticas cotidianas.
Palavras-chave: transformação, loteamentos habitacionais, práticas cotidianas.
Introdução
O artigo pretende resgatar fragmentos temporais a partir de suas sobreposições
em mosaicos espaciais na atualidade. Entende-se que através de uma periodização que
considere os diferentes momentos históricos vivenciados por um espaço seja possível
compreender o processo de formação da sua estrutura configuracional sócio-espacial e a
1 Instituição de origem: Universidade Federal do rio Grande do Sul (UFRGS); Arquiteto e Urbanista;
filiação atual com a UFRGS como mestrando bolsista do Programa de Pós-graduação em Planejamento
Urbano e Regional (PROPUR); e-mail para contato: [email protected].
Sessão temática Cidade - 912
maneira como os agentes sociais desse espaço interagem com o entorno que é a cidade
existente.
Pretende-se abordar autores como Lefebvre (1991, 2001) e Certeau (2014) na
discussão da produção e da apropriação do espaço urbano para em seguida estabelecer
uma relação com a forma urbana segundo Panerai, Castex e Depaule (2013). A intenção
é destacar a importância da maneira como se dá a transição entre o projetado e o
apropriado na consolidação de uma forma urbana.
Para tal, serão abordados dois loteamentos habitacionais produzidos a partir da
política habitacional do Banco Nacional da Habitação (BNH) na década de 1980 na
Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). Esses lugares são o Conjunto
Habitacional Guajuviras em Canoas e o Conjunto Habitacional Morada do Vale I em
Gravataí. A intenção é propor uma análise comparativa tendo em vista que tais
ambientes apresentam situações sócio-espaciais antagônicas na atualidade. Argumenta-
se aqui que apesar de tais loteamentos estarem inseridos em um mesmo contexto de
produção habitacional em massa segundo o viés do lucro a partir de uma maior
produtividade, os lugares apresentam especificidades espaciais distintas. Tais
características emergem da relação entre fragmentos temporais que devem ser estudados
e confrontados, pois podem explicar a atual situação sócio-espacial contratante desses
ambientes.
Articular-se, como método analítico, a lógica espacial dos projetos originais com
a lógica de apropriação social a partir do confronto entre imagens dos casos estudados
visando uma comparação entre dois momentos históricos: o da implantação formal do
projeto e o da ocupação social do espaço. Enfatiza-se a importância da correspondência
entre espaço projetado e espaço apropriado do ponto de vista estrutural na sustentação e
na manutenção das relações sociais a partir de interfaces entre o público e o privado.
Entende-se que através dessa aproximação entre dimensão espacial do projeto e a
dimensão social da apropriação do espaço projetado seja possível determinar as formas
de integração do morador com o seu lugar e a partir deste com a cidade.
Entre o concebido pela estratégia e o vivido pela tática
O espaço urbano enquanto lugar de encontro vivencia uma contradição constante
entre o seu valor de troca e o seu valor de uso dentro de um agrupamento social.
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Portanto, é inviável pensar a cidade contemporânea como uma obra sem considerar o
seu aspecto de produto, pois ambos estão presentes no horizonte das práticas sociais
(LEFEBVRE, 2001, p. 12). A questão que se apresenta então não deve focar nem na
produção do espaço enquanto produto nem na apropriação do espaço enquanto obra,
mas na relação dialética entre os dois extremos, pois um invariavelmente irá influenciar
o outro.
A produção do espaço urbano segundo uma lógica capitalista pode ser
considerada como uma prática dominante desenvolvida por agentes hegemônicos em
uma sociedade. Portanto, é uma prática que por principio busca o controle e a
racionalização do cotidiano sócio-espacial através do espaço fabricado, pois o interesse
principal nesse processo está na produtividade e no lucro resultante. Contudo, o espaço
urbano não é produzido apenas pelos grupos que possuem o comando sobre modo de
produção capitalista, pois uma vez ocupado e apropriado, tal espaço passa por uma nova
produção em função das necessidades dos consumidores (CERTEAU, 2014, p. 38).
É exatamente nessa passagem entre o produto e o seu consumo que surge o
paradoxo do espaço urbano, pois quem produz não está interessado em quem consome e
quem consome em geral não segue as regras de quem produz. Segundo Lefebvre (1991,
p. 166), o dominado e o apropriado deveriam caminhar juntos na consolidação do
espaço urbano. Contudo, a história da acumulação capitalista também é a história da
separação de ambos. Logo, há um distanciamento entre o ator que projeta o espaço
urbano enquanto produto e o ator que se apropria do espaço urbano enquanto obra.
Dessa relação conflitante entre atores com interesses antagônicos surge um novo
espaço reproduzido pelas táticas vividas do cotidiano contra as estratégias concebidas
do poder dominante (CERTEAU, 2014, p. 45). Essa reprodução recorrente no espaço
urbano não é destrutiva em absoluto, pois nenhuma tática irá romper completamente
com uma estratégia. Nenhum espaço produzido pode ser apagado totalmente em função
das apropriações posteriores.
O que ocorre na realidade é uma interpenetração de espaços, de ritmos e de
oposições que se manifestam no cotidiano vivido (LEFEBVRE, 1991, p. 164). O espaço
dominado e produzido só ganha sentido quando é apropriado pelas práticas cotidianas
que o transformam de espaço fechado, estéril e vazio em espaço com vida urbana e com
uma memória para ser contada. O espaço concebido passa a ser espaço vivido, pois as
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representações gráficas do espaço no projeto original se transformam em espaços
operacionais de representação no cotidiano apropriado (LEFEBVRE, 1991, pp. 38-39).
Ao manipular o espaço urbano com base em um fundo produzido, as operações
silenciosas das práticas cotidianas começam a escrever a história social do espaço e
dessa forma a resgatar a relação entre as pessoas no espaço. Dessa interação ao mesmo
tempo conflituosa e necessária surgem mosaicos urbanos espaciais e temporais.
Portanto, o que vale a pena analisar na relação entre o produzido estrategicamente e o
apropriado taticamente são as formas de transformação do espaço urbano, pois estas
guardam as origens das especificidades sócio-espaciais dos lugares diferenciando-os.
Dispositivos semelhantes, jogando com relações de forças desiguais, não
geram efeitos idênticos. Daí a necessidade de diferenciar as “ações” (no
sentido militar do termo) que se efetuam no interior da rede de consumidores
pelo sistema dos produtos, e estabelecer distinções entre as margens de
manobra permitidas aos usuários pelas conjunturas nas quais exercem a sua
arte (CERTEAU, 2014, pp. 43-44).
Apesar de um mesmo modo de produção e de uma política padronizadora, os
espaços resultantes em função das práticas cotidianas podem ser contrastantes em si.
Portanto, uma análise criteriosa se faz necessária, pois as generalizações precipitadas
podem distorcer realidades específicas que acabam sendo desconsideradas. Para Certeau
(2014, p. 45), as análises estatísticas homogêneas devem ser complementadas pelas
análises históricas das operações heterogêneas, pois enquanto as primeiras dão conta do
material das práticas as segundas dão conta das suas formas. Portanto, a questão central
do artigo não está em o que se modifica com as práticas, mas de que forma acontecem
as modificações a partir das práticas.
Ao observar a problemática do espaço urbano segundo essa perspectiva, um
encontro entre o passado e o presente se estabelece, pois para compreender a maneira
como o espaço se transforma no presente é necessário entender como ele era no
passado. Logo, a maneira como o espaço se modifica está diretamente relacionada com
a estrutura espacial original do espaço produzido e de como as ações sociais interagem
com ela. Assim, tais alterações que envolvem atores sociais em um cenário espacial
podem ocorrer contra a estrutura do projeto ou a partir da estrutura do projeto. Essa
distinção na forma como se dá a ruptura do original pelo atual é essencial no acesso das
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pessoas à vida urbana, pois essa diferença pode potencializar uma segregação ou uma
integração sócio-espacial das pessoas com seu espaço (LEFEBVRE, 2001, p. 22).
Em função da superposição de ações no espaço, um ambiente integrado segundo
o projeto urbano pode condicionar, com o tempo, uma integração sócio-espacial dos
moradores com o local e a cidade. Tal integração é objetivada e potencializada em
função das formas de transformações sócio-espaciais que apresentam uma
correspondência estrutural entre o espaço projetado e o espaço apropriado nas interfaces
sócio-espaciais atuais. Ao contrário, uma área segregada interna e externamente, do
ponto de vista do projeto urbano, tende a condicionar uma segregação sócio-espacial
dos seus moradores com o espaço local e com o entorno. Nesse caso, a
complementaridade entre o meio físico projetado e o meio social apropriado inexiste,
pois a estrutura física original é necessariamente negada para atender as práticas
cotidianas sociais gerando prováveis conflitos espaciais.
Em ambas as situações o espaço original é rompido. Contudo, a diferença está na
continuidade entre as estruturas projetadas no passado e as estruturas apropriadas no
presente. Essa distinção contribui com a construção de um mosaico de experienciais
espaciais heterogêneas na atualidade. Para Certeau (2014, p. 47), a prática de habitar é
uma dessas práticas que podem romper com o espaço contra ou a partir da estrutura
originalmente produzida. A dimensão do espaço onde se localiza a habitação é essencial
para a construção do imaginário do homem ordinário responsável pela quebra da
racionalidade sistemática imposta de cima para baixo. Portanto, as possibilidades de
manipulação do espaço habitacional passam a ser fundamentais para a inserção dos seus
habitantes e usuários nas dinâmicas urbanas.
Entre o espaço habitacional e sua forma urbana
O espaço habitacional ou o bairro é o intermediário entre a moradia e a cidade.
Logo, a forma urbana do contexto habitacional passa a ter um papel relevante nessa
relação tendo em vista que a sua estrutura precisa ser flexível o suficiente para que os
atores sociais possam manipular o seu espaço conforme as suas necessidades. Para
Panerai, Castex e Depaule (2013, p. 202), a coesão do tecido urbano influencia a coesão
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social e é alcançada a partir da articulação entre três lógicas espaciais: a lógica das vias,
a lógica do parcelamento do solo e a lógica das edificações. A relação entre esses três
aspectos da forma urbana configura a estrutura espacial de um lugar que possibilita a
emergência de uma espacialidade quando em contato com atores sociais no cotidiano.
A rua não existe sem as edificações que a configuram, e as edificações
implantadas nos terrenos formam a estrutura da evolução das ruas. Os
espaços têm um status que determina as responsabilidades legais, bem como
os possíveis usos. Os sistemas de referência – a orientação – são geralmente
legíveis, as atividades são mistas, e as modificações são fáceis (PANERAI,
CASTEX e DEPAULE, 2013, p. 202).
O projeto original e a sua estrutura baseada nessas lógicas espaciais que devem
ser indissociáveis passam a representar um papel central na discussão da produção do
espaço urbano. Tais lógicas estratégicas apresentam as condições iniciais para a
materialização de um espaço apropriado e identificado a partir de transformações táticas
que irão acontecer dentro de uma temporalidade. Portanto, o espaço das práticas
cotidianas não está pronto com a implantação do projeto, mas apenas iniciando uma
trajetória temporal e social que pode apresentar conflitos entre atores sociais em
diferentes escalas territoriais da moradia à cidade. Deve-se então pensar o tecido urbano
produzido a partir de uma relação dialética com a vida cotidiana e banal das cidades
(PANERAI, CASTEX e DEPAULE, 2013, p. 203). Do contrário, a dissociação
estrutural entre espaço projetado ou concebido e espaço apropriado ou vivido pode levar
a uma ruptura do meio urbano fragmentando-o (LEFEBVRE, 1991, p. 40).
Dentro desse panorama, certos espaços habitacionais se integram às dinâmicas
da cidade ao transformar suas situações estratégicas originais em novas espacialidades
táticas inseridas no contexto territorial. Entretanto, outros se distanciam das dinâmicas
urbanas em função de expansões fragmentadas que consolidam sucessivas barreiras
territoriais. Tais situações contrastantes criam um mosaico urbano rico em experienciais
antagônicas que se consolidam no tempo e que devem ser estudadas criteriosamente.
Essas distinções que se apresentam no cenário urbano e regional estão
diretamente relacionadas com a maneira como as formas arquitetônicas estão dispostas
no espaço habitacional configurando a forma urbana em função das três lógicas citadas.
Logo, a forma urbana não deve ser analisada de maneira absoluta, mas de maneira
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relacional, pois tal aspecto presente nas dinâmicas dos bairros depende da interação
entre a esfera pública e a esfera privada do espaço que influencia na adaptação de um
lugar. É na relação entre a rua pública e o lote privado que nasce a capacidade de um
espaço estrategicamente projetado se modificar em um espaço taticamente apropriado a
partir das mudanças demográficas, econômicas e culturais (PANERAI, CASTEX e
DEPAULE, 2013, p. 209).
Segundo essa lógica de transformação, o indivíduo faria parte da cidade e a
cidade faria parte do indivíduo em função de uma linguagem urbanística onde os
ambientes fechados e os abertos se completam mutuamente (NETTO, 2007, p. 9). Dessa
linguagem nasce o sentido na arquitetura e no urbano a partir da apropriação social do
espaço. Portanto, é essencial o diálogo entre o homem e o espaço que o circunda para
que o meio urbano tenha a capacidade de se transformar atendendo as demandas das
práticas sociais (NETTO, 2007, p. 10). É necessário um espaço que viabilize a
segurança previsível e a surpresa inesperada na vivência do cotidiano. Logo, o projeto
urbano não pode se limitar às soluções estereotipadas, pois essa alternativa produz uma
forma urbana fechada às mudanças (PANERAI, CASTEX e DEPAULE, 2013, p. 209).
Devem-se estender as soluções para o território e para a sua relação com as
novas edificações tendo em vista as transformações futuras. Logo, o foco da produção
do espaço habitacional como uma dimensão do urbano deve estar no processo de
apropriação e transformação do espaço pelos atores sociais no cotidiano. O projeto do
espaço urbano deve apresentar uma forma urbana aberta às rupturas propostas pelos
moradores e usuários no tempo sem prejudicar a integração destes com o lugar e com a
cidade, mas potencializando essa integração.
Entre o projetado e o apropriado dos mosaicos urbanos
Nas décadas de 1970 e 1980, a Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA)
experimentou um grande crescimento populacional em função do processo de
industrialização. A política habitacional de produção em massa de moradias populares
nos moldes fordistas vinculada às diretrizes do Banco Nacional de Habitação (BNH) e
ao Plano de Desenvolvimento Metropolitano (PDM) de 1973 potencializou a expansão
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urbana da região. Logo, o território passou a ser ocupado por grandes áreas
habitacionais que tinham como objetivo suprir a demanda por moradia além de
impulsionar a economia regional.
Os dois loteamentos analisados aqui foram implantados nesse contexto temporal
e territorial em áreas periféricas dos seus respectivos municípios com subsídios do
BNH. Apesar da mesma gênese histórica, a relação com o território é um motivo de
diferença. Enquanto o loteamento Guajuviras apresenta uma inserção desarticulada da
hierarquia viária regional, o loteamento Morada do Vale I se insere em uma malha
viária caracterizada por uma hierarquia de conexões (Figura 1).
Figura 1: Recorte da RMPA com os loteamentos estudados localizados no território.
Fonte: METROPLAN (2010) alterado pelo Autor (2014).
O Conjunto Habitacional Ildo Meneghetti, conhecido como Guajuviras,
implantado em Canoas/RS pela Companhia de Habitação (COHAB) local teve o seu
projeto aprovado em 1979. Sua implantação ocorreu em uma área de 262,8ha gerando
4.400 lotes urbanizados ocupados por duas tipologias básicas: habitações unifamiliares
e blocos habitacionais de quatro pavimentos que foram apropriados irregularmente em
1987. O projeto previa grandes áreas verdes ao longo do eixo viário de acesso que
ligava as unidades de vizinhança (METROPLAN, 1990). Já o Conjunto Habitacional
Morada do Vale I foi originalmente constituído por duas glebas pertencentes a um
grupo de famílias em Gravataí/RS. A aprovação do projeto ocorreu em 1977 e a
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implantação das obras de infraestrutura foi concluída em 1989 pela Construtora
Guerino. O local apresentava uma área de 208,4ha com 2.088 lotes ocupados por
habitações unifamiliares. O projeto apresentava oito praças distribuídas em quatro
quadrantes habitacionais e um pequeno centro comercial no cruzamento das duas vias
estruturais do tecido viário local (EDIBA, 2012).
Em ambos os casos, são evidentes as mudanças em relação ao projeto, mas as
relações estruturais entre o passado e o presente que estão por de trás das formas de
transformações são distintas. No caso de Gravataí as interfaces entre as esferas públicas
e privadas são mais adaptáveis às necessidades das práticas cotidianas do que no caso de
Canoas. A seguir, imagens do passado e do presente dos dois casos exemplificarão as
dinâmicas de apropriação do espaço urbano em um estudo comparativo.
O espaço projetado em imagens
A análise aqui pretende enfatizar o modo de produção capitalista comum aos
dois casos estudados. Tanto no Guajuviras como na Morada do Vale I as formas
arquitetônicas padronizadas estão presentes na implantação do projeto original.
Contudo, as semelhanças desaparecem no que diz respeito à forma urbana, pois as
disposições das formas arquitetônicas no espaço são profundamente distintas.
O loteamento Guajuviras apresentava segundo o projeto original uma estrutura
edificada baseada em casas unifamiliares no interior dos setores habitacionais e blocos
multifamiliares de quatro pavimentos junto da via principal de acesso (Figura 2). Estes
blocos caracterizam a imagem do lugar enquanto espaço estrategicamente produzido,
pois tais edifícios estão vinculados à materialização da política habitacional do período
do projeto como um símbolo dominante.
Sessão temática Cidade - 920
Figura 2: Imagem original dos blocos multifamiliares junto da avenida principal.
Fonte: Mendel (2015).
As interfaces entre a esfera pública representada pela avenida principal e a esfera
privada representada pelos blocos multifamiliares no espaço urbano destacado pela
Figura 2 não apresentam uma complementaridade em relação à forma urbana. A lógica
de definição da via independe da lógica da implantação das edificações gerando uma
lógica de parcelamento do solo onde as iniciativas públicas e privadas se manifestam
desarticuladamente. Portanto, as relações entre as três lógicas responsáveis pela
configuração da forma urbana nesse caso representam um tecido urbano fragilizado e
pouco coeso. A partir desse recorte espacial do Guajuviras, uma ruptura se evidencia na
passagem entre os espaços privados e os espaços públicos prejudicando a operação de
manipulação do espaço pelos moradores e usuários do lugar (NETTO, 2007, p. 30).
Já no loteamento Morada do Vale I, as relações entre as formas arquitetônicas e
o espaço urbano caracterizam uma forma urbana distinta do caso anterior apesar do
mesmo sistema de produção do espaço. O projeto original para o loteamento de
Gravataí foi implantado com uma estrutura construída baseada em moradias
unifamiliares distribuídas em quatro setores habitacionais. Apesar das poucas variações
tipológicas entre as moradias, todas as casas apresentavam uma relação direta com a rua
de acesso viabilizando uma interação complementar entre espaço privado e espaço
público como mostra a Figura 3 (NETTO, 2007, p. 48).
Sessão temática Cidade - 921
Figura 3: Imagem original das moradias unifamiliares distribuídas nos setores habitacionais.
Fonte: EDIBA (2012).
Tal recorte espacial que representa uma realidade produzida no passado
evidencia o modo de produção padronizado segundo um modelo fordista característico
da época. Contudo, a dimensão relacional do espaço com base no conceito da forma
urbana construído por Panerai, Castex e Depaule (2013) apresenta uma articulação entre
as três lógicas do sistema urbano diferentemente do caso precedente. É cristalina a
correspondência entre a lógica das edificações e a lógica das vias, pois uma configura a
outra segundo a forma urbana. Logo, o espaço construído ou privado e o não construído
ou público podem ser analisados um em função do outro dentro de uma relação dialética
que caracteriza a lógica do parcelamento do solo de um tecido urbano coerente
(PANERAI, CASTEX e DEPAULE, 2013, p. 209).
A distinção entre os espaços projetados dos dois loteamentos está nas relações
das partes arquitetônicas no e com o todo urbano em função das formas urbanas dos
lugares. Portanto, os resultados sócio-espaciais são condicionados pela forma urbana e
se concretizam no cotidiano quando os atores sociais atuam sobre o espaço produzido
como será destacado no tópico seguinte nos dois casos.
O espaço apropriado em imagens
O artigo agora se debruça sobre as diferentes formas de transformações espaciais
propostas pelos atores sociais no cotidiano dos casos em análise. Para Certeau (2014,
pp. 86-87), a diferença na apropriação de um lugar decorre das formalidades das
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práticas enquanto modalidades de ação. Tais táticas desviacionistas quebram com as
regras estabelecidas estrategicamente na produção inicial do espaço, pois as estratégias
impõem um espaço enquanto as táticas o utilizam, o manipulam e o alteram de
diferentes formas. Cabe então nesse momento da análise um olhar criterioso sobre as
maneiras como os moradores e os usuários de ambas as localidades modificam o seu
meio e as relações dessas práticas com a forma urbana original. Portanto, a intenção é
analisar as formas de ruptura do espaço produzido em função da apropriação nos dois
casos.
O loteamento Guajuviras foi ocupado de forma irregular no final da década de
1980 gerando conflitos sócio-espaciais. Os atores sociais romperam o espaço das
lógicas estratégicas do projeto. A forma urbana proposta dificultava a interação entre
interfaces públicas e privadas. Logo, tais atores se viram na necessidade de transformar
o espaço contra a estrutura original para suprirem as suas necessidades. Atualmente, os
mosaicos urbanos do bairro de Canoas apresentam uma imagem fragmentada
internamente e desconectada do seu entorno imediato em função de um crescimento
desordenado resultante da ação do apropriado sobre o produzido. Um espaço que
caracteriza as formalidades das práticas de apropriação do loteamento é a área central da
avenida principal de acesso onde os antigos blocos habitacionais multifamiliares
dividem o espaço com edificações comerciais irregulares (Figura 4).
Figura 4: Imagem atual dos blocos multifamiliares e das ocupações comerciais irregulares.
Fonte: Google Earth (2014).
Sessão temática Cidade - 923
É importante enfatizar que tal ambiente nos dias de hoje apresenta vitalidade e
uma vida urbana dinâmica e funcional em função dessas ocupações informais que
romperam com o espaço estrategicamente imposto. Contudo, a falta de diálogo entre as
estruturas do passado e as estruturas propostas pelas práticas desviantes do presente
fragmentam o espaço urbano como um todo no bairro Guajuviras. A relação
complementar entre as interfaces públicas e privadas negligenciada no projeto foi
alcançada com tais ocupações comerciais. Entretanto, a “maneira de fazer” esse resgate
necessário para a estabilidade da vida urbana acabou prejudicando o conjunto. Divisões
internas do espaço urbano potencializaram a falta de integração sócio-espacial deste
lugar apropriado com seu entorno e com a cidade. Logo, o direito à vida urbana se
encontra limitado a um território segregado da cidade preexiste no caso de Canoas
diferentemente do caso de Gravataí.
Na Morada do Vale I, a integração do tecido urbano do loteamento com o
entorno e com a cidade preexistente ocorreu em função de uma articulação entre
temporalidades distintas. As ações táticas dos atores sociais no presente modificaram o
espaço urbano a partir da estrutura estrategicamente determinada no passado. Logo, a
maneira como o espaço foi apropriado se diferencia do caso de Canoas em função da
forma como o espaço projetado foi rompido para dar origem ao lugar sonhado
(CERTEAU, 2014, p. 170). Essa correspondência entre momentos opostos se
materializa na área central do loteamento junto ao cruzamento dos dois eixos viários
principais do projeto em função da consolidação do centro comercial como um mosaico
articulado de tempos e de espaços diversos (Figura 5).
Figura 5: Imagem atual do centro comercial da Morada do Vale I.
Fonte: Autor (2012).
Sessão temática Cidade - 924
Os edifícios e as ruas que delimitam o centro comercial do bairro se
modificaram com o tempo, mas as suas lógicas relacionais permaneceram as mesmas.
Segundo Panerai, Castex e Depaule (2013, p. 204), o projeto urbano deve definir um
estatuto como uma base sólida sobre a qual o tecido urbano pode ser construído com o
tempo em função dos seus usuários. Nesse processo, a forma urbana deve estar sempre
aberta para as modificações ocasionais em função das práticas sociais como aconteceu
no caso de Gravataí. Assim, os atores cotidianos podem buscar o equilíbrio e a
estabilidade do seu meio urbano modificando-o constantemente sem comprometê-lo
(CERTEAU, 2014, p. 136).
Considerações finais
Para que a cidade enquanto meio urbano socialmente apropriado garanta o
encontro e a troca entre grupos distintos no espaço, é necessária a aproximação entre os
atores sociais e os cenários espaciais no cotidiano da vida urbana (LEFEBVRE, 2001, p.
22). Contudo, o modo capitalista de produção do espaço urbano em geral inviabiliza tal
dinâmica, pois o foco da produção está no lucro e não na criação de um ambiente
adequado para a vida urbana integrada. Esse panorama que dissocia as esferas sociais e
as físicas durante a produção do espaço acaba prejudicando o equilíbrio sócio-espacial
da cidade durante a apropriação do espaço. Os loteamentos habitacionais produzidos na
RMPA nas décadas de 1970 e 1980 materializam essa afirmação. Entretanto, na ciência,
as generalizações precipitadas podem distorcer realidades específicas que acabam sendo
desconsideradas como já foi comentado.
É fato que o modo de produção capitalista busca atender interesses particulares
ao explorar as potencialidades da terra urbanizada. Contudo, se as formas de
apropriação do espaço são diversas e refletem a relação entre as práticas sociais e a
forma urbana, é evidente que os espaços urbanos resultantes serão diversos também
apesar de seguirem uma mesma lógica de produção. Portanto, é fundamental analisar as
especificidades de cada espacialidade, pois a partir desse procedimento os elementos
Sessão temática Cidade - 925
reais que constituem e formam cada lugar praticado emergem e caracterizam uma
realidade que está longe de ser homogênea.
Nos dois casos analisados aqui fica claro que certos detalhes no âmbito do
projeto influenciaram na forma como o espaço implantado foi apropriado. Ao se realizar
o estudo comparativo a partir das imagens do passado e do presente, nota-se que a
correspondência estrutural entre meio projetado e meio apropriado é evidente no caso da
Morada do Vale I em Gravataí. Logo, apesar de localizado na periferia e isolado da área
central do município, o projeto original propiciou a integração dos moradores e usuários
na dinâmica urbana a partir da apropriação social do espaço condicionada por uma
forma urbana aberta a alterações. Assim, as interfaces sócio-espaciais da Morada do
Vale I se mostraram adaptáveis na perspectiva temporal das práticas sociais sem negar o
seu passado.
De maneira distinta, o loteamento Guajuviras experimentou uma consolidação
em que a forma urbana proposta pelo projeto se evidenciou pouco adaptável em função
da maneira como as interfaces originais se transformaram no tempo a partir das práticas.
São claros os antagonismos existentes entre a estrutura espacial original e as
intervenções estruturais posteriores como foi enfatizado nas imagens das interfaces
entre as esferas públicas e as privadas no passado e no presente.
Os lugares praticados e integrados nas dinâmicas urbanas devem apresentar
interações complementares entre o passado e o presente, entre as interfaces públicas e as
privadas e entre as pessoas e a cidade. Tais relações funcionam juntas e se materializam
em função de um conjunto com capacidade de se reinventar conforme as necessidades
sócio-espaciais. O espaço urbano e seus elementos variam, mas a lógica relacional da
forma urbana permanece a original em função de uma continuidade estrutural entre um
espaço fisicamente projetado no passado e um espaço socialmente apropriado no
presente.
Referências
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Sessão temática Cidade - 926
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