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1. Introdução
1.1. Justificativa
Em 1988, decidiram os então representantes do povo brasileiro “instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a
liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia
social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias”1, minuciosamente esboçado pela Constituição Federal promulgada naquele
ano.
Não é preciso avançar muito na leitura do texto constitucional para que dele se
extraia os elementos estruturais básicos deste novo projeto de Estado. São eles de pronto
anunciados pelos arts. 1º, caput, e 2º, caput, que o apresentam como um Estado Democrático
Republicano, Federativo, pautado pela Tripartição de Poderes. É dentro destes lindes que
todas as dinâmicas econômicas, jurídicas, políticas e sociais compreendidas pela Ordem
Constitucional devem se processar. É dentro deles que a Democracia deve se concretizar. Daí
porque as normas extraídas destes dispositivos qualificam-se como normas de estrutura.
Embora se depreenda sistematicamente do Preâmbulo e dos dois dispositivos
iniciais do texto constitucional a ideia de Estado Democrático de Direito, o traço marcante
desta nova proposta normativa não parece dizer com os tradicionais princípios do Estado de
Direito – exercício de direitos de ordem social e individual – mas com a urgência “das
necessidades de democratização da própria sociedade (que há de ser fraterna, pluralista,
sem preconceitos, fundada na harmonia social etc.)”2.
Partiu o Poder Constituinte, que, no mundo dos Homens, se traduz na “instância
transcendente que tudo pode, menos deixar de poder”3, portanto, de uma visão da sociedade
1 Constituição Federal, Preâmbulo.2 Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. P. 447.3 Cf. BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. P. 5.
como realidade distinta do Estado, mas ao mesmo tempo nele integrada. Esta distinção indica
que a ideia de Estado veiculada pela Constituição Federal sintetiza, de forma bastante
complexa, duas concepções de Estado: a de Estado de Direito e a de Estado Social. Aquele,
conceito eminentemente jurídico formal, instrumento técnico normativo de manutenção do
status quo. Este, com funções distributivas e de legitimação ou institucionalização de
aspirações sociais – assim qualificadas como metas privilegiadas.
Entre nós, destarte, com a vigente Constituição Federal agregou-se à função de
bloqueio típica do Estado de Direito a função de legitimação. Surge, então, um Estado que se
decompõe em Estado-instituição e Estado-proposta ou Estado-projeto. Apresentando-se como
uma teia de valores, a Constituição cria um Estado que é e que exige realização desses
mesmos valores. Não estabelece, mas propõe um Estado, a realizar-se a partir dali4.
Fundado na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político, é missão do Estado brasileiro,
enquanto projeto, construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento
nacional, erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais
e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação. Obviamente não se trata de tarefa fácil, tampouco barata.
A complexidade na realização de desígnios não é exclusividade do Estado
brasileiro. Do Velho ao Novo Mundo, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, dos países
desenvolvidos aos países em desenvolvimento, a obtenção de recursos para o custeio das
atividades estatais é preocupação unânime. Não se realiza um Estado – nem mesmo um que
desempenhe exclusivamente função de bloqueio – sem dinheiro que faça frente aos gastos que
esta realização demanda.
O presente trabalho parte da seguinte premissa: sempre que um Estado deixa de
realizar as tarefas e objetivos dos quais fora incumbido no momento de sua criação – ainda
que alguns deles estejam sujeitos a contingências históricas, ou se desdobrem no curso do
tempo – há espaço para questionar-se se a sua atuação é legítima, no sentido de ser
consentânea com a vontade popular, que é a verdadeira razão de ser de qualquer Estado. A
depender do grau de mau desempenho de um Estado na realização dos seus desígnios, poder-
se-á falar não mais em atuação ilegítima, mas em crise de legitimidade. É quando a ação e a
autoridade institucional do Leviatã passam a ser postas em xeque pelo próprio povo.
Em geral, crise supõe situação aflitiva, cojuntura perigosa, anormal ou grave,
momento decisivo. Diz-se em crise, na política, por exemplo, uma ordem que enfrenta sérias
4 Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Op. cit., p. 447-449.
dificuldades de se manter no poder. Em outros termos, trata-se de uma medida negativa de
sustentabilidade – costuma-se relacionar crise com o que é insustentável ou se encontra à
beira da ruína. Nesta ordem de ideias, crises são identificáveis e, em certa medida, previsíveis,
porquanto, se processos não são, ao menos de processos resultam. Existem, assim, índices de
crise. Inclusive índices de crise de legitimidade5.
Fonte primordial de recursos que é, a tributação é campo altamente explorável na
investigação de processos de eclosão, desenvolvimento e combate às crises de um Estado.
Pela análise das práticas tributárias deste é possível verificar, com certo grau de certeza, se
suas respostas aos misteres que lhe foram atribuídos são satisfatórias ou não, condizentes ou
não com o perfil ou projeto de atuação delineado pelo Poder Constituinte – Povo.
A forma com que o Estado atua no campo arrecadatório, desta forma, permite uma
análise segura de sua situação institucional num dado momento histórico – se crítica ou não.
Justamente porque, no contexto de um pretenso Estado Social e Democrático de Direito, a
tributação não é concebida para ser abusiva, confiscatória, geradora de insegurança ou
temerária, sendo inaceitável que no correr do tempo as manifestações da tributação adquiram
este tônus.
É de se perceber, com o que foi dito, que a tributação apresenta potencialidades
antagônicas. De um extremo, é instrumento de legitimação da ação do Estado e confirmação
de sua autoridade, se empregada de acordo com a sua concepção constitucional genuína, ao
permitir o desenvolvimento de suas atividades típicas. De outro, se extrapolar os limites de
razoabilidade impostos pelo contexto histórico-social, pode tornar altamente questionável a
sua autoridade, ou mesmo desafiável – crise de legitimidade.
Nalgum ponto entre estes extremos parece situar-se a Guerra Fiscal, entendida
como a competição – raramente leal – entre dois ou mais entes tributantes, mediante
oferecimento de benefícios fiscais, por investimentos da iniciativa privada, que permitem o
desenvolvimento local ou regional.
Prova disso é a existência, até o momento, de pelo menos 27 (vinte e sete)
acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, órgão jurisdicional responsável por dar a
palavra final sobre controvérsias constitucionais, reconhecendo a Guerra Fiscal como
realidade nociva ou potencialmente nociva à robustez institucional do Estado brasileiro, isto
apenas em matéria de Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e 5 Cf. IZAIAS, Rafael Silva. A legitimação do Estado Democrático de Direito na modernidade periférica: uma observação a partir do caso brasileiro. Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: 2010. Diz o autor: “A observação sociológica da legitimidade não busca observar estados mentais, mas resultados agregados das comunicações travadas na esfera pública e ações que podem ser compreendidas como indicadoras da legitimidade ou a ilegitimidade” (PP. 45-46).
Serviços – ICMS. Se tanto não bastasse, a efervescência do tema também é evidenciada pelos
debates em curso no Congresso Nacional acerca das possíveis medidas de contenção do
fenômeno, além da sabida formação, no bojo da sociedade privada, de grupos voltados a
discutir e minimizar seus efeitos negativos presentes e futuros.
Da gravidade e efervescência da questão na atualidade é que se extrai a
pertinência do tema ao contexto sócio-jurídico pátrio e a importância de um estudo mais
detido dos seus caracteres elementares, inclusive como um instrumento a mais para viabilizar
reflexões posteriores e a orientação da decidibilidade da questão em si e dos temas que lhe são
correlatos. Esta a razão de ser do esforço ora empreendido.
1.2. Problematização do tema e objetivos do trabalho
Na linha do exposto acima, o presente trabalho tem por escopo, em uma frente, a
identificação dos caracteres elementares do fenômeno comumente designado por “Guerra
Fiscal”, seus pressupostos, suas possíveis formas de apresentação no contexto global atual,
suas consequências e o seu papel no quadro de um Estado Democrático e Social de Direito.
Em outra frente, buscar-se-á identificar os principais aspectos da teoria da legitimação ou
legitimidade do Estado no contexto da pragmática jurídica, donde se pretende extrair os
elementos do que, provisoriamente, designa-se por crise de legitimidade do Estado. Ao final,
mediante o confronto crítico dos resultados das referidas frentes, espera-se seja possível
responder satisfatoriamente à seguinte problemática: É a Guerra Fiscal um signo presuntivo
de quadro crítico em termos de legitimidade do Estado, ou cuida-se de “um passo necessário
à superação das desigualdades regionais e ao desenvolvimento”6?
1.3. Delimitação do tema
O presente estudo compreenderá um esforço de teorização do fenômeno Guerra
Fiscal, seus pressupostos, as formas como e as dimensões em que ocorre, suas consequências, 6 Cf. CANÁRIO, Pedro. “‘Acabar com os incentivos fiscais geraria caos no país’”. São Paulo, Consultor Jurídico, 1º/07/2012.
na busca por um conceito analítico deste objeto de estudo, com vista à superação de sua
designação sintética enunciada linhas acima. Além disso, buscar-se-á identificar os principais
elementos da chamada crise de legitimidade, para o que analisaremos os aspectos marcantes
da teoria pragmática da legitimação ou legitimidade do Estado.
A fim de viabilizar melhor aproveitamento do estudo e maior contribuição
científico-teórica, a problemática federalista, sem desprezo de sua importância e conexão
temática, não será objeto de grandes análises ao longo do trabalho, por três motivos. Primeiro,
sendo este o aspecto de maior destaque da Guerra Fiscal na atual conjuntura nacional, em
termos jurídicos e econômicos e mesmo na perspectiva histórica, por tratar-se da disputa
fiscal mais antiga de nossa trajetória, a produção teórica acerca do tema, já vasta, encontra-se
em franco crescimento. Isto, por si só, justifica o estudo mais aprofundado das inúmeras
outras questões da Guerra Fiscal. Segundo, nas discussões sob o enfoque federalista sobre o
tema pouco se disse de seus reflexos na legitimidade do Estado. E, terceiro, considera-se a
Federação uma norma de caráter eminentemente estrutural, i.e., um instrumento formal para a
realização de desígnios estatais, o que de certa forma a afasta da legitimidade em sentido
material do Estado, que é o objeto do presente estudo. Inobstante, qualquer das questões
federalistas que se mostre relevante e adequada para o trato das questões debatidas será levada
em conta.
1.4. Metodologia utilizada
O trabalho será elaborado primordialmente com amparo em textos teórico-
doutrinários de Filosofia do Direito, Direito Constitucional e Direito Tributário. O aspecto
eminentemente zetético do estudo empreendido permite o relativo desprendimento dos
caracteres formalistas ou legalistas que tangenciam o tema.
Com efeito, sabe-se que o Direito, enquanto objeto de estudo, admite a adoção de
enfoques teóricos distintos, na medida em que se acentue o aspecto pergunta ou o aspecto
resposta no trato de uma dada problemática. Na primeira hipótese, o que se tem é o chamado
enfoque teórico zetético, por meio do qual se desintegram, se dissolvem e se colocam em
dúvida as opiniões existentes acerca de um tema, na busca de se aprimorar o conhecimento a
respeito de uma realidade (que é algo?). Cuida-se, portanto, de enfoque de utilidade
eminentemente especulativa e que admite uma infinidade de questionamentos (inclusive, a
extremo, questionamentos a respeito dos próprios questionamentos que se busca superar). Ao
contrário, na segunda hipótese – dogmática jurídica – estabelecem-se algumas premissas
como inquestionáveis, de molde a viabilizar a resolução de questões relacionadas a dúvidas
que, não podendo ser substituídas por evidências – como ocorre no campo da zetética –
exigem uma decisão (como deve-ser algo?)7.
O método utilizado será o crítico ou dialético, de forma que as conclusões serão
extraídas do confronto dos aspectos teóricos apresentados sobre os temas-chave do estudo:
Guerra Fiscal e Crise de Legitimidade.
A relativa escassez de escritos, especialmente no que concerne às questões afetas
à primeira, deverá ser superada por meio de reflexões próprias sobre o tema, todas elas
sempre fundamentadas com o material disponível, inclusive de outras ciências, e pelo
emprego dos métodos científico-jurídicos há muito consagrados. A finalidade última deste
método será ampliar o conhecimento sobre a Guerra Fiscal.
7 Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo de direito: técnica, decisão, dominação. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. PP.39-47.
“In this world nothing is certain but death and taxes”
(Benjamin Franklin, em carta a M. Leroy, 1789)
2. Estado e tributo: O tributo como condição de possibilidade de realização
estatal.
As notas introdutórias do presente trabalho apresentaram os traços que, pela
lógica institucional introduzida pela Constituição de 1988, tornam o Estado Brasileiro uma
realidade singular no quadro das sociedades que assumem a forma de Estados (Estado como
gênero). O objetivo último desta monografia é, antes de tudo, analisar o fenômeno Guerra
Fiscal e a sua dinâmica sob a ótica dessa específica realidade institucional, isto é, segundo a
proposta e a experiência estatal hoje em processamento. A adoção deste enfoque se justifica
até mesmo em atenção aos critérios de utilidade e de função social do trabalho do analista do
Direito.
Este recorte não dispensa, contudo, o pequeno e despretensioso esboço de uma
genealogia do tributo, especialmente porque é um dado do senso comum que a tributação é
uma experiência anterior à própria ideia de Estado, como denuncia a própria Bíblia Sagrada
em diversas passagens8. Se a tributação não é uma exclusividade do Estado (gênero), que dirá
do Estado Brasileiro (espécie). Daí porque a análise da função da tributação em um dado
Estado requer a investigação das funções e contornos do tributo ao longo da História.
2.1. Genealogia do tributo.
8 A primeira das diversas referências bíblicas ao tributo encontra-se em Gênesis, capítulo 47, versículo 24, verbis: “Há de ser, porém, que no tempo as colheitas dareis a quinta parte ao Faraó, e quatro partes serão vossas, para semente do campo, e para o vosso mantimento e dos que estão nas vossas casas, e para o mantimento de vossos filhinhos”. Interessante notar que a passagem em questão encontra-se na narrativa da história de José do Egito e, nela, o tributo é associado à salvação “em tempos de vacas magras” e seu fundamento, em última análise, é, segundo ela, divino. Interessante também que esta passagem revela que a estrutura primitiva do tributo não diverge muito da noção atual, como se nota pela presença, já no tributo bíblico, de sujeitos ativo (Faraó – soberano) e passivo (povo), base de cálculo (colheita) e alíquota (quinta parte) e aspecto temporal (o tempo das colheitas). De outro lado, o aspecto espacial é implícito: os domínios egípcios.
Estudos arqueológicos noticiam que a tributação era conhecida pelos povos da
Antiga Mesopotâmia, mesmo antes da invenção da moeda. Sabe-se que o pagamento dos
diversos tributos, os quais, inclusive, eram cobrados em diferentes épocas do ano, sendo
pagos principalmente em espécie, mediante a entrega de animais e/ou produtos agrícolas.
Sabe-se, ainda, que diversas eram as materialidades alcançadas pela tributação: a pecuária, o
comércio naval, a pesca e também os funerais. Das formas de tributação vividas pela
Mesopotâmia Antiga, a mais marcante é certamente o chamado fardo, pelo qual os homens
livres deviam meses de trabalho ao soberano, o qual variava de serviços de colheita ou
realização de obras ou tarefas públicas até o serviço militar em guerra. O Código de
Hammurabi continha sanção específica para o descumprimento do fardo, a saber: o confisco
das terras, pomares ou casa da família do desertor. Também a evasão fiscal se verificava na
Antiga Mesopotâmia, operacionalizando-se por meio do contrabando, no caso das exigências
sobre produção e comércio, e, no caso do fardo, pelo envio de prepostos no lugar dos homens
livres, normalmente escravos9.
Evidências sobre a prática impositiva, agentes fiscais, lamentações acerca de
tributos e até mesmo paraísos fiscais são igualmente referidas por estudos arqueológicos
acerca do Antigo Egito. De fato, já na primeira dinastia do Antigo Império se documenta a
realização de turnês bienais nas quais o Faraó se coloca perante o povo e coleta tributos,
devidos a ele por ostentar o caráter de Chefe do Estado e de divindade. O pagamento de
tributos era ao menos anual, incidindo sobre o gado, sobre a colheita etc.. A exigência de
trabalho compulsório também é marca da tributação egípcia. Era costumeira, além disso, a
exigência de tributos ad hoc sempre que o Faraó houvesse por bem (no caso de guerras ou
construções etc.), o que era causa de queixas pelo povo. Documentos da quarta dinastia do
Antigo Império dão conta da existência de paraísos fiscais, criados por meio de cartas régias
concessivas de imunidades fiscais sobre o pessoal e as propriedades de templos e fundações,
muitas vezes eles mesmos financiados com receitas tributárias10.
Embora não existam evidências das razões pelas quais o povo se sujeitava ao
pagamento dos tributos na Mesopotâmia e no Egito, a hipótese mais aceita pelos arqueólogos
é que isto se dava por temor do povo das retaliações do soberano (v.g., prisão e, morte).
Na Antiguidade Ocidental foram marcantes os trabalhos que delineiam uma forma
embrionária de estudos tributários, de Xenofonte, autor de diversos ensaios sobre agricultura e
9 Informações coletadas do almanaque da Universidade da Pensilvânia. In: http://www.upenn.edu/almanac/v48/n28/AncientTaxes.html#meso (nº 28, vol. 48, 02/abril/2002).10 Informações coletadas do almanaque da Universidade da Pensilvânia. In: http://www.upenn.edu/almanac/v48/n28/AncientTaxes.html#egypt (nº 28, vol. 48, 02/abril/2002).
sobre o sistema tributário de então. Uma dessas obras foi intitulada “As formas de aumentar
as receitas de Atenas” (355 a.C.). A tributação afigurava-se mais pesada em tempos de
conflito. Tanto que uma das hipóteses para o motivo da deflagração da Guerra de Tróia
(gregos versus troianos) foram os tributos exigidos pela Grécia sobre a navegação no mar
Egeu11. Modelo administrativo e sede do Ministério das Finanças grego que era, Atenas
também viveu a tributação: tributava estrangeiros, rendas e bens, cobrava custas e direitos
alfandegários etc.12.
De outro lado, é curioso notar que já por volta de 167 a.C. a tributação – muitas
vezes a níveis de confisco – em Roma era dirigida exclusivamente às províncias subjugadas,
ficando os cidadãos a salvo das exigências. Tem-se, aqui, o chamado “tributum, que não
apenas representava uma fonte de financiamento do tesouro romano, mas era igualmente, a
marca da sujeição do povo contribuinte”13, sua dependência em relação ao povo
conquistador. Somente em face do declínio do Império Romano é que, como tentativa de
recuperação, voltou a tributação a ser dirigida também ao povo romano. O efeito foi inverso:
esta reforma acelerou o processo de enfraquecimento do Império, tendo sido, certamente,
determinante para a sua completa derrocada14.
Até aqui, o caráter parasitário ou de instrumento de dominação do tributo não
deixa de ser assumido, tendo por finalidade garantir a contínua reintrodução, recondução,
reafirmação das relações de sujeição instauradas a partir das batalhas. Instrumento, portanto,
de manutenção do status quo. Nesse sentido, as palavras de Aliomar Baleeiro:
“Roma e os povos antigos usaram largamente seu poder para extorsão de proveitos dos povos mais fracos. Escravos, ouro, prata, obras d’arte eram arrancados ao vencido e opulentavam não só a Cidade Eterna, mas pessoalmente aos generais vencedores. É célebre a enormíssima fortuna de César por obra de suas conquistas”15
O tributo seria, assim, uma continuação da Guerra por excelência, na linha do
raciocínio que séculos mais tarde levaria Michel Foucault a propor a inversão do aforismo de
Carl Von Clausewitz, de “A guerra não é mais que a continuação da política por outros
meios” para “O poder é a guerra, é a guerra continuada por outros meios”16.
11 Informações coletada dos sítio eletrônico: http://www.nre.seed.pr.gov.br/doisvizinhos/arquivos/File/origem_do_tributo.pdf, acessado em 30/07/2013.12 Idem.13 Cf. REZENDE, Condorcet. “Relações Fisco x Contribuinte”. In: Estudos Tributários (org. REZENDE, Condorcet). Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 512P. P. 169.14 Informações coletadas do almanaque da Universidade da Pensilvânia. In: http://www.upenn.edu/almanac/v48/n28/AncientTaxes.html#rome (nº 28, vol. 48, 02/abril/2002).15 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 13ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1981. 515P. P. 145.16 FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collége de France; trad. Maria Ermantina Galvão. 2ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 266P. PP 15 e ss.
De um modo genérico, as relações de rapina (sentido amplo) na Era Medieval se
processaram mais pela exigência de obrigações de índole contratual do que propriamente
tributária. Sabe-se, porém, que os tributos não deixaram de existir: pelo menos os impostos
per capita, sobre heranças e sobre casamento existiram17, além do dízimo cobrado pela Igreja
Católica sobre a renda dos fiéis. O quadro geral de exigências não deixou de ser pesado com
essa relativa perda de expressividade da tributação, merecendo citação as seguintes: capitação
(imposto sobre cabeça devido pelos servos), censo (tipo de renda / aluguel pago aos donos de
terra por vilões e homens livres), talha (imposto em espécie incidente sobre a produção, pago
em nome da defesa – tributo de guerra), banalidades (compensação devida ao Senhor pelo uso
de seus equipamentos e da vila como um todo) e corvéia (trabalho devido por vilões e servos,
executados nos domínios do Senhor)18, esta semelhante ao fardo egípcio.
Tão pesadas que o primeiro movimento de desconfirmação desse histórico e
inquestionável poder de tributar data da Idade Média, quando o Rei João Sem Terra foi
compelido a assinar a Magna Charta (1.215 d.C.), a qual condicionava à aprovação dos barões
a cobrança da contribuição compulsória comumente a eles imposta. Tal reação constitui,
verdadeiramente, a primeira manifestação do “no taxation without consent”, princípio que
viria a ser formulado séculos depois19.
Já a segunda onda de desconfirmação do poder de tributar teve lugar no chamado
Tea Party, “episódio que precedeu a Guerra de Independência dos Estados Unidos, e no qual
os colonos norte-americanos negavam-se a pagar tributo exigido pelo Parlamento inglês
sobre o produto americano, por não haver representação norte-americana no legislativo
britânico”20, e nos diversos movimentos análogos que marcaram a transição da Era Moderna
– de desmedida e desastrada intensificação da prática impositiva pelos monarcas – para a Era
Contemporânea (movimentos norte-americanos, franceses e britânicos)21. Tem-se, nesta
altura, a formulação do “no taxation without representation”, verdadeira extensão do referido
“no taxation without consent”.
Ocorre a terceira grande desconfirmação do poder de tributar na Revolução
Francesa, quando “os Estados Gerais convocados pelo rei Luis XVI estabeleceram o
princípio da ‘universalidade da tributação’, que subvertia a ordem social até então
17 Informações coletada dos sítio eletrônico: http://www.nre.seed.pr.gov.br/doisvizinhos/arquivos/File/origem_do_tributo.pdf, acessado em 30/07/2013.18 Id.19 Cf. REZENDE, Condorcet. Op. cit. P. 170.20 Id. Ibid.21 Para ficar apenas no exemplo norte-americano, diversas foram as leis tributárias abusivas impostas pelos ingleses: Lei do Açúcar (Sugar Act), Lei do Selo (Stamp Act), os atos de consumo (Atos Thownshend), a própria Lei do Chá, entre outras. (Id. ibid.)
prevalente, segundo a qual somente o Terceiro Estado, isto é, o povo, contribuía com
impostos para o financiamento do Estado; a nobreza e o clero eram imunes aos impostos
diretos, cabendo à primeira a ‘contribuição de sangue’ (isto é, na guerra, eram os nobres
chamados a defender a pátria) e ao segundo a ‘contribuição da prece’”22.
Juntos, os princípios da tributação consentida, tributação mediante representação e
da universalidade da tributação marcaram a transição do tributo enquanto expressão de
dominação/sujeição para algo mais próximo da ideia de tributo que temos hoje. Obviamente,
essa transição acompanha forças históricas que marcam a evolução do homem e das diversas
formas de associação que ele experimenta com o passar dos anos, tendo as teorias da
soberania e do contratualismo social certamente sido determinantes para esse processo.
Trata-se no caso de inegável revolução, na medida em que tal transição é a marca
de uma nítida mudança no pensar da tributação. Uma mudança no campo das ideias e no
campo do direito posto. É quando o tributo passa de símbolo de opressão para instrumento de
financiamento do “bem comum”, segundo as teorias que justificam o Estado como é
conhecido hoje23.
Esta sem dúvida marcante modificação no discurso acerca do fundamento da
tributação remete, até certo ponto, à seguinte reflexão: teria de fato havido uma alteração na
função última do tributo; teria ele realmente perdido o caráter de instrumento de dominação,
de continuação da guerra; ou as citadas ondas de desconfirmação do poder de tributar, nada
obstante frutos de uma tensão verdadeira, acabaram sendo apenas discursos dissimuladores do
caráter parasitário do tributo (expressão da força), e, nessa medida, serviram para agravá-lo?
Talvez no curso do presente trabalho possamos formular alguma resposta, ainda provisória,
para essa instigante indagação.
2.2. Tributação e o financiamento do Estado.
Oliver Wendell Holmes, famoso Justice da Suprema Corte Norte-Americana,
manifestou-se inúmeras vezes no sentido de que “gostava de pagar impostos, porque com
22 Id. ibid.23 Já no século XVII, Voltaire “dizia que o imposto era uma parte do nosso patrimônio que entregávamos ao governo, para que pudéssemos manter o resto”. Por sua vez, Benjamin Constant (constitucionalista francês), em assertiva praticamente idêntica, dizia que “cada indivíduo consente em sacrificar uma parte de sua liberdade para assegurar o resto”. Ricardo Lobo Torres, na mesma linha, diz que “o tributo é o preço da liberdade” (Cf. REZENDE, Condorcet. Op. cit. P. 168-169).
eles comprava a civilização” (g.n.), nada obstante prevalecer no nível do cidadão médio a
observação de Klaus Tipke de que “os impostos que o cidadão pague espontânea e
alegremente ainda não foram inventados” 24. Embora esta última assertiva faça algum sentido
na psicosfera do contribuinte, a verdade é que, de fato, a tributação é o preço da cidadania, na
medida em que “não há Estado Social sem que haja também Estado fiscal, são como duas
faces da mesma moeda”25 (g.n.). Em outras palavras, nenhum direito seria apenas o direito de
não ser incomodado pelo poder público, já que todo direito impõe ao governo uma atuação
positiva; implementar direitos – o que é uma incumbência também individual – corresponde,
assim, a arcar com os respectivos custos26.
Nessa exata medida, a conexão existente entre a tributação e o espírito da
Constituição – base do Estado em sua concepção contemporânea –, i.e., os direitos e garantias
fundamentais, é das mais graves, pois o tributo é “a principal forma de receita pública do
Estado Moderno”27. Este entrelaçamento pode bem ser avaliado a partir da análise de um
episódio no mínimo curioso ocorrido em uma de nossas maiores metrópoles, a capital
mineira, Belo Horizonte. Trata-se do emblemático Dia da Liberdade de Impostos, ocorrido em
25/07/2007, data coincidente com o momento daquele ano a partir do qual os brasileiros – de
um modo geral – passaram a trabalhar para ganhar o próprio dinheiro. É dizer: até aquele dia,
segundo os organizadores do evento, toda a riqueza produzida em 2007 teria sido destinada a
fazer frente à tributação28.
Processou-se o conjunto de manifestações da seguinte forma: “os postos de
gasolina venderam, durante poucas horas, combustível a um preço equivalente ao que o
produto possuiria caso se subtraísse a incidência dos tributos que recaem sobre a cadeia
produtiva da mercadoria. O trânsito na região central da cidade ficou paralisado. Ao redor
dos postos, formaram-se filas de automóveis que perfaziam cerca de quinze quarteirões.
Condutores irritados se agrediam, em busca de posições mais próximas do combustível (...) A
polícia também foi chamada ao local, pois o risco de tumulto era considerável”29 (g.n.).
Simulação da realidade social sem tributação que foi, o Dia da Liberdade de Impostos é um
24 Id. ibid.25 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. rev. e atual.. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 1451 e ss.26 HOLMES, Stephen & STEIN, Cass. R.. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Norton & Company, 1999. P. 44.27 MENDES, Gilmar Ferreira. Op. cit. P. 1452.28 TAVARES, Francisco Matta Machado. A Dimensão Política da Crise Fiscal dos Estados Contemporâneos: um estudo sobre o potencial da democracia deliberativa para a coibição de concorrências tributárias danosas. 2008. 193 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Políticas) – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008. P. 13 e ss.29 Idem.
excelente código de análise da prática impositiva, de seu sentido e de seu alcance. Código
que, por sinal, leva a curiosos desdobramentos.
É que, de um lado, se a reivindicação subjacente ao protesto era a redução da
carga tributária, de outro, seus efeitos apontam no sentido oposto a tal anseio. Isto se verifica
na aplicação à hipótese imaginada pelo evento do seguinte imperativo categórico kantiano:
“Age segundo uma máxima tal, que possas querer ao mesmo tempo que se torne lei
universal”. Basta, então, alçar o Dia da Liberdade de Impostos ao extremo em que “assim se
comportassem todos os setores da economia, chegando-se a um contexto de carga tributária
nula”30. Nesse caso, a atratividade dos bens de consumo a preços assaz confortáveis seria no
mínimo o menos importante, frente a um cenário “deveras mais complexo e relevante: todo
um modelo de sociedade, de organização econômica e de viabilização material de desígnios
estaria a ruir”31.
Mais que os preços, a cena toda restaria alterada. Vias públicas, se existentes,
seriam construídas com verbas e segundo uma sistemática de priorização distinta da vigente.
Não se cogitaria de controladores de tráfego (recursos humanos e tecnológicos), polícia,
agentes cuja presença foi marcante no episódio. Tampouco existiriam escolas e saúde – ao
menos públicas, se bem que às particulares faltaria regulamentação de autoridade, ficando,
inteiramente, ao sabor da lógica de mercado. Faltariam ainda tribunais que garantissem a
realização do direito. Em suma, nos lindes dessa sociedade sem tributação não haveria lugar
para todo o “amplo espectro que, nos dias atuais, se define como administração pública”.
Restariam apenas “os indivíduos, absolutamente livres para, na medida de suas forças, obter
para si tudo o quanto” pudessem, “ainda que em detrimento de terceiros”32.
É verdade que com a carga tributária nula os indivíduos não deveriam
compulsoriamente nada a terceiros, ficando com a integralidade daquilo que produzissem. No
extremo, existiria um direito a possuir tudo. Ocorre que este seria um direito de todos e não
existiria, entre os Homens, que pudesse dizer, senão pela força, a quem algo é ou seria devido.
Como observou TAVARES, subtrair do campo da existência a prática impositiva equivaleria
a implementar o Estado de Natureza a que se reportou Hobbes em sua obra, aquele em que,
“embora qualquer homem possa dizer, de qualquer coisa, ‘isto é meu’, não poderá porém
desfrutar dela porque seu vizinho, tendo igual direito e igual poder, irá pretender dele a
mesma coisa”. Porque nessa hipótese “todos teriam direito a tudo, o tempo todo, ninguém
30 Idem.31 Idem.32 Idem.
teria direito a nada, tamanha a insegurança” das coisas, deixar de tributar é renunciar à
civilização / civilidade33.
Isto é o bastante para que se chegue a uma conclusão bastante simples, que é a
seguinte: o mínimo que há de existir para que um direito seja verdadeiramente um direito é a
existência de meios materiais que garantam sua efetividade, que ponham fim, segundo sua
lógica intrínseca, a conflitos. E isto, nos quadros do Estado em sua concepção contemporânea,
não se faz sem financiamento – cuja expressão principal até hoje conhecida é a tributação. Eis
a razão de ser do título dado ao presente capítulo: se é verdade que para que os efeitos de um
direito possam ser experimentados pelos indivíduos, é também verdade que este poder não
será algo atualizável senão quando existirem tributos.
Daí restar autorizada a assertiva de que o tributo é, efetivamente, uma condição de
possibilidade, metacondição ou a condição das condições de um Estado (expressão da
civilidade), ainda que um Estado de mero bloqueio (liberalismo puro), realizar-se. Com maior
razão, então, um Estado como o que se instaurou com a Constituição da Federal de 1988, o
qual, como dito anteriormente, desdobra-se em um Estado que é e exige a realização dos
valores conexos com a “das necessidades de democratização da própria sociedade (que há
de ser fraterna, pluralista, sem preconceitos, fundada na harmonia social etc.)”34.
2.3. Tributação como indutor de condutas
Se é verdade que o escopo primordial da tributação é custear a realização dos
desígnios estatais, o que corresponde à função arrecadadora (ou caráter fiscal) do tributo, é
inescondível que a sua performance não se resume a isso. Em outras palavras, pode a
tributação desempenhar outras funções, tais como: (i) a distribuidora da carga tributária; (ii) a
indutora de condutas; e (iii) a simplificadora. Dentre estas funções, a indutora de condutas é
de relevância para o presente estudo35.
Esta função diz respeito ao fato de que “a norma tributária produz diversos
efeitos sobre o comportamento dos contribuintes, destacando-se, por sua importância
33 Idem.34 Cf. FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Direito Constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos humanos e outros temas. Barueri, SP: Manole, 2007. P. 447.35 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 400P. PP. 40 e ss.
enquanto meio de intervenção sobre o domínio econômico”36. Em outras palavras, por meio
de normas tributárias indutoras, “o legislador vincula a determinado comportamento um
consequente, que poderá consistir em vantagem (estímulo) ou agravamento de natureza
tributária”37. Segue-se que “a norma tributária indutora representa um desdobramento da
norma tributária primária, na qual se faz presente a indução (ordem para que o sujeito
passivo adote certo comportamento)”38.
É dizer: a indução trabalha com a tributação enquanto alternativa a ser evitada,
como meio para tornar possível a realização de determinados objetivos. De um modo muito
geral, cuida-se, simplesmente, de tornar as condutas indesejadas mais onerosas (é o caso, no
Brasil, da carga tributária agravada para nicotina e álcool, por exemplo) e as condutas
desejadas, obviamente, menos onerosas (v.g., benefícios fiscais em cenário de competição
fiscal)39. Isto tudo ocorre a nível efetivamente normativo, como se depreende do esquema
proposto por Luís Eduardo Schoueri, a seguir40:
D[(a.b.c) d] (primeira norma primária);
D[(a.b.c.-d) T] (secunda norma primária);
D{[(a.b.c.-d).-T] S} (norma secundária);
Em que:
a, b, c, d integram o fato gerador da obrigação T (tributo)
d é a conduta desejada pelo legislador, objeto da indução
S é a sanção pelo descumprimento da obrigação tributária.
Ver-se-á ao longo dos próximos caminhos que a competição fiscal funciona como
filigrana da função indutora de condutas da norma tributária, como forma de resolver
desequilíbrios sistêmicos verificados entre espaços geográficos ligados por uma relação de
subordinação.
Daí a possibilidade de se estudar o tema em termos de pragmática jurídica, o que
constitui a proposta do presente estudo. Assim, no capítulo que se segue (Cap. 2), será
analisada a questão da Legitimidade, seus ciclos nos quadros do Estado e o conceito
propriamente dito de crise de legitimidade, como e por que ela ocorre. A partir daí (Cap. 3),
será feito o estudo da Guerra e da Guerra Fiscal (esta como algo que se identifica com aquela,
propriamente dita).
36 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Livre Concorrência e Tributação”. In: Grandes questões atuais do direito tributário, 11º volume. Ccord. ROCHA, Valdir Oliveira. São Paulo: Dialética, 2007. 398p. PP. 241 e ss.37 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Op. cit. P. 40 e ss. 38 Idem.39 Idem. PP. 205 e ss.40 Modelo proposto por Luís Eduardo Schoueri (Idem).
Em seguida, buscaremos aproximar os estudos da Legitimidade e da Guerra
Fiscal, confrontando-os e respondendo, enfim, à questão central do presente trabalho.
“ ”
( )
3. Legitimidade, seus ciclos no Estado de Direito e crise de legitimidade.
De acordo com uma concepção clássica, o que de convencionamos chamar de
sociedade poderia ser definido, em temos muito esquemáticos, como um “conjunto
relativamente complexo de indivíduos (...), permanentemente associados e equipados de
padrões culturais comuns, próprios para garantir a continuidade do todo e a realização de
seus ideais”41. Este modo de ver e pensar a sociedade, que é nitidamente calcado nas
chamadas teorias da soberania e que tem por base uma abordagem contratualista dos
agrupamentos humanos, ainda é a concepção mais difundida a níveis das diversas formas de
estudo do Estado e do Direito. Inobstante, teorias mais recentes têm partido de noções
diversas da sociedade para analisar os diversos fenômenos que lhe são afetos.
Este é o caso, dentre outros, da chamada teoria pragmática, que adota a
comunicação como código de análise da sociedade. Parcela significativa dos adeptos desta
teoria parte de uma concepção radical de comunicação, nos termos da qual esta pode ser
considerada um axioma, na medida em que as relações intersubjetivas somente são possíveis
porque a comunicação as precede. Afastando-se de sua concepção clássica, a sociedade é
compreendida como “uma situação comunicacional”, ou “uma estrutura (comunicacional)
que permite que os indivíduos entrem em contato uns com os outros”. O que “significa que os
indivíduos se valem da sociedade para entrar em contato uns com os outros”, mas não eles
que a constituem, sendo, na realidade, constituídos por ela42.
No que concerne ao Direito, a pragmática jurídica irá analisar os discursos
normativos, as relações de autoridade e sujeição que estão por trás deles e, de um modo geral,
a questão da obediência da lei. Questões como “por que e em que medida deve a norma ser
obedecida?” ou “toda norma deve ser obedecida?” estão no centro de uma análise
pragmática do Direito. Logo, sob esse enfoque do Estado e do Direito é possível chegar a
41 Cf. Dicionário de Português Online “Michaelis”, disponível no link: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/ . Vide verbete “sociedade”.42 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito: reflexões sobre o poder, a liberdade, a justiça e o direito. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. 316P. PP. 33 e ss.
importantes conclusões acerca de sua legimitidade – ou não. Ver-se-á ao longo do trabalho
que esta abordagem fornece elementos bastante úteis para o estudo da Guerra Fiscal.
3.1. Pragmática e pragmática jurídica: uma visão geral
A pragmática parte do pressuposto “de que os sistemas sociais se formam via
comunicação, isto é, de que a comunicação envolve sempre uma seleção de possibilidades
que, como processo, determina reações que se podem conceber antecipadamente”. A
comunicação, nesse sentido, equivale a comportamento (ou estar em situação), num sentido
amplo. O caráter axiomático da comunicação decorre do simples fato de que “quem está em
situação transmite mensagens, quer queira quer não”. Equivale a dizer que a comunicação
não tem contrários, desdobrando-se disso que não nos é dada a possibilidade de não
comunicar43.
Operando-se a dinâmica comunicacional de modo digital (através da linguagem)
ou analógico (através de gestos, do tom da voz, das formas de portar-se em geral), “mesmo
que não queiramos falar estamos comunicando que não queremos nos comunicar”44. Por isto,
diz-se que a comunicação é marcada por um caráter eminentemente interacional (princípio da
interação) e altamente reflexivo. Estabelece-se, por assim dizer, um “sistema em que a ação
de quem fala provoca uma reação naquele que ouve”, a qual, “por sua vez, vem influenciar o
próprio orador” (citar Mara Regina). Esta dinâmica pode apresentar-se estruturalmente de
duas formas: a dialógica e a monológica.
A chamada estrutura dialógica do discurso é aquela em que o ônus da prova é
imposto àquele que se posiciona como emissor da mensagem, estando aberta à crítica por
parte do receptor e demandando fundamentação permanentemente. Esta estrutura, em
princípio, é marcante dos discursos racionais (v.g., ciências em geral, em que as mensagens
comunicadas sempre aparecem sob a forma de uma dúvida). Já a estrutura monológica do
discurso se verifica quando o receptor se porta de forma mais ou menos passiva em relação à
mensagem, por força do princípio – que se coloca ao lado da regra do dever de prova – de que
nem toda a mensagem comunicada pode ser questionada, se verdadeira ou evidente. O
discurso, que só existe em ato, não apresenta aprioristicamente esta ou aquela estrutura, sendo
43 Idem. Ibidem. P. 35.44 Id. ib.
que o tônus predominantemente dialógico ou monológico da relação travada é alcançado no
decorrer de sua dinâmica.
Por outro lado, a comunicação opera em dois níveis, a saber: o relato e o
cometimento. Aquele se refere “à mensagem que emanamos, ao conteúdo que transmitimos”.
Ao dizermos a alguém “levante-se!”, por exemplo, o conteúdo transmitido é o ato de sentar-
se. Já o cometimento diz respeito “à mensagem que emana de nós, na qual se determinam as
relações (de subordinação, de coordenação), e que, em geral, é transmitida de forma não
verbal (pelo tom da voz, pela expressão facial, pelo modo como estamos vestidos etc.)”.
Retomando a mensagem “levante-se!”, nesse sentido, o cometimento da mensagem varia
conforme ela é dirigida do professor ao aluno, deste a outro aluno, ou deste último ao
professor45.
Ou seja, a comunicação implica necessariamente expectativas mútuas de
comportamento. Expectativas essas que podem ser, aliás, objeto de expectativas prévias.
Tércio Sampaio Ferraz Jr., a esse respeito, cita o seguinte exemplo: “Quem diz sente-se! não
apenas tem a expectativa de um movimento (sentar-se) e de um acatamento (subordinação),
mas tem também a expectativa de qual seja a expectativa do endereçado (este espera de mim
uma ordem, ele me vê como superior) que também pode ou não confirmar-se, e vice-versa,
isto é, o endereçado também tem expectativas sobre as expectativas do emissor”46. Quer
dizer, “quem diz: sente-se! espera pelo menos quatro possibilidades: sentar-se ou não sentar-
se, com ou sem subordinação”. Por essa razão é que se pode dizer que a comunicação
determina “um conjunto instável de relacionamentos de relações de expectativa”, que cria
“situações complexas, que se confirmam ou que se desiludem, em que os homens se
apresentam claramente ou escondem suas intenções, ou que agem sem reflexão,
descuidadamente etc.”47.
Esse o porquê de a comunicação ser considerada complexa, seletiva e duplamente
contingente. A complexidade liga-se ao fato de sempre existir “um número de possibilidades
de ação maior que o das possibilidades atualizáveis”. Desdobra-se disso a noção de
seletividade, segundo a qual “nenhuma troca de mensagens se efetiva sem que a possibilidade
maior de mensagens trocadas sofra uma delimitação”, de modo que toda troca de mensagens
implica uma redução nas possibilidades de escolha de um interlocutor a outro. Já a dupla
contingência refere-se “à possibilidade de seletividades não congruentes de seleções diversas
45 Idem. Ibidem. 46 Id. Ibid.47 Id. Ibid.
nas trocas efetivadas (rejeições)”, ou seja, ao fato de que a comunicação admite a frustração
ou a decepção das expectativas dos interlocutores48.
Do que se extrai que as possibilidades de seleção “de parte a parte” não são
passíveis de eliminação, componentes que são da própria estrutura comunicacional. E, no
âmbito da chamada situação comunicativa, a rejeição, a comunicação dela feita de uma parte
a outra, e a sua tematização (desta àquela) implica conflito. Daí “todo sistema social ser
potencialmente conflitivo”, em qualquer caso (citar Tércio/Mara). Pois sempre há a
possibilidade de um não concordar com o conteúdo (relato) ou com a relação estabelecida
(cometimento) veiculados por uma mensagem, neste jogo que vincula e influencia
comportamentos, e que é, efetivamente, a expressão do poder, assim entendido como controle
ou exercício social, que permeia a sociedade como um todo, que a conduz e que é
reconduzido por ela. E que pode, por assim dizer, ser considerado um verdadeiro meio de
comunicação.
Face a uma situação contingente, isto é, de desilusão (ou frustração) de uma
expectativa no bojo da relação interacional, duas são as posturas básicas dos sujeitos: as
cognitivas e as normativas. A primeira consiste, grosso modo, em atitudes por parte do agente
comunicacional tendentes a uma adaptação à realidade decepcionante. Fala-se, por isto, que as
atitudes cognitivas referem-se ao modo de ser das coisas, revelando, assim, uma certa
passividade sujeito frente à decepção. Já as atitudes ditas normativas estão diretamente
referidas ao dever ser no âmbito relacional, traduzindo, por esse motivo, uma postura que não
se adapta à realidade decepcionante, na medida em que a expectativa frustrada, neste caso,
encontra fundamento em algum tipo de norma (e, por isto, falamos em expectativas
normativas).
Instaura-se, aqui, a chamada situação comunicativa normativa, consistente em um
conflito social que precisa ser controlado. Este controle é exercido por um terceiro
comunicador, posição que nas sociedades complexas em geral é ocupada pelo Estado. A ele
(o terceiro comunicador) incumbe dizer qual das expectativas normativas deverá prevalecer e
ser institucionalizada (seja pela criação de uma nova norma geral e abstrata, seja pela
introdução de uma norma individual e concreta, por meio da expedição de um ato
administrativo ou pela prolação de uma decisão judicial). A questão da Legitimidade do
Estado e o surgimento da chamada crise de legimitidade é questão que se entrelaça com a
dinâmica da situação comunicativa normativa. Vejamos.
48
3.2. Situação comunicativa normativa e legitimidade estatal
Importantes conclusões são extraídas do quanto exposto no item anterior. A
primeira delas é que a “a interação comunicativa pode ser conflituosa e envolver relações de
poder”, dado o seu caráter de verdadeiro jogo – com suas estratégias e táticas – de influência
recíproca entre os comunicadores. A segunda é que, “na comunicação humana, o emissor
espera que a seletividade de uma mensagem (código) que ele emite seja compreendida e
assumida como ponto de partida para a seleção que irá ser feita pelo receptor” . A terceira,
enfim, é que “sempre existe a chance de que esta expectativa seja desiludida, pois a dupla
contingência, que implica numa rejeição de ofertas de seleções comunicadas, é uma
possibilidade sempre presente”49, que pode ser objeto de posturas adaptativas ou não por
parte daquele que teve sua expectativa frustrada.
As posturas não adaptativas relacionam-se àquelas expectativas que “se
manifestam, basicamente, através de normas, de prescrições de dever ser, que se impõem de
modo contra-fático”50. Ao surgirem expectativas normativas divergentes entre si, tem-se um
conflito social a ser controlado. Um terceiro comunicador, que assume a posição de
autoridade perante os parceiros em conflito – sujeitos, portanto –, é então chamado a
identificar qual das expectativas normativas deve prevalecer e ser institucionalizada, através
da edição de normas jurídicas. Este terceiro comunicador, nas sociedades complexas, é, de
um modo geral, o Estado, e assume, através do cometimento da mensagem normativa que
emite, uma postura complementar perante os receptores sociais.
A autoridade de que se vale o Estado-comunicador, que estabelece a
complementaridade, decorre do fato de ele entrar “fortalecido na situação comunicativa, pois,
ainda que a sua posição seja a de emissor, ele está isento do dever de prova” , ao contrário do
que ocorre nos discursos não jurídicos em geral. Invertido o ônus da prova, as mensagens
deste peculiar emissor, que são sobretudo decisões, “visam não eliminar, mas apenas
encerrar [neutralizar] os conflitos (...), pois prevalecem ainda que de fato os receptores
sociais não as acatem enquanto tal”. Ou seja, espera-se dos receptores sociais que observem
as mensagens normativas, ainda que delas discordem. É este, por assim dizer, o núcleo
pragmático da questão da legitimidade.
49 Mara Regina de Oliveira, item 2. e ss.50 Id. ibid.
Isto porque, “de um ponto de vista comunicacional, a questão da legitimidade se
coloca no nível fático e não moral”. Dito de outro modo: a legitimidade é antes uma questão
de “reconhecimento, em última instância, das decisões” do Estado-comunicador. Estas “são
legítimas à medida que obtêm uma prontidão generalizada para serem aceitas, ainda que
indeterminadas quanto ao seu conteúdo, dentro de certa margem de tolerância”.
Generalizada que é esta prontidão, seus “motivos, que pendem entre o medo e o consenso,
não se esclarecem”51. De modo esquemático, porque se valem de um consenso suposto e
anônimo de terceiros obtido através de procedimentos institucionais no campo eleitoral,
político, legislativo, administrativo e judicial, as mensagens normativas “prevalecem [devem
prevalecer] sobre qualquer norma que os indivíduos possam fazer entre si, mesmo que tentem
desconsiderar e se sobrepor às normas estatais”52.
O Estado, assim, “se legitima na medida em que os seus procedimentos são
capazes de absorver conflitos e dissensos socialmente difusos e intermediá-los a partir da
produção de decisões”, as quais “devem ser capazes de gerar consenso e apoio que
realimentam a opção selecionada e dissensos que se deixam recanalizar para o interior dos
procedimentos”. Legítimo, assim, é aquele Estado “que não precisa tomar medidas
adicionais para que os consensos sejam” neutralizados, como a força ou a utilização de
métodos pertencentes a um código informal, “pois a decisão é aceita mesmo quando há
discordância em relação ao seu conteúdo”53. De forma que seria possível falar em uma
espécie de ciclo da legitimidade, nos seguintes moldes:
Postas estas premissas, veremos a seguir qual é a gênese da chamada crise de
legitimidade do Estado, que é uma das questões centrais do presente estudo.
51 Tercio, p. 58 e ss.52 Mara, p. , n. 4.53 IZAIAS, p. 63 e 64.
3.3. A crise de legitimidade do Estado
A legitimidade, como referido anteriormente, é a medida do reconhecimento das
mensagens normativas emitidas pelo terceiro comunicador, com vista a neutralizar o conflito
(sem necessariamente eliminá-lo). Esta neutralização é feita através do cometimento das
mensagens normativas, de estrutura monológica e que estabelecem uma relação, entre os
comunicadores envolvidos, de autoridade/sujeição (mando/obediência). Se assim é, segue-se
que o exame da legitimidade do estado, do ponto de vista comunicacional, deve partir da
postura dos receptores sociais frente às decisões do que lhes são dirigidas, tanto no que
concerne ao seu aspecto relato (que admite argumentação) quanto no que se refere ao aspecto
cometimento (que não admite e deve ser acatado).
As atitudes possíveis frente a tais comandos são: confirmá-los, rejeitá-los ou
desconfirmá-los. Pela confirmação da mensagem normativa, o receptor social obedece seu
conteúdo (relato) e o seu cometimento (relação transmitida), o que corresponde à conduta
lícita. Ao optar pela rejeição da mensagem comunicativa, o receptor desobedece o respectivo
conteúdo (relato), mas acata o cometimento (relação). Esta corresponde à conduta ilícita.
Enquanto que na desconfirmação da mensagem normativa, há o desacato tanto ao relato
quanto ao cometimento por parte do receptor social. Este ostensivamente desobedece o
conteúdo e deixa de reconhecer o cometimento da norma comunicada.
Para facilitar a compreensão do tema, adotaremos como ponto de partida
exemplificativo o trafico de drogas, crime hediondo previsto no art. 33 da Lei n. 11.343/2006,
assim vazado:
“Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa”
Tal mensagem, revestida que é de autoridade, pode ser simplificada na forma de
um imperativo: “não trafique drogas!”. Este imperativo, no fundo, esconde algo mais
profundo, mais grave, que é uma ameaça: “ou será punido”. Nesta mensagem normativa, a
partícula “não trafique drogas!”, que é explícita (isto é, comunicada digitalmente), constitui
o aspecto-relato. Ao passo que a partícula “ou será punido”, que aparece como uma ameaça e
que está implícita (ou seja, é comunicada analogicamente, através da autoridade do emissor),
constitui o aspecto-cometimento da mensagem normativa.
Se partirmos deste exemplo, veremos que a atitude de confirmar a mensagem
equivale, por assim dizer, a não traficar drogas, isto é, equivale a uma conduta lícita. Rejeitar
a mensagem, isto é, desobedecer ao conteúdo mas acatar o cometimento, equivale à conduta
ilícita. É este o caso do bandido, que trafica drogas, mas reconhecendo a ameaça veiculada
pela norma, age de modo a evitar que ela se concretize. Ele age sorrateiramente, procura
manter-se anônimo, foge, esconde-se. Ele teme a ação do Estado. Isto é, a confirmação e a
rejeição da mensagem normativa por parte do receptor social, por assim dizer, conduz à
legitimidade do Estado, intacta que permanece a autoridade que é ínsita às mensagens que ele
emite. Esta abordagem pragmática da norma penal, de certa forma, descortina do sentido da
conhecida frase (cujo autor original não se pode precisar): “em direito, a exceção confirma a
regra”.
O problema surge com a postura de desconfirmação da mensagem normativa, que
não se reduz ao esquematismo lícito/ilícito e que “ocorre quando o endereçado deixa de
assumir a relação complementar estabelecida elo cometimento”, sendo “perigosa porque
destrói a ficção do consenso geral presumido, mostrando que nem todos reconhecem a
autoridade e que nem todos, de fato, assumem a posição de sujeito”54 . A desconfirmação da
mensagem normativa, nesse sentido, deixa às claras a impossibilidade de uma “jurisfação
total do poder” e a existência dos chamados poderes informais. Porque “eliminam o controle
de seletividade que o editor normativo tenta realizar”, ações desconfirmadoras podem, no
limite, “causar um desequilíbrio ou mesmo uma brusca tentativa de reorganização das
relações de poder, em termos individuais ou sociais”.
Aquele que desconfirma uma mensagem normativa “desilude integralmente” as
expectativas ligadas a ela, “pois age como se a autoridade, e os atos de coação que ela
determina nas suas mensagens, não existissem”. Essa a razão por que, ao contrário das ações
de rejeição das mensagens normativas, feitas de forma sorrateira, as reações desconfirmadoras
costumam ser operacionalizadas de forma ostensiva. É o que se vê nas atitudes de
desobediência civil, de terrorismo, de revolução.
Falar da consistência e fechar.
54
“A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar”
(Sun Tzu)
4. Por um conceito de “Guerra Fiscal”
Catorze de janeiro de 2013. Nesta data, o Valor Econômico publicou matéria com
a seguinte chamada: “Guerra dos portos: paz ou nova batalha?”55. Cuidava-se de analisar
uma das mais efervescentes questões afetas à Guerra Fiscal no cenário nacional, ligada à
carga tributária e aos benefícios fiscais tendo por objeto mercadorias importadas. A par da
importância do tema tratado, o que chama a atenção na reportagem é a forma como seu título
remete aos mais marcantes traços semânticos do termo guerra, que compõe a designação
atribuída ao objeto deste estudo. Curiosamente, esta chamada jornalística põe em evidência
justamente o aspecto luta – batalha – do fenômeno, aspecto esse que costuma passar
relativamente despercebido.
Embora o tema esteja em voga, a verdade é que o conceito de Guerra Fiscal não
parece ter sido satisfatoriamente trabalhado entre nós. Em geral, a doutrina nacional trata o
tema como um simples capítulo do chamado federalismo tributário ou um problema
relacionado – até inerente – a ele56. Mesmo a nível de senso comum é essa a noção mais
difundida entre nós57. Há, também, quem entenda o fenômeno como uma “falta (...) de
coordenação mínima na concessão de benefícios fiscais dentro de um mercado integrado”58,
capaz de transformar “a preocupação com a carga tributária em algo muito mais importante
que a eficiência produtiva”59. Esta discrepância entre os escritos sobre o tema demonstra, por
si só, quão inexplorada (ainda) é a questão do seu conceito.
55 Cf. BRIGAGÃO, Gustavo. “Guerra dos portos: paz ou nova batalha?”. São Paulo, Valor Econômico, 14/01/2013.56 É o que deflui de trechos como o seguinte, dos mais comuns em matéria de doutrina jurídica sobre a Guerra Fiscal: “A guerra fiscal é definida por muitos autores como a concessão unilateral de incentivos ou benefícios fiscal pelos Estados, à margem da LC n. 24/1975 e, por via de consequência, à margem da Constituição Federal, com intuito de atrair investimentos. (...) A guerra fiscal pode ser definida como a competição entre entes federados em busca de investimentos privados, por meio da concessão de benefícios fiscais de diversos tipos” (Cf. AFONSO, Sylvio César. “Guerra fiscal e os efeitos das decisões proferidas pelo STF”. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo, m. 105, p. 245 e ss., jul-ago/2012).57 É o que se depreende do artigo sobre o tema constante da Wikipédia – A Enciclopédia livre, por exemplo. Disponível no sítio eletrônico: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_fiscal. 58 Cf. CATÃO, Marcos Vinhas. “A guerra fiscal tem que acabar”. São Paulo, Valor Econômico, data desconhecida.59 Idem.
Tal lacuna denota, em suma, que o objeto em análise é na realidade
preocupantemente desconhecido. O presente capítulo pretende esboçar – ainda que de forma
provisória e despretensiosa – um conceito de Guerra Fiscal mais ou menos analítico. O
primeiro passo desta tarefa consiste em saber se este fenômeno pode realmente ser designado
de guerra. Vejamos.
4.1. Noção de guerra
De origem germânica (werra), o termo guerra ora designa “Luta armada entre
nações, por motivos territoriais, econômicos ou ideológicos”, ora “Luta”, “Arte militar”,
“Ciência de conduzir um exército em campanha”, “Luta entre os animais” e/ou “Negócios
militares”60. A simples leitura do léxico, pois, já denuncia que à guerra está estreitamente
associada a ideia de confronto armado61. Mas não é só dos dicionários – que revelam as
significações do homem médio – que se pode extrair tal associação.
No campo do Direito, por exemplo, já no século XVII o jusnaturalista holandês
Hugo Grócio definia a guerra como “o estado de indivíduos, considerados como tais, que
resolvem suas controvérsias pela força”62, definição segundo a qual três seriam os elementos
essenciais da guerra: “o de estado de relação entre entidades, em que ela consiste, o de
resolução de conflitos, a que ela se propõe, para que caminha, e que de algum modo a
justifica, e o de dimensão violenta, que a caracteriza e a qualifica”63. Na seara das artes
militares, a guerra é qualificada por Carl Von Clausewitz como “um acto de violência para
obrigar o adversário a cumprir a nossa vontade”64.
Nessa conformidade, tratar-se-ia da “irrupção da violência nas relações entre
corpos sociais organizados”, envolvendo “encontros armados generalizados e
programados”, cujo objetivo é a “destruição, em maior ou menor grau, do adversário”, com
vistas à “obtenção, por outros meios não logrável, de uma determinada supremacia de efeitos
60 Cf. Dicionário de Português Online “Michaelis”, verbete “guerra”, itens 1 a 9, disponível no link: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=guerra.61 Cf. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atual. SLAIBI FILHO, Nagib & CARVALHO, Gláucia. Rio de Janeiro: Forense, 2007. P. 668.62 Cf. ROMÃO, Rui Bertrand. Dicionário de Filosofia Moral e Política do Instituto de Filosofia da Linguagem. V. verbete “guerra”, disponível no link: http://www.ifl.pt/private/admin/ficheiros/uploads/68ddb85fceede183b28b61602fdd7d25.pdf.63 Idem.64 Idem.
mais ou menos duradouros”65. O emprego da violência seria, assim, um suposto da guerra. De
modo que o fenômeno atualmente conhecido por Guerra Fiscal não se enquadraria
propriamente no conceito de guerra. A inclusão deste termo na expressão que o designa seria,
de certo modo, um simples arbítrio, um descuido, em última análise algo impensado.
Pensar a guerra pura e simplesmente em termos de embate e enfrentamento, de
irrupção de violência, é certamente uma visão muito reducionista. Ninguém duvida que a
guerra se opere pela via “das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que
têm sua data e seus heróis de horror; (...) das cidades incendiadas, das terras devastadas”66.
Em todo caso, esta é a guerra vista do topo, do clímax. O que não significa que “a lei e o
Estado sejam (...) a sanção definitiva das vitórias”. Na verdade, “a lei não é pacificação”,
pois sob este manto “a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismos
de poder, mesmo os mais regulares”. O fato é que “uma frente de batalha perpassa a
sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada
um de nós num campo ou no outro”. Batalha que, no limite, cedo ou tarde, reconduz à
violência explícita, à guerra “propriamente dita”.
Este campo de batalhas sutis que se processam sob o manto da paz é o campo das
rivalidades políticas, econômicas, ideológicas, raciais. É o campo das retaliações, barganhas,
chantagens e rapinas que se verificam nos diversos níveis das relações sociais, da esfera mais
individual – dos indivíduos entre si – à esfera das mais abrangentes consciências coletivas –
classes, regiões etc.. Rivalidades e tensões como estas são o que há de mais permanente e
mais grave na guerra. A política (sentido amplo), portanto, se desdobra da guerra: “O poder é
a guerra, é a guerra continuada por outros meios”. Outros meios que não a violência.
É neste nível de compreensão da guerra, como um jogo de tensões, de rivalidades
e disputas, estratégias e táticas, de poder portanto, que perpassam a sociedade de forma
permanente e contínua, que se pode dizer que a Guerra Fiscal se enquadra no conceito de
guerra. Fixada esta premissa, passamos à efetiva análise do que é a Guerra Fiscal, dos seus
meios e de suas consequências.
4.2. A Guerra Fiscal como um problema de essência
65 Idem.66 Em defesa da sociedade – aula 21 de janeiro de 1976
Entre nós, como referido anteriormente, a Guerra Fiscal é definida em termos
muito sintéticos: disputa entre entes tributantes por investimentos privados mediante a
concessão de benefícios fiscais. Apesar de rasa, não se pode dizer que esta definição seja
totalmente incorreta ou equivocada. Ocorre que, posta nestes termos, a referida conceituação
tem indesejáveis implicações: (i) porque genérica, imprime no fenômeno um caráter quase
que de tabu, uma aura de certa forma mítica; e (ii) porque simplista, deixa de descortinar
elementos bastante relevantes para o efetivo conhecimento do objeto e, consequentemente,
para o deslinde das questões que lhe são afetas.
Restará demonstrado adiante que a referida definição é sobretudo a definição do
gênero competição fiscal. Nesta categoria inserem-se duas espécies, a saber: competição fiscal
strictu senso e Guerra Fiscal. Pertencentes que são a um mesmo gênero, tais espécies
apresentam características comuns e elementos distintivos. Assim, para facilitar a
compreensão do tema e evitar repetições desnecessárias, a análise será dividida em duas
etapas. Primeiro serão tratados os elementos comuns às duas espécies de competição fiscal.
Na sequência será apresentado o elemento distintivo da Guerra Fiscal nos quadros da
classificação proposta.
A. Elementos Genéricos da Competição Fiscal
a. Elementos causal: a tensão da psicoesfera entre lugares.
Sabe-se que o espaço geográfico é “o conjunto indissociável de sistemas de
objetos e sistemas de ação” que formam e conformam o território, constituindo “o quadro
único no qual a história se dá”67.
O primeiro consiste nos diversos componentes físicos do espaço geográfico, isto
é, os objetos naturais e os “objetos fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois,
cibernéticos” que são historicamente acrescidos à natureza, tais como “hidroelétricas,
fábricas, fazendas modernas, portos, estradas de rodagem, estradas de ferro, cidades” etc..
De forma que “o espaço é marcado por esses acréscimos, que lhe dão conteúdo
67 SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4ª ed. 2ª reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006. PP. 39 e ss.
extremamente técnico” e cada vez mais artificial. Já o segundo sistema – o de ações – refere-
se aos diversos fluxos relacionais humanos – trabalho, produção, educação, família etc.68.
Tais sistemas são entrelaçados e se determinam reciprocamente, de forma
dinâmica e de certa forma dialética. A partir desta interação, por meio da qual a sociedade
atribui sentido e valor aos elementos físicos do espaço, dá-se distribuição dos recursos, os
quais compreendem “toda possibilidade, material ou não, de ação oferecida aos homens
(indivíduos, empresas, instituições)”, a nível de “coisas, naturais ou artificiais, relações
compulsórias ou espontâneas, ideias, sentimentos, valores” 69.
Assim, enquanto “valor que permite à totalidade dos recursos (mundial ou
nacional) funcionalizar-se e objetivar-se”70, é a divisão do trabalho que fixa os parâmetros de
ocupação territorial, seus usos etc.. Esta lógica é que determina, em última análise, a
distribuição espacial dos recursos, de acordo com as variáveis sociotecnológicas de cada
lugar, segundo parâmetros de qualidade, rapidez e eficiência. Lugares que apresentam
possibilidades mais sólidas em termos destes caracteres – componentes do espaço geográfico
– têm preeminência no quadro geral dos diversos lugares (espaços geográficos) que compõem
o Globo.
De acordo com estas possibilidades e segundo a lógica da divisão do trabalho, são
criadas relações de subordinação entre os lugares. É que os recursos se acumulam naqueles
espaços geográficos onde há elementos que permitem sua ocupação por núcleos geradores de
riquezas (especialmente grandes empresas e centros de formação profissional de excelência,
como universidades). Tais núcleos “vão se espalhando pelo mundo criando laços
internacionais” e “gerando um ambiente de dependência aliado a prerrogativas políticas
novas”71. Desdobra-se disso um evidente jogo de tensões e desequilíbrios entre lugares
subordinados e subordinantes em relação à alocação dos recursos disponíveis, na medida em
que “a divisão do trabalho supõe a existência de conflitos”72.
Nesta dinâmica, fato é que “as diversas empresas, segundo sua força, e segundo
os respectivos processos produtivos, induzem a uma divisão do trabalho que corresponde ao
seu próprio interesse”. É certo, ainda, que “as diversas escalas de poder público também
concorrem por uma organização do território adaptada” a estas demandas, fazendo-o por
68 Idem.69 Op. cit. PP. 85 e ss.70 Idem.71 IBAÑEZ, Pablo. Território e Guerra Fiscal: A perversidade dos incentivos territoriais. 2006. 163 f. Dissertação (Mestrado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. PP. 3 e ss.72 SANTOS, Milton. Op. Cit. PP. 88 e ss.
meios os mais variados, como políticas de infraestrutura, educação, logística, formas jurídicas
de trabalho e previdência, saúde etc.. Inclusive por meio da tributação, cuja capacidade
indutora de condutas é visível (vide capítulo 2).
Os desequilíbrios e tensões – tensão da psicoesfera – entre os diversos espaços
geográficos, constituem, por assim dizer, o elemento causal da competição fiscal. Tais
desequilíbrios, a nosso ver, podem ser potenciais ou efetivos, conforme possam ser
verificados empiricamente pelo confronto entre a distribuição dos recursos levando-se em
conta dos diversos espaços geográficos que competem entre si ou decorram de um certo
receio ou temor por parte das autoridades de cada um destes espaços, que não possa ser
propriamente demonstrado. Seria este o caso, por exemplo, daqueles espaços geográficos
efetivamente desenvolvidos que optam pela concessão de benefícios fiscais como forma de
incrementar sua política de desenvolvimento ou, simplesmente, para o fim único e exclusivo
de aumento na arrecadação. Em qualquer caso, seja o desequilíbrio efetivo ou potencial, a
nosso ver, haverá, no fundo da cadeia, uma efetiva tensão entre territórios, que será a causa
em si da competição.
b. Elemento finalístico: o investimento privado
Se a causa da competição fiscal é a existência de tensões entre espaços
geográficos, a finalidade da competição é a atração de investimentos e até mesmo a atração de
empresas para as regiões tidas por subordinadas, isto é, aquelas carentes de recursos (num
cenário ideal) ou para aquelas regiões desenvolvidas (subordinantes) que, como referido no
item acima, optam pela competição fiscal como forma de incrementar sua política de
desenvolvimento local.
Com isto, busca-se, no primeiro caso, compensar e até mesmo reverter quadros
sociais efetiva ou potencialmente críticos, marcados pelo desemprego ou subemprego,
infraestrutura precária a nível de saúde e educação e também em termos de urbanismo,
moradia e transporte etc.. Já no segundo caso, cogita-se de uma preocupação governamental
com a manutenção de um certo ritmo no desenvolvimento local, que pode ser influenciado, de
alguma forma, por fatores externos, como é o caso do desenvolvimento de localidades
(jurisdições) conexas. É que, como referido, a instalação de grandes empresas em uma
localidade não traz consigo somente empregos, mas toda uma estrutura modificadora da
realidade social do entorno, com significativo aumento da renda e da qualidade de vida da
população.
Segue-se que o elemento finalístico da competição fiscal desdobra-se em imediato
e mediato. O primeiro refere-se à atração de investimentos e de empresas propriamente ditas,
que são as condutas prestigiadas pelas normas concessivas de benefícios fiscais, notadamente
indutoras de condutas, como referido em item próprio. O segundo, por seu turno, refere-se às
modificações positivas da realidade social decorrentes da atração destes fatores e aparecem
como desdobramento do aquecimento econômico decorrente dos investimentos e/ou empresas
atraídas.
c. Elemento objetivo: os meios da competição fiscal
Os elementos objetivos da competição fiscal genericamente considerada são
práticas de política fiscal tendentes a propiciar a atração de empreendimentos para
determinadas localidades. Praticas modulatórias da tributação, portanto, orientadas para a
finalidade específica de atrair investimentos privados.
Práticas como incentivos financeiros (v.g., empréstimos), logístico-estruturais
(v.g., implantação de malha de transportes segundo a lógica das necessidades de um
determinado setor de interesse), educacionais (v.g., criação de cursos técnicos ou
universitários voltados a determinados setores de interesse, ou mesmo programas semelhantes
ao Ciências Sem Fronteiras do Governo Federal) etc. obviamente não se inserem no contexto
da competição fiscal. São políticas públicas de atração de investimentos que não se
confundem com práticas de competição fiscal73.
Dentre os meios de ataque na disputa, podem ser referidos, a título
exemplificativo, os benefícios fiscais de um modo geral: isenções, imunidades, créditos,
alíquotas zero, reduções de base de cálculo etc.. De outro lado, podem ser citados a título de
instrumentos de defesa na disputa os seguintes: regras de subcapitalização, regras de preços
73 A esse respeito, tenha-se presente o seguinte: “But jurisdictional competition is not just about tax policy. Regulatory policy, monetary policy, trade policy, and legal policy can also erect roadblocks that affect the flow of jobs and capital across national borders. Tax competition is just one slice of this competition among countries, but it is increasingly important because of the growing mobility of capital and labour”.(cf. MITCHELL, Daniel J. “The economics of Tax Competition, Hamonization vs. Liberalization”. Briefing paper – Adam Smith Institute, London, ano desconhecido. Disponível no link (acesso em 11/10/2013): http://www.adamsmith.org/sites/default/files/images/stories/tax-competition.pdf).
de transferência, glosas de créditos etc.. Como o objetivo do presente trabalho é tratar da
Guerra Fiscal em termos gerais, não desceremos à minúcia de analisar pormenorizadamente
cada um destes meios (ou armas, no caso da Guerra Fiscal).
Destaque-se, em todo caso e desde já, que o elemento objetivo da competição
fiscal é neutro em si mesmo, caracterizando-se como um mecanismo inerente ao sistema
tributário e que se volta justamente a tornar possível que a tributação funcione como elemento
indutor de condutas74, o que é algo acolhido pelo ordenamento jurídico tributário nacional e
de diversos outros países. Tal questão voltará a ser explorada por ocasião da análise do
elemento distintivo da Guerra Fiscal, ao final deste capítulo.
d. Elemento subjetivo: os sujeitos da competição fiscal
Como toda forma de disputa, a competição fiscal tem caráter eminentemente
relacional. Isto é, algo que só se realiza no âmbito da intersubjetividade, que se somente
desenrola entre dois ou mais sujeitos. Vez que as práticas da competição fiscal ocorrem por
meio de instrumentos de política fiscal, segue-se que somente podem ser sujeitos diretos da
disputa aqueles que possuem competência tributária, com capacidade tributária ativa. Quer
dizer, são sujeitos da competição fiscal, de um modo geral, os entes tributantes.
Fala-se em sujeitos diretos porque a competição fiscal, obviamente, não afeta
somente aqueles que a põem levam a efeito. Ao contrário, tal prática somente existe para
repercutir no âmbito da realidade social, na esfera da vida humana em seus diferentes níveis
(indivíduos, empresas, instituições, comunidades, cidades e regiões etc.). Aliás, diversos são
os agentes da sociedade privada – que não detém, portanto, competência tributária – que
induzem a competição fiscal, em especial os mais fortes agentes do mercado, como empresas
de grande porte e instituições financeiras. Tal indução, em todo caso, se perfaz de maneira
muito oblíqua, que envolvem lobbies, barganhas e tratativas com os agentes políticos que
atuam diretamente nas tomadas de decisão pelos entes tributantes, principalmente membros
dos poderes executivo e legislativo destes. Porque a disputa é uma opção do governo (sentido
amplo), que pode ou não ser feita, e porque os agentes da sociedade privada não atuam
diretamente na correspectiva tomada de decisão, tais agentes são, por assim dizer, os sujeitos
indiretos da competição fiscal.
74 A esse respeito, vide cap. 2, item .
É certo, também, que a carga tributária e eventuais reduções decorrentes de
práticas de competição fiscal são elementos cruciais nas disputas travadas entre os agentes
econômicos no âmbito do mercado, vez que os custos fiscais são componentes relevantes dos
preços praticados. De forma que uma vantagem fiscal obtida por um agente de mercado em
detrimento de outros pode ser fator determinante para o domínio do setor considerado. Daí
porque a tributação deve ser neutra75 e por isso que as práticas de sonegação devem ser
coibidas, conforme, inclusive, já decidiu o Supremo Tribunal Federal por diversas vezes76.
Não é por isso, em todo caso, que a concorrência de agentes econômicos calcada na tributação
pode ser considerada competição fiscal. Trata-se, na realidade, de um consectário da lei de
mercado.
De outro lado, o fato de a competição fiscal travar-se entre entes tributantes não
significa que ela ocorra apenas nos lindes de um Estado, entre as pessoas de direito público
interno detentoras de competência tributária: União, Estados, Distrito Federal e Municípios,
tomando-se como exemplo a estrutura institucional brasileira. É que, como referido, a causa
da competição é a existência de tensões e/ou desequilíbrios entre lugares (espaços
geográficos). Basta, pois, que existam lugares e competências tributárias, de um lado, e
interesses conflituosos, de outro, ou seja, uma psicoesfera tensa, para que seja possível a
ocorrência de competição fiscal, que é, uma competição de (entre) lugares.
Eis a razão para que possa ocorrer a competição fiscal no âmbito da sociedade
internacional, entre sujeitos de direito público externo, como efetivamente ocorre (v.g.,
paraísos fiscais). Este é, a nosso ver, o grande descuido da doutrina jurídica nacional, que, nos
estudos sobre o tema, não deixa dar pouca importância à guerra fiscal travada no âmbito
internacional.
75 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. “Livre Concorrência e Tributação”. In: Grandes questões atuais do direito tributário, 11º volume. Ccord. ROCHA, Valdir Oliveira. São Paulo: Dialética, 2007. 398p. PP. 241 e ss. A esse respeito, existe expressa disposição constitucional: “Lei complementar poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo” (CF, art. 146-A).76 Cite-se, a título de exemplo, o seguinte precedente: “RECURSO. Extraordinário. Efeito suspensivo. Inadmissibilidade. Estabelecimento industrial. Interdição pela Secretaria da Receita Federal. Fabricação de cigarros. Cancelamento do registro especial para produção. Legalidade aparente. Inadimplemento sistemático e isolado da obrigação de pagar Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI. Comportamento ofensivo à livre concorrência. Singularidade do mercado e do caso . Liminar indeferida em ação cautelar. Inexistência de razoabilidade jurídica da pretensão. Votos vencidos. Carece de razoabilidade jurídica, para efeito de emprestar efeito suspensivo a recurso extraordinário, a pretensão de indústria de cigarros que, deixando sistemática e isoladamente de recolher o Imposto sobre Produtos Industrializados, com conseqüente redução do preço de venda da mercadoria e ofensa à livre concorrência, viu cancelado o registro especial e interditados os estabelecimentos” (AC 1657-MC, Re. Min. Joaquim Barbosa, Rel. p/ acórdão Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, DJ: 30-08-2007, Publ. 31-08-2007)
B. Elemento modal – a distinção entre competição e Guerra Fiscal.
Até aqui, foram abordados os quatro elementos que, na classificação proposta, são
comuns às espécies do gênero competição fiscal: causal, finalístico, objetivo e subjetivo. Com
efeito, sempre que se verificar a ocorrência de práticas de competição fiscal estarão presentes,
em maior ou menor grau, os quatro elementos acima analisados. É, portanto, o quinto
elemento da competição fiscal que possibilitará a identificação da prática como sendo um ato
de mera competição ou de Guerra Fiscal propriamente dita. O elemento em questão é o
elemento que chamaremos de modal.
O termo modal, segundo o léxico, ora “se refere aos modos da substância”, ora
“diz respeito à modalidade”, ora conecta-se “ao modo particular de ser, de fazer alguma
coisa”77. É nesta última acepção que adotamos a palavra. Quer dizer, a análise por meio da
qual se pode identificar um caso como sendo de Guerra ou de competição fiscal deve partir da
forma como ela se dá. Isto em termos de esquemas binários de análise que avaliem de maneira
satisfatória dois importantes modos de ser da competição, a saber: (i) seu cabimento dentro do
sistema tributário considerado, i.e., a nível de licitude/ilicitude (jurídico/não jurídico); e (ii)
seus efeitos sociais, se desejados ou desejáveis – ou não –, ou seja, benéfico/prejudicial nos
quadros da dinâmica entre as localidades que competem entre si. Uma prática competitiva
será considerada Guerra Fiscal na medida em que seja identificada, segundo tais esquemas,
como negativa.
O primeiro esquema decorre da própria natureza da tributação, que, nos Estados
contemporâneos, obedece a rígidos critérios de manipulação, princípios e regras. Refere-se,
portanto, à obediência aos preceitos que condicionam e que delimitam o exercício do poder de
tributar, de acordo com um sistema jurídico considerado. Deve-se analisar, em síntese, se a
forma como se opera a prática competitiva é constitucional e legal, sob os mais diversos
aspectos. É preciso analisar, também, se há obediência aos princípios e regras que regem a
intervenção estatal no domínio econômico, pois, como referido, trabalha-se, no campo da
competitividade fiscal, com o aspecto indutor de condutas da norma tributária. Se assim é,
“não pode a norma tributária indutora contrariar os princípios constitucionais, sejam esses
77 Cf. Dicionário de Português Online “Michaelis”, disponível no sítio a seguir, visitado em 11/10/2013: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/. Vide termo “modal”.
relativos diretamente à matéria tributária, sejam relativos às finalidades econômicas
objetivadas pelo instrumento tributário”78.
Já o segundo esquema, que diz respeito aos efeitos das práticas de competição
fiscal, é um pouco mais delicado, dependente que é de análises que devem considerar um
quadro mais amplo, num jogo de ações e reações em cadeia decorrentes dos benefícios fiscais
utilizados pelos lugares, em termos de ocupação do território, renda, qualidade de vida, em
suma, elementos geográficos, socioeconômicos e políticos que marcam positiva ou
negativamente os espaços geográficos. É dizer: deve-se analisar se e em que medida os efeitos
sociais efetivos ou potenciais de uma dada prática competitiva são desejáveis ou indesejáveis
num contexto que é essencialmente dinâmico, como é o dos fluxos humanos que se
conformam à divisão do trabalho.
Esta análise, a nosso ver, deve ser feita em dois planos: (i) no plano ideal,
levando-se em conta o momento da criação do benefício; e (ii) no plano fático, levando-se em
conta dos impactos efetivos do benefício na realidade socioeconômica envolvida.
Sob a ótica ideal, a nosso ver, deve-se buscar identificar quais são os objetivos
almejados com a criação do benefício fiscal em consideração, quais os motivos que
determinaram sua criação, se seu escopo é meramente arrecadatório ou predatório e,
principalmente, se a criação do incentivo é um meio adequado para a realização do fim
pretendido. Tudo isto no momento da criação do benefício, com forma de “testar” em abstrato
a legitimidade da medida. Cuida-se de um exame a ser feito previamente, amparado, sempre
que possível, por uma gama de elementos (projeções, estudos, pareceres, demonstrativos etc.).
Este exame prévio deve – deveria – impedir a criação de medidas abusivas ou
irracionais, devendo o ente tributante antecipar-se aos efeitos dos incentivos criados.
Efetivamente, trata-se de um cálculo a levar em conta o fim pretendido pelo ente tributante e
tendente a averiguar se a conduta que se pretende induzir é realmente uma consequência
possível do benefício. Na mesma medida, deve-se buscar saber quais serão as possíveis outras
consequências do ato e verificar se, literalmente, o incentivo “valerá a pena” a longo prazo,
inclusive, frente aos demais entes tributantes contra / com quem se compete e aos possíveis
prejuízos decorrentes da medida. O escopo da análise abstrata do incentivo seria, por assim
dizer, preventivo.
No exame concreto, como referido, entende-se que o concedente do benefício
fiscal deve monitorar de forma periódica e sistemática os impactos decorrentes da medida
78 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 400P. PP. 89 e ss.
implantada, de forma a averiguar se esta foi eficaz, seja em termos de alcance do fim
pretendido, seja em termos de não causar danos (para o próprio ente tributante e também para
os demais) insuportáveis ou de difícil reparação. Entende-se, ainda, que o benefício fiscal, por
ser uma exceção, deve ser monitorado para que, tão logo sejam os fins almejados alcançados,
seja ele retirado do sistema. Isto porque a manutenção de um benefício fiscal indefinidamente
pode, a depender de sua estrutura e das condutas a que ele induza, torná-lo injustificado ou até
mesmo prejudicial ao longo do tempo, sob pena, no limite, de uma competição fiscal que
começou legítima adquirir o tônus de uma Guerra Fiscal.
Em termos muito esquemáticos, portanto, o que identifica uma dada conduta
como “Guerra Fiscal” é o seu caráter negativo, em temos jurídicos (inconstitucionalidade e
ilicitude) quanto em termos políticos e sócio econômicos amplamente considerados
(indesejabilidade de seus efeitos em concreto ou em abstrato, baixo custo benefício ou
inadequação para a obtenção dos fins pretendidos). Em outras palavras, o que constitui a
Guerra Fiscal é a chamada “harmful competition”, cuja identificação depende de um
compromisso das autoridades, dos agentes econômicos e da sociedade civil globalmente
considerada.
Tratando-se de um benefício capaz de articular as condutas dos agentes
econômicos de forma garantir resultados desejados e de forma juridicamente possível, com
efeitos positivos que compensem eventuais prejuízos decorrentes da medida, estar-se-á diante
do que chamamos de competição fiscal em sentido estrito, espécie marcada por um modal
positivo e sistematicamente amparada pelo Direito. Como tal, e na medida em que propicie o
aumento da eficiência dos aparatos estatais, parece-nos que a medida deve ser prestigiada e
ampliada.
Com efeito, diversos são os estudos que demonstram que a competição fiscal
articulada e bem estruturada é capaz de aumentar a eficiência do Estado e é capaz de gerar
benefícios sociais e econômicos não só para o ente tributante concedente do incentivo mas
também a localidades do entorno, pois, como referido, o aquecimento econômico tem efeitos
que muitas vezes ultrapassam os limites do local no âmbito do qual são concedidos os
incentivos, o que afeta uma estrutura mais ampla, que envolve os elementos logísticos das
atividades incentivadas e os serviços públicos oferecidos em função do incremento
econômico. A esse respeito, citamos recente estudo da Fundação Getúlio Vargas que ...
4.3. O conceito de Guerra Fiscal
Analisados os elementos comuns da competição fiscal e o elemento específico da
Guerra Fiscal, pode-se dizer que o conceito desta é o seguinte: disputa entre entes tributantes,
decorrente de tensões (desequilíbrios efetivos ou potenciais) entre espaços geográficos,
mediante a concessão de incentivos fiscais, com vista à atração de investimentos ou empresas
privadas, marcada por um modal negativo, que pode ser a sua ilegitimidade
(inconstitucionalidade e/ou ilegalidade) ou a nocividade de seus impactos geográficos,
socioeconômicos, institucionais ou políticos. A competição fiscal em sentido estrito distingue-
se da Guerra Fiscal na medida em que apresenta um modal positivo, em termos de
legitimidade (constitucionalidade e legalidade) e também em termos de seus impactos
positivos na realidade social.
Feitas estas considerações, faremos de forma breve o confronto da Guerra Fiscal,
de acordo com o conceito proposto, com a questão da Legitimidade e da crise de legitimidade,
apontando as conclusões extraídas ao longo do estudo.
“ ”
( )
5. Guerra Fiscal como um índice de crise de legitimidade do
Estado
Vimos que a Guerra Fiscal é a espécie de competição fiscal marcada por um
modal negativo. Este modal negativo por ser normativo, isto é, decorrer de vícios de
inconstitucionalidade ou ilegalidade do benefício, ou factual, quando tiver escopo predatório
ou gerar danos sociais para o próprio ente tributante concedente (“race to bottom”) ou para
outras localidades (v.g., desocupação etc. – “harmful tax competition”. Em qualquer caso, a
negatividade modal das práticas competitivas encerram problemas de lealdade do ente
tributante para com os seus concorrentes e mesmo para a população sob sua jurisdição.
Do ponto de vista normativo, é evidente que o ente tributante que introduz
normas, de caráter eminentemente indutor de condutas, que não encontram fundamento no
sistema jurídico é desleal para com os receptores sociais que adotam a conduta incentivada,
certamente com expectativas correspondentes (efetiva diminuição no tributo a pagar, em
especial). Isto porque, em não sendo o benefício válido, esta invalidade pode prejudicar o
receptor social que agiu de acordo com a expectativa transmitida pelo Estado.
Com relação aos demais entes tributantes, a deslealdade de práticas competitivas
inconstitucionais ou ilegais é ainda mais clara, na medida em que figuram – e aqui falamos
sob a ótica “interna” de um Estado – como nítido desrespeito às regras do jogo, na medida em
que, assim como a criação de tributos, as desonerações tributárias devem ocorrer de forma
consentânea com as regras que disciplinam o exercício do poder de tributar, que têm como
uma de suas razões de ser evitar conflitos entre entes de uma mesma ordem estatal, de modo a
preservar a solidez institucional que assegura a manutenção do Estado. Da ótica internacional,
práticas de Guerra Fiscal ferem, em graus variados, cláusulas constitucionais que prestigiam
uma postura pacífica na sociedade internacional e também a soberania dos demais Estados
concorrentes.
Do ponto de vista factual, não é preciso tecer grandes considerações no que
concerne àquelas práticas de Guerra Fiscal de caráter nitidamente predatório, como é o caso
dos incentivos concedidos, por exemplo, por localidades já desenvolvidas. Em última análise,
tais práticas buscam assegurar a manutenção de desequilíbrios e inconsistências entre os
espaços geográficos subordinantes (os concedentes) e os subordinados. Busca-se, em termos
esquemáticos, agravar as dimensões e os efeitos desses desequilíbrios, impedindo o
desenvolvimento das localidades com menores possibilidades em termos de recursos e de
atração de investimentos e empresas.
Relativamente aos danos sociais, será considerada Guerra Fiscal uma prática
competitiva que possa afetar negativamente outras localidades, causando sua desocupação ou
seu empobrecimento a níveis críticos, o que constitui a chamada competição fiscal prejudicial.
De igual forma, aquelas práticas competitivas que impliquem queda na arrecadação a níveis
que possam prejudicar a eficiência do Estado no bom cumprimento de suas atividades,
caracterizando a chamada “race to bottom”, serão consideradas práticas de Guerra Fiscal.
Em Estados como o brasileiro, cujo sistema constitucional alberga não só as
funções típicas de bloqueio, mas também funções de legitimação de aspirações sociais79 , tanto
as práticas de Guerra Fiscal normativa quanto as de Guerra Fiscal factual podem ser
consideradas como problemas diretamente ligados à sua robustez institucionais, e podem, por
isso, ser considerados índices de crise de legitimidade do Estado. Isto porque, em qualquer
caso, práticas desta ordem implicam uma situação seriamente incômoda, a saber: o fato de o
Estado não respeitar a sua própria Constituição, que ora estabelece regras rígidas para o
exercício do poder de tributar e para a intervenção no domínio econômico, ora impõe que ele
deve buscar o desenvolvimento de uma sociedade “fraterna, pluralista, sem preconceitos,
fundada na harmonia social”, e não o contrário.
Especificamente do ponto de vista normativo, sabe-se que o destinatário das
regras que disciplinam o exercício da competência tributária e também aquelas que regulam a
intervenção no domínio econômico têm o próprio Estado como destinatário. Na medida em
que ele simplesmente as ignora e age ostensivamente em desacordo com elas – é o que temos
verificado no que concerne à Guerra Fiscal do ICMS, por exemplo, em que os Estados e o
Distrito Federal continuam concedendo benefícios sem amparo em Convênio, nada obstante o
Supremo Tribunal Federal já tenha se pronunciado no sentido da inconstitucionalidade de
práticas como essas – cria-se um ambiente de tensão, insegurança e descrédito generalizado,
especialmente do ponto de vista da sociedade civil (agentes econômicos, especialistas em
economia e em Direito etc.). Este clima sinaliza para um problema de ineficiência crônica do
Poder Público e pode muito bem ser considerado como uma desconfirmação, por parte dos
79 Ver, nesse sentido, cap. 1.
Estados e do Distrito Federal (adotando como exemplo o caso brasileiro), da mensagem
normativa emanada do Supremo Tribunal Federal. Desconfirmação essa que precisa ter – e
até agora não teve – uma resposta consistente. De modo que, nesse sentido, as práticas de
Guerra Fiscal indicam para uma potencial crise de legitimidade do Estado.
Da ótica factual, por outro lado, a Guerra Fiscal representa uma ação estatal na
contramão de seus objetivos maiores, quando se fala em Estados como o brasileiro, que
assumem um compromisso de fraternização, pluralização, harmonização e equalização social,
de desenvolvimento sustentável e igualitário entre as diversas regiões do país, e de uma
postura de respeito à soberania e à paz no âmbito internacional. Na medida em que as ações
de Guerra Fiscal são assumidas abertamente pelos Estados que as praticam, indicam, no
limite, atos de gestão impensada e inconsequente da coisa pública, o que certamente tem a
potencialidade de conduzir a quadros institucionais críticos, capazes de por em risco a ordem.
Isto sem mencionar que, como referido, as práticas de Guerra Fiscal, por sua própria natureza,
já indicam a existência de desequilíbrios na ocupação dos diversos espaços geográficos e
figuram como tentativas de reversão destes quadros, que não puderam ser resolvidos por
outros meios que fossem ao menos leais.
Percebe-se, com o que foi exposto até aqui, que as práticas de Guerra Fiscal são
indicativos de problemas institucionais muito sérios e de dificílima resolução nos quadros do
Estado. É óbvio que não se pode dizer, ao menos neste momento, que apenas a Guerra Fiscal
seja capaz de conduzir, ela mesma, à crise de legitimidade, que supõe uma conjuntura mais
generalizada (guerra civil, desobediência civil, revolução, crime organizado etc.). De qualquer
forma, o fato é que os problemas que a Guerra Fiscal se propõe a resolver e aqueles que ela
mesma encerra são altamente incômodos para a sociedade como um todo e precisam ser
estancados e neutralizados. Caso isto não ocorra, tais problemas poderão determinar a
ocorrência de uma quebra de confiança nas instituições, o que constitui um elemento básico
para que a autoridade do Estado passe a ser posta em xeque pelos cidadãos, da escala mais
individual à escala mais coletiva, o que tende a se agravar até que se possa falar na crise de
legitimidade propriamente dita.
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