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O Show de Truman O espetáculo de nossas Vidas. Autor: Rodolfo José Colombari – Bacharel em Comunicação Social com Habilitação para Publicidade e Propaganda. [email protected] - Orientador: Caio Aguilar Fernandes. INTRODUÇÃO O cinema sempre traz filmes que tratam de diversos assuntos e temas, sendo uma ampla fonte de estudo, de análise e reflexão em cima dos temas abordados. Esses filmes, quando bem feitos, trazem consigo conceitos interessantes de serem trabalhados, analisados e discutidos. O filme O Show de Truman foi escolhido, pois permite analisar de maneira simples e direta a forma como nós, indivíduos de uma sociedade, somos cercados de mecanismos que nos guiam por caminhos que, às vezes, não são os que desejaríamos escolher, e o filme retrata muito bem essas relações entre indivíduo, meios de manipulação e controle social. O Show de Truman é um desses filmes que está recheado de conceitos das mais diversas áreas. O filme traz conceitos religiosos, filosóficos, psicológicos, sociológicos entre outros, que se bem analisados e estudados, geram uma boa discussão a respeito, mostrando que mesmo um filme feito para a diversão e o lazer da maioria das pessoas também pode ser utilizado como meio de estudos e discussões sobre diversos temas. A intenção do trabalho é fazer uma comparação entre o mundo do personagem Truman e o nosso mundo real, mostrando que os mesmos meios que manipulam sua vida também são amplamente utilizados para manipular as nossas, prendendo cada um de nós dentro do seu próprio show de Truman. O primeiro capítulo apresentará uma noção básica do filme. Será analisada a parte técnica. Há a apresentação do enredo do filme, de seus atores, além de uma análise das referências com outros filmes que partilham do mesmo tema de O Show de Truman, como, por exemplo, os filmes Matrix e A Ilha; além da referência com obras literárias, como um conto de Machado de Assis e o livro 1984, de George Orwell.

MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

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Page 1: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

O Show de Truman O espetáculo de nossas Vidas.

Autor: Rodolfo José Colombari – Bacharel em Comunicação Social com Habilitação para

Publicidade e Propaganda. [email protected] - Orientador: Caio Aguilar Fernandes.

INTRODUÇÃO

O cinema sempre traz filmes que tratam de diversos assuntos e temas, sendo

uma ampla fonte de estudo, de análise e reflexão em cima dos temas abordados. Esses

filmes, quando bem feitos, trazem consigo conceitos interessantes de serem

trabalhados, analisados e discutidos.

O filme O Show de Truman foi escolhido, pois permite analisar de maneira

simples e direta a forma como nós, indivíduos de uma sociedade, somos cercados de

mecanismos que nos guiam por caminhos que, às vezes, não são os que desejaríamos

escolher, e o filme retrata muito bem essas relações entre indivíduo, meios de

manipulação e controle social.

O Show de Truman é um desses filmes que está recheado de conceitos das

mais diversas áreas. O filme traz conceitos religiosos, filosóficos, psicológicos,

sociológicos entre outros, que se bem analisados e estudados, geram uma boa

discussão a respeito, mostrando que mesmo um filme feito para a diversão e o lazer da

maioria das pessoas também pode ser utilizado como meio de estudos e discussões

sobre diversos temas.

A intenção do trabalho é fazer uma comparação entre o mundo do

personagem Truman e o nosso mundo real, mostrando que os mesmos meios que

manipulam sua vida também são amplamente utilizados para manipular as nossas,

prendendo cada um de nós dentro do seu próprio show de Truman.

O primeiro capítulo apresentará uma noção básica do filme. Será analisada a

parte técnica. Há a apresentação do enredo do filme, de seus atores, além de uma

análise das referências com outros filmes que partilham do mesmo tema de O Show de

Truman, como, por exemplo, os filmes Matrix e A Ilha; além da referência com obras

literárias, como um conto de Machado de Assis e o livro 1984, de George Orwell.

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Na segunda parte serão levantados os conceitos que aparecem no filme.

Serão levantadas teorias religiosas que nos trazem a maneira de ver o mundo,

conceitos filosóficos que se encaixam no modo de como o personagem Truman busca

a verdade de seu mundo, podendo ser comparado com um filósofo como Sócrates ou

Descartes, e ainda a comparação com o mito da Caverna de Platão.

A pesquisa foi embasada em textos de livros de autores como Marilena

Chauí, Louis Althusser, Durkhein, Platão, entre outros, e para se estabelecer algumas

comparações foi utilizada a Bíblia, pois o filme traz várias referências a acontecimentos

bíblicos, assim como alguns textos virtuais que trazem informações sobre os filmes que

foram utilizados no presente trabalho.

Ainda no segundo capítulo serão abordados conceitos sobre ideologia e

alienação, amplamente estudados por Karl Marx e a teoria dos Aparelhos Ideológicos

de Estado, que é estudada e analisada por Louis Althusser, e é essa teoria que servirá

de base para análise das cenas do filme no terceiro capítulo.

A função do terceiro capítulo é estudar os meios que fazem com que Truman

não tenha conhecimento do mundo fictício em que vive. Serão analisadas as cenas que

contemplam a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado, como a escola, família,

meios de comunicação de massa e propaganda ideológica. Será estudado como esses

aparelhos ideológicos atuam para a manutenção do interesse do idealizador do reality

show.

Por fim, no quarto capítulo será analisada a trajetória do nosso personagem

Truman rumo à verdade de seu mundo, assim como os discursos do idealizador do

programa, que nos traz comentários importantes sobre o mundo em que vivemos e os

significados de alguns elementos que aparentemente não fazem sentido nenhum, mas

que se analisados com um pouco mais de atenção são importantíssimos para o

desenvolvimento da história e entendimento do filme.

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1 O FILME

1.1 DIREÇÃO/ATORES

O Show de Truman foi um filme escrito por Andrew Niccol, nascido na Nova

Zelândia. Já havia sido roteirista de um drama de ficção científica e resolvera escrever

O Show de Truman – O Show da Vida, do original inglês “The Truman Show” (1998,

Paramount), só que dessa vez o filme se relacionaria muito mais com o estilo dramático

do que com ficção científica.

Andrew, a respeito do filme, diz: “O que mais me perguntam a respeito do O

Show de Truman é de onde surgiu a idéia de escrevê-lo: é porque suspeito de que esta

seja a realidade.” (NICCOL, 1998, p ix).

Peter Weir, quando procurado por Andrew Niccol, já era um diretor

conhecido, tendo sido indicado ao Oscar com os filmes A Testemunha (1985) e

Sociedade dos Poetas Mortos (1989), e dirigido vários outros filmes. Peter Weir é

conhecido por fazer como que atores de ação e comédia, como Jim Carrey e Robin

Willians, interpretem papéis dramáticos com credibilidade.

Quando recebeu a proposta, o diretor passou cerca de um ano “refinando” o

roteiro, pois o escolhido para ser o protagonista dessa história, Jim Carrey, não estaria

disponível antes desse tempo (WEIR, 1998, p. xi)

James Eugene Carrey, mais conhecido como Jim Carrey, ficou conhecido no

mundo todo por suas atuações em comédias como Ace Ventura (1995), O Máscara

(1994), Débi & Lóide (1994), O Mentiroso (1997) entre outros.

Em 1996, Carrey assina um contrato milionário com a Sony para estrear o

filme O Pentelho, tendo o maior cachê já pago a um ator de comédia. Após maus

resultados com o filme, Carrey resolve mudar seu estilo de interpretação, sendo

chamado para ser o protagonista do filme O Show de Truman.

Demonstrando uma sinceridade não característica, Carrey pegou os cinéfilos

de surpresa, ganhando o Globo de Ouro por sua atuação, mas criticou demais os

membros da Academia de Cinema por não ter sido indicado ao Oscar. Em 1999,

ganhou novamente o Globo de Ouro com o filme O Mundo de Andy.

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Além dos filmes já citados acima, Jim Carrey também teve destaque em

alguns outros filmes como Eu, Eu mesmo e Irene (2000), O Grinch (2000), Cine

Majestic (2001), Todo Poderoso (2003), Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças

(2004), quando recebeu muitos elogios da crítica – o ator não recebeu nenhum Oscar,

mas o filme ganhou na categoria de melhor roteiro original – e Número 23 (2007).

(http://www.imdb.com/name/nm0000120/bio, acessado em 14/04/2008)

1.2 ENREDO

O filme trata dos últimos dias de um programa de televisão que foi

apresentado por 29 anos, 24 horas por dia, 7 dias por semana.

No filme, Truman Burbank, vivido por Jim Carrey, foi adotado quando ainda

criança para ser o protagonista de um programa do ambicioso produtor Christof

(interpretado por Ed Harris), onde cresceria em uma ilha chamada Seahaven, um

estúdio visível do espaço, criado justamente para manter Truman “preso” durante sua

vida, sendo o programa visto por todo o mundo. Todos que o cercam são atores, menos

ele.

Truman foi criado por Christof, pois este acreditava que daria ao mundo um

ator de verdade, que fosse espontâneo apesar de viver em um ambiente totalmente

controlado. A primeira idéia de Christof era que o programa durasse apenas o primeiro

ano de Truman, sendo este patrocinado por produtos infantis.

O custo era baixo – existia somente o cenário do quarto do bebê –, mas o

sucesso foi tão grande que novos patrocinadores quiseram aproveitar a oportunidade e

foi se tornando necessária a ampliação dos cenários, passando para a construção de

uma cozinha e, posteriormente, de uma garagem. Os atores também foram sendo

requisitados para a participação do reality show.

O programa foi crescendo tanto até que Christof conseguiu um investimento

que bancasse a construção do mundo fictício para Truman.

Toda história desenrola-se em torno de como Truman vai descobrindo que

mora em um mundo falso e descobrindo maneiras para sair dele. O problema é que

Christof não pode deixar com que a estrela de seu programa saia, acabando com seus

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planos, por isso ele cria várias situações que fazem com que Truman mude de idéia e

permaneça na ilha.

A única maneira que Truman teria para se libertar da ilha seria através do mar

artificial que a cercava. Pensando nessa possibilidade, Christof criara, através dos

anos, situações que incutiram em Truman um imenso pavor de água, como no episódio

em que vê seu pai morrer afogado.

Com o desenrolar da história, Truman foi percebendo algumas situações que

fugiam do normal. A primeira dela foi o contato com uma atriz que participara do Show

quando Truman ainda terminava a faculdade. Para o rapaz, ela seria Lauren Garland,

uma mera figurante do programa. Por várias vezes, porém, eles trocam olhares até que

Truman acaba indo conversar com ela levando-a para a praia, onde a moça começa a

lhe contar a verdade que o cerca, ela revela a ele que seu nome verdadeiro é Sylvia e

não Lauren, diz que todos mentem para ele e que vive em um mundo artificial.

Truman fica confuso, não entende o que realmente Sylvia quer lhe dizer.

Neste momento, chega um homem que diz ser pai de Sylvia, alegando que ela tem um

problema de cabeça e a leva para longe dizendo a Truman que a levará para as Ilhas

Fiji.

Truman, diante da desconfiança de que algo está errado, se torna obcecado

em sair de Seahaven para encontrar Sylvia e poder tirar toda essa história a limpo, além

de outros fatos que fazem com que ele desconfie de toda armação.

Um dia, indo para o trabalho, o rádio do carro entra numa freqüência em que

o “narrador” diz exatamente o caminho que Truman está fazendo como se o

acompanhasse. Logo após isso, Truman, ao tentar entrar em um elevador de um

prédio, percebe que simplesmente não há elevador e que se trata de um cenário.

Olhando o álbum da família, se depara com uma foto do dia em que ele e

Meryl, sua esposa, casaram-se. Ao analisar a fotografia com uma lupa, percebe que ela

cruzara os dedos ao beijá-lo.

Diante da possibilidade de seu reality show acabar e de Truman descobrir

toda verdade a cerca de sua vida, Christof resolve fazer com que o pai de Truman

retorne e, aparentemente, a idéia dá certo. Entretanto, Truman consegue sair para o

mar navegando em um pequeno veleiro arriscando-se entre as ondas.

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Christof, desesperado com a “fuga” de Truman, cria vários artifícios para

impedir que ele saia de Seahaven, cria até uma tempestade que faz com que o barco

de Truman vire, mas o mesmo não desiste da idéia de se ver livre daquele mundo

criado para ele. O diretor então desiste até que a ponta do barco de Truman se choca

contra o cenário, “furando o céu”.

Diante de tal situação, Truman fica perturbado em saber que sempre vivera

em um cenário, de que nada ali era real. Ele então esmurra o falso horizonte que o

prende quando vê uma escada que leva a uma porta e caminha em direção a ela.

Ele abre a porta e lá fora só se vê a escuridão. Quando se prepara para sair

ouve-se a voz de Christof que tenta convencê-lo a ficar no mundo fictício criado

exclusivamente para ele. Truman diz uma frase irônica, faz uma reverência e retira-se.

Na tela, resta a imagem da porta transposta. Em frente à TV, um espectador pergunta a

outro o que era apresentado nos demais canais.

1.3 PRODUÇÃO

O Show de Truman foi filmado em uma cidade real na costa leste da Flórida

chamada Seaside.

Seaside é uma cidade planejada por um arquiteto, casa por casa, com

moradores de verdade que no começo não aceitaram muito bem o fato de que as

filmagens seriam feitas lá. O arquiteto queria um valor absurdo pelo “aluguel” da cidade,

mas depois de muita conversa e negociação foi explicado que o filme seria importante

para a cidade, fazendo com que ele concordasse com as filmagens.

A escolha da cidade foi de extrema importância para o contexto do filme,

talvez sem ela o filme tivesse se tornado menos eficaz num aspecto muito importante

que é a sensação de confinamento vivido por Truman, a idéia de um ambiente

extremamente perfeito e controlado pelos produtores do programa.

A idéia inicial do projeto era construir uma cidade cenográfica ou utilizar uma

que já tivesse as características desejadas pelos diretores e produtores. Essa idéia até

foi iniciada, mas seus gastos com manutenção eram grandes demais e por isso foi

abandonada; esse talvez não tenha sido o fato principal que levou seus produtores a

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abandonar a idéia da cidade cenográfica; essa cidade cenográfica era bem parecida

com a França e em algumas partes também lembrava Manhatan.

Os diretores queriam alguma locação que tivesse várias casas parecidas para

passar a idéia de que se vivia em um local terrivelmente planejado, um planejamento

urbano futurístico e essas características foram encontradas justamente em Seaside.

(WEIR, Peter. O Show de Truman - Edição Especial para Colecionadores.

Estados Unidos: Paramount Pictures, 2006. Making of de O Show de Truman (Parte I)

DVD-VIDEO. NTSC)

1.4 FILMES RELACIONADOS

O que é realidade e o que é ilusão é um tema bastante discutido e é também

um tema bastante usado em filmes. Podemos citar aqui alguns exemplos de filmes que

trazem essa discussão à tona.

A ILHA: Um filme de ficção científica que conta a história do personagem

Lincoln Six-Echo, que é morador de um complexo rigorosamente controlado. Além de

Lincoln, várias outras pessoas também estão confinadas nesse complexo sob a ilusão

de que são os últimos sobreviventes de uma catástrofe que aconteceu com a raça

humana, sonhando em serem escolhidos para irem à Ilha, último paraíso humano

descontaminado.

Na verdade, essas pessoas nada mais são do que clones criados para a

reposição de “peças” para seres humanos que pagam para que aqueles sejam criados.

Lincoln, sabendo que é só uma questão de tempo até que ele também seja usado,

parte para uma ousada fuga em busca de sua liberdade e para que a realidade seja

mostrada ao mundo.

MATRIX: Um filme que retrata a existência de um mundo paralelo onde o

protagonista (Thomas Anderson), um programador de computadores, é atormentado

por pesadelos nos quais se encontra preso por fios que compõem um grande sistema

computacional. A repetição deste sonho o leva a questionar a realidade. Por meio de

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Morpheus (Deus dos Sonhos, na mitologia Grega) e Trinity, integrantes de um grupo de

resistência, Anderson descobre que foi vítima da Matrix, um sistema inteligente que

manipula a mente dos seres humanos, gerando um mundo ilusório enquanto seus

cérebros e corpos são usados para produzir energia.

Morpheus acredita que Thomas é Neo, o salvador da resistência, capaz de

enfrentar a Matrix e trazer a liberdade para a humanidade, mas Neo não acredita que

possa ser o escolhido.

Neo recebe a ajuda de Morpheus que fora designado para tirá-lo da ilusão e

ele tendo idéia do sonho em que vivia poderia livrar-se salvando os últimos seres

humanos habitantes de Zion. Neo, no filme, poderia ser comparado a Jesus Cristo e

vários podem ser os fatos que levam a essa comparação, como o fato de morrer e

ressuscitar da mesma maneira que Jesus ressuscitou após ter morrido pelas mãos dos

romanos ou quando Neo é tentado pelos agentes a trair Morpheus assim como Jesus

foi tentado no deserto, e também o fato de Neo ser o escolhido para salvar os últimos

seres humanos.

Neo quando procurado por Morpheus tem a possibilidade de escolher ver

qual é a realidade que vive, ou continuar na ilusão de achar que tudo aquilo é real, e

Neo, da mesma maneira que Truman resolve buscar a verdade, por mais difícil que

essa possa parecer.

CIDADE DAS SOMBRAS: Em uma cidade em que é sempre noite, John

Murdoch (Rufus Sewell) acorda sozinho em um hotel e descobre que está sendo

perseguido pelo detetive Burnestead (Hurt) por uma série de assassinatos, mas ele não

se lembra de nada do que aconteceu. Além da polícia existem criaturas humanóides

que o perseguem tendo o poder de remodelar a realidade.

Ajudado pelo Dr. Daniel Schreber (Sutherland) que afirma poder ajudá-lo na

busca por sua identidade fazendo com que John perceba que as coisas não são como

parecem ser.

O filme retrata, de maneira metafórica, a escuridão em que a sociedade se

encontra, ninguém vê uma luz para salvá-los de forças estranhas, ou de situações das

quais o personagem principal não concorda ou não entende. O personagem chega a

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dizer que estão todos dormindo, estão todos de olhos fechados, não percebendo o que

acontece a nossa volta, a fome, a miséria, a corrupção, a violência, a manipulação de

informação, a falta de educação, são todos assuntos para os quais a maioria das

pessoas estão vendadas.

VANILLA SKY: Em Nova York são narrados em flashback fatos angustiantes

da vida de David Aames (Tom Cruise), um jovem empresário que é dono de um império

editorial. David tem sua vida modificada quando conhece Sofia Serrano (Penélope

Cruz), uma bela jovem por quem se apaixona. Tal relacionamento desperta ciúmes em

Julie Gianni (Cameron Diaz), uma "amizade colorida" de Davis, que quer muito mais do

que mero envolvimento sexual com ele.

Um dia, após sair da casa de Sofia, David encontra Julie, que usando o

pretexto de querer conversar com ele o convence a entrar no carro dela. Em um ímpeto

de loucura, e cega por se sentir preterida, ela lança o carro por cima de um viaduto. Ela

não resiste ao impacto e morre. David sobrevive, mas fica com o rosto bem desfigurado

e entra em coma, ficando neste estado por três semanas. Ao se ver, David fica

traumatizado e oferece qualquer quantia para reconstruírem seu rosto. Repentinamente

realidade e fantasia se confundem de forma assustadora.

O 13º ANDAR: Douglas Hall e seu sócio, Hannon Fuller, dois pesquisadores

da área de informática, estão prestes a colher resultados positivos em seu último

projeto: desenvolver um mundo simulado utilizando realidade virtual. Porém, Fuller é

misteriosamente assassinado, antes de passar informações importantes sobre o projeto

para Douglas, que agora é o principal suspeito de ter efetuado o crime. Desorientado e

em busca da verdade em torno dos acontecimentos, Douglas decide por entrar no

mundo simulado para investigar a morte de Fuller.

Esse filme nos faz pensar em quem seria o arquiteto, ou o programador do

nosso mundo? Quem estaria controlando nossas mentes e atitudes, ou simplesmente

nos observando a todo o momento? Estaríamos fazendo parte de um mundo imaginário

criado dentro de outros mundos?

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Em O Show de Truman sabemos que o controlador de todo o mundo fictício é

Christof e que Truman vai à luta para buscar a verdade, da mesma maneira que

Douglas Hall busca no filme, e isso nos mostra que precisamos buscar a nossa

verdade, buscarmos o entendimento do nosso mundo e para onde esse conhecimento

nos levará.

1.5 A RELAÇÃO ENTRE OS FILMES

Os filmes citados têm uma grande ligação com O Show de Truman sob o

aspecto de que todos os personagens principais, Truman, Lincoln, Neo, John Murdoch,

David Aames, Douglas Hall vivem em um mundo controlado por forças maiores,

podendo essas forças serem exercidas através dos meios sociais, ou através da

realidade virtual ou o controle de corporações privadas, não tendo eles qualquer

conhecimento da manipulação que sofrem, são meros objetos de um grande esquema.

Começam então a questionar o mundo em que vivem buscando pela verdade

descobrindo aos poucos o mundo manipulado que os rodeiam, ou como diriam os

filósofos: começam a ter a atitude científica de questionar o mundo ao seu redor,

deixando de acreditar no senso comum, nas opiniões já cristalizadas.

Os filmes questionam a relação do homem com a sociedade em que vivem, a

sua capacidade de interpretar de modo coerente e investigativo os fatos que os

rodeiam, cada personagem descobre a verdade de um modo diferente, por meios

diferentes e por razões diferentes, mas todo em busca da verdade do mundo em que

vivem. Colocam a difícil percepção do que é real e o que é imaginário, a distinção do

que é realidade e o que é sonho.

1.6 LITERATURA

Não é só o cinema que traz a tona às questões de manipulação, da visão

conturbada que o mundo, ou os indivíduos, têm a respeito deles mesmos e de

maneiras, mesmo que metafóricas, de se quebrar as barreiras que nos cercam em

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busca da verdade. A Literatura também traz estas questões em muitas obras de autores

importantes.

Podemos citar Machado de Assis como o grande representante do Realismo

no Brasil. Machado captou na sociedade os grandes temas de suas obras, buscava

sempre através do psicologismo, do tom irônico, às vezes até pessimista, a reflexão

filosófica, o dualismo essência e aparência, o caráter relativo da moral humana, os

costumes e as máscaras sociais de seu tempo, os impulsos interiores, a normalidade e

a loucura, tratando em seus romances de temas universais, que poderiam facilmente

ser transportados para qualquer tempo e qualquer tipo de sociedade.

Existe um conto Machadiano que retrata bem a visão limitada que temos do

mundo que nos rodeia; chama-se Idéias de Canário (1899).

Conta a história de um rapaz, estudioso de ornitologia, que ia por uma rua

quando que quase atropelado foi parar em uma casa de Belchior (local que vende

objetos usados) e que entre muitas coisas velhas que havia ali ele acaba por encontrar,

em meio a tantas coisas velhas, uma gaiola velha com um canário vivo. Achando

estranho aquele resquício de vida que encontrara ali ele se aproxima da gaiola

murmurando para si mesmo como que alguém tivera a coragem de vender aquele

pássaro por uns poucos trocados. Sem menos esperar, o canário responde ao rapaz,

dizendo que ele está louco, que ele não possuíra nenhum dono e que também não fora

vendido.

Espantado, o rapaz começa a argumentar com o pássaro, tentando entender

como é que ele foi parar ali, quem era seu dono. O canário continua irredutível

afirmando que nunca tivera dono e que o velho que cuidava dos objetos da Casa de

Belchior nada mais era do que seu criado, pois lhe dava comida e água todos os dias e

que não cobrava por esses serviços.

O rapaz, pasmo diante de tais respostas, pergunta-lhe se ele não tinha

saudades do mundo, da liberdade, do azul e infinito e pergunta-lhe o que pensas deste

mundo, e o canário com um ar de professor responde: “- O Mundo (...), o Mundo é uma

loja de Belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um

prego; o canário é o senhor da gaiola que habita e da loja que habita. Fora daí, tudo é

ilusão e mentira.”

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O velho, dono da Casa de Belchior, acorda e vai falar com o rapaz que decide

então levar o pássaro mandando posteriormente, um de seus empregados comprar-lhe

uma gaiola maior ordenando que a pusesse na varanda de sua casa, onde o canário

pudesse ver todo o jardim.

Três semanas depois o rapaz pediu ao canário que repetisse a definição de

mundo e o canário então respondeu: “- O Mundo (...), é um jardim assaz largo com

repuxo no meio, flores, arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima;

o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o

resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.”

O rapaz, depois de muito estudar o pássaro, acaba ficando doente sendo

obrigado a se afastar dos seus estudos com o canário. Seu criado continuava cuidando

do canário até que um dia o canário fugiu. O rapaz, dono do canário, ficou furioso mas

logo passou sua raiva e ele pôde terminar seus trabalhos sobre o canário, mesmo que

ainda incompletos.

Um dia, andando pelas redondezas ele avista o pássaro em um galho de uma

árvore e vai conversar com ele, convidando-o a voltar às velhas conversas naquele

mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular quando o

canário o interrompe dizendo: “- Que Mundo? (...). O Mundo é um espaço infinito e azul

com o sol por cima.”

O rapaz então lhe diz que ele acha que o mundo é tudo, até já fora uma Casa

de Belchior, e o canário finaliza: “-De Belchior? Mas há mesmo lojas de Belchior?”

Podemos perceber com esse conto, que cada um tem uma percepção

diferente de mundo e como essa percepção muda de acordo com as circunstâncias em

que nos encontramos; às vezes estamos tão tomados por uma certa situação que não

conseguimos entendê-la corretamente, mas depois de passado algum tempo

conseguimos perceber todos os fatos que nos cercavam.

Para Truman tudo aquilo era o seu mundo, mas o seu ponto de vista vai

mudando no decorrer do filme, ele vai se libertando de sua gaiola, descobrindo novos

horizontes e abandonando velhas idéias.

Outro livro que nos coloca essa noção do que é realmente liberdade, se

somos livres ou não e da percepção dos fatos que nos rodeiam é o 1984 de George

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Orwell que foi publicado em 1948. Orwell escreveu esse livro após a segunda guerra

mundial, em uma época em que havia sinais de que o mundo partiria para um rumo

extremamente totalitário, como eram os regimes fascistas de Stálin e Hitler.

O livro descreve uma sociedade totalmente manipulada, em que o Estado é

onipresente, com a capacidade de alterar os fatos, o idioma, de oprimir e torturar o povo

com o objetivo de manter sua estrutura inabalada, existem forças que dominam todos

os atos da população, por meio da propaganda ideológica do partido do Grande Irmão,

existe a polícia do pensamento que como o próprio nome já diz, controla o pensamento

de todos, sabendo de qualquer tipo de oposição ao regime implantado.

O Grande Irmão domina a todos pela mentira e pelo medo, que domina o

espírito da população, assim como Truman é dominado pelos apelos de Christof. Há

também o Ministério da Verdade, onde os fatos são modificados em relativas ou relatos

falsos, escondendo a verdade da população, e como se os fatos anteriores nunca

tivessem existido.

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2. CONCEITOS POR TRÁS DE “O SHOW DE TRUMAN”

Para que possamos entender por quais meios de manipulação o personagem

Truman passa é importante que seja levantado alguns conceitos que nos esclareçam

essas formas de dominação, que expliquem suas origens e que para mais tarde

possamos detectá-las no filme.

2.1 CONCEITO RELIGIOSO

Existe no budismo uma teoria que explica a diferença entre os sábios e os

ignorantes: O Véu de Maia e a incapacidade de se enxergar através dele. De acordo

com essa filosofia tudo o que é concreto pertence à Maia e acaba quando morremos e

o que levamos conosco são apenas as experiências vividas e o conhecimento adquirido

nesta vida, sendo esse conhecimento e experiências não pertencentes à Maia.

Esse véu nos mantém adormecidos em um mundo ilusório onde valorizamos

somente o concreto, o que o senso comum aprova como sendo o correto e o sábio em

algum momento consegue romper com esse véu reconhecendo qual a verdadeira

natureza da existência despertando do seu estado de dormência.

(www.casadaindia.art.br/aldeia.asp?codAldeia=49, acessado em 25/07/2008).

Também existe uma passagem da bíblia que conta a história de um homem

de nome Saulo que perseguia os cristãos e os matava. Saulo, sabendo que em uma

cidade chamada Damasco existiam muitos cristãos, resolve viajar até lá para capturá-

los.

Estava a caminho e já próximo de Damasco quando se sentiu fortemente

envolvido por uma luz e caindo ouviu uma voz que dizia: “Saulo, porque me

persegues?”. Saulo sem saber o que estava acontecendo pergunta: “Quem és tu?”.

Jesus responde: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Ergue-te, entra na cidade e te

dirão o que fazer”. Saulo levanta-se e é ajudado por seus companheiros, chegando na

cidade fica três dias sem ver, sem comer e sem beber. Em Damasco havia um

discípulo de Jesus, Ananias, que recebe um pedido diretamente do próprio Jesus. Fora

pedido a ele que fosse até a casa de Judas e que encontrasse Saulo que estaria

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rezando. Ananias não concordou com o fato de Jesus querer salvar um homem que

estava ali para prender os que seguiam sua palavra, mas depois da explicação que

Jesus lhe dera ele concordou.

Jesus lhe disse que ajudasse o homem, pois ele era instrumento para levar

seu nome para os pagãos, tendo que sofrer em seu nome, pois Jesus lhe mostraria o

caminho lhe devolvendo a visão. Ananias fez o que lhe fora pedido. Chegando à casa

de Judas encontrou Saulo e disse que o próprio Jesus tinha o enviado para que ele lhe

recobrasse a visão. Nesse instante caíram dos olhos de Saulo as escamas que lhe

tampavam a visão. (BÍBLIA. Atos dos Apóstolos 9:1. p. 1624)

Para o catolicismo só há salvação na palavra de Jesus Cristo, pois só em sua

palavra se encontra a verdade. Podemos entender que as escamas que cobriam os

olhos de Saulo o impediam de ver o mundo, de ver qual era a verdade, pois ele

perseguia os cristãos. O que Jesus fez foi retirar as escamas de seus olhos fazendo

com que ele pudesse ter contato com a verdade, ou seja, sua palavra e seguí-la como

forma de libertação de um mundo cego.

2.2 CONCEITOS FILOSÓFICOS

Para falarmos sobre verdade e a busca dela vamos recorrer a um texto

escrito por Platão (428/27–347 a.C.) em seu livro A República (séc IV a.C).

Trata-se de um diálogo metafórico onde Sócrates, e seus interlocutores

Glauco e Adimato, conversam a respeito do processo da busca do conhecimento em

que Sócrates mostra a visão do ignorante, que vive de senso comum, e do filósofo, que

vive em busca da verdade.

Sócrates pede para que Glauco imagine uma caverna com uma abertura por

onde passa um feixe de luz e no interior dessa caverna existem seres humanos que

nasceram e cresceram ali. Estes seres humanos ficam de costas para o feixe de luz

sem poder se mover sendo forçadas a olhar para o fundo da caverna onde são

projetadas sombras. Os prisioneiros julgam ser estas sombras a realidade, mas quando

um desses seres humanos consegue se desvencilhar dos grilhões que o prendiam e

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23

com muito esforço sai da caverna percebe que existe um mundo bem maior lá fora.

(PLATÃO. p. 261 – 300)

As teorias sobre alienação e ideologia fazem-nos pensar que vivemos em

uma sociedade totalmente manipulada por interesses políticos e econômicos e vemos

que é difícil fazer com que as pessoas tomem a atitude de desvendar e de buscar uma

realidade mais abrangente assim como fez o personagem do mito da caverna que

conseguiu sair daquela realidade. Essa atitude de “sair da caverna” pode ser

comparada com o conhecimento filosófico e a nossa capacidade de sair do senso

comum como forma de superação da ignorância, pode ser encarada como a passagem

do senso comum para o conhecimento filosófico.

Essa dificuldade de conhecer a verdade, de sair da caverna como disse

Sócrates, foi objeto de estudo de dois filósofos, um foi o próprio Sócrates e outro

Descartes. Os dois, por motivos diferentes e utilizando métodos diferentes

desconfiaram do Dogmatismo, que é uma atitude natural e espontânea que já temos

desde que somos crianças e são essas crenças que nos mantêm no senso comum.

Esse senso comum possui algumas características próprias que nos fazem

acreditar no mundo já dado, já feito, já transformado, nos afastando da consciência de

que somos parte desse mundo. O senso comum: é subjetivo, pois exprime sentimentos

e opiniões variadas de pessoas ou grupos sociais, cada um percebe o mundo como lhe

convém; é qualitativo ao percebermos as coisas grandes ou pequenas, quentes ou

frias, etc; é heterogêneo pois percebemos os fatos diferentes entre si porque assim os

interpretamos; não se surpreende com a regularidade, a constância, a repetição e a

admiração e espanto é dirigido ao que é imaginado como único, extraordinário; trata a

atitude científica como magia, como misterioso, oculto e incompreensível e por essas

características é que cristalizamos preconceitos e passamos a interpretar os fatos

ocorridos.

Francis Bacon elaborou uma teoria conhecida como crítica dos ídolos em que

ele afirma que existem quatro tipos de ídolos ou imagens que formam as opiniões da

sociedade, cristalizando-as e impedindo o conhecimento da verdade, são eles: os

ídolos da caverna, os ídolos do fórum, os ídolos do teatro e os ídolos da tribo.

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Ídolos da Caverna são as opiniões que se formam através dos erros

cometidos por nossos órgãos dos sentidos assim como os humanos presos na caverna

eram “enganados” por sua visão ao acreditar que o que viam era exatamente a

realidade; podemos acreditar que o Sol é menor do que a Terra pelo simples fato de vê-

lo pequeno no céu todos os dias, ou achar que onde há fumaça há fogo. Esse tipo de

opinião pode ser facilmente modificado através do nosso intelecto.

Ídolos do Fórum são as opiniões que são formadas através da linguagem,

através do que nos é dito como verdadeiro, podem ser entendidas como as lendas, os

costumes que nos são passadas de geração em geração, as idéias de como o mundo

foi criado, etc. São opiniões difíceis de se vencer, mas ainda sim são facilmente

modificadas através do intelecto.

Ídolos do Teatro são as opiniões em nós cristalizadas através das leis e

decretos formados pelas autoridades transformadas em leis inquestionáveis podendo

ser mudadas somente com uma transformação social e política.

Ídolos da Tribo são as opiniões formadas em decorrência da própria natureza

humana e são próprias dessa mesma, só podem ser mudadas se houver uma mudança

da própria natureza humana.

2.3 CONCEITOS SOCIOLÓGICOS

Karl Marx (1818 – 1883) interessou-se por um estudo desenvolvido por um

filósofo, Feuerbach, que investigava a necessidade humana de buscar respostas para a

origem e finalidade do mundo, de onde teria se originado a religião. Nessa busca,

Feuerbach descobre que os humanos “inventam” um ser dotado de várias qualidades e

que pouco a pouco vão se esquecendo de que foram eles próprios quem criaram a

divindade, passando a temê-lo, a adorá-lo e a cultuá-lo, não se reconhecendo neste

“outro” que criaram.

“Outro” em latin diz-se alienus, dando origem ao termo hoje utilizado:

Alienação, onde os seres humanos não se reconhecem como agentes sociais,

históricos e culturais submetendo-se às condições impostas como se elas tivessem vida

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25

própria, como se tivesse sido sempre daquela maneira como é mostrado. (CHAUÍ, 2000

p. 170)

Já Émile Durkheim em sua obra “As regras do método sociológico” (1895)

formulou os acontecimentos em que os sociólogos deveriam se debruçar e chamou-os

de fatos sociais e dividindo-os em três características que explicam os fatores, externos

aos indivíduos, que causam essa separação do sujeito para com a sociedade.

A primeira característica levantada por Durkheim é a Coerção Social que é a

força exercida sobre os indivíduos, levando-os a conformar-se com as regras impostas,

não dependendo da sua vontade, é a cultura de um determinado povo e que o indivíduo

está exposto, o idioma, as crenças e o seu grau de coerção se torna evidente de acordo

com as sanções aplicadas ao indivíduo quando este tenta rebelar-se. Elas podem ser

legais no que diz respeito às leis que regem uma determinada sociedade e podem ser

espontâneas no que diz respeito aos costumes, quando um indivíduo vai contra a

estrutura social em que está inserido. Sobre isso Durkhein diz:

Se sou industrial, nada me proíbe de trabalhar utilizando processos e técnicas do século passado; mas se o fizer, terei a ruína como resultado inevitável. (DURKHEIN, 1963, p 3)

A segunda característica é que os fatos sociais existem independentemente

da vontade do indivíduo ou da sua adesão consciente, ou seja, são exteriores aos

indivíduos porque existem antes mesmo do nascimento das pessoas e são impostos

através da coerção social.

A terceira característica é a generalidade, ou seja, todo fato social é geral e

se repete em todos os indivíduos ou em boa parte deles. (COSTA, 1987, p. 51-52)

Marx investigou, dentre outras, a alienação social e para isso verificou que

qualquer sociedade existe a partir da divisão social do trabalho e a partir dessa divisão

organizam-se todas as outras instituições sociais como a família, o comércio, o trabalho

servil, o estado, a religião, dentre outras. É partindo da teoria marxista sobre alienação

que desenvolveremos o trabalho de agora em diante.

Marx deu origem à sua teoria da alienação questionando a relação do homem

com o trabalho e as formas que este assumiu no processo histórico. Ao contrário de

Hegel, que concebia o trabalho apenas no seu aspecto libertador e criador, Marx o

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26

situou historicamente e questionou como se desenvolve o trabalho no modo de

produção capitalista:

O trabalhador é relacionado com o produto de seu trabalho como um objeto estranho. O objeto que ele produz não pertence a ele, domina-o, e só serve, a longo prazo, para aumentar a sua pobreza. A alienação surge não só no resultado, mas também na produção e na própria atividade produtiva. O meio para satisfazer outras necessidades. É uma atividade dirigida contra ele próprio, independente dele e que não lhe pertence. (MARX, ENGELS, apud NOGUEIRA, p. 2, 1988)

Podemos citar três tipos de alienação segundo Marilena Chauí:

A Alienação Social: onde a sociedade é o outro (alienus), onde os humanos

não se reconhecem como produtores das instituições sóciopolíticas que o governam e

podem, a respeito disso, tomar duas atitudes: a atitude dogmática, que é uma atitude

muito natural e espontânea que temos, que trazemos desde criança, que acredita que o

mundo é exatamente tal como o percebemos, que tudo o que existe é natural, divino ou

racional e há os que se rebelam individualmente acreditando que podem mais do que

a realidade que os condiciona.

A Alienação Econômica: onde o trabalho é o outro. Os produtores não se

reconhecem como produtores e não se reconhecem no objeto produzido, vendem seu

trabalho aos proprietários do capital transformando-se em mercadorias e como toda

mercadoria recebem um preço: o salário; não percebem, no entanto, que foram

desumanizados e coisificados:

A produção produz o homem não apenas como uma mercadoria, como mercadoria homem, como homem em função da mercadoria, mas que o produz, além do mais, de acordo com esta determinação, como um ser desumanizado tanto física como espiritualmente (. . .) Seu produto é a mercadoria com consciência de si mesma e com atividade própria (. . .) a mercadoria humana.

A Alienação Intelectual: que é a alienação resultante da separação social do

trabalho material e do trabalho intelectual onde os autores das idéias acreditam que

elas são universais, se esquecem que são idéias criadas por eles, acreditam nelas

como se sempre tivessem existido e passam a acreditar que as idéias se produzem

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umas às outras. Nesse caso as idéias são o outro, tornando-se separadas de seus

autores. (CHAUÍ, 2000, p. 172 - 173)

Falando em alienação não podemos deixar de lado o conceito de Ideologia

que coloca tudo isso em prática, segundo Althusser a “representação da relação

imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 1963

p. 85)

A expressão ideologia, criada por Cabanis e Destutt de Tracy em 1801 tinha

nos seus primórdios o sentido genérico de teoria das idéias e 50 anos mais tarde Marx

reformularia essa teoria dando um outro sentido a ela, como afirma Louis Althusser: “A

ideologia é um sistema de idéias, de representações que domina o espírito de um

homem ou de um grupo social” (ALTHUSSER, 1963, p. 81).

O “espírito” a que Marx se refere pode ser interpretado como o senso comum

social que é “moldado” através de teorias e crenças desenvolvidas por pensadores

intelectuais da sociedade, geralmente da classe dominante, onde explicam o mundo a

partir do ponto de vista de sua classe tendo sempre o mesmo objetivo: as relações de

exploração capitalistas.

A ideologia é o sonho, a ilusão onde toda a realidade existente está fora

dela, sua função principal é ocultar e dissimular divisões sociais e políticas, fazendo-nos

acreditar que as condições em que vivemos são naturais, normais e justas, impedindo-

nos de agir para que algo seja mudado. Ela assegura que todos entendam a realidade

e aprendam a se portar diante dela.

A ideologia age de diversas formas e Althusser as classifica como “Aparelhos

Ideológicos de Estado” onde faz uma crítica à teoria funcional das instituições e uma

reflexão sobre os mecanismos de sujeição. Vários são os “aparelhos ideológicos”

citados por Althusser como: o aparelho escolar, o aparelho religioso, o aparelho

familiar, o aparelho político, o aparelho sindical, o aparelho de informações, etc.

(ALTHUSSER, 1963, p.75).

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2.4 LOUIS ALTHUSSER – APARELHOS IDEOLÓGICOS DE ESTADO (AIE)

Althusser formulou sua teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado tendo

como base a teoria marxista de estado. Vejamos o que Althusser nos coloca acerca da

concepção marxista de estado:

(...) o Estado é explicitamente concebido como um aparelho repressivo. O Estado é uma “máquina“ de repressão que permite às classes dominantes (no séc. XIX à classe burguesa e à “classe” dos grandes latifundiários) assegurar a sua dominação sobre a classe operária, para submetê-la ao processo de extorsão da mais-valia (quer dizer, à exploração capitalista). (ALTHUSSER, 1963, p.62)

Depois de estudada essa concepção de Estado, Althusser propõe uma teoria

correspondente que ele acredita não ter sido tão explorada pelos clássicos marxistas, e

ele ainda afirma que Gramsci foi o único que avançou nesse caminho, mas não

sistematizou as instituições da Sociedade Civil como: a Igreja, as Escolas, os

Sindicatos, etc, e são essas instituições que são chamadas por Althusser de AIE.

Para conceituarmos os AIE é necessário distinguí-lo dos Aparelhos

Repressivos de Estado (ARE). O ARE é formado pela política, os tribunais, as prisões,

o exército, o Chefe de Estado, o Governo e a Administração. Esse aparelho funciona

através da violência, funcionando predominantemente através da repressão (física) e

posteriormente é utilizada a ideologia.

Já sobre os AIE Althusser diz:

Designamos por AIE um certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob forma de instituições distintas e especializadas. (ALTHUSSER, 1963, p.68)

Todos os AIE concorrem para o mesmo fim: a reprodução das relações de

produção, ou seja, relações de exploração capitalistas, cada um na maneira que lhe é

própria. Diante disso podemos considerar as seguintes Instituições como parte do AIE:

AIE Religioso (O sistema de diferentes Igrejas): Foi no período Pré-Capitalista

o aparelho ideológico de estado dominante, pois reunia tanto as funções religiosas

quanto as escolares, de informação e de cultura. Após a revolução Francesa e o

Page 22: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

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nascimento da burguesa capitalista-comercial os AIE religiosos foram parcialmente

quebrados dando origem à outros AIE que veremos mais para frente.

AIE Escolar (O sistema de várias escolas, públicas ou privadas): A Escola,

após a Revolução Francesa, substitui o antigo aparelho ideológico de estado (A Igreja)

em suas funções, participando efetivamente da formação cultural e intelectual dos

cidadãos.

AIE Familiar: Tem fundamental importância na criação dos indivíduos, está

ligado diretamente ao AIE Escolar.

AIE de Informação: É o conjunto dos meios de comunicação que nos mantém

“informados” do que acontece no mundo ao nosso redor. É a imprensa em geral, o

rádio, a televisão, jornal, etc.

Além desses AIE também podemos citar o AIE Jurídico, Político, Sindical,

Cultural, mas esses não tomam grande importância no contexto do filme.

Page 23: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

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3. A “CAVERNA” DE TRUMAN

Agora que já estudamos as teorias sobre os meios de manipulação, alienação

e ideologia vamos contextualizá-las ao filme, perceber como elas aparecem e qual a

função que exercem na vida do personagem Truman Burbank, como ele é cercado por

interesses, no caso, econômicos, e as maneiras que ele utiliza para se desvencilhar das

“armadilhas” impostas pelas pessoas que o controlam para a manutenção de seus

interesses em cima do astro de televisão.

Vamos observar os Aparelhos Ideológicos de Estado, citados por Althusser

(1963), e observar como eles se expressam no filme. Observaremos também o poder

dos meios de comunicação e como as propagandas influenciam ideologicamente a vida

das pessoas, no caso do filme, o personagem Truman.

De um modo geral analisaremos os meio que mantêm o personagem Truman

preso ao seu mundo “imaginário”, ou o mantém longe de descobrir sua real função

naquele mundo estritamente manipulado por Christof, acreditando no senso comum de

que tudo que está a sua volta é real e imutável, passando pelo início de sua

desconfiança de que algo poderia estar errado com o seu mundo e por fim a tomada

de consciência de analisar os fatos que o rodeiam e contestá-los como uma forma de

“libertação”.

3.1 TRUMAN NA ESCOLA (01h: 04m: 07s)

Christof está dando uma entrevista a um programa de televisão e começa a

falar sobre o fato de Truman querer ser um explorador desde criança, e que ele fora

obrigado a criar situações que mantivessem Truman na ilha. Dentre a seqüência de

Page 24: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

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imagens que é apresentada, uma delas é a cena da escola em que Truman se levanta,

provavelmente depois de lhe ser perguntado pela professora o que ele queria ser

quando crescer, ele responde que gostaria de ser um explorador, como o grande

Magalhães. A professora com um ar de superioridade e com a clara intenção de

desmotivá-lo, puxa um mapa mundi diz a Truman que ele chegou tarde, e que não há

mais nada a se descobrir.

Passamos em média entre onze a doze anos na escola, cinco dias por

semana, de cinco a seis horas por dia. Todo esse tempo serve para que possamos

aprender as ciências humanas, exatas e biológicas, serve para aprendermos a nos

relacionar com outras pessoas, aprender a viver em sociedade, compartilhar

experiências, aprender as leis morais e éticas que regem nossa sociedade, para

sairmos “prontos” para o mercado competitivo, que como o próprio nome já diz nos

tratará como produtos, mas talvez o papel mais importante que a escola exerce, é o de

tentar formar cidadãos mais críticos, cientes do mundo em que vivem, com a

capacidade de interpretar os fatos cotidianos com o mínimo de senso crítico, formar

cidadãos que debatam, que discutam os problemas referentes à fome, da falta de

educação, política, religião e outros assuntos que nos cercam e que são importantes

para nossa compreensão do mundo. Em síntese, a escola serve para formar cidadãos.

Tudo isso, teoricamente teria que funcionar, mas o que vemos no dia a dia

não traduz o papel que a escola deveria exercer. Todos os dias crianças passam pela

mesma situação que o personagem Truman passou na cena descrita acima, de que o

mundo já está pronto e que elas nada podem fazer para mudar essa situação, podemos

perceber que seus desejos são suprimidos por palavras de ordem ou por

ridicularizações, o individualismo não tem espaço para o coletivismo que modela a

todos para um mesmo fim: assegurar a reprodução das relações de trabalho, nesse

caso o coletivismo se vira para fins pouco humanos.

A Escola não nos forma para que sejamos cidadãos críticos, questionadores

da exploração capitalista em que vivemos ou viveremos quando fora dela estivermos. A

Escola nos forma, para o “mercado de trabalho”, pois lá seremos mais um produto em

meio a uma multidão de outros produtos concorrentes; ela nos forma para o que o

Page 25: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

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mercado necessita, ou seja, a “mão de obra”, querem apenas a mão, não querem a

“cabeça de obra”, não os interessa o ser pensante.

Desde pequenos somos bombardeados pela ideologia escolar, já começamos

a nos acostumar com a estrutura escolar moldada de modo hierárquico que reproduz as

relações autoritárias existentes fora dela, somos doutrinados por forças simbólicas que

nos forçam a pensar e agir de determinada forma que atendam as necessidades da

classe dominante.

É pela aprendizagem de alguns saberes contidos na inculcação maciça da ideologia da classe dominante que, em grande parte, são reproduzidas as relações de produção de uma formação capitalista, ou seja, as relações entre exploradores e explorados. (ALTHUSSER, 1963. p. 80)

Durante a Idade Média e o sistema feudal, a Igreja exercia o papel de AIE

dominante, pois era ela quem determinava as regras da sociedade, a educação, os

costumes todos giravam em torno do poder da Igreja, era ela quem assegurava os

interesses da classe dominante e podemos perceber isso em um momento em que a

Igreja pregava aos seus fiéis que a pessoa que era servo nunca poderia ser um rei ou

um nobre porque era da vontade de Deus ela já ter nascido “pobre”, isso garantiria a

estamentação da sociedade, evitando que os servos se rebelassem contra seus

senhores.

Com o passar do tempo, com as revoluções industriais e as formações

capitalistas, a Escola assumiu o papel de AIE dominante, a fim de garantir mais uma

vez os interesses burgueses, da classe dominante, em que é necessária para a

manutenção do sistema capitalista, a reprodução da mão de obra “alienada” e a escola

exerce esse papel.

Ela se encarrega das crianças do todas as classes sociais, inculcando-lhes

valores durante anos e principalmente durante os anos em que a criança é mais

vulnerável, espremida entre a escola e a família. São os saberes contidos na ideologia

dominante (o cálculo, a história, a literatura) ou simplesmente a ideologia em estado

puro (a filosofia, a moral, a ética). (ALTHUSSER, 1963, p. 79)

Page 26: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

33

Aos 16 anos essas crianças, já preparadas, estão disponíveis para o mercado

de trabalho, caminhando para os cargos pequenos; uma última parcela chega ao fim do

percurso indo ocupar os cargos médios, dentro do sistema capitalista, por sua maior

formação intelectual.

É claro que cada grupo social dispõe da ideologia que deve exercer na

sociedade, cabendo à escola formar as diferentes personas (nome dado às máscaras

usadas por atores do teatro antigo na representação de seus diferentes papéis na

sociedade), para suprir a necessidade do mercado, cada um exercendo sua função, no

papel de explorado ou de agente explorador.

Os mecanismos que produzem esse resultado vital para o regime capitalista

são na maioria das vezes disfarçados e dissimulados como aconteceu no filme. A

professora ao tomar a atitude de ridicularizar a profissão escolhida por Truman garantiu

que a partir daquele momento ele começasse a refletir sobre essa escolha e renegá-la

por medo de outras repressões ou ridicularizações.

O filme em si retrata de maneira bem sutil e quase imperceptível essa relação

entre escola e sociedade já que não é a sua intenção aprofundar-se nessas questões,

mas é preciso que fique claro toda a estrutura que há por trás desse mecanismo

ideológico.

Truman aos 7 anos estava ainda formando sua personalidade e já possuía a

vontade de se libertar do mundo em que vivia, de ser um explorador mas se essa

vontade se desenvolvesse seria complicado mantê-lo preso à ilha por muito tempo, logo

que crescesse não mediria esforços para conhecer o mundo o que destruiria totalmente

os planos do idealizador do Reality Show, Christopher.

O mecanismo utilizado para “podar” essa vontade de Truman foi justamente a

sua ridicularização, e essa ridicularização fez com que ele se sentisse envergonhado

perante o seu desejo de ser explorador levando-o a expulsar o desejo de sua

consciência assim como afirma a teoria psicanalítica de Sigmund Freud.

Podemos então concluir que num primeiro momento a escola foi eficaz no

sentido de reprimir os desejos de libertação ou metaforicamente da tomada de

consciência do personagem.

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34

3.2 TRUMAN E A PROPAGANDA IDEOLÓGICA NOS MEIOS DE

COMUNICAÇÃO DE MASSA.

Vamos analisar nesta parte do trabalho como os meios de comunicação de

massa e a propaganda ideológica influenciam Truman. Os dois são partes de um

mesmo todo e servem de base um para o outro, a propaganda ideológica necessita dos

meios de comunicação de massa para divulgar suas idéias e os meios de comunicação

de massa necessitam do capital investido pela propaganda para sobreviver. Esse

conjunto, para Althusser, é o que constitui o Aparelho Ideológico de Estado de

Informação. Vamos a um primeiro momento analisar o papel da propaganda.

É indiscutível que em um mundo capitalista, em que é cada vez mais

necessário vender produtos, criar novos produtos para serem consumidos, criar novos

desejos de consumo na população, a publicidade e propaganda exerça um papel

fundamental nessas relações de consumo que sustentam esse sistema, em que as

pessoas se preocupam mais com o ter do que com o ser, em que cada vez mais temos

que passar ao mundo uma imagem, que às vezes não temos, e que queremos ter

somente para sermos aceitos perante as regras estabelecidas por esse sistema.

A propaganda tem como objetivo principal vender uma idéia ou produto,

utilizando-se da persuasão para alcançar seus objetivos. Ela vende seu produto ou

serviço ou ainda uma idéia apoiada em três necessidades:

o A necessidade de difundir determinada marca ou produto tornando-a

reconhecida;

o A necessidade de persuadir o consumidor, o fazendo acreditar que aquele

produto é a melhor opção para suas necessidades, despertando assim o desejo de ter

determinado produto;

o A necessidade de motivar o consumidor a efetuar a compra.

A todo o momento somos bombardeados por informações que nos levam

sempre a comprar mais e mais sem perceber que essas informações estão carregadas

de conceitos que vão construindo na sociedade uma série de modelos de

comportamento social, assim como vemos, por exemplo, em anúncios de produtos

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alimentícios feitos por famílias unidas e sorridentes, brancas e de classe média;

produtos de limpeza sempre anunciados por mulheres colocando-as sempre como

donas de casa que se preocupam com o bem estar da família; as empregadas quase

sempre negras exteriorizando o preconceito podre que ainda existe em nossa

sociedade escondida atrás de uma ideologia hipócrita de que por aqui racismo não

existe.

Nos anúncios vemos um mundo lindo, cheio de alegrias e gente feliz tomando

a cerveja “A”, ou ao andar com o carro “B” você terá sucesso profissional, ou ainda ao

usar aquele desodorante “C” seremos um sucesso com as mulheres. A propaganda não

vende o produto em si, ela vende uma idéia por trás desse produto, ao falar de cerveja,

carro e desodorante ela está vendendo a idéia de felicidade, sucesso profissional e

sucesso amoroso, o objetivo da propaganda é passar a idéia de que comprando um

determinado produto seremos eternamente felizes, pois vivemos em uma sociedade

hedonista que busca o prazer imediato, e a propaganda proporciona um caminho curto

à satisfação dos nossos prazeres.

A propaganda não mostra o lado ruim de seus produtos, ela os esconde

mostrando somente o que interessa para que seja consumido; ela nunca vai dizer que

comprando um determinado tênis você está contribuindo para a exploração da mão de

obra quase escrava, ou que aquele celular que está sendo vendido já vai estar obsoleto

daqui uns meses.

Apresentam geralmente um mundo idílico, perfeito, sem contradições, associando o produto ou serviço a essa atmosfera radiante e perfeita. Ao mesmo tempo, cuidam de produzir alguma verossimilhança com a realidade para que as pessoas não se sintam distantes deste mundo que pode ser alcançado. (BOCK, 2001, p. 279)

O filme traz várias situações em que Truman, sua esposa e seu amigo Marlon

são utilizados como garotos propaganda (Truman não sabe dessa situação), Meryl

aparece várias vezes mostrando produtos, assim como Marlon é o garoto propaganda

de uma famosa marca de cervejas. No entanto estamos analisando o ambiente interno

do reality show, nos interessa apenas os estímulos causados pela propaganda na vida

do próprio Truman, e analisaremos a partir de agora a função da propaganda ideológica

mais presente nesse ambiente estudado.

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A propaganda ideológica traz consigo a maioria das características da

propaganda comercial, mas difere-se em alguns aspectos: ela não tem a função de

vender um produto ou serviço e é feita de maneira muito mais sutil do que a comercial,

sendo amplamente amparada pelos meios de comunicação de massa que

analisaremos mais à frente.

As mensagens apresentam uma versão da realidade a partir da qual se propões a necessidade de manter a sociedade nas condições em que se encontra ou transformá-la em sua estrutura econômica, regime político ou sistema cultural. (GARCIA, N.J. O que é propaganda ideológica. p. 10 – 11)

A propaganda ideológica foi amplamente utilizada por muitos países com

regimes ditatoriais para ampliar o sentimento nacionalista do povo, para conseguir

apoio aos seus regimes. Essa propagação de mensagens ideológicas foi utilizada em

larga escala, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial citando como exemplo

o uso do rádio por Adolf Hitler para “divulgar” o nazismo, junto com seu ministro da

Propaganda e da Informação Joseph Goebbels, pois percebeu que seus discursos

ufanistas afetavam emocionalmente a maioria da população alemã, fazendo com que

eles aderissem às suas idéias.

Esse tipo de propaganda difunde apenas o essencial de sua ideologia, ela

cria palavras de ordem, ou slogans como, por exemplo, o criado pelo regime militar

brasileiro: “Brasil – ame-o ou deixe-o” e vários outros podem ser citados para servir-nos

de exemplificação como slogans fascistas e as palavras de ordem nazistas:

Acredita! Obedece! Luta! Quem tem aço, tem pão! Nada mais foi ganho na história sem derramamento de sangue! É melhor um dia de leão do que cem anos de carneiro! A guerra é para o homem enquanto a maternidade é para mulher! Um minuto no campo de batalha vale por uma vida inteira de paz! Ein Völk, Ein Reich, Ein Füher. (Um povo, um Império, um Líder) (CERED. 2008. p. 83)

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No entanto, a propaganda ideológica não se sustenta sozinha, ela precisa de

uma base, de um meio para que suas mensagens sejam veiculadas e os meios de

comunicação de massa prestam perfeitamente esse serviço.

Ao ler o jornal de manhã, no carro com o rádio ligado, assistindo televisão, a

todo o momento estamos em contato com essas mensagens, sendo receptores

conscientes ou não delas. Althusser nos diz a respeito dos meios de Comunicação de

massa que ele considera como Aparelho Ideológico de Estado de Informação:

O aparelho de informação despeja pela imprensa, pelo rádio, pela televisão doses diárias de nacionalismo, chauvinismo, liberalismo, moralismo, etc. (ALTHUSSER. 1963, p. 78)

Truman se depara com essas situações a todo o momento, em seu momento

de lazer, em seu trabalho, até a placa de seu carro traz conteúdo ideológico: “Seahaven

Island: a Nice place to live” – (Ilha de Seahaven: o melhor lugar para se viver) (O Show

de Truman – 00h :47m:58s)

Os meios de comunicação de massa veiculam mensagens de acordo com o

que o patrocinador estabelece, é ele quem determina direta ou indiretamente o

conteúdo e a forma do programa para que esse conteúdo lhe seja útil de alguma

maneira. Vamos supor que uma empresa de refrigerantes patrocine um programa de

televisão; esse patrocínio influencia o conteúdo veiculado no programa, pois ao surgir

uma notícia que vai contra o consumo de refrigerantes, por exemplo, afirmações de que

refrigerantes contribuem para a obesidade infantil, esse patrocinador pode romper o

contrato com a emissora de televisão, o que não é interessante, pois a emissora

depende desse investimento.

No filme, Christof faria o papel desse “patrocinador”, pois os jornais, televisão,

cartazes, servem de base aos seus interesses, tudo gira em torno de manter Truman

preso, o que acontece no “mundo real” é que essas informações são usadas para fazer

as pessoas acreditarem no consumismo, fazerem as pessoas comprar produtos,

acreditar nas empresas que se dizem preocupadas com o meio ambiente por exemplo,

acreditar nas mensagens veiculadas pelo governo: “o melhor do Brasil é o brasileiro” ou

ainda “o brasileiro não desiste nunca”.

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Christof “encarna” todos esses patrocinadores, para difundir o conteúdo

ideológico de que Seahaven é o melhor lugar do mundo, a diferença é que como é tudo

“meramente controlado” ele não paga para que essas mensagens sejam difundidas,

não há a relação monetária entre ele e os meios de comunicação dentro do Show de

Truman.

Manter Truman Burbank no mundo ficcional do reality show é o principal

objetivo, criar mecanismos que o impeça de observar a realidade à sua volta de

maneira crítica e de ter informações reais do local onde vive, sempre que ele tentar se

rebelar contra o estado de confinamento será necessária alguma medida que lhe

acalme os ânimos, as mensagens chegam até ele de várias maneiras, como o jornal de

Seahaven ou a programa na televisão, ou ainda o cartaz na agência de viagens, e

todas essas mensagens possuem características bem próximas: a de não veicular

informações objetivas contra um fato, elas se apresentam com a intenção de gerar, no

receptor, antipatia pelo conteúdo trabalhado ou acreditar que aquilo é essencial para

sua vida, de maneira subjetiva como podemos observar nas imagens descritas do filme.

3.2.1 ANÁLISE DAS CENAS

o RÁDIO NO CARRO (parte 1) (00h: 03m: 18s)

Truman está saindo de casa para ir trabalhar quando um refletor cai perto

dele; ele olha para o objeto estranho sem saber direito o que aconteceu, guarda-o no

porta mala e vai para o trabalho. No caminho para o trabalho ouve uma notícia no rádio

em que o locutor dizendo que a peça que Truman encontrou era de um avião que havia

passado por ali e deixado cair algumas peças.

Page 32: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

39

Essa cena pode adquirir duas interpretações possíveis: a primeira é a

tentativa de enganar Truman convencendo-o de que aquele objeto estranho era

realmente uma peça que caiu do avião, dando a ele uma explicação imediata,

impedindo-o de buscar maiores explicações sobre o ocorrido. A segunda interpretação

é de que a informação passada pelo locutor serve para atentá-lo para o fato de que

aviões são perigosos, que soltam peças a todo o momento, que podem cair a qualquer

momento e que não seria uma boa idéia viajar de avião por esses motivos, forçando

Truman a acreditar nessa idéia e não tomar a iniciativa de viajar para fora da ilha.

o RÁDIO NO CARRO (parte 2) (00h: 04m: 07s)

Na seqüência da cena em que o refletor despenca do céu e o locutor da rádio

lhe explica o motivo da queda, temos quase que um diálogo entre Truman e o radialista,

em que ele faz perguntas ao Truman, se ele está bem e se tem pensado em viajar de

avião. Podemos perceber que mesmo Truman não pensando em viajar de avião, o

radialista lhe coloca sua posição, dizendo para que ele esqueça os riscos de voar, que

se acalme e ouça uma música, é essa atitude que eles querem que Truman tenha, que

ele continue calmo, sem pensar em viajar, seja por meio aéreo ou outro meio qualquer.

Nesse momento, o radialista coloca uma posição pessoal referente à notícia

que está sendo passada, com toda intenção de persuadir seu ouvinte, sem a

preocupação se aquela opinião está de acordo com a posição de quem as ouve,

pensando unicamente no retorno que essa mensagem pode proporcionar.

Page 33: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

40

o JORNAL DA ILHA (parte 1) (00h: 05m: 47s)

Quando Truman chega ao escritório tenta procurar por Sylvia pelo telefone,

em Fiji e um de seus companheiros de trabalho lhe mostra o jornal com a notícia:

“Seahaven é o melhor lugar do planeta”, também com o mesmo intuito de convencê-lo

de que a ilha realmente é o melhor lugar para se morar e que seria besteira trocar um

lugar tão agradável por qualquer outro lugar do mundo.

o JORNAL DA ILHA (parte 2) (00h: 14m: 33s)

Truman vai até a banca comprar revistas, atrás dele um homem lê o jornal

com a notícia: “Who needs Europe!” (Quem precisa da Europa!) fazendo alusão ao fato

de que a ilha de Seahaven é um local agradável e que pensar em ir para Europa é

desnecessário.

Page 34: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

41

o PROGRAMA DE TELEVISÃO (00h: 38m: 18s)

Truman após uma conversa com sua mãe e esposa, em que ficaram olhando

fotos de infância, fotos de seu casamento, sua mãe tenta convencê-lo de que seria uma

boa idéia se ele e Meryl tivessem filhos. Truman nada contente com a conversa se

coloca a disposição para levar sua mãe em casa, prontamente sua esposa pede para

que ele não se preocupe, pois ela se encarrega de levá-la em casa pois o programa

favorito de Truman irá começar, ela liga a televisão e as duas saem pela porta.

Truman continua com a idéia fixa de querer sair da ilha e ir embora para outro

lugar do mundo. Ao ligar a televisão se depara com o sugestivo programa “Mostre-me o

caminho de casa”, discretamente afirmando que Truman estaria perdido, longe de sua

própria casa, de seus amigos e familiares. Surge então um forte apelo emocional por

parte do apresentador do programa em que ele diz frases que tocam profundamente

Truman, fazendo-o refletir se realmente é necessário sair de Seahaven para encontrar

a felicidade, como o próprio apresentador diz, ele louva a vida na cidade pequena.

Podemos perceber, além do discurso emocionado e persuasivo do

apresentador, uma imagem ao fundo de um pai e um filho olhando para o nome do

programa. Essa imagem pode ser interpretada como uma referência a Truman e seu

pai, já que ambos eram muito ligados antes de sua “morte” e Truman ainda se culpava

por querer velejar em meio a um temporal, com isso ele não ia querer sair novamente

abandonando a todos, se arriscando, ficando longe das lembranças de seu pai que

ainda se faziam muito presentes em sua memória.

Page 35: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

42

o AGÊNCIA DE VIAGENS (00h: 42m: 35s)

Mesmo depois de várias tentativas de manter Truman na idéia de que

Seahaven é um bom lugar ele tenta viajar para encontrar sua amada Sylvia em Fiji. Ele

procura uma agência de viagens e ao entrar encontra um cartaz com um avião sendo

atingido por um raio com os dizeres “Isso pode acontecer com você”, se transformando

em uma clara tentativa de apavorá-lo, de fazê-lo mudar de idéia através de uma

imagem forte, fazendo-o acreditar que viajar de avião é extremamente perigoso e ele

não vai querer se arriscar.

Esse é o tipo de propaganda que cria antipatia no receptor pelo conteúdo

trabalhado de forma sutil para que o próprio receptor interprete aquela mensagem e

não para que ela já se dê pronta a ele, entendendo que se ele fizer o contrário do que

lhe é dito pode sofrer graves conseqüências.

3.3 INFLUÊNCIA FAMILIAR EM O SHOW DE TRUMAN

“Família é tudo igual”. Provavelmente essa é uma frase que todos nós já

ouvimos e que faz um certo sentido se pensarmos e levarmos em consideração que

vivemos em uma sociedade que prega a instituição da família monogâmica, ou seja,

que se funda sobre o casamento entre duas pessoas, que moram juntas, juram

fidelidade, em que há o controle do homem sobre a mulher e os filhos, garantindo-lhes

o direito de herança, isto é, a garantia da propriedade privada.

Poderíamos fazer um levantamento de outros tipos de famílias que se

instauram em outras sociedades, mas para analisar O Show de Truman ficaremos com

a definição de família monogâmica que podemos encontrar no filme.

Page 36: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

43

A função da família criada por Christof para Truman é: sempre que ele quiser

se libertar, ir embora da ilha ou começar a descobrir muito sobre o mundo em que ele

vive, a “família” que o cerca deverá convencê-lo do contrário, fazendo-o mudar de idéia,

sempre criando barreiras para que ele não tome a decisão de ir embora.

Mas qual a relação que podemos estabelecer entre a família de Truman e as

nossas famílias? Essa é a analise que faremos a partir de agora, considerando que a

família se constitui em um Aparelho Ideológico de estado que visa transmitir valores

culturais, as idéias de um determinado grupo social, sendo uma forte transmissora de

ideologias.

Antes de analisarmos o papel da família, vamos destacar quais são os

personagens que fazem parte da família de Truman. Ele é criado por dois atores que

não são seus pais biológicos, quando cresce casa-se com Meryl e Marlon é seu melhor

amigo, portanto consideraremos sua família seu pai, sua mãe, Meryl e Marlon.

A família é uma instituição social que está presente em nossas vidas desde o

momento em que nascemos, sendo responsável pela nossa formação social e

psicológica Pela nossa formação social, nos ensinando a viver em sociedade, nos

transmitindo valores morais e éticos. Esses valores e ideologias transmitidas pela

família se alicerçam em crenças que muitas vezes encobrem a verdade e que

mascaram a realidade fazendo com que não percebamos as contradições existentes na

sociedade, tirando-nos a possibilidade concreta de interpretar os fatos ocorridos a

nossa volta, a transmissão de conteúdos ideológicos pela família vem sempre com a

questão do “querer bem” ao filho e que nada de mal lhe aconteça, protegendo-o do

mundo exterior de tal forma a chegar a ponto de esconder as mazelas e “perigos” que

nos rodeiam por toda parte, retirando-nos o direito que todos temos de aprender com os

próprios erros e buscarmos nossa própria verdade.

O que talvez as famílias não se dêem conta é de que esse conteúdo

transmitido de geração em geração serve para cumprir sua função social garantindo a

reprodução dos meios de produção garantindo a reprodução das forças de trabalho, a

criação da prole que mais tarde serão trabalhadores e continuarão a transmitir as idéias

de que o trabalho dignifica, que é necessário arrumar um “empreguinho” para “ir

Page 37: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

44

sobrevivendo”, pois vão sempre continuar acreditando que esse é o seu futuro e de

seus filhos e de que dele não há como escapar.

A família desempenha claramente outras “funções” que a de AIE. Ela intervém na produção das forças de trabalho . ela é, dependendo dos modos de produção, unidade de produção, unidade de produção e (ou) unidade de consumo. (ALTHUSSER, 1963, p. 68)

É muito comum quando somos crianças, nossos familiares nos perguntarem

o que queremos ser quando crescermos ao se depararem com respostas como: “quero

ser jogador de futebol”; “quero ser musico”; “quero ser astronauta”; “quero ser ator /

atriz”; sempre tendem a nos repreender, com afirmações de que temos que estudar e

trabalhar em algo que nos dê dinheiro, pois não vamos querer morrer de fome, ou que

ser astronauta é impossível, ou ainda que músico não é profissão, tirando-nos a

liberdade de escolher uma profissão que vai nos trazer realização profissional, levando

sempre em consideração o que eles acreditam ser a melhor opção para nossas vidas.

Truman bem provavelmente foi uma dessas crianças que foi repreendida

quando pequena por querer uma profissão diferente, que não atende aos padrões do

mercado. São essas repressões familiares que vão nos cercando desde pequenos, nos

desmotivando a buscar respostas, nos igualando a um mundo de pessoas sem rostos,

todas iguais, com os mesmos gostos, mesmas profissões, todas seguindo um mesmo

padrão, pois para o mercado padrões são mais úteis, são mais fácies de se conquistar

na hora de vender seus produtos.

Não querem que sejamos diferentes, que tomemos nossas próprias decisões,

que façamos nossas escolhas, que vejamos o mundo com nossos próprios olhos, o

mercado quer enxergar por nós e utiliza a família para nos vedar durante boa parte de

nossas vidas. É claro que existem exceções, pessoas que quebram barreiras, assim

como o próprio Truman, mas essa quebra de barreiras realizada pelo nosso

personagem será analisada em outro momento.

Page 38: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

45

3.3.1 ANÁLISE DAS CENAS

o Conversa com Marlon (00h: 09m: 50s)

Truman e Marlon estão jogando golfe em cima de uma ponte desativada da

Ilha de Seahaven. Truman fala para Marlon a respeito de sua vontade de sair da ilha,

de abandonar o emprego e viajar, explorar o mundo, conhecer outros lugares como, por

exemplo, as Ilhas Fiji. Marlon não entende como que Truman, com o emprego que ele

tem não se sente feliz em morar em um lugar como aquele q quando Truman lhe

pergunta se ele também não sente essa vontade de mudar, de ir para outros lugares,

Marlon responde qual outro lugar que ele poderia querer ir.

Podemos perceber claramente a incapacidade de Marlon de se ver em outro

lugar que não seja a ilha em que sempre viveu podendo compará-lo com o canário do

conto (Idéias de Canário) de Machado de Assis que nunca se via fora da situação em

que se encontrava em determinados momentos. Para ele Truman não precisa de

mudança, ele já tem tudo o que é preciso para ser feliz, um bom emprego já é o

bastante para ser feliz. A mudança de vida é algo que incomoda as pessoas, todos nós

somos um pouco conservadores e temos dificuldade em aceitar mudanças drásticas.

Marlon tenta colocar essas idéias na cabeça de Truman, tentando convencê-

lo a mudar de idéia para que ele não continue querendo sair da ilha, ele chega a

comparar seu serviço com o de Truman, chegando a dizer que daria tudo para ter o

emprego que ele tem e para que Truman experimentasse ser repositor de chocolates

em máquinas, que isso sim seria um emprego ruim.

No entanto, Truman sabe que não é tão simples assim deixar tudo de uma

hora para outra e investir tudo em uma viagem, mas continua com a idéia. Marlon, no

entanto, reage a essa idéia de Truman de modo desprezível, como se Truman não

Page 39: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

46

fosse conseguir realizar sua vontade, mais um meio utilizado para que Truman se sinta

desacreditado a levar seus planos para frente.

o Conversa com Meryl (00h: 13m: 22s)

Após sua conversa com Marlon, Truman reflete e volta para casa onde

encontra Meryl lendo um livro. Ele chega cheio de planos em viajar pelo mundo, para

conhecer lugares diferentes, esperando encontrar em Meryl um apoio, alguém que

compartilho dos mesmos sonhos que ele. Ela acaba, ao invés de apoiá-lo, colocando

empecilhos para a viagem, tentando de qualquer maneira fazê-lo mudar de idéia, ela

fala sobre o dinheiro que eles não têm para viajar, sobre a casa e o carro que eles

ainda têm que pagar e até sobre um filho que eles estavam planejando ter. Ela

compara-o a um adolescente, ridicularizando-o quando ele cita que quer ser um

explorador.

Podemos perceber nesta cena como os nossos sonhos às vezes parecem, ao

modo de ver das outras pessoas, ou da família, ridículos ou desprezíveis, e ao invés da

compreensão do fato ou do entendimento mútuo do que um entende como sonho e o

outro entende como loucura, há simplesmente o desprezo pela idéia da mudança. É

esse desprezo repetido várias vezes que nos levam a abandonar uma idéia, sonho ou

vontade, e isso é o que queriam todos os participantes do reality show, que Truman

depois de tantas vezes desencorajado a seguir seu sonho, desistisse.

Outro fato que podemos perceber nesta cena é a dependência econômica em

que nos encontramos atualmente. Meryl cita como empecilho para a viagem dos dois,

as contas que eles ainda têm que pagar, suas obrigações financeiras. Vivemos

cercados de situações que nos fazem assumir compromissos financeiros, seja por uma

necessidade útil como, por exemplo, ter uma casa para se morar, ou simplesmente ter o

Page 40: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

47

que comer, mas há também as necessidades fúteis como trocar de celular uma vez por

mês, ou trocar de carro uma vez por ano, comprar roupas caríssimas somente para se

enquadrar na moda.

Esses compromissos que assumimos são um grande fator que nos prendem,

pois não podemos simplesmente deixar tudo para trás. Essa condição pode se tornar

um meio de não nos deixar sair de alguma situação que nos incomoda, de tomarmos

decisões sem ter que considerarmos contas e mais contas a pagar, ela nos impede de

sermos livres para fazer escolhas, de poder pensar em outros caminhos que não

aquele de ter que trabalhar e trabalhar cada vez mais, e Truman, de algum modo,

sente-se preso por essa condição, e Meryl utiliza bem esse fato para convencê-lo a não

sair da ilha.

o Truman nas pedras (01h: 03m: 47s)

Kirk, pai de Truman, sempre se mostrou muito apegado ao “filho”. Um dia

estavam na praia e Truman começa a subir em um monte de pedras, prontamente Kirk

o chama dizendo que ele não pode ir ali, Truman não entende o porque da

recriminação do pai. Kirk apenas diz que é perigoso e que Truman não deve ir ali e

pronto.

Seu pai quis recriminá-lo de imediato, sem se preocupar em dar maiores

informações ao filho. Isso mostra como em muitas vezes nossas dúvidas são

esmagadas pela nossa família, talvez por falta de conhecimento do assunto

perguntado, ou por talvez não estarmos preparados para saber de determinados

assuntos, ou realmente para fazer-nos acreditar em certas idéias que são passadas de

geração em geração e que em sua maioria não tem muito fundamento.

Page 41: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

48

4. EM BUSCA DA LIBERDADE

No capítulo anterior, deciframos os vários mecanismos que tentaram de todas

as maneiras manter Truman preso na ilha de Seahaven, entretanto, mesmo depois de

todos esses estímulos contrários à idéia de Truman de sair da ilha, ele consegue

decifrar pistas, interpretar fatos que o leva a descobrir o mundo ilusório em que vive.

Vamos analisar a partir de agora quais foram esses fatos que o levaram a

enxergar o mundo em que vivia, vamos analisar também qual é a visão do criador do

reality show Christof que nos coloca interpretações interessantes a respeito do mundo

que Truman habita, que pode ser facilmente, guardada as devidas proporções,

comparada com a realidade que vivemos no dito “mundo real”.

Truman vai nos demonstrando no decorrer do filme como é árdua e sofrida a

busca pela verdade, como é necessário fazer sacrifícios, abandonar velhas idéias,

vencer seus medos, poderemos ver toda essa transformação pela qual Truman passa,

a transição entre o seu mundo fictício e a tão sonhada liberdade.

o Christof sobre Truman (00h: 00m: 25s)

A idéia inicial do programa era adotar uma criança e acompanhar com

milhares de câmeras toda sua vida. Christof foi o idealizador do reality show e esse

nome não foi dado ao personagem por um simples acaso, podemos compará-lo com

Jesus Cristo (Christ = Cristo / of = de fora), o que tudo vê, o que tudo sabe, pois ele

observa (de fora) todos os movimentos de Truman, sendo assim, metaforicamente,

comparado com o Deus do mundo de Seahaven.

Christof logo na primeira cena de O Show de Truman fala um pouco sobre o

personagem Truman Burbank, introduzindo um fato que vamos percebendo ao decorrer

Page 42: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

49

do filme, de que Truman é realmente um personagem de um programa de televisão,

mas que sem saber de tal fato se torna o mais real de todos os personagens já criados

por qualquer outro programa, seja ele um reality show ou não, e que as pessoas se

identificam com ele por parecer real, diferentemente de outros atores e atrizes que

somente interpretam um personagem, Truman é o próprio personagem.

O nome de Truman vem da junção de duas palavras em inglês True

(verdadeiro) e man (homem), que sustenta a idéia de Christof de criar um personagem

que seja real, que haja como uma pessoa normal, e não simplesmente interprete um

personagem.

Durante nossa vida somos obrigados a interpretar personagens para

diferentes situações do dia a dia, no trabalho, em casa, na escola, e Truman é

observado em todos esses seus momentos por milhões e milhões de pessoas pelo

mundo todo, que não conseguem estabelecer a diferença entre o cotidiano de Truman

e o seu próprio cotidiano, não percebendo que são praticamente idênticos, pois ele não

está interpretando um papel e sim sendo ele mesmo, e talvez seja esse distanciamento

misturado com a “realidade” criada por Christof que faz com que as pessoas fiquem

dias e dias na frente da televisão para ver sua vida.

o Marlon sobre o reality show (00h: 02m: 05s)

Marlon nos coloca uma informação no início do filme que pode ser

comparada com as teorias de Althusser (1963), a de que vivemos em um mundo real,

onde nada é falso, é apenas meramente controlado.

Não gozamos de total liberdade de escolhas, pois temos regras a serem

seguidas, somos, como já analisado, rodeados por aparelhos ideológicos que

influenciam o nosso modo de pensar, nossa maneira de ver o mundo, mas que passam

Page 43: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

50

desapercebidos a maior parte das pessoas, pois atuam de maneira sutil e aos poucos

durante uma boa parte de nossas vidas que acabam sendo “meramente controladas”.

Podemos entender também que Marlon é um personagem que está sempre

presente na vida de Truman, da mesma maneira que Christof está o observando do

lado de fora (of), Marlon acompanha Truman dentro do reality show (Marlon).

o Estrela caindo do céu (00h: 03m: 20s)

Talvez seja esse o fato que deu início à desconfiança de Truman. Um objeto

estranho caindo do céu que para Truman não fazia o menor sentido, e que mesmo com

a explicação que lhe fora dado pelo rádio, lhe deixou intrigado.

Seahaven a noite possuía um grande céu estrelado e quando um dos

funcionários da manutenção tentou trocar uma lâmpada que havia queimado, deixou

cair o refletor da estrela Sirius da Constelação Cão maior. Se Truman fosse astrônomo

teria descoberto logo que se tratava de uma farça.

o Truman reconhece seu pai (00h: 15m: 06s)

Truman sempre foi muito apegado ao seu pai e sentia-se culpado pela morte

dele, pois o forçou a velejar com Truman em meio a uma tempestade que causou sua

morte. No entanto essa morte já estava preparada por Christof. O episódio do

Page 44: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

51

afogamento de Kirk (pai de Truman) foi uma maneira de traumatizá-lo, fazendo com que

ele tivesse pavor de água desde então, e como morava em uma ilha não conseguiria

atravessar o oceano.

No entanto, o corpo de seu pai nunca foi achado, e um dia indo para o

trabalho Truman vê seu pai vestido como um mendigo, logo que ele percebe que é

realmente seu pai, um homem e uma mulher pegam o mendigo colocando-o em um

ônibus e o levando para longe de Truman. Esse foi um fato que mexeu muito com

Truman, pois ele sentia-se culpado pela morte de seu pai e de repente encontra-o vivo,

mas ao vê-lo sendo levado tão abruptamente fica desconfiado de que algo está sendo

escondido dele.

Após essa cena, Truman tenta contar à sua mãe o fato de ter visto seu pai

mas ela o desacredita.

o Sylvia e Truman na praia (00h: 26m: 00s)

Truman conhece Sylvia ainda no colégio, onde se encanta pelos seus olhos.

Desde então começa uma aproximação dos dois, o que contrariava o script criado por

Christof, pois Sylvia era apenas um figurante. Em duas oportunidades Truman vê

pessoas retirando Sylvia de perto dele, a primeira delas é quando Truman a vê pela

primeira vez: ela está na escola sentada debaixo de uma árvore e quando Truman olha

pela segunda vez ela já não está mais lá; a segunda é na festa de formatura em que

Truman vê dois rapazes de terno a levando para fora da festa.

Um dia Truman estava estudando em uma biblioteca, quando percebe que

Sylvia está estudando perto dele. Ele se aproxima e a convida para sair. Os dois fogem

da biblioteca, um conselho que a própria Sylvia dá a Truman, que eles sejam rápidos

pois os dois têm pouco tempo juntos.

Page 45: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

52

Eles vão até uma praia e então acontece o primeiro beijo de Truman. É

quando aparece um carro para lavá-la para longe de Truman. Sylvia tenta alertá-lo de

que algo está acontecendo a sua volta, de que é tudo armação, de é tudo feito para ele

e que é um show de televisão, Truman fica confuso sem entender ao certo o que ela

quer dizer com aquilo tudo. É quando então Sylvia é colocada dentro do carro e pede

para que Truman vá atrás dela em Fiji, para que ele saia da ilha e a encontre.

Esse foi o fato que talvez tenha mais motivado Truman a pensar em sair da

ilha. O que ele sentia por Sylvia era uma atração muito forte, e podemos perceber isso

ao decorrer do filme, mesmo estando casado com Meryl, Truman continuava pensando

em Sylvia, procurando-a em listas de telefone e montando seu retrato a partir de

recortes de revistas. O amor que Truman sentia por Sylvia foi um dos fatores mais

relevantes para ele tomar a iniciativa de sair da ilha e procurá-la, ele nunca perdeu as

esperanças, pois ela foi seu primeiro amor e seu primeiro beijo, mas após esse fato

ocorrido na praia ela nunca mais a viu.

Sylvia, ao contrário dos outros personagens do reality show, não conseguiu

manter-se afastada de Truman e também não conseguiu continuar enganando-o,

participando da farça em que todos estavam metidos, talvez por dó de Truman, ou

talvez por não concordar com a exploração a que ele era submetido, ou talvez por ter

realmente se apaixonado por ele, o que contrariava o idealizador do programa como já

dissemos anteriormente.

Ela queria libertá-lo desse paraíso artificial e por isso foi expulsa. Esse fato

pode ser comparado com Adão e Eva no jardim do Éden. Deus irado com a

desobediência de Eva ao fazer Adão comer o fruto proibido, expulsou-os do paraíso

como forma de punição. Christof também pode ser comparado com um Deus irado com

desobediência de Sylvia ao quebrar as regras do programa, expulsando-a dele,

mantendo-a longe de Truman para que ele se mantivesse na pureza e ingenuidade do

paraíso, o “fruto proibido” no caso do filme seria a verdade que Sylvia poderia revelar a

Truman.

Page 46: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

53

o Interferência no rádio (00h: 26m: 00s)

Truman está dirigindo rumo ao seu trabalho quando ocorre um fato estranho

com o rádio de seu carro, o radialista começa a narrar todos os passos de Truman. Ele

fica meio confuso sem saber ao certo o que está ocorrendo, pára o carro e isso

desencadeia uma série de outros fatos, Truman pára os carros na rua, entra em um

prédio e quando está de frente para o elevador e a porta se abre, ele vê que não existe

elevador, que existem pessoas como em um camarim.

Ele vai até a loja onde Marlon trabalha com uma séria desconfiança de que o

mundo todo está girando em torno dele, e percebemos no decorrer da cena que Marlon

faz de tudo para que Truman não pense nessa hipótese.

o Meryl cruza os dedos (00h: 39m: 04s)

o Truman “prevê” o futuro (00h: 46m: 03s)

Page 47: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

54

o Preso no engarrafamento (00h: 48m: 48s)

As três cenas apresentadas acima mostram alguns detalhes fizeram Truman

perceber que os fatos que acontecem à sua volta se repetem, como é o caso da cena

em que ele presta atenção nas pessoas que ficam andando em voltas, como se

estivessem andando em círculos, ou que já estivessem programadas para fazer um

determinado movimento.

Truman percebe também que Meryl no momento do casamento cruzou os

dedos, não jurando verdadeiramente seu amor a ele, isso faz com que ele perceba que

ela casou-se com ele por algum outro motivo que não o amor que ela sentia por ele.

Outra situação peculiar vivida por Truman é quando ele resolve ir embora de

carro “seqüestrando” Meryl. Ele fica girando em torno de uma rotatória e quando resolve

entrar em uma rua, uma série de carros entram na sua frente, criando um

engarrafamento. Truman no mesmo momento percebe que aquela situação foi forçada

por alguém. Ele finge que vai embora, dá algumas voltas na rotatória novamente, e

quando volta à rua não existe mais engarrafamento.

o Com quem você está falando? (00h: 53m: 16s)

Page 48: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

55

Meryl tinha atitudes muito estranhas ao ponto de vista de Truman. Várias

vezes enquanto eles conversavam sobre algo sério ela tentava lhe desviar atenção com

atitudes totalmente desconexas ao contexto da conversa, como se estivesse vendendo

um produto (e era realmente isso que ela fazia, só que Truman não sabia desse fato).

Truman já havia desconfiado de que algo estranho acontecia com Meryl

nessas situações, mas dessa vez seu desvio de atenção foi muito acentuado, chegando

a ser ridículo para uma situação cotidiana de um casal, o que fez com que Truman

ficasse extremamente irritado.

o Christof e o mundo em que vivemos (01h: 06m: 00s)

Nesta parte do filme o entrevistado pergunta a Christof qual o verdadeiro

motivo de Truman nunca ter descoberto qual a natureza real de seu mundo. Christof lhe

responde que “aceitamos a realidade do mundo que nos é mostrada”.

Christof nos coloca uma visão não só da vida de Truman em si, mas sim na

vida que vivemos, aceitamos o mundo sem questioná-lo, sem entendê-lo, sem buscar

explicações plausíveis, fazemos sempre as mesmas coisas todos os dias, sem

querermos nos libertar de nossa vida cotidiana e normal, sem procurar um algo mais

que nos estimule, que nos faça buscar a verdade, entender melhor o que fazemos

Page 49: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

56

neste mundo, quais são as verdades escondidas por trás dos noticiários de tv, ou de

anúncios publicitários.

Hoje em dia há um esvaziamento intelectual da sociedade, onde o saber

muitas vezes é banalizado, cedendo espaço para o status social das roupas de marca,

ou dos carrões do ano, ou ainda do celular última geração com mais de mil funções.

Isso tudo nos ilude achando que vivemos em um mundo perfeito, não pensamos, mas

por si próprios, deixamos que a mídia simule um mundo perfeito para nós, o mundo

perfeito da propaganda de margarina ou da propaganda de cerveja, com pessoas

felizes e lindas, como se não houvesse mais com o que se preocupar.

Esse mundo ilusório que nos é vendido nos afasta da verdadeira realidade,

aceitamos sem questionar seus porquês, simplesmente aceitamos.

o Christof e o mundo em que vivemos parte 2 (01h: 06m: 30s)

Page 50: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

57

Christof ainda estava sendo entrevistado quando recebeu uma ligação de

Sylvia, recriminando-o por deixar Truman preso por todos esses anos, culpando-o de

não deixar Truman sair da ilha de Seahaven.

Novamente Christof nos coloca fatos pertinentes não só a vida de Truman,

mas à nossa vida também. Ele faz referências a um mundo doentio, como um pai que

protege o filho das verdades do mundo, tira o direito de conhecer o próprio mundo, com

a desculpa de que deu a Truman a oportunidade de viver uma vida normal. A defesa de

Christof até faz algum sentido se entendermos que vivemos em um mundo em que se

acredita na existência de um Deus soberano, onipotente, onipresente e onisciente, que

tudo sabe e que tudo vê.

Assim como Truman também somos “vigiados” a todo o momento, mas temos

o chamado livre arbítrio, a chance de escolher nossos próprios caminhos. O que

Christof faz é interferir nesse livre arbítrio de Truman, ele pode escolher seu caminho,

mas qualquer que seja esse caminho escolhido já está previamente decidido, planejado

e arquitetado por Christof.

Para Christof Seahaven é um mundo perfeito, podendo entender assim o

nome da ilha em que Truman mora. Haven em inglês significa lugar seguro, refúgio,

contudo pela semelhança de sonoridade podemos compará-la com heaven que

significa paraíso, onde Christof seria o Deus que controla a tudo e a todos, como já

dissemos anteriormente.

Todos nós gostaríamos de viver em um lugar como Seahaven, em um mundo

onde não nos preocuparíamos com muitas coisas, um mundo totalmente organizado,

limpo, perfeito, como em um paraíso realmente, mas se pararmos para analisar, vários

de nós vivemos em lugares assim, sem perceber o que há nas entrelinhas do cotidiano

monótono, ignoram a tudo e a todos, vivendo alienados em suas “meras ambições”

como diz o próprio Christof a se referir a Truman.

É isso que os governantes, os meios de comunicação de massa, empresas,

querem de nós, querem que continuemos em um mundo de fantasia, sem contestar,

sem lutar, sem querermos sair da ilha da alienação que nos cerca, pois assim seremos

um alvo mais fácil para seu jogo de interesses. Muitos não querem sair da “cela” em

que se encontram, é mais fácil ignorar os fatos, ignorar o mundo e continuar vivendo

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uma vida tranqüila, sem preocupações, longe dos problemas do mundo, é mais fácil

viver na escuridão da caverna do que ofuscar os olhos com a luz.

Vamos perceber daqui para frente que Truman inverte essa situação, ele

começa a lutar contra a situação em que vive, ele luta contra todos os meios para

buscar toda sua verdade.

o Fuga de Truman (01h: 22m: 00s)

Após ter sido deixado por Meryl, Truman resolve ir embora da ilha também.

Ele vence seu medo de água, pega um barco e parte rumo a liberdade. Podemos

perceber que seu barco chama-se “Santa Maria”, fazendo uma referência a uma das

caravelas de Cristóvão Colombo, e assim como o grande descobridor das Américas, ele

vai rumo ao desconhecido.

Esse é um momento muito importante na história de Truman, é o momento

em que ele se dirige para fora de sua caverna, seu momento de libertação, é a sua

passagem da escuridão para a luz. No entanto não será tão fácil essa sua passagem,

Christof não lhe deixará sair tão facilmente e provoca uma grande tempestade para

fazer com que Truman fique com medo e desista da idéia.

Christof, percebendo que seu plano não está dando certo, pede para que

aumentem a tempestade, mesmo sendo alertado sobre os riscos de Truman morrer

frente a um mundo de telespectadores. Christof não pára, alegando que Truman

nasceu frente às câmeras e pode muito bem morrer diante delas, no entanto Christof

não pode matar Truman, ele não pode se dar ao luxo de expulsar se Adão, assim como

fez Deus, Christof precisa de Truman.

Podemos comparar essa fúria de Christof com o fato de Truman querer fugir

do paraíso, desrespeitando sua autoridade, com a passagem bíblica do dilúvio, em que

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Deus, para castigar a humanidade de suas desobediências, manda uma poderosa

chuva que extermina a humanidade:

(...) O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a terra, e o seu coração sofreu amargamente. E o Senhor disse: “Eliminarei da face da terra o homem que eu criei”. (BÍBLIA. Gênesis.6:6. p.11)

De qualquer maneira temos também um elemento de purificação, a água

representa em vários mitos a purificação da alma, a tempestade seria o seu ritual de

purificação, assim como a água é utilizada no batismo da religião católica, ou ainda no

romance de José Saramago Ensaio Sobre a Cegueira (2003) que foi adaptado para o

cinema (2008), em que as pessoas todas ficam cegas e a água aparece com um meio

de purificação, elas tomam banho de chuva, limpam suas roupas, sapatos e esse “ritual

de purificação” precede o retorno da visão das personagens, Truman após o “dilúvio”

estaria pronto para ver o mundo finalmente.

o Içando a vela (01h: 28m: 00s)

Mesmo depois de tantos esforços por parte de Christof, Truman não desistiu

de seus planos. Ele se amarrou ao barco sobrevivendo à tempestade. Quando ele

acorda e iça a vela de seu barco podemos perceber um número: 139.

Recorrendo novamente aos textos bíblicos encontramos o salmo 139 que diz:

1. [Salmo de Davi para o músico-mor] SENHOR, tu me sondaste, e me conheces. 2. Tu sabes o meu assentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento. 3. Cercas o meu andar, e o meu deitar; e conheces todos os meus caminhos. 4. Não havendo ainda palavra alguma na minha língua, eis que logo, ó SENHOR, tudo conheces. 6. Tu me cercaste por detrás e por diante, e puseste sobre mim a tua mão. (...)

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7. Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? 8. Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também. 9. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, 10. Até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá. (...) 13. (...) possuíste os meus rins; cobriste-me no ventre de minha mãe. (...) 23. Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus pensamentos. 24. E vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno. (http://www.bibliaonline.com.br/acf/sl/139, acessado em 08/11/2008)

Este Salmo pode ser interpretado com um resumo de toda a relação entre

Christof e Truman, a relação entre criatura e criador, do poder que Christof tem sobre a

vida de Truman, de todas as decisões que fazem a vida de Truman tomar caminhos

diferentes a cada momento.

Truman continua a velejar e de repente, ao contrário do que fez o descobridor

Cristóvão Colombo que provou que a terra é redonda, parece confirmar as crenças da

idade média, em que acreditavam que o mar termina em um abismo, Truman bate o

barco em um fundo, descobrindo o continente da realidade: de que viveu sua vida

inteira em um mundo irreal.

o Conversa com Deus (01h: 31m: 40s)

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A cena mais importante do filme se dá após Truman bater na parede e ver

que seu mundo fictício tinha um fim e de que ele não conseguiria sair velejando. Ele

então descobre uma escada e sobe por ela até a porta de saída. Quando está prestes a

sair, uma voz ecoa por entre as nuvens chamando-o, é Christof, o Deus de seu mundo

que tentará pela última vez convencê-lo a ficar no reality show. Ele tentará fazer com

que Truman sinta medo de sair de sua caverna, medo de descobrir a verdade, e

principalmente tentará alertá-lo sobre os perigos do mundo real.

Christof diz a ele que lá fora o mundo é igual ao que ele criara, as mesmas

mentiras e enganações, só que no paraíso criado por ele, Truman não tem o que temer,

já é tudo planejado e nada de mal poderá lhe acontecer. De uma certa maneira Christof

tem razão em dizer que o dito “mundo real” tem suas mentiras, suas enganações,

porque como já dissemos anteriormente, nós necessitamos de criar personagens para

vivermos em sociedade, para que tenhamos um relacionamento saudável com as

outras pessoas, é claro que não fingimos 24 horas como as pessoas do reality show,

mas muitas vezes temos que saber contornar situações.

Metaforicamente podemos entender essa última cena como o último estágio

da sua passagem da “ignorância” em não perceber de maneira crítica o mundo em que

vive, e o verdadeiro conhecimento, o descobrimento da verdade. A saída de Truman de

seu mundo fictício seria o rompimento com a alienação em que se encontrou durante

toda sua vida e o que Christof faz é tentar fazê-lo mudar de idéia. O paraíso, ou o

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mundo alienado, talvez seja melhor, na visão de Christof, pois sem descobrir as

verdades Truman não teria com o que se preocupar, ele viveria para sempre no seu

mundo de ilusões, sem descobrir o que há por trás de tudo, sem sofrer, portanto.

Isso acontece no “mundo real”, como também já discutimos anteriormente,

muitas pessoas continuam em estado de dormência, presos em suas cavernas, cegos

na escuridão da ignorância de não querer saber o que acontece a sua volta, tendo essa

postura passiva, de aceitar tudo o que já é dado pronto, sem questionar, sem sofrer

com a verdade, é mais fácil e menos doloroso ser passivo de tudo o que o mundo já

nos apresenta pronto, é mais fácil se Truman continuasse dentro de seu paraíso

artificial, mas ele rompeu com seus medos, com as barreiras da ignorância e partiu para

um outro mundo, para o mundo do conhecimento talvez, ou para o mesmo mundo em

que ele vivia, só que um pouco mais disfarçado.

Assim como Neo, em Matrix (1999), escolheu a pílula vermelha para saber

qual o real mundo em que vivia, sendo alertado por Morpheus que ao fazer tal escolha

não teria volta, Truman chegando até a porta de saída de seu mundo não teria como

voltar atrás, não teria como recuar e aceitar toda aquela vida manipulada e já escrita

por um roteirista de televisão.

O que aconteceu com Truman após sua saída é uma incógnita. O filme

termina em reticências como um modo de mostrar aos que o assistem que não é tão

simples quebrar as barreiras do conhecimento, e que mesmo quebrando-as não

sabemos o que encontraremos pela frente, não sabemos o que nos espera fora da

caverna, ou fora da matrix, ou fora do nosso Show de Truman.

Logo após o termino do reality show, dois guardas que estão assistindo ao

programa perguntam-se o que estaria passando em outros canais, desprezando o fato

de que o reality show esteve no ar durante 30 anos.

Essa cena traz mais uma crítica ao mundo vazio em que nos encontramos,

onde tudo é descartável e substituível, além de ser um reality show, era também a vida

de uma pessoa que estava sendo exibida para milhões de pessoas em todo mundo, e

ao terminar não houve nem um tipo de reflexão por parte dos telespectadores, que

simplesmente mudaram de canal, como se tudo aquilo que assistiram fosse banal,

afastando-se de qualquer relação com o que foi exibido durante tanto tempo.

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CONCLUSÃO

A alienação, assim como o modo de enxergar o mundo, é um tema que já

vêm sendo discutidos há muito tempo, desde os filósofos gregos, passando pelas

teorias religiosas, sendo amplamente estudada e conceituada por Karl Marx na sua

análise do capitalismo.

O objetivo do trabalho foi discutir como os meios “produtores” da alienação

que nos cercam por todos os lados no mundo capitalista de hoje em dia, partindo do

filme O Show de Truman que relata com clareza a passagem do personagem de um

“mundo fictício” para um “mundo real”.

Foram feitas comparações das situações a que o personagem era submetido,

com as situações que presenciamos todos os dias em nossa vida, fazendo-nos

perceber que o filme não é só uma simples obra de ficção, que ele traz elementos

cotidianos totalmente plausíveis de serem abordados.

A intenção foi discutir como milhões de pessoas em todo o mundo vivem

presas a um mundo que elas não têm o menor conhecimento, passam suas vidas

inteiras presas em seus “shows de Truman” sem buscar o conhecimento, sendo

condenadas a ver sombras e tomá-las como verdade, as pessoas não estão

preparadas para tomar o choque de conhecer a verdade que as rodeia.

Percebemos como os familiares de Truman, mesmo sabendo da falsidade do

mundo, levava-o a ridicularização, não acreditando assim como grande parte das

pessoas não acreditam que vivem em um mundo que tem suas maneiras de

manipulação, continuam querendo acreditar na inocência dos meios de comunicação e

que o Estado serve para nos defender e lutar por nossos direitos.

O filme foi utilizado para mostrar que da mesma maneira que Christof prendia

Truman e utilizava mecanismos ideológicos para tal fim, nós também sofremos com a

alienação provocada por diversos meios, é de interesse do governo, dos meios de

comunicação de massa e do mercado capitalista que continuemos vivendo na “santa”

ignorância, que continuemos acreditando no que os noticiários dizem, acreditando no

senso comum geral da população, sem lutar, sem questionar, pois isso garantirá a

manutenção dos interesses da classe dominante, que tiram proveito da ignorância da

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população, que no filme é retratado por Christof ao querer que Truman não descubra a

verdade e continue lhe garantindo lucros bilionários.

O filme mostra, assim como os filmes relacionados e o mito da caverna, a

maneira de se buscar o conhecimento, eles nos levam até a porta, mostram-nos

maneiras de se quebrar as barreiras da ignorância e ter contato com a verdade, mas

não sabemos o que realmente encontraremos ao sairmos do mundo das sombras, não

sabemos o que encontraremos quando sairmos de nossas cavernas ou quando nos

libertarmos do nosso Show de Truman.

Page 58: MONOGRAFIA O SHOW DE TRUMAN

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REFERÊNCIAS

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Cultura Brasileira S/A. São Paulo.

FILMES RELACIONADOS

WEIR, Peter. O Show de Truman - Edição Especial para Colecionadores. Estados

Unidos: Paramount Pictures, 2006. 102 minutos DVD-VIDEO. NTSC

BAY, Michael. A Ilha. Estados Unidos: Warner Home Video, 2005. 126 minutos DVD-

VIDEO. NTSC

RUSNAK, Josef. 13° Andar. Estados Unidos: Sony Pictures 1999. 100 minutos DVD-

VIDEO. NTSC

PROYAS, Alex. Cidade das Sombras. Estados Unidos: Warner Home Video, 2001. 96

minutos DVD-VIDEO. NTSC

WACHOWSKI, Larry. Matrix. Estados Unidos: Warner Home Video, 1999. 136 minutos

DVD-VIDEO. NTSC

CROWE, Cameron. Vanilla Sky. Estados Unidos: Paramount Pictures, 2002. 137

minutos DVD-VIDEO. NTSC

MEIRELLES, Fernando. Ensaio sobre a Cegueira. Estados Unidos: O2 – Fox Filmes,

2008. 120 minutos.

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http://www.imdb.com/name/nm0000120/bio, acessado em 14/04/2008.

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acessado em 08/11/2008.