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1 Modelos de assistência e identidades engendradas: notas sobre política e saúde mental no Brasil 1 Lilian Leite Chaves PPGAS/UFRN Palavras-chaves: assistência, saúde mental e política Introdução No dia 10 de Dezembro de 2015, durante uma audiência, o então recém Ministro da Saúde Marcelo Castro anunciou uma mudança na Coordenação de Saúde Mental, Álcool e outras drogas. O anúncio da exoneração de Roberto Tykanori e do convite de Valencius Wurch para assumir o posto causou perplexidade e revolta, sobretudo para os profissionais, entidades e usuários engajados com a luta antimanicomial. A notícia se espalhou rapidamente através das redes sociais e blogs, alcançando em alguns dias as páginas dos jornais de grande visibilidade. A troca dos gestores não foi vista apenas como uma costumeira alternância de profissionais no comando de cargos, típica da reconfiguração de equipe de trabalho para um novo ministro. Os dois nomes foram polarizados para evocar formas diferentes e conflituosas de se pensar a assistência em saúde mental no Brasil. Assim, o modelo comunitário antimanicomial representado na gestão de Tykanori viu-se ameaçado pela nomeação de um profissional que conduzira durante anos um manicômio calcado na lógica asilar hospitalocêntrica. A perplexidade e revolta geraram formas de denunciar a gravidade da escolha de Valencius, dentre elas: as notas de repúdio, a realização de abraços a Centros de Atenção Psicossocial, abaixo-assinados, seminários, palestras, audiências, marchas e a ocupação da sala da Coordenação de Saúde Mental em Brasília, autodenominada “Ocupação Fora Valencius”. Em contrapartida, algumas entidades e o Ministro da Saúde defenderam a nomeação do profissional e criticaram o modelo de assistência em curso, acusando-o de ideológico e pouco científico. Esse episódio fez com que a temática da reforma psiquiátrica ressurgisse na arena nacional dos debates políticos referentes à saúde. Vale lembrar que a última Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu no ano de 2010 e que desde então esse assunto não é debatido na esfera política com ampla participação social visando elaborar novas diretrizes para o setor. Além disso, a lei 10.216 de 2001 (BRASIL, 2001) que dispõe sobre a proteção e os direitos 1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2016, João Pessoa/PB.

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Modelos de assistência e identidades engendradas: notas sobre política e saúde

mental no Brasil1

Lilian Leite Chaves

PPGAS/UFRN

Palavras-chaves: assistência, saúde mental e política

Introdução

No dia 10 de Dezembro de 2015, durante uma audiência, o então recém Ministro

da Saúde Marcelo Castro anunciou uma mudança na Coordenação de Saúde Mental,

Álcool e outras drogas. O anúncio da exoneração de Roberto Tykanori e do convite de

Valencius Wurch para assumir o posto causou perplexidade e revolta, sobretudo para os

profissionais, entidades e usuários engajados com a luta antimanicomial. A notícia se

espalhou rapidamente através das redes sociais e blogs, alcançando em alguns dias as

páginas dos jornais de grande visibilidade. A troca dos gestores não foi vista apenas

como uma costumeira alternância de profissionais no comando de cargos, típica da

reconfiguração de equipe de trabalho para um novo ministro. Os dois nomes foram

polarizados para evocar formas diferentes e conflituosas de se pensar a assistência em

saúde mental no Brasil. Assim, o modelo comunitário antimanicomial representado na

gestão de Tykanori viu-se ameaçado pela nomeação de um profissional que conduzira

durante anos um manicômio calcado na lógica asilar hospitalocêntrica.

A perplexidade e revolta geraram formas de denunciar a gravidade da escolha de

Valencius, dentre elas: as notas de repúdio, a realização de abraços a Centros de

Atenção Psicossocial, abaixo-assinados, seminários, palestras, audiências, marchas e a

ocupação da sala da Coordenação de Saúde Mental em Brasília, autodenominada

“Ocupação Fora Valencius”. Em contrapartida, algumas entidades e o Ministro da

Saúde defenderam a nomeação do profissional e criticaram o modelo de assistência em

curso, acusando-o de ideológico e pouco científico. Esse episódio fez com que a

temática da reforma psiquiátrica ressurgisse na arena nacional dos debates políticos

referentes à saúde. Vale lembrar que a última Conferência Nacional de Saúde Mental

ocorreu no ano de 2010 e que desde então esse assunto não é debatido na esfera política

com ampla participação social visando elaborar novas diretrizes para o setor. Além

disso, a lei 10.216 de 2001 (BRASIL, 2001) que “dispõe sobre a proteção e os direitos

1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2016, João Pessoa/PB.

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das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em

saúde mental” é muito recente, sendo que alguns de seus pontos não foram plenamente

efetivados.

A luta pela reforma psiquiátrica no Brasil iniciou-se no final da década de 1970

com a denúncia das condições desumanas às quais estavam submetidos pacientes

psiquiátricos e também sob as quais os técnicos em saúde mental desenvolviam suas

atividades de cuidado (AMARANTE: 2009). Contudo, se a demanda por reforma, no

início, pareceu se equivaler às demandas da luta antimanicomial (intervenção do Estado

na desconstrução dos hospícios e das práticas violentas da psiquiatria), com o avançar

do tempo, ela ganhou matizes nos embates a respeito dos tipos de reforma vislumbrados

e jogou luz sobre grupos oponentes. Essas disputas podem ser analisadas a partir dos

modelos de assistência defendidos por cada grupo que, grosso modo, aparecem

polarizados em categorias de afirmação versus acusação, tais como antimanicomial

versus hospitalocêntrico, científico versus ideológico.

A análise dos modelos de assistência não se reduz a um olhar crítico sobre as

suas dimensões econômicas e administrativas, isto é, sobre gastos, gestão e organização

dos serviços. As relações planejadas e esperadas entre profissionais e usuários também

precisam de um olhar atento, uma vez que a estipulação dos profissionais habilitados

para conduzirem tais modelos tem implicações para o lugar que o usuário ocupará no

seu processo de sofrimento e de atenção ao seu sofrimento. As categorias de acusação e

afirmação indicam um caminho que acaba por desembocar em conformações de

identidades, tanto dos profissionais quanto dos usuários. Dessa maneira, o que se

evidencia é que as discussões que se dão em torno dos tipos de modelos trazem consigo

expectativas de legitimidade, visibilidade e reconhecimento dos agentes e saberes

envolvidos.

A reação à escolha de Valencius, composta tanto de rechaços quanto de

concordâncias, é profícua para pensar a simbiose da formulação e defesa de modelos de

assistência com a luta por legitimidade e reconhecimento das pessoas envolvidas. O

objetivo desse trabalho é, a partir de uma etnografia dessa reação combinada com uma

leitura de documentos de política de saúde mental, resgatar como as posições

ideológicas e técnicas aparecem nas defesas e proposições de modelos de assistência

que conformam ou possibilitam identidades diversas. A reação à escolha de Valencius,

para fins desse trabalho, corresponde às discussões que circularam nas redes sociais e

blogs e que alcançaram jornais de grande visibilidade e páginas institucionais

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importantes. Os documentos de política referem-se às leis e aos relatórios finais das

Conferências Nacionais de Saúde Mental.

No que tange às redes sociais, as páginas no Facebook serão privilegiadas

porque catalisaram e documentaram várias ações críticas e contestatórias levadas a cabo

pelo país, dando à reação algum sentido de unidade e de movimento no âmbito

nacional. Os relatórios finais das conferências são importantes, pois se constituem como

documentos marcados pela participação social em que se supõe existir o consenso dos

pleitos dos diversos atores sociais. Os relatórios trazem ainda uma profundidade

temporal das discussões em torno da reforma psiquiátrica, configurando-se como os

pilares para as ações e os programas de governo que incidiram e incidirão na vida dos

profissionais e dos usuários, pilares pactuados em contextos específicos.

A reação à Valencius

A notícia da indicação de Valencius ganhou as redes sociais rapidamente, e eu

me deparei com o caso a partir de uma nota publicada por uma página que acompanho

no Facebook (Imagem 1). A página corresponde a um projeto de pesquisa vinculado à

Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG que visa resgatar a memória do processo

mineiro da reforma psiquiátrica e os trânsitos entre Brasil e Itália que fundamentam esse

processo antes mesmo da década de 1970. Depois de analisar, por ordem cronológica, as

postagens de algumas páginas que versam a respeito da saúde mental, incluindo as de

conselhos profissionais e jornais alternativos, eu verifiquei que a postagem citada pode

ser considerada uma das primeiras a noticiar a mudança.

Nessa postagem, destaca-se a forma como Valencius é apresentado mediante

uma parte da sua trajetória profissional, parte que corresponde aos anos em que foi

diretor “do maior hospício da América latina”, a Casa de Saúde Doutor Eiras, situada no

município de Paracambi no estado do Rio de Janeiro. O profissional é contraposto a

Roberto Tykanori, apresentado como “o primeiro interventor em hospício” (a Casa de

Saúde Anchieta na cidade de Santos no estado de São Paulo) e o responsável pelo

“primeiro programa de saúde mental enfocando a liberdade”. A oposição dos dois

nomes representando formas distintas de lidar com a gestão de unidades psiquiátricas de

saúde foi uma constante nas críticas à indicação de Valencius, uma vez que se induz que

a forma de condução da política nacional por cada gestor é uma ampliação da forma

como cada profissional realizou a gestão de unidades psiquiátricas específicas.

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Imagem 1

É importante ressaltar o clamor por ação que abre e fecha a nota, assinalando o

risco que assolaria as políticas de saúde mental com a gestão de um profissional

avaliado como pertencente à contrarreforma e a favor da privatização dos serviços de

saúde. A primeira ação formalizada foi uma carta enviada ao Conselho Nacional de

Saúde, e apresentada ao Ministro Marcelo Castro, manifestando preocupação e

contestando a escolha do profissional (Anexo 1). A carta, elaborada em nome dos

representantes de 656 entidades/movimentos2, se pauta em cinco pontos: a) esclarece

que o profissional foi contra o projeto de lei cujo substitutivo deu a origem a lei 10.216

alegando que a reforma proposta se baseava em caráter ideológico e não científico; b)

relata que a Casa de Saúde Doutor Eiras foi considerada o maior hospital psiquiátrico

privado da América Latina, local em que, ainda no ano 2000, vigorava os maus tratos e

as práticas violentas, tais como a eletroconvulsoterapia, ausência de roupas e

alimentação ruim e insuficiente; c) aponta que a política nacional de saúde mental não

2 Os subscritores desse documento são: Associação Brasileira de Saúde Mental/ABRASME, Associação

Brasileira de Saúde Coletiva/ABRASCO Centro Brasileiro de Estudos em Saúde/CEBES, Conselho

Federal de Psicolologia/CFP, Conselho Regional de Psicologia da 21ª Região - Piauí/CRP-PI, Instituto de

Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro/IMS-UERJ, Movimento Nacional da Luta

Antimanicomial/MNLA, Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial/RENILA com a gravidade

da escolha do profissional.

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reconhece o hospital psiquiátrico na rede de assistência por estar alinhada aos princípios

da reforma psiquiátrica e contesta o perfil de Valencius para ocupar a Coordenação

Nacional de Saúde Mental, uma vez que a sua atuação se deu em grande parte no

âmbito hospitalar e asilar; d) expõe a falta de produtividade do profissional relativa a

publicações de trabalhos na área da psiquiatria e da saúde mental para rechaçar a

afirmação do ministro de que o cargo requer autoridade científica; e) considera a

nomeação do profissional como um empecilho para a continuidade da política nacional

de saúde mental ancorada nos direitos humanos e no cuidado territorial e comunitário.

Embora o Conselho Nacional de Saúde tenha auxiliado no estabelecimento de

um canal de comunicação entre os representantes das entidades e o ministro, colocando-

se ao lado dos primeiros, Marcelo Castro defendeu a nomeação de Valencius. A portaria

n°2043 de 11 de Dezembro de 2015 que nomeia Valencius Wurch para o cargo foi

publicada no Diário Oficial da União no dia 14 de Dezembro de 2015. Em matéria

publicada no caderno Saúde do Jornal Estadão (FORMENTI, 2015) consta que Marcelo

acredita que são infundadas as informações divulgadas a respeito de Valencius, seu ex-

aluno na UFF, pois o mesmo, embora criticado, havia colaborado com a versão final da

lei 10.216. Para Marcelo, o desafio de Valencius seria aperfeiçoar a reforma psiquiátrica

tendo em vista uma avaliação do impacto dos 15 anos da lei.

A Associação Brasileira de Psiquiatria/ ABP, juntamente com outras entidades

médicas e familiares, divulgou uma nota de esclarecimento na qual afirma não

concordar com as contestações intempestivas à Valencius (Anexo II). A ABP nega o seu

envolvimento no manifesto e nas manifestações contra a nomeação de Valencius;

denuncia que a assistência prestada em saúde mental nos últimos 30 anos tem viés

ideológico, não privilegiando a reinserção social e nem o tratamento médico, o que vem

causando inúmeras mortes; pondera que não concorda com o modelo hospitalocêntrico

do passado e nem com o modelo capscêntrico (centrado nos Centros de Atenção

Psicossocial) conduzidos pela coordenação na atualidade; defende, afirmando não ferir

os princípios da lei 10.216, um modelo de assistência misto com base ambulatorial,

hospitalar, extra-hospitalar levado a cabo por equipes multi e interdisciplinares; anseia

que as politicas de saúde mental sejam construídas considerando bases científicas;

avalia a importância de se ouvir o novo coordenador3 e de se juntar esforços para uma

assistência em saúde mental efetiva.

3 A crítica e o apoio a Valencius aparecerem em noticias como a de Brunet:2015, Cambricoli:2015,

Dominguez:2016, Filho:2015, Lemes:2015.

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No intervalo do dia 10 até o dia 15 de Dezembro, acirrou-se o embate entre

profissionais e entidades que se aliaram as críticas colocadas pelos movimentos de luta

antimanicomial e os aliados à posição da ABP, isto é, profissionais contra e a favor do

novo coordenador. As acusações proliferaram-se, a ABP foi analisada como

corporativista e o fato da sua nota ter sido assinada somente por entidades médicas e

familiares foi visto como sintomático de um enclausuramento médico do saber a

respeito da saúde mental. Ressaltou-se o fato da ABP ter se dirigido ao Movimento da

Luta Antimanicomial, denominando-o de L.A.M.A, denominação pejorativa desde a

década de 1970. A ABP e seus aliados reforçaram a busca de um modelo de assistência

cientifico em que o atendimento médico hospitalar tivesse centralidade, ainda que

integrado numa rede de serviços comunitários. Esse embate evidencia que a disputa por

tipos de reforma psiquiátrica ainda tem como um dos pontos centrais, a discussão a

respeito do lugar do hospital psiquiátrico nos modelos de assistência e

consequentemente dos saberes que encabeçam esses modelos.

Nesse período, duas ações ganharam projeção nacional: o “Abraça Raps”

(Imagem 2) e a “Ocupação Fora Valencius” (Imagem 3). O “Abraça Raps” consistiu em

abraços aos Centros de Atenção Psicossocial por todo o país e a Ocupação Fora

Valencius se deu com a ocupação da sala da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e

outras drogas em Brasília.

Imagens 2 e 3

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O “Abraça RAPS” demonstrou a capilaridade da contestação, como foi noticiado

pelas matérias do jornal O Globo (BRUNET: 2015, FILHO: 2015) que explicaram a

ação como um abraço simbólico em todos os CAPS do país (aproximadamente duas mil

unidades), ou seja, um abraço em toda a Rede de Atenção Psicossocial. Essa notícia

informa que, como parte da mobilização nacional, foi enviada uma carta ao então

Ministro da Casa Civil Jacques Wagner para que o mesmo intervisse na situação. A

Ocupação Fora Valencius se pautou pelo pedido de exoneração do novo coordenador,

por considerá-lo um retrocesso para atenção psiquiátrica. O retrocesso é analisado nas

matérias divulgadas pela Carta Capital (MARTINS: 2015) e pela Folha de São Paulo

(FOLHA: 2016) como o rompimento de uma tradição na qual o coordenador de saúde

mental tem sido um profissional alinhado com a reforma psiquiátrica de cunho

antimanicomial.

A Ocupação Fora Valencius durou do dia 15 de Dezembro de 2015 até o dia 15

de Abril de 2016, quando foram obrigados pela Polícia Federal a deixarem a sala da

coordenação. Com as mudanças na política brasileira, derivadas do processo de

afastamento de Dilma Roussef, Marcelo Castro entregou o Ministério da Saúde em 27

de Abril e Valencius teve a sua exoneração publicada no Diário Oficial da União no dia

09 de Maio de 2016. É evidente que Valencius foi exonerado devido às circunstancias

políticas e não à pressão dos protestos, uma vez que o movimento da luta

antimanicomial endereçou uma carta à presidente da Republica pedindo intervenção,

sem obter resposta. Contudo, a Ocupação foi considerada como o marco de um novo

tempo para a luta antimanicomial brasileira, sinalizando que a urgência do debate atual

recai sobre qual tipo de reforma psiquiátrica deve ser colocado em prática a partir dos

princípios da lei 10.216 e do que já foi pactuado nas conferências.

Modelos e identidades: uma leitura a partir de documentos

A consideração de pessoas como representantes de modelos de assistência é a

primeira chave de acesso ao debate travado em torno da nomeação de Valencius. Para

seus críticos, o profissional representa um histórico de violências e maus tratos

característicos dos hospitais psiquiátricos, enquanto Tykanori (e os outros profissionais

que passaram pela coordenação) representam um esforço para o estabelecimento de uma

rede de atenção comunitária e para o fechamento dos hospitais psiquiátricos. Para seus

defensores, Valencius tem a seu favor mais de três décadas atuando como psiquiatra na

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saúde pública, sua contribuição contestatória na discussão da reforma psiquiátrica no

que respeita a extinção dos hospitais, enquanto Tykanori e os outros que passaram pela

coordenação são acusados de calcarem a assistência em saúde mental sobre princípios

ideológicos que não trataram medicamente e nem reinseriram socialmente as pessoas de

forma efetiva.

Ambos os lados afirmam que estão em conformidade com os princípios da lei

10.216 e acusam o outro lado de não seguir a lei ou de operacionalizá-la de forma

tortuosa. Percebe-se claramente que a reforma psiquiátrica está em disputa, isto é,

disputam-se maneiras de operacionalizar os princípios da lei para justificar modelos de

assistência. A centralidade da lei evoca não somente o que está disposto em seus

artigos, parágrafos e incisos, mas as discussões das Conferências Nacionais de Saúde

Mental4 (1987, 1992, 2001, 2010) e os seus contextos. Dessa maneira, conhecer sobre a

política de saúde mental para entender os modelos de assistência contrapostos, passa por

conhecer os eixos centrais das Conferências e o que foi pactuado.

A 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu no ano de 1987, antes da

Constituinte e depois da 8ª Conferência Nacional de Saúde. Devido a este contexto, por

um lado, ela colocou as demandas da saúde mental no esteio das discussões a respeito

das diretrizes para a Reforma Sanitária e para a construção do Sistema Nacional de

Saúde; por outro lado, apontou para as dimensões que deveriam constar na

Constituição, por exemplo, aspectos acerca da curatela e periculosidade. O seu relatório

final (MINISTÉRIO DA SAÚDE: 1988) ancorou-se em três eixos a respeito da

economia, da reorganização da assistência em saúde mental e da cidadania.

Definiu-se a necessidade de considerar o impacto da conjuntura econômica

(desemprego, migração, concentração de renda, precariedade das condições de vida e

trabalho) na saúde mental. Acordou-se a obrigatoriedade da participação social

organizada (conselhos, comissões de usuários); a urgência em fechar e não mais

construir hospitais psiquiátricos, substituindo leitos em hospitais psiquiátricos por leitos

psiquiátricos em hospitais gerais e por serviços alternativos aos hospitais; o

estabelecimento de equipes multiprofissionais (incluindo profissionais do campo das

ciências humanas e das artes) para propiciar uma visão integral do sujeito em

4 Segundo Ribeiro et al (2015:58), “as conferências são canais institucionais de participação social,

caracterizados como processos periódicos de diálogo entre Estado e sociedade a respeito de um tema. [...] As conferências são, em geral, realizadas para a formulação de propostas de políticas públicas, mas

também costumam ter como objetivos a avaliação de ações e realidades, o fortalecimento da

participação e a afirmação de ideias e compromissos”. Para Avritzer (2012: 16), “as conferências

nacionais se firmaram nos últimos anos como a principal política participativa do governo federal”.

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sofrimento; a efetivação da politica de recursos humanos com ênfase nos concursos

públicos. Estabeleceu-se o dever de assegurar a cidadania plena aos indivíduos com

doença mental; ponderou-se que o cliente e sua família possuem o direito à informação,

ao acesso ao prontuário, a questionarem o diagnóstico e o tratamento, a escolherem o

terapeuta e o tipo de tratamento.

A II Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu no ano de 1992, após a

entrada em vigor da Lei 8080 e da Declaração de Caracas, ambas em 1990, e foi

marcada pela participação social organizada. A Lei 8080, conhecida como a lei do SUS,

“regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde” (BRASIL: 1990).

A Declaração de Caracas se refere a um documento elaborado pela Organização Pan

Americana de Saúde /OPAS e pela Organização Mundial de Saúde/OMS a partir da

Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica dentro dos

Sistemas Locais de Saúde5 (OPAS/OMS: 1990). Em seu relatório final constam

questões relacionadas ao marco conceitual, à municipalização e aos direitos e a

legislação (MINISTÉRIO DA SAÚDE: 1994).

A concepção de saúde e doença enquanto processos e a negação do pensamento

polarizado em corpo-mente conformam o marco conceitual dessa conferência.

Advogou-se em favor de uma mudança no modo de pensar as pessoas com transtornos

mentais, considerando-as em sua existência-sofrimento e não as reduzindo a partir de

seus diagnósticos. Concordou-se com o dever de diversificar os referenciais conceituais

e operacionais para além dos campos clássicos que dominam o cuidado e o saber em

saúde mental. Propôs-se a adoção de uma ética da autonomia e da singularização para

romper com os mecanismos que produzem subjetividades proscritas e prescritas.

Vislumbrou-se a necessidade de uma atenção integrada às diversas dimensões da vida a

partir de múltiplos âmbitos de intervenção (educativo, assistencial e de reabilitação).

Defendeu-se que a desinstitucionalização deveria alcançar todas as instituições de

caráter asilar (asilos para idosos, instituições para menores, classes especiais e

instituições penais), e também todas as pessoas envolvidas na atenção e na interação

para que estas descontruíssem os seus manicômios mentais. Estabeleceu-se como parte

5 Este documento solicita “Aos Ministérios da Saúde e da Justiça, aos Parlamentos, aos Sistemas de

Seguridade Social e outros prestadores de serviços, organizações profissionais, associações de usuários,

universidades e outros centros de capacitação e aos meios de comunicação que apoiem a Reestruturação

da Assistência Psiquiátrica, assegurando, assim, o êxito no seu desenvolvimento para o benefício das

populações da região” (OPAS/OMS: 1990).

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da cidadania, o direito de se vivenciar as crises, proibindo a abordagem dessas através

de métodos coercitivos.

No que se refere à atenção: pactuou-se em favor da municipalização da

assistência; da adoção dos conceitos de território e responsabilidade, como forma de

romper com o modelo hospitalocêntrico, garantindo o direito dos usuários à assistência

e à recusa ao tratamento, bem como a obrigação do serviço em não abandoná-los à

própria sorte. A respeito dos direitos e das legislações: acordou-se em assumir como

diretrizes para politica de saúde mental o que constava no projeto de Lei do Deputado

Paulo Delgado; determinou-se que os procedimentos terapêuticos deveriam ser

submetidos ao consentimento informado do paciente de forma a garantir seu poder de

expressão e decisão; endossou-se a proibição da esterilização como tratamento mental e

das psicocirurgias em pacientes involuntários.

Os pontos discutidos nessas duas conferências foram fundamentais para a

aprovação da lei 10.216 em Abril de 2001. A lei, resumidamente, estabelece como

direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais: o acesso ao melhor tratamento

de saúde consonante às suas necessidades; o tratamento com humanidade, respeito e

sem violências permitindo a reabilitação através da inserção na família, no trabalho e na

comunidade; o acesso à informação e aos meios de comunicação; o tratamento,

preferencialmente, em serviços comunitários. Ao dispor sobre o redirecionamento da

assistência, estabelece como responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política

nacional de saúde mental, contando com a participação social organizada. Além disso, a

lei restringe as internações hospitalares aos casos em que as opções extra-hospitalares se

mostrarem insuficientes, e proíbe as internações em instituições com características

asilares (BRASIL: 2001).

A 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental ocorreu no ano de 2001, alguns

meses após a lei 10.216 entrar em vigor. Esta conferência se pautou em avaliar o

processo de reforma em curso, uma vez que o modelo asilar ainda permanecia

hegemônico tendo em vista a sua capacidade instalada e os recursos gastos, perpetuando

o casamento entre exclusão e experiência de sofrimento mental (SISTEMA ÚNICO DE

SAÚDE: 2002). A estipulação de prazos e estratégias para extinção dos manicômios

aparece como o ponto mais urgente dessa conferência. Em decorrência disso, destacou-

se o esforço para a inclusão social e para habilitar a sociedade para conviver com a

diferença. A integração das politicas de saúde mental com as de outros setores

possibilitaria a inserção social através da integralidade da assistência.

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O empenho avaliativo da conferencia ressaltou a importância da saúde mental ter

caráter efetivamente público e das parcerias público-privadas passarem por um controle

social. Cobrou-se que a União, Estados e Municípios respeitem as deliberações das

Conferencias e estabeleçam planos de implementação que devem ser avaliados e

aprovados nos Conselhos de Saúde. Criticou-se a banalização do uso da medicação e

acordou-se a proibição do eletrochoque. Deliberou-se, em caráter de urgência, a criação

de uma comissão para avaliar as questões de saúde mental nas nações indígenas e para

implementar ações nas comunidades rurais, indígenas e itinerantes. Exigiu-se o

descredenciamento de clínicas de reabilitação de álcool e drogas pelo SUS e o aumento

da fiscalização das comunidades terapêuticas. Deliberou-se pela criação de uma agenda

específica de saúde mental para crianças e adolescentes e pela implementação dos

CAPSi, a fim de atender o público que se encontrava em abrigos e manicômios.

Determinou-se que a política de saúde mental requeria o desenvolvimento de ações

integradas e intersetoriais (nos campos da educação, cultura, habitação, assistência

social, esporte, trabalho e lazer) e a articulação de parcerias com a universidade, o

Ministério Público e as ONGs, visando à melhoria da qualidade de vida, a inclusão

social e a construção da cidadania da população.

A 4ª Conferência Nacional de Saúde foi intersetorial e ocorreu no ano de 2010.

O enfoque dessa conferência recaiu no reconhecimento dos avanços da rede de atenção

consolidada e no apontamento de lacunas e desafios ligados ao caráter

multidimensional, interprofissional, interdisciplinar e intersetorial (SISTEMA ÚNICO

DE SAÚDE: 2010). Essa conferência reafirmou a visão de que a saúde mental

transcende o campo da saúde, na medida em que tem interfaces com a educação,

assistência social, habitação, trabalho, direitos humanos, justiça, cultura, lazer etc.

Reforçou-se a obrigatoriedade do controle social e da participação social na construção

de políticas públicas. Debateu-se acerca do avanço tecnológico e do recrudescimento da

ênfase biomédica, sustentada pelo corporativismo médico.

Nos relatórios finais das conferências é possível constatar que a abertura dos

hospitais psiquiátricos exigia a recondução das pessoas ali encarceradas para o patamar

de sujeitos com direitos, bem como a descentralização do saber a respeito da saúde

mental. No modelo de assistência manicomial, em que os pacientes se encontravam

entregues a maus tratos e submetidos a práticas violentas de controle dos seus corpos e

das suas vontades, a identidade possível aos pacientes era a mesmidade de corpos

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animalizados, silenciados e tornados improdutivos, colocados como “de fora” das várias

dimensões da vida.

A centralidade do saber psiquiátrico tornava os profissionais do hospício

(médicos, técnicos de saúde, funcionários administrativos e de serviços gerais) vigias e

controladores de corpos, silenciadores de subjetividades, hierarquizados em uma escala

de poder para diagnosticar, receitar, administrar remédios, esquadrinhar o espaço, vigiar

comportamentos, conter movimentos e palavras. Esses profissionais colocavam em

funcionamento a política do “dar a morte” e do “deixar morrer” (FOUCAULT: 1988,

BIEHL: 2001). As denúncias realizadas pelos técnicos de saúde no início da luta

antimanicomial, visava a desinstitucionalização dos pacientes e também dos

profissionais, ambos estavam presos, desde Pinel, num circuito de violência e

culpabilidade criado pelo saber psiquiátrico ao definir o asilo como o lugar da loucura

(FOUCAULT: 1984).

É interessante observar que a quebra da hegemonia do saber psiquiátrico

convoca outros saberes para lidar com as múltiplas dimensões desse indivíduo integral,

antes reduzido a um corpo esterilizado jogado num depósito de corpos. Essa quebra traz

a responsabilidade para outros profissionais e os liberta para buscar reconhecimento e

legitimidade como agentes com idiossincrasias. O apelo à interdisciplinaridade na

atenção é uma constante nos relatórios das conferências e demonstra a necessidade do

envolvimento de disciplinas que vão além das disciplinas clássicas envolvidas com a

temática da saúde mental – médicas, do campo psi e jurídicas. Esse apelo mostra que as

questões de saúde mental não são questões somente do campo da saúde, evocando a

intersetorialidade da assistência.

Dessa maneira, o modelo de assistência idealizado nos documentos das

conferências é um modelo público, comunitário, interdisciplinar, intersetorial, no qual

os indivíduos têm direito a informação, ao acesso aos prontuários, e a contestação de

diagnósticos, medicação e terapeutas. Um modelo aberto à participação e controle

social, no qual vozes diferentes podem expressar saberes diferentes e reforçar o direito à

subjetividade. Esse modelo é baseado numa rede de atendimento integrada, para a qual

a noção de internação é vista pelo prisma do acolhimento restrito a um número limitado

de dias, para não se incorrer na exclusão social.

Embora a ABP, em sua nota, ressalte defender um modelo misto com base

ambulatorial que comungue com os princípios da lei 10.216, ao reclamar lugar para o

hospital psiquiátrico, ela permite que o fantasma da exclusão manicomial ronde a

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assistência. A ABP, como já foi apontado nesse texto, defende uma assistência

interdisciplinar, mas se coloca como uma entidade de classe, representante de toda a

classe psiquiátrica, e elabora um documento em conjunto somente com entidades

médicas e de familiares. É possível inferir que a interdisciplinaridade possível para ABP

se dá entre as especialidades médicas, e que a sua defesa do rigor científico é a defesa

da hegemonia do saber médico e das práticas hospitalares com suas máquinas de

descobrir doenças e os seus psicofármacos curativos. A reforma que a ABP defende não

é de cunho antimanicomial, no sentido, de abolir os manicômios de alvenaria e os

manicômios mentais.

Nesse modelo misto, em que a interdisciplinaridade não ultrapassa as fronteiras

da medicina, se coloca a questão da legitimidade dos outros saberes envolvidos na

atenção e as identidades possíveis. Pode se argumentar que o indivíduo amparado por

esse modelo, não será considerado como um ser integral e sim como alguém que tem

algum problema tratável por médicos. Dessa maneira, se incorreria na redução do

indivíduo à sua patologia e em subjetividades prescritas e proscritas. Existe uma

correlação entre a pluralidade dos profissionais envolvidos na atenção e a capacidade de

garantir aos indivíduos seus direitos, sobretudo, o direito à subjetividade e alteridade. O

que a ABP acusa de ideológico e não cientifico é a abertura do campo da saúde mental a

outros agentes, a sua interface com outros setores, que os interpelam, não só em termos

pragmáticos para a assistência, mas em termos epistemológicos, isto é, de ajudar a

compreender as questões envolvidas no campo da saúde mental.

Disputas documentadas e documentos em disputa: reflexões finais

Os documentos analisados nesse texto possuem status diferentes, mas foram

considerados como informantes no mesmo patamar de relevância. Das postagens das

páginas do Facebook, reproduzidas através da ferramenta de captura de tela, apreende-

se que elas foram elaboradas para serem compartilhadas, aumentando o raio de alcance

da informação, uma vez que são postagens públicas. As matérias de jornais, tanto

alternativos quanto da grande mídia, demonstram a repercussão das críticas, as contra

argumentações, o teor das ações. As notas oficiais marcam os posicionamentos de cada

grupo e, sendo abertas a subscrições, assinalam as suas composições. Elas são

instrumentos de embates a respeito dos modelos de assistências e dos tipos de reforma.

Os relatórios finais das conferências e as leis são produtos burocráticos, documentos

oficiais que compõem a memória da política de saúde mental. Estes, inspirando-se

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numa reflexão de Vianna (2014) podem ser vistos como produtos de encontros que

permitem outros encontros, a depender das formas de leitura dos seus jargões.

A reação à nomeação de Valencius ganhou os veículos da grande mídia depois

que algumas entidades soltaram notas de contestação em suas páginas. Porém, antes

dessas notas, a reação já estava acontecendo nas postagens no Facebook, estas eram

compartilhadas e comentadas por pessoas em pontos distantes nacionalmente e

internacionalmente. A contra reação, ou o posicionamento da ABP e dos defensores de

Valencius, se deram a partir das mesmas estratégias. Dessa maneira, pode se perceber

que a disputa foi documentada em diferentes níveis que precisam ser tratados sem

distinção de relevância, pois compunham um processo político, isto é, “processos por

meio dos quais indivíduos e grupos tentam mobilizar apoio para seus vários objetivos e,

nesse sentido, influenciar as atitudes e ações dos seus seguidores” (BARNES: 2010,

172).

A documentação da disputa descortina aos olhos de um público amplo, embates

constituintes do processo de reforma psiquiátrica brasileiro, embates que têm como

pontos importantes os modelos de assistência e as identidades possíveis de serem

engendradas por eles. A configuração dos modelos depende da sua abertura para uma

confluência de saberes, o que consequentemente implica na definição e amplitude de

como é considerada a interdisciplinaridade e a intersetorialidade. Ao classificar

Valencius como um representante da prática hospitalocêntrica, se denuncia um tipo de

modelo em que não há espaço para uma pluralidade de idiossincrasias e saberes.

As disputas documentadas revelam outra faceta do embate, a dos documentos em

disputa, isto é, como se interpreta os documentos burocráticos como as leis e os

relatórios das conferências. Os dois grupos afirmam seguir os preceitos das leis e

estarem de acordo com o que foi pactuado, mas a interpretação da linguagem chapada

desses documentos permitem operacionalizações diversas. Assim, a disputa se centra na

forma de operacionalizar, o que acaba por recair na forma como os modelos de

assistência serão geridos e organizados.

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Anexo I

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Anexo II