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Tese de doutorado
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS ESTUDOS COMPARADOS DE LITERATURAS DE LNGUA PORTUGUESA
Maged Talaat Mohamed Ahmed El Gebaly
Mobilidades culturais e alteridades em Relato de um certo oriente e sua
pr-traduo rabe
So Paulo
2012
Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrnico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogao na Publicao
Servio de Biblioteca e Documentao
Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo
El GEBALY, Maged Talaat Mohamed Ahmed.
Mobilidades culturais e alteridades em Relato de um certo oriente e sua pr-
traduo rabe/ Maged El Gebaly So Paulo, 2012.
Orientador: Prof. Dr. Benjamin Abdala Junior
Tese (Doutorado) Universidade de So Paulo, Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas. Departamento de Letras Clssicas e Vernculas.
Programa de Ps-graduao em Estudos Comparados de Literaturas de
Lngua Portuguesa.
1. Mobilidades. 2. Alteridades. 3.Narrativa. 4. Memria. 5. Traduo.
Folha de aprovao
Sumrio
ndice de Figuras ........................................................................................................................... 19
Dedicatria .................................................................................................................................... 12
Agradecimentos ............................................................................................................................. 13
.................................................................................................... 16 Introduo ...................................................................................................................................... 31
Captulo I: Contexto geral da imigrao rabe no Brasil .............................................................. 37
1.1. Primeiros contatos no perodo colonial .............................................................................. 37
1.1.1. Mito do mascate .......................................................................................................... 38
1.2. Perodos da imigrao libanesa para o Brasil ..................................................................... 39
1.2.1. Perodo do domnio otomano (1850-1920) ..................................................................... 39
1.2.1.1. Dom Pedro no mundo rabe ..................................................................................... 40
1.2.1.2. Mito do turco ............................................................................................................ 40
1.2.2. Perodo de entre-guerras (1920-1940) ............................................................................. 41
1.2.3. Lbano independente (1943-1975) .................................................................................. 41
1.2.4. Guerra no Lbano (1975-2000) ........................................................................................ 42
1.3. Diferenas e tenses ........................................................................................................... 42
2.1. Fim do Ciclo da Borracha ............................................................................................... 46
2.2. Alm do regionalismo, incerto oriente ........................................................................... 48
Captulo III: Memria cultural e autofico .............................................................................. 56
3.1. Memria familiar e sombras da infncia ............................................................................ 61
3.1.1. Casamento misto ......................................................................................................... 62
3.2. Retornar e relembrar ........................................................................................................... 66
3.2.3. Hakim, o duplo ............................................................................................................ 68
3.2.3.1. Monlogo dialogante de Hakim ............................................................................... 69
3.2.3.2. Hakim e a lngua rabe ............................................................................................. 70
3.3. Deslocamento/ exlio .......................................................................................................... 71
3.3.1. A Casa ......................................................................................................................... 75
3.4. Narradores em trnsito ....................................................................................................... 80
3.5. Vozes, silncios e memrias compartilhveis .................................................................... 82
3.5.1. Vozes femininas .......................................................................................................... 84
3.6. Narrativa circular, heterobiogrfica e fractria ................................................................... 87
3.6.1. Multiperspectivismo cultural ....................................................................................... 90
3.7. Olhar transitrio, exotismo e autoexotismo ........................................................................ 92
3.7.1. Dorner .......................................................................................................................... 93
3.8. Entrelugar e memria dialgica .......................................................................................... 95
Captulo IV: Pr-traduo rabe de Relato de um certo oriente.................................................. 103
4.1. Hermenutica do tradutor ................................................................................................. 106
4.1.1. Interpretao .............................................................................................................. 109
4.1.2. Recriao na reescrita ................................................................................................ 110
4.2. Conarrao do tradutor literrio ....................................................................................... 112
4.3. Identificao da hermenutica do tradutor ....................................................................... 114
4.4. Anlise da traduo .......................................................................................................... 116
4.4.1. Problemas e tcnicas de traduo .............................................................................. 117
4.4.1.1. Desambiguao da polifonia .................................................................................. 117
4.4.1.2. Identificao e codificao de vozes misturadas .................................................... 118
4.4.1.2.1. Identificao ........................................................................................................ 118
4.4.1.2.1. Codificao .......................................................................................................... 118
4.4.1.3. Decifrao dos modos verbais das vozes narrativas ............................................... 119
4.4.1.4. Especificao semntica ......................................................................................... 119
4.4.1.5. Traduo das referncias culturais ......................................................................... 119
4.4.1.6. Visualizao ........................................................................................................... 120
4.4.1.7. Explicitao discursiva ........................................................................................... 120
4.4.1.8. Transliterao ......................................................................................................... 121
4.4.1.8.1. Entre a traduo literal de uma marca cultural social e o seu emprstimo .......... 122
4.4.2. Campo da traduo no Egito ..................................................................................... 122
4.4.2.1. Tradutores da literatura latino-americana no Egito ................................................ 124
4.4.2.2. Traduo das narrativas modernas de memria no Egito ....................................... 126
4.4.2.3. Agentes da traduo latino-americana no Egito ..................................................... 126
Concluso .................................................................................................................................... 127
Referncias bibliogrficas ........................................................................................................... 136
Apndices .................................................................................................................................... 151
Apndice 1: Entrevista com Milton Hatoum: No h tantos tradutores de literaturas de lngua
portuguesa .............................................................................................................................. 151
Apndice 2: Resumos do minicurso DO ROMANCE NARRATIVA BREVE Ministrado
pelo Milton Hatoum em Casa do Saber (Para ser aproveitado neste captulo) ....................... 165
Professor: Milton Hatoum - Aula 01 25/08/2009 ............................................................. 165
Professor: Milton Hatoum- Aula 02 a 26/08/2009 .............................................................. 167
Apndice 3: Mostra da traduo rabe da metade de Relato de um certo oriente (Captulos 1, 2,
3, e 4) de oito captulos ............................................................................................................ 169
............................................................................................................................... 170 1 ................................................................................................................................................... 174
............................................................................................. 174 2 ................................................................................................................................................... 197
............................................................................................................. 197 3 ................................................................................................................................................... 224
.................................................................................................. 224 4 ................................................................................................................................................... 234
..................................................................................................... 234 ..................................................................................................................... 239
Apndice 4: Anlise de fenmenos de traduo ...................................................................... 241
Apndice 5: Narrativas que jogam com o imaginrio da imigrao rabe no Brasil .............. 257
ce de Figurasndi
Figura 1: Entrelugar do imigrante e do tradutor versus o positivismo do colonialismo (Maged El
Gebaly, 2012) ................................................................................................................................ 35
Figura 2: Mapa do Lbano ............................................................................................................. 44
Figura 3: Loja de temperos no centro de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012). Esses
temperos assinalados variadas vezes no Relato, uma smbolo de mistura cultural gastronmica
entre rabes e indgenas em Manaus, j que as duas culturas valorizam as propriedades dos
temperos e das ervas. ..................................................................................................................... 46
Figura 4: Mapa do Brasil (Fonte: IBGE, 1999). ............................................................................ 48
Figura 5: Gimnasio Amazonense Pedro II (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012). ................ 62
Figura 6: Estrutura genealgica da famlia-ncleo do Relato de um certo oriente (REZENDE,
2010, p.25). .................................................................................................................................... 64
Figura 7: Multiverso de Milton Hatoum, Maged El Gebaly, 2012. .............................................. 71
Figura 8: Escrita de vidas envolve interao com espaos marcados nas narrativas de memrias
(Maged El Gebaly, 2012). ............................................................................................................. 73
Figura 9: Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus 16/05/2012) ..................................................... 73
Figura 10: Igreja Nossa Senhora dos Remdios (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012) ......... 74
Figura 11: O Porto de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012) .................................... 74
Figura 12: Alfndega de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012) ................................ 75
Figura 13: Pagode no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus,
18/05/2012). ................................................................................................................................... 75
Figura 14: Pagode no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus,
18/05/2012). ................................................................................................................................... 76
Figura 15: Uma claraboia no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly,
Manaus, 18/05/2012). .................................................................................................................... 76
Figura 16: Fonte no Palcio do Centro Cultural do Rio Negro (Maged El Gebaly, Manaus.
18/05/2012). ................................................................................................................................... 77
Figura 17: Mapa do deslocamento no Relato de um certo oriente (DE ANDRADE, 2007). ....... 78
Figura 18: Representaes de identidades diferentes na literaria brasileira (Maged El Gebaly,
2012) .............................................................................................................................................. 83
Figura 19: Estrutura completa dos captulos do Relato (REZENDE, 2010, p.73) ........................ 89
Figura 20: Pintura do teto no Salo Nobre do Teatro Amazonas (Maged El Gebaly, Manaus,
16/05/2012). ................................................................................................................................... 91
Figura 21: Do "no lugar" ao "entrelugar" (Maged El Gebaly, 2012). ......................................... 95
Figura 22: Evoluo dos estudos da traduo: dos estudos formais da traduo at os estudos
discursivos da atividade do tradutor (Bastin,1998) ..................................................................... 105
Figura 23: Trs momentos do processo da traduo (Maged El Gebaly, 2011). ........................ 108
Figura 24: Movimento hermenutico da traduo de George Steiner (1975), grfico por Maged El
Gebaly (2011). ............................................................................................................................. 114
Figura 25: Identificao do movimento hermenutico do tradutor (Maged El Gebaly, 2011) ... 115
Figura 26: o entrelugar envolve modo dual na rememorao (Maged El Gebaly, 2012). .......... 130
Figura 27: A transmisso da memria coletiva (ASSMANN, 2011). ......................................... 131
Figura 28: Os entrelugares como lcus de libertao do inconsciente simblico (Maged El
Gebaly, 2012) .............................................................................................................................. 135
12
Dedicatria
Ao Egito e seu povo.
Colnia rabe no Brasil.
A Manaus e seu povo.
s professoras e aos professores que contribuem na construo de um mundo melhor.
s amigas e aos amigos que aguardaram a concluso desta tese.
A todos aqueles descendentes de imigrantes.
A minha famlia e amigos no Egito que acompanharam essa luta pela concluso deste
doutoramento em Lngua Portuguesa e suas letras.
Colmbia que me apoiou no estudo da lngua portuguesa.
13
Agradecimentos
Aos meus professores no Egito por tudo que me ensinaram.
Ao Milton Hatoum, pelas variadas entrevistas e conselhos, e pelo mundo que me abriu.
Ao Prof. Dr. Benjamin Abdala Jnior, pelo apoio e orientao, que por muitos anos de
convivncia, muito me ensinou, contribuindo para meu crescimento pessoal e intelectual.
Ao Prof. Dr. Allison Leo, pela amizade e pela visita a Manaus.
Ao Prof.Khalid Tailche, pela reviso da padronizao do texto.
Ao Ministrio de Relaes Exteriores do Brasil e a CAPES (Programa PEC- PG), pela bolsa
concedida.
Samira Ahmad Orra, pelas leituras e ricas discusses sobre os descendentes de libaneses no
Brasil.
A Paola Giraldo Herrera e a Andr Oda, pelas valiosas discusses.
Ao Prof. Dr. Mamede Mustafa Jarouche e Prof Dr. Safa Jubran pelas observaes.
Ao Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa da FFLCH da USP.
A todos os funcionrios amigos na FFLCH que me apoiaram muito.
14
Resumo
Esta tese tem como objetivo discutir as variadas manifestaes de mobilidades culturais e suas
consequentes relaes de alteridades no romance Relato de um certo oriente de Milton Hatoum,
partindo do suposto de que a alteridade parte constituinte da subjetividade e da relao humana
de diferena e identidade com o Outro; e, ao mesmo tempo, analisar o processo intercultural da
pr-traduo para a lngua rabe de quatro captulos do Relato de um certo oriente. Nesse sentido,
este trabalho est focado em dois lcus das mobilidades culturais das alteridades: a narrativa de
memria da imigrao, e a traduo literria.
Palavras chaves: mobilidades, alteridades, narrativa, memria, traduo.
15
Abstract
This thesis aims to discuss the various manifestations of cultural mobilities and its consequent
relations of alterities in the novel Tale of Certain Orient of Milton Hatoum, assuming that
otherness is a constituent part of human subjectivity and its relationship of difference and identity
with the Other; and at the same time we intend also to analyze the processo of intercultural pre-
translation into Arabic of four chapters of the novel. In this sense, this work is focused on two
locals of cultural mobilities of alterities: the narrative memory of immigration and literary
translation.
Keywords: mobilities, alterities, narrative, memory, translation.
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29
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SOROKIN, Pitirim. Social and cultural mobility. London: Collier-Macmilliam
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31
Introduo Comeamos esta pesquisa buscando uma integrao cultural entre rabes e brasileiros por
meio do estudo das narrativas literrias da imigrao, seus mitos e sua traduo cultural.
Seguindo a Souza Santos, entendemos a traduo como um trabalho argumentativo de
imaginao epistemolgica e de imaginao democrtica presente nas reflexes e preocupaes
de todas aquelas perspectivas, movimentos e prticas que prope o objetivo de construir novas e
plurais formas de emancipao social (SANTOS 2005: 168). Movido por esse interesse
acadmico pelos temas da construo das relaes humanas de diferena e de identidade na obra
de Milton Hatoum, fomos lendo as suas obras, o que nos levou, depois, a conhecer desde uma
tica cultural afetiva, sua terra Manaus.
Assim como Jacques Le Goff, podemos abordar nesta tese duas vozes margem da
histria tradicional (da imigrao e da traduo), como duas formas de mobilidade cultural que
caracterizam nossa era. Seguindo Sorokin (1964) entendemos mobilidade cultural como o
deslocamento de significados, normas, valores e vnculos. Bernd (2010:17-23) detecta cinco tipos
de mobilidades culturais: as desviantes como a liquidez, as espaciais do imaginrio das
metrpoles como as circulaes urbanas, as memoriais ou intersubjetivas como a autofico e a
memria, as migratrias transculturais como a migrao e o deslocamento, e as transnacionais
como a traduo e a mobilidade lingustica.
As realidades da imigrao e sua descendncia podem ser traduzidas internamente por
meio da imaginao. Mas tambm, esse discurso da fico que emana da imaginao consegue
atravessar as fronteiras lingusticas nacionais para entrar em outras culturas por meio da traduo
externa. No processo das mobilidades culturais dialogam alteridades internas e externas entre si,
como parte constituinte da subjetividade e da relao humana de diferena e identidade com o
Outro (LEVINAS, 1988).
Uma das questes levantadas pelos crticos brasileiros a representao das realidades
culturais no Relato de um certo oriente, que tem uma heterogeneidade de dois mundos
superpostos (de Manaus e do Lbano). Na narrativa, Hatoum procurou criar um discurso liberto
do olhar extico sobre o Amazonas e sobre os rabes. Contra esse olhar, ele lana relatos
polifnicos de um certo oriente, com diversidade de vozes narrativas e pontos de vista. O
32
progresso na cidade de Manaus significou, em alguma medida, a fragmentao do sujeito.
Hatoum cria uma Manaus como espao literrio de alteridades exprimidas em cenas
fragmentadas de narrativas heterogneas e fantasmas das memrias vivenciadas pelo escritor e
representadas pelas vozes dos seus narradores (BACHELARD, 2008).
Ao longo de diversas passagens histricas do Brasil (Colnia, Imprio e Repblica),
foram discutidas as conceituaes e as ideias de entrelugares, como zona intermediria entre dois
espaos em contato, imagens de espaos vivenciados em misturas culturais, de hibridismos, de
mestiagens, de sincretismos religiosos e da miscigenao tnica. Nessa literatura, o Brasil
considerado um pas que atraa os imigrantes rabes para se livrarem de sofrimento de ordem
econmica, social e poltica e para compartilharem com outros imigrantes a construo de novas
identidades. A presena rabe claramente visvel nas vrias esferas da vida, nas provncias e nas
cidades grandes, onde os imigrantes rabes e seus descendentes fazem parte do tecido cultural,
social e poltico do Brasil.
Milton Hatoum, filho de imigrantes rabes, e de variadas vivencias urbanas em diferentes
cidades, terminou publicando em 1989 o Relato de um certo oriente, para narrar suas histrias
familiares a partir do Natal de 1954. Susana Moriera (2012) nos revela mais detalhes
interessantes sobre a publicao do Relato de Hatoum e sua relao com o escritor Raduan
Nassar:
Quando terminou de escrever (o Relato), no pensou logo em publicar. Foram precisos dois anos e a insistncia de amigos crticos literrios e escritores - entre eles Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica, um dos mais marcantes romances brasileiros, tambm sobre uma famlia libanesa.
Foi Maria Emlia Bender que editou o Relato e apresentou a obra para Luis Schwarcz,
dono da Companhia das Letras. Hatoum ganhou a bolsa da VITAE para se dedicar ao seu
segundo romance Dois irmos. Assim que, o escritor foi consolidando sua posio no campo
literrio como vemos na tabela abaixo:
33
Tabela 1: Produes de Milton Hatoum e consolidao da sua posio, adaptado de AVELINO, 2010.
Tipo de produo Lugar de
realizao
Data Edio/Publicao Apreciao
Redao escolar Manaus 1967 Jornal estudantil
Elemento 106
Amigos/Familiares
Poesia So Paulo 1979 Ed. Diadorim Crtica
Literria/Intelectuais/pblico
restrito.
Relato de um certo
oriente
So Paulo 1989 Ed. Cia das Letras Crtica
literria/escritores/editores/
pblico difuso. Prmio Jabuti
(1990)
Dois irmos So Paulo 2000 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2001)
Cinzas do Norte So Paulo 2005 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2006)
rfos do Eldorado
So Paulo 2008 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2009)
A cidade ilhada So Paulo 2009 Ed. Cia das Letras Prmio Jabuti (2010)
Para ns, o Relato de um certo oriente um exemplo de uma tendncia contempornea
produo de uma narrativa memorialstica ntima, chamada autofico, termo cunhado em 1977
por Serge Doubrovsky para referir-se a uma forma de insero da histria entre autobiografias de
fatos reais tratados de modo ficcional imaginrio, onde o eu se divide em vrios personagens
fictcios. O escritor prepara um terreno de ambiguidade em que o eu ao mesmo tempo sujeito e
objeto da narrao (OUELLETTE- MICHALSKA, 2007). Como nos contou Hatoum: O Relato de um certo oriente como os franceses chamam um relato de memria, de tom evocativo. H uma
34
frase de um personagem no Relato que diz a vida comea verdadeiramente com a memria (HATOUM,
2010).
Essa narrativa literria forjada a partir de memrias involuntrias, toma forma de rebeldia
historiografia serial tradicional, que reduzia a relao do ser humano com o passado a um
processo linear e exato. O isolamento cultural imposto pelos sistemas positivistas fechados,
apoiados por foras conservadoras, produz frustrao no projeto da modernidade1. Talvez, como
resposta a essa crise, a literatura contempornea se construa, em muitas de suas realizaes, como
um espao de resistncia enrazda e mediao desenrazada, colocando em evidncia a
reinveno das identidades quebradas e a sua negociao. Trata-se de negociao da desigualdade
pela sobrevivncia num interatividade diferenciada (FANTINI, 2004). Nessas crises, alguns
traumas so tolerveis se ns o narramos como histria. Os vestgios e os fantasmas da memria
coletiva so resgatveis (RICOEUR, 2007).
1 Entendemos por modernidade aquela viso de mundo relacionada ao projeto empreendido a partir da transio terica operada por Descartes, com a ruptura com a tradio herdada - o pensamento medieval dominado pela Escolstica - e o estabelecimento da autonomia da razo. O projeto moderno consolida-se com a Revoluo Industrial. O termo est ligado tambm a uma srie de transformaes que ocorreram no decorrer do sculo XX em especial na segunda metade do sculo e provocaram alteraes em vrios nveis da vida humana (GIDDENS, 1990 apud FIGUEIREDO, 2010).
35
Figura 1: Entrelugar do imigrante e do tradutor versus o positivismo do colonialismo (Maged El Gebaly,
2012)
Os estudos transculturais comparados e suas tradues so campos de pesquisa
multidisciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares. Esses estudos pesquisam os processos
de desculturao, reculturao, neoculturao, que geram diferenciao de identidades. Vo alm
do paradigma das diversidades culturais do multiculturalismo. Reconhecem no outro suas
diferenas como sua humanidade, no sentido de um processo intersubjetivo, aberto, reflexivo,
tico, dialgico, valorativo, criativo, ousado e complexo. Seremos tanto mais transculturais,
quanto mais nos colocarmos dos pontos de vista das outras culturas. Dos objetos de pesquisa dos
estudos transculturais existem: a memria cultural, o imaginrio, as fronteiras, as identidades, as
diferenas e as alteridades. Este estudo tece o discurso da literatura e outros saberes como a
histria, a antropologia, a psicanlise e outras linguagens como a fotografia para visualizar nossas
ideias (FERNANDO ORTIZ apud RAMA, 1982).
36
Nesses dilogos de saberes, O Relato exerce seu dilogo com o leitor dentro de um dos
lcus da diferena que a narrativa de memria, de uma famlia libanesa e manauara ao mesmo
tempo. O processo de traduo rabe do Relato implica outro lcus da diferena, na medida em
que um deslocamento e uma atualizao da narrativa em outro contexto literrio diferente: o
egpcio. A traduo rabe completa de Em busca do tempo perdido de Marcel Proust s se traduz
por Gamal Shahid e se publica no Cairo em 2005. Esse tipo de narrativa no campo cultural
egpcio vem desenvolvendo-se de duas fontes principais: as narrativas autobiogrficas clssicas
da era de independncia em relao Gran Bretanha e as narrativas mais recentes dos estudiosos
rabes que tiveram contato com a literatura francesa e conseguiram ter acesso direto tradio
literria de Marcel Proust (SHAHID, 2011). Mas seguindo a crtica Vera Mquea (2007), h
diferena entre a construo da memria em Proust e a mesma em Milton Hatoum: Em quanto
Proust queria voltar a sentir o gosto das coisas vividas por meio da procura do tempo perdido...
em Hatoum uma memria pronunciada do devir, o seja, visitar o passado com mesmo
estranhamento com que se visita o futuro p.252. Perante essas diferenas culturais nas
construes memorialsticas, o objetivo geral da nossa tese consiste em:
Discutir as variadas manifestaes de mobilidades culturais e suas consequentes relaes
de alteridades no Relato de um certo oriente de Milton Hatoum2, partindo do suposto de
que a alteridade parte constituinte da subjetividade e da relao humana de diferena e
identidade com o Outro; e, ao mesmo tempo, analisar o processo intercultural da pr-
traduo rabe de quatro captulos do Relato de um certo oriente, como uma primeira fase
da cadeia comunicativa da traduo ( autor-obra-editora-tradutor-pblico) (HURTADO
ALBIR, 2001). Nesse sentido, nossa pesqusia est focada em dois lcus das mobilidades
culturais das alteridades: a narrativa de memria da imigrao, e a traduo literria.
Uma vez definido objetivo geral da tese, passamos no prximo captulo a apresentar o contexto
histrico da imigrao rabe no Brasil, pano de fundo do Relato de um certo oriente.
2 Os trabalhos de Milton Hatoum encontram-se no seu site pessoal www.miltonhatoum.com.br, lanado no ms de setembro de 2010.
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no Brasil rabeimigrao daContexto geral : ICaptulo
O Mundo rabe se parece com o Brasil... Talvez a gente deva isso
a um passado muito distante, ibrico (Milton Hatoum, 2010).
A integrao do elemento rabe no Brasil processou-se de maneiras diferentes nas
diversas regies do pas. Isto se deu em funo do meio social, das ocupaes dos imigrantes e de
seu nmero. A origem do imigrante rabe no Brasil varia em funo da poca e da sua
localizao geogrfica. A fixao em diferentes regies compreende fatores locais e externos,
psicolgicos e prticos. Tambm a realidade da dispora rabe no Brasil varia conforme a origem
dos imigrantes, religio e etnia, os motivos da migrao, classe social e conscincia poltica, etc.
A primeira gerao de imigrantes rabes sobreviveu com atividades econmicas populares como
o comrcio e restaurantes, enquanto a segunda e terceira geraes comearam a fazer parte da
classe mdia profissional constituda por professores, mdicos, advogados, engenheiros...etc.
1.1. Primeiros contatos no perodo colonial
H indcios no nordeste brasileiro, como as fisionomias, a gastronomia, a arquitetura
urbana e os costumes, que fazem referncia cultura moura que viveu na Andaluzia por mais de
800 anos. Benjamin Abdala Junior (2012) observou:
Os primeiros colonizadores da Amrica Latina vieram da regio que os rabes chamaram de Al-ndalus. Algarve provm de Al-Gharb al- ndalus (Andaluzia Ocidental), que abrangia o atual Algarve e o baixo Alentejo. A maior parte da populao popular de Lisboa, na poca dos Descobrimentos, some-se a essas constataes, era de origem moura. Eram regies culturalmente hbridas, para onde confluram muitas culturas da bacia cultural mediterrnea.
Com relao origem rabe dos nomes das primeiras cidades do nordeste brasileiro, o
fillogo Assad Zaidan (2010) assinala que Recife veio do rabe "" , que significa cais do
porto e agrega:
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Segundo os historiadores Jamil e Jorge Safady (1950), h um manuscrito na Biblioteca Pblica da capital russa Moscu que consta que o marinheiro rabe, Ibn Majed que tripulou em 1500 a esquadra de Pedro lvares Cabral, ao avisar o literal baiano gritou Bahia, "" , [o que quer dizer em rabe bonita] e o que deu nome regio.
1.1.1. Mito do mascate
Como explicamos encima que a primeira gerao de imigrantes rabes sobreviveu por
meio de atividades econmicas populares como o comrcio. Esses primeiros imigrantes fizeram
os percursos da mascateao, ou seja, ser masqate. O mascate, personagem citada ligeiramente
em diversas censas do Relato, vem exprimindo fenmeno herdado das tradies mediterrneas.
Esta mascateao que d o sentido da integrao cultural por via fluvial. O Rio Nilo une o Egito
e os rios do Brasil com seus mascates unem suas extensas terras com narrativas dessas
mobilidades que permitem conhecimentos mtuos entre um brasileiro e outro. Khatlab (2002)
afirma que essa palavra mascate de origem rabe. Explica que de 1507 a 1658, os
portugueses conquistaram a cidade de Mascate no Golfo rabe (atual capital de Om). Como a
cidade era um ponto comercial de venda, compra e troca de toda espcie de mercadoria, os
comerciantes portugueses que regressavam a Portugal de l, trazendo seus produtos, eram
chamados de mascates, um apodo ao comrcio oriental (KHATLAB, 2002). No Brasil, essa
atividade de mascate foi seguida por muitos grupos de imigrantes como meio ocupacional. Os
primeiros mascates dos tempos coloniais at quase o fim do sc. XIX foram os portugueses, mais
tarde substitudos pelos italianos, originrios em sua maioria da Calbria, que mascateavam
produtos de armarinhos e roupas feitas (KNOWLTON, 1955). O mascate bandeirante da
modernidade brasileira, personagem descendente das tradies mediterrneas, viaja pelos rios e
mares trocando artigos, produtos, mercadorias e tambm saberes e conhecimentos. A
mascateao deu sentido de integrao cultural tambm entre os centros urbanos e as reas
interioranas e rurais. A mesma palavra manifesta mobilidade cultural entre as duas lnguas: foi
derivada do rabe () e voltou ao rabe, mas aportuguesada ) ( .
As ondas da imigrao libanesa para o Brasil que se iniciaram oficialmente aps a visita
de D. Pedro II ao Lbano, so organizadas por Gattaz (2005) nas seguintes periodos histricos:
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1.2. Perodos da imigrao libanesa para o Brasil3
1.2.1. Perodo do domnio otomano (1850-1920)
Sobre os primeiros rabes desse perodo no Brasil, Roberto Khatlab4 (2010) conta:
Pelas necessidades econmicas durante o Imprio Turco-Otomano (1516-1918),
chegaram ao Brasil famlias rurais do Lbano, Sria e de todo o mundo rabe
com o propsito de estabelecer-se definitivamente...O gramtico Manuel Said
Ali, nascido em Petrpolis, no Rio de janeiro em 1861, era filho de Said Ali,
rabe que faleceu dois anos depois do nascimento desse filho. Uma prova
contundente de que j habitava o Brasil antes de 1861. Recentemente foi
publicada a traduo do livro 'Deleite do estrangeiro em tudo o que espantoso
e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdali', escrito pelo im
Abdurrahmn Al-Baghddi, rabe nascido em Bagd, que viveu no Brasil de
1865 a 1868.
Sobre esse perodo, consultamos o arquivo virtual da Famlia Doualib onde encontramos
que:
As primeiras datas da vinda dos libaneses podem ser fixadas antes de 1885. O perodo imigratrio rabe no Brasil at fins de 1900 considerado a primeira fase. o perodo de aventuras onde a Amrica era tema lendrio para os povos rabes, sem autonomia prpria, e dependentes do Imprio Otomano. Os imigrantes adotavam novos nomes em funo de sua atividade no Brasil. Isto est relacionado com a dificuldade de pronncia de letras rabes guturais e aspiradas. H nomes adotados por analogia ou por traduo que eles mesmos criaram.
Pelas necessidades econmicas durante o Imprio Trco- Otomano (1516-1918),
chegaram ao Brasil famlias rurais do Lbano, Sria e todo o mundo rabe. A maior parte dos
3 GATTAZ, Andr. Do Lbano ao Brasil: histria oral dos imigrantes. So Paulo: Gandalf, 2005. 4 Khatlab, Roberto. Quando os rabes chegaram ao Brasil, So Paulo: crnica publicada 08/04/2010. Disponvel em:< http://www.icarabe.org/artigos/quando-os-arabes-chegaram-ao-brasil>. Acesso: 23/07/2012.
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primeiros imigrantes vem de sociedades rurais, de aldeias, provncias ou cidades pequenas para
metrpoles industrializadas no Brasil (GATTAZ, 2005).
1.2.1.1. Dom Pedro no mundo rabe
Respeito visita de D.Pedro II nesse periodo, Khatlab (2000) conta:
O Imperador do Brasil na poca, D. Pedro II (1825-1891), visitou o Egito em 1871, e em 1876 visitou o Lbano, a Sria e a Palestina (...). Em sua estada no Lbano, de 11 a 15 de novembro de 1876, o Imperador escreveu ao seu amigo, o diplomata francs Joseph Gobineau, que ficara em Atenas, Grcia: Tudo vai bem... A partir de hoje comea um mundo novo. O Lbano ergue-se diante de mim com seus cimos nevados, seu aspecto severo, como convm a essa sentinela da Terra Santa... (Arquivo Histrico de Estrasburgo Frana).
Vamos apresentar na seguinte parte como o imigrante rabe foi chamado turco nesse perodo otomo, uma das referncias culturais no Relato.
1.2.1.2. Mito do turco
Jorge Amado narra na Descoberta da Amrica pelos turcos: Os primeiros a chegar do
Oriente Mdio traziam papis do Imprio Otomano, motivo porque at os dias atuais so
rotulados de turcos. O mito fundador do mascate tem muita importncia e grande valor para as
comunidades rabes espalhadas por todo Brasil. Os primeiros imigrantes rabes exerciam
atividades comerciais e grande parte iniciou seus negcios trabalhando como vendedores
ambulantes ou mascates. Nesse contexto surge a figura do turco, porque a imigrao rabe
naquele momento chegava ao Brasil com passaportes turcos do Imprio Otomano, atual Turquia
(PETERS, 2006).
A representao da imigrao rabe do sculo XIX foi estigmatizada com a da imagem
folclrica do turco como figura mesquinha, dono de comrcio qualquer na esquina. Essa situao
muda na literatura brasileira contempornea com a participao ativa de escritores rabes,
descendentes e amigos da sua cultura. Carreira (2008) assinala:
As ondas migratrias no Brasil foram seguidas da construo de esteretipos, verificveis, por exemplo, em obras da literatura naturalista brasileira. Os rtulos que acompanharam os imigrantes de diversas nacionalidades, como turco, no caso dos imigrantes de origem rabe, funcionavam sob a tica da excluso. A
41
literatura brasileira contempornea, no entanto, lana um olhar diferenciado sobre a imigrao, possibilitando uma releitura do processo de insero do imigrante na sociedade. Obras de autores como Milton Hatoum e Raduan Nassar, entre outros, permitem uma reflexo sobre os conflitos da condio de estrangeiro, imigrante, e descendente por uma via que tanto escapa viso estereotipada do imigrante quanto foge mera tematizao dessa condio.
1.2.2. Perodo de entre-guerras (1920-1940)
Pela falta de perspectivas nos setores urbanos no Lbano colonizado e
pelas necessidades econmicas da populao rural, houve outra onda de
emigraes libanesas ambiciosas e opostas ao mandato francs na regio,
de 1920 a 1940. Nesses 20 anos, a poltica do Lbano foi reestruturada,
favorecendo o surgimento de uma elite francfila. Os franceses tentaram
europeizar ao mximo a populao atravs de um projeto educacional aos
seus moldes e da instaurao do francs como lngua oficial.
Sobre esse perodo, no arquivo virtual da Famlia Doualib5, conta-se:
Finda a primeira guerra mundial, inicia-se a terceira onda de imigrao de rabes para o Brasil. Em 1914 j era considervel o nmero de fbricas pilotadas por srios e libaneses. (...) A crise de 1929 e o contnuo progresso da indstria nacional levam os libaneses e srios criao de novas indstrias e abertura de novos estabelecimentos comerciais.
1.2.3. Lbano independente (1943-1975) 6
O terceiro perodo termina com a segunda guerra mundial. Depois de
1945, os rabes brasileiros consolidam sua posio de comerciantes e
industriais. Pela depresso econmica e conflitos polticos posteriores
Segunda Guerra Mundial e pelas faltas de oportunidades profissionais,
houve uma terceira onda emigraes urbanas do Lbano para o Brasil.
5 Arquivo virtual da Famlia Doualib. Disponvel em:. Acesso: 08/09/2012. 6 Ibid.
42
1.2.4. Guerra no Lbano (1975-2000)
Pelo conflito e seu decorrente desemprego, houve uma quarta leva de
emigrao de civis, que saram do seu lugar de origem, buscando a
nacionalidade brasileira.
Nesse contexto imigratrio, Hatoum escreve o Relato de um certo oriente, onde narrar
mobilidades e deslocamentos e suas consequentes relaes complexas de alteridades.
1.3. Diferenas e tenses
O Relato trilha relaes interculturais de alteridades. Consoante a Ward e Rana-Deuba
(1999), as vivncias das diferenas passam por uma curva de etapas heterogneas na interao
entre a cultura natal e a cultura de acolhimento: euforia, estranhamento, choque cultural, rejeio,
conflito, negociao, adaptao, aceitao, aculturao (reajustamento) /transculturao e
integrao. Nesse processo, a aculturao constitui-se um processo de sujeio social. Observam-
se quatro estratgias de aculturao: assimilao, que ocorre quando os indivduos rejeitam sua
cultura minoritria e adotam as normas da cultura dominante ou de acolhimento; separao, que
ocorre quando os indivduos rejeitam a cultura dominante ou de acolhimento em favor da
preservao de sua cultura de origem, a separao facilitada pela imigrao para enclaves tnicos;
integrao, que ocorre quando os indivduos so capazes de adotar as normas da cultura
dominante ou de acolhimento, mantendo a sua cultura de origem e marginalizao, que ocorre
quando os indivduos rejeitam tanto a sua cultura de origem e a cultura de acolhimento
dominante. Fernanda Massebeuf (2006) notou os seguintes processos de aculturao francesa no
Relato:
1) A influncia francesa na cultura libanesa (o espelho adquirido juntamente com outros objetos de decorao de estilo francs). Ela reflexo dos tempos em que o Lbano foi colnia francesa. Desde ento, no Lbano, h quem fale francs, quem aprecie a culinria francesa, quem tenha adquirido o gosto por objetos de decorao pertencentes a movimentos provenientes da Frana. 2) A adaptao ou no do imigrante terra onde vai viver. 3) A excluso do imigrante que se recusa adaptao aos padres de comportamento vigentes pela cultura da terra que o acolhe.
43
4) A aculturao, que mostra o quanto todos ns somos suscetveis hibridao. Aculturao, nesse sentido, um processo voluntrio ou imposto pelos autctones aos imigrantes, fragilizados, numa situao entre dominantes e dominados.
Nessa mobilidade migratria encontra-se, por um lado, o migrante construindo a partir das
suas memrias seu imaginrio nostlgico, suas narrativas sobre o Lbano, e estabelece uma
vinculao afetiva com as imagens construdas sobre aquela vida provincial de origem. Por outro
lado, o descendente mantm o Brasil como sua sociedade de destino.
Dentro da famlia hbrida lbano-brasileira se observa a relao inter-religiosa entre Emilie
(catlica) e o seu marido (muulmano): Emilie e o marido praticavam a religio com fervor.
Antes do casamento haviam feito um pacto para respeitar a religio do outro, cabendo aos filhos
optarem por uma das duas ou por nenhuma. p.69. Porm, trata-se de diferenas religiosas que
no deixam de ser segregacionista porque o Eu est num lado e o Outro est no outro. um Eu
que no aprende sobre a cultura religiosa do Outro. Ento, acarreta uma convivncia com
preconceitos negativos de uns contra outros. Percebem-se controvrsias no tocante religio
entre Emilie e seu marido, o que facilita ou no a sua adaptao a Manaus. Alguns rabes judeus
e muulmanos, como a famlia Benamou e o pai de Hakim no Relato mantiveram seus costumes.
Em contrapartida, Emilie seguia o catolicismo e era adepta da culinria do Amazonas. Constata-
se que rabes cristos como Emilie no tiveram problemas para se adaptar. Ficou a saudade de
sua terra, misturada nova rotina e nova lngua, mas assimilaram rapidamente os valores da
modernidade latina, misturada ecleticamente com os valores do cristianismo e, gradualmente,
formaram um grande segmento de uma classe social privilegiada. Essa modernidade consolida-se
com a industrializao e o desenvolvimento do capitalismo nas cidades (KARAM, 2007). J que
analisamos brevemente o contexto libans do Relato de um certo oriente, passamos no prximo
captulo a apresentar o contexto manauara da narrativa de Hatoum.
44
Figura 2: Mapa do Lbano7
7 Mapa do Lbano. Dsponvel em . Acesso:23/07/2012.
45
Captulo II: Manaus: Encontro das guas
A beira de um rio ou orla martima os aproximam, e em qualquer lugar do
mundo as guas que eles veem ou pisam so tambm as guas do mediterrneo
(Relato de um certo oriente, Milton Hatoum, p.76).
A cidade de Manaus originou-se da colnia criada em torno do Forte So Jos do Rio
Negro, fundado em 1669, sendo renomeada em 1832 com o nome de Manaus, termo que na
lngua indgena da tribo dos Manas, antigos habitantes do lugar, significa me dos deuses
(BOLLE, 2010). Sobre a presena rabe na regio de Amazonas, khatlab (2000) relata:
O historiador brasileiro Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (1858 1931), nascido em Manaus-AM, em seu trabalho Inscries e Tradies da Amrica Pr-Histrica, especialmente do Brasil (RJ 1930), cita muitas palavras indgenas de origem fencia, pois alguns dos tripulantes de embarcaes fencias que chegaram ao litoral permaneciam nessas regies e constituam cls depois da conquista da Fencia por Alexandre, o Grande, e depois as dominaes grega e romana. Vocbulos aramaicos e mesmo rabes antigos so encontrados nos idiomas Quchuas, Chibika, Aimar, Guarani, Tupi, sendo o Quchua e o Tupi os mais prximos do aramaico e do rabe. Na Ilha de Maraj, foram encontradas pedras trabalhadas com inscries aramaicas, cuja existncia datada de antes da Era Crist. Estas se encontram no Museu Nacional do Rio de Janeiro.
De acordo com o arquivo virtual da famlia Doualib: No incio do sculo XX foi a regio
do Amazonas um dos pontos mais importantes de atrao de grandes migraes. Os imigrantes
que iam para o norte aportavam em So Lus e em Belm e destes dois portos dispersavam-se
pela Amaznia. Verificava-se tambm um movimento de migrao do sul para o norte do Brasil
em funo das condies econmicas advindas do Ciclo da Borracha.. Segundo Knowlton
(1955), em 1920 o nmero de srios e libaneses nesse estado era de 811 pessoas, sendo que mais
da metade morava em Manaus. Essa regio era especialmente atraente porque o desenvolvimento
atravs do surto econmico do Ciclo da Borracha e do caf na Amaznia incentivou os srios e os
libaneses a acompanhar esse crescimento com a venda de mercadorias aos seringueiros.
No Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, Manaus vira o espao privilegiado, a
cidade ilhada pelo rio e pela floresta que, desde o fim da belle poque cabocla da borracha,
adaptou-se, no possvel, a cada nova circunstncia dada pelo desenvolvimento. Nesse sentido,
pode ser compreendida como uma alegoria da histria do pas, uma parte, num pequeno mundo, a
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ele circunscrita, a gerar valores humanos especficos, fazendo, dessa forma, a passagem do local
para o universal. Um espao scio-cultural e histrico, formado por estratos humanos que se
cruzam e se misturam, quase desaparecendo: o estrato indgena, o do imigrante estrangeiro, o do
migrante de outras regies do pas.
Em Manaus chegaram imigrantes rabes que buscavam sobreviver. Instinto de querer
viver, ou melhor, escapar da pobreza, da doena, da misria, do desemprego e da falta de
oportunidades de trabalho e estudo. Chegaram cansados ao Porto de Manaus e a outros portos de
Brasil. Logo, vemos ncleos familiares rabes incorporados ao sistema social e poltico no Brasil.
Seus descendentes tero que recriar sua identidade entre prazeres e traumas. Hatoum, Hakim, no
Relato, veio de uma famlia misturada de um muulmano, inominvel no Relato, e a protagonista
catlica Emilie. O Relato no s representa misturas de lugares e espaos, mas tambm o fim do
Ciclo da Borracha que vamos detalhar na seguinte parte.
Figura 3: Loja de temperos no centro de Manaus (Maged El Gebaly, Manaus, 16/05/2012). Esses temperos
assinalados variadas vezes no Relato, uma smbolo de mistura cultural gastronmica entre rabes e
indgenas em Manaus, j que as duas culturas valorizam as propriedades dos temperos e das ervas.
2.1. Fim do Ciclo da Borracha
Aps o Ciclo da Borracha, a ditadura militar (1964-1985) faz emergir um tipo de
modernizao conservadora regio amaznica. Em 1967, foi criada a Zona Franca de
Manaus. A partir de segunda metade da dcada de 1970, estruturou-se em 1972 o Polo Industrial
de Manaus (PIM), em que predominava o setor eletroeletrnico. Como bem explica Noemi de
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Perdigo (2011): De 250 mil habitantes em 1967, Manaus passou a 2 milhes de habitantes
segundo o ltimo censo do IBGE (2010), com todos os problemas sociais e ambientais que um
crescimento urbano nesta proporo implica. Em relao ao retorno de Hatoum Manaus da
Zona Franca, Bruno Leal (2010) conta:
Depois de dezesseis anos longe do Amazonas e de Manaus, Milton Hatoum teve um impacto negativo quando chegou cidade de sua infncia e adolescncia; muita coisa havia mudado. Uma cidade corroda pela falta de polticas pblicas, o patrimnio arquitetnico da cidade totalmente abandonado, milhares de indigentes vindos de todo o pas em busca de emprego na Zona Franca de Manaus. (...) Portanto, o que restou para o artista amazonense? A sada para o Sul do pas ou para o exterior e, por ltimo, a degradao fsica e intelectual para os que tentaram resistir contra uma poltica aniquiladora e mesquinha por parte do governo militar nos idos da Zona Franca de Manaus.
A cidade passou de Paris nos trpicos para uma Cidade Flutuante, um verdadeiro
bazar oriental, com pessoas de vrias partes do mundo.
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2.2. Alm do regionalismo, incerto oriente
Figura 4: Mapa do Brasil (Fonte: IBGE, 1999).
Norberto Bobbio (2000) (apud FIGUEIREDO, 2010) concebe o regionalismo como tendncia
poltica dos que so favorveis s autonomias regionais.. Jos Maurcio Gomes de Almeida
define o regionalismo como aquela arte que buscaria enfatizar os elementos diferenciais que
caracterizam uma regio em oposio s demais ou totalidade nacional (ALMEIDA, 1981:
p.47). Norbert Elias (2000) (apud FIGUEIREDO, 2010) considera regionalismo como uma forma
de afixar o rtulo de valor humano inferior a outro grupo e o considera uma das armas usadas
pelos grupos superiores nas disputas de poder como meio de manter a superioridade social. Nessa
49
situao, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma
penetrar na autoimagem deste ltimo e, com isso, enfraquec-lo e desarm-lo.
No entanto, Maria Luiza Germano de Souza (2010) apela definio de Antonio Candido (1985)
do regionalismo no Brasil:
Chama de terceira fase do regionalismo para a Amrica Latina e Brasil: o super-regionalismo, no que se tem uma conscincia dilacerada do subdesenvolvimento, algo que tornou possvel a universalizao da regio, em razo dos escritores terem ultrapassado o pitoresco e o documentrio. Isto , importa menos o retrato de uma dada regio e mais a forma escolhida para dar expresso e virtuosismo ao narrado. Candido identifica no regionalismo brasileiro, que oscila entre o fato de ser potencialmente instrumento de descoberta e autoconscincia do pas ou ideologia que mascara as condies de dominao do homem pobre no campo.
O escritor amazonense Mrcio Souza acredita que o regionalismo em contraponto ao
universal so categorias polticas inventadas pela indstria cultural eurocntrica imperialista para
hierarquizar certas regies supostamente mais prximas dos valores eurocntricos. No
Humanismo e crtica democrtica (2007), Said faz nfase na necessidade de desenvolver uma
crtica oposicional ao eurocentrismo presente na ordem e na genealogia do discurso
epistemolgico positivista do sculo XIX. Para o crtico palestino, o humanismo democrtico no
parte de uma verdade nica que elimina diferentes formas de pensar, mas da diversidade entre as
culturas, o que no cria conflitos entre as verdades essencializados, que tm suas razes na
colonizao, diante da crescente complexidade do mundo. Na viso do Said, as culturas podem
coexistir no com base numa essncia, mas na forma de um dialogo que procura entender a
diversidade humana. Nesse contexto, Ademar Leo (2005) ressalta a posio critica de Hatoum
perante o binarismo do olhar eurocntrico:
As narrativas que concorrem para a construo das matrizes identitrias do Ocidente apresentam um aspecto relevante em comum: o etnocentrismo que circunscreve a sua representao do Outro. Esta viso etnocntrica, que opera uma radical diviso do mundo entre civilizados e brbaros e que recusa a reconhecer o Outro em sua alteridade, corresponde a um expediente a partir do qual, negando ao Oriente uma possibilidade de representao, o Ocidente atribui-lhe uma identidade construda sua imagem e semelhana...Posicionando-se contrariamente postura restritiva do regionalismo literrio, cuja lgica sustenta-se na circunscrio da obra a uma
50
geografia e a um vocabulrio determinado, o texto de Hatoum pe em questionamento a inviabilidade, no mundo contemporneo, da manuteno de concepes identitrias aprisionadas em contornos unvocos, fixos, e reivindica, assim, um espao para a manifestao da diferena e da alteridade na literatura brasileira.
Para Coutinho (1969) (apud FIGUEIREDO, 2010): o regionalismo um conjunto de
retalhos que arma o todo nacional. Ele sustenta a existncia de regies de produes
literrias constitudas da seguinte forma: Ciclo nortista, Ciclo nordestino, Ciclo baiano, Ciclo
central, Ciclo paulistano e Ciclo gacho. A esses se juntaria uma espcie de subciclos
suburbanos. Hatoum perscruta o regional somente como localizao e/ou ambiente de suas
narrativas, porm o relevo dado pelas idiossincrasias humanas vividas pelas personagens. Estas
regies literrias dialogam com a tese da mestiagem tnica de Darcy Ribeiro (1999) de um
Brasil constitudo histricamente em seu interior por varios traos arquetpcos de Brasis
imaginados apartir dessa hibridao: O Brasil crioulo, o Brasil caboclo, o Brasil sertanejo, o
Brasil Caipira, o Brasis sulinos. Para Coutinho, o regional toma importncia no Brasil a partir do
romantismo que procura a exaltao do brasileiro em oposio ao europeu. Coutinho adverte a
diferena do regionalismo realista que desviou-se do saudosismo e escapismo do regionalismo
romntico.
Alfredo Bosi (1976) aponta um regionalismo pr-moderno8, que parte de um
nacionalismo declamatrio e um regionalismo srio, inspirado num nacionalismo crtico que
surge com o Primeiro Congresso Brasileiro de Regionalismo, uma agitao intelectual que
suscitou o aparecimento do romance nordestino de 30. De 1930 at a Segunda Guerra Mundial,
marca uma segunda fase do modernismo, que a da estabilizao das conquistas modernas.
Nesse perodo, encontramos autores como Jos Amrico de Almeida, Raquel de Queiroz, Jos
Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado. Terceira fase do modernismo surge uma
tendncia para o hermetismo e para o intelectualismo do final da segunda guerra mundial at
8 O modernismo como movimento contra os tabus, o academismo, o elitismo, a esttica que a Frana ditava, e a represso ideolgica dominante, emerge no Brasil com a Semana de Arte Moderna realizada em So Paulo em 1922, foi o ponto a partir do qual se desenvolveram grupos e autores ligados realidade cultural moderna. Dos autores modernistas da primeira fase Mrio de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira.
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nossos dias, Os principais autores desse perodo so Clarice Lispector, Joo Guimares Rosa,
Jos Candido de Carvalho e Pedro Nava (FIGUEIREDO, 2010).
O crtico uruguaio Hugo Achugar (1996) (apud FIGUEIREDO, 2010) reflete sobre a
relao entre o regionalismo e o coneito da narrativa heterognea de CORNEJO-POLAR, uma
narrativa caracterizada pela duplicidade ou pluralidade dos signos socioculturais do seu processo
produtivo, o que cria necessariamente uma zona de ambiguidade. Achuga discute o desafio da
integrao das experincias culturais heterogeneas nos panoramas da acelerada homogeneizao
da globalizao. Achugar apela ao cruzamento da tese das regies literrias com a proposta de
panoramas de Arjun Appadurai, para entender melhor as novas interpretaes perspectivadas
da realidade atual: a) etnopanorama, b) tecnopanorama, c) finanopanorama, d) midiapanorama e
e) ideopanorama. A etnopanorama compreende as pessoas em trnsito como os imigrantes, os
exilados.
Pellegrini (2007) (apud TNNUS, 2005) adverte que Hatoum foge do dramatismo com a
epstola. As obras de Hatoum no se centram na ao e usam o recurso da explorao do tempo
como cano sequestrada. Situao curiosa, pois uma das marcas da narrativa na modernidade
a fragmentao do tempo em prol da ao, algo explicado pelo apelo ao leitor moderno que no
tem mais tempo e vive apressado, em busca de resultados imediatos mesmo quando na leitura.
Milton Hatoum, em entrevista ao Jornal Folha de So Paulo, faz a seguinte afirmao em relao
ao regionalismo literrio:
A literatura regionalista esgotou-se h muito tempo. O regionalismo uma viso muito estreita da geografia, do lugar, da linguagem. uma camisa de fora que encerra valores locais. Minha ideia penetrar em questes locais, em dramas familiares, e dar um alcance universal para eles (2005, p. 12).
Hatoum era um bom leitor da obra do intelectual palestino Edward Said (1995), que dizia:
O Oriente no um fato inerte da natureza. No est meramente l, assim como o prprio Ocidente no est apenas l. [...] os lugares, regies e setores geogrficos tais como o Oriente e o Ocidente so feitos pelo homem.
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Ele traduziu as palestras de Said Representaes do intelectual (2005) para o portugus e
recomendou para a editora Companhia das Letras a traduo de Orientalismo (SAID, 2007). Com
respeito a isso, Milton Hatoum (2010) nos contou:
O Orientalismo, livro de Edward Said, foi uma das leituras mais importantes sobre a construo imaginria do discurso sobre o outro oriental, sobretudo sobre o mundo islmico. O Orientalismo um dos ensaios seminais sobre as relaes entre o Oriente e o Ocidente, sendo que o Oriente, como Said mostrou, uma construo, uma inveno do Ocidente. um tipo de representao que o discurso orientalista teceu ao longo da histria, sobretudo a partir do sculo XVIII.
Em Passagem para um certo Oriente, Hatoum (1993) escreve sobre a importncia que
teve para ele o contato com o Oriente borgiano. Mais do que isso: conta como se interessou por
autores orientalistas aps ter peregrinado pelos labirintos de Borges. E foi assim, com as
indicaes de leitura do escritor argentino, que ele se mudou para a Europa, onde conheceu
arabistas e tradues de obras rabes. Numa crnica titulada As Mil e uma noites: em busca de
um estilo, na primeira pgina da seo de Cultura do Estado de So Paulo, em Outubro 1991,
Hatoum disse:
Eu apreciava alguns escritores europeus que, sintonizados com o renascimento oriental, escreveram obras que valorizam a cultura excntrica, em oposio a uma cultura que se pretende mais complexa e artificial, produzida no centro, na Europa. Nossas peregrinaes ao Oriente procuravam s vezes uma outra ptria, ou um lugar ideal para o sonho e o devaneio, como algum que busca na paisagem estrangeira o avesso da casa em que habita. Para Gerard Nerval, o Egito um pas de mistrios e enigmas (...). Outras vezes esses escritores se armam de um projeto etnocntrico, em que a glria pessoal de uma descoberta geogrfica se mescla aos servios prestados ptria. O projeto literrio serve ao expansionismo colonial. (...) Diante de textos to dspares, fiz como um leitor que pratica um ritual de canibalismo literrio, assimila o que lhe d prazer. Com isso, quero dizer que a literatura rabe foi to importante quanto os textos orientalistas, e esse duplo interesse residia sobretudo no encanto da linguagem, como nos contos de As Mil e Uma Noites ou na Viagem ao Oriente, de Nerval.
A partir do trecho anteriro, acreditamos que alguns leitores ingnuos passaram a procurar
no Relato a imagem dos rabes sem se dar conta de que o mundo rabe abrange 23 pases, cada
pas contendo variedades ecolgicas e culturais prprias. Notamos que Halbwachs (1990), no
deixa de considerar que aquele que se lembra no o grupo, mas o indivduo, havendo diferenas
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entre os sujeitos nas formas de se remeter ao passado e rememorar. Contudo, a memria
individual poderia ser encarada, conforme seu entendimento, como um ponto de vista acerca da
memria coletiva.
No mais, se a memria coletiva tira sua fora e sua durao do fato de ter por suporte um conjunto de homens, no obstante eles so indivduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranas comuns, e que se apiam uma sobre a outra, no so as mesmas que aparecero com mais intensidade para cada um deles. Diramos voluntariamente que cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda conforme s relaes que mantenho com outros meios. No de admirar que, do instrumento comum, nem todos aproveitam do mesmo modo. Todavia, quando tentamos explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinao de influncias que so, todas, de natureza social (Halbwachs, 1990:51).
Desse entendimento, a cultura rabe representada no Relato pode ser considerada tambm
uma autofico construda a partir de uma experincia pessoal de descendente de imigrantes
libaneses na cidade de Manaus e certamente cruza com as culturas rabes em certos aspectos e se
distancia em muitos outros das realidades rabes atuais. Portanto, importante levar em conta
que o livro faz um recorte de um grupo pequeno e especfico da cultura rabe, e evitar uma leitura
estereotipada de generalizaes.
Destarte, o Relato de um certo oriente representa uma crtica implcita ao discurso
orientalista. O Brasil do Rio Amazonas retratado como um oriente hbrido, diferena das
imagens naturalistas inventadas e estereotipadas pela viso europeia sobre o Amazonas. Hatoum
consegue escapar da viso regionalista romntica que fazia nfase na floresta amaznica como
personagem em primeiro plano e recria um certo oriente a partir das misturas culturais, que
circulavam ao redor de um sobrado em Manaus e da loja Parisiense (FREITAS, 2001).
Por isso, Milton, leitor e tradutor de Edward Said, faz um paratexto, ou seja, uma
intertextualidade com o ttulo Orientalismo do crtico palestino e vai descartando no seu Relato
esta viso extica horizontal orientalista do romantismo e das descries naturalistas que
continuam vivas hoje nos discursos essencialistas que supem a existncia de um choque de
civilizaes que divide o mundo em blocos com fronteiras religiosas e raciais rgidas.
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Na sua obra Orientalismo, Said (1978, 2007) vai desconstruindo o discurso tecido pelos
orientalistas europeus e estadunidenses durante os sculos XVIII e XIX, do imaginrio deturpado
do outro no europeu. Said faz uma crtica contrapontual ao discurso acadmico colonial
eurocntrico, que generaliza e estereotipa a imagem de Oriente sob o nome de orientalismo,
uma rea de estudo que abarca fillogos e historiadores especializados nas lnguas orientais e
suas letras desde uma tica colonialista. A genialidade da obra de Said se revela principalmente
na sua conscincia crtica do Orientalismo que, enquanto se apresentava como um conhecimento
esclarecido de pensamento iluminista, tinha ligao direta com as prticas de poder do
colonialismo. Segundo o autor, o colonizador criou uma conscincia falsa do Oriente, numa
tentativa de diferenciao que servia os interesses do colonialismo. Said analisou uma srie de
discursos literrios, polticos e culturais, nos quais encontrou um denominador comum: a
representao dos povos no europeus como brbaros. Assim que Hatoum (2010) nos relatou:
Pode ser que haja, inconscientemente, uma influncia do Edward Said no ttulo. A verdade que foi difcil encontrar este ttulo. Para mim foi um achado. Eu j havia praticamente terminado o romance e tinha outros ttulos em mente, como Retratos da memria. Eu lembro que esse era um dos ttulos possveis, mas gostei desse ttulo Relato de um certo oriente, porque nele h vrias perguntas. De que Oriente ns estamos falando? De um determinado Oriente? Mas qual deles? isso que o livro insinua. o mistrio em torno desse Oriente que est um pouco nebuloso, e ainda no se sabe qual o Oriente do romance. O leitor no sabe exatamente do que se trata esse Oriente. A literatura trabalha com a ambiguidade, isso a enriquece. Tudo o que muito determinado ou explicado prejudica o romance. O romance questiona, indaga, insinua, suscita perguntas; mas ele no pode explicar. O romance explicativo chatssimo.
De acordo com Morin (2011), o conhecimento continua sendo a navegao em um
oceano de incertezas, entre arquiplagos de certezas... da gesto criadora da incerteza e da
desordem nascea organzio de uma nova fico, uma nova escrita. Milton Hatoum numa
entrevista com Kanzepolsky (2002) afirma que a literatura trabalha com a imaginao, o
esquecimento como uma das formas da memria - no como recordao cristalizada do passado -
mas como memria implcita do devir, oculta e involuntria de cenas de prazer e de traumas que
repercute no presente. Reinventar e lembrar so manifestaes do mesmo movimento, a memria
estaria na condio de dar conta do invisvel. A realidade e a fico so nebulosas, sem ser
necessariamente sombrias, na fronteira entre memria e imaginao so quase irms
(KANZEPOLSKY, 2008).
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Desde a relativizao de um certo oriente no ttulo, Hatoum coloca sua fico no espao
ps-colonial e supera a retrica holstica das narrativas totalitrias e hegemnicas do
imperialismo, do colonialismo, do orientalismo, das identidades coletivas limitadas, e a reduo
da Histria aos documentos escritos. O Relato possui, desde o ttulo, marcas de seu carter
hbrido rabe-brasileiro. A escolha do artigo indefinido junto com o pronome indefinido certo
relativiza a ideia do Oriente como um bloco nico, pois faz um recorte de um Oriente dentre
muitos que existem e que podem existir. A escolha dos termos d ao ttulo uma ambiguidade
atravs da qual a expresso um certo oriente capaz de, ao mesmo tempo, precisar a escolha do
oriente especfico a ser relatado e tambm de indeterminar, j que evoca a ideia da pluralidade de
orientes existentes, de modo que o oriente escolhido apenas um entre tantos. Passamos a
analisar questes como a escrita da memria cultura e a autofico, conceitos chaves para o
entendimento do Relato.
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Captulo III: Memria cultural e autofico J no coleciono selos. O mundo me inquizila. Tem pases demais, geografias demais. Desisto. Nunca chegaria a ter um lbum igual ao do Dr. Grisolia, orgulho da cidade. E toda gente coleciona os mesmos pedacinhos de papel. Agora coleciono cacos de loua quebrada h muito tempo. Cacos novos no servem. Brancos tambm no. Tm de ser coloridos e vetustos, desenterrados fao questo da horta. Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaadas, restos de flores no conhecidas. To pouco: s o roxo no delineado, o carmezim absoluto, o verde no sabendo a que xcara serviu. Mas eu refao a flor por sua cor, e s minha tal flor, se a cor minha no caco de tigela. O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali deps para que um dia eu o desvendasse. Lavrar, lavrar com mos impacientes um ouro desprezado por todos da famlia. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterrneo. Vidros agressivos ferem os dedos, preo de descobrimento: a coleo e seu sinal de sangue; a coleo e seu risco de ttano; a coleo que nenhum outro imita. Escondo-a de Jos, por que no ria nem jogue fora esse museu de sonho. Coleo de cacos, Boitempo II, 1973. Carlos Drummond de Andrade
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Maurice Halbwachs (1990) criou o termo memria coletiva para distingu-lo da memria
individual. Ele considerava a memria uma experincia partilhada, transmitida e tambm
construda pelo grupo ou sociedade:
Outros homens tiveram essas lembranas em comum comigo. Muito mais, eles me ajudam a lembr-las: para melhor me recordar eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois sofro ainda seu impulso e encontro em mim muitas das ideias e modo de pensar a que no teria chegado sozinho (HALBWACHS, A Memria Coletiva, 1990).
Respeito ao conceito social da memria coletiva de Halbwachs, Sonia Crisitina Hamid
(2007) explica que:
Para Halbwachs, os quadros sociais funcionam como indutores das recordaes, sendo as formas pelas quais a matria catica das lembranas pode emergir conscincia de modo ordenado...Aqui importante colocar que Halbwachs estabelece uma diferenciao entre memria e lembrana. A memria seria o resultado de um trabalho realizado sobre um conjunto desordenado de imagens... Ao entender a memria no como sonho, mas como trabalho, Halbwachs estabeleceu uma crtica profunda ao pensamento bergsoniano de que a lembrana uma conservao total do passado e sua ressurreio, mostrando que a menor alterao do ambiente atinge a qualidade ntima da recordao.
Michael Pollak (1992) concorda com Halbwachs de que a memria um fenmeno
social, sendo mutvel e flutuante, tambm aponta para uma suposta fixidez e rigidez de algumas
lembranas, afirmando que existem marcos e pontos relativamente invariantes e imutveis na
memria. Estes elementos se repetiriam constantemente na fala dos indivduos, podendo ser
considerados pontos chaves que ajudam a constituir o sentimento da identidade do sujeito, que
est permanentemente ligado memria:
A memria um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela tambm um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerncia de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstruo de si.
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Ao tentar desvendar os elementos constitutivos da memria individual ou coletiva que
influenciam nas percepes que os indivduos assumem de si e dos outros, Pollak (1992) aponta
para a importncia de acontecimentos vividos, vividos por tabela e acontecimentos herdados.
Enquanto os primeiros seriam vividos pessoalmente pelos sujeitos, os segundos seriam acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou, mas que tomaram tamanha importncia em seus grupos, que j no se sabe dizer se houve mesmo participao ou no. J as memrias herdadas no fariam parte do espao-tempo de uma pessoa, mas por meio de um forte processo de socializao poltica e histrica, ocorre um fenmeno de projeo e identificao com determinado passado.
Tambm, Myrian Seplveda dos Santos (1998) ressalta a relao entre identidade e
memria:
(...) identidade que rompe com as dicotomias entre indivduo e sociedade e passado e presente, est to associada ideia de memria como esta ltima primeira...O sentido de continuidade e permanncia presente em um indivduo ou grupo social ao longo do tempo depende tanto do que lembrado (esquecido e silenciado), quanto o que lembrado depende da identidade de quem lembra.
Nesse mesmo sentido, Ecla Bosi (2004) aponta a memria como uma construo social:
Conhecemos a tendncia da mente de remodelar toda experincia em categorias ntidas, cheias de sentido e teis para o presente. Mal termina a percepo, as lembranas j comeam a modific-la: experincias, hbitos, afetos, convenes vo trabalhar a matria da memria. Um desejo de explicao atua sobre o presente e sobre o passado integrando suas experincias nos esquemas pelos quais a pessoa norteia sua vida. O empenho do indivduo em dar um sentido sua biografia penetra as lembranas com um desejo de explicao. (ECLA BOSI, 2004: p. 55)
Para entendimento da natureza da memria humana, tentaremos construir nossas
interpretaes literrias com base no dilogo com as teorias cientficas sobre a memria. Como
afirma Lehrer (2010): a cincia necessita da literatura para emoldurar o mistrio, mas a
literatura necessita da cincia para que nem tudo seja um mistrio.
Aps suas leituras dos estudos de Maurice Halbwachs sobre memria coletiva, o
egiptlogo Jan Assmann (apud Aleida Assmann, 2011) cunhou o termo memria cultural para
diferenci-lo do arquivo histrico, que um armazenador, e para referir-se construo da
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memria coletiva por meio das formas simblicas como as narrativas de memria, escritas
subjetivas e pessoais das imagens marcantes das lembranas pessoais. Adotamos neste estudo o
conceito de cultura de Pereria Gomes (2011) que se refere a um modo prprio de ser do
homem em coletividade, que se realiza em parte consciente, em parte inconscientemente,
constituindo um sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se,
posicionar-se perante o Absoluto, e, enfim, reproduzir-se..
A ficcionalizao da memria cultural um processo da reinveno consciente do
inconsciente simblico na nossa prpria vida e na dos outros. A memria cultural ficcionalizada
visualizao de imagens passadas para o futuro. Nessa narrativa, o distanciamento e a
aproximao, como atos temporais da memria, se do por meio da rememorao. O escritor
recorre rememorao atravs da imaginao para a configurao de uma narrativa de
identidade, de lembranas de experincias orais e de hbitos a partir de encontros e desencontros
com lembranas de prazeres, de conflitos e de traumas com experincias pessoais que possa ter
registro material fsico ou no. Como afirma Hatoum na sua entrevista com KANZEPOLSKY
(2002): o relato tem mais afinidade com um tipo de literatura intimista memorialista, na qual o
distanciamento temporal da memria importante para poder voltar atravs dela para a
infncia e a juventude.
Nosso olhar se volta para o passado, a fim de estocar os dados e nos situar ao longo do
tempo. Sentimos como nos diz Huyssen (1996), um profundo sentimento de crise, associado
doena de nossa cultura que experimenta sua fase terminal de amnsia. A arte desempenha um
papel importante na rememorizao de vozes esquecidas reveladoras de passado presente: A
fissura que se opera entre experienciar um acontecimento e lembr-lo como representao
inevitvel. Esta separao deve ser compreendida como um vigoroso estimulante para a
criatividade artstica. Huyssen (1996) articula alguns dos elementos centrais de um "ps-
modernismo de resistncia" como: 1) manter uma crtica da modernizao, especialmente no seu
sentido imperialista e de devastadora do meio ambiente; 2) ateno centralidade das questes de
gnero e sexualidade na sociedade, na cultura e na poltica e 3) promover a revalorizao de
culturas no-europias e no-ocidentais. Trata-se de um ps-modernismo que duvida das noes
clssicas de verdade, razo, identidade e objetividade, da ideia de progresso e emancipao
universais, de estruturas nicas, grandes narrativas ou fundamentos definitivos de explicao.
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Reflete alguma coisa dessa mudana de uma poca caracterizada pela profuso de fragmentos e
incertezas, numa arte pluralista, superficial, descentralizada, infundada, autoreflexiva, divertida,
derivativa, ecltica, que torna indistintas as fronteiras entre cultura alta e cultura baixa, bem
como entre arte e experincia cotidiana (EAGLETON, 1997 apud FIGUEIREDO, 2010).
Num mundo movedio como as areias do deserto psicolgico do exlio e da dispora do
homem contemporneo, Milton cria uma narrativa moderna, ou seja, subjetiva e relativa.
(MOREIRA, 2007 e VIEIRA, 2008). Os espaos se apresentam na narrao simultaneamente ao
momento vivido pela relatora. Ainda que a histria do relato acontea na poca de 1950, na
narrao do Relato, Milton funde passado, presente e futuro (FREIRE, 2006).
Disse Huyssen (1996): As convulses mnemnicas de nossa cultura parecem mais
caticas, fragmentrias e flutuantes. Elas no parecem ter um foco poltico ou territorial claro,
mas sem dvida expressam a necessidade transcultural por uma ncora temporal, pela crescente
mobilidade em todo o mundo. Por isso, no Relato de memria de Hatoum h estrutura
fragmentada e hbrida de vozes e tempos no lineares. A memria ento recriada lacunamente
pela mediao de entrelugares de vozes fragmentrias, imprecisas, e conscientes da
impossibilidade de recuperao do vivido. Huyssen (1996) explica que o modo de memria a
busca, no a recuperao. A memria humana encontra-se intimamente ligada s maneiras como
uma cultura constri seu imaginrio e sua temporalidade vertical. O relgio da casa de Emilie
indcio de uma temporalidade paralisada que corresponde realidade ntima da narradora.
uma narrativa de uma identidade em crise, embora o escritor reinterprete a realidade
atravs da evocao de imagens e experincias sensoriais de matrias como fotos, cadernos,
objetos pessoais, cartas, cheiros marcados para o resgate desta memria cultural do
esquecimento. Misturam-se processos de construo da narrativa e de (ordenao) das
lembranas e cria-se com esse distanciamento, espao para a reflexo sobre o passado, sobre a
impossibilidade da recuperao fiel do tempo vivido. Na voz do narrador de Dois Irmos9 se l:
a memria mesmo inventa quando quer ser fiel ao passado (HATOUM, 2000).
9 Dois Irmos foi traduzido para rabe por Profa. Dra. Safa Jubran Abou Chala (USP) e publicado pela Editora Al Farabi, Beirut, 2002. Para maiores informaes sobre as tradues da obra de Milton Hatoum recomendo Consultar:
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Quantas vezes recomecei a ordenao dos episdios, e quantas vezes me surpreendi ao esbarrar no mesmo incio, ou no vaivm vertiginoso de captulos entrelaados, formados de pginas e pginas numeradas de forma catica (HATOUM, 1989, p.165).
3.1. Memria familiar e sombras da infncia
Milton Assi Hatoum, nascido no dia 19 de agosto 1952, em Manaus, no seio de uma
famlia libanesa, resgata suas lembranas familiares. Ao respeito Antonaccio (1996, p.236) conta:
Foi assim que o imigrante Mamed Ali Assi veio parar no Amazonas, iniciar um comrcio ambulante ou teco-teco como eu prefiro nominar e constituir, at meados do sculo XX, um verdadeiro imprio empresarial com sua famosa e conhecidssima