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Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa”: A Construção da Idéia da Lusofonia em
Portugal.
Adriano de Freixo
2007
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Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa”: A Construção da Idéia da Lusofonia em Portugal.
Adriano de Freixo
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social - PPGHIS, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Orientadora: Profa. Dra. Norma Côrtes
Rio de Janeiro - Maio de 2007
iii
Freixo, Adriano de.
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa”: A Construção da Idéia da Lusofonia
em Portugal/ Adriano de Freixo. – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2007.
Orientadora: Norma Côrtes
Tese (Doutorado) – UFRJ/IFCS/Programa de Pós-graduação em História
Social, 2007.
xi, 201f; 29,7cm.
Referências Bibliográficas: f.189-201.
1. Lusofonia. 2. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. 3. Mitos
Políticos Portugueses. I. Côrtes, Norma. II. Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação
em História Social. III. Título.
iv
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa”: A Construção da Idéia da Lusofonia em Portugal.
Autor: Adriano de Freixo
Orientadora: Profa. Dra. Norma Côrtes.
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História
Social - PPGHIS, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.
Aprovada por:
____________________________________ Profa. Dra. Norma Côrtes
Presidente
____________________________________
Embaixador Alberto da Costa e Silva
____________________________________ Prof. Dr. Oswaldo Munteal Filho
____________________________________Prof. Dr. Alexander Zhebit
____________________________________ Prof. Dr. José Murilo de Carvalho
Rio de Janeiro - Maio de 2007
v
Agradecimentos
À Prof. a Dr.a Norma Côrtes que, tendo aceito um orientando com a pesquisa já
em andamento, exerceu com competência e dedicação a orientação deste
trabalho. Às suas opiniões ponderadas e as suas sugestões sempre bem
fundamentadas, devo boa parte dos eventuais méritos desta tese;
Ao Prof. Dr. Williams Gonçalves que desempenhou um papel extremamente
importante no início das minhas pesquisas sobre a lusofonia e a Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa e que com suas reflexões críticas contribuiu
enormemente para o desenvolvimento deste trabalho;
Ao Prof. Dr. Oswaldo Munteal, que nos últimos anos tem sido o principal
interlocutor das minhas reflexões sobre Portugal e sobre o mundo lusófono e
que, com suas ponderações sempre pertinentes, teve uma participação
decisiva nos caminhos tomados ao longo de minhas pesquisas;
Ao Prof. Dr. Francisco Carlos Palomanes Martinho, pela importante ajuda dada
na fase de elaboração do projeto de pesquisa que originou esta tese e pelos
comentários abalizados feitos durante o exame de qualificação, que
contribuíram de forma efetiva para a correção de algumas opções feitas
inicialmente;
À Prof.a Dr.a Maria de Lourdes Soares, grande especialista na obra de Eduardo
Lourenço, com quem tive o prazer de dialogar como aluno e como amigo, em
sala-de-aula e fora dela;
Ao mestre e amigo Prof. Luiz Edmundo Tavares, que desde a minha graduação
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro tem sido, para mim e para muitos
de seus alunos, um exemplo de dignidade e ética;
À Profa. Dra. Jacqueline Hermann, minha orientadora no início da pesquisa, que
apresentou-me inúmeros caminhos e possibilidades a serem seguidas e que
teve várias de suas sugestões incorporadas a este trabalho;
Ao amigo Marcelo Ferro, pela inestimável ajuda em minhas pesquisas na
Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura e pelas sempre agradáveis
conversas sobre a nossa paixão comum, a História;
vi
Ao Amon Pinho e à Romana Valente Pinho por compartilharem comigo os seus
profundos conhecimentos sobre a vida, a obra e o pensamento de Agostinho
da Silva;
À Veronica Machado que, com seu carinho e apoio, desempenhou um papel
fundamental para que a escrita desta tese fosse concluída.
vii
Ao meu pai, Joaquim, que, em todos os momentos, sempre procurou me indicar o caminho certo; À minha mãe, Maria Aida, cuja ausência me fez compreender o verdadeiro sentido da palavra saudade.
viii
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, a ortografia sem ípsilon, como o escarro direto que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
(Fernando Pessoa)
Sou de uma Europa de periferia na minha língua há o estilo manuelino cada verso é uma outra geografia aqui vai-se a Camões e é um destino. Velas veleiro vento. E o que se ouvia era sempre na fala o mar e o signo. Gramática de sal e maresia na minha língua há um marulhar contínuo. Há nela o som do sul o tom da viagem. O azul. O fogo de Santelmo e a tromba de água. E também sol. E também sombra. Verás na minha língua a outra margem. Os símbolos os ritmos os sinais. E Europa que não mais Mestre não mais.
(“A Fala” – Manuel Alegre)
ix
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa”: A Construção da Idéia da Lusofonia em Portugal.
Autor: Adriano de Freixo
Orientadora: Profa. Dra. Norma Côrtes
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social - PPGHIS, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.
Após a concretização da independência das suas antigas colônias, em meados da década de 1970, o Estado português relegou ao segundo plano sua tradicional “política atlântica” e passou a priorizar o processo da integração do país à Comunidade Européia. No entanto, na década de 1980, com esta integração já concretizada, Portugal ensaiou o seu “retorno” à África depois de quase uma década de esquecimento. Foi neste contexto que setores da elite política portuguesa – de todas as correntes políticas, inclusive do Partido Socialista – e da intelectualidade progressista encamparam o ideal da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Nesse momento, procurou-se construir um consenso nacional em torno da sua construção, através da idéia da lusofonia, uma releitura, em novos parâmetros, do discurso secular da originalidade da cultura portuguesa e das marcas que ela deixou no mundo, a partir das grandes navegações dos séculos XV e XVI. Com esta perspectiva, procurou-se referendar tal idéia com a busca em experiências passadas ou em escritos de intelectuais e pensadores bastante distintos entre si dos elementos necessários para o processo de legitimação daquela Comunidade, então em processo de gestação. Assim, através do resgate e da resignificação de um conjunto de mitos extremamente caros ao imaginário lusitano, a idéia da lusofonia ganhou corpo e tornou-se efetivamente uma força mobilizadora para amplos setores da sociedade portuguesa.
Palavras-chave: Lusofonia, Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, Mitos Políticos Portugueses, Terceiro Império Português.
Rio de Janeiro – Maio de 2007
x
“Minha Pátria é a Língua Portuguesa”: A Construção da Idéia da Lusofonia em Portugal.
Autor: Adriano de Freixo
Orientadora: Profa. Dra. Norma Côrtes
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-graduação em História Social - PPGHIS, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social.
After the independence of its former colonies became a reality, in the middle of the 1970s, the Portuguese state put its traditional “Atlantic policy” on hold and gave priority to the process of the country becoming a member of the European Community. However, with this process already having been completed in the 1980s, Portugal began to rehearse its “return” to Africa, after almost a decade of abandonment. It was in this context that sectors of the Portuguese political elite – of all of the political currents, including the Socialist party – and of the progressive intellectuality took on the ideal of the Community of Portuguese-speaking Countries. At that time, the founding of the Community served to seek the building of a national consensus, through the use of the idea of “lusofonia” – a rereading, in new parameters, of the secular discourse of the originality of the Portuguese culture and of the marks that it left on the world, through the great navigations of the 15th and 16th Centuries. With this perspective, passed experiences and the writings of intellectuals and thinkers, who were rather distinct among themselves, were sought out in order to provide the elements necessary for the process of legitimization of the Community, which at that time was being born. In this way, through the recovery and the resignification of a set of myths which were extremely dear to the Lusitanian imaginary, the idea of lusofonia gained shape and effectively became a mobilizing force for broad sectors of Portuguese society. Key-words: Lusofonia, Community of Portuguese-Speaking Countries, Portuguese Political Myths, Portuguese Third Empire.
Rio de Janeiro – Maio de 2007
xi
Sumário
Introdução 01 Capítulo I - A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP: História e Perspectivas.
20
1.1- Portugal e a construção do “Espaço da Lusofonia”. 25 1.2- O Brasil e a CPLP: o discurso e a prática. 36 1.3- A CPLP na perspectiva de seus demais atores: Os PALOP e o Timor-Leste.
41
1.4- Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Desafios e Possibilidades
56
Capítulo II - O Terceiro Império Português e o Mito do “Destino Imperial”.
62
2.1- As origens do Império Português em África 64 2.2- O Estado Novo Português e a Estruturação do Império Colonial Africano.
71
2.3- O fim do Império: As Guerras Coloniais e a Crise do Estado Novo Salazarista
79
2.4- Os “cacos” do Império: Portugal no pós-25 de abril. 93
Capítulo III - Comunidade Lusófona: a Construção de uma Idéia 103
3.1- Comunidade Lusíada, Comunidade Luso-Afro-Brasileira: uma Genealogia do Ideal Comunitário.
105
3.2- A Lusofonia e a Articulação da CPLP. 116 3.3- As Bases Intelectuais da Lusofonia: Gilberto Freyre e o Luso-Tropicalismo.
121
3.4- As Bases Intelectuais da Lusofonia: Agostinho da Silva e a Comunidade de Língua Portuguesa como Concretização do Quinto Império.
133
3.5- Portugal e a “Invenção” da Lusofonia. 143 3.6- Quebrando o Consenso: as Vozes Dissonantes em Portugal
147
3.6.1- As Vozes Dissonantes: a Lusofonia na Perspectiva de Eduardo Lourenço.
151
3.6.2- As Vozes Dissonantes: a Lusofonia na Perspectiva de Alfredo Margarido.
165
Considerações Finais 172
Fontes e Bibliografia 189
Introdução
A trama de “Um Filme Falado”, do veterano cineasta português
Manoel de Oliveira1, se passa durante uma viagem de navio rumo ao oriente,
através do Mediterrâneo - por aquela antiga rota amplamente utilizada antes da
viagem de Vasco da Gama -, tendo como personagens centrais Rosa Maria,
uma professora de História de uma Universidade portuguesa, e sua filha de
sete anos, Maria Joana. Ao longo do percurso – que passa por portos
representativos das culturas que formaram a civilização ocidental -, Rosa
responde às perguntas de sua filha com extremo didatismo e, desta forma, vai
dando ao espectador uma “aula” sobre as bases da nossa civilização.
Nesses portos, novos personagens aparecem - seja na condição de
moradores daqueles lugares ou na de passageiros que embarcam no navio – e
conversas e mais conversas são travadas. Dentre esses, destacam-se
Delphine, uma bem sucedida empresária francesa que embarca em Marselha;
Francesca, uma famosa atriz e modelo internacional italiana que embarca em
Nápoles; e a atriz e cantora grega, Helena, que entra em cena quando o navio
aporta em Atenas.
São estas três personagens que, juntamente com o capitão da
embarcação - um norte-americano, travarão um dos mais interessantes e
significativos diálogos do filme - em uma obra na qual, como seu próprio título
1 Nascido em 1908, Manoel de Oliveira é o mais antigo diretor de cinema em atividade no mundo e, sem sombra de dúvidas, o maior nome do cinema português e um dos mais cultuados cineastas europeus. O seu longa-metragem de estréia Aniki-bobó é considerado uma das obras precursoras do neo-realismo italiano. De certa forma, Um filme falado é uma síntese do conjunto da obra do cineasta, visto que ele sempre teve na História – principalmente a portuguesa, real ou mitológica - uma de suas principais matérias primas (como em Non ou a vã glória de mandar, reflexão dolorosa sobre o fim do Império Colonial Português e sobre o próprio destino nacional) e no uso da palavra uma das marcas estéticas de sua obra, tendo os diálogos de seus filmes um peso tão grande como o das imagens. Nas palavras do próprio Manoel de Oliveira, “a palavra não deve ser uma ajuda à imagem, é preciso que ela seja autônoma, como a imagem e como a música, e tudo isso, deve-se casar em pleno acordo” (Cahiers du Cinéma, n° 328, outubro de 1981).
2
sugere, os diálogos desempenham um papel fundamental - em torno da mesa
do restaurante do navio. Nesta conversa culta e delicada, onde se fala de
projetos pessoais, de filhos, de política, da barreira tecnológica entre oriente e
ocidente e da cultura ocidental, cada um fala em sua própria língua e
maravilhados notam que todos se entendem, numa espécie de Babel às
avessas. No entanto, Helena faz uma ressalva (e uma constatação)
lamentando a situação atual de sua língua natal: o que se passa nesta mesa é
uma exceção. Fora da Grécia o grego foi esquecido (...) A língua inglesa
colonizou o mundo. E hoje quase se é obrigado a falar o inglês. Mas não é do
inglês que vieram os fundamentos originários da nossa civilização.
No entanto, é no momento em que as portuguesas Rosa Maria e
Maria Joana são convidadas pelo capitão para se unirem ao grupo que Manoel
de Oliveira, português que é, levanta de forma melancólica uma questão
extremamente cara – e dolorida – para seu povo. Naquela mesa de pessoas
cultas e poliglotas que se entendiam perfeitamente, inclusive em grego,
somente o capitão – por ter estado por algum tempo no Brasil – conhecia a
língua portuguesa. A grega Helena compara então a situação de sua língua
pátria com a do português, afirmando que da mesma forma que os gregos
dominaram o mundo na antiguidade, os portugueses fizeram-no nos séculos
XVI e XVII. No entanto, aos portugueses ainda restaria o consolo da sua língua
ser falada nos cinco continentes; já os gregos hoje têm a sua língua pátria
restrita aos limites de seu país. Então, para que todos na mesa conseguissem
se comunicar, a conversa passa a ser travada em inglês.
Se por um lado, esta cena pode ser entendida como uma metáfora
sobre a decadência cultural do velho continente - que, de certa forma, tem
3
aberto mão da sua própria cultura e abraça cada vez mais o chamado
American Way of Life –, bem como sobre o poder da língua inglesa no mundo,
depois de mais de dois séculos de hegemonia econômica e política anglo-
saxônica; por outro, ela parece nos mostrar o sentimento, ainda presente, da
marginalização de Portugal em relação ao restante da Europa, mesmo três
décadas depois do início do processo de sua integração à União Européia.
Também é significativo que a cena deixe claro que a presença da língua
portuguesa no mundo hoje ocorra não por causa de Portugal, mas sim por
causa de suas ex-colônias, em especial o Brasil.
A cena final de “Um filme falado” também é bastante marcante e a
ela podem ser dadas diferentes interpretações. Diante do grito aterrorizado do
capitão em um dos botes salva-vidas, o navio explode devido a uma bomba
deixada por grupos terroristas. As únicas vítimas são as duas portuguesas, a
menina Maria Joana – que tinha voltado ao navio evacuado para pegar uma
boneca (significativamente um brinquedo mouro) que lhe havia sido
presenteada em uma das paradas – e sua mãe, Rosa Maria, que ao perceber
sua ausência foi atrás dela.
Esse apocalíptico final pode sugerir algumas interpretações fáceis –
nem por isto, menos plausíveis - como a de que é uma metáfora sobre o
colapso da civilização ocidental ou sobre as dificuldades do diálogo entre
oriente e ocidente. Pode ser interpretado também como uma constatação
irônica de sobre como um inimigo invisível – o terrorismo – consegue
desestruturar a nação hegemônica do ocidente e seus aliados, utilizando armas
resultantes da tecnologia que esse mesmo ocidente inventou. Porém, há uma
outra interpretação possível que, combinada com a cena da conversa do
4
restaurante descrita anteriormente, parece muito mais de acordo com um
sentimento nacional português – um tanto quanto oculto – do qual Manoel de
Oliveira parece compartilhar: ela representaria uma certa consciência da
relativa impossibilidade da sobrevivência de Portugal como nação no mundo
globalizado do século XXI, ou melhor, a percepção presente no imaginário
social português de quão improvável tem sido a existência de Portugal como
Estado independente nos últimos oito séculos:
O sentimento profundo da fragilidade nacional – e
o seu reverso, a idéia de que essa fragilidade é
um dom, uma dádiva da própria providência e o
reino de Portugal espécie de milagre contínuo,
expressão da vontade de Deus – é uma
constante da mitologia, não só histórico-política
mas cultural portuguesa.2
Portanto a idéia de que há a mão da providência divina por trás da
existência do Estado português3 - e também a de que seu povo seria uma
espécie de novo “povo eleito” - é recorrente, explícita ou implicitamente, nos
principais mitos políticos da nação portuguesa e teria tido a sua confirmação
através do papel desempenhado por Portugal naquela que foi a primeira
“globalização” (a dos séculos XV e XVI): o de “descobridor de novas terras e
novos céus”. Estas questões desempenharam um papel fundamental na
formação da identidade nacional – que acabam desembocando na idéia de
uma singularidade da nação portuguesa e na crença em um “destino nacional”
2 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p.91. 3 Um dos principais mitos-fundadores do Estado português é o “Milagre de Ourique” que relata que Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal, antes de uma batalha contra os mouros – a célebre Batalha de Ourique (1139) – teria tido uma visão do próprio Jesus Cristo que lhe anunciou a vitória iminente. Lá o Estado português teria sido fundado, com Afonso Henriques sendo aclamado rei no próprio campo de Batalha.
5
(muitas vezes identificada com a noção de “destino imperial”) - e têm sido
reinterpretadas ao longo da história portuguesa por homens de Estado,
historiadores, escritores e intelectuais4 segundo os mais diferentes interesses e
perspectivas:
Uma das constantes do pensamento mítico e
do pensamento psicanalítico social é a de que
Portugal tem um destino, uma razão teológica
que ainda não cumpriu ou que só cumpriu no
período áureo dos descobrimentos e que o
défice de cumprimento só pode ser superado
por um reencontro do país consigo mesmo, a
solo ou no contexto da Espanha das Espanhas
ou no contexto da Europa ou, ainda, no
contexto do Atlântico. 5
Assim, a idéia da singularidade messiânica da nação portuguesa, a
crença no “destino imperial” e a percepção de que Portugal desempenhou um
4 A literatura portuguesa é extremamente rica em exemplos sobre a forte presença dessas questões no imaginário cultural e político português. Recorrendo somente à poesia e fugindo dos exemplos mais óbvios como Fernando Pessoa, podemos visualizar isto na produção de dois autores contemporâneos, ambos identificados com uma visão política progressista: Manuel Alegre, poeta e político socialista (1936), e António Gedeão, na verdade Rómulo de Carvalho, poeta, físico e historiador da ciência (1901-1997). Do primeiro destacamos um pequeno poema chamado “Portugal” (1984): O teu destino é nunca haver chegada/O teu destino é outra Índia e outro mar/E a nova nau lusíada apontada/A um país que só há no verbo achar; do segundo, um pequeno trecho de seu “Poema da Malta das Naus” (1958): Moldei as chaves do mundo/a que outros chamaram seu,/mas quem mergulhou no fundo/Do sonho, esse, fui eu./ O meu sabor é diferente./Provo-me e saibo-me a sal./Não se nasce impunemente/nas praias de Portugal. 5 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 5o ed. São Paulo, Cortez, 1999, p. 71. Em “Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal”, um dos ensaios presentes nesta obra (p. 53-74), o sociólogo português critica o pensamento mítico – e sua nova roupagem: o “pensamento psicanalítico” – existente entre as elites culturais portuguesas, analisando este fato como um “mecanismo de compensação do déficit de realidade, típico de elites culturais restritas, fechadas (e marginalizadas) no brilho de suas idéias”, visto que essas elites, reduzidas em número, teriam estado “quase sempre afastadas das áreas de decisão das políticas culturais e educacionais”, devido à existência de longos períodos de obscurantismo na História Portuguesa. Para Santos, após a Revolução dos Cravos (1974), parte delas teria se aproximado da “Psicanálise Social” em uma tentativa de compreender as complexidades da sociedade portuguesa. No entanto, esta aproximação – devido ao caráter arbitrário da Psicanálise – teria duplicado o mito, mesmo tendo sido a sua intenção desmontá-lo. Assim, em uma crítica direta a uma das obras de maior repercussão publicadas em Portugal no pós-25 de abril (mesmo sem citá-la nominalmente) – “O Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português” (1978), de Eduardo Lourenço –, Santos afirma peremptoriamente: “Portugal não tem destino. Tem passado, tem presente e tem futuro”.
6
papel central na história da humanidade – e a esperança de que poderá voltar
a desempenhá-lo – são mitos definidores da identidade portuguesa6 e a sua
reelaboração constante fazem com que eles permaneçam no imaginário
popular português. Se como coloca Boaventura de Souza Santos, já citado
anteriormente, o pensamento mítico é típico de elites culturais fechadas, não se
pode negar que a reprodução e as releituras desses mitos têm sido bem
sucedidas e utilizadas ao longo da história de Portugal por regimes políticos e
por integrantes das elites intelectuais das mais diversas tendências. Isto ocorre
em uma perspectiva similar àquela assinalada por José Murilo de Carvalho em
seu conhecido estudo sobre a construção do imaginário republicano no Brasil:
A elaboração de um imaginário é parte integrante
da legitimação de qualquer regime político. É por
meio do imaginário que se podem atingir não só a
cabeça mas, de modo especial, o coração, isto é,
as aspirações, os medos e as esperanças de um
povo. É nele que as sociedades definem suas
identidades e objetivos, definem seus inimigos,
organizam seu passado, presente e futuro.7
Estes problemas voltaram a ser colocados em discussão, com
bastante intensidade, na década de 1980, quando começou a se estruturar o
discurso legitimador daquilo que ficou conhecido como Lusofonia. Depois de
6 Para reforçar esta profunda ligação com o passado existente em Portugal, não custa lembrar que um dos principais versos de “A Portuguesa”, o hino nacional, diz: “Levantai hoje de novo/o esplendor de Portugal”. É sintomático que uma canção republicana “revolucionária”, inspirada na “Marselhesa” projete no futuro o resgate das glórias do passado. Eduardo Lourenço (1923), um dos principais intérpretes de Portugal, discute a noção de “saudade” como elemento essencial da identidade lusitana: “Com a saudade, não recuperamos o passado como paraíso; inventamo-lo. O nosso povo, imemorialmente rural, absorvido por fora em afazeres desprovidos de transcendência, mas levados a cabo como uma epopéia, como seu talento do detalhe da miniatura é um povo-sonhador. Não especialmente por ter cumprido sonhos maiores do que ele, mas porque, no fundo de si, ele recusa o que se chama a realidade” (In: Mitologia da Saudade. op. cit., p. 14). 7 CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: O Imaginário da República no Brasil. São Paulo, Cia. das Letras, 1990, p. 10.
7
uma década, em que o movimento de integração à Europa ocupou os corações
e mentes lusitanas, o Estado português articulou o retorno daquela velha
“política atlântica”, sempre tão marcante na história do país, buscando uma
aproximação com suas ex-colônias espalhadas pelos cinco continentes, a partir
do discurso da “herança cultural comum”.
Naquele momento, assistiu-se à releitura de uma série de questões
extremamente caras ao imaginário social português - em especial o já citado
mito do destino imperial - que são “reinventadas” e travestidas com novas
roupagens. É nesse contexto que se inserem os esforços pela formação de
uma Comunidade Lusófona, integrada pelos países que adotam o Português
como idioma oficial, e que acabaria se concretizando em meados da década de
1990. Essa Comunidade – como procuraremos defender ao longo deste
trabalho – acaba representando na prática uma reinvenção do velho sonho
imperial português. Isto, em parte, ajuda a explicar o relativo fracasso da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, após mais de dez anos de sua
existência: o seu alicerce simbólico acaba só tendo um sentido efetivo para os
portugueses e não para os demais povos “lusófonos”.
Este processo se deu especialmente a partir do momento em que,
depois de alguns conturbados anos que se seguiram à Revolução dos Cravos,
o Partido Socialista se tornou a principal força política em Portugal, com a
eleição de Mário Soares à Presidência da República, em 1986. Mesmo com o
PS tendo participado de quase todos os governos do pós-25 de abril e
governando em “coabitação” com o PSD, do Primeiro-Ministro Cavaco Silva, a
ascensão do líder socialista à presidência representou um fato significativo na
política portuguesa.
8
Mário Soares e os demais líderes socialistas encarnam de forma
bastante enfática o discurso do “retorno ao Atlântico” – sem que isto signifique
o negligenciar da política Européia – e incorporam com entusiasmo a defesa da
idéia da Lusofonia:
A mentalidade do Portugal democrático e
humanista de hoje é também muito diferente. O
fato de também sermos União Européia também
conta muito. Quando se discutia, em Portugal, se
queríamos ser África ou ser Europa, eu respondia
sempre que, quanto mais Europa fôssemos, mais
possibilidade teríamos em África, mais os
africanos terão a percepção da nossa
importância.8
Foi assim que nos anos finais da década de 1980 e na década de
1990 assistiu-se em Portugal a um resgate das idéias do sociólogo brasileiro
Gilberto Freyre, inclusive por parte daqueles que as criticavam nas décadas
anteriores por considerarem-nas conservadoras e justificadores do colonialismo
português. Com isto, a idéia freyriana de que há “um modo português de estar
no mundo” 9 que havia embasado o discurso colonialista do Estado Novo
português, a partir do final da década de 1940, passa também a servir como
alicerce do discurso da lusofonia, encampado com entusiasmo por setores que
tinham se destacado e/ou se forjado na oposição ao salazarismo:
8 Esta afirmação é feita por Mário Soares em: CARDOSO, Fernando Henrique e SOARES, Mário. O Mundo em Português: Um Diálogo. São Paulo, Paz e Terra, 1998, p. 307. Esta obra, como o próprio título já diz, reproduz parte de mais de 20 horas de conversa gravadas entre o ex-presidente português e o então presidente brasileiro, em que são abordados diversos temas do interesse de ambos, em especial as relações Brasil-Portugal e a questão da integração do mundo lusófono. 9 Esta expressão é um conceito introduzido nos meios acadêmicos lusos, na década de 1950, pelo intelectual e político português Adriano Moreira, um declarado entusiasta das idéias de Gilberto Freyre. Cf. CASTELO, Cláudia. “O Modo Português de Estar no Mundo”: o luso-tropicalismo e a ideologia colonial portuguesa (1933-1961). Porto, Edições Afrontamento, 1999, p. 13.
9
É neste momento que se concretiza a CPLP: num
processo de reconhecer uma história que,
evidentemente percorre outros territórios e
continentes, mas, sobretudo, num processo
marcado pelo esquecimento (como aquele da
construção das nações) e pelo ressurgimento de
um conjunto de mitos que procuram aferir uma
singularidade lusitana nos trópicos marcada
pela ausência de racismo, pela generosidade,
pela assimilação e pela “identidade” entre os
portugueses e aqueles que foram objeto da
expansão colonial.10
Em menor grau, foram resgatados outros intelectuais portugueses e
brasileiros que em algum momento de sua trajetória defenderam ou elaboraram
a idéia de uma “Comunidade Lusófona”. Desta maneira, ao lado de Gilberto
Freyre, erige-se uma galeria de “pais-fundadores” daquela Comunidade então
em formação, onde aparecem nomes como Sílvio Romero, Adriano Moreira e
Joaquim Barradas de Carvalho.
Neste panteão, um nome que passa a figurar com a mesma
importância atribuída a Freyre é o de Agostinho da Silva, filósofo, filólogo e
místico português identificado com a resistência ao salazarismo – portanto sem
a carga negativa que o lusotropicalismo freyriano ainda carregava, tanto para
as elites políticas e intelectuais africanas, quanto para setores da esquerda
portuguesa -, embora nunca tivesse tido uma militância política efetiva.
Assumindo uma perspectiva que podemos chamar de “neo-sebastianista”, ele
defende a idéia de um Portugal-língua – concretizado através de uma 10 THOMAZ, Omar Ribeiro. “Tigres de Papel: Gilberto Freyre, Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa”. In: ALMEIDA, Miguel Vale de, BASTOS, Cristiana e FELDMAN-BIANCO, Bela (Coord.). Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros. ICS, Lisboa, 2002, p. 57.
10
Comunidade Lusófona como uma espécie de “Quinto Império” revisitado - que
deveria cumprir a missão histórica que o Portugal-território, por suas limitadas
possibilidades atuais, não teria mais condições de cumprir: a de integrar toda a
humanidade e construir a fraternidade universal. Encarado com certas reservas
durante muito tempo por amplos setores da intelligentzia portuguesa, devido a
suas idéias de forte inspiração mística, Agostinho da Silva acaba se tornando,
a partir da institucionalização da CPLP, uma das figuras mais citadas, inclusive
nos discursos oficiais, como um de seus principais inspiradores. 11
Desta forma, todos estas questões foram utilizadas em Portugal para
embasar e legitimar a idéia da lusofonia. A construção desse discurso e o
empenho do Estado português na criação da CPLP – que se tornou uma
questão bastante importante para os formuladores da política externa
portuguesa, a partir do final da década de 1980 – estão relacionados aquilo que
podemos chamar de uma “reinvenção” do Império através da língua, com a
resignificação de antigos mitos presentes no imaginário social português.
No entanto, saindo do plano simbólico e entrando no campo da
Realpolitik, os esforços portugueses para a constituição da CPLP também se
inserem dentro da dinâmica das alterações pelas quais estava passando o
sistema internacional nas duas últimas décadas do século XX, relacionadas à
falência da ordem internacional - erigida sobre os escombros da Segunda
Grande Guerra - até então existente. Esta velha ordem, que durou cerca de 45
11 Podemos citar como exemplo as palavras de José Aparecido de Oliveira, embaixador brasileiro em Lisboa durante o governo Itamar Franco e um dos principais articuladores da CPLP: “O primeiro projeto que Portugal teve foi o que incumbe a todos nós: o de ser”. A frase em sua aparente singeleza é a mais profunda de todas quantas têm amparado a minha luta pela criação de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, tarefa de que fui incumbido pelo presidente Itamar Franco. Pronunciou-a com sua poderosa carga de sabedoria, meu amigo o professor Agostinho da Silva (...). In: BRAGA, José Alberto (Coord.). José Aparecido: o homem que cravou uma lança na lua. Lisboa: Trinova Editora, 1999, p.33.
11
anos, baseou-se na hegemonia de duas superpotências, com enorme poderio
econômico e, fundamentalmente, político-militar, que lideravam “blocos” de
países aliados: os EUA e a URSS, configurando, assim, um sistema
internacional bipolar. Este período marcou a decadência geopolítica da Europa
que havia se iniciado já na Primeira Grande Guerra, sendo o velho continente
bipartido em zonas de influência das superpotências. Este processo refletiu-se
na dissolução dos antigos impérios coloniais europeus e na formação do
chamado “Terceiro Mundo”, o que contribuiu para ampliar o número de atores
do sistema internacional que, pela primeira vez, tornou-se mundial. Porém, a
Europa acabou sendo o centro da chamada Guerra Fria, visto que se tornou o
principal palco de confrontação das grandes potências. É neste contexto que,
ainda na década de 1950, lança-se o embrião do projeto de unidade européia
através da criação, em 1957, do Mercado Comum Europeu, pelo Tratado de
Roma, que inicia o sonho de construção de uma “pátria européia”, onde as
tradicionais rivalidades nacionalistas seriam suplantadas.
A partir dos anos 1970, a ordem bipolar começou a dar sinais de
desgaste principalmente devido às questões econômicas. O desenvolvimento
penalizou as grandes potências, notadamente a URSS, e possibilitou a
emergência de potências médias como o Japão, a Alemanha e a China. Os
excessivos gastos militares e a prioridade dada ao setor bélico fizeram com
que a URSS não conseguisse acompanhar a revolução técnico-científica que
estava em andamento naquele momento, além de mergulhar a sua economia
(com a exceção lógica do setor militar) num quadro de estagnação, com um
ritmo de crescimento anual praticamente nulo. Estas questões contribuíram
12
decisivamente para o fim da URSS e a desagregação do Bloco Socialista, a
partir do final da década de 1980.
Naquele momento, houve pressa nos EUA em comemorar a
implantação daquilo que foi chamado pelo presidente George Bush de “nova
ordem mundial”, em que a bipolaridade cederia lugar a uma configuração de
forças unipolar ou imperial, com a implantação da pax americana. Porém, esta
nova ordem acabou desvinculando o poder geopolítico do poderio bélico-
militar, fazendo com que outras dimensões – a econômica, por exemplo –
voltassem a ter peso. Assim, foi a partir da década passada que se consolida a
tendência de criação de megablocos econômicos capazes de fazer frente aos
desafios dessa nova “ordem” que se estabelecia.
Dentre estes blocos, destaca-se a União Européia, concretizada pelo
Tratado de Maastricht, de 1992, a partir da CEE (Comunidade Econômica
Européia), da qual Portugal faz parte desde 1986, que apesar ter sido
constituída no cenário da Guerra Fria, foi com o fim desse período – e a nova
ordem que se estrutura a partir daí - que se abriram novas possibilidades
estratégicas e de expansão para ela, consolidando a sua posição como um dos
três pólos da economia mundial.
A década de 1990 também foi aquela em que se consolidou o
processo conhecido genericamente como Globalização, caracterizado pela
mundialização dos mercados, com a livre circulação do capital, a
reestruturação dos processos produtivos e a formação de grandes corporações
globais, ocorrida sob a égide do neoliberalismo e que aprofundou as
desigualdades ente os países centrais e periféricos do sistema capitalista.
13
Porém, as implicações desse processo geram controvérsias.
Afinal, quem seria o principal beneficiado com a Globalização? Alguns teóricos
defendem a idéia de que a Guerra Fria não teve potências vencedoras e que,
na verdade, ela teria sido vencida pelos donos dos capitais que circulam pelo
mundo e que não têm compromisso de fidelidade com nenhuma nação, pois “à
medida que se intensifica a competição pelo capital global, as forças de
mercado desterritorializadas (primordialmente as empresas comerciais, mas
também alguns indivíduos) impõem restrições cada vez mais rigorosas, até
mesmo, à política econômica das maiores nações, inclusive os Estados
Unidos”. 12 Com isto, uma das características do processo de Globalização
seria o enfraquecimento dos Estados nacionais em detrimento das grandes
corporações globais.
Para outros, a Globalização seria somente o novo nome para velhos
processos de expansão do capitalismo em nível mundial. Argumenta-se
também que a Globalização foi possibilitada enormemente pela aplicação dos
princípios neoliberais que, por sua vez, foram difundidos a partir de
determinadas nações como os EUA e a Grã-Bretanha. Assim, “visto que o
apoio e o incentivo estatais foram indispensáveis ao processo de globalização,
afirma-se que os Estados têm a capacidade de reverter esse processo se
assim desejarem”.13 Desse modo, pode-se pensar que a Globalização ao
invés de enfraquecer os Estados Nacionais, na verdade, faria parte da
estratégia de um determinado Estado para manter a sua hegemonia mundial:
os EUA. Esta tese estaria confirmada pela grande prosperidade da economia
norte-americana, a partir da segunda metade dos anos 90 do século XX. Com 12 Erik Peterson citado em: ARRIGHI, Giovanni e SILVER, Beverly J. Caos e Governabilidade no Moderno Sistema Mundial. Rio de Janeiro, Contraponto/UFRJ, 2001, p.16. 13 ARRIGHI, Giovanni e SILVER, Beverly J. Idem. p. 17.
14
isto, a multipolaridade econômica estaria, na verdade, evoluindo em direção a
um único pólo dominante, que, por sua vez, também é dotado do maior poderio
militar.
Neste sentido, é importante destacar que nossa análise das relações
internacionais se insere em uma perspectiva realista. Assim, podemos pensar
na idéia de que os Estados, ao movimentarem-se na cena internacional,
procuram, sempre, obter a maior quantidade possível de poder, sendo que o
conceito de poder não necessita embasar-se, prioritariamente, em um único
âmbito, seja qual for ele. Por esta visão, semelhante conquista/manutenção da
supremacia nacional ante os demais governos superaria quaisquer outros
interesses estatais, embora devam ater-se, evidentemente, às conjunturas
históricas.
Em prosseguimento a esta possibilidade de análise, cremos que a
conceituação de poder deva ser explicitada, evitando-se possíveis
anacronismos e distorções. Assim, acompanhamos a formulação de Max
Weber, quando este afirma que entende por poder “a possibilidade de que um
homem - ou um grupo de homens - realize sua vontade própria numa ação
comunitária até mesmo contra a resistência de outros que participam da
ação”.14
No entanto, o controverso fenômeno da globalização não pode ser
reduzido somente à sua dimensão econômica ou político-militar.
Indiscutivelmente, temos assistido a uma redefinição das identidades em
escala global e antigas visões de mundo perdem sua razão de ser ou são
reinventadas:
14 Weber, Max. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5a ed., Rio de Janeiro, LTC, 1982, p. 211.
15
No âmbito da globalização, quando começa a
articular-se uma totalidade histórico-geográfica
mais ampla e abrangente que as conhecidas
abalam-se algumas realidades e interpretações
que pareciam sedimentadas. Alteram-se os
contrapontos singular e universal, espaço e
tempo, presente e passado, local e global, eu e
outro, nativo e estrangeiro, oriental e ocidental,
nacional e cosmopolita. A despeito de que tudo
parece permanecer no mesmo lugar, tudo muda.
O significado e a conotação das coisas, gentes e
idéias modificam-se, estranham-se, transfiguram-
se.15
Portanto, foi a partir de todo este conjunto de questões que
procuramos analisar o processo de construção da idéia de lusofonia em
Portugal, bem como o empenho do Estado português em articular um espaço –
tanto no plano simbólico, quanto no real - para concretizá-la: a Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa. Estes processos devem ser entendidos,
em nossa avaliação, como decorrentes, por um lado, destas redefinições
identitárias globais; e por outro, das próprias determinações da ordem
internacional, já que entendemos que em momentos de transformações
sistêmicas profundas, os vários atores buscam redefinir o seu papel no sistema
internacional16.
15 IANNI, Octavio. “Globalização e Nova Ordem Internacional”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão et alli. O Século XX - O Tempo das Dúvidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p.223. 16 Não se pode deixar de destacar que as mudanças ocorridas no Sistema Internacional nas décadas de 1980 e 1990 também estimularam o surgimento de Organizações Internacionais, entre as quais a CPLP. Estes Organismos (ou Organizações) Internacionais consistem em “um arranjo institucional formal da qual fazem parte membros ou atores internacionais, com vista à coordenação ou cooperação em uma ou mais áreas de interesse comum”. Cf. GONÇALVES, Williams e SILVA, Guilherme A. Dicionário de Relações Internacionais. São Paulo, Manole, 2003.
16
No caso português, a Revolução dos Cravos (1974) representou um
marco desta redefinição. Esse momento foi marcado pela dissolução do
Império Colonial, pelo abandono da “política atlântica” portuguesa que marcou
a inserção internacional do país durante cinco séculos e pelo retorno de
Portugal a uma “política européia”. O outro marco importante, em nossa
avaliação, foi o início da articulação do discurso da lusofonia, visto que ele
representa, de certa forma, a retomada daquela “política atlântica” em novos
moldes, com Portugal, já integrado à União Européia, tentando, através da
CPLP, aumentar sua capacidade de negociação dentro da UE e renegociar o
seu papel no Sistema Internacional.
Ao mesmo tempo, esse discurso busca redefinir a identidade cultural
lusa, transmutando-a em uma “identidade lusófona” que, paradoxalmente, por
ser essencialmente portuguesa, acabaria se tornando universal. É neste
sentido, que as bases simbólicas sobre as quais procurou se erigir a
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa acabam refletindo quase que
somente questões importantes para o imaginário social português e que não o
são, necessariamente, para os demais países de língua portuguesa. A idéia de
que há um “modo português de estar no mundo” – e que estaria presente em
todos as regiões colonizadas pelos portugueses - reaparece em Portugal de
forma tão intensa, que mesmo os críticos do “discurso mítico” acabam,
indiretamente, reinterpretando-a, mesmo sem assumi-lo. 17 Para alguns setores
das elites intelectuais portugueses, neste contexto de redefinição identitária, a
17 Podemos citar como exemplo disto, o sociólogo Boaventura de Souza Santos que constrói o conceito de “Cultura de Fronteira” para definir a identidade portuguesa. Esta forma cultural seria marcada pelo acentrismo, pela cosmopolitismo, pela dramatização e pela carnavalização das formas e também teria vigência, mesmo que de modo diferenciado, no Brasil e nos Países Africanos de Língua Portuguesa. Ver: “Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira”. In. Pela Mão de Alice. op. cit., p. 35-57. Esta discussão será feita com mais profundidade no capítulo 2.
17
lusofonia também cumpre o papel de fortalecer a língua portuguesa no mundo
e, de certa forma, garantir a sua sobrevivência, já que com a inserção de
Portugal à União Européia, o medo secular de ser absorvido pela vizinha
Espanha – com toda a sua pujança econômica e cultural – reaparece
transportado para a esfera lingüística.18
Neste sentido, ao discutir questões como a cultura política e o
imaginário político portugueses no século XX, este trabalho insere-se naquele
campo mais amplo da História Política, ressaltado por René Rémond quando
afirma que:
(...) se o político tem características própria que
tornam inoperante toda análise reducionista, ele
também tem relações com os outros domínios:
liga-se por mil vínculos, por toda espécie de laços,
a todos os outros aspectos da vida coletiva. (...)
Abraçando os grandes números, trabalhando na
duração, apoderando-se dos fenômenos mais
globais, procurando nas profundezas da memória
coletiva, ou do inconsciente, as raízes das
convicções e as origens dos comportamentos, a
história política descreveu uma revolução
completa.19
As conclusões a que chegamos, serão apresentadas a seguir, ao
longo de três capítulos. No primeiro, procuramos apresentar algumas questões 18 As elites intelectuais portugueses historicamente tiveram uma posição dúbia e oscilante em relação ao “perigo espanhol”, variando da negação de qualquer tipo de identidade com a poderosa vizinha ao entusiasmo com a possibilidade de algum tipo de União Ibérica. Na própria “crise de identidade” vivida em Portugal nas décadas de 1860 e 1870, quando surgiu uma das brilhantes gerações de intelectuais portugueses, este debate ocorreu de forma bastante intensa. Sobre esta questão ver: DIOS, Angel Marcos de. “A Lusofilia Espanhola”. In: História – Memória – Nação. Revista de História das Idéias (18). Instituto de Teoria e História das Idéias. Universidade de Coimbra, Coimbra, 1996, p. 149-165; ALVAREZ, Eloísa. “Iberismo, Hispanismo e Hispanofilia en Portugal em la Ultima Decada”. Idem, p. 373-387; GÓMEZ, Hipólito de la Torre (Editor). España y Portugal (Siglos XIX e XX): Vivencias Historicas. Madrid, Editorial Sintesis, 1998. 19 RÉMOND, René. Por uma História Política. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Editora FGV, 1996, p. 35-36.
18
que serão aprofundadas nos capítulos seguintes. Assim, traçamos um breve
histórico da estruturação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e
da visão que os três pólos da Comunidade – Portugal, Brasil e África
Lusófona/Timor – têm sobre ela. Com isto, enfatizamos as questões que nos
parecem fundamentais para o entendimento do fato da CPLP não ter se
consolidado como um espaço comunitário de peso internacional – dentre elas,
o relativo desinteresse do Brasil e dos Países Africanos por seu destino -,
apesar dos esforços portugueses para que isto ocorresse.
No capítulo 2, construímos um amplo painel sobre como se deu a
articulação do chamado Terceiro Império Português, na África, a partir das
últimas décadas do século XIX, dando ênfase ao período do Estado Novo,
quando o Império efetivamente se estrutura política e economicamente. Na
última parte do capítulo, discutimos o processo de descolonização desse
Império e os seus impactos sobre a sociedade portuguesa. Além disto,
procuramos analisar alguns mitos políticos portugueses que foram trabalhados,
principalmente, durante o período salazarista como o de “Portugal uno e
indivisível, do Minho ao Timor” e o do “Destino Imperial” português. Esta
discussão é fundamental para o entendimento da permanência, através de
constantes releituras, destes mitos até os dias atuais, quando aparecem como
“fantasmas” rondando o discurso da lusofonia.
Já no capítulo 3, buscamos aprofundar algumas questões
levantadas no capítulo 1, procurando mostrar como, a partir da década de
1980, construiu-se em Portugal a idéia da lusofonia. Isto ocorreu dentro de um
determinado contexto político – o da concretização da entrada de Portugal na
UE e o da hegemonia política do Partido Socialista -, em que os setores que
19
assumem esta idéia são os mesmos que, no passado, criticaram a política
colonialista do Estado Novo. Desta forma, são “redescobertas” em Portugal as
idéias de Gilberto Freyre sobre o lusotropicalismo que, ironicamente, vão servir
de cimento ideológico para a lusofonia o que aproxima, através do discurso, a
esquerda democrática e a velha direita portuguesa. Também discutimos de
que forma as idéias de outros intelectuais, em especial as de Agostinho da
Silva, serão utilizadas para legitimar a Comunidade de Países de Língua
Portuguesa, então em fase de estruturação. Já em sua parte final, procuramos
apresentar as vozes dissonantes em relação ao consenso em torno da
lusofonia em Portugal. Mesmo apresentando as opiniões de alguns autores
brasileiros e africanos, a ênfase maior é dada às visões críticas formuladas por
intelectuais portugueses, com especial destaque para a análise de duas obras
que consideramos essenciais: A Nau de Ícaro e Imagem ou Miragem da
Lusofonia (1999), de Eduardo Lourenço e A Lusofonia e os Lusófonos: Novos
Mitos Portugueses (2000), de Alfredo Margarido. Nestas obras, enquanto
Lourenço apresenta algumas críticas pontuais em relação ao discurso lusófono
e expõe algumas dúvidas em relação ao futuro da Comunidade de Países de
Língua Portuguesa, Margarido se propõe a desconstruir os mitos sobre os
quais se assentam a Comunidade e a própria idéia de lusofonia.
Capítulo I A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP: História e Perspectivas.
Em julho de 1996, os Chefes de Estado e de Governo dos sete países
que então adotavam o português como idioma oficial, reunidos na Cidade de
Lisboa, criaram oficialmente a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa,
aprovando a sua Declaração Constitutiva e os seus Estatutos. Esta
organização internacional formada, inicialmente, por Portugal, Brasil e pelos
cinco Estados Africanos de Língua Portuguesa (Angola, Moçambique, Guiné-
Bissau, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe)20 tem, nos termos de seus
estatutos, o papel de ser “o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento
da amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação entre
seus membros”, tendo dentre os seus objetivos centrais a busca da articulação
entre seus Estados-membros nas relações internacionais e a materialização de
projetos de promoção e difusão da Língua Portuguesa no mundo21.
A idéia da criação de uma “Comunidade Lusófona” (ou “Comunidade
Lusíada”) remonta, pelo menos aos anos 50 do século XX, aparecendo – com
maior ou menor intensidade – nas obras de intelectuais brasileiros e
portugueses de diversos matizes ideológicos como Gilberto Freyre, Joaquim
Barradas de Carvalho, Adriano Moreira, Agostinho da Silva e Darcy Ribeiro22.
Ao longo das últimas cinco décadas, tal Comunidade tornou-se um tema
recorrente no discurso de políticos e intelectuais brasileiros e, principalmente,
20 Atualmente a organização conta com um oitavo Estado-membro, o Timor Lorosae. 21 CPLP. Estatutos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Disponível em: www.cplp.org. 22 O então Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, em uma entrevista ao jornal português Diário de Notícias (12 de julho de 1995) também faz referência a Sílvio Romero (1851-1914) como um dos precursores da idéia dessa Comunidade.
21
portugueses, reaparecendo constantemente em diferentes conjunturas. No
entanto, a discussão sobre a sua constituição só ganha força, de fato, na
década de 1980, quando em Portugal começa a se ensaiar um “retorno ao
Atlântico”, depois de uma década em que a integração à Europa foi a
preocupação central.
Assim, os primeiros passos para a criação da CPLP foram dados em
novembro de 1989 durante a primeira reunião dos Chefes de Estado e de
Governo dos países de língua portuguesa, ocorrida em São Luís do Maranhão,
que, do ponto de vista das realizações concretas, definiu a criação do Instituto
Internacional da Língua Portuguesa (IILP), destinado a promover a Língua
Portuguesa no mundo, e que funcionou como uma espécie de embrião da
futura CPLP.23 Já na década de 1990, uma figura que começa a ganhar
destaque neste processo é a de José Aparecido de Oliveira24, nomeado em
1993, pelo então Presidente Itamar Franco, como embaixador do Brasil, em
Lisboa. Antigo entusiasta da idéia da “Comunidade Lusófona”, José Aparecido
possuía um excelente trânsito junto a amplos setores da intelectualidade
brasileira e portuguesa das mais variadas tendências políticas e ideológicas e
via nesse cargo uma oportunidade ímpar para tentar levar avante o projeto de
construção do que viria a ser a CPLP. Por outro lado, em Portugal – como
23 Nas palavras do Embaixador José Aparecido de Oliveira “não há dúvida nenhuma que foi um ato de rara importância até porque daí resultou este ato maior que é a institucionalização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”. In: BRAGA, José Alberto (Coord.). op. cit., p.47. 24 José Aparecido de Oliveira, político mineiro nascido em 1929, ocupou diversos cargos ao longo de sua carreira tendo sido Deputado Federal, Secretário Particular da Presidência da República durante o governo Jânio Quadros (1961) e Ministro da Cultura (1988-1990) durante o governo José Sarney, dentre outros. Durante o governo Itamar Franco (1992-1994), ocupou a embaixada brasileira em Lisboa, destacando-se como um dos principais articuladores da CPLP e do projeto de unificação ortográfica da língua portuguesa, ambos projetos-chaves dentro da proposta da lusofonia. Ver: BRAGA, José Alberto (Coord.).José Aparecido: o homem que cravou uma lança na lua. Lisboa: Trinova Editora, 1999 e ABREU, Alzira Alves de et alli. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro Pós-1930. Segunda edição revista e atualizada. Vol. 1. Rio de Janeiro, Editora da FGV, 2001.
22
analisaremos posteriormente -, as condições políticas internas e externas
tinham criado condições favoráveis para que a idéia da Comunidade
aglutinasse o apoio de amplos setores da sociedade portuguesa e,
estrategicamente para estes setores, o fato do embaixador brasileiro levantar
esta bandeira entusiasticamente, por si só, já dava mais legitimidade para a
consecução deste projeto, até então essencialmente português25. Desta forma,
o Embaixador José Aparecido assume o papel de principal articulador da
CPLP, iniciando uma série de viagens aos países africanos de língua
portuguesa em busca de adesões para o projeto de constituição desse espaço
comunitário.
É interessante notar que a maior parte dos analistas considera que, no
âmbito da política externa brasileira, este empenho pela criação da CPLP, teria
sido muito mais uma iniciativa isolada do Embaixador brasileiro em Portugal, do
que uma ação efetiva do Estado brasileiro26, uma vez que, desde o início da
década de 1990, as opções preferenciais da política externa brasileira vinham
sendo a aproximação com os países do chamado “Primeiro Mundo” e os
esforços pela integração latino-americana, através da criação do MERCOSUL.
Esta tendência fez com que a “dimensão atlântica” da nossa política externa
fosse tendo um papel cada vez mais reduzido nas preocupações do Itamaraty
25 Em um livro-homenagem a José Aparecido, editado em 1999, esta questão fica clara em alguns depoimentos dados por intelectuais portugueses, dentre os quais destacamos o de Adriano Moreira, respeitado intelectual e político, que havia feito parte do setor mais “liberal” do regime salazarista: “O projeto de elaborar uma nova cooperação pelo consentimento de todos os Estados unidos pela língua portuguesa teve mais de um pregador e defensor no passado, mas foi o Embaixador José Aparecido de Oliveira quem, usando da sua experiência, da sua autoridade, da sua devoção conseguiu programar, mobilizar as adesões, reunir as capacidades e levar à final a criação da Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa”. In: BRAGA, José Alberto (Coord.). José Aparecido: o homem que cravou uma lança na lua. op. cit., p. 145-146. 26 Sobre esta questão ver a excelente análise de José Flávio Sombra Saraiva In: O lugar da África: a dimensão atlântica da política externa brasileira (de 1946 aos nossos dias). Brasília: Editora da UnB, 1996, p. 217-239. Tal opinião foi reiterada pelo jornalista Márcio Moreira Alves, veterano conhecedor dos assuntos portugueses em entrevista a mim concedida em 01 de março de 2001.
23
– ao contrário das décadas de 1960 e 1970, no período situado entre a Política
Externa Independente, de Jânio Quadros e João Goulart, e o Pragmatismo
Responsável, do governo Geisel27 - e que os países africanos (incluindo as ex-
colônias portuguesas) passassem a ser vistos como preocupações
absolutamente secundárias, com exceção de algumas parcerias seletivas,
feitas por critérios essencialmente econômicos, como a África do Sul, a Nigéria
e, em menor intensidade, Angola. Portanto, nesta perspectiva a constituição da
CPLP, com certeza, não aparecia entre as grandes prioridades do Itamaraty.
A partir dos esforços de José Aparecido, ocorre em Brasília, no mês de
fevereiro de 1994, a Primeira Reunião dos Ministros das Relações Exteriores e
dos Negócios Estrangeiros dos Países de Língua Portuguesa, a qual propõe a
realização de uma Cimeira dos Chefes de Estado e de Governo de seus países
visando à constituição da Comunidade. Depois de sucessivos adiamentos, a
referida Cimeira acaba ocorrendo entre os dias 16 e 17 de julho de 1996, em
Lisboa. Nesse encontro, a CPLP é oficialmente criada e os seus documentos-
fundadores – a Declaração Constitutiva da Comunidade e os seus Estatutos –,
que já haviam sido previamente acordados em reuniões preliminares ocorridas
entre representantes dos sete países nos dois anos anteriores, são aprovados.
27 A Política Externa Independente posta em prática pelos chanceleres Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas defendia uma posição de “neutralidade” na Guerra Fria, partindo do pressuposto de que o grande conflito da ordem mundial não era mais o Leste-Oeste, mas sim o Norte-Sul. Desta forma, o Brasil desloca-se da área de influência norte-americana para uma postura mais terceiro-mundista. Isto faz com que, dentre outras coisas, o país inicie uma abertura para a África, assumindo, inclusive, um discurso crítico em relação ao colonialismo português, rompendo com a velha lógica da “fraternidade luso-brasileira”. Já o “Pragmatismo Responsável” aprofundou a política de “não-alinhamento automático” com os EUA, implementada durante o governo Médici (que se diferenciava da política pró-americana dos dois primeiros governos militares), e buscou a mundialização das Relações Exteriores do Brasil, sem levar em conta critérios ideológicos, mas sim a busca do desenvolvimento nacional. Nesta perspectiva, o Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, mesmo com ela tendo sido feita pelo MPLA (Movimento pela Libertação de Angola), de orientação socialista. Sobre estas questões ver: CERVO, Amado & BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. São Paulo, Ática, 1992; VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro. Porto Alegre, Editora da UFRGS,1998 e RODRIGUES, José Honório. Interesse nacional e política externa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
24
Além disto, ao final do Encontro, é divulgada uma comunicação conjunta que
expõe de forma sucinta aqueles que seriam os objetivos e os ideais
norteadores da CPLP e que, em vários trechos, apresenta de forma clara
aquilo que podemos chamar de “discurso da lusofonia”:
Os Chefes de Estado e de Governo reafirmaram a
sua determinação e empenho em que a
Comunidade, que tem na Língua Portuguesa um
patrimônio histórico comum, seja dotada de
mecanismos e instrumentos que, reforçando os
vínculos seculares que os unem, valorize também
a sua ação externa ao serviço dos valores da Paz,
da Democracia, do Estado de Direito, dos Direitos
Humanos, do Desenvolvimento e da Justiça
Social.28
No entanto, apesar dos discursos entusiasmados saudando a nova
organização, a CPLP e o ideal da unidade lusófona têm ficado muito mais no
campo das boas intenções do que no das realizações práticas nestes últimos
anos, visto que de seus Estados-membros somente Portugal tem investido
seriamente em sua construção; para os demais, esta questão tem sido
absolutamente secundária, quando não esquecida pelos formuladores de suas
políticas externas.
Desta forma, nos parece necessário, neste momento, fazer uma breve
reflexão sobre as perspectivas da Comunidade, a partir da ótica de seus
principais atores, dando ênfase a algumas questões como o relativo
desinteresse do Brasil e dos demais membros – os PALOP (Países Africanos
de Língua Oficial Portuguesa) e o Timor Leste - por seus destinos, bem como
28 CPLP. “Comunicado Final da Cimeira Constitutiva da CPLP”. In. SARAIVA, José Flávio Sombra (Org.). CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Brasília, IBRI, 2001, p.189-192.
25
os motivos que fazem com que ela seja, até o momento, um projeto
essencialmente português.
1.1. Portugal e a construção do “Espaço da Lusofonia”.
Sob a ótica portuguesa29, não é exagero afirmar que a CPLP possui
importância, até certo ponto, bastante significativa para a inserção do país na
ordem internacional que começou a se estruturar no final década de 1980, e é
tida como prioritária na formulação da política externa portuguesa. Esta política
tem sido definida a partir de duas opções estratégicas:
1- A consolidação da participação de Portugal na União Européia (UE),
utilizando essa posição para redefinir o seu papel no mundo
contemporâneo;
2- O investimento na construção de uma Comunidade Lusófona,
potencializando o espaço da Língua Portuguesa.
Estas duas opções que, durante muito tempo, pareciam excludentes, hoje
se apresentam como complementares, pois o fato de pertencer à Europa cria
para Portugal condições extremamente favoráveis para a articulação deste que
seria o “espaço da Lusofonia”, visto que a construção da CPLP poderia
fortalecer – pelo menos na opinião de alguns intelectuais e/ou homens de
Estado portugueses – a posição de Portugal dentro da Europa, fazendo com
29 Nesta parte do trabalho, procurarei discutir de que forma os formuladores e/ou analistas da política externa portuguesa encaram a importância (ou não) da CPLP, dentro do âmbito desta política, analisando os movimentos do Estado português em relação ao processo de constituição e consolidação da Comunidade. Nos itens seguintes deste capítulo, a mesma coisa será feita em relação à posição brasileira e dos demais Estados de língua portuguesa.
26
que ele retomasse, de certa forma, o seu mítico papel – tão caro ao imaginário
popular português – de “ponte entre dois mundos”.
Porém, antes deste “retorno ao Atlântico” marcou sua política externa
desde o final dos anos 80 do século XX, Portugal pareceu tentar enterrar o seu
passado de nação colonial: os anos que se seguiram à descolonização da
África Portuguesa, em meados da década de 1970, são marcados por um
grande desinteresse da velha metrópole em relação à suas ex-colônias, como
bem assinala David Birmingham, “depois da revolução, Portugal não tinha
aspirações sérias a restaurar a sua posição em África à maneira do império
‘neocolonial’ francês. Uma amnésia nacional profunda cobriu quase tudo que
se relacionava com a África (...)”30. Naquele momento, o “Estado português
consumou uma opção política e econômica de fundo”,31 que era a de buscar a
integração à Europa a todo custo32.
Nesse contexto, as antigas colônias africanas são praticamente
esquecidas, e, embora continuassem a ser mencionadas nos meios de
comunicação “sua realidade pouca influência tinha na ação política e a geração
que lutara no mato atirava para trás as recordações, com uma amargura
reprimida, enquanto os jovens fingiam nada saber de África”.33 Do ponto de
vista econômico, as relações entre Portugal e os PALOP também refletiam este
30 BIRMINGHAM, David. História de Portugal: uma perspectiva mundial. Lisboa, Terramar, 1998, p. 234. 31 MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – Portugal em Transe (Vol. 8). Lisboa, Editorial Estampa, 1994, p. 150. 32 Podemos relativizar um pouco este “virar de costas” para a África, quando se leva em consideração as profundas dificuldades políticas e econômicas que Portugal enfrentou após o 25 de Abril. Desta forma, o “esquecimento” da África não teria se dado somente pela vontade de deixar o passado colonial para trás, mas também pela própria situação de Portugal que impedia relações mais intensas com suas ex-colônias. Por outro lado, mesmo com a África tornando-se secundária para a política externa portuguesa, é importante ressaltar que, nos anos seguintes às independências, diversos profissionais portugueses, remunerados por seu governo, foram para os PALOP para ajudar na construção daqueles novos Estados. Portanto, o “abandono” dos assuntos africanos não foi tão radical assim. 33 BIRMINGHAM, David. op. cit., p. 237.
27
desinteresse pela África, com os números do comércio entre eles sendo
mantidos em níveis bastante modestos, como se pode ver pelo seguinte
quadro:
O comércio de Portugal com os PALOP depois de 197334
Ano Importações Exportações
1973 9,7% 14,6%
1976 2,3% 4,9%
1983 0,5% 4,5%
O Brasil, a esta altura, era como se fizesse parte de um passado remoto.
O antigo (e mítico) “sonho imperial” português parecia ter ficado para trás,
como uma vaga e nostálgica lembrança, em meio à euforia gerada pela nova
condição de “ser Europa”.
Assim, é somente no final da década de 1980, com a integração à Europa
praticamente concretizada, Portugal ensaia um retorno a uma “política
atlântica”, desta vez dentro de novos parâmetros, procurando estabelecer com
suas ex-colônias uma nova relação baseada na língua, na civilização e na
cultura Com isso, retoma-se a antiga idéia da “Comunidade lusófona”, pois
conforme expressou Mário Soares, Presidente de Portugal, em 1990, quando
declarou que era “hora de regressar à África”.35 Com a integração de Portugal à
UE, essa comunidade adquire também dimensões políticas e econômicas,
como já destacava Agostinho da Silva, uma espécie de “pai-fundador” da
Comunidade, ao afirmar, em 1986, que o “importante é que as raízes comuns 34 CAHEN, Michel. “Le Portugal et l’Afrique: le cas des relations luso-mozambicaines (1965-1985)”. Afrique contemporaine, Janeiro-Fevereiro-Março 1986, p. 1-55 apud ENDERS, Armelle. História da África Lusófona. Mem Martins, Editorial Inquérito, 1997, p. 128. 35 ENDERS, Armelle. Idem. p. 128.
28
se mantêm; agora, que tudo mudou, é que se vai fazer o relacionamento,
através, sobretudo das ligações econômicas”, ressaltando também a
importância desta comunidade “para a posição de Portugal na CEE e para a
modificação de bastante coisas na Europa”.36 É nesse contexto que devemos
entender os esforços portugueses pela criação de uma Comunidade de Países
de Língua Portuguesa.
É bem verdade que no início daquela década, essa idéia já estava sendo
colocada, como se pode notar, por exemplo, no discurso do então Ministro dos
Negócios Estrangeiros de Portugal, Jaime Gama, durante uma visita a Cabo
Verde, em 1983:
O processo mais adequado para tornar consistente
e descentralizar o diálogo tricontinental dos sete
países de língua portuguesa espalhados por África,
Europa e América seria realizar cimeiras rotativas
bienais de Chefes de Estado ou Governo,
promover encontros anuais de Ministros de
Negócios Estrangeiros, efetivar consultas políticas
freqüentes entre diretores políticos e encontros
regulares de representantes na ONU ou em outras
organizações internacionais, bem como avançar
com a constituição de um grupo de língua
portuguesa no seio da União Interparlamentar.37
No entanto, nesse momento, a construção de uma Comunidade Lusófona
estava muito mais - por todas as questões levantadas anteriormente – no
campo da retórica, do que no das possibilidades práticas.
É importante ressaltar que desde antes da Revolução dos Cravos (1974) e
do processo de descolonização do Império Português que se seguiu à ela ,
36 BRAGA, José Alberto (Coord.). op. cit., p. 30-31. 37 CPLP – A HISTÓRIA. Disponível em: www.cplp.org.
29
discutia-se qual deveria ser o caminho de Portugal: a Europa ou o Atlântico. A
“opção européia”, que se concretiza a partir de 1976, apresenta para Portugal
novas possibilidades de desenvolvimento e de redefinição de sua inserção
internacional. Porém, apesar de integrado a um dos centros do sistema
capitalista e de, efetivamente, ter havido uma evolução dos indicadores
econômicos e sociais do país, a posição de Portugal – sob qualquer ângulo que
se olhe - continua sendo a de um país periférico dentro do sistema:
Pensando-se a inserção internacional do país a partir da perspectiva da
distribuição internacional do poder e entendendo que “a dinâmica das relações
internacionais é ditada pela lógica da maximização de poder por parte dos
Estados” 38, Portugal, mesmo integrado à Europa, continua a ser uma “pequena
potência”, com um território reduzido, população modesta, baixo
desenvolvimento tecnológico e escassos recursos naturais, enfim, um Estado,
segundo a definição de Aron, com pouquíssima capacidade de impor sua
vontade ou de exercer influência política sobre os demais.39
Portanto, a redefinição do papel internacional de Portugal passa,
necessariamente, pela capacidade do Estado português de utilizar em seu
favor algumas possibilidades que a ordem internacional lhe apresenta ou,
utilizando os conceitos desenvolvidos por Renouvin e Duroselle, saber lidar
com as “forças profundas” que determinam as relações internacionais.40 Desta
maneira, o que ele tem a seu favor, além de uma posição geográfico-
38 GONÇALVES, Williams. “O Campo Teórico das Relações Internacionais”. In: BRIGAGÃO, Clóvis (Org.). Estratégias de Negociação Internacional – Uma Visão Brasileira. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2001, p. 97. 39 ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. 2o edição, Brasília, Editora da UnB, 1986, p. 100. 40 RENOUVIN, Pierre e DUROSELLE, Jean-Baptiste. Introdução à História das Relações Internacionais. São Paulo, DIFEL, 1967. Ao longo desta obra clássica, os autores analisam as “forças profundas” que determinam as relações internacionais e a ação diplomática dos Estados, bem como a maneira como os Homens-de-Estado (e o próprio Estado) podem lidar com as mesmas e utilizá-las em seu favor.
30
estratégica privilegiada, são as possibilidades que a integração à União
Européia - articulada com as suas ligações históricas e culturais com os países
lusófonos do Atlântico do Sul - lhe proporciona de renegociar o seu papel no
Sistema Internacional. Nessa perspectiva, dentro da estratégia de atuação do
Estado Português na cena internacional, a sua participação no espaço
comunitário europeu e a implementação de uma “política atlântica”, com a
construção de um “espaço da Língua Portuguesa” não são excludentes – como
se polemizava até a década de 1970 – ao contrário, são complementares.
Assim, para Portugal, a lusofonia “não é uma idéia alternativa à idéia de
Europa, nem o projeto lusófono existe para ser um projeto alternativo ao projeto
europeu”41, mas algo que apresenta importância estratégica, em todos os seus
aspectos – políticos, econômicos, culturais - para Portugal “afirmar a sua
presença no diálogo internacional e deixar de ser um mero Estado-cliente”.42
Do ponto de vista ideológico, a constituição da CPLP passa pelo discurso
calcado na idéia de uma “herança cultural comum” que enfatiza os laços
históricos que unem os países que a compõe, destacando a questão identitária,
na qual a Língua Portuguesa adquire um papel fundamental. Com isto, dentro
da estratégia de atuação do Estado português, é necessário que a Língua
Portuguesa consolide-se como a quinta ou sexta língua mundial, impedindo
que o espanhol torne-se o único idioma representativo da cultura ibero-latino-
americana, reforçando assim o papel de Portugal no cenário internacional:
41 MENDES, Luís Marques. “Que Desafios Estratégicos para Portugal, no Virar do Milênio”. In: Lusíada – Revista de Ciência e Cultura – Série de Relações Internacionais (01). Porto, Universidade Lusíada do Porto, 2000, p. 140. 42 FERNANDES, Antônio José. “Portugal e o Sistema Mundial de Poderes”. In: Lusíada – Revista de Ciência e Cultura – Série de Relações Internacionais(01). Porto, Universidade Lusíada do Porto, 2000, p. 38.
31
Vista pelo ângulo dos portugueses, não se pode
deixar de aceitar a questão da unidade lingüística
com Brasil e África como crucial, pois é aí que
podem manobrar com o peso dos grandes
números - e com a possibilidade de se impor em
todo o globo como uma da meia-dúzia de línguas
de cultura.43
Em seus aspectos econômicos, a CPLP oferece, a Portugal, a
possibilidade de servir de intermediário entre a Europa e os países de Língua
Portuguesa, funcionando também como uma ponte entre a UE e os organismos
e/ou blocos regionais a que os países lusófonos encontram-se integrados como
o MERCOSUL e a SADCC (Conferência de Coordenação para o
Desenvolvimento da África Austral). Dentro desta perspectiva, as relações
econômicas entre Portugal e os outros Estados-membros da CPLP têm se
intensificado, como se comprova pelo fato de Portugal ser, atualmente, o sexto
maior investidor estrangeiro no Brasil, com o total de investimentos em nosso
país representando cerca de um terço de todo o investimento português no
estrangeiro, a partir de 1996.44 Em relação aos PALOP, os investimentos
portugueses também aumentaram consideravelmente, a partir dos anos 90,
com as empresas portuguesas aproveitando as possibilidades que a integração
à Europa lhes oferece:
Os investimentos de Portugal nos Cinco cresceram
consideravelmente nos últimos anos, devido,
principalmente a integração européia, que
possibilitou às empresas portuguesas o acesso aos
mecanismos previstos nas Convenções de Lomé; o
43 GALVÃO, Walnice Nogueira. Desconversas (Ensaios Críticos). Rio de Janeiro, Editora da UFRJ, 1998, p. 199. 44 CERVO, Amado e MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das Caravelas: as Relações entre Portugal e Brasil (1808-2000). Brasília, IBRI/Editora da UnB, 2000, p. 340.
32
surgimento de mecanismos e entidades
especificamente orientados para fomentar os
investimentos de empresas nacionais no
estrangeiro; linhas e seguros de créditos,
sociedade de capitais de risco, o Programa de
Apoio à Internacionalização das Empresas
Portuguesas(PAIEP) e a criação do Fundo para a
Cooperação Econômica.45
Este crescimento dos investimentos portugueses no mundo lusófono
apresenta, porém, dois problemas que devem ser considerados:
1- Esses investimentos estão sendo feitos, essencialmente, por empresas
privadas, dentro da lógica da economia capitalista e da internacionalização
do capital. A capacidade de investimentos do Estado português continua
reduzida, mesmo com a integração à Europa e, dessa forma, a sua
participação em projetos de desenvolvimento e cooperação com o mundo
lusófono – principalmente os PALOP – fica limitada;
2- Estas relações econômicas de Portugal com os países de Língua
Portuguesa têm sido travadas muito mais no âmbito das relações bilaterais
com o Brasil e com os PALOP, do que dentro do espaço comunitário que a
CPLP poderia proporcionar. Assim se, sob o ângulo português, a criação
da CPLP foi um acontecimento histórico, “a sua existência tem sido uma
assinalável frustração”.46
45 SOBRINHO, Pedro da Silva Feijó. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Institucionalização e relações culturais, político-diplomáticas e econômicas. Rio de Janeiro, Revan, 1997, p. 102. 46 MENDES, Luís Marques. op. cit., p. 141.
33
Em relação à perspectiva de assumir um papel de “intermediário” entre a
UE e a CPLP, Portugal esbarra nas limitações de seu papel secundário no
Sistema Internacional e dentro da própria UE, apesar da propalada igualdade
de status jurídico dos Estados signatários do Tratado de Maastricht. Dessa
forma, as principais potências européias como a Inglaterra, a Alemanha ou a
França, caso seja interessante para elas, podem perfeitamente atuar nas ex-
colônias portuguesas, sem recorrer à intermediação de Portugal. Sob certos
aspectos, isto já vem acontecendo, devido, fundamentalmente, à limitada
capacidade de investimentos do Estado português, como se pode ver pela
aproximação de ex-colônias portuguesas, como Guiné ou Moçambique, das
áreas de influência francesas ou britânicas, na perspectiva de conseguirem
recursos para seus projetos de desenvolvimento, como assinala Adriano
Moreira:
É assim que o Brasil não pode deixar de pertencer
ao MERCOSUL e disputa com a Argentina a
relação preferencial com os EUA, que Cabo Verde,
S. Tomé e Guiné foram atraídos para a Zona do
franco francês; que Angola não poderá furtar-se ao
grande espaço sonhado pela África do Sul; que
Moçambique entrou na Comunidade Britânica, que
Timor arrisca a integração traçada pela
Indonésia.47
Todos esses fatores limitam a intervenção de Portugal no cenário
internacional, fazendo com que as intenções do Estado português sejam
maiores do que a sua capacidade real de ação. Assim, mesmo alguns pontos
47 MOREIRA, Adriano. “Sobre o Conceito Estratégico Nacional”. In: Lusíada – Revista de Ciência e Cultura – Série de Relações Internacionais(01). Porto, Universidade Lusíada do Porto, 2000, p. 15. É importante ressaltar que, após 1998 – ano em que foi escrito este texto –, os desdobramentos dos acontecimentos no Timor-Leste apontam a entrada deste em uma esfera de influência australiana.
34
que no passado lhes foram favoráveis, como a posição geopolítica privilegiada
dos Açores, perderam parte de sua importância com o fim da Guerra Fria e
com a nova ordenação de forças do Sistema Internacional. Sob o aspecto
político-estratégico, resta a Portugal, utilizando a sua posição geográfica
favorável, a possibilidade de funcionar como elemento de ligação entre o
Atlântico-Norte e o Atlântico-Sul, dentro de uma política de segurança global:
(...) vista a proliferação de soberanias nas duas
margens do Atlântico Sul, e o inevitável
florescimento de políticas específicas, de cada
uma, aparece a necessidade de articular
formalmente a segurança desse mar com o
Atlântico Norte, e de novo o triângulo estratégico
(português) chama o país para a situação de
Estado de fronteira e articulação.48
Além disto, ele poderia funcionar, também, como elemento de
articulação entre a Europa e os EUA, no momento em que o continente
europeu, acelerando a busca da unidade política e assumindo uma política
externa e de segurança comum, “aprofundou a rivalidade nunca extinta com os
EUA dando vida à doutrina dos Dois Pilares dentro da Aliança Atlântica".49
Em vista disto, dentro de uma estratégia de aumentar sua capacidade de
ação no cenário internacional, o Estado português necessita incentivar a
utilização do espaço comunitário da CPLP, como local de ações econômicas e
políticas. Por isso, ele tem tido um grande empenho não só na construção
desse espaço comunitário, mas também na elaboração de uma política cultural
agressiva, expressa pela atuação do Instituto Camões, em todo o mundo, além
48 Idem. p. 17. 49 Idem.
35
articulação das comunidades portuguesas espalhadas por todos os
continentes. O Estado Português tem plena consciência de que para
renegociar o seu papel no Sistema Internacional - superando os limites a que,
historicamente, está submetido - necessita utilizar, de forma concreta, as
possibilidades geradas pelo seu pertencimento a uma Europa integrada, bem
como pela herança cultural que deixou espalhada pelo mundo durante o seu
período imperial. Assim, para Portugal, a constituição da CPLP, sob sua
hegemonia, adquire uma importância estratégica para definir o seu “lugar” no
mundo contemporâneo, podendo funcionar como “moeda de troca” e como
trunfo político, dentro da UE e dos outros organismos internacionais a que
pertence.
Sob esta perspectiva, o Estado português tem utilizado a “margem de
manobra” que a integração à Europa lhe propicia para articular o mundo
lusófono, “margem de manobra” esta que ele, isoladamente, não teria. Assim,
como escreveu Williams Gonçalves:
(...) explorando todas as oportunidades que o
pertencimento à União Européia lhe oferece,
Portugal tem buscado ocupar o lugar que, de
direito histórico, considera seu. Embora sem força
econômica suficiente para atuar como uma
verdadeira potência neocolonial, Portugal luta para
exercer a liderança da Comunidade”.50
Com tudo isso, podemos afirmar que a articulação da CPLP é um dos
aspectos fundamentais da política externa portuguesa nos últimos anos e que,
50 GONÇALVES, Williams. “Brasil e Portugal: Diplomacia e Política”. In: SANTOS, Gilda (Org.) Brasil e Portugal: 500 anos de enlaces e desenlaces – Revista Convergência Lusíada 17 (Número Especial). Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 2000, p. 401.
36
de certa forma – pensando a partir da reflexão de Eduardo Lourenço, quando
ele afirma que, através do “conceito ou idéia mágica da Lusofonia” os
portugueses sonham com a união do espaço da Língua Portuguesa para
“resistir melhor à pressão de outros espaços lingüísticos”, fazendo com que
isto seja, “para eles, razão mais do que suficiente para desejarem que exista,
com um esplendor real e onírico, comparável ao do Quinto Império pessoano,
a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”51 - ela traduz uma releitura,
sob nova perspectiva, do velho “sonho imperial” português.
1.2. O Brasil e a CPLP: o discurso e a prática.
Apesar dos esforços portugueses, a constituição da CPLP tem esbarrado
em algumas outras questões relacionadas não só a Portugal, mas aos outros
atores que dela fazem parte. Uma delas é que, para Portugal, a sua
hegemonia dentro da CPLP é uma espécie de “direito histórico”. O problema é
que, em uma Comunidade onde o elemento fundamental de identidade entre
seus membros é a Língua Portuguesa, não se pode ignorar que cerca de 80%
dos falantes deste idioma encontram-se em um único de seus Estados-
membros: o Brasil. Com isto, existe a possibilidade, temida por Portugal, de
que a CPLP gravite em torno de outro centro. Porém, até o momento, estes
temores acabam sendo infundados, pois no âmbito da sua linha de política
externa, o Brasil não tem demonstrado ter grandes pretensões de hegemonia
dentro da Comunidade, até por que, para o Itamaraty, a CPLP tem sido uma
questão absolutamente secundária, apesar de uma certa mudança na inflexão
da política externa brasileira em direção a uma maior aproximação com a Ásia
e a África, desde o início do governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003.
51 LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro. São Paulo, Cia. Das Letras, 2001, p. 166.
37
Por sinal, é importante que se faça uma breve análise de como tem sido a
atuação do Brasil no processo de construção da CPLP, pois de certa forma
esta (não) atuação tem contribuído sobremaneira para o retardamento da sua
consolidação no plano prático.
Como colocado anteriormente, a Política externa brasileira fez sua opção
preferencial - desde o início da década de 1990 - pelas relações com o
chamado “Primeiro Mundo”, por um lado, e pelos esforços de integração latino-
americana através da criação do MERCOSUL, por outro, dentro de uma
estratégia de inserção do país na economia globalizada, sob a égide do
neoliberalismo. Na opção feita pela “modernidade neoliberal” e pela abertura
indiscriminada ao capital internacional, a partir do governo Collor, não existiam
grandes espaços para a articulação do mundo lusófono, visto que para
“recolocar o país nos trilhos do desenvolvimento e da modernidade capitalista”,
o fundamental é o “relacionamento preferencial com as economias ocidentais
avançadas”.52 Dentre outras questões, este fato gerou a ausência de uma
Política Cultural por parte do governo brasileiro, que valorize a nossa língua e a
nossa cultura no exterior, como registra Walnice Nogueira Galvão:
A situação atual da cultura brasileira no exterior
dificilmente se poderia imaginar mais desastrosa.
Em declínio desde os anos 70, certamente a
política cultural, ou melhor, anticultural, de uma
recente presidência de infame memória acabou por
liquidá-la.53
52 Esta análise da visão de política externa do Governo Collor é feita por: SARAIVA, José Flávio Sombra. O Lugar da África – A dimensão atlântica da política externa brasileira (de 1946 a nossos dias). op. cit., p. 222. 53 GALVÃO, Walnice Nogueira. Desconversa (Ensaios Críticos). Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ, 1998, p.193.
38
Esta situação não sofreu grandes alterações no governo Fernando
Henrique Cardoso, em que a articulação do mundo lusófono e a formulação de
uma política cultural no exterior, continuaram sendo questões secundárias.
Apesar da existência de diversos interesses econômicos comuns entre o Brasil
e outros países da CPLP – principalmente Portugal e Angola -, o governo
brasileiro ao invés de priorizar o espaço comunitário, optou pelo
estabelecimento de relações bilaterais. Quanto a uma política cultural brasileira
no exterior recorremos, novamente, à Walnice Galvão que afirma que:
Nesse terremoto universal de fim de milênio, a
presença do Brasil na cena internacional
desapareceu. A anedota brasileira corrente de que
o Brasil ”caiu” no Quarto Mundo, ou de que saiu do
mapa, parece infelizmente ser mais que um jogo
de palavras.54
Assim, a CPLP que poderia funcionar, para o Brasil, como um espaço
privilegiado sob os pontos de vista político-diplomático e econômico, acaba
ficando muito mais no campo dos discursos e intenções do que no campo
prático:
A unidade da Lusofonia, tão cara aos portugueses,
interessa-nos por outras razões. E principalmente,
em termos crus de “Realpolitik”, por reiterar nossos
nexos com um país da CEE.55
Na perspectiva de Adriano Moreira, uma das preocupações fundamentais
dos pequenos Estados – e cremos que também de potências médias como o
Brasil – deve ser o pertencimento a diversos organismos internacionais, com
54 Idem. p. 195. 55 Idem. p. 200.
39
objetivo de “estar presente em todos os centros de decisão coletiva,
adestrando em tal sentido as representações, e usando o poder do número
com sabedoria”.56 Ora, indiscutivelmente o Brasil é o mais importante dos
Estados-membros do MERCOSUL e pode ser considerado uma potência
regional dentro da América Latina. Assim, para os defensores brasileiros da
CPLP, esta comunidade, do ponto de vista econômico, poderia funcionar como
um espaço de intermediação entre os blocos econômicos a que seus membros
pertencem, principalmente entre o MERCOSUL, a UE e a SADCC. Já sob o
ponto de vista político-estratégico, a CPLP poderia desempenhar um papel
fundamental na segurança do Atlântico Sul, em um momento em que as
questões econômicas, as quais tendiam a dar a tônica das relações
internacionais no século XXI, cedem espaços aos problemas da política e da
segurança global.
Sendo assim, via CPLP, o Brasil poderia formar com a África do Sul e
com Angola um triângulo estratégico no Atlântico Sul. No entanto, sob esta
perspectiva de análise, a ausência de um projeto nacional autônomo e as
vinculações aos interesses do capital internacional – ao longo de toda a
década de 1990 - fizeram com que o Estado brasileiro não priorizasse
questões fundamentais para uma estratégia de desenvolvimento nacional e de
renegociação de nosso papel no Sistema Internacional.
Desta forma, a “dimensão atlântica” da política externa brasileira teve o
seu papel cada vez mais diminuído, ao contrário das décadas de 1960 e 1970,
em que a África desempenhava um papel central na política desenvolvida pelo
56 MOREIRA, Adriano. op. cit., p. 19.
40
Itamaraty, principalmente durante a gestão do Ministro Gibson Barbosa, na
primeira metade da década de 1970:
Por esse mesmo tempo, acentuava-se a tendência
de aproximação com a África independente, pelo
crescente interesse que representava segundo as
informações acumuladas no Itamarati, como
parceiro econômico, político, cultural e histórico. As
trocas de visitas evidenciavam tais afinidades,
traindo aspirações mútuas de estreitamento.57
Dessa maneira, até o início do atual governo, a política africana no Brasil
foi perdendo importância, tendo sido adotada uma prática de opções seletivas
de parceiros naquele continente em que se destacam a Nigéria, a África do Sul
e, secundariamente, Angola58.Com isto, países como Moçambique, S. Tomé e
Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde, não representavam áreas de interesse
para o Brasil em África, o que esvaziava o papel que a CPLP poderia
representar no âmbito da política externa brasileira.
Portanto, se nos governos José Sarney e Itamar Franco, o governo
brasileiro ainda demonstrou algum empenho – muito mais devido à iniciativas
individuais como as do Embaixador José Aparecido de Oliveira – na
construção da CPLP, durante os oito anos da presidência de Fernando
Henrique Cardoso este empenho esteve muito mais nos discursos oficiais do
que em ações concretas, com o Brasil preferindo priorizar as relações
bilaterais com Portugal e Angola, do que investir na construção do espaço
comunitário. Tal desinteresse apareceu, pelo menos aos olhos de diversos
observadores, com a indicação de Dulce Maria Pereira para ocupar a
57 CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da Política Exterior do Brasil. op.cit., p. 379. 58 Ver a análise de José Sombra Saraiva In: SARAIVA, José Flávio. O Lugar da África. op. cit., p. 217-239.
41
Secretaria-Executiva da organização entre os anos de 2000 e 2002, indicação
esta que não foi muito bem recebida, principalmente em Portugal.
Nos quatro últimos anos com a chegada do Partido dos Trabalhadores e
de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência da República, a África e o mundo
não-desenvolvido voltaram a ser áreas de grande interesse para os
formuladores da política externa brasileira. Elegendo a luta pela reestruturação
da ONU (Organização das Nações Unidas) e a conseqüente obtenção pelo
Brasil de um assento permanente no Conselho de Segurança como uma de
suas prioridades, o governo brasileiro tem procurado obter apoio internacional
para esta reivindicação, principalmente junto aos chamados países pobres da
África, Ásia e América Latina. Além disto, o Brasil tem procurado assumir a
liderança desses países na luta por melhores condições no comércio – como
se pode ver em iniciativas como a criação do G-20 - e por uma ordem
internacional mais igualitária. No entanto, mais uma vez, dentro destes
projetos o espaço comunitário da CPLP não parece ser prioritário, com o
Itamaraty optando por dar continuidade à política de relações bilaterais ou de
alianças conjunturais em fóruns internacionais.
1.3. A CPLP na perspectiva de seus demais atores: Os PALOP e o Timor-
Leste.
Ao analisarmos as perspectivas dos PALOP em relação à CPLP, devemos
levar em consideração a existência de algumas dificuldades bastante claras
para a sua participação efetiva no processo de sua construção. Em primeiro
lugar, deve-se considerar que algumas feridas do período do colonialismo
ainda não se encontram completamente fechadas entre os povos africanos e,
por causa disto, a Comunidade é encarada com uma certa desconfiança por
42
setores das sociedades desses países, que vêem nela uma espécie de
“Império Colonial Português revisitado”. Estes setores encaram o discurso da
lusofonia como uma releitura do velho luso-tropicalismo de Gilberto Freyre,
que serviu de base ideológica para a dominação colonial portuguesa durante o
Estado Novo Salazarista:
Durante todo o período que antecedeu a criação da
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa –
CPLP (“inocentemente” chamada por várias vezes
Comunidade lusófona, lusofonia ou, pelos
saudosistas do império, Comunidade lusíada), a
par de posições mais esclarecidas, foram inúmeras
as declarações que explícita ou camufladamente
ressuscitaram o lusotropicalismo, aparentemente
sem sequer se darem conta do choque provocado
em alguns de seus parceiros africanos.59
Outra questão a se considerar é o fato – que não pode ser ignorado – de
que a participação destes países na Comunidade fica bastante limitada pelos
sérios problemas internos que eles enfrentam:
1- Em Angola - indiscutivelmente o mais importante dos PALOP, quer do
ponto de vista econômico, quer do ponto de vista geopolítico -, uma
guerra civil que durou 27 anos (1975-2002), sem contar os anos de luta
pela independência (iniciada em 1961), destruiu totalmente a economia
e a infra-estrutura física do país, além de deixar milhares de mortos e
mutilados de guerra, sem contar as cerca de 10 milhões de minas
terrestres plantadas pelos grupos beligerantes e que ainda hoje causam
59 NETO, Maria da Conceição. “Ideologias da Colonização de Angola”, In: Lusotopie 1997 – Lusotropicalisme: Ideólogies coloniales et identités nationales dans les mondes lusophones. Paris, Éditions Karthala, 1997, p. 329.
43
vítimas e são motivos de preocupação para o governo e a população.
Nos últimos anos, apesar dos avanços políticos – com o
estabelecimento de uma democracia pluripartidária e do fim da guerra
civil – e econômicos – com o restabelecimento gradual das atividades
agrícolas e a crescente exploração de petróleo -, boa parte do país
ainda permanece destruída e os problemas sociais são gravíssimos: o
índice de analfabetismo é superior a 60% da população, o desemprego
está na faixa de 60% da PEA, cerca de 67% da população vive abaixo
da linha da pobreza e o IDH do país é um dos mais baixos do mundo
(Angola, em 2002, ocupava o 1460 lugar na tabela deste índice).
2- A Guiné-Bissau - local onde a luta anti-colonialista foi mais intensa
dentro do Império Português e berço de Amílcar Cabral, fundador do
PAIGC e um dos mais brilhantes pensadores políticos africanos - vive
há mais de uma década, uma sucessão de crises políticas marcadas por
golpes de Estado, guerras civis e intervenções militares, que geram
grande instabilidade nesse pequeno país, agravando ainda mais os
problemas sociais nele existentes. Desde o fim do regime de partido
único, em 1991, e da realização de eleições pluripartidárias, em 1994,
nenhuma força política conseguiu uma hegemonia clara no país, tendo
como agravante o fato do outrora poderoso PAIGC ter se tornado a
terceira força política do país, aumentando as tensões na Guiné-Bissau,
principalmente a partir de 1998. De economia predominantemente
agrícola e com escassos recursos naturais, a Guiné-Bissau possui uma
das rendas per capita mais baixas do mundo e entre os efeitos das
crises e guerras civis estão a redução do PIB em 28% em relação ao
44
ano de 1997. Atualmente, a CPLP e outras organizações como a União
Africana têm procurado mediar o conflito, negociando com os lados
beligerantes e buscando uma solução consensual, como se fez em
outubro de 2004, quando foi negociado um acordo de paz entre o
governo guineense e soldados amotinados. No entanto, a estabilidade
política e a paz interna ainda estão longe de serem alcançadas.
3- Moçambique, na costa oriental da África, também enfrentou 16 anos de
guerra civil encerrados no início da década de 1990, após a aprovação
de uma constituição que acabava com o regime de partido único,
existente desde a independência em 1975, e que promovia a abertura
econômica do país, dando fim a uma frustrada experiência socializante.
No entanto, esta abertura econômica e a conseqüente aproximação com
o ocidente – inclusive com a aplicação de ajustes estruturais, no final da
década de 1980, nos ditames do BIRD e do FMI – não trouxeram
melhorias significativas nas condições de vida da população
moçambicana. Embora, com o fim da guerra civil, as populações
camponesas – cerca de 80 por cento da população total – tenham
podido regressar às suas terras e ao seu trabalho, a situação ficou longe
da normalidade visto que, da mesma forma que em Angola, boa parte
dos campos ainda se encontra minada - calcula-se que cerca de dois
milhões de minas foram colocadas em solo moçambicano. Além disto, a
reconversão à vida civil dos grupos combatentes fez com que
aumentasse enormemente o banditismo e a criminalidade.60 Assim,
apesar de possuir grandes recursos naturais, Moçambique possui
60 ENDERS, Armelle. op.cit., p. 120.
45
indicadores sociais extremamente negativos, com 2/3 da população de
cerca de 17 milhões de habitantes vivendo abaixo da linha da pobreza.
4- São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, os dois menores Estados africanos
que fazem parte da CPLP, comungam da maior parte dos problemas
das demais ex-colônias portuguesas, porém com menor instabilidade
política e melhores indicadores econômicos, tanto no caso de São Tomé
– que tem um potencial petrolífero bastante significativo que começou a
ser explorado no final da década de 1990, através do estabelecimento
de joint-ventures entre o governo e empresas petrolíferas norte-
americanas - quanto no de Cabo Verde, devido ao seu potencial turístico
e a sua posição geográfica estratégica entre a África e a América. No
entanto, o IDH desses países, apesar de melhores que os de boa parte
dos demais países africanos, permanece em níveis bastante
insatisfatórios. Cabo Verde enfrenta, ainda, o problema da excessiva
dependência externa devido à escassez de água e terras aráveis, o que
fazia com que, na década de 1980, cerca de 90% dos alimentos
consumidos no país fossem importados. Desta forma, a economia do
país se mantém graças à ajuda externa – que já chegou a representar
metade do PIB de Cabo Verde – e das remessas dos emigrantes, que
se refletem principalmente no setor da construção civil.
Este quadro deixa claro que o principal interesse dos PALOP é o
estabelecimento de parcerias internacionais que lhes permitam buscar o
desenvolvimento econômico e a resolução de seus graves problemas sociais.
Neste aspecto, a participação na CPLP não apresenta nenhum atrativo
46
especial para estes países, visto que o seu principal ator – Portugal – tem uma
capacidade de investimento bastante reduzida se comparada com a de outros
países da União Européia ou com os EUA, de quem os PALOP têm se
aproximado em busca de parcerias estratégicas. É neste contexto que
devemos entender o movimento de ingresso de Moçambique na British
Commonwealth, em 1995, e de aproximação, inclusive do ponto de vista
cultural, da Guiné-Bissau em relação à África Francófona.
Se Portugal, que se constitui no principal ator da Comunidade e a parte
mais interessada na consolidação da mesma, não tem condições materiais
(apesar de suas grandes pretensões) de fornecer a cooperação requerida
pelos PALOP, o outro grande ator da CPLP – o Brasil – não a tem como
prioridade além de também não possuir grandes condições de investir na
África, como desejam e necessitam esses paises. Dessa maneira, o Brasil tem
adotado uma política de investimentos seletivos na região, através do
estabelecimento de parcerias pontuais, motivados por interesses econômicos
ou políticos - como a recente busca por apoio para a obtenção de um assento
permanente no conselho de segurança da ONU – dos quais pode se citar a
liberação de U$ 650 mil para programas de cooperação econômica e social
com São Tomé e Príncipe, durante a quinta Cimeira dos Chefes de Estado e
Governo da CPLP realizada naquele país, em julho de 2004. Assim, a
esperança de consolidação da CPLP pelo viés econômico, expressa por
Agostinho da Silva61, em meados da década de 1980, ou mesmo por
documentos oficiais de Estados-membros da Comunidade parece estar longe
de se concretizar.
61 Ver a nota 36.
47
Outros aspectos que devem ser levados em conta são aqueles que
envolvem questões identitárias e culturais bastante importantes como, por
exemplo, o fato de que em boa parte dos PALOP a Língua Portuguesa é
menos falada do que as línguas “crioulas” ou de origem africana – só em
Moçambique existem mais de trinta línguas e o português é a língua materna
de somente 5% da população. Além disso, a aproximação econômica com
países de outras esferas lingüísticas – como, por exemplo, Moçambique em
relação ao mundo anglófono ou Guiné-Bissau e Cabo Verde com o francófono
– faz com que a língua portuguesa venha perdendo espaço nesses países:
No sul de Moçambique, por exemplo, o inglês
exerce uma forte atração. Na Guiné-Bissau, o
francês ganha terreno graças à televisão. Na
terceira cimeira da francofonia em Dacar (1989) a
Guiné-Bissau decidiu fazer do francês a sua
segunda língua oficial, enquanto Angola, de que
uma parte do escol exilado no Zaire fez os seus
estudos nessa língua, seguia os debates.62
Assim, se consideramos a língua um elemento de fundamental
importância para a construção de identidades nacionais – na perspectiva de
algumas das definições clássicas da teoria política sobre a idéia de nação63 -
62 ENDERS, Armelle. op.cit., p 129. Na tradução portuguesa desta obra, por mim utilizada, foram colocadas pelo tradutor notas de rodapé que questionam estas afirmações. No entanto, outras fontes mencionam esta perda de espaço da língua portuguesa nos PALOP, como por exemplo: SOBRINHO, Pedro da Silva Feijó. op. cit., p. 58 ou MOREIRA, Adriano (ver nota 47). 63 Hoje esta visão praticamente não encontra eco, pois como assinala Francesco Rossollilo “(...) muitas Nações são plurilingües e que muitas línguas são faladas em várias Nações, que, além disso, o monolingüismo de determinadas nações, como a França ou a Itália, não é algo original ou espontâneo, e sim, pelo menos em parte, fruto da imposição de um Estado, pelo poder político, de uma língua falada apenas numa porção desse Estado...” In: BOBBIO, Norberto et alli. Dicionário de Política (2 Vol.). 50 ed., Brasília/SãoPaulo, Editora da UnB/Imprensa Oficial, 2000, p.796. No entanto esta idéia parece sobreviver no discurso oficial da lusofonia, que afirma a língua portuguesa não só como o elemento
48
vemos que em boa parte dos PALOP esta idéia não pode ser aplicada. No
entanto, não se pode negar que, mesmo entre membros da elite africana, a
visão da língua como elemento de identidade e unidade nacionais, tem alguma
repercussão. Esta perspectiva pode ser notada, por exemplo, em um recente
trabalho acadêmico escrito por um diplomata angolano, que ocupa uma
posição de destaque na hierarquia do MPLA, partido hegemônico em Angola:
A percepção geral nos cinco Estados Africanos de
Língua Portuguesa sobre a CPLP é a seguinte:
a) a língua portuguesa constitui um instrumento de
integração e de unidade nacional, de afirmação de
identidade cultural e da independência nacional;
b) a língua portuguesa constitui o veículo principal
para a afirmação, aquisição de conhecimentos e de
comunicação com o mundo exterior.64
Isto nos remete à discussão das dificuldades do processo de construção
da idéia de nação nos países lusófonos da África, com exceção, talvez, de
Cabo Verde onde esta questão, pelas próprias características históricas da
colonização das ilhas, parece estar solucionada, como se depreende do
comentário de um conhecido intelectual cabo-verdiano, Germano de Almeida,
ao afirmar que “em Cabo Verde não padecemos dessa questão de identidade
(...) o cabo-verdiano orgulha-se de sua terra, sobretudo do nosso mar, do
nosso céu, de nossas secas”, e mais adiante “(...) esse não é um mérito nosso.
Aqueles que conhecem a condição cabo-verdiana saberão que Cabo-Verde fundamental da identidade nacional de seus Estados-membros, mas como o grande elemento de unidade cultural entre eles. 64 SOBRINHO, Pedro da Silva Feijó. op. cit., p.133. Por tudo o que temos discutido até agora, esta visão do autor – expressa em sua dissertação de mestrado em Relações Internacionais na UnB, que posteriormente foi transformada em livro – parece-nos ser bastante questionável, expressando a visão de somente uma parcela da intelectualidade e da diplomacia africanas. O próprio comportamento dos PALOP em relação à CPLP – notadamente o de Angola -, oscilando entre a adesão e a crítica, deixa isto claro, demonstrando as contradições do processo de construção de identidades nacionais em sociedades pós-coloniais, de características multi-étnicas.
49
existe por teimosia dos portugueses”.65 Esta exceção só serve para confirmar
a percepção que nos PALOP trava-se uma disputa ideológica e uma luta
política em torno das premissas sobre as quais estão sendo construídas as
suas identidades nacionais, o que leva à formulações como as defendidas por
Feijó Sobrinho ou mesmo à “redescoberta crítica” do luso-tropicalismo de
Gilberto Freyre, por setores da elite moçambicana, na busca de explicações
para o entendimento de sua realidade social.
Todas estas questões referentes à África Lusófona funcionam como
complicadoras da adesão desses países à idéia da lusofonia e a construção
efetiva de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Além disso, em
sua concepção original, a CPLP foi articulada a partir de uma perspectiva
equivocada, como destaca o escritor moçambicano no Mia Couto, a de que os
PALOP são visto como um todo, não sendo levadas em consideração as suas
especificidades nacionais, o que seria um equívoco grave na própria definição
das premissas básicas em que a Comunidade busca sustentação:
Um dos primeiros equívocos é o próprio nome que
a família leva: “afro-luso-brasileira”. Há aqui um
triângulo desigual, porque há dois vértices que tem
individualidade, Brasil e Portugal, e o “afro” é
geral.66
Dessa forma, a Comunidade já nasce com um “vício de origem”, o do
desconhecimento mútuo entre seus membros, o que a leva a ser erigida sobre
65 Sessão Plenária 1 “O que é esta tal comunidade? Identidade nacional nos territórios de fala portuguesa”, do IV Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. In: VILLAS-BOAS, Gláucia (Coord.). Territórios de língua portuguesa: culturas, sociedades, políticas – Anais do IV Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais. Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ, 1998, p. 35. 66Idem. p. 29.
50
alicerces pouco sólidos, baseados em discursos, por vezes, míticos que não
encontram muita fundamentação na realidade concreta.
Por fim, não podemos deixar de fazer uma breve menção à perspectiva
timorense em relação à CPLP, visto que o Timor-Leste é o mais novo membro
dessa Comunidade. Com uma história recente bastante conturbada, o país
possui vários problemas em comum com os PALOP, mas também várias
especificidades que devem ser consideradas. Tendo sido ocupado pela
Indonésia em 1975, logo após a saída dos portugueses da região no pós-25 de
abril e a declaração unilateral de independência do Timor pela Frente de
Libertação do Timor-Leste Independente (FRETILIN) – organização marxista
de tendências maoístas -, com o discreto apoio da Austrália e dos EUA. Esse
apoio deveu-se à questões econômicas, geopolíticas e estratégicas como a
necessidade de impedir o surgimento de mais um governo de orientação
socialista no extremo-oriente, no contexto do confronto leste-oeste e da derrota
norte-americana no Vietnã; o interesse em fortalecer a ditadura do General
Suharto, na Indonésia, aliado na luta anti-comunista, que tinha receio que o
Timor independente pudesse estimular os movimentos autonomistas existentes
dentro de suas fronteiras e, finalmente, o potencial petrolífero do Mar do Timor,
no momento em que o mundo ocidental vivia sob os impactos da primeira crise
do petróleo.
È importante ressaltar que setores expressivos da sociedade e doa meios
políticos timorenses eram favoráveis à anexação pela Indonésia como a
Associação Popular Democrática Timorense (APODETI), uma das
organizações políticas existentes na região antes da retirada dos portugueses,
que no tumultuado ano de 1975 acabou estabelecendo uma frente anti-
51
FRETILIN com setores da União Democrática Timorense (UDT), outro
agrupamento político que, a princípio, defendia o estabelecimento de uma
federação com Portugal. Este tumultuado quadro fornece ao governo do Gal.
Suharto os argumentos necessários para justificar uma intervenção militar na
região:
Nos documentos e declarações oficiais emanados
de Jacarta, a Fretilin é apontada como um grupo
minoritário que, com o beneplácito de Portugal,
iniciou ainda no primeiro semestre de 1975, uma
série de atos terroristas, com ameaças e
chantagens contra seus oponentes políticos 67.
Após a ocupação, que foi condenada formalmente pela comunidade
internacional através de várias resoluções da Assembléia-Geral da ONU, as
tropas indonésias iniciam um violento processo de perseguição e repressão a
todos aqueles que fossem suspeitos de terem ligações com a FRETILIN, cujos
homens foram obrigados a se retirar de Dili e das outras zonas urbanas do
Timor para a se retirar para as zonas montanhosas do centro da ilha, onde
estruturaram a resistência armada. Em junho de 1976, uma “Assembléia do
Povo” do Timor, formada por membros da UDT e da APODETI, solicita à
Indonésia a anexação oficial do Timor-Leste como sua 27o província.
Durante os anos seguintes à ocupação, cerca de 60 mil timorenses foram
mortos, em um genocídio de grandes proporções que começa a ser
denunciado, sistematicamente, aos organismos internacionais por membros da
resistência, notadamente aqueles ligados ao clero católico. Paralelamente, a
Indonésia procura consolidar o seu domínio sobre a região investindo nela
67 CUNHA, João Solano Carneiro da. A questão do Tmor-Leste:origens e evolução. Brasília, FUNAG/IRBr, 2001, p. 86.
52
grandes recursos, o que levou o Timor-Leste a ter um crescimento econômico
médio de 6% ao ano entre 1983 e 1997. Além disto, estimulou-se a vinda de
transmigrados de outras regiões da Indonésia para o Timor – algumas
estimativas falam em 150 mil em uma população total de cerca de 750 mil
habitantes -, além de serem feitos grandes investimentos em educação, dentro
da perspectiva de formar nas novas gerações timorenses os “valores nacionais
indonésios”, estimulando o uso da língua bahasa – o idioma da unidade
Indonésia – e desestimulando, e por vezes reprimindo, o uso do tétum (dialeto
dos mauberes) e do português. Esta política acabou gerando uma situação
paradoxal, na medida em que o uso da língua portuguesa vai ser mantido por
aqueles que se recusavam à assimilação pela Indonésia, fazendo com que o
idioma do antigo colonizador passasse a ser, juntamente com a religião católica
(também herança portuguesa), o símbolo da resistência e da identidade
timorense.
Apesar das condenações formais da Comunidade Internacional à
Indonésia, durante muitos anos Portugal foi uma voz isolada em defesa do
Timor68, embora sem grande empenho. O caso timorense só começou a ser
vista com maior atenção pela opinião pública internacional, já na segunda
metade da década de 1980, quando, com o fim da guerra fria e do conflito
leste-oeste, questões como a defesa dos direitos humanos passaram a ser
encaradas como prioritárias na agenda internacional Isto contribuiu para que
68 Para muitos, Portugal – que vivenciava internamente uma forte instabilidade política característica do período imediatamente posterior à Revolução dos Cravos – foi o grande responsável pela situação do Timor-Leste por ter abandonado irresponsavelmente a região. Tal acontecimento, até hoje, é motivo de controvérsias em Portugal. Uma das mais importantes obras de referência sobre a História de Portugal produzida nos últimos anos – a “História de Portugal”, coordenada por José Mattoso – registra em seu oitavo (e último) volume – escrito pelo historiador e político José Medeiros Ferreira - sobre a questão do Timor-Leste simplesmente que “o caso mais difícil de analisar é o de Timor, por não ser claro o que se passou naquela ilha no verão de 1975 e por isso suscitar as maiores polêmicas dobre as atitudes das autoridades portuguesas”. In: MATTOSO, José (Coord.). op. cit., p.77.
53
dois líderes da resistência timorense, José Ramos Horta e D. Ximenes Belo,
fossem agraciados com o Prêmio Nobel da Paz, em 1996. Com a criação da
CPLP, no mesmo ano, a questão do Timor-Leste passou a ser considerada
central pela nova organização e uma das primeiras propostas feitas pelo
representante português – em um momento em que Portugal já tinha passado
a atribuir uma grande importância à articulação do “espaço da lusofonia” - foi a
de incluir o Timor na Comunidade com o estatuto de membro-observador.
A possibilidade de conseguir a independência política surge, de fato, em
1998, com a queda do regime de Suharto na Indonésia, em meio a uma
violenta crise econômica e política. O novo governo indonésio acaba aceitando
a realização de uma consulta popular no Timor-Leste para definir os rumos da
região: a continuidade da anexação da Indonésia, porém com maior grau de
autonomia, ou a independência política. Em 30 de agosto de 1999, a
esmagadora maioria dos timorenses (78%) votou pela separação da Indonésia.
Em resposta, grupos de milicianos pró-Indonésia, apoiados por elementos das
forças armadas daquele país, empreenderam campanhas de incêndio,
pilhagem, violência e intimidação da população –com 1/3 da população sendo
obrigado a ir para campos de refugiados em Timor-Ocidental e em outras ilhas
vizinhas e outro 1/3 ido para as montanhas - só terminaram com a intervenção
das forças de paz das Nações Unidas.69 Grande parte da infra-estrutura do
Timor-Leste foi destruída e o país quase que totalmente devastado. Somente
em 30 de Agosto de 2001, dois anos após o referendo popular, os timorenses
puderam ir novamente às urnas para eleger a Assembléia Constituinte que teve
69 Pode se considerar que a ONU, responsável pela realização do plebiscito, teve uma certa parcela de responsabilidade nos acontecimentos pós-referendo, visto que a reação dos grupos pró-indonésios era bastante previsível. Entre a realização do plebiscito e a chegada das Forças de Paz da ONU passaram-se quase 30 dias.
54
como função redigir a Constituição do país, criando condições para a
realização de eleições e a transição para a total independência, que se
concretiza em maio de 2002.
Com toda esta história recente de conflitos, a adesão do Timor ao ideal da
lusofonia e à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – da qual
atualmente já faz parte como membro efetivo – suscita algumas reflexões
importantes:
1- Por todas as questões discutidas anteriormente, o português hoje é
falado por somente cerca de 3% da população. Mesmo na época da
colonização portuguesa ele se restringiu a uma pequena elite
econômica ou religiosa (o clero católico), nunca tendo se tornado a
língua normal de comunicação Não se pode esquecer que até às
vésperas da saída dos portugueses da ilha cerca de 92% da população
era analfabeta, devido à ausência de políticas públicas de educação por
parte do Estado português, o que aliás não existia nem na metrópole,
que apresentava os maiores índices de analfabetismo da Europa
Ocidental. Este índice de falantes do português – menor inclusive que o
dos PALOP – leva, inclusive, a discussão de se o Timor pode ser
considerado um Estado Lusófono, ou se lá o português é apenas uma
língua residual como no antigo Estado da Índia ou em Macau. No
entanto, o governo timorense tem procurado reintroduzir o português no
país, não só por sua carga simbólica, mas por dar ao Timor o “acesso a
um veículo sólido e de penetração internacional”,70 posição que é
70 Mari Alkatiri, futuro Primeiro-Ministro timorense, em 1997, citado por: CUNHA, João Solano Carneiro da. op.cit, p.190.
55
bastante discutível já que outros idiomas ocidentais podem
desempenhar este papel, inclusive com mais eficácia;
2- Tendo tido 85% de sua infra-estrutura destruída, principalmente durante
os acontecimentos de 1999, o Timor-Leste necessita enormemente de
investimentos estrangeiros, além de um grande contingente de mão-de-
obra qualificada. A vizinha Austrália tem sido responsável por boa parte
desses investimentos, estabelecendo parcerias com o governo
timorense em diversos setores, inclusive no potencialmente lucrativo e
estratégico setor petrolífero. A presença australiana já se fez sentir com
bastante força durante o período de administração da ONU na região,
com seus soldados representando o maior contingente das forças
internacionais, enquanto a participação portuguesa e de outros países
da CPLP foi bastante modesta, levando-se em consideração a
importância por eles atribuídas à questão do Timor. Isto faz com que a
língua inglesa venha ganhando cada vez mais espaço no país,
principalmente nas gerações mais jovens que a vêem – e não a língua
portuguesa – como seu canal de comunicação com o mundo.
A partir destas considerações pode-se perceber que no Timor, da mesma
maneira que na África, as pretensões portuguesas – expressas no ideal da
lusofonia - acabam esbarrando em suas limitações econômicas, já que a
reduzida capacidade de investimentos do Estado Português acaba não
conseguindo dar à Comunidade Lusófona o alicerce - em bases econômicas –
que só o discurso calcado em bases culturais não consegue dar.
56
1.4. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Desafios e
Possibilidades.
Como discutimos até agora, a institucionalização da CPLP e a sua
consolidação como um ator de certa importância no Sistema Internacional
enfrenta uma série de dificuldades, sendo a principal delas a de que dentre os
seus Estados-membros só um tem investido de fato na estruturação desta
Comunidade, enquanto os seus outros atores oscilam entre a indiferença e a
adesão limitada. Além disso, como reiteramos em diversos momentos ao longo
deste capítulo, as possibilidades deste ator principal – Portugal – alicerçar a
CPLP através de bases econômicas são bastante reduzidas, embora nos
últimos anos a margem de ação de Portugal tenha se ampliado
consideravelmente, com a integração à União Européia e o conseqüente
crescimento da economia portuguesa, bem como a internacionalização dos
grandes grupos econômicos daquele país. No entanto, Portugal continua sendo
somente um Estado de médio porte, que ocupa uma posição secundária no
concerto europeu e cujas pretensões de servir de “correia de transmissão”
entre a União Européia e a periferia africana de língua portuguesa esbarram no
simples fato de que as potências centrais não necessitam deste tipo de
intermediação, optando por estabelecer relações diretas com os PALOP, que
por sua vez também dispensam o papel a que se propõe Portugal.71
Deste modo, abre-se a possibilidade do Brasil assumir a liderança da
Comunidade, o que, de certa forma, seria algo bastante natural, visto que o
país é o maior Estado de língua portuguesa, possuindo uma identidade
71 É importante ressaltar que mesmo na época do Império Colonial, os recursos limitados do Estado Português fizeram com que ele abrisse as suas colônias africanas para a atuação de empresas belgas, inglesas, francesas, sul-africanas e norte-americanas, exercendo um papel subalterno em seus próprios domínios, caracterizando aquilo que Perry Anderson chamou ironicamente de “Condomínio Encoberto” ou “Imperialismo por procuração”. Cf. ANDERSON, Perry. Portugal e o fim do ultracolonialismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
57
nacional e uma unidade lingüística bastante definidas, além do que dos cerca
de 210 milhões de falantes do português, cerca de 170 milhões estão no
Brasil.72 Esta possível liderança do Brasil é vista com bastante simpatia pelos
PALOP, por questões óbvias que envolvem as cicatrizes e as feridas ainda
abertas deixadas pela colonização portuguesa, e uma natural identificação com
o Brasil, apesar do fato de que boa parte das lideranças africanas ainda ter a
percepção de que “no Brasil, falta familiaridade com a África, persiste a
discriminação racial, manifesta-se pouco prestígio às raízes africanas e existe
pouco conhecimento do continente”.73 Por outro lado, Portugal não aceita
perder a liderança da Comunidade, por considerá-la sua de direito como
“pátria-mãe” da lusofonia e, por que não, considerar a CPLP como um projeto
político que reflete a continuidade de “um modo português de estar no mundo”
de inspiração claramente freyriana. Assim, para os portugueses, o máximo que
poderia se admitir – de forma até condescendente - seria uma “liderança
compartilhada” com o Brasil. Porém, duas grandes questões se levantam: 1-
até que ponto o Brasil deseja assumir esta liderança; 2- que vantagens tal
comunidade poderia trazer para o país?
Em relação à primeira questão, alguns observadores avaliavam, no
momento da criação da CPLP que “o Brasil tenderá a pretender essa liderança
da Comunidade pelo seu peso demográfico, pelo seu peso no âmbito da
América do Sul, pela sua presença crescente no Atlântico Sul”.74 No entanto,
nestes 11 anos de existência da Comunidade, o Brasil não tem demonstrado 72 Em virtude da realidade lingüística dos PALOP e do Timor-Leste, esta quantidade de falantes do português no mundo, que usualmente aparece nos discursos e nos documentos oficiais da CPLP, parece representar muito mais um argumento político, do que uma constatação efetiva da realidade. De qualquer forma, isto só faz aumentar o peso do Brasil na Comunidade, visto que no país existe efetivamente uma unidade lingüística. 73 SOBRINHO, Pedro da Silva Feijó. op. cit., p.77-78. 74 Carlos Motta, Diretor de Relações Internacionais do Ministério da Educação, em 1995, citado por: SOBRINHO. Pedro da Silva Feijó. Ibidem. p. 62.
58
grande empenho na sua consolidação e muito menos interesse em assumir a
sua liderança. Como colocado anteriormente, com as transformações ocorridas
nas últimas décadas no cenário mundial, boa parte do comportamento da
diplomacia brasileira nos últimos anos tem sido ditada pela lógica da economia.
Assim, já entrando na segunda questão, o Brasil tem procurado estabelecer
parcerias pontuais com Portugal e os outros membros da CPLP – como já
colocamos anteriormente – no campo das relações bilaterais, prescindindo
assim do espaço comunitário. Desta forma, seja do ponto de vista econômico –
como no campo das relações comerciais ou de investimentos diretos – ou do
político – como na busca de apoio para a reformulação da estrutura das
Nações Unidas -, a existência (ou não) da CPLP não parece influir
sobremaneira nas pretensões internacionais do Brasil, apesar dos defensores
brasileiros desse espaço comunitário apresentarem ema série – também já
citada anteriormente – de argumentos contrários. Por tudo isso, este pouco
caso brasileiro acaba sendo decisivo para a não consolidação da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa.
Dessa forma, não tendo se consolidado através das bases econômicas, o
alicerce da CPLP continua sendo – embora isto tenha se demonstrado
insuficiente – a questão cultural. Neste aspecto, algumas discussões
fundamentais que devem ser travadas – e que serão desenvolvidas ao longo
deste trabalho – são aquelas sobre até que ponto a língua portuguesa pode
funcionar como um elemento de unidade cultural entre os oito membros da
CPLP e sobre a legitimidade de uma comunidade que se assenta sobre um
discurso que é essencialmente português - o da lusofonia, formulado dentro de
uma lógica política e ideológica específica, que tem norteado os movimentos
59
do ator mais empenhado em sua construção. Neste aspecto, não podemos
deixar de lembrar Eduardo Lourenço que afirma que não é possível a
existência de uma Comunidade Lusófona sem uma “mitologia cultural
compartilhada” e um “imaginário comum”, 75 deixando claro que, até agora, o
sonho comunitário é um sonho essencialmente português e que a “mitologia
lusófona” – e a própria lusofonia – sobre a qual se alicerçou a CPLP também é
uma mitologia, acima de tudo, lusitana:
Em nome da mitologia lusófona – ou antes da
lusofonia – se fundou e se fez repousar a recente
arquitetura da Comunidade dos Povos de Língua
Portuguesa. Naturalmente, alguma verdade há
nela para que fosse imaginada e, uma vez
imaginada, nos esforcemos por lhe dar a
configuração que só tem ainda expressão no
voluntarismo com que – sobretudo, nós
portugueses – a concebemos e desejamos. Por
enquanto, além da total inoperância, mesmo só na
ordem simbólica, do projeto, talvez explicável pela
sua incipiência, tão exaltante perspectiva de uma
Comunidade dos Povos de Língua Portuguesa é
apenas uma aposta, em si mesma natural para
quem, como nós, se sentiu identificado com aquilo
onde esteve, mas vivida, desde o início, sobretudo
pelo Brasil, espaço lusófono sem exterior, com o
que pudicamente, podemos designar como
reticências.76
Lourenço assinala também que sem uma adesão efetiva do Brasil, a
Comunidade será uma quimera nati-morta e que necessariamente não há,
como aparece no discurso português, “sobreposição e implicação que
75 LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro. op. cit., p.173. 76 Idem. p. 178.
60
justifiquem destino virtualmente comunitário entre lusofonia e cultura de
expressão lusófona”.77 Neste sentido, a consolidação da Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa passa, necessariamente, por questões bem mais
amplas do que a evocação de uma língua ou de uma herança culturais
comuns, como assinala de forma bastante oportuna o Embaixador Alberto da
Costa e Silva:
Ao tomar a língua e a história comuns para sobre
elas fundar e legitimar uma comunidade de
nações, não se deve, pois, esquecer que essa
língua e essa história estão impregnadas de
violência. E deve-se ter sempre presente que com
a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
não se aspira a reconstruir o antigo império. Ainda
que a evocar tudo aquilo que, apesar das mágoas
e dos ressentimentos, tomou força suficiente para
nos fazer próximos, temos de levantar a CPLP
sobre a aceitação das responsabilidades que os
dois parceiros incomparavelmente mais prósperos,
Brasil e Portugal, deveriam passar a ter em relação
a angolanos, cabo-verdianos, guineenses,
moçambicanos, são-tomenses e timorenses, que,
talvez mais do que nós, sofreram e ainda sofrem
essa história.78
Por tudo isso, mais de dez anos após a sua criação, a CPLP continua na
condição de um provável “vir-a-ser” e não uma realidade efetivamente
concretizada. Neste período, marcado por projetos frustrados - ou abaixo das
expectativas - de cooperação cultural e econômica, o papel mais bem sucedido
da Comunidade tem sido o de funcionar como espaço de concertação política e 77 Idem. p. 173. 78 “A propósito da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”. In: SILVA, Alberto da Costa e. Das mãos do oleiro: aproximações. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005, p. 197.
61
diplomática entre seus membros ajudando a mediar crises políticas como as de
Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, colaborando com as negociações de paz
em Angola e conseguindo dar uma visibilidade internacional à questão do
Timor. Esse papel, de qualquer forma, está bastante aquém das expectativas
de seus idealizadores ou do otimismo expresso por algumas lideranças
políticas no momento de sua fundação:
(....) com sentido de realismo, a Comunidade
responderá adequadamente ao impulso, próprio
das relações internacionais contemporâneas, de
que os países pertençam a coalizões ordenadas
não mais ao longo de clivagens entre Norte e Sul
ou Leste e Oeste, mas sim de interesses
prontamente identificáveis pelo cidadão.79
Desta forma, pode-se inferir que, ao longo de sua curta existência, a
CPLP acabou se tornando mais uma organização secundária entre as muitas
que existem no âmbito internacional e que até agora as premissas sobre as
quais ela foi criada não tiveram como se concretizar.
79 Entrevista de Fernando Henrique Cardoso, Presidente do Brasil, ao jornal português “O Público”, de 25/09/1996.
Capítulo II
O Terceiro Império Português e o Mito do “Destino Imperial”
Um dos mitos fundadores da identidade nacional portuguesa é a crença
no “destino imperial” de Portugal. Sobre isto, o ensaísta Eduardo Lourenço
afirma que:
(...) durante séculos, nem para nós nem para os
outros Portugal era outra coisa do que “um país
que tinha um império”. E esse estatuto, que foi – e
continua sendo na nossa memória – o identificador
supremo de Portugal, convertera-nos na ilha
histórica mítica por excelência da Europa.80
Esta crença, juntamente com a idéia de que Portugal desempenhou um
papel singular na História na época das grandes navegações dos séculos XV e
XVI, definiu a imagem que até hoje os portugueses tem de si mesmos e que,
de certa forma, os outros também têm de Portugal. Esses mitos nacionais
partem da perspectiva de que Portugal, a partir desse momento, deu início a
um processo que alteraria profundamente a História do Ocidente, a Expansão
Marítima Européia, assumindo uma posição eminente na Península Ibérica e
na própria Europa. Tal visão ainda persiste com bastante força na produção
literária - e mesmo historiográfica - portuguesa contemporânea.
Desde a conquista de Ceuta, no norte da África, em 1415, até o Reinado
de D. Manuel I (1495-1521), Portugal construiu um imenso Império Comercial
Ultramarino que se estendia por todos os continentes, como se comprova pelo
80 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade. op. cit., p. 95.
63
título ostentado pelo soberano português: “Rei de Portugal e dos Algarves,
d’aquém e d’além mar em África, Senhor da Guiné, da conquista, navegação e
comércio da Etiópia, da Arábia, Pérsia e Índia”. Foi um momento de glória para
Portugal. Para muitos autores, além das riquezas proporcionadas pela
conquistas ultramarinas, o país vivia uma efervescência cultural e intelectual –
o Renascimento Português – também relacionada a este processo, onde se
destacam: a literatura de viagens de Duarte Pacheco Pereira, a poesia de
Camões, as obras do Matemático Pedro Nunes, os estudos do naturalista
Garcia de Orta81. Foi este instante luminoso da História Portuguesa que
marcou profundamente o imaginário da nação, fazendo com que a consciência
daquilo que Portugal representou neste momento se tornasse um dos
elementos definidores da identidade nacional, que mesmo a decadência
posterior não conseguiria apagar. Simbolicamente, isto se encontra presente
tanto na bandeira nacional portuguesa – que possui no seu centro, a esfera
armilar, ou seja, a representação do mundo – e em “A Portuguesa”, o Hino
Nacional, cujos primeiros versos são: “Heróis do mar, nobre Povo,/Nação
valente, imortal/Levantai hoje de novo/O esplendor de Portugal!”.
Porém, este momento áureo durou pouco. A expulsão dos Judeus de
Portugal, o Tribunal da Inquisição – utilizado como arma pela nobreza contra a
burguesia comercial – a morte de D. Sebastião e o fim da Dinastia de Avis e,
finalmente, a anexação à Espanha, através da União Ibérica, foram os marcos
visíveis da decadência portuguesa. O Império Ultramarino começou a
desmoronar. Territórios são perdidos para potências mais poderosas como a
Holanda ou a Inglaterra. O país mergulhou em um longo período de
81 Esta visão é muito presente na obra do historiador luso Joaquim Barradas de Carvalho que será alvo de uma discussão mais aprofundada no capítulo 3 desta tese.
64
obscurantismo, aliado ao trauma da perda da independência nacional para
aquela que, ao longo da História Portuguesa, seria sempre a ameaça política e
a grande rival econômica e cultural: a Espanha82.
A recuperação da independência com a “Restauração”, em 1640, não
retirou Portugal do abismo em que ele havia mergulhado. A fragilidade do
Estado português recém-restaurado fez com que houvesse a necessidade de
alianças com as grandes potências da época, como garantia da
independência. Reataram-se os velhos laços com a Inglaterra. Dívidas foram
feitas e territórios no Oriente foram perdidos. O Tratado de Methuen, em 1703,
agravou ainda mais a situação de dependência de Portugal em relação a seus
aliados ingleses. Definitivamente, Portugal havia se tornado um “Estado-
cliente”, com um papel secundário no Sistema Interestatal que se estruturou na
Europa, a partir do século XVII. No entanto, o “sonho imperial” já tinha ficado
intensamente marcado na nação portuguesa.
2.1. As origens do Império Português em África
A ocupação portuguesa nos territórios conquistados a partir da expansão
marítima baseou-se principalmente no estabelecimento de feitorias destinadas
ao comércio de especiarias e outras mercadorias. Este fato acabou tornando-o
uma construção relativamente frágil e pouco enraizada, devido basicamente à
ausência de uma política de povoamento e de penetração dos territórios
conquistados, com exceção do Brasil e de alguns territórios na África. Com a
82 Se este medo de ser anexado à Espanha é algo marcante na História Portuguesa, não se pode esquecer que em diversos momentos, amplos setores da sociedade portuguesa – principalmente da intelectualidade – viram esta possibilidade com simpatia, como já foi discutido na introdução deste trabalho. Sem sombra de dúvidas, o debate entre “nacionalistas” e “iberistas” é algo muito presente na tradição intelectual portuguesa.
65
formação do império, a língua portuguesa também se espalhou pelo mundo:
entre os séculos XVI e XVIII, o português tornou-se “língua franca” nos portos
da Índia e do sudeste asiático, permitindo a comunicação entre diferentes
povos, além de tornar-se o idioma mais falado em toda a costa africana.
Porém, devido à sua fragilidade, o império colonial português
desmantelou-se aos poucos e a maior parte das possessões orientais
portuguesas foi sendo perdida para os holandeses e ingleses, no decorrer dos
séculos XVII e XVIII, restando-lhe somente alguns territórios na Índia (Goa,
Damão, Díu), China (Macau) e Oceania (Timor). Com a decadência desse
“Império da Pimenta”, Portugal tornou-se cada vez mais dependente das
riquezas provenientes de seu Império Americano - o Brasil. No século XVIII, o
ouro brasileiro possibilitou um período de grande opulência na metrópole. As
enormes quantidades do metal vindas do Brasil garantiram a construção de
igrejas e palácios suntuosos, embora os déficits crônicos da balança comercial
portuguesa - agravados pelo Tratado de Methuen - tenham feito com que a
maior parte do ouro brasileiro fosse para a Inglaterra, constituindo-se numa
das grandes fontes de capital que possibilitaram a Revolução Industrial
Inglesa. Os fracassos das tentativas de industrialização fizeram com que
Portugal passasse a viver quase que exclusivamente da monocultura da vinha
e das riquezas provenientes do Brasil, que começaram a escassear em
princípios do século XIX. A independência do Brasil agravou ainda mais a
situação da frágil economia portuguesa, que necessitou reestruturar-se
profundamente para suportar o impacto da perda de sua maior colônia. Foi a
partir dessa época que ganhou força o sonho de construir um novo império, o
“Terceiro Império”, desta vez em África.
66
Até então a ocupação portuguesa em seus territórios africanos era
bastante esparsa e as ligações desses territórios com o Brasil era muito mais
intensa do que com a metrópole européia. Essas ligações estavam
diretamente relacionadas ao tráfico negreiro, já naquele momento controlado
basicamente por comerciantes da colônia americana, notadamente do Rio de
Janeiro, e o grosso das relações entre Portugal e África – incluindo-se aí sua
colônia de Angola – dava-se através da Bahia e do Rio de Janeiro. Por sinal,
os vínculos entre Brasil e Angola eram tão intensos que quando da
independência brasileira, surgiu na metrópole o temor de que a colônia
africana se juntasse ao novo país. De fato, apareceu em Angola um “partido
brasileiro” defendendo a junção com a ex-colônia portuguesa do outro lado do
atlântico. Foi nesse período que houve um aumento razoável de elementos
brancos na população angolana, devido ao envio de numerosas tropas
metropolitanas para sufocar movimentos autonomistas ou de anexação ao
Brasil.83 É importante ressaltar que o artigo III do Tratado de Paz e Aliança
(1825), através do qual a coroa portuguesa reconheceu a independência do
Brasil, vedava explicitamente que se aceitassem “proposições de quaisquer
colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil”.84 No entanto, tal
fato não impediu que as relações entre Brasil e África – em especial Angola –
continuassem com bastante intensidade, devido à manutenção do tráfico de
escravos, mesmo com as pressões internacionais pelo seu fim.85
83 MOURÃO, Fernando Augusto A. “A Evolução de Luanda: Aspectos Sócio-Demográficos em Relação à Independência do Brasil e ao Fim do Tráfico” In: PANTOJA, Selma e SARAIVA, José Flávio Sombra (Orgs.). Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999, pp 198-200. 84 CERVO, Amado e MAGALHÃES, José Calvet de. Depois das Caravelas: As relações entre Portugal e Brasil (1808-2000). Brasília, Editora da UnB, 2000. Um dos apêndices desta obra é o texto do referido tratado. 85 Sobre as relações entre o Brasil e a África naquele período ver o interessante e esclarecedor artigo de Alberto da Costa e Silva “As relações entre o Brasil e África Negra, de 1822 à Primeira Guerra Mundial”
67
Nas décadas seguintes à perda de sua colônia na América, o Estado
português tentou redirecionar os seus esforços coloniais para uma ocupação
efetiva de seus territórios africanos, principalmente durante o período da
chamada “regeneração”, quando se consolidou no país uma monarquia
burguesa à portuguesa. Um dos maiores entusiastas – mas não o único -
desse projeto colonial africano foi o Marquês de Sá da Bandeira que teve uma
longa carreira de Estadista no Portugal oitocentista, como Ministro do Ultramar
e Presidente do Conselho Ultramarino:
Ao contrário de uma lenda criada já no século XIX,
Sá da Bandeira não era uma voz isolada na defesa
do projeto imperial: são comuns, na época, as
opiniões dos que pensavam estar a “tabua de
salvação” do país mas possessões do ultramar
que, segundo geralmente se acreditava, estariam
prontas a desentranhar-se em riquezas se fossem
convenientemente exploradas.86
No entanto, esta política colonial africana acabou não sendo bem
sucedida, devido tanto a fatores relacionados às colônias – como a resistência
das elites locais e dos próprios governadores a algumas medidas tomadas pelo
governo metropolitano, como leis anti-escravistas -, quanto aos crônicos
problemas da metrópole de falta de recursos humanos e financeiros.
Durante a corrida imperialista ocorrida nas últimas décadas do século
XIX, Portugal só conseguiu manter os seus territórios da África devido,
basicamente, “à incapacidade de seus rivais modernos chegarem a um acordo
In: SILVA, Alberto da Costa e. Um Rio Chamado Atlântico. Rio de Janeiro, Ed.da UFRJ/Nova Fronteira, 2003. 86 ALEXANDRE, Valentim (Coord.). O Império Africano (Séculos XIX e XX). Lisboa, Edições Colibri, 2000, p. 14.
68
quanto à maneira exata de dividi-los entre si”.87 Assim, paradoxalmente, a
fraqueza do Estado Português, muito mais que a sua força, foi a grande
responsável pela manutenção dos domínios portugueses em África. Desta
forma, sob a “proteção” da Grã-Bretanha, que tinha grandes interesses
econômicos e estratégicos na região, e que mantinha uma secular relação de
dominação sobre Portugal, este conseguiu fazer valer seus interesses na
Conferência de Berlim:
Na Conferência de Berlim, a reivindicação
portuguesa das colônias africanas foi apoiada pela
Grã-Bretanha: devido às explorações efetuadas
por Brazza para o Governo Francês e por Stanley
para o Governo Belga, a Grã-Bretanha receava
uma quebra de sua influência em África e pretendia
reduzir esse perigo fortalecendo a posição de
Portugal. Além disso, a Grã-Bretanha considerava
mais ou menos como seus os territórios
portugueses, devido à fraqueza de Portugal e à
dependência semicolonial deste em relação àquela
potência.88
Porém, como condição para manter seus domínios, Portugal assumiu o
compromisso de iniciar o processo de ocupação efetiva de suas colônias
africanas, visto que a sua presença nestes territórios tinha sido, até então,
bastante precária. Assim, nas últimas décadas do século XIX, a ocupação e a
estruturação do Império Colonial, o chamado “Terceiro Império”, passou a ser a
preocupação fundamental de Portugal: começava aí a construção do último
grande “sonho imperial” português. Por outro lado, como assinala Valentim
87 HOBSBAWM, Eric. A Era dos Impérios – 1875-1914. 2a ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p.89. 88 FERREIRA, Eduardo de Souza. O Fim de uma Era - O Colonialismo Português em África. Lisboa, Sá da Costa, 1977, p.31.
69
Alexandre, este projeto imperial também ressurgiu como uma resposta à crise
de identidade enfrentada por Portugal nas décadas de 1860 e 1870 quando,
em um contexto de transformações no concerto europeu – como a unificação
da Itália e a Unificação da Alemanha -, o velho fantasma da união com a
Espanha reapareceu com uma certa força89. Apesar de alguns setores da
sociedade portuguesa terem uma certa simpatia por esta nova União Ibérica –
notadamente alguns segmentos defensores de um nacionalismo liberal que
viam nisto uma possibilidade de superar o atraso dos dois povos ibéricos -, a
maior parte da intelectualidade e das camadas médias se posicionou contra
esta perspectiva. Assim, o império africano compensaria a pequenez de
Portugal e garantiria a sua sobrevivência como um Estado-nação
independente. Nesse momento, a idéia de “nação” começou a ficar
definitivamente associada à idéia de “império”.90
No entanto, o projeto imperial português iria sofrer alguns sérios revezes,
entre os quais o Ultimatum britânico de 1890, no qual a Inglaterra sepultou as
pretensões portuguesas de constituir uma única colônia ocupando toda a
largura da África, de Angola a Moçambique. Apesar disso, os territórios
africanos tornaram-se prioritários para o Estado Português e para os interesses
da burguesia portuguesa que, por mais fraca que fosse, também procurava
novas áreas de investimento. É importante ressaltar, como exemplo dessa
nova política africana, que o Estado Português, neste contexto, buscou
redirecionar para as colônias africanas, embora sem grande sucesso, fluxos de
emigração portuguesa, que se dirigiam, sobretudo, para o Brasil.
89 ALEXANDRE, Valentim (Coord.). op.cit., p. 17. 90 THOMAZ, Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul. Rio de Janeiro, Ed. da UFRJ/FAPESP, 2002, p. 55 -56.
70
A última década do século XIX e as duas primeiras do século XX,
marcaram o início da estruturação, de fato, do Império Colonial Português
mediante a “pacificação” das populações nativas, a organização político-
administrativa e a exploração econômica do mesmo, principalmente através de
concessões à empresas estrangeiras, notadamente às britânicas. Ao mesmo
tempo, em Portugal, promoviam-se intensas campanhas para angariar apoio
popular ao projeto imperial, criando-se mitos, como o do “Portugal único,
multirracial e pluricontinental” ou o da “missão civilizadora” portuguesa, que se
consolidariam nas décadas seguintes. Simultaneamente, fortaleceram-se em
toda a Europa - e, é óbvio, também em Portugal – escolas de pensamento,
como o Darwinismo Social, que serviram de justificativa ideológica para o
neocolonialismo. Foi o momento de “sacralização do império”, cujas marcas
profundas ainda se fazem presentes no imaginário português:
É então também que nasce o nacionalismo
imperial como corrente dominante – levando à
sacralização do império e mais ainda conformando
a imagem que o país tem de si próprio, como povo
destinado à missão histórica de colonizar ou, dir-
se-ia ainda hoje, à missão ecumênica de aproximar
povos e raças, a Europa e a África.91
Nesta perspectiva, é interessante notar que este processo aconteceu sem
descontinuidades, mesmo com as mudanças de regime, em Portugal, a
exemplo da instituição do regime republicano, em 1910, ou o estabelecimento
da ditadura militar, em 1926.
91 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil, Novas Áfricas: Portugal e o Império (1808-1975). Porto, Edições Afrontamento, 2000, p. 162.
71
Porém, o projeto imperial português somente atingiu a sua plenitude, a
partir da implantação do regime salazarista em Portugal, no início dos anos 30
do século XX. Neste período, o Império consolidou-se política e
administrativamente, adquirindo também uma importância fundamental para a
economia portuguesa. Além disso, fortaleceu-se o mito do “destino imperial”
português, através de um intenso processo de construção ideológica onde o
império era apresentado como elemento essencial da identidade nacional e em
que a idéia da “missão civilizadora” da nação portuguesa foi sendo elaborada
dentro de uma perspectiva fortemente nacionalista.
2.2. O Estado Novo Português e a Estruturação do Império Colonial
Africano.
Em 1926, um golpe militar conservador fechou o primeiro ciclo
republicano em Portugal, que havia se iniciado com a derrubada da Monarquia
em 1910. Neste curto período de uma experiência republicana liberal, o quadro
político português esteve bastante conturbado, com o aumento da organização
do Movimento Operário e os conflitos entre o Estado e a Igreja, além da própria
disputa entre as diversas facções políticas em torno de diferentes concepções
de como o Estado Republicano deveria ser organizado.
O projeto político vitorioso acabou sendo o do autoritarismo conservador
posto em prática através de uma ditadura militar que, inicialmente, contava com
uma base social de apoio bastante ampla:
A República terminou em 1926. Durante a sua
curta vida, tinham-se desenvolvido correntes de
oposição que pretendiam se apoderar do Estado e
chefiá-lo, imprimindo-lhe uma nova direção. A
Igreja foi um dos mais poderosos elementos
72
dessas correntes, mas recuperou a sua influência
relativamente devagar e era temida pelos novos
nacionalistas, que exigiam toda a lealdade. A
classe média baixa foi outro dos setores que se
opôs às idéias fundamentais da ‘Intelligentsia’ e
aceitou com entusiasmo um governo do qual
esperava que preservasse as suas pequenas
poupanças e garantisse os seus postos de
empregados de escritório, dando-lhes preferência
sobre as massas trabalhadoras. Os oficiais do
exército cuja posição fora minada pelos oficiais
subalternos, na Revolução de 1910, estavam
ansiosos para restabelecer sua influência e
melhorar pelo menos a sua condição, se não
também as suas responsabilidades militares
activas.92
Soma-se a isto, o temor que a burguesia portuguesa tinha da ascensão
do Movimento Operário o que ampliava as condições para a implantação de
um regime autoritário, fato este que, efetivamente, acabou acontecendo. Esta
ditadura, que se consolidou no final da década de 1920, com a ascensão de
Oliveira Salazar como “homem-forte” do regime, é definida por muitos autores
como uma ditadura de características fascistas, principalmente quando se leva
em consideração a classe social beneficiária do regime, a burguesia
monopolista, e os seus traços fundamentais institucionalizados na Constituição
de 1933 e no Estatuto do Trabalho Nacional, bases da organização política do
“Estado Novo” português. Por outro lado, o “Estado Novo” português possuiu
algumas características particulares que o diferenciavam dos demais Estados
ditatoriais que se formam na Europa no mesmo período, principalmente a
92 BIRMINGHAM, David. História de Portugal - Uma perspectiva Mundial. Lisboa, Terramar, 1998, p. 193.
73
presença de fortes ingredientes ideológicos do conservadorismo católico e de
uma forte tradição direitista e anti-parlamentar existente em Portugal, antes
mesmo do surgimento do fenômeno mais geral do fascismo no continente
europeu. Assim como era de se esperar, uma das mais importantes polêmicas
da produção historiográfica portuguesa do pós-25 de abril é a discussão sobre
caracterização do Estado Novo93. No entanto, este não é o foco central deste
trabalho, mas sim a forma como tal regime iria lidar com a questão imperial.
Uma das primeiras preocupações desse regime foi a de elaborar
justificativas para a manutenção do Império Colonial Ultramarino e também
para a política de emigração do Estado português94. Isto levou à construção,
por parte do Estado Novo, de todo um arcabouço ideológico baseado no
discurso da “pobreza natural do país” e de sua população “naturalmente
pobre”. Na construção deste discurso, a ditadura salazarista teve na Igreja
Católica uma forte aliada:
A aceitação desesperante de uma pobreza que
estava mais próxima dos padrões da África
Tropical do que dos da Europa Temperada foi
ajudada pelos níveis mais altos da hierarquia da
Igreja tradicional.95
Desta forma, Salazar legitimava este discurso da “pobreza natural” de
Portugal e acabou fazendo com que ele fosse aceito como verdade
inquestionável pelo senso comum. Porém, o que estava por trás dessa 93 Participam desta polêmica alguns dos mais importantes historiadores portugueses contemporâneos como António Costa Pinto, João Medina, Manuel Villaverde Cabral e Manuel de Lucena. 94 Apesar de, historicamente, Portugal ser um país de emigração, o grande diferencial da política de emigração do governo português durante a longa ditadura do Estado Novo em relação aos períodos anteriores é de que, pela primeira vez na História de Portugal, teve-se uma política governamental deliberada de incentivo à emigração, que assume um importante papel dentro do conjunto da economia portuguesa – através da remessa de dinheiro dos emigrados -, contribuindo, também, para a manutenção da “paz social” - com a exportação dos excedentes de mão-de-obra. 95 BIRMINGHAM, David. op. cit., p. 200.
74
“pobreza natural” de Portugal e de sua “população naturalmente pobre” era, na
verdade, a incapacidade histórica do Estado Português e do capitalismo em
Portugal de gerirem os recursos naturais existentes no país. Por outro lado, a
política concentradora de renda e da propriedade rural, em benefício das
oligarquias e da burguesia monopolista, implementada pelo Estado Novo, só
contribuiu para aumentar a situação de miséria em que viviam as classes
populares.
Em relação aos domínios ultramarinos, o regime salazarista foi o grande
responsável pela estruturação político-administrativa do Império Colonial
Português, que até então era precariamente organizado em todos os níveis.
Esta estruturação, do ponto de vista jurídico, deu-se através da Constituição da
República Portuguesa (1933) e, fundamentalmente, do Ato Colonial, elaborado
em 1930, quando Salazar ainda era Ministro das Colônias, e posteriormente
incorporado ao texto constitucional. Esta Constituição colocava, em seu artigo
I, as colônias como parte integrante do Território da Nação Portuguesa que
seria constituído por:
1- Na Europa: Portugal Continental e os
Arquipélagos da Madeira e dos Açores; 2- Na
África Ocidental: o Arquipélago de Cabo Verde,
Guiné, São Tomé e Príncipe e suas dependências,
São João Batista de Ajuda, Cabinda e Angola; 3-
Na África Oriental: Moçambique; 4- Na Ásia: o
Estado da Índia e Macau e suas dependências; 5-
Na Oceania: Timor e suas dependências.”96
96 Constituição da República Portuguesa (1933). Disponível no site do Contemporary Portuguese Politics and History Research Centre, University of Dundee - www.dundee.ac.uk/politics/cprhc. Acesso: 05 de agosto de 2000.
75
A posse destes territórios era justificada através de toda uma construção
ideológica baseada no discurso da “herança histórica peninsular”, datada do
tempo das descobertas marítimas, e no da “missão civilizadora da nação
portuguesa”, que é colocada claramente no artigo 2o do Ato Colonial – Decreto-
Lei No 22.465:
É da essência histórica da Nação Portuguesa
desempenhar a função histórica de possuir e
colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as
populações indígenas que neles se compreendam,
exercendo também influência moral que lhe é
adstrita pelo Padroado do Oriente.97
Partindo de uma mentalidade secularmente existente, o discurso do
“destino imperial português” foi cuidadosamente trabalhado durante todo o
período salazarista, não só pelo Estado Português, mas por todo um grupo de
intelectuais dentro e fora de Portugal, dentre os quais se destacam Adriano
Moreira e o brasileiro Gilberto Freyre, com toda sua elaboração da idéia de
uma “Civilização luso-tropical”, plurirracial e “progressista” que foi apropriada
pelo Estado Português – a partir, principalmente, do final da década de 1940 -
e disseminada com bastante eficiência dentro e fora de Portugal. Isto é
destacado pelo historiador inglês Norrie MacQueen, quando cita o episódio em
que Amílcar Cabral, líder da luta pela Independência de Guiné e Cabo Verde,
ao participar da Conferência Pan-Africana de Tunes (1960), ouviu de outro
delegado presente, a afirmação de que com eles a situação era diferente, pois
97 Acto Colonial – Decreto-Lei 22.465. Disponível no siteContemporary Portuguese Politics and History Research Centre, University of Dundee, site: www.dundee.ac.uk/politics/cprhc.
76
estavam bem com os portugueses98. Sobre esta questão, Franco Nogueira,
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, também escrevia em 1967:
Nós sozinhos, primeiro do que ninguém, levamos à
África a noção de direitos humanos e de igualdade
racial. Nós sozinhos, praticamos o princípio do
plurirracialismo, que agora todos consideram ser a
mais perfeita expressão de fraternidade humana e
progresso sociológico (...) As nossas províncias
africanas são mais desenvolvidas, mais
progressivas em todos os campos do que qualquer
território recentemente independente em África, a
sul do Saara, sem exceção.99
Assim, este discurso foi difundido junto ao conjunto da população
portuguesa, na perspectiva de fortalecer a “mentalidade imperial”, tanto através
de eventos de grande repercussão junto à opinião pública – como as “Semanas
Coloniais” ou a “Exposição do Mundo Português” (1940) -, quanto através do
sistema educacional que, com intensidade nunca vista anteriormente, é posto a
serviço da causa colonial.100 Com isto, o Estado salazarista partia de aspirações
coletivas e de um imaginário social pró-império preexistente, dando-lhe novos
significados e construindo um consenso nacional em torno do projeto imperial.
Desta forma, em nome da “missão civilizadora”, o Estado Português
implementou uma política de exploração sistemática das populações nativas,
tratadas como estrangeiros em sua própria terra. Embora, nos termos da
legislação existente, houvesse a possibilidade de um nativo obter a cidadania
98 MACQUEEN, Norrie. A Descolonização da África Portuguesa: A Revolução Metropolitana e a Dissolução do Império. Mem Martins, Inquérito, 1998, p. 32. 99 NOGUEIRA, Franco. The Third World. 1967, p.154-155, citado por: DAVIDSON, Basil. Os Valores Coloniais Portugueses, in: FERREIRA, Eduardo de Souza. O Fim de uma Era – O Colonialismo Português em África. Lisboa, Sá da Costa, 1977, p.5. 100 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil, Novas Áfricas. op.cit., p 189.
77
portuguesa e o status de civilizado, as condições para que isso acontecesse
eram extremamente restritivas: falar bem português, ser auto-suficiente
financeiramente, ter “bom caráter” e “comportamento apropriado” e cumprir o
serviço militar obrigatório. Desta forma, apesar da Constituição prever a
“unidade” entre Portugal e suas colônias, isto não garantia a igualdade entre os
cidadãos portugueses e as populações africanas.
Além disso, uma prática constante nas colônias era a forte exploração da
mão-de-obra nativa, inclusive constituindo-se isto em uma fonte de rendas para
a metrópole, visto que a mesma “agenciava” a exportação desta mão-de-obra
para as companhias inglesas que exploravam minerais na Rodésia e na África
do Sul. Esta prática, apesar de proibida pelo Ato Colonial, principalmente em
seus artigos 19 e 21101, persistiu durante todo o período do Estado Novo,
mesmo com pressões internacionais como as da OIT (Organização
Internacional do Trabalho), que chegou a enviar para as colônias portuguesas
uma comissão especial para fazer valer os termos da convenção 105 de 1957,
sobre a abolição do trabalho forçado, da qual Portugal era um dos signatários.
A justificativa do governo português para a exploração da mão-de-obra
nativa, assentava-se em algumas “brechas” existentes no próprio Ato Colonial
que, apesar de proibir formalmente o trabalho forçado, colocava em seu artigo
20o que “o Estado somente pode compelir os indígenas ao trabalho em obras
públicas de interesse geral da colectividade, em ocupações cujos resultados
101 Os artigos referidos estabelecem o seguinte: “Art. 19 – São proibidos: I – Todos os regimes pelos quais o Estado se obrigue a fornecer trabalhadores indígenas a quaisquer empresas de exploração econômica; II- Todos os regimes pelos quais os indígenas existentes em qualquer circunscrição territorial sejam obrigadas a prestar trabalho às mesmas empresas, por qualquer título. Art 21- O regime do contrato de trabalho dos indígenas assenta na liberdade individual e no direito a justo salário e assistência, intervindo a autoridade pública somente para fiscalização.
78
lhes pertençam, em execução de decisões judiciárias de carácter penal, ou
para cumprimento de obrigações fiscais”.102
Em seu aspecto econômico-financeiro, a política colonial salazarista -
definida por Perry Anderson como “ultracolonialista” 103 - determinava para as
colônias o papel clássico de fontes de matérias primas para a metrópole,
estabelecendo-se assim um moderno “pacto colonial”, onde as colônias
estavam impossibilitadas de manter quaisquer relações comerciais ou
financeiras diretas com outros países. Desta forma, estabelecia-se uma forte
relação de dependência entre as colônias e a metrópole, concretizada através
da criação da chamada “Zona do Escudo”, que se constituiu em um espaço
comercial de exclusividade entre a colônia e a metrópole, favorecendo assim
os grandes grupos econômicos monopolistas metropolitanos, principalmente
àqueles interessados na industrialização de Portugal, que eram os maiores
defensores deste papel “complementar” das economias coloniais:
Para os industrialistas, “solidariedade econômica”
significava “industrializar a metrópole e colonizar o
ultramar”: reservar os mercados das colônias às
exportações metropolitanas e dar facilidades às
importações que delas viessem, desde que fossem
matérias-primas necessárias e úteis, em termos de
custos, à industrialização metropolitana. Tratava-se
de subordinar a economia colonial ao plano de
desenvolvimento industrial português104.
Esta política acabou sendo de importância vital para a reestruturação
econômico-financeira implementada por Salazar em Portugal, em resposta à 102 Acto Colonial – Decreto-Lei 22.465. 103 ANDERSON, Perry. Portugal e o fim do ultracolonialismo. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. 104 MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – O Estado Novo (vol. 7). Lisboa, Editorial Estampa, s/d, p.288.
79
conjuntura econômica mundial, nos anos que se seguiram à grande crise de
1929. Os lucros obtidos com os produtos primários das colônias africanas e os
pagamentos em ouro recebidos em troca da utilização da mão-de-obra
moçambicana na África do Sul, contribuíram decisivamente para o equilíbrio da
economia portuguesa durante a década de 1930 e durante os anos da
Segunda Grande Guerra.
Por tudo isto, pode-se afirmar que o Ato Colonial consolidava uma política
nacionalista e uma orientação econômica protecionista, estabelecendo uma
interdependência plena entre as colônias e a metrópole, vistas como partes
integrantes de um “Estado indivisível”. Isto criou condições para “o crescimento
de uma mão cheia de monopólios (ou oligopólios) portugueses que como
componentes essenciais do Estado Novo corporativo, dominaram grande parte
da atividade econômica da África Portuguesa nos anos 50 e 60”.105
2.3. O fim do Império: As Guerras Coloniais e a Crise do Estado Novo
Salazarista
Durante os anos do Estado Novo, a inserção de Portugal nas relações
internacionais foi marcada por uma postura de relativo isolamento, devido
essencialmente à condenação da Comunidade Internacional à política
colonialista portuguesa, principalmente a partir da década de 1950, quando
intensificou-se o processo de descolonização afro-asiática. Esse processo
inicia-se imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, quando as velhas
potências imperialistas européias, enfraquecidas pelas sucessivas crises,
passaram a sofrer grandes pressões de suas colônias em favor da
103 MACQUEEN, Norrie. op. cit., p. 29
80
emancipação. Assim, fortaleceram-se nestas colônias movimentos
emancipacionistas de caráter nacionalista que se posicionavam contrariamente
ao colonialismo, ao racismo e ao imperialismo. Com o desenrolar do processo
de descolonização, as antigas colônias africanas e asiáticas começaram a
articular-se naquilo que ficou conhecido como “Bloco do Terceiro Mundo”:
Em 1955, reuniu-se em Bandung, na Indonésia,
uma conferência convocada pelo grupo de
Colombo, congregando os cinco países recém-
independentes – Índia, Paquistão, Ceilão, Birmânia
e Indonésia – e pela primeira vez, os chefes de
Estado de 29 países da Ásia e da África (18 a 24
de abril), que se apresentavam como um terceiro
mundo. Pronunciavam-se pela neutralidade e pelo
socialismo, mas declarando-se contra o Ocidente,
ou seja, os Estados Unidos, e contra a União
Soviética. Comprometiam-se a ajudar a libertação
dos povos subjugados. Era o “espírito de
Bandung”, que perdurou por mais de uma década,
até ser diluído ante as dificuldades e desilusões
enfrentadas pelos novos países libertados da
dominação colonial direta. No entanto, Bandung
traduziu um momento de esperança na
organização mundial e no futuro da democracia.106
Esse Bloco, que começou a crescer e a ter voz bastante ativa na
Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, foi o responsável pela
articulação de uma violenta condenação da Comunidade Internacional à
Política Colonial Portuguesa, a partir da década de 1950:
106 LINHARES, Maria Yedda. “Descolonização e lutas de libertação nacional”. In: REIS FILHO, Daniel Aarão, FERREIRA, Jorge e ZENHA, Celeste (Orgs.). O Século XX – O Tempo das Dúvidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 57-58.
81
No campo internacional, os anos 50 trouxeram
particulares dificuldades ao imperialismo
português. As guerras mundiais, uma vez
terminadas, engendraram instituições que
mobilizavam consciências sensíveis à guerra.
Portugal já fora denunciado na liga das nações.
nos anos 20, pelas suas práticas de trabalho
colonial. Agora, nos anos seguintes à Segunda
Guerra Mundial, as Nações Unidas dirigiam as
atenções para a questão fundamental do
colonialismo.107
Porém, se por um lado Portugal era condenado internacionalmente por
sua política colonial, por outro a própria debilidade econômica de Portugal - que
o tornava economicamente e tecnicamente incapacitado para aproveitar
plenamente e de forma lucrativa os imensos recursos existentes em suas
colônias - fez com que estas se tornassem uma área de especial interesse para
o capital internacional, notadamente a partir dos anos 50 do século XX. Com
pouca disponibilidade de capitais para investir, Portugal abriu seus domínios
ultramarinos para que companhias estrangeiras investissem na produção e na
infra-estrutura, assumindo assim um papel secundário em suas próprias
colônias, e definindo um modelo de “colonialismo dependente”. Desta forma, os
interesses do capital internacional acabaram gerando uma espécie de
“tolerância” das grandes potências para com a presença portuguesa na África,
apesar do clamor geral pela descolonização:
Assim, o Império português era sustentado por
elos econômicos que combinavam uma quase
restrição mercantilista com complexas redes
representativas dos interesses dos capitais da
107 MACQUEEN, Norrie. op. cit., p.30.
82
Europa Ocidental, da América do Norte e da África
do Sul. Embora nem sempre fosse visível, as
pressões para agüentar a África Portuguesa, e
para proteger o capital europeu em Portugal e nas
suas colônias, estavam profundamente interligadas
(...)108
Além disto, Salazar soube aproveitar-se muito bem do clima da Guerra
Fria, nas décadas de 1950 e 1960, para manter a sua posição em relação à
África. Isso ocorreu, graças ao forte conteúdo anti-comunista do Salazarismo e
à posse por Portugal de algumas áreas estratégicas para a geopolítica do
período, como os Açores, que possuíam uma importante base aérea utilizada
pelos EUA em diversas ocasiões, e Angola e Moçambique, que possuíam
portos estratégicos para a defesa dos interesses dos EUA e de seus aliados da
OTAN, no Atlântico Sul e no Índico. Assim, a entrada de Portugal na OTAN se
deu, em 1949, sem maiores problemas. Com isto, as pressões contra o
colonialismo português acabavam sendo esvaziadas:
A nível multilateral, a pressão sobre Portugal não
era mais óbvia nem mais útil. Apesar das repetidas
denúncias na Assembléia Geral das Nações
Unidas, sistematicamente ignoradas por Portugal,
este podia normalmente contar com a proteção de
seus amigos. A Grã-Bretanha, a França e os
Estados Unidos, as três potências com assento
permanente no Conselho de Segurança, sempre
frustraram, coletiva ou individualmente as
tentativas da Assembléia Geral para tomar
quaisquer medidas significativas contra Lisboa
108 MAXWELL, Kenneth. A Construção da Democracia em Portugal. Lisboa, Presença, 1999, p. 45.
83
durante toda a década de 60 e os primeiros anos
da década seguinte. 109
Devido a toda esta situação, as pressões internacionais contrárias ao
colonialismo português só tiveram como efeito prático a adoção, por parte do
governo português, de uma medida de “maquiagem”: a partir de 1951, as
colônias passam a ser chamadas de “Províncias Ultramarinas” ou “Territórios
Ultramarinos”, o que não alterou em nada as bases em que se assentava a
dominação colonial, pois, como assinalava, em 1962, o historiador José
Honório Rodrigues, o uso do termo “Províncias Ultramarinas” nada mais era do
que um simples rótulo ou máscara com que o Estado Português pretendia
“enganar os parvos deste mundo”110
Assim, a inserção de Portugal nas relações internacionais durante o
Regime Salazarista, apresentou alguns aspectos paradoxais, visto que se, por
um lado, a “política isolacionista” deliberadamente implementada pelo regime,
aliada à condenação da opinião pública internacional à política colonial
portuguesa e ao próprio regime salazarista, mantiveram Portugal numa postura
de relativo isolamento no contexto internacional; por outro, os interesses
econômicos e financeiros e as determinações político-estratégicas da
conjuntura mundial naquele momento, acabaram por garantir a integração de
Portugal dentro do Sistema Internacional.
Porém, a partir da década de 1960, por influência do processo mais
amplo de descolonização afro-asiática iniciado após a Segunda Guerra Mundial
109 MACQUEEN, Norrie. op. cit., p. 79-80. 110 RODRIGUES, José Honório. “O Brasil e o Colonialismo Português – Revisão de Uma Infâmia Secular”. In: METZNER-LEONE, Eduardo. O Brasil e o Colonialismo Português – Revisão de Uma Infâmia Secular, Rio de Janeiro, Gráfica Olímpica Editora, 1962, p.14. Este artigo foi publicado, originalmente, na Revista “Senhor”, de abril de 1962, e reproduzido na íntegra, na obra citada, que foi escrita como uma resposta ao mesmo.
84
e dos princípios terceiro-mundistas da Conferência de Bandung (1955),
intensificaram-se nas colônias portuguesas os movimentos de libertação em
relação à metrópole, gerando as chamadas “guerras coloniais”, que tiveram um
papel fundamental na crise do regime salazarista. Estes movimentos de
libertação colonial, como o PAIGC (Guiné e Cabo Verde), MPLA e UPA
(Angola) e FRELIMO (Moçambique), passaram a contar com o apoio da
opinião pública internacional, além da ajuda militar do bloco socialista que, no
contexto da Guerra Fria, tinha importantes interesses estratégicos no conflito.
Portugal, que insistia em manter inalterada sua política colonial, recebia apoio
declarado somente da Espanha Franquista e da África do Sul. Porém, por
causa dos interesses político-estratégicos já mencionados anteriormente,
Portugal contava com ajuda militar da OTAN, o que se refletiu no treinamento
de militares portugueses nos EUA e no recebimento de bombas de Napalm dos
norte-americanos, que foram amplamente utilizadas no combate aos
guerrilheiros africanos e à população civil que os apoiava, de forma muito
similar à ação norte-americana no Vietnã.
Os sinais de rebelião contra a dominação portuguesa começaram a
aparecer mais nitidamente a partir do início da década de 1950 quando, em
algumas colônias, aconteceram as primeiras manifestações de contestação,
como em São Tomé, em 1953, quando a Polícia Salazarista foi a responsável
pela morte de mais de 100 trabalhadores e camponeses em greve.
Alguns anos depois, no início da década de 1960, a política colonial
salazarista sofreu alguns sérios revezes como a perda do “Estado da Índia”
para a União Indiana e o “Caso Santa Maria”, quando este navio foi
seqüestrado pelo Capitão Henrique Galvão, em um episódio que culminou no
85
início da Guerra Colonial, em Angola, já que havia a expectativa que o mesmo
fosse para Luanda, o que acabou desencadeando uma série de conflitos na
mais importante das colônias africanas. Tal acontecimento também
demonstrou o descontentamento existente entre boa parte das forças armadas
portuguesas em relação ao regime, que já se havia manifestado anteriormente
com a candidatura do General Humberto Delgado, nas eleições presidenciais
de 1959, e que teria sua culminância em uma fracassada tentativa de golpe
militar contra Salazar, em 1961, que envolveu elementos do alto escalão das
forças armadas, inclusive o Ministro da Defesa, Gal. Botelho Muniz.
Nesse contexto, começaram a ser organizados, nas colônias africanas,
diversos movimentos guerrilheiros que iriam iniciar, naquele momento, uma
forte ofensiva contra as forças colonialistas. Assim, por volta de 1961, o
número de guerrilheiros em ação em toda a África Portuguesa já superava os
dez mil homens e, no mesmo ano, os movimentos rebeldes das diversas
colônias davam um importante passo para a articulação de sua luta política
com a criação da CONCP (Conferência das Organizações Nacionalista de
Colônias Portuguesas). Este organismo, sediado em Argel e articulado
inicialmente pela UPA (União das Populações de Angola), pela MPLA
(Movimento pela Libertação de Angola) e pelo PAIGC (Partido Africano pela
Independência da Guiné e de Cabo Verde), teria o papel de funcionar como
coordenador das diversas lutas de libertação na África Portuguesa. A CONCP,
juntamente com os governos de Gana e da Tanzânia, foi fundamental para a
articulação de um movimento de libertação em Moçambique, ultima colônia a
ter uma organização revolucionária verdadeiramente nacional, o que só iria se
86
concretizar em 1962, com a criação da FRELIMO (Frente de Libertação de
Moçambique):
Era claramente de grande importância para a
CONCP trazer Moçambique para um movimento
mais amplo e foi um êxito importante quando o
conseguiu, quaisquer que fossem os problemas
implícitos na criação de um movimento de
libertação nacional por incitamento externo.111
Nos anos seguintes, as ações desses movimentos guerrilheiros
intensificaram-se, fazendo com o que Estado Português dispendesse cada vez
mais homens e recursos para o combate aos revolucionários africanos. Ao
mesmo tempo, são tomadas medidas de “maquiagem” para tentar conter a
revolta nas colônias, tais como a supressão formal do trabalho forçado dos
nativos e a ampliação das possibilidades de acesso à cidadania portuguesa.
Assim, a guerra colonial iniciada em Angola, em 1961, espalhou-se pelas
outras colônias atingindo a Guiné, em 1963 e Moçambique, em 1965. Ao
mesmo tempo, intensificaram-se as pressões contra o colonialismo português,
fazendo com que crescesse o isolamento político-econômico do regime
salazarista.
Surge também nos meados da década de
cinqüenta o obstáculo maior à eternização de uma
ditadura que não dava sinais de querer adaptar-se
ao seu tempo ou evoluir: a “questão colonial” (...)
Salazar recusar-se-ia a qualquer concessão ou
negociação quanto à administração das parcelas
africanas, mantendo-se firmemente apostado em
111 MACQUEEN, Norrie. op. cit., p. 42
87
permanecer “orgulhosamente só” até ao fim, como
disse num discurso.112
Internamente, o prolongamento da Guerra Colonial começou a solapar
as bases de apoio do Estado Novo e fez com que setores que tradicionalmente
apoiavam o regime - como a Igreja, os Militares e a Burguesia Monopolista -
assumissem uma postura crítica em relação a este, engrossando, assim, as
fileiras da tradicional oposição portuguesa. Esta oposição formada por
comunistas, socialistas e democratas se unia em torno de alguns objetivos
comuns como o fim da Guerra Colonial, a modernização do país e a
democratização das forças armadas e da própria sociedade portuguesa
Entre os setores descontentes com a prolongada guerra colonial e a
intransigência de Salazar, destacavam-se a burguesia monopolista, uma das
principais bases de sustentação do regime, que via na guerra um obstáculo aos
seus interesses econômicos e à entrada de Portugal no Mercado Comum
Europeu; setores da elite militar, que tinham a percepção de que os problemas
coloniais deveriam ser resolvidos através da ação política e não da ação militar;
e os próprios aliados de Portugal na OTAN, que com o prolongamento da
guerra, passaram a encará-la como uma ameaça aos seus interesses
estratégicos na África, naquele contexto de Guerra Fria. Além disso, a guerra
colonial possibilitou a rearticulação das oposições portuguesas em torno das
idéias fundamentais de pôr fim à guerra e de democratizar o país.
Sobre esta questão, é importante ressaltar a estreita relação existente
entre as organizações revolucionárias africanas e setores da oposição 112 MEDINA, João. “A Ditadura Portuguesa do Estado Novo (1926-1974): Síntese da Ideologia e Mentalidade do Regime Salazarista-Marcelista”. In: TENGARRINHA, José (Coord.).A Historiografia Portuguesa, Hoje. São Paulo, Hucitec/Instituto Camões, 1999, p. 226-227.
88
portuguesa, notadamente o PCP (Partido Comunista Português), que
associavam a luta pela libertação das colônias à luta contra a ditadura. Esta
percepção da articulação existente entre estas duas lutas está bastante clara
nos escritos de Amílcar Cabral, um dos mais importantes líderes
revolucionários da África Portuguesa, que afirmava que:
Se a queda do fascismo em Portugal pode não
conduzir ao fim do colonialismo português - e esta
hipótese é de resto enunciada por alguns dos
dirigentes da oposição portuguesa -, estamos
certos que a liquidação do colonialismo português
provocará a destruição do fascismo em Portugal.113
Além da questão colonial, o próprio desenvolvimento da economia
portuguesa no decorrer da década de 1960, com a entrada maciça de
investimentos estrangeiros aproveitando-se das vantagens oferecidas pelo
regime (inexistência de sindicatos livres, baixos salários), e a
internacionalização das velhas empresas oligárquicas - que até então atuavam
basicamente em Portugal e nas colônias, e que passaram a investir em novas
áreas como o Brasil, os EUA e a Europa - contribuiu para aumentar as
contradições internas do regime e enfraquecer sua base de apoio, visto que
importantes setores da elite portuguesa começaram a ter a percepção de que o
modelo político e econômico do Estado Novo limitava as possibilidades de
crescimento do país e de sua integração no mercado internacional.
Por outro lado, o crescimento da economia portuguesa se deu de
forma excludente, não trazendo mudanças significativas na situação social da
maior parte da população portuguesa. De acordo com o historiador português
113 Citado em: BENOT, Yves. A Ideologia das Independências Africanas. Vol. 2, Lisboa, Sá da Costa, 1981, p.199.
89
José Tengarrinha, estas transformações na economia “se traduziram no
crescimento do setor secundário (indústrias transformadoras e construção),
diminuição dos ativos agrícolas e aumento dos trabalhadores de serviços e do
terciário em geral, num processo de crescimento anômalo que não eliminava -
antes, até, nalguns aspectos agravava - o subdesenvolvimento social”.114
Os claros limites deste modelo econômico fizeram com que, já no final
da década de 1960, se delineasse um quadro bastante negativo para a
economia portuguesa, que se agravou com a crise mundial do petróleo e a
conseqüente desvalorização do escudo, em 1973:
Os últimos anos do regime corporativo
apresentavam sinais de uma crise crescente:
atenuação da taxa de crescimento das exportações
e esgotamento do modelo de industrialização,
assente numa política de substituição de
importações, com o conseqüente incremento do
défice comercial; afrouxamento da taxa de
crescimento do investimento na indústria;
dificuldade crescente de o Estado suportar as
despesas com infra-estrutura, devido ao peso das
despesas de guerra. Por outro lado, a diminuição
dos salários reais acelera-se entre 1971 e 1973,
sobretudo pela subida da taxa de inflação,
aumentando assim a desigualdade na repartição
dos rendimentos, a qual vai contribuir para um
agravamento dos conflitos sociais.115
Além disso, o regime também vivia um momento de instabilidade
política desde 1968, com a subida ao poder de Marcello Caetano, devido ao
afastamento por doença de Salazar e o seu posterior falecimento (1970). A
114 TENGARRINHA, José. Os Caminhos da Unidade Democrática Contra o Estado Novo. in : TENGARRINHA, José (Coord.). op. cit., p. 272. 115 MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal - Vol. 8. Lisboa, Estampa, s/d, p.17.
90
ascensão do novo “homem-forte” do regime salazarista acendeu as esperanças
dos setores liberais portugueses na realização de reformas políticas e
econômicas que levassem à liberalização do regime e à modernização de
Portugal. Porém, quaisquer que fossem as intenções de Caetano, sua posição
“ficou limitada desde o princípio pela presença no regime de poderosos
elementos empenhados na continuação da política de Salazar, particularmente
em relação à África, tanto no governo como entre os militares”.116 Desta forma,
as esperanças na liberalização do regime foram logo frustradas.
Por outro lado, faltava a Caetano a habilidade política de seu
antecessor em articular os interesses distintos dos setores que davam
sustentação ao Estado Novo, tanto interna, quanto externamente. Com isto,
apesar de tentar manter uma imagem reformista, a indefinição e a indecisão
características de seu governo acabaram tanto desagradando aos setores mais
liberais, quanto gerando a desconfiança dos setores mais à direita.
Todos estes fatores contribuíram para a crise do Estado Novo e para a
sua derrubada pela Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974. Este
movimento, levado a cabo pela oficialidade jovem das Forças Armadas e por
setores mais “liberais” da elite militar portuguesa, pôs fim aos quase 50 anos de
ditadura em Portugal de forma rápida e, de certo modo, inesperada,
surpreendendo, inclusive, os observadores internacionais.
A articulação de boa parte das Forças Armadas contra o regime
Salazarista-Caetanista deu-se a partir de algumas questões específicas dos
militares como o cansaço da guerra colonial entre os oficiais das forças
armadas e a alteração das regras de acesso à carreira militar, que acabaram
116 MACQUEEN, Norrie. op. cit., p. 91.
91
levando à formação do MFA (Movimento das Forças Armadas), estruturado
fundamentalmente entre a oficialidade mais jovem das Forças Armadas
portuguesas.
Por doença, Salazar teve entretanto de abandonar
a chefia do governo (1968), confiada então a
Marcelo Caetano, que governaria até 1974 sem
nunca conseguir resolver o problema fundamental
do regime ditatorial, a questão das guerras
coloniais, nó górdio que estaria na origem de uma
contestação militar que, transportada para a
Metrópole, criaria o Movimento das Forças
Armadas (MFA), que finalmente derrubou um
regime fundado pelas armas, quase meio século
depois117.
Além disso, na própria cúpula da elite militar começaram a surgir
vozes dissonantes em relação ao regime, como as dos Generais Costa Gomes
e Antônio de Spínola, duas das mais importantes figuras da hierarquia militar
portuguesa.
O General Spínola, Comandante-Chefe da Guiné Portuguesa, lançou
em fevereiro de 1974, com a anuência de Costa Gomes, Chefe do Estado-
Maior e seu superior imediato, o livro Portugal e o Futuro, onde analisando a
situação de Portugal, defendia a idéia de que a questão colonial não tinha
solução militar possível e de que somente a autonomia progressiva das
colônias e o reconhecimento dos direitos dos povos africanos à
autodeterminação, poderiam resolver o impasse gerado pelas guerras
coloniais. Para ele, o caminho para a quebra do isolamento português no
cenário internacional passava pela solução do problema colonial, com a
117 MEDINA, João. op.cit., p. 227-228.
92
formação de uma espécie de commonwealth portuguesa, fazendo com que as
colônias permanecessem ligadas a Portugal através desta Federação de
Estados Autônomos. Esta proposta de resolução pacífica da questão colonial,
através da implantação de uma “política neocolonial”, obteve grande
ressonância junto à burguesia portuguesa, pois garantiria a continuidade do
fornecimento de matérias-primas provenientes das colônias, a baixo custo,
aumentando assim a competitividade das empresas portuguesas no mercado
internacional. Por estas propostas, fica bastante claro que o livro Portugal e o
Futuro possuía um tom bastante conciliador e ponderado, pois demonstram
claramente que “os objetivos de Spínola eram moderados e constituíam uma
alternativa conservadora, pois se apresentava como antídoto à desagregação
de Portugal pela via revolucionária”.118
No entanto, a publicação dessa obra foi considerada um desafio público
ao regime, já que colocava em xeque as bases do sistema salazarista:
Os velhos fascistas, que tinham criado o regime e
dedicado as vidas ao seu serviço, consideravam o
tom liberal e democrático do livro como um
anátema, e foi precisamente isso que fez de
Portugal e o Futuro um êxito editorial.
Inevitavelmente, a opinião pública concluiu que
nenhum governo poderia aceitar de bom grado a
participação popular em África, ao mesmo tempo
que a negava em Portugal.119
118 SECCO, Lincoln. A Revolução dos Cravos e a crise do Império Colonial Português. São Paulo, Alameda, 2004, p. 110. A proposta da “Comunidade Lusíada”, do Gal. Spínola, será analisada em maiores detalhes no capítulo 3. 119 MAXWELL, Kenneth. op. cit., p. 50.
93
As repercussões do livro na sociedade portuguesa e o mal-estar
gerado pelas demissões de Costa Gomes e Spínola contribuíram, sem dúvida,
para acelerar a organização do golpe que iria derrubar Marcelo Caetano.
Assim, vinte e cinco minutos após a meia-noite do dia 25 de abril de
1974, o radialista José Vasconcelos, da Rádio Renascença, emissora católica
de Lisboa, tocou, em seu programa “Limite”, a canção “Grândola, Vila Morena”,
do compositor José Afonso: era a senha para o início da revolta que iria mudar
os rumos de Portugal, e que nos primeiros dias foi chamado de Revolta dos
Capitães, para em seguida receber o nome de Revolução dos Cravos, a flor de
abril em Portugal. Chegavam ao fim os 48 anos da mais obscura ditadura
européia, a salazarista.
2.4. Os “cacos” do Império: Portugal no pós-25 de abril.
O período que se seguiu à Revolução de Abril foi marcado por intensa
agitação política e social, com diversos projetos políticos e concepções
distintas de sociedade se confrontando no confuso cenário político português, e
com o processo revolucionário passando por marchas e contramarchas.
Somente em 1976, com a promulgação de uma nova constituição,
politicamente bastante avançada, e com a eleição de Ramalho Eanes para a
Presidência da República, as instituições democráticas começaram a
consolidar-se em Portugal. Porém, se por um lado, Portugal foi conseguindo se
estabilizar politicamente, por outro, o país passou por sérios problemas
econômicos, nos primeiros anos após a Revolução: uma reforma agrária mal-
executada gerou uma queda brutal na produção de alimentos e o aumento das
importações fez com que a dívida externa atingisse níveis altíssimos. Além
94
disto, a independência das colônias, em 1975, fez com que Portugal perdesse
importantes fontes de matérias-primas, além do que o regresso de mais de
800.000 colonos fez com que os graves problemas sociais do país se
agravassem.
Este momento representou uma ruptura significativa para o Estado e
para a sociedade portuguesa, redefinindo as suas estruturas internas e a sua
inserção nas relações internacionais contemporâneas, pois com a vitória da
Revolução dos Cravos, iniciou-se a descolonização do Império Ultramarino
Português, concretizada durante os anos de 1974 e 1975, quando as últimas
tropas portuguesas foram se retirando das ex-colônias. Este acontecimento
marca o início do processo que Boaventura de Souza Santos chamou de
“reterritorialização”, ou seja, o retorno de Portugal aos limites de seu território,
cinco séculos depois de iniciar a formação de seu Império Colonial. Porém, ao
mesmo tempo em que passava por esta “reterritorialização”, Portugal inseria-se
em um novo processo de “desterritorialização”, 120 desta vez em relação à
Europa. De fato, a Revolução dos Cravos e o processo histórico que se seguiu
a ela, marcaram o fim da “política atlântica”, que caracterizava a inserção de
Portugal nas relações internacionais até então, e definiram o seu retorno para
“os braços da Europa”, praticamente relegando a um segundo plano as suas
relações com as ex-colônias:
Enquanto estava de costas voltadas para a África,
Portugal ganhava grandemente com o facto de ter
chegado a um entendimento com a Europa. O
pedido de adesão à Comunidade tinha sido feito
pelos governos socialistas no final da década de
120 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice... Os conceitos de reterritorialização e desterritorialização são trabalhados em toda a segunda parte do livro, principalmente no artigo “Onze Teses por ocasião de mais uma Descoberta de Portugal”.
95
70, mas as negociações foram levadas a cabo
pelos governos conservadores dos anos 80,
dirigidos por políticos reabilitados que tinham
funcionado como uma pequena ala ‘liberal’, na
última legislatura de partido único anterior à
Revolução. Entrar para a Europa era considerado
um reconhecimento de respeitabilidade
democrática, para além da abertura de novas
portas à economia.121
Vinte e cinco anos depois, ao escrever sobre todo este processo, o
jornalista Márcio Moreira Alves descreveu da seguinte forma o retorno de
Portugal à “normalidade democrática”:
Os líderes dos capitães de abril surgiram como
estrelas cadentes, para desaparecer à medida que
os partidos políticos se organizavam, as eleições
revelavam as preferências do eleitorado e o país
entrava na normalidade democrática. Um governo
provisório sucedia a outro, houve seis ou sete e,
por fim, o povo se cansou de tanta política. Tornou-
se outra vez europeu, votou pela adesão à União
Européia, foi trabalhar e alcança hoje níveis de
vida semelhantes ao dos países do norte do
continente.122
Analisando todas estas questões, não deixa de ser interessante notar que
o Terceiro Império, tão caro para o “Estado Novo” e seu ideário político, foi,
essencialmente, estruturado por um homem que nunca pisou em solo do
ultramar e que tinha um conhecimento bastante limitado da realidade das
121 BIRMINGHAM, David. op. cit.., p. 236. 122 ALVES, Márcio Moreira. Os Cravos de Abril. O GLOBO, 25/04/1999.
96
colônias, mas que, em nenhum momento, aceitou discutir uma solução
negociada para o problema colonial.
Assim, devido a essa relação extremamente estreita existente entre a
ditadura salazarista e o colonialismo, não é de se admirar que tenha sido,
justamente, a questão colonial um dos fatores fundamentais que levaram à
derrocada do regime.
Entre 1968 e 1972, por exemplo, a maior parte do
exército português (142 mil homens) se encontrava
na África, na defesa das colônias em guerra,
enquanto o movimento armado pela libertação
tinha o apoio da opinião pública internacional,
contava com a solidariedade africana e com o
suporte em material bélico e assistência aos
militantes de países da área socialista e governos
simpatizantes escandinavos (...) Finalmente, em 25
de abril de 1974, jovens oficiais das Forças
Armadas em Portugal derrubam a ditadura,
apoiados no povo cujas armas eram os cravos que
levavam e a alegria estampada nos rostos. Era a
democracia em marcha e a decretação do fim do
colonialismo. O exército colonial fora derrotado e
voltava-se contra a metrópole em nome da
liberdade.123
Ao mesmo tempo, em que o regime salazarista caía por terra, também
pareciam desmoronar os velhos mitos do “destino imperial” português e da
“missão histórica” de Portugal. Assim, cinco séculos depois do início de sua
Expansão Marítima, Portugal voltava a ficar restrito aos limites de seu pequeno
território.
123 LINHARES, Maria Yedda. op. cit., p. 59-60.
97
Refletindo sobre esse processo, é importante notar a maneira com que o
povo português lidou com ele. Era de se esperar que, a derrocada de um
Império de cinco séculos, que o Estado Português considerava como “parte
indivisível” da nação, representasse um trauma profundo para os portugueses.
Porém, em um dos momentos mais importantes de sua história, mais uma vez
o povo português esteve “ausente de si mesmo” 124, como ressaltou o ensaísta
Eduardo Lourenço, na mesma perspectiva assinalada por David Birmingham
que afirmou, em já citada passagem, que no período que se seguiu à
descolonização, os portugueses passaram por uma verdadeira amnésia
coletiva em relação à África, como se Portugal nunca tivesse sido uma nação
imperial. Sobre isto, nos diz Lourenço, “pelo império devimos outros, mas de
tão singular maneira que na hora que fomos amputados à força (mas nós
vivemos a amputação como voluntária) desse componente imperial de nossa
imagem, tudo pareceu passar-se como se jamais tivéssemos tido essa
famigerada existência imperial e em nada nos afetasse o regresso aos estreitos
e morenos muros da pequena casa lusitana”.125 Assim, da mesma maneira que
o Estado Novo construiu os mitos do “colonialismo exemplar” e da “Civilização
Luso-Tropical”, trabalhou-se a descolonização com a mesma perspectiva, ou
seja, como um exemplo de descolonização negociada, e “o país foi posto diante
do fato consumado e como tal o recebeu, não só porque tinha a vaga
consciência de que não era possível outra solução, como supunha – talvez a
justo título – que era o preço a pagar por sua própria libertação”.126
No entanto, naquele momento, o sonho imperial aparentava ter ficado
definitivamente para trás e o futuro português parecia voltar-se então para a 124 LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. 2o ed., Lisboa, Dom Quixote, 1982, p. 47. 125 Idem. p. 41. 126 Idem. p. 64.
98
Europa, mais de quinhentos anos depois do início da expansão pelo Atlântico.
Este “retorno à Europa” suscitou em Portugal uma série de debates sobre a
questão da identidade nacional, refletindo a necessidade do país se repensar
enquanto nação e de redefinir o seu papel na Comunidade Internacional. Em
um de seus ensaios127, Eduardo Lourenço afirma que um dos elementos
fundamentais da identidade portuguesa é a consciência – e a euforia mítica
gerada por ela – de, em determinado momento da História ocidental, ter
desempenhado um papel fundamental “medianeiro e simbolicamente
messiânico”, transformando, graças a essa mediação, essa História ocidental
em História mundial. Portanto, nem mesmo momentos cruciais da História
Portuguesa – como o 25 de Abril e a dissolução do Império Colonial – ou
mesmo a pouca importância de Portugal no mundo contemporâneo,
conseguem alterar esta percepção que os portugueses têm de si mesmos.
Assim, para Lourenço:
O que nós somos, por ter sido, não nos parece
poder ser dissolvido ou realmente ameaçado por
perigo algum vindo do exterior, improvável
federação hispânica ou provável, no futuro,
confederação européia. Em qualquer entidade
transnacional que nos pensemos, figuraremos
sempre com uma identidade, que é menos a da
nossa vida e capacidade coletiva própria, do que
essa de ator histórico privilegiado da aventura
mundial européia.128
127 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as duas razões, 4a ed., Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. Estas idéias são expostas, fundamentalmente, no primeiro ensaio do livro, “Identidade e Memória – O Caso Português”, porém são temas constantes da obra de Lourenço e já aparecem em sua obra mais conhecida, “O Labirinto da Saudade”, já citada neste trabalho. 128 Idem. p. 11.
99
Esta visão de mundo fez com que, de certa forma, Portugal passasse a se
ver - e também a ser visto – como “desertores da Europa”, e essa Europa
passasse a ser vista como o “outro” de Portugal. Esta percepção foi alimentada
pela ditadura salazarista que, com o discurso do “orgulhosamente” sós, vendia
a imagem de Portugal como o “paraíso perdido”, em meio à “crise moral’ vivida
pela Europa. No entanto, com a integração de Portugal à CEE (Comunidade
Econômica Européia), os Europeus deixam de ser os “outros” e passam a ser
“nós”. Como os portugueses encararam esta questão? Para Lourenço, Portugal
sempre foi Europa – uma outra Europa Ibérica e católica - e esse retorno à
Europa significaria, na verdade, uma “reconciliação”:
(...) nós, primeiros exilados da Europa e seus
medianeiros da universalidade com a sua marca
indelével, bem podemos trazer à nossa Europa à
Europa. E dessa maneira reconciliarmo-nos, enfim,
conosco próprios.129
Pensando as mesmas questões, Boaventura de Souza Santos
analisou o problema identitário de Portugal, a partir da perspectiva teórica do
Sistema-Mundo.130 Em última instância, essa questão seria definida pelo
129 Idem. p. 37. 130 A concepção do “Sistema-Mundo”, formulada por teóricos como Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi, busca compreender as relações internacionais a partir da perspectiva da economia do mundo capitalista. Desta forma, o Sistema-Mundo entende as relações internacionais como um sistema onde as relações interativas seriam caracterizadas pela competição ou pela subordinação entre Estados e regiões econômicas, estando cada um desses atores sociais integrado sucessivamente – e hierarquicamente, de acordo com os “círculos braudelianos” – a uma mesma “estrutura de poder” (ALMEIDA: 1999, p.28). A partir dessa perspectiva braudeliana, as relações exteriores não configurar-se-iam, propriamente, a todo o planeta, mas, simplesmente, a uma região específica do espaço econômico mundial, onde deparamo-nos com círculos concêntricos, que abrangem, sempre, um “centro” – isto é, a área hegemônica, sob o ponto de vista político, militar e econômico – e inúmeras “periferias” – ou seja, os países que orbitam a zona de influência da região central.A teoria do Sistema Mundo sustenta-se, intelectualmente, a partir das dicotomias de classe (burguesia x proletariado) e da divisão internacional do trabalho (centro x periferia). Na primeira dicotomia, a dominação por parte das camadas dirigentes faz-se pelas decisões sobre a natureza e a quantidade da produção material; ao passo que na segunda produzem-se “trocas desiguais”,
100
histórico papel “semi-periférico” de Portugal, que o torna colonizador fora da
Europa, e colonizado dentro dela. Este “caráter intermédio” acaba fazendo com
que Portugal seja considerado um “paradoxo” ou um enigma, pelos
estrangeiros e pelos próprios portugueses,131 ao mesmo tempo em que gera
algumas características identitárias bastante peculiares. Para Santos, as
Identidades e Culturas nacionais são frutos da ação do Estado, principalmente,
no século XIX. No caso português, houve uma incapacidade do Estado em
cumprir esse papel, o que gerou um tipo específico de cultura que ele
denomina “Cultura de Fronteira”:
(...) enquanto identidade nacional, Portugal nem
nunca foi semelhante às identificações culturais
positivas que eram as culturas européias, nem
nunca foi suficientemente diferente das
identificações negativas que eram, desde o século
XV, os outros. (...) Em termos simbólicos, Portugal
estava demasiado próximo de suas colônias para
ser plenamente europeu e, perante estas, estava
demasiado longe da Europa para ser um
colonizador conseqüente. Enquanto cultura
onde a remuneração superaria, em muito, o capital investido. A vinculação dessas duas dicotomias aparece no cerne do sistema capitalista que produz a junção entre as dicotomias burguesia/proletariado e centro/periferia, de modo a lhe possibilitar resistir às periódicas crises que o assolam. O Sistema-Mundo, assim, procura elucidar os problemas da política internacional a partir de uma perspectiva totalizante, não concedendo espaço às especificidades nacionais. Procura, desse modo, obter respostas últimas aos problemas que lhe permitem, mesmo, existir. Ao analisar a inserção internacional de Portugal sob esta perspectiva, Boaventura de Souza Santos utiliza o conceito de “sociedade semiperiférica” ou de desenvolvimento intermédio” formulado inicialmente por I. Wallerstein e adaptado por ele ao caso português. Este conceito foi criado como uma categoria intermediária entre as categorias básicas do sistema mundial, ou seja, as categorias de países centrais e países periféricos, e pode ser aplicada, historicamente, a Portugal, que na época do Império Colonial já se encontrava nesta situação, pois funcionava como centro em relação às suas colônias e periferia em relação aos países centrais do capitalismo, desempenhando o papel de “correia de transmissão” entre eles. Na concepção do “Sistema-Mundo”, as sociedades semiperiféricas desempenhariam um papel fundamental dentro do sistema capitalista, na medida em que a mundialização do processo de acumulação capitalista não exclui e, pelo contrário, pressupõe a segmentação das relações intrasistémicas e são precisamente as sociedades semiperiféricas que, pela sua função de intermediação, conferem especificidade e estabilidade aos vários segmentos do sistema mundial (SANTOS: 1998, p. 107). 131 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice... Estas idéias aparecem nesta obra - já citada anteriormente – principalmente ao longo dos capítulos 3 e 6, intitulados, respectivamente, “Onze Teses por Ocasião de Mais uma Descoberta de Portugal” e “Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira”.
101
européia, a cultura portuguesa foi uma periferia
que, como tal, assumiu mal o papel de centro nas
periferias não-européias da Europa.132
Assim, a cultura portuguesa seria caracterizada pelo acentrismo e pelo
cosmopolitismo, característicos do “estar na fronteira”.133 E estas
características, de forma diferenciada, estariam presentes no Brasil e na África
Portuguesa – um exemplo disto seria a idéia da “antropofagia cultural” dos
modernistas. Segundo Santos, neste momento de Globalização e integração à
Europa, tal caráter fronteiriço da cultura portuguesa teria aspectos positivos:
O contexto global do regresso das identidades, do
multiculturalismo, da transnacionalização e da
localização parece oferecer oportunidades únicas a
uma forma cultural de fronteira precisamente
porque esta se alimenta dos fluxos constantes que
a atravessam. A leveza da zona fronteiriça torna-a
muito sensível aos ventos. É uma porta de vai-
vem, e como tal nem nunca está escancarada,
nem nunca está fechada.134
A partir das questões levantadas acima por Lourenço e Santos, pode-se
perceber os impactos da integração à Europa sob a sociedade portuguesa, no
momento em que todo a nação definia o que queria para si e em que o “Estado
português consumou uma opção política e econômica de fundo”135. Assim, as
antigas colônias africanas foram praticamente deixadas de lado, embora não
se possa negar que, apesar das enormes dificuldades econômicas e políticas
enfrentadas pelos governos portugueses pós-25 de abril, o Estado português
132 Idem. p. 151-152. 133 Ver nota 17. 134 Idem. p. 154-155. 135 MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – Portugal em Transe (Vol. 8). op.cit., p. 150.
102
não deixou de enviar alguma ajuda às suas ex-colônias, principalmente através
dos “colaborantes”, profissionais especializados geralmente pagos pelo
governo português.136 Somente, com o ensaio de uma volta ao Atlântico, já na
década de 1980, é que as ex-colônias voltam ao centro das atenções em
Portugal, fazendo com que a velha mística imperial reaparecesse novamente,
desta vez envolta sob o amplo manto do discurso da lusofonia.
136 Ver nota 32.
Capítulo III
Comunidade Lusófona: a Construção de uma Idéia
Conforme discutimos no primeiro capítulo deste trabalho, o Estado
português - mesmo com sua limitada capacidade de intervenção, devido à sua
condição periférica no Sistema Internacional - tem procurado investir na
construção da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, elegendo-a
como uma das prioridades da sua política externa. Assim, entendemos que a
inserção de Portugal na Nova Ordem Mundial, que começou a se estruturar na
década de 1990, passa por dois caminhos: a sua integração à Europa e a
retomada da Política Atlântica, abandonada após o 25 de Abril. Estes dois
caminhos não são excludentes, ao contrário, são complementares, pois o
pertencimento à U.E. garante a Portugal recursos para investir nesta Política
Atlântica, que ele, sozinho, não teria. Por isso, a constituição de uma
Comunidade Lusófona com suas ex-colônias adquire uma importância
econômica e estratégica muito grande para Portugal, visto que este fato
possibilitaria a ele, devido a sua posição geográfica, funcionar como o centro
de uma articulação entre o Atlântico Norte e o Atlântico Sul.
A questão econômica também aparece de forma bastante
significativa, na perspectiva de construção desta comunidade lusófona, pois
mesmo com o seu afastamento da África, nos anos seguintes à
descolonização, Portugal continuou mantendo relações econômicas, mesmo
modestas, com suas ex-colônias. O grande problema do Estado português,
neste aspecto, é a sua capacidade limitada de investimentos, o que restringe o
104
estreitamento destas relações. Porém, isto teria condições de ser compensado
com a entrada de Portugal na UE, visto que esse poderia funcionar como
“placa giratória entre seus novos parceiros e as suas antigas colônias”.137 No
entanto, é necessário lembrar que, dentro da lógica da competição entre os
Estados, os outros países da UE não irão, necessariamente, defender os
interesses portugueses na África, se avaliarem a existência de possibilidades
econômicas ou vazios políticos a serem preenchidos nos PALOP – como
exemplos disto, podemos citar a recente entrada de Moçambique na
Comunidade Britânica, ou o avanço dos interesses franceses na Guiné-Bissau,
que se encontra cada vez mais integrada à África Francófona. Como assinala
Sombra Saraiva, “a inserção portuguesa na CPLP é mesmo uma possibilidade
de preservar interesses já consolidados e para consolidar – particularmente
nos setores comerciais e financeiros – a reconstrução de países como Angola
e Moçambique”.138 Assim, em uma ordem internacional onde as questões
econômicas adquiriram uma grande importância, este retorno ao Atlântico
poderia possibilitar a Portugal melhores condições para renegociar o seu papel
no Sistema Internacional.
Desta forma, e sob esta perspectiva, o Estado português - dentro das
suas possibilidades – procurou adotar uma política cultural bastante agressiva
de divulgação da língua e da cultura portuguesas no mundo. Como exemplo
desta política pode-se citar a atuação do Instituto Camões - que tem por
objetivo básico coordenar todas as atividades de promoção e de defesa da
cultura portuguesa, bem como da língua, em todo o mundo –, além do
137 ENDERS, Armelle. op. cit., p. 128. 138 SARAIVA, José Flavio Sombra. Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP): Solidariedade e Ação Política. op. cit., p. 67.
105
investimento na manutenção de quase duas centenas de leitorados em nível
docente superior espalhados por Universidades em quatro continentes.
A política de articulação do mundo lusófono e de fortalecimento da
língua portuguesa – a partir do discurso da “herança cultural comum” – atende
a um objetivo estratégico de consolidar a língua portuguesa como uma das
línguas mundiais da cultura, impedindo que o castelhano se imponha como o
único representante da cultura ibérica, o que acaba sendo uma nova vertente
da velha rivalidade com a Espanha e do medo de ser absorvido, de alguma
forma, pela vizinha mais poderosa. Esta questão - mesmo com o Castelhano já
tendo se tornado a segunda língua mais falada no mundo ocidental e estar
passando por um processo de expansão – ainda repercute de forma muito
forte junto à opinião pública portuguesa e a setores das elites intelectuais e –
mesmo na contracorrente da realidade – continua sendo alvo de calorosos
debates.139
3.1. Comunidade Lusíada, Comunidade Luso-Afro-Brasileira: uma
genealogia do ideal comunitário.
Como colocamos anteriormente a idéia de uma Comunidade que
articulasse os povos de língua portuguesa é bastante antiga e ganhou
destaque a partir de meados do século XX, quando diversos intelectuais
portugueses e brasileiros, sob diferentes perspectivas, começaram a pensar
em sua constituição.
A CPLP é uma visão de caráter mais ou menos
utópico, a partir da década de 50, teorizada por
intelectuais da craveira de Agostinho da Silva,
139 Boaventura de Souza Santos traça um interessante painel sobre a situação atual desta controvérsia no capítulo intitulado “Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal” em Pela mão de Alice... op. cit., p. 53-74. Ver notas 18 e 82.
106
Gilberto Freyre, Joaquim Barradas de Carvalho,
Adriano Moreira, Darcy Ribeiro, entre outros. Era o
sonho que então se designava por Comunidade
Luso-Afro-Brasileira.140
Naquele momento, em que Portugal ainda mantinha o seu Império
Colonial, a idéia de uma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa estava
intrinsecamente ligada à noção da hegemonia portuguesa dentro dela,
cabendo ao Brasil o papel de simples coadjuvante. De certa forma, as bases
políticas dessa idéia foram lançadas com a assinatura do Tratado de Amizade
e Consulta, assinado entre Brasil e Portugal, em 1953. A assinatura deste
acordo internacional deixou bastante clara a intenção portuguesa de fortalecer
os seus domínios coloniais na África e na Ásia, no momento em que estava
acontecendo o movimento mais geral pela descolonização afro-asiática.
Conforme assinalamos no capítulo II, foi neste mesmo contexto que Portugal
promoveu mudanças na legislação colonial, iniciou a adoção do
lusotropicalismo de Gilberto Freyre como ideologia justificadora de seu
colonialismo e implantou medidas que procuraram valorizar economicamente
as áreas coloniais.
No final dessa década, em 1959, ocorreu na Universidade da Bahia o IV
Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros, que contou com a presença de Marcello
Caetano - ex-ministro português do ultramar e futuro sucessor de Salazar na
presidência do Conselho de Ministros – como presidente da delegação
portuguesa e de diversos intelectuais brasileiros e portugueses. Nesse
Encontro, as principais discussões giraram em torno daquilo que, na época,
era chamado de “Comunidade Lusíada” e refletiram a forte influência do
140 BRAGA, José Alberto (Coord.). op. cit., p. 37.
107
pensamento freyriano na concepção desse espaço comunitário. Nota-se,
também, entre a maioria dos intelectuais e políticos portugueses presentes ao
Colóquio, a já citada noção do papel privilegiado que Portugal deveria
desempenhar nessa Comunidade, fazendo com que ele apareça praticamente
como sujeito único, do qual os demais atores se tornam objetos.141
Às vésperas da Revolução dos Cravos (1974), o ideal comunitário
reapareceu em duas concepções distintas elaboradas por personagens
situados em campos diametralmente opostos no campo ideológico: a primeira -
que procurava enfatizar os aspectos culturais e civilizacionais – foi proposta
pelo historiador marxista português Joaquim Barradas de Carvalho; a outra -
que surgiu no bojo das questões provocadas pelas lutas de descolonização da
África Portuguesa e se detinha em aspectos políticos e econômicos - foi
levantada pelo General António de Spínola, ex-governador da Guiné e membro
da alta cúpula das Forças Armadas portuguesas.
Joaquim Barradas de Carvalho Barradas nasceu em 1920, no Alentejo,
filho de uma tradicional família aristocrática e formou-se em História e Filosofia
em 1946 pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde começou
a demonstrar interesse pela História das Idéias. Seus estudos e pesquisas
prosseguiram depois em Paris, onde se doutorou em Estudos Ibéricos pela
Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Paris/Sorbonne,
em 1961, tendo desenvolvido uma tese sobre o Esmeraldo de Situ Orbis, de
Duarte Pacheco Pereira. Nesse período, conviveu intensamente com a escola
historiográfica dos Annales, tendo se tornado discípulo e amigo de Fernand
141 Cf: RIBEIRO, Maria de Fátima Maia. “À Volta da Comunidade: formações luso-brasileiras em colóquio”. In: SANTOS, Gilda (Org). Brasil e Portugal: 500 Anos de Enlaces e Desenlaces – Revista Convergência Lusíada (17). Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 2000, p. 245.
108
Braudel e soube combinar o que de melhor havia naquela escola de
pensamento com o que de melhor se fazia em termos de pensamento
marxista.
Militante do Partido Comunista português – embora, extremamente aberto
a outras frentes de pensamento progressista - preocupava-se, como Marx e
Braudel, com os quadros mentais que são prisões de longa duração histórica.
Devido à suas atividades políticas acabou sendo obrigado a sair de seu país,
perseguido pela ditadura salazarista. Em seu exílio, esteve no Brasil entre
1964 e 1970, quando lecionou História Ibérica na Universidade de São Paulo.
Assim, como muitos outros intelectuais portugueses naquele momento,
Barradas encontrou no Brasil um refúgio, participando aqui de círculos de
imigrantes portugueses anti-salazaristas, como aquele que editava o jornal
“Portugal Democrático”, em São Paulo. Foi neste jornal que, pouco tempo
depois de chegar ao Brasil, Barradas descreveu a situação em que se
encontravam as universidades e os intelectuais de seu país:
Uma das principais vítimas do obscurantismo
salazarista tem sido a Universidade, e um dos
principais meios de ação desse obscurantismo têm
sido as ‘limpezas’ sucessivas a que ela tem sido
submetida. Às demissões isoladas sucederam-se
as demissões coletivas e a estas sucedeu um
apertado policiamento na admissão de professores
(...) Em mais de trinta anos de regime salazarista a
Universidade portuguesa tem sofrido golpes só
comparáveis aos sofridos pela Universidade alemã
nos tempos de Hitler, pela Universidade italiana
nos tempos de Mussolini, ou pela Universidade
espanhola no período de instauração do regime de
Franco. (...) E daí poder dizer-se, com uma ironia
109
repassada de melancolia, que Portugal “exporta”
quadros científicos pois a verdade científica não é
compatível com a quietude do cemitério que é o
Portugal de Salazar142.
Poucos dias antes da Revolução dos Cravos, Barradas de Carvalho
escreveu uma pequena obra intitulada “Rumo de Portugal: a Europa ou o
Atlântico?”, onde desenvolveu a idéia de uma comunidade luso-afro-brasileira
a partir de uma perspectiva essencialmente cultural. Nesse opúsculo, Barradas
de Carvalho retomou algumas idéias bastante presentes em toda a sua
produção intelectual como, por exemplo, a da especificidade do Renascimento
Português, extremamente vinculado às Grandes Navegações portuguesas, e
que, em determinados aspectos, teria apresentado uma riqueza maior do que
o Renascimento Italiano. Porém, a partir do século XVI, Portugal entraria em
um processo de decadência, com a hegemonia da velha nobreza sobre a
burguesia. Dessa forma, “a decadência e o Tribunal do Santo Ofício, a
Inquisição, arma da nobreza contra a burguesia comercial interrompem todo
um processo que prometia ir longe, e que era na verdade, o processo genuíno
de Portugal”.143 Todo este processo, aliado à perda da independência nacional,
em 1580, fez com que Portugal mergulhasse numa longa noite de
obscurantismo e, mesmo após a restauração em 1640, a nação nunca mais
seria a mesma. Assim, citando António Sérgio, Barradas via Portugal como
“uma promessa não cumprida”, um país que “nunca mais foi ele próprio”, 144
submetido ao jogo das grandes potências da época como a Inglaterra e a
142CARVALHO, Joaquim Barradas de. O obscurantismo salazarista. Lisboa, Seara Nova, 1974, p. 13-14. 143 CARVALHO, Joaquim Barradas de. Rumo de Portugal... op. cit., p.72. 144 Idem. p. 70.
110
França. Uma análise parecida aparece em alguns autores mais recentes como
Boaventura de Souza Santos, o qual afirma que:
A partir do século XVII, Portugal entrou num longo
período histórico dominado pela repressão
ideológica, a estagnação científica e o
obscurantismo cultural, um período que teve a sua
primeira (e longa) manifestação na Inquisição e a
última (assim esperamos) nos quase cinqüenta
anos de censura salazarista.145
Partindo destas premissas, Joaquim Barradas de Carvalho afirmava que,
naquele momento, Portugal estava diante de uma encruzilhada histórica e
tinha diante de si duas opções: rumar para a Europa, o que segundo ele
significaria uma nova perda da independência nacional, similar à de 1580, ou
priorizar o Atlântico, que seria a única condição para que Portugal
reencontrasse “a sua individualidade, a sua especificidade, a sua genuinidade,
medieva e renascentista”.146 Neste ponto, podemos encontrar algumas
similaridades entre o pensamento de Barradas e o de Agostinho da Silva, que
analisaremos posteriormente, sem os componentes místicos, quando esse
afirma que o Portugal genuíno é mais facilmente encontrável no Brasil do que
naquele Portugal europeizado.
Assim, para que Portugal voltasse a ser ele mesmo, seria fundamental a
articulação de uma Comunidade Luso-Brasileira e, futuramente, quando a
África Portuguesa concretizasse a sua independência, uma Comunidade Luso-
Afro-Brasileira, onde “todas as partes que a comporiam se reencontrariam na
mais genuína individualidade lingüística e civilizacional”.147 Nesta comunidade,
145 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela Mão de Alice... op. cit., p. 54. 146 CARVALHO, Joaquim Barradas de. Rumo de Portugal.... op. cit., p. 79. 147 Idem. p. 81.
111
a língua portuguesa funcionaria como o grande elemento identitário, pois
dentro de uma perspectiva braudeliana, a Língua e a Civilização incluem-se na
“longa duração” e, portanto, enquanto os regimes políticos e sociais passam,
elas permanecem.
Já o Gal. António de Spínola foi governador militar da Guiné-Bissau em
1968, e de novo em 1972, no auge da Guerra Colonial. Neste cargo, procurou
se aproximar de líderes nativos guineenses, buscando estabelecer alianças
com etnias locais, incorporando alguns desses líderes à administração colonial
portuguesa. Ao mesmo tempo, continuava a guerra por todos os meios ao seu
dispor indo desde a diplomacia secreta (como em encontros secretos com
Léopold Senghor, presidente do Senegal) à incursões armadas em paises
vizinhos. Esta sua experiência no mundo colonial fez que com adquirisse a
forte percepção de aquela guerra não poderia ser vencida pela via militar e que
a única solução para pôr termo ao conflito seria política.
Em Novembro de 1973, regressando à metrópole, foi convidado por
Marcello Caetano, para a pasta do Ultramar, cargo que recusou, por não
aceitar a intransigência governamental face às colónias. Em janeiro de 1974,
foi nomeado vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, por sugestão de
Costa Gomes, cargo de que foi afastado em Março. Pouco tempo depois, mas
ainda antes da Revolução dos Cravos, publicou Portugal e o Futuro, onde
expressou a idéia de que a solução para o problema colonial português
passava por outras vias que não a continuação da guerra.
Nesta obra, ao analisar a evolução de Portugal nos anos anteriores,
Spínola afirmava que a economia portuguesa havia tido um grande
desenvolvimento. Porém, a continuidade deste processo estava ameaçada,
112
pois o país estava distanciado do mercado internacional e isolado
politicamente devido à política do Estado Novo e à Questão Colonial. A fim de
resolver estas questões, Spínola propôs uma solução política para o problema
colonial, com a concessão da autonomia para as colônias e o estabelecimento
de uma Comunidade Lusíada, nos moldes da commonwealth britânica:
Temos, em resumo, os pontos de um ideário
nacional: autonomia progressiva até ao nível da
perfeita autonomia interna; regionalização das
estruturas, a todos os níveis; adequada
representatividade e participação qualitativa e
quantitativa das populações africanas na vida
política do todo português; integração econômica
pela via do desenvolvimento; promoção sócio-
cultural; rendibilidade dos recursos militares por
assimilação da mobilização civil; segurança da
população e reconhecimento franco do direito dos
povos à autodeterminação, fazendo referendar a
sua autodeterminação pela unidade de um
Portugal de clima aberto e feição renovada. É esta,
em nosso parecer, a essência estrutural de uma
tese válida da nossa continuidade como país
pluricontinental e multirracial. Defendemos esta
tese por portuguesismo e, sobretudo, por respeito
dos que morreram em terras de África, elevando
para a Pátria o seu último pensamento. Só há um
caminho para os não trairmos: construir, à luz de
um novo espírito, na paz e na autenticidade, uma
comunidade portuguesa que exista de facto,
qualquer que seja o estatuto de seus
integrantes148.
148 SPÍNOLA, Antônio de. Portugal e o Futuro. 5o ed, Lisboa, Arcádia, 1974, p. 177-178.
113
Esta “solução pacífica” para a questão do ultramar, com a implantação de
uma “política neocolonial”, proposta por Spínola, recebeu apoio integral da
burguesia portuguesa, que via nela o caminho ideal para aumentar sua
competitividade no mercado internacional com as matérias-primas provenientes
das colônias, conforme já assinalamos no capítulo anterior. Tanto isto é
verdade, que em publicações da SEDES (Associação para o Desenvolvimento
Econômico e Social), entidade ligada a essa burguesia, já se defendia, nos
meses que antecederam ao 25 de Abril, a “definição de uma nova política
portuguesa em relação aos territórios ultramarinos, com o aparecimento de
estados juridicamente independentes, ainda que ligados à antiga metrópole por
estreitos vínculos econômicos e culturais”.149
Porém, a intransigência do Estado Novo em relação às colônias, nas
duas décadas anteriores, havia radicalizado de tal modo os ânimos das
populações africanas, que a idéia de uma Comunidade Lusíada, como a
proposta por Spínola, estava, praticamente, inviabilizada. Além disso, a própria
debilidade econômica do Estado português impedia a concretização de
qualquer solução neo-colonial:
A conseqüência dessa situação, no entanto,
impedia a possibilidade de uma saída limpa para
Lisboa. Havia pouco espaço, por exemplo, para
fabricar o tipo de saída do estilo da comunidade
que capacitara outras potências européias a
preparar o fim do império, que, ao mesmo tempo,
fazia com que seus povos pensassem que nada
havia mudado enquanto fazia com que as antigas
colônias acreditassem que tudo era novo. De fato,
149 Citado em: SANTOS, Boaventura de Souza.O Estado e a Sociedade em Portugal (1974-1988). 3o ed., Porto, Edições Afrontamento, 1998, p. 25.
114
esse plano foi exposto em “Portugal and the
Future” (Lisboa, 1974) do general Antonio de
Spínola. Mas a “Federação Lusitana” estava vinte
anos atrasada.150
A questão colonial foi um dos fatores fundamentais para a derrocada do
regime salazarista-marcellista, em Portugal. Sendo assim, o problema da
descolonização norteou toda a discussão política nos meses seguintes ao 25
de Abril, e esteve no cerne da política das grandes potências em relação a
Portugal, naquele período. O Programa do Movimento das Forças Armadas -
MFA, divulgado em 26 de abril de 1974 - e que pode ser sintetizado no lema
“Democratizar, Descolonizar e Desenvolver - estabelecia de maneira bastante
vaga o que deveria ser a política ultramarina do governo provisório, que ora se
implantava e que deveria se orientar pelos princípios de:
a) Reconhecimento de que a solução das guerras
no ultramar é política e não militar;
b) Criação de condições para um debate franco e
aberto, a nível nacional, do problema ultramarino;
c) Lançamento dos fundamentos de uma política
ultramarina que conduza à paz.151
Indiscutivelmente, a questão africana esteve no centro do processo que
culminou no 25 de Abril, conforme já foi reiteradamente assinalado ao longo
deste trabalho. E sendo esta questão tão cara ao MFA, o rumo a ser dado à
descolonização tornou-se o primeiro grande ponto de discórdia entre os
“Capitães de abril” e o Gal. Spínola após a vitória do Movimento, estando esta
150 MAXWELL Kenneth. Chocolate, Piratas e Outros Malandros. São Paulo, Paz e Terra, 1999, p. 260. 151 MFA. “Programa do Movimento das Forças Armadas”. Centro de Documentação 25 de Abril. Disponível em: www.uc.pt/cd25a. Acesso: 21 de agosto de 2001.
115
divergência já presente na elaboração do citado Programa do MFA. Alçado à
condição de chefe-de-governo, Spínola conseguiu retirar do texto original a
referência ao direito das colônias à autodeterminação, suprimindo o trecho
onde se lia que a política ultramarina do governo provisório deveria pautar-se,
entre outros pontos, pelo “claro reconhecimento do direito dos povos à
autodeterminação e adoção acelerada de medidas tendentes à autonomia
administrativa e política dos territórios ultramarinos, com efetiva e larga
participação das populações autóctones”.152 Assim, na versão final do
documento, essa referência foi substituída pelos já citados termos vagos, já
que o General continuava insistindo na sua proposta neo-colonialista de
formação de uma Commonwealth, tão do agrado da burguesia monopolista
portuguesa.
Porém, as pressões internacionais, bem como uma posição bem clara da
opinião pública portuguesa, acabaram fazendo com que, em julho de 1974, o
governo provisório, apesar da posição reticente de Spínola, aprovasse a lei
7/74, que reconhece o direito dos territórios ultramarinos à independência e à
autodeterminação. Em agosto do mesmo ano, a visita do Secretário-Geral da
ONU, Kurt Waldheim, a Portugal, demonstrou inequivocamente a posição da
Comunidade Internacional a favor de uma solução imediata e satisfatória para
o problema das colônias. A partir daí, iniciou-se o processo de definição dos
interlocutores, nas colônias, com quem o processo de descolonização deveria
ser negociado. Assim, a posição do MFA de reconhecer como interlocutores
válidos somente os movimentos independentistas com expressão militar,
acabou prevalecendo e norteando, como princípio geral, a política
152 Fac-simile da versão inicial do Programa do MFA. In: CARVALHO, Otelo Saraiva de. Alvorada em Abril, Volume II, Lisboa, Publicações Alfa, 1991, p.338-341.
116
descolonizadora dos governos provisórios que se sucedem após o 25 de Abril,
embora posteriormente a ótica militar na escolha dos interlocutores tenha sido
substituída pela ótica política, como no caso de Angola, onde ficou clara a
preferência pelo MPLA. 153 Estas questões, bem como o desenrolar do
processo político português nos meses subseqüentes ao 25 de abril, acabaram
por fazer com que a proposta de Spínola fosse deixada de lado e com que
Portugal “virasse as costas” para as suas ex-colônias durante alguns anos,
conforme já foi assinalado anteriormente.
3.2. A Lusofonia e a articulação da CPLP
A partir da década de 1980, quando o discurso da lusofonia começou a
ser elaborado, algumas dessas antigas concepções sobre um espaço
comunitário que articulasse os povos de língua portuguesa começaram a ser
resgatadas e relidas, dentro da perspectiva de legitimação desse discurso.
Nesse contexto, os seus elaboradores foram alçados - nos discursos oficiais e
na produção intelectual do período – à condição de “pais-fundadores” da
nascente Comunidade, os “visionários” que teriam antevisto a integração do
mundo lusófono e formulado as suas bases teóricas e - por que não dizer –
ideológicas.154 Tal processo é levado a cabo por setores da elite política
portuguesa – notadamente o Partido Socialista – e da intelectualidade
progressista. Naquele momento, procurou-se construir um consenso nacional
em torno da articulação de uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, 153 Cf. FERREIRA, José Medeiros. “Após o 25 de Abril”. In: TENGARRINHA, José (Org.). História de Portugal, Bauru/São Paulo, EDUSC/UNESP, 2000, p.340-341. 154 Utilizamos aqui a concepção de “Ideologia” formulada por Antonio Gramsci. Neste sentido, a ideologia deve ser entendida como um discurso que justifica/explica, simbolicamente, as práticas dos diversos grupos sociais; sendo assim, não podemos considerá-la como “falseamento do real”, mas como “(...) uma concepção de mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações de vida individuais e coletivas (...)”. In: GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética de História. 8ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, p.16.
117
erigida em torno do discurso da lusofonia, uma releitura, em novos parâmetros,
do discurso secular da originalidade da cultura portuguesa e das marcas que
ela deixou no mundo, a partir das grandes navegações dos séculos XV e XVI.
As conjunturas política e econômica desse período favoreceram
grandemente a construção desse consenso. Depois dos agitados anos que se
seguiram à Revolução dos Cravos, a década de 1980 foi marcada pela
estabilidade política – que dentre outras coisas, contribuiu para afastar os
militares do centro da política nacional – e pelo crescimento econômico que
seria impulsionada pela adesão à Europa unificada.
Deste modo, era necessário legitimar esse discurso buscando em
experiências passadas – mesmo que forçadamente – ou em escritos de
intelectuais e pensadores bastante distintos entre si os elementos necessários
para o processo de legitimação dessa Comunidade, então em processo de
gestação. Isto ocorreu na perspectiva da “invenção de tradições” explicitada
por E. Hobsbawm e T. Ranger, no momento em que Portugal ensaiava o seu
“retorno à África” depois de quase uma década de esquecimento. Estes
autores, ao analisarem, as “tradições inventadas” afirmam que elas parecem
classificar-se em três categorias superpostas:
a)aquelas que estabelecem ou simbolizam a
coesão social ou as condições de admissão de um
grupo ou de comunidades reais ou artificiais;
b)aquelas que estabelecem ou legitimam
instituições, status ou relações de autoridades, e c)
aquelas cujo propósito principal é a socialização de
idéias, sistemas de valores e padrões de
comportamento.155
155 HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (Orgs.). A Invenção das Tradições. 2a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 17.
118
No entanto, como Hobsbawm e Ranger deixam claro, mesmo as
tradições inventadas devem possuir respaldo social, senão não conseguiriam
sobreviver156. Assim, a idéia da Comunidade Lusófona buscou apoio em
elementos bastante presentes no imaginário social português, desde a
percepção de que aquela pequena nação teria desempenhado um papel
singular na História do Mundo Ocidental até o velho, e sempre presente, sonho
imperial.
O resgate dessas questões foi essencial para a construção do discurso
que procurou legitimar a constituição de uma Comunidade de Países de
Língua Portuguesa, visto que, como argumenta Enilde Fausltich, um dos
pontos de vista possíveis para se apreender o conceito de lusofonia é aquele
que:
(...) localiza em todos os portos tocados pelos
portugueses, nos quais a língua foi disseminada,
como espaço de lusofonia. Nestes, os sujeitos são
identitários de uma cultura ibérica que, em maior
ou menos grau, formou a cidadania do Estado-
nação.157
O discurso da “herança cultural comum” – característico da época
salazarista – foi revestido com uma nova roupagem através de um discurso
multiculturalista que possibilitava analisar as “grandes descobertas” e o
colonialismo através da idéia de um “encontro de culturas” que, por sinal, foi a
tônica de todas as comemorações do Quinto Centenário dos Descobrimentos
Portugueses. Este período, também, foi aquele em que o debate intelectual em
156 Idem. p. 272. 157 FAULSTICH, Enilde. “CPLP: um lugar de falas múltiplas”. In: SARAIVA, José Flávio Sombra. Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP): Solidariedade e Ação Política. Brasília, IBRI, 2001, p. 118.
119
torno da questão da lusofonia foi mais intenso, visto que, sob determinado
ponto de vista, este conceito está intimamente ligado à história das
navegações portuguesas, já que estas foram as responsáveis pela difusão da
língua portuguesa pelos cinco continentes.
Por todas estas questões, esse debate foi bastante estimulado, inclusive,
por organismos e instituições de fomento vinculadas ao governo português –
como o Instituto Camões, por exemplo -, o que levou a um grande número de
publicações em torno dessa temática.158 Porém, não deixa de ser interessante
notar que os setores mais empenhados na construção desse discurso e na
própria articulação da CPLP foram aqueles provenientes da esquerda
democrática portuguesa que, em um passado não muito distante combatiam o
salazarismo e procuravam desconstruir os mitos por ele criados. O problema é
que a idéia do “encontro de culturas” não consegue apagar as tragédias da
história e a crueldade do processo de colonização. E são justamente estas
feridas ainda não cicatrizadas do colonialismo que têm contribuído
sobremaneira para a já mencionada posição reticente e, por que não dizer, de
desinteresse de alguns dos PALOP em relação à constituição da CPLP.
Em vista de tudo isto, os articuladores da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa buscaram em experiências passadas ou no resgate de
idéias elaboradas por intelectuais de diversas tendências, ao longo do século
XX, como base para o discurso de legitimação dessa comunidade. Um bom
exemplo disto é a lembrança constante do sonho do abortado Império Luso-
158 Uma das obras mais significativas publicadas nesse período foi o Atlas da Língua Portuguesa na História e no Mundo, editado em 1992, pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda, que contou com a colaboração de grandes nomes da cultura portuguesa como Eduardo Lourenço e António Luís Ferronha.
120
brasileiro, dos anos imediatamente anteriores à independência do Brasil, que
teria sido a primeira tentativa de “integração” do mundo português. 159
Porém, é importante ressaltar que na década de 1950, quando a idéia de
uma “Comunidade Lusíada” (como se dizia à época) começava a germinar
entre setores da intelectualidade luso-brasileira, a lembrança desse frustrado
Império do século XIX já era evocada por alguns de seus defensores. Em
1959, durante a realização do IV Colóquio de Estudos Luso-Brasileiros – que
contou com a presença, dentre outros, de Marcello Caetano, ex-ministro
português do ultramar e futuro sucessor de Salazar na presidência do
Conselho de Ministros - na Universidade da Bahia, o Reitor daquela instituição,
Edgar Santos, em seu discurso na sessão de abertura, sugere que “os estudos
(dos colóquios) se fixassem principalmente na constituição, ainda que remota,
e em termos dos tempos novos, daquele império territorial-político com que
sonhou D. João VI”.160
Nesse processo de “escolha” de Pais-Fundadores para a nascente
Comunidade Lusófona, dois nomes passaram a aparecer com destaque: o de
Gilberto Freyre que, embora nunca tivesse deixado de ser considerado uma 159 A concepção desse império começou a ser elaborada, ainda no século XVIII, por intelectuais e homens de Estado como D. Luís da Cunha e, principalmente, D. Rodrigo de Souza Coutinho, que, influenciado pelas idéias da ilustração, sonha com a sua constituição. Neste Império, as relações entre as suas partes componentes não seria mais aquela existente entre metrópole e colônias, mas entre capital e províncias, e onde Portugal seria o centro e o Brasil, fundamentalmente, e as demais “províncias” no ultramar seriam o corpo produtivo. Além desses laços econômicos, os laços culturais existentes entre os súditos do Império contribuiriam para consolidá-lo ainda mais, como assinala Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves: “Portugal e Brasil fariam parte do mesmo todo indivisível, da mesma nação, espalhada pelo mundo, constituída de uma comunidade, a dos portugueses, dotada do mesmo espírito, dos mesmos costumes, da mesma língua e da mesma religião. Vislumbrava-se a constituição de uma ideologia secular, fundada na história de um passado comum”. Sobre esta questão ver: NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. “O Império Luso-Brasileiro: Uma Tentativa de Integração Abortada no Início dos Oitocentos”. In: Synthesis – Cadernos do Centro de Ciências Sociais, Vol.II, no 2, Rio de Janeiro, UERJ, 1998, MAXWELL, Kenneth. “A geração de 1790 e a idéia do império luso-brasileiro” In: Chocolate, Piratas e Outros Malandros: Ensaios Tropicais. São Paulo, Paz e Terra, 1999 e LYRA, Maria de Lourdes Viana. A Utopia do Poderoso Império – Portugal e Brasil: Bastidores da Política (1798-1822). Rio de Janeiro, Sette Letras, 1994. 160 Apud RIBEIRO, Maria de Fátima Maia. “À Volta da Comunidade: formações luso-brasileiras em colóquio”. In: SANTOS, Gilda (Org). Brasil e Portugal: 500 Anos de Enlaces e Desenlaces – Revista Convergência Lusíada (17). Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 2000, p. 243.
121
referência por setores mais conservadores da intelectualidade e dos meios
políticos portugueses, foi “redescoberto” e valorizado pelos setores
progressistas; e o de Agostinho da Silva, ainda vivo nesse momento, que
passa a ser definido como o grande visionário e o arauto daquele nascente
espaço comunitário, por setores que, até então, não levavam muito a sério
suas idéias, apesar do respeito nutrido pelo velho filósofo. Portanto, para a
articulação do discurso justificador da lusofonia e da Comunidade Lusófona, as
idéias desses dois intelectuais - que se influenciaram mutuamente - foram
basilares, tendo sido repercutidas e reelaboradas pelos construtores desse
discurso.
3.3. As bases intelectuais da lusofonia: Gilberto Freyre e o luso-
tropicalismo.
Dentre os chamados “pais-fundadores” da comunidade, sem sombra de
dúvidas, a figura mais destacada é a do sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre (1900-1987). Na década de 1930, ao lançar a sua obra mais conhecida,
Casa-grande e Senzala, ele teve um papel fundamental na renovação do
pensamento social brasileiro, ao apresentar idéias que se contrapunham
àquelas então vigentes, de caráter nitidamente racista, que atribuíam o atraso
brasileiro à miscigenação racial entre brancos, negros e índios, pois teria
formado um tipo degenerado, o mestiço. Freyre, ao contrário, defendia que a
originalidade, a riqueza e a força cultural dos brasileiros provinham justamente
desta mistura e a sociedade brasileira - original e multirracial - era vista como
uma obra do “gênio português”. Segundo esta visão, calcada numa “imagem
essencialista da personalidade do povo português” 161 (e do brasileiro), a
161 CASTELO, Cláudia. op. cit., p. 14.
122
colonização portuguesa teria sido caracterizada, então, pela cordialidade e
pela ausência de preconceitos raciais, o que a teria tornado o exemplo mais
bem sucedido entre as políticas coloniais européias. Assim, em 1953, após
uma célebre viagem às colônias portuguesas na África e no Oriente, Freyre
escrevia que o português estava:
(...) apto para começar a colher o que semeou tão
amorosa e às vezes tão boemiamente, mais
através de suas aventuras que de política
calculada ou sistemática – de “sistema” que se
possa rigorosamente chamar de “sistema
português” de colonização – no Oriente, na África,
na América, nas ilhas do Atlântico. De modo que,
enquanto ingleses e holandeses, calculistas e
metódicos, tendo semeado ventos de furor, e ao
mesmo tempo de sistemática imperial por esses
mesmos espaços, colhem hoje tempestades na
Ásia e na África, o português é no Oriente, em
Moçambique, na Angola, na Guiné, em São Tomé,
em Cabo Verde, na América, menos um povo
imperialmente europeu que uma gente já ligada
pelo sangue, pela cultura e pela vida a povos
mestiços e extra-europeus.162
O pensamento de Freyre foi extremamente atacado, pelo seu caráter
socialmente conservador, por boa parte das principais correntes do
pensamento social brasileiro, da segunda metade do século XX. A crítica
marxista, principalmente, denunciava o seu papel de apologista das elites
latifundiárias dominantes no país:
162 FREYRE, Gilberto. Um Brasileiro em Terras Portuguesas. Rio de Janeiro, José Olympio, 1953, p.25.
123
Com a notável exceção de Vamireh Chacon, as
correntes dominantes do pensamento social
brasileiro têm identificado as teses de Gilberto
Freyre com o conservadorismo e a nostalgia de
uma sociedade patriarcal e pré-moderna,
colocando assim as idéias do Mestre de Apicucos
como mais um obstáculo ao progresso e à
emancipação dos brasileiros.163
Desta forma, as idéias Freyrianas lançaram as bases do “luso-
tropicalismo” que serviu de sustentáculo ideológico ao colonialismo português e
que, segundo Freyre, representava os princípios fundadores de uma nova
ciência: a luso-tropicologia. A colonização portuguesa seria um exemplo de
colonização bem-sucedida devido ao alto grau de adaptabilidade do português
ao trópico, onde, ao invés de deseuropeizar-se, transformou-se em um
intermediário entre os trópicos e a Europa, ou seja, o português tropicalizou-se
sem deixar de ser europeu. Já na introdução de Casa-grande e Senzala,
Freyre afirmava que o sucesso do português nos trópicos deveu-se a alguns
traços que ele trazia consigo como a ausência de orgulho racial, a
versatilidade, o pragmatismo, um caráter contemporizador e uma propensão à
miscigenação que, de certa forma, originaria-se no passado étnico e cultural
português, de povo indefinido entre a Europa e a África, e que se formou pela
miscigenação de vários outros povos – celtas, romanos, visigodos, fenícios,
judeus e árabes.
Na concepção luso-tropicalista, o mundo que o português criou – e que
engloba vastos territórios nos cinco continentes – constituir-se-ia em uma
unidade de sentimentos e cultura, onde a miscigenação seria o símbolo de uma 163 MENDES, Luís Filipe Castro. “Portugal e o Brasil: atribulações de duas identidades”. In: SANTOS, Gilda (Org). op. cit., p. 185.
124
forte tendência à democratização racial e social. Assim, para Freyre, as
relações sentimentais estabelecidas entre os portugueses, as “mulheres de
cor” e os filhos delas provenientes pairariam acima dos preconceitos de cor, de
raça e de classe. Isto teria dado à mestiçagem, ocorrida nas áreas de
colonização portuguesa, um caráter mais humano e mais cristão, permitindo
assim uma intensa mobilidade e contribuindo para abrandar as durezas do
sistema de trabalho escravo.
Nesse universo cultural, a língua portuguesa seria o elemento identitário
fundamental, através do qual as populações das terras colonizadas pelos
portugueses se exprimiriam em toda a plenitude, mesmo naquele momento em
que as populações afro-asiáticas iniciavam o processo de luta pela libertação e
descolonização:
Uma língua de tal amplitude não pode deixar de
ser a expressão de vasta cultura transnacional.
Não pode deixar de ser o veículo da civilização que
denomino luso-tropical, para a distinguir daquelas
que são apenas projeções imperiais de Estado, ou
de nações européias nos trópicos ou no Oriente.
Para estas já não há futuro nem perspectivas. O
imperialismo europeu já não encontra nos trópicos,
populações inermes dispostas a ser dominadas e
exploradas por brancos que se supõem superiores
a gentes de cor (...) O tempo é das populações de
cor e da afirmação ou da restauração dos seus
valores da cultura. O português, por ter sabido
sempre ligar a estes valores os da Europa, ao
sangue das mulheres de cor seu sangue de
brancos desde a Europa misturados a mouros,
judeus, berberes, criou culturas luso-tropicais (...)
Daí o amor com que a língua portuguesa é falada
nos trópicos por pretos, pardos, amarelos,
125
vermelhos, morenos que nessa língua exprimem
seus sentimentos mais íntimos e não apenas suas
idéias convencionais.164
Tais idéias, apropriadas pelo regime salazarista, foram utilizadas para
justificar, ideologicamente, a manutenção do Império Colonial Português. Esta
apropriação aconteceu, essencialmente, a partir da década de 1950, quando a
luta pela descolonização afro-asiática estava na ordem do dia, como já
colocado anteriormente. No entanto, como ressalta Cláudia Castelo, essa
apropriação das idéias freyrianas se dá de forma parcial, havendo uma escolha
deliberada por parte da elite política salazarista dos pontos do luso-tropicalismo
que era conveniente ressaltar:
(...) as principais idéias de Freyre sobre o povo
português – ausência de sentimentos racistas;
capacidade de empatia relativamente aos outros
povos; profunda fraternidade cristã – são
apropriadas nos anos 50-60 pelo discurso oficial.
Mas o luso-tropicalismo não é só isso. Os seus
aspectos “desnacionalizadores” são
propositadamente esquecidos. A saber: a
valorização dos diferentes contributos - africanos,
ameríndios, orientais, europeus - para a civilização
comum luso-tropical (...) 165
Ao mesmo tempo, o regime salazarista mantinha toda uma política de
aproximação com intelectuais e políticos brasileiros dentro de uma estratégia
de propaganda, a partir do discurso da “fraternidade luso-brasileira”. Foi nesse
contexto que ocorreu a famosa viagem de Gilberto Freyre ao “mundo
164 FREYRE, Gilberto. op. cit., p. 141-142. 165 CASTELO, Cláudia. op. cit., p. 139.
126
português”, entre agosto de 1951 e fevereiro de 1952, a convite do Ministério
do Ultramar. Desta viagem surgiram dois livros publicados em 1953: Aventura e
Rotina e Um Brasileiro em Terras Portuguesas, em que o intelectual
pernambucano lançou as bases do que seria uma nova ciência, a luso-
tropicologia, e aprofunda os elogios ao “modo português de estar no mundo”.
Em um comentário sobre Sarmento Rodrigues, seu anfitrião, em Aventura e
Rotina, Freyre afirma:
O ministro do Ultramar de Portugal é um oficial de
marinha para quem o oriente e a África
portugueses existem não como colônias, mas
como outros portugais. E esses outros Portugais,
como Portugal. O mar, o espaço, a distância, não
separam essas várias províncias portuguesas uma
das outras senão fictícia ou matematicamente; na
realidade elas formam todas um só Portugal, cada
vez mais consciente da sua unidade, dentro da
qual cabem arrojos de diversidade.166
Mais adiante, na mesma obra, ao ressaltar as lutas anti-colonialistas que
já se iniciavam em diversas regiões da África, Freyre mais uma vez exaltava a
superioridade do colonialismo português, comparando-o com os demais
colonialismos europeus:
O “método português” destaca-se como o
sociologicamente mais cheio de possibilidades
criadoras: isto é, de criação de novas formas de
homens e de culturas humanas nos trópicos.
Homens e culturas em que os valores europeus se
juntem aos de várias culturas regionais para novas
combinações de forma, com predominâncias
diversas de substâncias étnicas e culturais. Faz
166 FREYRE, Gilberto. Aventura e Rotina. 3a edição. Rio de Janeiro, Topbooks, 2001, p. 344.
127
pena ver-se na África um ou outro português
enfeitiçado pelo “método inglês” ou pelo “método
sul-africano” e a tomar atitudes de europeu
superior em face de pretos e pardos inferiores.167
Desta forma, na interpretação do sociólogo brasileiro, o português que
agia como os demais colonizadores europeus constituía-se em uma exceção e
não na regra. No entanto, o discurso colonialista português anterior a década
de 1950 não diferia em quase nada do das demais potências colonialistas
européias e exaltava a superioridade racial dos brancos e a missão civilizatória
européia. No entanto, as determinações da nova ordem internacional levaram a
uma alteração gradual desse discurso e a adoção de alguns princípios
provenientes do luso-tropicalismo freyriano:
No pós-Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, nos
anos 50 e 60, o conceito de vocação ecumênica
começa a aparecer ao lado do conceito de missão
providencial, caindo no esquecimento o (pouco
conveniente na nova conjuntura internacional)
conceito de destino superior da “raça”. 168
Esta política de cooptação de intelectuais, políticos e formadores de
opinião brasileiros passava, inclusive, pela utilização do próprio carisma
pessoal do chefe-de-governo português. Gilberto Freyre ficou sinceramente
bastante impressionado com Antônio de Oliveira Salazar169, descrito por ele
como o homem mais ágil de olhar, mais agudamente vigilante, mais
didaticamente atento ao que ouve, que ela havia conhecido.170 Desta forma, o
167 Idem. p. 460. 168 CASTELO, Cláudia. op. cit., p. 133. 169 Ver Aventura e Rotina. op. cit., p. 43-46. 170 Segundo o Embaixador Alberto da Costa e Silva - em “Notas de um companheiro de viagem”, prefácio da 3a edição de Aventura e Rotina - não foi somente Gilberto Freyre o único “seduzido” pelo homem-forte do governo português: “Gilberto Freyre não foi o único intelectual brasileiro a deixar-se seduzir por
128
governo português conseguiu atrair a simpatia de boa parte da imprensa, de
representantes do meio político e da intelectualidade brasileira, sentimento este
que é reforçado após a assinatura do já citado Tratado de Amizade e Consulta
(1953). Estes setores acabaram constituindo um forte grupo lusófilo que
influenciaria, inclusive, a formulação da política externa brasileira,
principalmente, durante o governo Juscelino Kubitscheck (1956-1960).171
Assim, mesmo com a apropriação política pelo regime salazarista de uma
idéia que, inicialmente, era eminentemente cultural – o luso-tropicalismo – e
mesmo que essa apropriação tenha sido parcial e pontual, não se pode negar
que Gilberto Freyre pactuou com o que Cláudia Castelo chama de “politização
do luso-tropicalismo”, que “ganha, naquele contexto preciso, contornos de
legitimação da obra do Estado Novo no ultramar”. Isto fica claro através da
idéia, presente em seus dois livros de 1953, de que a sua viagem “permitiu
confirmar a existência de uma unidade de sentimento e cultura que caracteriza
a comunidade luso-tropical”. 172
Porém, com a intensificação da luta pela libertação dessas colônias, o
luso-tropicalismo começou a ser violentamente questionado não só pelas elites
políticas africanas, mas também por intelectuais brasileiros e europeus. Dessa
forma, o pensamento Freyriano, como um todo, passou a ser criticado e, por
Salazar. Entre 1960 e 1963, eu servia pela primeira vez como diplomata em Lisboa e era um dos que acompanhavam os escritores e políticos brasileiros que iam visitar o chefe do governo. Só a dois ou três não vi saírem deslumbrados de São Bento. Como eu não passava da ante-sala, não ouvia o que conversavam, em audiências quase sempre longas, pois Salazar parecia ter todo o tempo para eles. Fossem o que se chamava de homens de esquerda, de centro ou de direita, deles, na saída e no carro, só escutava, perplexo, palavras de admiração. Alguns chegavam a lastimar não o terem compreendido antes. Outros reafirmavam-se contrários a sua política, mas lhe louvavam a inteligência e o encanto pessoal”. Idem, p.14. 171 Sobre esta questão ver: GONÇALVES, Williams da Silva. O Realismo da Fraternidade: Brasil-Portugal - Do Tratado de Amizade ao Caso Delgado. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais / Universidade de Lisboa, 2003 e RAMPINELLI, Waldir José. As Duas Faces da Moeda: As Contribuições de JK e Gilberto Freyre ao Colonialismo Português. Florianópolis, Editora da UFSC, 2004. 172 CASTELO, Cláudia. op. cit., p. 138.
129
que não dizer, marginalizado nos círculos acadêmicos como socialmente
conservador e defensor da manutenção de privilégios.173
No entanto, a partir, principalmente, da década de 1990, o pensamento de
Gilberto Freyre e a sua efetiva contribuição para o desenvolvimento das
Ciências Sociais começaram a ser resgatados.174 As idéias de Freyre são
vistas, hoje, como precursoras da “História das Mentalidades” e as suas
análises sobre o mundo lusófono sofrem, a cada dia, novas releituras como se
vê em um texto recente de um especialista – politicamente conservador, cabe
ressaltar - português:
Se chegamos ao fim do século XX com uma visão
histórica e científica correta sobre a presença do
homem português no Brasil, na África e no Oriente,
decerto que o ficamos a dever às inovadoras teses
sobre o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre.175
Assim, no momento em que a CPLP iniciava o seu processo de
construção, estas idéias apareceram, sob novas perspectivas, como uma de
suas bases ideológicas. Com isto, o luso-tropicalismo foi relido em um contexto
173 Ver nota 164. 174 Existem diversas obras que analisam a obra de Gilberto Freyre e suas repercussões. Dentre elas podemos destacar: SANTOS, Luís Antônio de Castro. O Pensamento Social Brasileiro. Campinas, Edicamp, 2003, que dedica os quatro primeiros capítulos à análise da obra do pensador pernambucano. Na perspectiva de reavaliação da obra freyriana, que tem ocorrido no Brasil e no exterior nos últimos anos, destacam-se os livros de: CHACON, Vamireh. Gilberto Freyre: Uma Biografia Intelectual. Recife/São Paulo, Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana/Ed. Nacional, 1993, onde o autor, velho defensor das idéias do sociólogo pernambucano, traça um amplo painel sobre sua obra; ARAÚJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e paz: Casa Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994, que faz uma brilhante análise do pensamento freyriano e PALLARES-BURKE. Maria Lúcia Garcia. Gilberto Freyre: um Vitoriano nos Trópicos. São Paulo, Ed. da UNESP, 2005, que traça uma biografia intelectual da juventude de Freyre buscando rastrear as influências presentes em sua obra. 175 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. “O que Portugal Deve a Gilberto Freyre”. In: QUINTAS, Fátima (Org.). Anais do Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópicos (Recife, 21 a 24 de março de 2000). Recife, Fundação Gilberto Freyre, 2000.
130
pós-descolonização e procurou-se retirar dele a conotação que lhe foi atribuída
pelo salazarismo:
Os efeitos atuais de tamanha incompreensão, para
o mundo lusófono, estão à vista. Para além do
enorme desperdício que se está fazendo da
metodologia gilbertiana enquanto instrumento
apurado (mas não isento de adaptações) de
compreensão dos fundamentos sócio-culturais das
ex-colônias africanas de Portugal, existe uma
dinâmica de alimentação constante da imagem
negativa do luso-tropicalismo e, liminar ou
subliminarmente, de conotação com a lusofonia.
Daí que este último conceito tenha tendência para
ser encarado como um seu "sucedâneo" pela maior
parte das elites africanas; e também dos
africanistas que, por sua vez, são majoritariamente
de origem anglo-saxônica e constituem um núcleo
ainda militante de “concerned scholars”, ainda
influente naquilo que deve ser a percepção
politicamente correta da realidade social dos
países africanos lusófonos e, conseqüentemente,
do legado colonial português, que é formalmente
visto de modo totalmente negativo. A crítica ao
luso-tropicalismo (e a exclusão de Gilberto Freyre)
em Portugal e nos Países Africanos Lusófonos
deve pois ser entendida neste contexto, marcado
atualmente pela tentativa de construção e projeção
internacional de um espaço lusófono. Estamos, na
verdade, perante um problema de consenso
histórico lusófono, isto é, de imagens recíprocas
divergentes entre brasileiros, africanos e
portugueses quanto ao passado comum (que é a
História Colonial de Portugal) e, portanto, às bases
da edificação de um possível futuro comum. A
questão fundamental, ainda não frontalmente
debatida, subjacente à polêmica em torno do luso-
131
tropicalismo e da Lusofonia, é a seguinte: há ou
não há algo de positivo no legado colonial
português? À frente do tempo, Gilberto Freyre,
sem descurar a dimensão negativa, achava que
havia.176
Este resgate das idéias de Gilberto Freyre, inclusive por setores
identificados com concepções políticas progressistas, teve – como já citamos
na introdução deste trabalho – em Mário Soares, ex-presidente da República
Portuguesa e veterano líder socialista, um de seus principais entusiastas.177 Se
em uma primeira leitura, a aproximação entre os democratas portugueses e o
pensamento do sociólogo brasileiro parece se dar pela lógica da conveniência
política, uma observação mais atenta nos permite notar como é equivocada
este análise superficial.
Partindo desse pressuposto, é importante ressaltar que as idéias
centrais do luso-tropicalismo, embora tenham sido apropriadas pelo regime
salazarista, também encontraram ressonância em boa parte da intelectualidade
progressista portuguesa e em setores de oposição ao Estado Novo, nas
décadas de 1950 e 1960.178 Pode-se dizer que, na essência, estes grupos
concordavam com os princípios básicos do pensamento freyriano, em seu viés
cultural, mas distanciavam-se do uso político que dele foi feito. Em um discurso
176 GRAÇA, Pedro Borges. “A Incompreensão da Crítica ao Luso-tropicalismo”. In: QUINTAS, Fátima (Org.). Anais do Seminário Internacional Novo Mundo nos Trópicos (Recife, 21 a 24 de março de 2000). Recife, Fundação Gilberto Freyre, 2000, p.211-212. 177 No já citado prefácio de Aventura e Rotina, o Embaixador Alberto da Costa e Silva faz o seguinte relato: O primeiro gesto de reconciliação veio de Mário Soares, quando de uma de suas visitas presidenciais ao Brasil. Eu o acompanhava, na qualidade de embaixador em Lisboa. Ao organizar-se o programa, ele insistiu: “No Recife, quero ir a Apipucos, homenagear Gilberto Freyre. Já é tempo de fazermos as pazes com quem é um dos maiores escritores de nossa língua e tanto ama Portugal”. E lá foi abraçá-lo, num encontro em que estávamos todos comovidos. op. cit., p. 14. 178 Não se pode esquecer que Gilberto Freyre travou relações intelectuais e de amizade com muitos opositores do Estado Novo – Agostinho da Silva, Jaime Cortesão, António Sérgio, Maria Archer, entre outros -, vários deles exilados no Brasil e suas idéias tiveram grande repercussão junto a este grupo de intelectuais.
132
proferido em Recife, em 1987, na condição de Presidente de Portugal, Mário
Soares afirmou isto de maneira bastante clara:
Essa teoria foi mal aproveitada no tempo do antigo
regime, mas, justamente eu quis demonstrar que a
obra de Gilberto Freyre era admirada por Portugal,
não só por aqueles que eram partidários do
colonialismo, como pelo Portugal livre, moderno e
democrático que eu represento.179
Assim, reler Gilberto Freyre no contexto da década de 1980 e despi-
lo da carga negativa que lhe foi dada pelo Estado Novo, não foi uma tarefa
difícil para estes setores: o luso-tropicalismo penetrou de tal forma no
imaginário político e cultural português que superou as diferenças ideológicas
entre “conservadores” e “progressistas” e acabou sendo incorporado ao
discurso de todos esses grupos. Desta forma, a concepção freyriana de uma
“Comunidade Luso-Tropical” baseada na noção de unidade de sentimento e
cultura - e que, portanto, poderia se concretizar através de uma entidade
supranacional, mesmo após a independência das colônias africanas e
orientais, abordagem esta deliberadamente ignorada pelo salazarismo - foi
revista como a grande base teórica do que viria a ser a Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa. Esta Comunidade passou a ser entendida,
inclusive, como um instrumento de resistência cultural e identitária contra as
hegemonias políticas e culturais decorrentes do processo de globalização, pois
no momento atual “as ameaças de desculturação, de seletivas a massificadas,
passaram a provir da cultura anglófona, a maior vitoriosa desde a Segunda
179 Apud CASTELO, Cláudia. op. cit, p.14.
133
Guerra Mundial”.180 Assim, Gilberto Freyre voltou a ser uma das principais
referências teóricas para os nacionalistas portugueses – à esquerda e à direita
– com o luso-tropicalismo impregnando de forma bastante visível a concepção
de lusofonia que se construiu em Portugal, a partir da década de 1980.
3.4. As bases intelectuais da lusofonia: Agostinho da Silva e a idéia da
Comunidade de Língua Portuguesa como concretização do Quinto
Império.
Outro pensador contemporâneo que se constituiu em uma das bases
teóricas da CPLP foi Agostinho da Silva, um dos mais originais pensadores
portugueses do Século XX. Nascido no Porto, em 1906, filho de uma família
algarvia e alentejana, passou toda a sua infância em Barca D‘Alva, no Douro.
Em 1928, licenciou-se em letras, na Universidade do Porto, onde também se
doutorou em Filologia Clássica. Professor concursado dos Liceus Portugueses
foi demitido do Liceu de Aveiro, em 1935, por se ter recusado a assinar a
declaração, imposta ao funcionalismo público pela ditadura de Salazar, que
obrigava o funcionário a declarar a sua ideologia e a não seguir a ideologia
marxista (a “Lei Cabral” - a mesma do célebre processo contra Fernando
Pessoa), apesar de não ser ligado a nenhum grupo político organizado. Tendo
sido um claro opositor de Salazar, participou da resistência ao regime, ao lado
de outros intelectuais portugueses como Antônio Sérgio181, de quem foi
180 CHACON, Vamireh. O Futuro Político da Lusofonia. Lisboa, Verbo, 2002, p.10. Esta obra editada em Portugal faz uma contundente defesa da idéia da lusofonia, a partir das teses freyrianas. Seu autor, o intelectual brasileiro Vamireh Chacon foi uma das únicas vozes, como já assinalado anteriormente, que polemizou com o grupo formado por Florestan Fernandes, Carlos Guilherme Mota e demais intelectuais marxistas paulistas articulados em torno do CEBRAP, em defesa das teses de Gilberto Freyre, nas décadas de 1960 e 1970. 181 António Sérgio de Souza (1883-1969) foi um dos mais importantes intelectuais portugueses do século XX, exercendo grande influência sobre seus contemporâneos. Ensaísta brilhante, ele discorreu sobre diversas áreas do conhecimento como a crítica literária, a história, a política, a pedagogia e a filosofia. Democrata convicto, Sérgio foi um dos mais destacados opositores do Estado Novo, tendo contribuído decisivamente para a formação de uma oposição democrática de esquerda, em Portugal.
134
colaborador na "Seara Nova". Por sinal, Sérgio foi um das grandes influências
no pensamento de Agostinho, ao lado de Leonardo Coimbra – seu mestre na
Faculdade de Letras do Porto – e da História produzida pelo “grupo do Porto”.
Exilado no Brasil entre 1945 e 1969 (chegou a receber a nacionalidade
brasileira em 1958), aqui ajudou a fundar as Universidades de Brasília, Paraíba
e Santa Catarina, desenvolvendo ainda uma atividade destacada nas
universidades da Bahia, Goiás, Mato Grosso, Paraná e Rio de Janeiro, tendo
nesta trabalhado com Jaime Cortesão. Por sinal, a criação de universidades e
Centros de Cultura foi uma das obstinações de sua vida:
(...) uma outra forma de ensino superior que veio
até hoje e que é aquilo a que chamamos
Universidade, em que os homens se congregam
numa comunidade de professores e de alunos para
elevar não uma idéia simplesmente científica, mas
apenas uma coisa que unisse os homens pelo
intelecto, mas para explorar todo o pensamento
possível e toda a energia possível à volta de uma
idéia nova que aparecerá e que é a idéia da
fraternidade, a idéia da irmandade dos homens.
Podemos dizer que a Universidade atual, que vem
da Universidade medieval, é uma Universidade que
se alicerça sobre a idéia da fraternidade, sobre
uma idéia, digamos, de caridade, sobre uma idéia
de esforço comum para atingir uma verdade que
não é já apenas uma verdade puramente
intelectual, mas uma verdade também de
sentimentos, uma verdade de unidade entre os
homens.182
182 Depoimento à Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a estruturação do Ensino Superior no Brasil prestado em 23 de Maio de 1968. Disponível no sítio da Associação Agostinho da Silva – www.agostinhodasilva.pt. Acesso: 02 de dezembro de 2005.
135
Além das já citadas instituições, ele atuou em diversas outras
Universidades e Centros de Pesquisa em todo o mundo: Sorbonne, Collège de
France, Centro de Estudios Historicos (Madri), Nova York, Yale, Harvard, Los
Angeles e Sta. Bárbara (EUA). Pouco antes de sua morte, em 1994, estava
trabalhando na articulação de uma Associação das Universidades Luso-
Brasileiras e na criação do que seria a “Universidade Lusófona”.
Freqüentemente citado em discursos e mesmo em documentos oficiais
como um dos inspiradores da CPLP, Agostinho da Silva - “misto de educador,
filósofo e pensador, considerado como uma espécie de guia espiritual de parte
da intelectualidade brasileira e portuguesa deste século” 183 – formulou a
concepção de uma “Comunidade Luso-Afro-Brasileira” bastante original e
pessoal refletindo uma visão de caráter universalista, místico, visionário,
espiritualista, mítico e messiânico que remonta aos escritos de Joaquim de
Fiore - na Idade Média - sobre o “Reino do Espírito” e os do Pe. Antônio Vieira
sobre o “Quinto Império”.184 Para ele, Portugal, responsável pelo início do
183 RIBEIRO, Maria de Fátima Maia. op. cit., p. 246-7. 184 A crença no advento do “Quinto Império” está habitualmente relacionada ao sebastianismo e se tornou um dos mitos-fundadores da nacionalidade portuguesa. D. Sebastião, último rei da Dinastia de Avis, morreu em 1578 na lendária batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, lutando contra os mouros. Como decorrência desta tragédia, Portugal perde a sua independência e passa a integrar o Império de Felipe II, da Espanha, com a concretização da chamada “União Ibérica” (1580-1640). A partir daí se constrói a crença – que repercute tanto nas classes populares, quanto entre a elite letrada - no retorno do rei desaparecido que iria restaurar a independência e a grandeza de Portugal. Esta crença resulta de um amálgama de tradições messiânicas de cunho judaico – presentes nas “Trovas” do Bandarra, o sapateiro judeu de Trancoso, considerado o “profeta” do sebastianismo - com o pensamento milenarista de Joaquim de Fiore, monge calabrês, que viveu no século XII e que escreveu sobre os três períodos da História da Humanidade: a “Idade do Pai”, a época da lei mosaica anterior a Cristo; a “Idade do Filho”, o tempo do evangelho marcado pela vinda de Jesus; e a “Idade do Espírito Santo”, que estaria próxima e marcaria o triunfo da “inteligência espiritual”. No século XVII, o padre jesuíta Antonio Vieira sistematizou essas crenças em sua “História do Futuro” afirmando que Portugal fora destinado por Deus a comandar o “Quinto Império” universal e cristão – identificável com a “Idade do Espírito Santo” joaquimista – que sucederia os quatro grandes Impérios da antiguidade: egípcio, assírio, persa e romano e o seu advento se daria com a volta do Rei D. Sebastião. È importante ressaltar que essa crença teve – e tem – uma forte permanência no imaginário luso-brasileiro, reaparecendo constantemente em Portugal em momentos de crise – como, por exemplo, às vésperas da invasão napoleônica, no início do século XIX – ou em revoltas populares brasileiras, como a de Canudos, no final do século XIX. Sobre este tema existem diversos obras importantes dentre as quais o estudo clássico do historiador português João Lúcio de Azevedo, A Evolução do Sebastianismo. Lisboa, Presença, 1984 e a excelente tese de Doutorado em História Social
136
processo de mundialização, carregaria uma missão histórico-messiânica: a de
ser o responsável pela paz mundial devido aos laços constituídos por ele, no
passado, com os diversos povos do mundo, pois “se no passado, Portugal
unificou o mar, sua tarefa futura será a unificação do mundo pelo espírito, pela
língua, constituindo-se a nação portuguesa como a pátria virtual de quantos a
falam”,185 entendendo, assim, esse Portugal como, acima de tudo, a língua
portuguesa e seus valores e não mais o Portugal-Território preso aos limites de
suas fronteiras geográficas.186 Desta maneira, essa “missão” concretizar-se-ia
através de uma Comunidade de Língua Portuguesa em que Portugal sacrificar-
se-ia enquanto nação, para ser só mais um dos elementos componentes desta
Comunidade que marcaria o início de uma nova era:
A Comunidade Luso-Brasileira tem de ser, quando
existir, não outra qualquer espécie de Império, uma
força concorrendo com outras forças, uma outra
centralização que siga a monótona corrente das
centralizações, mas realmente o começo de uma
vida nova para a Humanidade, o primeiro passo
seguro para a reconquista de um Paraíso que só
tem estado em espírito de teólogos ou de filósofos
ou de poetas, mas que jamais entrou nas
cogitações de políticos; a linha mística e religiosa
tem de ser aqui mais importante do que as
argúcias dos realistas que manejam homens como
se eles não fossem à imagem e semelhança de
Deus: e nenhuma economia, nenhuma sociologia,
nenhum ato humano verdadeiramente criador tem
de Jacqueline Hermann, posteriormente transformada em livro, No Reino do Desejado: A Construção do Sebastianismo em Portugal – Séculos XVI e XVII. São Paulo, Cia. das Letras, 1998. Para compreender o sebastianismo, inserindo-o dentro de uma tradição milenarista existente no ocidente, recomenda-se a obra de Jean Delumeau, Mil Anos de Felicidade: Uma História do Paraíso. São Paulo, Cia. das Letras, 1997. 185VARELA, Maria Helena. “O Visionário Agostinho da Silva: Sofia e Paradoxia”. In: Convergência Lusíada (16). Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 1999, p. 88-89. 186 CESAR, Constança Marcondes. “Entre o Oriente e o Ocidente: Agostinho da Silva”. In: Convergência Lusíada (14). Rio de Janeiro, Real Gabinete Português de Leitura, 1997, p.90.
137
de ser considerado senão como o sinal, a
manifestação e a indicação de que está na vontade
divina, na própria estrutura do evoluir no mundo,
que ele siga pelos caminhos a que a Comunidade
o pode dirigir.187
Crítico dos sistemas políticos contemporâneos, Agostinho da Silva definia
o capitalismo como uma fatalidade histórica da qual os homens deveriam
libertar-se e considerava o socialismo - apesar de melhor do que o seu sistema
antagônico – imperfeito:
A grande e urgente tarefa que está diante da
humanidade, a principiar pela ação individual de
cada um de nós em nossas pequenas ou largas
áreas, é a de introduzir numa das metades do
mundo a liberdade de pensar e na outra metade, a
liberdade de comer.188
Para ele, um dia “tanto o capitalismo como o socialismo, desaparecerão
da face do mundo, já que a revolução que se aproxima, de base tecnológica,
determinará a supressão quase completa do trabalho obrigatório. Essa
ocupação passará a ser desempenhada pelas máquinas, voltando o homem à
sua verdadeira vocação”.189 O mundo novo com o qual ele sonhava consistia
na “expressão crescente de homens seguros de que é possível, pela técnica,
garantir vida e acesso aos bens da cultura a todos; homens abertos ao amor e
a ação”.190
187 Trecho da comunicação “Condições e missão da comunidade luso-brasileira”, proferida por Agostinho da Silva no IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros promovido, em 1959, pela Universidade da Bahia e pela UNESCO. Apud RIBEIRO, Maria de Fátima Maia. op. cit., p. 247. 188 SILVA, Agostinho da. Carta Vária. Lisboa, Relógio D’Água, 1989, p. 51. 189 BRAGA, José Alberto (Coord.). op. cit., p. 31-32. 190 CESAR, Constança Marcondes. op. cit., p. 91.
138
Nesta nova era, a língua portuguesa desempenharia um papel
fundamental por ser falada em todas as partes do globo e representar o
símbolo da expansão portuguesa que lançou as bases da construção do “novo
mundo”, do “Reino do Espírito”. Nesta nova ordem, o Brasil teria um papel
fundamental, pois traria em si os elementos do verdadeiro Portugal, aquele
Portugal arcaico que se perdeu com o fracasso histórico da nação. Para ele,
em sua utopia, o Brasil é a concretização do sonho do Quinto Império, é a Ilha
dos Amores de Camões, o Não-Lugar capaz de ser o centro de uma nova
civilização por ser o ponto de encontro de diversas culturas, onde a
miscigenação favoreceu a tolerância e a moderação. O significado do Brasil
para Agostinho da Silva é bastante perceptível quando ele descreve os seus
sentimentos e impressões ao chegar ao país, fugindo do obscurantismo
salazarista:
Então ao chegar ao Brasil logo várias coisas foram
sucedendo. A primeira, talvez, foi a que me
encontrei a mim próprio, de repente, descobri-me,
sem que houvesse qualquer ato voluntário: (...) eu
me deixei levar por aquilo que despertava em mim
ou que, parecendo vir de fora, efetivamente, me
batia à porta para que eu abrisse. (...) [Eu] me
deixei abrir, me deixei ser o que eu próprio na
realidade era (...). Quer dizer, a minha abertura no
Brasil, no meio em que mergulhei (...) é a tal
viagem às nascentes: abandonei-me à corrente e
parece que o rio dava uma volta ao mundo sobre si
próprio, voltava à nascente e depois eu não tinha
mais trabalho nenhum senão o de deixar levar-me
pelas águas, abandonar-me completamente ao que
ia acontecendo pelo mundo. (...) uma atitude de
(...) ir ao sabor da corrente e depois a própria
139
corrente ia-me fazer encontrar aquilo que de fato
poderia ser interessante e que no fundo me
formou. Afinal, o que era? Eu como que dei um
pulo atrás de mim próprio e fui inserir-me no século
XV (...), e sentir o mesmo que sentiram os
portugueses idos em direção a África para fugirem
do regime econômico, social e religioso de
Portugal, ou que depois se estabeleceram no
Brasil. Quer dizer, o que o Brasil fez comigo, logo
que lá desembarquei, foi fazer-me dar um pulo
como se tivesse pisado uma mola no chão, para ir
cair aí pelo século XV ou XVI. (...) Portanto, a
primeira coisa que apontaria na minha estada no
Brasil foi a abertura de mim próprio, eu fui outro.
(...) O segundo ponto foi o de descobrir no Brasil
aquele Portugal que eu precisava compreender,
aquele Portugal que nunca mais me desapareceu
do espírito, [e] que hoje permanece nítido191.
Desta forma, o verdadeiro Portugal, o Portugal real, concretizar-se-ia
nesta comunidade em que a verdadeira pátria de todos os povos lusófonos -
brasileiros, portugueses, moçambicanos, guineenses, cabo-verdianos,
timorenses e demais – seria a língua portuguesa, o idioma universal, por
excelência:
Não seria decerto só este Portugal, o da Península,
o que Vieira ainda hoje apontaria, e apostaria,
como inspirador ou iniciador de sua mundial
Terceira Idade, mas o outro, o de todos que falam
português, só que sem, agora, subordinação
alguma, seja do que for ao que quer que seja, mas
com um entendimento perfeito e de iguais entre
todas as partes e com a mesma disposição comum
de guiarem o mundo ao reconhecimento de sua 191 SILVA, Agostinho da. Vida Conversável. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses; CEAM/UnB, 1994. Organização e prefácio de Henryk Siewierski, pp. 86, 87, 88, 101.
140
verdadeira essência: a do Espírito na Matéria
esplendendo.192
Sem exercer uma militância política direta, no Brasil, além de articular-se
com o grupo de intelectuais portugueses aqui exilados, Agostinho da Silva
ocupou o cargo de Assessor de Política Cultural Externa da Presidência da
República, no início dos anos de 1960. Neste período, estabeleceu uma sólida
relação de amizade com políticos e intelectuais brasileiros como Darcy Ribeiro
– sobre quem exerceu grande influência – e José Aparecido de Oliveira que
chega a afirmar que “a Política Externa Independente de Jânio Quadros, com
sua inclinação para a África e para a Ásia, teve em Agostinho da Silva um de
seus inspiradores”.193 Esta afirmação foi feita, sem sombra de dúvidas, porque
na nova “ordem mundial” pensada por Agostinho da Silva países como o
Brasil, o México e a China deveriam desempenhar um papel fundamental, visto
que, em sua concepção a crise do nosso tempo é a crise da civilização
européia – e, por extensão, da civilização ocidental - racional e materialista.
Assim, o Brasil, lugar por excelência da fusão de etnias e culturas, seria o pólo
do “Reino do Espírito” – sintetizado em uma Comunidade de Países de Língua
Portuguesa - e deveria buscar o “diálogo” com o oriente – em especial com a
China – para abrir caminho para uma nova “idade do ouro” para a humanidade.
Ao que nós todos tendemos, os da Língua Comum
– angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, guinéus,
mauberés, moçambicanos, portugueses, são-
tomenses (será que se poderia acrescentar
galegos?) – é a fazer do mundo a cidade de todos
192 SILVA, Agostinho da. Carta Vária. op. cit., p.22. 193 BRAGA, José Alberto (Coord.). op.cit. p. 33.
141
e para todos, a polis global, que daí vem política e
meta lhe deve ela ser.194
Retornando a Portugal, continuou com uma intensa produção intelectual,
além de desenvolver outras atividades como, por exemplo, a apresentação de
um programa de televisão intitulado “Conversas Vadias”, quando se
transformou naquilo que podemos chamar de um “filósofo popular”, à medida
que se tornou um dos intelectuais portugueses mais conhecidos do grande
público. Além disto, na década de 1980, tornou-se Diretor do Centro de
Estudos Latino-Americanos do Instituto de Relações Internacionais da
Universidade Técnica de Lisboa e do Gabinete de Apoio do Instituto de Cultura
e Língua Portuguesa do Ministério da Educação, além de continuar a proferir
palestras e conferências em diversas partes do mundo. Em 1994, morreu em
Lisboa aos 88 anos de idade deixando centenas de discípulos - seduzidos por
suas idéias, onde a cultura e a civilização portuguesas aparecem com um
papel da maior importância na concretização da plenitude do homem – que se
articulam em torno de instituições como a Associação Agostinho da Silva e o
Círculo dos Amigos de Agostinho.
Como já assinalamos anteriormente, devido ao forte componente místico
e mítico de seu discurso, as idéias de Agostinho da Silva não eram muito
levadas em consideração por círculos acadêmicos e políticos portugueses. No
entanto, a partir do momento em que a questão da lusofonia ganhou força em
Portugal, alguns pontos do pensamento agostiniano passaram a se bastante
destacados, por irem de encontro aos sentimentos nacionalistas nela
presentes, em especial a sua visão da “Comunidade Lusófona” como um
194 SILVA, Agostinho da. Carta Vária. op. cit., p. 89.
142
“imenso Portugal”, além dos pequenos limites geográficos de seu território
peninsular:
Portugal que não tem seu centro em parte alguma
e cuja periferia será marcada pela expressão de
sua língua e da cultura da “Pax in excelsis” que ela
levar consigo; Portugal que não se importará com a
definição de regimes políticos, de regimes
econômicos ou de instituições religiosas, porque
esse será o problema de cada uma de suas
unidades, só ficando por essência e definição do
próprio conceito – Portugal, totalmente excluídas
aquelas formas institucionais que vão, como o
autoritarismo político, o liberalismo econômico ou a
negação do Espírito Santo, contra o que há de
estrutural no próprio homem.195
Além do mais, o pensamento agostiniano não trazia a carga negativa –
para alguns setores – que o luso-tropicalismo freyriano carregava, sem
esquecer que o velho filósofo foi um crítico do salazarismo e sempre esteve
mais identificado com a oposição democrática ao Estado Novo. No entanto,
sem sombra de dúvidas, diversas identificações podem ser encontradas entre
as idéias desses dois pensadores que foram alçados à condição de principais
“pais-fundadores” da Comunidade de Países de Língua Portuguesa e da
própria lusofonia. Em um dos mais completos estudos sobre o pensamento de
Agostinho da Silva recentemente publicado, Romana Valente Pinho196 realiza
de forma bastante competente a aproximação entre o pensamento de Freyre e
o de Agostinho, demonstrando as diversas identidades, bem como as
195 SILVA, Agostinho da. Um Fernando Pessoa. Lisboa, Guimarães, 1988, p.30. 196 PINHO, Romana Valente. Religião e Metafísica no Pensar de Agostinho da Silva. Lisboa, IN-CM, 2006.
143
influências mútuas entre eles. 197 Esta autora destaca que “as idéias comuns
entre os dois autores sustentam-se essencialmente na defesa de um Brasil
plural, que se constituiu através da miscigenação, que soube usar a mediação
africana para conseguir unir índios e portugueses”, bem como na capacidade
lusa de se misturar com povos culturalmente diferentes, adaptando-se à
qualquer meio e à qualquer circunstância. Esta capacidade é chamada por
Freyre de plasticidade e por Agostinho de aptidão para a capatazia e para
fazer biscates.198 Além disso, a “Comunidade Luso-Tropical” pensada por
Gilberto Freyre, uma unidade cultural e psicológica que congregue todos os
povos que tenham o português como língua, acaba sendo a mesma
“Comunidade Luso-Brasileira” apresentada por Agostinho da Silva, em 1959,
no Colóquio da Universidade da Bahia. A diferença entre as duas propostas é
que a primeira dá primazia à língua (e a simbiose transcultural ocorrida nos
trópicos colonizados pelos portugueses - o luso-tropicalismo) e a segunda ao
espírito – o Portugal-idéia. 199
3.5. Portugal e a “invenção” da Lusofonia.
Como já foi discutido ao longo deste trabalho, no momento em que
idéia de lusofonia estava sendo construída, acelerava-se o processo de
197 Conforme registra Romana Valente, Agostinho da Silva faz menção, na introdução de seu livro Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa (1957), à influência freyriana sobre seu pensamento. Por sua vez , Gilberto Freyre refere-se da seguinte forma ao intelectual português: “Quando me refiro ao ideal de vida desenvolvido pelo português em contato assim íntimo com o Trópico, não posso esquecer-me das páginas recentes que um intelectual português residente há anos no Brasil – o professor Agostinho da Silva – sugere que, a partir do século XVII, começou a haver, no Brasil, para muitos portugueses, um ‘Portugal ideal’ – projetado em tempo e espaço ideais: idéia que coincide com a de um Trópico, para os portugueses, messiânico, por mim sugerido – em contraste com o ‘Portugal real’; segundo idéia minha, fixo no espaço europeu e fixo também no tempo apenas histórico”. In: O Luso e o Trópico. Lisboa, Comissão Executiva das Comemorações do Quinto Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961. p. 219. 198 PINHO, Romana Valente. op. cit., p. 193-194. 199 Idem, p. 202-203
144
transformações profundas ocorridas no sistema internacional, com a
estruturação de uma Ordem Mundial calcada na crescente internacionalização
do capital e na imposição de uma série de valores culturais e ideológicos, os
quais colocaram em xeque, inclusive, as identidades nacionais.
Refletindo sobre estas questões em 1992, Celso Furtado já
perguntava: “Como preservar nossa identidade cultural e unidade política em
um mundo dominado por grupos transnacionais que fundam seu poder no
controle da tecnologia, da informação e do capital financeiro?”.200 Nesse
contexto, a discussão da questão identitária adquiriu uma grande importância,
visto que, neste momento, as diversas identidades estavam (e ainda estão)
passando por um processo de redefinição:
Exatamente ao mesmo tempo que os antigos limites
e fronteiras parecem dissolver-se perante o rápido
fluxo de idéias, mercadorias e pessoas, instalou-se
uma nova política de identidade que reinscreve,
limita e essencializa os elos entre terras e povos.201
A idéia da lusofonia – base sobre a qual se sustenta a CPLP - reflete,
necessariamente, estas discussões, pois é a partir das idéias de uma
“identidade cultural” e da “herança histórica comum” que o discurso da
“Comunidade Lusófona” foi construído, levando em consideração que “o
problema da construção ou invenção de identidades é o da escolha das
heranças, das combinações e das hibridizações que pretendemos produzir”.202
200 FURTADO, Celso. “Globalização das estruturas econômicas e identidade nacional”. In: Política Externa, Vol.1, no4. São Paulo, Paz e Terra/USP, 1993. 201 SCHILLER, Nina Glick e FOURON, Georges. “Laços de sangue: os fundamentos raciais do Estado-nação transnacional”. In: FELDMAN-BIANCO, Bela e CAPINHA, Graça (Org.). Identidades. São Paulo, Hucitec, 2000. 202 LOVISOLO, Hugo. “Portugal, Espanha e as nossas razões”. In. Logos – Comunicação&Universidade, (05). Rio de Janeiro, FCS-UERJ, 1998.
145
Nesse quadro de redefinições identitárias e de renegociação dos papéis dos
Estados no Sistema Internacional, o Estado português investiu fortemente na
construção de um “espaço da lusofonia” que lhe permitisse uma maior margem
de manobra nesse processo. Assim, para que este espaço se concretizasse,
tornou-se necessária a construção de um “imaginário” comum, que fosse aceito
por todos os seus membros.
Nesse sentido, era preciso transformar em comunitário, um ideal que
é essencialmente português, como bem registrou Eduardo Lourenço:
Sem o confessarem ou, acaso, terem bem
consciência disso – mas não estou certo -, os
decididos apóstolos, ou antes, crentes na
existência de um espaço-língua suporte de um
espaço-cultura que permitisse dar um conteúdo à
idéia de ”lusofonia” – para além da constatação
empírica de uma expressão de matriz lusíada –
imaginam assim aceder a um Quinto Império mais
acessível que o Império de Cristo pregado por
Vieira ou do que o império de sonho feito com a
saudade do império perdido, à Pessoa. É um
sonho que vale a pena sonhar quando se é
português, mas de que, creio, só os portugueses,
sobretudo do continente, são imaginários
sujeitos.203
Sendo assim, sob a ótica portuguesa, a idéia de lusofonia estaria
intimamente ligada ao processo das grandes navegações, em que Portugal
“abriu as postas do mundo” para a Europa, ao mesmo tempo em que espalhou
sua língua e sua cultura pelas terras onde aportou. Nesta perspectiva, a
construção de um “imaginário lusófono” passava necessariamente pela ênfase
203 LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro. São Paulo, Cia. das Letras, 2001, p.190-191.
146
na identidade existente entre Portugal e as suas ex-colônias; identidade esta
que “dar-se-ia num plano quase que ‘inatingível’ para aqueles que dela não
participassem: aquele do ‘espírito’ e das experiências subjetivas”.204
Ao pensarmos nos mitos fundadores da lusofonia e na possibilidade
da existência desse “imaginário lusófono” - que se constituiria em um dos
pilares fundamentais da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa –
remetemo-nos às reflexões de Bronislaw Baczko sobre o “imaginário” e a
“imaginação social”.205 A grande questão é que os elementos que formariam
esse imaginário – como lembra Eduardo Lourenço - são essencialmente
portugueses, vinculando-se a uma realidade histórico-social específica de
Portugal, e necessariamente não têm a mesma importância para os demais
países de língua portuguesa, carecendo daquilo que Baczko chama de
Comunidade de Imaginação ou Comunidade de Sentido. Nesta perspectiva, o
discurso da lusofonia cairia no vazio para os não-portugueses, já que não
partiria de aspirações coletivas ou de um imaginário preexistente entre
brasileiros, moçambicanos, angolanos e demais povos que adotam o português
como idioma oficial.
Assim, na construção dessa artificialidade que é a “Comunidade
Lusófona”, o Estado Português, principal interessado em sua consolidação,
apelou para argumentos como a identidade lingüística e cultural como bases de
sua legitimação. No entanto, sob esta perspectiva, para que esta comunidade
se consolide há a necessidade de se valorizar aquilo que Castoriadis206
204 THOMAZ, Omar Ribeiro. “Tigres de papel: Gilberto Freyre, Portugal e os países africanos de língua oficial portuguesa”. In: BASTOS, Cristiana et alli. Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros. Lisboa, ICS, 2002, p.41. 205 BACZKO, Bronislaw. “Imaginação Social”. In: Enciclopédia Einaudi, Volume 5, Anthropos-Homem. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa de Moeda, 1984. 206 CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.
147
chamaria de a significação imaginária social dessa comunidade, partindo da
idéia de que o imaginário social representa uma força instituidora e, como tal,
unificadora de uma sociedade, ou como coloca Lourenço, “lusofonia sem um
mínimo de mitologia cultural compartilhada só pode ser comunidade na ordem
prática da comunicação, não da do espírito e da do imaginário que são a sua
essência”.207
Todos esses aspectos devem ser levados em consideração ao se
analisar a “redescoberta” desta “tradição” intelectual luso-brasileira em defesa
da idéia de uma Comunidade de Povos de Língua Portuguesa.
Indiscutivelmente, ela se inseriu nos esforços dos construtores daquilo que
temos chamado de “discurso da lusofonia” e do seu desdobramento natural, a
CPLP, para legitimar este discurso e esta organização. Neste sentido, é
importante ressaltar que a defesa desse ideal comunitário, na maioria das
vezes, não representa a questão central na produção intelectual desses
autores, no entanto foi este o ponto destacado no resgate de suas obras, em
Portugal, nas décadas de 1980 e 1990.
3.6. Quebrando o consenso: as vozes dissonantes em Portugal.
Como já assinalamos anteriormente, nas décadas de 1980 e 1990,
construiu-se praticamente um consenso nacional em Portugal, em torno da
idéia da lusofonia, fazendo com que a quase totalidade das elites políticas –
percorrendo todo o espectro político-ideológico – e intelectuais, bem como
amplos setores da sociedade portuguesa assimilassem e repercutissem esse
discurso. Conforme também já ressaltamos, isto se fez sentir com bastante
intensidade durante as comemorações do Quinto Centenário dos
207 Lourenço. Op.cit. p. 173
148
descobrimentos portugueses, que dominaram os meios de comunicação
portugueses durante toda a década passada e o início desta e engendraram a
publicação de centenas de publicações – diversas delas financiadas por
organismos do governo português como o Instituto Camões ou pela Comissão
Nacional para as Comemorações do Quinto Centenário dos Descobrimentos
Portugueses – sobre a época dos descobrimentos, sobre o Império Colonial e
sobre o mundo de língua portuguesa na contemporaneidade.
Analogamente, estas comemorações podem ser comparadas,
guardadas as devidas proporções e os momentos históricos distintos, a
grandes eventos do período salazarista que saudaram as conquistas
portuguesas, como a I Exposição do Mundo Português (1940) - organizada
para marcar a dupla comemoração do Oitavo Centenário da fundação de
Portugal e do Terceiro Centenário do fim da União Ibérica – e as
comemorações do Quinto Centenário da morte do Infante D. Henrique, no
início da década de 1960. Por sinal, uma leitura mais atenta de um trecho do
Programa Oficial da Exposição do Mundo Português, nos permite fazer esta
comparação de forma bastante elucidativa, notando a permanência de uma
série de elementos discursivos nas recentes comemorações do Quinto
Centenário dos Descobrimentos Portugueses, mas com a retirada, é claro, das
referências ao colonialismo e ao Império:
Tão extenso e fragmentado pelo mundo é o
território português, tão misterioso e diverso o
espírito da grande nação atlântica, que se tornou
sobremaneira difícil – se não impossível –
apreender rapidamente o sentido profundo a
verdadeira expressão de Portugal. Só uma longa
permanência no país, servida por largas viagens
através do Império, poderá esclarecer cabalmente
149
quem quiser penetrar o mistério português – tão
apaixonante na evocação do seu passado quase
milagroso e na projeção do futuro brilhante que o
seu presente de claridades anuncia. A existência
de um resumo vivo de Portugal, síntese de sua
história e da sua etnografia, completo sem ser
carregado, simples sem ser incorreto, impunha-se
como uma necessidade de documentação, não só
do que fomos, mas do que valemos hoje como
povo trabalhador e como grande Império208.
Então, foi nesse espírito das comemorações que a idéia da lusofonia
e a defesa da consolidação de um espaço político da língua portuguesa,
representado pela CPLP, encontraram terreno fértil para se enraizarem na
sociedade portuguesa. No entanto, em meio a esta quase total uniformidade de
pensamento, apareceram em Portugal algumas vozes divergentes, ou pelo
menos, mais ponderadas que procuraram relativizar ou questionar os pontos
centrais do discurso lusófono, elaborando uma contra-argumentação ao
consenso dominante. Neste sentido, destacaram-se os nomes de dois
veteranos e importantes intelectuais portugueses, Eduardo Lourenço e Alfredo
Margarido, sem sombra de dúvidas dos mais notáveis intérpretes de Portugal.
O primeiro nasceu em 1923 e licenciou-se em Ciências Histórico-
Filosóficas na Universidade de Coimbra (1946), tendo atuado a seguir como
Professor-Assistente de Filosofia naquela Instituição. A partir de 1954, lecionou
em diversas Universidades na Europa - Hamburgo, Heidelberg, Montpellier,
Grenoble e Nice – e no Brasil – Universidade da Bahia. Filósofo e crítico
literário, é considerado, mesmo por seus críticos, o maior dos ensaístas
208 Apud. THOMAZ. Omar Ribeiro. Ecos do Atlântico Sul. op. cit., p. 253.
150
portugueses contemporâneos. Seus ensaios abrangem temas que vão da
cultura portuguesa à política, passando pelas discussões identitárias e pelos
estudos literários. Recebeu, em 1988, o Prêmio Europeu de Ensaio Charles
Veillon pelo conjunto de sua obra e, em 1996, o Prêmio Camões. Na sua
extensa obra, destacam-se: Heterodoxia (1949-1967, em dois volumes), O
Labirinto da Saudade: Psicanálise Mítica do Destino Português (1978), O
Complexo de Marx (1979), O Espelho Imaginário (1981), Poesia e Metafísica
(1983), Nós e a Europa ou As Duas Razões (1988), O Canto do Signo:
Existência e Literatura (1994), O Esplendor do Caos (1998), Portugal como
Destino seguido de Mitologia da Saudade (1999) e A Nau de Ícaro seguida de
Imagem e Miragem da Lusofonia (1999).
O segundo nasceu em 1928, na região de Vinhais e foi aluno da
Escola de Belas-Artes do Porto, tendo chegado a fazer exposições de seus
trabalhos como artista plástico. Depois de passar um bom período na África
como funcionário da administração colonial, regressou a Portugal e, logo
depois, seguiu para Paris, onde completou seus estudos e começou a atuar
como professor universitário. Poeta – com uma escrita próxima do surrealismo
-, romancista, ensaísta e crítico literário possui uma extensa produção como
escritor na qual se destacam obras como Poemas com Rosas (1953), Poema
Para Uma Bailarina Negra (1958), No Fundo Deste Canal (1960), A Centopéia
(1961), As Portas Ausentes (1963), O Novo Romance (1962), Marânus: Uma
Linguagem Poética Quase Niilista (1976), Estudos sobre Literaturas das
Nações Africanas de Língua Portuguesa (1980) e A Lusofonia e os Lusófonos:
Novos Mitos Portugueses (2000).
151
3.6.1. As vozes dissonantes: A lusofonia na perspectiva de Eduardo
Lourenço.
Embora tenha se destacado como um dos mais importantes
intelectuais portugueses desde a década de 1950, as obras de maior impacto
do ensaísta Eduardo Lourenço foram escritas nas últimas três décadas. Neste
período, acontecimentos como o fim da ditadura salazarista, a
redemocratização de Portugal, a dissolução do Império Colonial Português, o
processo de integração à Europa, as redefinições identitárias globais
relacionadas ao fenômeno da globalização e, é claro, a construção da idéia da
lusofonia deixaram marcas profundas na sociedade portuguesa. Portanto, é
lógico que Lourenço que, ao longo de sua obra como crítico e ensaísta, sempre
procurou decifrar este grande enigma que é Portugal, não poderia ter ficado
imune a esse momento ímpar da história de seu país e, assim, foi o
responsável por algumas das melhores reflexões sobre todos esses processos,
principalmente em obras como “O Labirinto da Saudade”, “O Complexo de
Marx”, “Nós e a Europa”, “Mitologia da Saudade” e “A Nau de Ícaro”.
Durante o processo de redemocratização da sociedade portuguesa,
Lourenço produziu alguns dos ensaios mais profundos e instigantes sobre o
pós-25 de abril, com “O Labirinto da Saudade” aparecendo como uma das mais
importantes obras publicadas no período. De modo geral, ao acompanharmos
a evolução do pensamento Lourenciano ao longo destas mais de três décadas
que nos separam da Revolução dos Cravos, podemos notar que, ao mesmo
tempo em que ele percebe a importância da Revolução para as transformações
que se processaram na sociedade portuguesa, ele a considera fracassada em
relação à gestação de uma “contra-imagem” daquela que os portugueses
possuem de si mesmos, pois apesar dos impactos produzidos inicialmente, sob
152
esse aspecto, a revolução acabou retornando ao seu ponto de partida – como
no outro sentido desta palavra, presente nas ciências exatas: o movimento de
um objeto em torno de um ponto central ou de um eixo que o conduz
periodicamente a mesma posição relativa – ou seja, a velha mitologia do
destino imperial português não só não se rompeu como, de certa forma,
reforçou-se. Revestido pelo discurso democrático e pluralista, o velho mito
continua presente nos esforços portugueses para a constituição de uma
comunidade lusófona com suas ex-colônias que, paradoxalmente – como
assinalamos inúmeras vezes - tem como suas grandes articuladoras, as forças
políticas que impulsionaram a descolonização, notadamente os socialistas.
Em Tempo Português, Eduardo Lourenço afirma que
“contrariamente à lenda, o povo português - ferido como tantos outros por
tragédias reais na sua vida coletiva - não é um povo trágico. Está aquém ou
além da tragédia”.209 Esta característica, atribuída por ele aos portugueses, de
“contornar” o trágico ao longo de sua existência enquanto nação, construindo
um ‘tempo” próprio, ahistórico, onde passado, presente e futuro misturam-se, e
onde a fronteira entre sonho e realidade é bastante tênue, pode ser usada
como ponto de partida para compreendermos a visão lourenciana sobre o 25
de abril. Para Lourenço, ao longo de sua história, os portugueses construíram
uma imagem de si mesmos e vivem da contemplação maravilhada e feliz dessa
imagem, elaborada a partir do passado glorioso de descobridores “ de novas
terras e novos céus” e da percepção de sentirem-se como “povo eleito”. Ora,
era de se esperar que em momentos traumáticos da história portuguesa, essa
imagem que os portugueses tem de si, começasse a ser questionada e
209 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade. op. cit., p. 14.
153
surgissem condições para a construção de uma “contra-imagem”. Porém esta
capacidade de “contornar o trágico” faz com que os portugueses voltem, como
Lourenço coloca em relação ao Ultimatum britânico durante a corrida
imperialista do final do século XIX, “à costumada e agora voluntária e
irrealística pose de se considerarem, por provincianice incurável ou despeito
infantil, uma espécie de nação idílica sem igual”.210
Esta mesma linha de raciocínio poderia ser aplicada à Revolução
dos Cravos e ao processo que seguiu à ela, já que o 25 de abril também teria
falhado em relação a possibilidade de se construir uma contra-imagem
daquela que os portugueses tem de si mesmo. Apesar das aparentes
mudanças trazidas pela Revolução, mais uma vez os portugueses se
mostraram “aquém e além da tragédia”, em um processo que Lourenço
chamou de “inconsciência coletiva”. Ao se referir a isso 25 anos depois, em um
artigo publicado no jornal “Expresso”, Lourenço escreveu - comentando uma
afirmação de José Saramago, que “com ou sem o 25 de abril, Portugal estaria
onde está” - que ”o que não mudou e até de alguma forma se reforçou, foi a
mitologia de Portugal nostálgico de si mesmo como império”, e que, nesse
aspecto, o comentário de Saramago seria bastante pertinente.211 Essa
“ausência da tragédia” também teria se feito presente no processo de
descolonização do antigo Império Português, pois, como já discutimos no
capítulo II, levando-se em consideração que a nação portuguesa ligava seu
destino nacional à idéia do Império, os impactos desse processo pareceram
não deixar grandes traumas entre o povo português.
210 LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. op. cit., p 27-28. 211 LOURENÇO, Eduardo. Portugal Sem Abril. Expresso, 24/04/1999.
154
No entanto, em 1978, na “Psicanálise Mítica do Destino Português”
Lourenço ainda acreditava na possibilidade da Revolução de Abril e seus
desdobramentos construírem a contra-imagem que Portugal necessitava:
Foi a imagem ideológica do povo português como
idílico, passivo, amorfo, humilde e respeitador da
ordem estabelecida, que o 25 de abril impugnou,
enfim, em plena luz do dia. A verdade que através
dela irrompia era de molde a reajustar finalmente a
nossa realidade autêntica de portugueses a si
mesma, como reflexo e resposta a uma
desfiguração tão sistemática como aquela que
caracterizara o idealismo hipócrita e, sob a cor do
realismo, o absurdo irrealismo da imagem
salazarista de Portugal. Todavia, anos passados,
não é possível asseverar que tal reajustamento se
tenha produzido, que tenhamos posto uma espécie
de ponto final naquilo que poderíamos designar de
visão maniqueísta da História e da realidade
portuguesas. A contra-imagem de Portugal e do
seu destino que a Revolução de Abril e suas
seqüelas entronizaram, ainda não possui um grau
de assentimento coletivo e um perfil que permitam
considerá-los como estáveis.212
Porém, vinte anos depois em “Portugal como Destino”, tal
perspectiva já não aparecia mais, visto que “o falso e verdadeiro pânicos
passados, voltamos, quase sem transição, senão aos ‘antigos tempos’, aos
mesmos caseiros e deliciosos negócios públicos, instituídos pouco a pouco
como festa permanente. Do destino de Portugal e ainda mais de Portugal como
destino, com raríssimas exceções, nunca mais se ouviu falar uma palavra”. 213
212 LOURENÇO, Eduardo. O Labirinto da Saudade. op. cit., p. 61. 213 Ibidem. Mitologia da Saudade. op.cit., p 147-148.
155
Sobre a Revolução dos Cravos, outro ponto que mereceu a atenção
de Lourenço foi a participação da esquerda democrática portuguesa, articulada
principalmente em torno do Partido Socialista, em todo o processo
revolucionário. Em 1989, em um artigo intitulado “15 anos depois”, publicado
no jornal “Expresso”, ele referia-se a Mário Soares como a encarnação da
“autonomia da sociedade saída da Revolução de Abril, abalada por ela, como
sociedade civil não só de normal e pleno direito, mas como vivência
interiorizada hoje pela maioria dos portugueses”. No mesmo parágrafo, o Gal.
Ramalho Eanes é apresentado como aquele que “contribuiu decisivamente
para inscrever a instituição militar na ordem democrática definida pela
constituição”.214 Essa perspectiva é bastante coerente com todo o pensamento
de Lourenço que sempre procurou deixar de lado os maniqueísmos, buscando
sempre um “terceiro caminho” entre os extremos. O elogio a Soares e Eanes
como símbolos do Portugal pós-25 de abril encaixa-se bem nesta perspectiva,
visto que ambos atuaram no cenário político português como alternativas
moderadas aos radicalismos de esquerda e direita, como bem coloca David
Birmingham ao afirmar que “o herói da transição de Portugal para a
democracia, da entrada na Europa e da restauração das boas relações com a
Espanha foi Mário Soares”.215
Porém, em 1977, a análise que Lourenço fazia da atuação de
Soares e do Partido Socialista, nos anos que se seguiram ao 25 de abril, era
bastante diferente. Em alguns artigos de “O Complexo de Marx”, Lourenço
atribuía a Soares e ao PS, a responsabilidade pelo abortamento do processo
revolucionário:
214 LOURENÇO, Eduardo. 15 Anos Depois. Expresso, 22/04/1989. 215 BIRMINGHAM, David. op. cit., p. 238
156
A nossa revolução não se suicidou, de caras, como
Maiakovsky. Foi suicidada.(...) Estava no direito e
mesmo no dever de Mário Soares de não querer
ser nem Kerensky, nem Massaryk. Não estava
nem está no seu caráter ser Allende, não porque
lhe falte coragem física ou moral, mas porque lhe
falta convicção socialista. Preferiu ‘sacrificar-se’,
ser o Kurt Schuschnigg de uma direita ufanista,
implacável, que o recusa quando supõe não
precisar já dele para conter o que ainda resta de
impulso revolucionário em nosso país (A
Revolução a Deriva).216
Em outro artigo do mesmo livro, A Revolução abortada – ou
impossível?, Lourenço escreve que “(...) sem conhecer ainda um fracasso
absoluto, a revolução portuguesa acha-se confrontada com um futuro temível.
Os socialistas portugueses parecem assumir neste momento a figura de
‘coveiros’ da esperança socialista nascida com o 25 de abril, confirmada pelo
11 de março”. 217 Assim, podemos notar que o que Lourenço considerou como
virtude, em 1989, entre 1977 e 1979, no calor da hora, era o alvo de suas
críticas. A visão de Lourenço no final da década de 1980, decorrente talvez do
distanciamento crítico que o passar dos anos proporciona, é compartilhada por
diversos autores entre os quais Kenneth Maxwell que, nos parágrafos finais de
“A Construção da Democracia em Portugal”, faz a seguinte análise:
Não foram os girondinos que foram derrotados
pelos montanheses como na Revolução Francesa;
ou mais apropriado ao caso de Portugal, não foram
os bolcheviques que derrotaram os mencheviques.
Apesar do triunfalismo adotado pelo dirigente do
Partido Comunista Português, Álvaro Cunhal,
216 LOURENÇO, Eduardo. O Complexo de Marx. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1979, p. 151. 217 Idem. p. 191.
157
apesar do autoritarismo atávico do regime deposto,
apesar do ‘terceiro mundismo’ adotado pelos
jovens militares radicais que imediatamente a
seguir ao golpe tomaram o poder em Lisboa,
apesar das maquinações de uma extrema direita
nostálgica do passado, apesar do atraso social e
econômico de Portugal, apesar da instabilidade
política crônica que se seguiu à promulgação da
constituição de 1976 e apesar dos prognósticos
sombrios de Henry Kissinger, os portugueses
foram capazes de criar um sistema de governo
representativo e pluralista, totalmente comparável
ao que é de norma na Europa Ocidental. No
contexto da Revolução Portuguesa foi Kerensky
que sobreviveu, não Lenine. Foi o socialista
moderado Mário Soares quem, no final, se tornou
Presidente da República e o militar radical
populista Otelo Saraiva de Carvalho quem foi,
primeiro, para a prisão e, depois, para a
obscuridade.218
No entanto, uma ressalva que deve ser feita é a de que uma
perspectiva presente nos dois momentos da análise de Lourenço sobre os
rumos da Revolução de Abril é a da importância do contexto internacional para
a compreensão dos caminhos seguidos pela Revolução Portuguesa. Em
1978/79, ele escrevia que a história encontraria atenuantes para o papel de
“coveiros” da Revolução exercido pelos socialistas, isto porque:
(...) em 1974, na Europa, no seu extremo ocidente,
no fundo mais perto dos Estados Unidos do que da
Espanha, sua vizinha, Portugal dificilmente podia
tentar o que era – e continua a ser – um projeto
novo: conciliar a democracia com o socialismo. O
218 MAXWELL, Kenneth. A Construção da Democracia em Portugal. op. cit., p. 203-4
158
nosso fracasso – relativo ou absoluto – talvez
estivesse inscrito na natureza das coisas, isto é na
nossa história de país pobre, pequeno, ligado por
todas as fibras ao sistema econômico ocidental. A
nossa revolução abortada ou pelo menos adiada,
talvez fosse simplesmente impossível.219
A mesma perspectiva aparece em 1989, quando Lourenço afirmava
que “se na curta e longa memória que dele temos passarmos o pós-25 de abril
ao ‘ralenti’, descobrimos depressa, sem ceder à tentação determinista, que
aquilo que nos aconteceu – e continua a acontecer – não só teve a sua ‘lógica’
interna, como se insere perfeitamente no ‘puzzle’ de um contexto ocidental e
numa movência espetacular de suas perspectivas”.220 Mais uma vez, a
perspectiva de Lourenço se aproxima da análise de Maxwell quando este
afirma que:
O contexto internacional foi sempre um pano de
fundo importante para os acontecimentos em
Portugal. Mas os fatores internacionais só por si
não explicam o resultado das lutas sociais e
políticas em Portugal, lutas que (...) também devem
ser encaradas em seu contexto interno. Em muitos
aspectos o traço mais saliente da emergência da
democracia em Portugal foi o triunfo dos
moderados.221
Assim, talvez possamos afirmar que a mudança de perspectiva de
Lourenço em relação ao papel dos socialistas e de Mário Soares no processo
revolucionário se deu como resultado das próprias transformações ocorridas na
sociedade portuguesa nesse período. Desta forma, parece-nos que Lourenço 219 LOURENÇO, Eduardo. O Complexo de Marx. op. cit., p. 191-192. 220 LOURENÇO, Eduardo. 15 Anos Depois. Expresso, 22/04/1989. 221 MAXWELL, Kenneth. A Construção da Democracia em Portugal. op. cit., p. 203
159
passou a considerar o processo revolucionário desencadeado a partir do 25 de
abril, não mais como uma “revolução abortada”, mas sim como a “revolução
possível”.
Estas reflexões sobre a trajetória política de Portugal no pós-25 de
abril, bem como sobre a identidade nacional portuguesa, que seria marcada
por um profundo déficit de realidade e por uma enorme carga mítica, são
fundamentais para entendermos os escritos sobre o tema da lusofonia
produzidos por Lourenço, ao longo da década de 1990. Na verdade, em 1976,
ainda no período de descolonização do império português, ele já levantava
algumas questões bastante relevantes sobre o tema, antecipando problemas
que estariam presentes no processo de formação da CPLP duas décadas
depois. O mais notável dentre eles é a percepção de que para que tal espaço
se articule não poderia haver pretensões hegemônicas, já que aquilo que o
sustenta, a língua comum, não é propriedade de ninguém:
O centro desse mundo de lusofonia terá de ser
simultaneamente Lisboa, Bissau, Luanda, Maputo,
Goa, Brasília, todos os pontos e nenhum onde nos
compreendemos, bem ou mal, no interior da
muralha de cristal que é uma língua comum e de
ninguém propriedade. (...) É, por definição, uma
obra de concertação coletiva. A nós, portugueses,
cabe menos a proposição e a dinamização de um
tal projeto que a escuta polifônica de vozes que
hoje constituem a lusofonia viva. Não nos compete
clamar ou supor no lugar dos outros membros da
comunidade lusófona necessidades, urgências ou
apetências que eles mesmos não ressintam como
próprias.222
222 LOURENÇO, Eduardo. O Complexo de Marx. op. cit., p. 27.
160
No mesmo sentido, ele define a lusofonia como uma “empresa
futurante (..), endereçada à redefinição de nós mesmos no horizonte do mundo
lusófono que nos compreende e nos ultrapassa, e não a revisitação nostálgica
de um passado de mútuas cicatrizes”.223 Desta forma, Lourenço já alertava
contra a tentação portuguesa de ver em um futuro espaço político-cultural
lusófono, a reinvenção do Império, que então se dissolvia, e já apresentava
uma crítica sutil ao luso-tropicalismo transformado na ideologia colonial
portuguesa:
Sempre invejei o título com que o meu antigo
mestre, Silvio de Lima, desejou abarcar a nossa
aventura fora de portas: “O mundo que criou o
português”. Agora que o gilbertiano “mundo que o
português criou” gira na sua órbita autônoma e
original, chegou o tempo de reinventar –
começando por descobri-lo – esse outro mundo
que somos, e seremos, por termos sido durante
séculos os argonautas um pouco forçados das
áfricas, brasis e índias que já não temos, se
alguma vez as tivemos. Da aventura terminada
refluímos para a exígua casa lusitana. Mas
voltamos outros. Voltamos sem poder diretamente
regressar.224
Se em 1976 as críticas feitas a Freyre tinham um tom moderado, no
início da década de 1960, quando o pensamento freyriano se fazia presente de
forma sistemática no discurso do “Estado Novo” sobre a questão colonial,
Lourenço escrevia um artigo intitulado “Brasil – Caução do Colonialismo
223 Idem. p. 28. 224 Idem. p. 26.
161
Português” inserido no jornal Portugal Livre, de Janeiro de 1960, referindo-se
aos problemas da colonização portuguesa:
(...) nenhum intelectual safado gênero Gilberto
Freyre e suas burlescas invenções de erotismo
serôdio (...) podem tirar dos ombros do português,
tranqüilamente paternalista e fanfarrão o dever de
despertar para os seus deveres e seus atrasos.225
No ano seguinte, em um jornal português, em um artigo sobre a obra
de Freyre, Lourenço notava a:
(...) pouca ou nenhuma seriedade objetiva e o falso
brilho de fórmulas feitas, tematizadas de livro em
livro com fatigante ênfase. (...) Um nefasto
aventureirismo intelectual, incoerente e falacioso,
desmascarando ao mesmo tempo o falso
liberalismo deste amador de estéticas
imperialistas.226
No final da década passada, Lourenço retomou o tema da lusofonia
em um conjunto de artigos que foram reunidos em um livro intitulado “A Nau de
Ícaro e Imagem e Miragem da Lusofonia”, publicado no Brasil em 2001. Em um
deles, ele dialoga com o já citado artigo escrito em 1976 e reitera que para se
dar “sentido à galáxia lusófona” é necessário “vivê-la, na medida do possível,
como inextricavelmente portuguesa, brasileira, angolana, moçambicana, cabo-
verdiana ou são-tomense”, 227 propondo assim uma espécie de “centro
descentrado” que esteja em toda a parte onde se fala português. Mais uma
225 “Portugal Livre” era um jornal mensal editado em São Paulo pela colônia de exilados portugueses anti-salazaristas. 226 LOURENÇO, Eduardo. A propósito de Freyre. O Comércio do Porto. 11/07/1961 227 LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro. op. cit., p. 111.
162
vez, ele também alerta para a tendência portuguesa de se associar a idéia da
lusofonia à retomada do “sonho imperial”:
É natural que seja no espaço da nossa ficção,
quero dizer, da portuguesa, que mais fundo se
manifeste uma espécie de nostalgia imperial, uma
exigência de unidade, ou melhor, de universalidade
simbólica, suscetível de nos inventar, em termos
novos, aquela Atlântida submersa, ou mesmo
perdida, que imaginávamos possuir e habitar nos
tempos em que lhe chamávamos “o mundo
português”.228
Nesta perspectiva, Lourenço colocava então duas possibilidades
para a CPLP: a de ser “empresa futurante”, onde todos os seus atores sejam
sujeitos e em que a língua comum seja o ponto de convergência ou aquela,
bastante concreta, de que a lusofonia acabasse se tornando uma releitura do
“destino imperial português”:
Inventamos a lusofonia (...) para simbolicamente e
inconscientemente, habitarmos aqueles espaços
imperiais, mais de sonho do que de realidade, e
que por isso mesmo nunca poderemos considerar
como perdidos? 229
No entanto, apesar de buscar problematizar a discussão sobre a
lusofonia e de tentar evitar um lusocentrismo, em vários momentos Lourenço
resvala para este viés. Assim, se, por um lado, ele considera as diferenças
culturais entre Brasil e Portugal como um ponto fundamental no processo de
construção do espaço político lusófono e vê na questão colonial mal-resolvida o
problema central das relações luso-brasileiras (ou não-relações, como ele
228 Idem. 229 Idem. p. 183.
163
afirma), por outro, ele acaba reproduzindo – inconscientemente? – alguns
argumentos que são essencialmente portugueses, ao pensar numa solução
para este distanciamento entre os dois principais pólos da lusofonia:
(...) ao tratar dessas relações (luso-brasileiras),
Lourenço apóia-se ainda na idéia de origem
nacional, quando uma das principais tendências da
crítica pós-colonial é justamente a “recusa de toda
a história fundacional”. Além disso, embora
reconheça as diferenças entre os dois discursos
culturais, parece acreditar ser possível dirimi-las
através da reconstituição da “ancestralidade
compartilhada”, processo que “proporciona
margem de manobra tanto para a produção de
semelhanças, quanto de diferenças”, permitindo a
recriação das “raízes históricas” em termos de
laços de parentesco, de cultura e língua comum.230
Porém, se neste aspecto Lourenço se aproxima da argumentação
daqueles setores que acabaram identificando a “lusofonia” com o “Império
Revisitado”, na maioria das vezes, ele elabora críticas bastante contundentes
aos principais pontos desse discurso. Em “Imagem e Miragem da Lusofonia”,
por exemplo, ao lembrar que só os portugueses e os franceses criaram
oficialmente um espaço lingüístico, ele coloca a seguinte questão: “Inventamos
a lusofonia (...) para, simbolicamente e inconscientemente, habitarmos aqueles
espaços imperiais, mais de sonho do que de realidade, e que por isso mesmo
nunca poderemos considerar como perdidos?”. 231 Já no ensaio ”Da língua
como pátria”, Lourenço desconstrói o uso que os nacionalistas portugueses,
entusiastas da lusofonia, fizeram da célebre frase de Fernando Pessoa,
230 SOARES, Maria de Lourdes. “Lusofonia e imaginário cultural no ensaísmo de Eduardo Lourenço”. In: Anais do Museu Histórico Nacional (35). Rio de Janeiro, MHN, 2003, p 424-425. 231 LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro. op. cit., p. 183.
164
presente no “Livro do Desassossego”, que se tornou uma espécie de “dístico
lusófono”: “Minha Pátria é a Língua Portuguesa”. Retirada de seu contexto, tal
citação “converteu-se numa litania repetida através do espaço da língua
portuguesa, ao mesmo tempo como prova de assimilação de “língua” e “pátria”
e como sacralização desse laço indissolúvel”,232 e tem servido como base de
uma da releitura pós-colonial do sonho imperial português convertido agora no
“espaço da língua portuguesa” expresso na CPLP.
Nesta releitura, a lusofonia fundamenta-se, tanto na idéia do “projeto
Atlântico, de Agostinho da Silva, enquanto território (estendido) da língua
portuguesa”, quanto na “reconfiguração de uma Comunidade Luso-Brasileira,
baseada em reinterpretações da visão freyreana do Brasil enquanto futuro de
Portugal”. 233 Assim, ao afirmar que “uma língua não é de ninguém, mas nós
não somos ninguém sem uma língua que fazemos nossa” e que “é nesse
sentido e unicamente nesse sentido – longe das identificações narcisistas dos
nacionalismos culturais – que uma língua é, como pensava Pessoa, a nossa
verdadeira pátria”234, Lourenço rebate, ao mesmo tempo, a idéia da supremacia
portuguesa no espaço da lusofonia e a concepção desse espaço como
reinvenção do Império.
Portanto, Lourenço deixa claro que se concorda com a idéia da
lusofonia – como uma “empresa futurante” -, ao mesmo tempo se opõe a
maneira como esta idéia foi apropriada por determinados setores. Ao apontar a
permanência da mitologia política imperial presente nos argumentos dos
232 Idem. p. 125. 233 FELDMAN-BIANCO, Bela. “Entre a fortaleza da Europa e os laços afetivos da irmandade luso-brasileira: um drama familiar em um só ato”. In: ALMEIDA, Miguel Vale de, BASTOS, Cristiana e FELDMAN-BIANCO, Bela (Coord.). Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros. ICS, Lisboa, 2002, p. 404. 234 LOURENÇO, Eduardo. A Nau de Ícaro. op. cit., p.133.
165
principais defensores dessa idéia, ele se diferencia deles, apresentando assim
a possibilidade de uma “lusofonia polifônica”, onde as diversas vozes que a
compõe deveriam ser escutadas. Sem deixar de ser português, portanto
alguém - que como ele mesmo registra – para quem “tal sonho, merece ser
sonhado”, ele não permite, com suas reflexões, que as contradições desse
projeto sejam ignoradas.
Ao apontar, como destacamos nos capítulos anteriores, o imaginário
como o elemento central para a instituição dessa Comunidade, ele apresenta
as dificuldades que envolvem a concretização do “espaço da lusofonia”, espaço
este que, embora também político, é acima de tudo cultural e é nesse “espaço
cultural, não só empírico mas intrinsecamente plural, que os novos imaginários
definem que um qualquer sonho de comunidade e proximidade se cumprirá ou
não”.235
3.6.2. As vozes dissonantes: A lusofonia na perspectiva de Alfredo
Margarido
Se Eduardo Lourenço problematiza algumas questões e apresenta
algumas contradições do projeto da lusofonia, mas sem negá-lo, outro
importante intelectual português, Alfredo Margarido, desconstrói de maneira
radical esse projeto. Margarido, de forma contundente, define a lusofonia como
a revitalização de uma nostalgia do império, resultante do vazio ideológico
decorrente do processo de descolonização e da amputação do componente
imperial da nação portuguesa.
Assim, em “A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses”,
publicado em 2000, no auge das comemorações da chegada dos portugueses
235 Idem. p. 196.
166
ao Brasil, Margarido constrói um verdadeiro manifesto contra o consenso
nacional que se articulou em Portugal, em torno do projeto da lusofonia, e que
abarcou amplos setores da intelectualidade, da imprensa e de boa parte das
forças políticas do país, mostrando as suas contradições e os seus limites.
Logo no primeiro ensaio, ele toca em duas questões essenciais para esta
discussão: o saudosismo do Império e a veneração acrítica do passado:
Sutil mas constantemente, sente-se perpassar na
atmosfera política nacional um sopro gélido, muito
necrofílico, que à força de exaltar o passado,
compromete o presente, e mais ainda o futuro. A
criação e sobretudo a perenidade da Comissão
encarregada de comemorar os descobrimentos,
constitui certamente um desses sintomas. O país
foi remetido para o século XV-XVI, e só aí
encontraria razões para existir. Os séculos
subseqüentes, e mais particularmente o nosso, não
fariam mais do que confirmar a “decadência”, que o
século XIX instalou com toda pompa no panteão
nacional.236
Desta maneira, desde o início de seu livro, Margarido adota um estilo
cru e agressivo para denunciar o que, segundo ele, seriam os “novos mitos
portugueses” que manteriam Portugal presos à idéia de um passado idílico,
construído principalmente durante os anos do Estado Novo e que tem na
crença no “destino imperial” e na “vocação atlântica” de Portugal os seus
elementos essenciais. Em sua perspectiva, o rompimento de Portugal com o
Atlântico se deu a partir da década de 1960, momento marcado pelas guerras
coloniais, pela emigração e pelo nacionalismo racista e arcaico do regime
236 MARGARIDO, Alfredo. A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses. Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 2000, p. 5.
167
salazarista.237 A lusofonia teria surgido então, no contexto pós-colonial, como
um novo mecanismo ideológico para retomar a antiga “política atlântica”
tentando, através do discurso da “língua comum”, apagar as marcas do
passado colonial e as relações traumáticas com as ex-colônias decorrentes
dele.
Por isto, a idéia de valorização da língua teria ganhado força em
Portugal, somente a partir do momento em que o controle direto sobre as
populações lusófonas deixou de existir. No entanto, ao tentar controlar a língua,
Portugal estaria tentando estabelecer um novo mecanismo de dominação238
sobre os demais países de língua portuguesa, como se ela fosse um
patrimônio exclusivamente seu:
Basta considerar com atenção o percurso dos
acordos ortográficos, para encontrar a mesma
inquietação, a republicana de ontem ou até de
anteontem, a fascista e agora democrática:
assegurar o controle da língua, obrigar os demais
locutores a aceitar as regras portuguesas. A língua
nasceu em Portugal e pertence aos portugueses.
Não se consegue aceitar o simples princípio de
que a língua pertence aqueles que a falam!239
Desta forma, a lusofonia deve ser entendida como uma estratégia
dos teóricos da idéia de “portugalidade” que utilizam o discurso de que a língua
é “o agente mais eficaz da unidade dos homens e dos territórios que foram
marcados pela presença portuguesa”, ao mesmo tempo em que, na ausência
de uma reflexão anti-colonialista em Portugal, antes das independências, ela 237 Idem. p. 6. 238 A não-ratificação, até o presente momento, por parte de Portugal do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa – assinado somente por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe – parece dar uma certa razão aos argumentos de Alfredo Margarido. 239 MARGARIDO, Alfredo. op. cit. p. 6-7.
168
supre a necessidade de se organizar uma “ideologia explicativa”: “os
portugueses foram obrigados à renunciar à dominação política econômica, mas
procuraram assegurar o controle da língua”.240 Esta afirmação nos remete à
idéia da “descolonização exemplar” discutida por Eduardo Lourenço e por nós
analisada nos segundo capítulo deste trabalho.
Por outro lado, Margarido não deixa de registrar que a lusofonia teria
sido construída a partir da idéia da “francofonia”, implementada pelos
franceses, a partir de 1962, com a dissolução de seu império. Com isto
“respeitando um velho modelo de submissão cultural, não puderam os
portugueses furtar-se ao modelo tradicional, tendo criado, após 1974, a
lusofonia”. 241 Este projeto estaria ligado ao velho ideal missionário de “civilizar”
os povos das colônias, só que, a partir da descolonização, focado na língua e
em uma história comum – as bases do espaço lusófono –, mesmo que esta
história esteja relacionada às relações entre dominadores e dominados.
No bojo das comemorações dos descobrimentos, a percepção
portuguesa – não assumida - de que o “outro” só passou a existir após o
contato com os portugueses é duramente criticada por Margarido, que desnuda
esta percepção mostrando que ela oculta a outra face do “encontro”: a da
invasão e da conquista dos povos nativos. Nesta perspectiva, ele discute o
significado do luso-tropicalismo como ideologia justificadora do colonialismo
português e a sua permanência, através da lusofonia, naquilo que ele chama
de “a longa duração do espírito colonial”. Concordando com as idéias de
autores como Cláudia Castelo e Valentim Alexandre, discutidas nos capítulos
anteriores, Margarido afirma que o luso-tropicalismo só existe em Portugal
240 Idem. p. 57. 241 Idem. p. 15.
169
após 1945, quando foi apropriado pelo regime salazarista para servir a
hegemonia colonial portuguesa, colocando uma máscara sobre as violências
praticadas pelos colonizadores e robustecendo “a consciência e a prática
coloniais portuguesas”. 242
Outra contestação presente nos seis ensaios que compõem este
livro-manifesto se faz em relação ao tratamento dado em Portugal aos
imigrantes provenientes do Brasil e dos PALOP: o fato de serem lusófonos não
lhes cria facilidade alguma para transitar e se estabelecer na “pátria-mãe” da
lusofonia. Esta questão se insere dentro de um contexto bastante específico:
1- O colapso dos projetos nacionalistas,
emancipatórios e utópicos nas ex-colônias e a
emergência de divisões étnico-políticas graves; 2-
O crescimento da imigração em Portugal, levando
à emergência da categoria de “minorias étnicas” e
a manifestações de racismo e anti-racismo; 3- O
desafio, em Portugal, à identidade nacional gerado
pela perda do império e pela entrada na União
Européia.243
Assim, em Portugal, o discurso nacionalista, xenófobo e anti-
imigração – esquecendo propositalmente o seu passado de “país de
emigrantes” - também se faz presente da mesma maneira que em outras
partes da União Européia. Lá, como no restante da Europa, a liberdade de
circulação ficou restrita à esfera dos capitais e das mercadorias, com a
propalada identidade lingüística não significando absolutamente nada e com o
242 Idem. p. 17-33. 243 ALMEIDA, Miguel Vale de “O Atlântico Pardo. Antropologia, pós-colonialismo e o caso lusófono”. In: ALMEIDA, Miguel Vale de, BASTOS, Cristiana e FELDMAN-BIANCO, Bela (Coord.). Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros. ICS, Lisboa, 2002, p. 33.
170
discurso da “fraternidade lusófona” esbarra nos ditames da política e da
economia reais:
Os naturais dos países do Sul, entre os quais se
contam tantos milhões de lusófonos, estão
praticamente proibidos de ter acesso aos países do
Norte, aos quais pertencemos por razões
históricas, culturais e políticas. Se os europeus
podem circular cada vez mais livremente, essas
facilidades de circulação só podem reforçar a
violência com que as populações do sul são
excluídas desse “paraíso”. Verifica-se facilmente
que a “língua” não constitui passaporte suficiente,
quaisquer que sejam as suas qualidades e as suas
tradições históricas. Pelo que a língua pode, afinal,
constituir uma forma incômoda da “pátria”.244
Desta forma, a lusofonia é por ele denunciada como sendo nada
mais do que o “doce paraíso da dominação lingüística que constitui agora uma
arma onde se podem medir as pulsões neo-colonialistas que caracterizam
aqueles que não conseguiram ainda renunciar à certeza de que os africanos só
podem ser inferiores” .245 Assim, analisando com atenção toda a argumentação
elaborada por Margarido, podemos pensar que ele está buscando construir
uma alternativa ao pensamento nacionalista tradicional português, marcado
pela constante presença do passado e que se refletiria na idéia da lusofonia.
Ironizando esta questão, ele não hesita em dizer – referindo-se aos defensores
desse pensamento - que suas contestações certamente farão com que lhe
acusem de “falta de patriotismo”, mas que estas acusações tendem a confundir
244 MARGARIDO, Alfredo. op. cit. p. 86. 245 Idem. p. 71.
171
“patriotismo” com “patrioteirismo”.246 Neste sentido, para Margarido, a quebra
da idéia da lusofonia – e dos mitos sobre os quais ela se sustenta – aparece
como uma condição essencial para que Portugal atinja, enfim, a modernidade.
246 Idem. p. 6.
Considerações Finais
Eduardo Lourenço, em diversas de suas obras, afirma que o povo
português não tem problemas de identidade, ao contrário, possuiria aquilo que
ele chama de hiperidentidade, já que “não se pode dizer dos portugueses
aquilo que Nietzsche dizia dos alemães (ou se pode dizer de outros povos) que
era uma gente que passava (passa?) a vida a perguntar: o que é ser alemão?
Todos os portugueses são, ou se sentem por assim dizer hiperportugueses.”247
Esta concepção lhe valeu diversas críticas de outros intelectuais portugueses,
como Boaventura de Souza Santos, que avaliam que, na verdade, a cultura e
a sociedade portuguesas sofreriam de um “déficit de identidade”248
No entanto, ao explicar melhor este conceito, Lourenço acaba se
aproximando da posição desses seus críticos:
Quis dizer que Portugal tem uma hiper-identidade
porque tem um déficit de identidade real. Como
tem déficit de identidade compensa-a no plano
imaginário (...) há uma espécie de vazio de
identidades reais que é compensado a nível
simbólico com o sentimento de uma identidade
simbólica que repousa exclusivamente, ou quase
exclusivamente, em referentes de ordem mítica,
em mitos fundadores, ou nem sequer fundadores,
mas criados pela própria história. 249
247 LOURENÇO, Eduardo. Nós e a Europa ou as Duas Razões. 4a edição. Lisboa, IN-CM, 1994, p. 19. 248 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice... No artigo intitulado “Modernidade, Identidade e a Cultura de Fronteira” presente nesta obra, Santos afirma “As culturas nacionais, enquanto substâncias, são uma criação do século XIX, são, como vimos, o produto histórico de uma tensão entre universalismo e particularismo gerido pelo Estado (...) O fato de o estado português não ter desempenhado cabalmente nenhuma das duas funções – diferenciação face ao exterior e homogeneização interna – teve um impacto decisivo na cultura dos portugueses (...) Assim, por um lado a nossa cultura nunca conseguiu se diferenciar totalmente perante culturas exteriores, no que configurou um déficit de identidade pela diferenciação. Por outro lado, a nossa cultura manteve uma enorme heterogeneidade interna, no que configurou um déficit pela homogeneidade”. P. 135-157. 249 Apud CRUZEIRO, Maria Manuela. Eduardo Lourenço: O Regresso do Corifeu. Lisboa, Notícias Editorial, 1997, p. 74.
173
Ao discutir, ao longo deste trabalho, a construção do discurso da
lusofonia em Portugal, bem como de um conjunto de questões que Alfredo
Margarido - em obra discutida no capítulo III - chama apropriadamente de
“novos mitos portugueses”, assumimos uma posição bastante convergente com
a externada pelo grande ensaísta português. Como assinala Pierre Grimal, o
mito se opõe ao logos (conhecimento racional) já que “tem por finalidade
apenas a si mesmo. Acredita-se ou não nele, conforme a própria vontade,
mediante um ato de fé, caso pareça ‘belo’ ou verossímil, ou simplesmente
porque quer se acreditar. O mito, assim, atrai em torno de si toda a parcela do
irracional existente no pensamento humano(...)”250. Assim, os mitos fundadores
estão presentes na construção de praticamente todas as identidades nacionais;
no entanto, no caso português, a persistência desses mitos criou entre os
portugueses o enorme “déficit de identidade real”, de que nos falam os
aparentemente divergentes Lourenço e Boaventura.
Em um de seus mais famosos estudos, o historiador das religiões e
filósofo romeno Mircea Eliade – que, inclusive, residiu em Portugal no início da
década de 1940 – apresenta uma definição de mito que se tornou bastante
conhecida e citada:
O mito conta uma história sagrada; ele relata
um acontecimento ocorrido no tempo
primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. (...)
O mito narra como, graças às façanhas dos
entes sobrenaturais, uma realidade passou a
existir (...) É sempre, portanto, a narrativa de
uma “criação”: ele relata de que modo algo foi
produzido e começou a ser. O mito fala apenas
250 GRIMAL, Pierre. A Mitologia Grega. 3a edição. São Paulo, Brasiliense, 1982, p. 8-9.
174
do que realmente ocorreu, do que se
manifestou plenamente.251
Nesta perspectiva, o mito deve ser entendido como uma narrativa
explicativa – que é parte integrante da cultura de um povo e que utiliza
elementos simbólicos para explicar o mundo e dar sentido à vida humana –
sobre a origem de algo, incluindo-se aí os costumes e as instituições sociais.
No entanto mais adiante, na mesma obra, Eliade afirma que "a partir de um
certo momento, a origem não se encontra mais apenas num passado mítico,
mas também num futuro fabuloso”.252 Isto é o que ele chama de “mobilidade da
origem”, fonte de todas as crenças que proclamam uma nova “Idade do Ouro”
projetada no futuro, sejam escatologias medievais como a de Joaquim de
Fiore, sejam concepções políticas contemporâneas como o Reich de mil anos
do Nazismo ou a utopia comunista de Karl Marx.253
Ora, essa projeção do passado no futuro é algo recorrente no
imaginário político português, o que se reflete na resignificação constante
desses mitos fundadores em diferentes conjunturas, como, por exemplo, toda a
mitologia em torno do “Quinto Império” e do “Desejado” ou a crença no “destino
imperial” português, que teria começado a se manifestar nas Grandes
Navegações quando Portugal descobriu “novos mundos” para a velha Europa.
Estas crenças se inserem dentro de uma questão mais ampla que é a visão
que os portugueses têm de si mesmos como o novo “povo eleito”, presente
desde o milagre de Ourique, o grande mito fundador da nação portuguesa,
fazendo com que ”o singular no povo português” seja “viver-se enquanto povo
251 ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo, Perspectiva, 1972, p.11. 252 Idem. p. 52. 253 Sobre esta questão ver a quinta parte do excelente livro de Jean Delumeau, já citado anteriormente, Mil Anos de Felicidade: Uma História do Paraíso. São Paulo, Cia. das Letras, 1997.
175
como existência miraculosa, objeto de uma particular predileção divina”.254 A
sacralização das origens ou a crença em um futuro brilhante traçado pela
divina providência não são absolutamente raros na mitologia política de
diversas nações, e mesmo um mito essencialmente português como o
Sebastianismo, se insere dentro da lógica um mito político bastante recorrente
em diversas culturas que é do Salvador, “alguém capaz de reverter a situação
vigente, tida como má, e instaurar uma nova era de paz e prosperidade. Ou
melhor: não instaurar, mas conduzir o grupo — via de regra, a nação — ao
futuro glorioso que de antemão lhe estava reservado”255. No entanto, “deve ser
raro que algum povo tenha tomado tão à letra como Portugal essa inscrição,
não apenas mítica, mas filial e já messiânica do seu destino(...)”256, fato este
que acaba por contribuir decisivamente para a manutenção da estrutura da já
citada hiperidentidade, discutida por Eduardo Lourenço, que caracterizaria o
povo português.
Todo esse universo simbólico está presente e é hierarquizado pela
ideologia nacionalista portuguesa que se reinventou no século XIX, após a
Independência do Brasil (1822), com os esforços para a estruturação do
Terceiro Império que só se consolidaria de fato, após diversos revezes, durante
os anos da ditadura salazarista. Como assinala Valentim Alexandre, neste
projeto colonial apareciam, desde o século XIX, dois mitos fundamentais que
povoaram o imaginário político português sobre a África e deram sustentação a
esse projeto: o Mito do Eldorado, ou seja. a crença inabalável na existência de
imensas riquezas nos territórios africanos que deveriam ser exploradas pelo
254 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade. op. cit., p. 92. 255 MIGUEL, Luis Felipe. “Em Torno do Conceito de Mito Político”. In: Dados. Rio de Janeiro, v. 41, n. 3, 1998. Disponível em: http://www.scielo.br. Acesso em: 28 de abril de 2007. 256 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade. op. cit., p. 91-92.
176
povo português, e o Mito da Herança Sagrada, que trabalhava com a idéia de
que a manutenção dos territórios ultramarinos era um imperativo histórico, já
que os mesmos eram o testemunho da grandeza da nação e a sua perda
significaria a perda da própria essência da nacionalidade.257 Este conjunto de
mitos é retomado pelo Estado Novo que, sob a liderança de António de Oliveira
Salazar, utilizou-se da idéia do destino imperial português para legitimar-se e
para explorar as suas colônias ultramarinas, construindo assim o discurso da
nação plurirracial e pluricontinental articulada em torno da crença em um
Portugal uno e indivisível do Minho ao Timor.
No entanto, a distância entre intenção e gesto era enorme e as
pretensões imperiais do regime salazarista esbarravam nas próprias limitações
do Estado português. Desta forma, ao mesmo tempo em que se fortalecia
dentro da sociedade portuguesa todo um discurso em torno da defesa do
Império, houve a necessidade de se abrir a exploração das riquezas
econômicas das colônias às grandes potências do mundo capitalista, fazendo
com que Portugal assumisse um papel subalterno dentro de seus próprios
domínios. Portugal, sob qualquer perspectiva de análise, continuava a ocupar
um papel secundário no Sistema Internacional e na Economia-Mundo, agindo
como intermediário de um “imperialismo por procuração”, conforme definição
de Perry Anderson, ou exercendo a função de “correia de transmissão” entre
os países centrais e as suas colônias africanas, como cabe a um “país
semiperiférico”, conforme a definição de Boaventura de Souza Santos.258
Nesse período, a inserção internacional de Portugal foi
caracterizada, por um lado, por uma postura de isolacionismo – a perspectiva 257 ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil, Novas Áfricas. op.cit., p. 220. 258 Os conceitos desenvolvidos por Perry Anderson e Boaventura de Souza Santos já foram analisados, anteriormente, ao longo deste trabalho, principalmente no capítulo II.
177
do “orgulhosamente sós”, preconizada por Salazar -, principalmente, a partir da
década de 1950, quando a comunidade internacional começou a pressionar
fortemente Portugal pela descolonização de seu Império Ultramarino; porém,
por outro lado, a posição radicalmente anticomunista do regime português e o
papel geo-estratégico dos Açores e do próprio território continental de Portugal,
garantiram a ele o pertencimento a OTAN e ao “bloco ocidental” liderado pelos
EUA. O discurso nacionalista de Salazar não foi empecilho para a continuidade
da política de abertura das colônias ao capital estrangeiro, o que, somado às
questões políticas e estratégicas citadas anteriormente, garantiu a Portugal a
“proteção” das grandes potências à política colonial portuguesa e ao próprio
regime salazarista.
Porém, as guerras coloniais iniciadas na década de 1960, bem como
os desgastes por elas provocados ao regime acabaram contribuindo
decisivamente para a derrocada do Estado Novo, levada a cabo pelo processo
revolucionário deflagrado em abril de 1974. A Revolução dos Cravos e a
subseqüente redemocratização de Portugal deram início a um processo de
reorganização das estruturas internas da sociedade portuguesa, de
renegociação do papel de Portugal no Sistema Internacional e, até mesmo, de
redefinição da própria imagem que os portugueses tinham de si mesmos e,
conseqüentemente, da sua identidade nacional. Os processos de integração à
Europa, de abandono da “Política Atlântica” iniciada na época dos grandes
descobrimentos e de retorno a esta política sob novos parâmetros, nortearam
toda estas redefinições pelas quais passaram o Estado e a Sociedade, em
Portugal.
178
Assim, a maioria da sociedade portuguesa, bem como a sua elite
política, parecia ter claro que, nesse momento, o caminho a ser seguido era o
da integração à União Européia e o de relegar ao segundo plano a tão
decantada secular vocação atlântica de Portugal. Analisando esse período, por
ele caracterizado como um momento de “Portugal em transe”, o historiador
José Medeiros Ferreira faz uma “síntese literária” da sua evolução política,
afirmando que existiu no país, entre 1974 e 1975, uma “república de
revolucionários”; entre 1976 e 1982, uma “república de políticos”; entre 1982 e
1990, uma “república de empresários”; e, finalmente, uma “república de
financeiros e jornalistas”, a partir de então259. Porém, apesar dos diferentes
tipos de predomínio social, os aspectos mais gerais da política interna e
externa de Portugal permaneceram sem grandes descontinuidades.
Por isto, com a opção européia já consolidada na segunda metade
da década de 1980, Portugal procurou retomar a sua dimensão atlântica a
partir de novos parâmetros. Como membro efetivo da OTAN, este aspecto de
sua política externa passou a desempenhar um papel estratégico de grande
importância e com a integração à União Européia, o “retorno à África” e a
promoção internacional da língua portuguesa tornaram-se peças importantes,
em uma perspectiva de fortalecimento da posição portuguesa dentro do bloco.
No entanto, para além das questões políticas e econômicas
concretas, esse momento foi marcado por um intenso debate intelectual em
torno da questão da identidade portuguesa e dos impactos da integração à
Europa sobre ela. Com isto, velhas discussões como a possibilidade de
absorção de Portugal pela Espanha, desta vez dentro uma Europa unificada,
259 In: MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal. Vol. 8. op. cit., p. 277.
179
voltassem a aparecer, além é claro, da secular polêmica em torno do
verdadeiro ethos português, se europeu ou atlântico. Como exemplo deste
debate, pode-se citar uma das principais obras de um dos maiores escritores
portugueses contemporâneos, A Jangada de Pedra, de José Saramago260.
Neste livro, Saramago narra a estória fantástica de como a
Península Ibérica se desprendeu da Europa e passa a navegar, como se fosse
uma gigantesca jangada de pedra, pelo Oceano Atlântico, ao mesmo tempo
em que apresenta o percurso de cinco personagens pelo seu interior.
Publicado no mesmo ano em que se concretiza a integração de Portugal e
Espanha à Comunidade Européia (1986), o romance assume um discurso
nitidamente anti-europeísta e valoriza a histórica opção atlântica de Portugal e
Espanha considerando que a vinculação natural dos países Ibéricos é com a
África e a América Latina, cuja existência eles levaram ao conhecimento dos
demais povos europeus. O fato de Portugal e Espanha terem se soltado juntos
do continente europeu demonstra a proximidade vista por Saramago entre os
dois países, situando-os dentro de um mesmo universo cultural, e as suas
diferenças para com o restante da Europa. Sob esta perspectiva, um dos
trechos mais emblemáticos do livro é aquele em que o autor apresenta a idéia
de que para diversos povos europeus, o fato de se verem livres da Península
Ibérica seria um desejo presente, porém não declarado:
260 José Saramago é o nome mais conhecido da literatura portuguesa contemporânea. Nascido em 1922, no Ribatejo, publicou o seu primeiro livro em 1947 (Terra do Pecado), voltando a publicar somente em 1966 (Os Poemas Impossíveis). Jornalista e Crítico Literário atuou em publicações como a lendária revista “Seara Nova” e os jornais “Diário de Notícias” e “Diário de Lisboa”, onde foi comentarista político. Por sinal, comunista militante que é, suas convicções políticas estão bastante presentes em sua obra. Apesar de também ter se dedicado à poesia, sua produção de maior repercussão foi feita em prosa e dentro dela podemos destacar O Evangelho Segundo Jesus Cristo, Memorial do Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Todos os Nomes e Ensaio Sobre a Cegueira. Em 1998, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, tendo sido o primeiro escritor de Língua Portuguesa a obtê-lo.
180
Ainda que não seja lisonjeiro confessá-lo, para
certos europeus, verem-se livres dos
incompreensíveis povos ocidentais, agora em
navegação desmastreada pelo mar oceano,
donde nunca deveriam ter vindo, foi, só por si,
uma benfeitoria, promessa de dias ainda mais
confortáveis, cada qual com o seu igual,
começávamos finalmente a saber o que a Europa
é, se não restam nela, ainda, parcelas espúrias
que, mais tarde ou mais cedo, por qualquer modo
se desligarão também. Apostemos que em nosso
final futuro estaremos limitados a um só país,
quinta-essência do espírito europeu, sublimado
perfeito simples, a Europa, isto é, a Suíça.261
A trajetória dos cinco personagens – portugueses e espanhóis - pelo
interior da península e suas crises e divergências servem para mostrar que,
apesar das diferenças entre eles, o seu encontro se dá de forma satisfatória,
representando simbolicamente o encontro das duas partes componentes da
cultura ibérica. Neste sentido, Saramago assume uma postura claramente
iberista e afirma uma identidade peninsular de base atlântica, apesar das
divergências e desencontros proporcionados pela História, que fica clara no
momento do relato em que depois de vagar pelo atlântico a península parece
se encontrar, em um ponto bastante significativo do globo:
A Península parou o seu movimento de rotação,
desce agora a prumo, em direção ao sul, entre África
e América Central (...) E a sua forma, inesperada
para quem ainda tiver nos olhos e no mapa a antiga
posição, parece gêmea dos continentes que a
ladeiam.262
261 SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. São Paulo, Círculo do Livro, s.d., p. 124. 262 Idem. p. 248
181
Reforça-se assim a idéia de proximidade entre a velha Ibéria e os
novos mundos por ela descobertos, bem como a herança cultural deixada em
suas ex-colônias – da qual as duas línguas-irmãs, a portuguesa e a espanhola,
são as perfeitas traduções –, que se integram naquilo que seria uma “Grande
Ibéria”263, pluricontinental e multicultural.
Tomando estas questões como ponto de partida, podemos traçar um
paralelo entre este romance de Saramago e o filme de Manoel de Oliveira, que
discutimos em nosso capítulo introdutório, pois mesmo que o iberismo do
primeiro, se diferencie do nacionalismo luso do segundo, ambos trabalham
com um universo simbólico muito similar, cuja discussão foi o principal objetivo
deste trabalho. Ao valorizarem a cultura portuguesa, isoladamente ou como
parte de uma cultura peninsular mais ampla, demonstram a preocupação com
a sua sobrevivência em um mundo em transformação, onde os particularismos
locais poderiam ser destruídos pelos impactos de uma cultura globalizante.
Desta forma, Saramago e Oliveira inserem-se dentro do mesmo “caldo cultural”
em que foi construído o discurso da lusofonia em Portugal, nas décadas de
1980 e 1990 e refletem em suas obras algumas das preocupações que nele
estarão presentes.
Naquele momento de redefinições identitárias em escala global,
esse discurso ganhou corações e mentes em Portugal, pois se sustentava em
uma mitologia cultural - que discutimos ao longo de toda a tese – de forte
presença na sociedade portuguesa. Ao resgatar as glórias passadas da nação 263 Vamireh Chacon define esta “Grande Ibéria” como uma “viva herança, atuante legado, da Antiga à Nova Ibéria: Antiga, seminal, a de Portugal e Espanhas de diversos reinos e etnias; Nova, as Américas Portuguesa (Brasil) e Hispânica de vários povos e idiomas. Grande Ibéria projetando-se também na África lusófona, ainda hispanófona na outrora Guiné espanhola, e além, na Ásia e Oceania de Timor Leste. Quase onipresente, menos ou mais, através de imigrantes portugueses e espanhóis na própria Europa, na América do Norte a língua castelhana chega a rivalizar com os anglofalantes” . In: CHACON, Vamireh. A Grande Ibéria: Convergências e Divergências de uma tendência. São Paulo/Brasília, Ed. da UNESP/Paralelo 15, 2005, p.11.
182
e projetá-las em um futuro aparentemente realizável, construiu-se um
consenso nacional que incluía as elites políticas – contemplando a totalidade
do espectro político -, a maior parte da intelectualidade e o conjunto dos
cidadãos comuns. Portanto, se por um lado a constituição de uma Comunidade
de Países de Língua Portuguesa – desdobramento natural do discurso
lusófono – atendia aos ditames de uma realpolitik, por outro ela desempenha
um papel fundamental nesse processo de (re) construção da identidade
nacional portuguesa.
Neste sentido, a atribuição de uma maior importância a
determinados “pais-fundadores” da Comunidade Lusófona inseriu-se dentro de
uma determinada lógica. O resgate das idéias de Gilberto Freyre por setores
da esquerda portuguesa264 e a retirada da carga negativa que o uso do luso-
tropicalismo pelo salazarismo deu à sua obra, bem como a valorização da
utopia quinto-imperiana de Agostinho da Silva representaram a retomada de
velhos mitos presentes no imaginário político português, atribuindo-lhe novos
sentidos. Ao exaltarem as especificidades do povo português, bem como a
originalidade de sua cultura e de seu modo de estar no mundo, os dois autores
atendem as aspirações do nacionalismo português, ao mesmo tempo em que
lhe dão um caráter cosmopolita, transcendendo-o para além dos limites de
Portugal-Território.
264 Em um livro publicado em Portugal, o pensador brasileiro Vamireh Chacon afirma que Gilberto Freyre é “muito mais que ideólogo do colonialismo salazarista, como se tornou moda os politicamente corretos acusarem-no após o 25 de abril” e a seguir faz o seguinte comentário “Mas o próprio Mário Soares, em entrevista ao Jornal de Brasília, de 30 de janeiro de 2000, durante uma visita ao Brasil, declarou, com palavras merecedoras de transcrição na íntegra, ter encontrado casualmente Gilberto Freyre em Lisboa e haver-lhe pessoalmente declarado: Li seus livros. Agora, não lhe perdôo. Desculpe que lhe diga, o senhor ter apoiado Salazar. Um homem da sua categoria! Em seguida Mário Soares reconhece: Agora, passados os anos e lendo novamente Gilberto Freyre, abstraindo Salazar e as guerras coloniais, aquilo que ele disse é verdadeiro. Aquilo que ele disse sobre luso-tropicalismo é verdadeiro, é uma cultura própria e temos que desenvolvê-la no futuro”. In: CHACON, Vamireh. O Futuro Político da Lusofonia, Lisboa, Verbo, 2002, p.49.
183
No entanto, se esta visão ganhou força em Portugal não se pode
dizer que o mesmo tenha acontecido nos demais países de língua portuguesa.
No Brasil, o discurso da lusofonia e a idéia da articulação do mundo de língua
portuguesa chegaram a angariar simpatias entre setores nacionalistas –
inclusive, para muitos deles Gilberto Freyre, com sua visão essencialista e a
sua idéia da existência de uma espécie de anima brasilis, também é uma
referência teórica importante -, que viam (e vêem) na formação da CPLP um
aspecto fundamental da nossa política externa, dentro da perspectiva de uma
política estratégica de segurança no Atlântico Sul, área natural de projeção
geopolítica brasileira. Além disto, o fortalecimento da CPLP poderia dar mais
substância ao pleito brasileiro por um assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU. Porém, como foi discutido no Capítulo I, esta visão está
longe de ser majoritária entre os formuladores da política externa brasileira,
embora tenha ganhado bastante espaço nos últimos anos.
No caso dos países africanos e do Timor-Leste, a questão fica um
pouco mais complicada, devido à multiplicidade de fatores que devem ser
levados em consideração. Um deles, talvez o principal, seja a identificação
existente entre a lusofonia e o lusotropicalismo de Gilberto Freyre265, o que
para países em que as feridas do colonialismo ainda são bastante recentes
representa um grande problema266. Esta questão parece ter sido identificada
265 Este problema aparece com bastante intensidade em Angola, sem sombra de dúvidas, o mais importante, sob o ponto de vista econômico e estratégico, entre os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. 266 Cabe ressaltar que, em determinados momentos, em algumas das colônias portuguesas as idéias de Gilberto Freyre tiveram uma ótima recepção e encontraram muitos adeptos entre as elites crioulas letradas. Um dos exemplos mais consistentes é o de Cabo Verde, onde, entre os anos 40 e 60 do século XX, intelectuais como Baltasar Lopes, Félix Monteiro, Gabriel Ramos e José Lopes receberam influências significativas das idéias do sociólogo brasileiro. No entanto, é bastante interessante notar que as conclusões tiradas por Freyre após sua visita ao arquipélago, que foram publicadas em “Aventura e Rotina”, acabaram afastando estes intelectuais do pensamento freyriano. Isto ocorre porque as impressões de Freyre retratadas no livro desconstroem a imagem que estes intelectuais tinham de seu país e que
184
pelo Presidente de Angola, José Eduardo dos Santos, durante a Cimeira
fundadora da CPLP, em 1996. Apesar do tom otimista da sua fala que
reproduziu, diplomaticamente, o discurso comum da lusofonia, quando
afirmava seu desejo de que a Comunidade seja “um espaço importante de
cooperação e concertação político-diplomática, cultural e econômico-social
entre os nossos países, que estão ligados por uma história comum e por
afinidades e laços afetivos de toda a índole”, o Chefe-de-Estado angolano
deixou transparecer a existência de críticas de sociedade de seu país em
relação àquela organização que estava sendo constituída e ao seu discurso
legitimador:
Apesar de não ter havido oportunidade de se
realizar uma mais ampla auscultação do sentir
e querer de todos os angolanos e, apesar de
algumas vozes críticas ou mesmo discordantes
se terem feito ouvir em diversas ocasiões, é
com plena consciência da dimensão e alcance
da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa que a República de Angola assume
sem reservas o compromisso de a integrar e
fazer viver.267
A isto deve ser somado o atendimento precário do pleito africano aos
dois principais atores da CPLP – Brasil e Portugal, para que invistam em
definia o seu modelo identitário. Este modelo baseava-se na idéia de que a cultura cabo-verdiana teria se livrado da sua ligação com a África Negra, constituindo-se assim em uma sociedade mestiça, que seria um exemplo paradigmático, assim como o Brasil, do “mundo que o português criou” . Quando Freyre escreve, em “Aventura e Rotina”, que era necessário estabilizar culturalmente uma gente que procurando ser européia, tinha repudiado as suas origens africanas e que se encontrava em situação precária de instabilidade cultural e não apenas econômica, o entusiasmo local em torno de suas idéias arrefeceu substancialmente. Sobre esta questão ver: FERNANDES, Gabriel. A diluição da África: Uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós) colonial. Florianópolis, Ed. da UFSC, 2002. 267 Discurso pronunciado por sua excelência José Eduardo dos Santos, Presidente da República de Angola, na cerimônia constitutiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – Lisboa, 17 de julho de 1996. In: www.cplp.org. Acesso em: 03/05/1999.
185
programas de desenvolvimento nos PALOP, bem como o fato de que, na
quase totalidade desses países e no Timor, o português é uma língua falada
por uma parcela minoritária de suas populações. Este conjunto de questões
contribuiu para que a adesão dos PALOP e do Timor-Leste ao projeto da
CPLP se desse sem grandes entusiasmos.
Portanto, levando em conta todos os questionamentos apresentados
ao longo deste trabalho, a percepção que temos é a de que o discurso da
lusofonia é essencialmente uma construção portuguesa e que por isto só
obteve uma efetiva ressonância dentro da sociedade lusa, não tendo
encontrado eco ou o encontrando somente de maneira parcial nos demais
países de língua portuguesa. Isto aconteceu porque a mitologia política sobre a
qual ela foi construída é essencialmente lusitana, não tendo tanto significado
para os demais. E esta questão acabou tendo um grande peso, tanto quanto
os aspectos políticos e econômicos, para que a CPLP ainda não tenha se
consolidado mais de dez anos após a sua criação oficial e quase duas
décadas depois dos primeiros movimentos que levaram à ela.
Traçando um paralelo com o que Benedict Anderson escreveu sobre
a comunidade nacional que ele define como uma “comunidade política
imaginada”, visto que nunca os seus membros conhecerão ou ouvirão falar de
todos os seus compatriotas, “embora na mente de cada um está viva a
imagem de sua comunhão”, 268 dentro da CPLP - o espaço concreto da
lusofonia - não se pode falar em uma identidade lusófona efetivamente
existente entre os povos que adotam a língua portuguesa como o seu idioma
oficial (ou como um dos seus idiomas oficiais). Na prática, o discurso lusófono
268 ANDERSON, Benedict. Nação e Consciência Nacional. São Paulo, Ática, 1989, p. 14.
186
nada mais tem sido do que uma projeção do “modo português de estar no
mundo”, que se, por um lado, satisfaz o nacionalismo luso, por outro, quase
não ressoa em sociedades como a brasileira e as africanas, essencialmente
multiculturais, onde a contribuição portuguesa é mais uma – e em alguns
casos, nem é a mais importante – entre as várias que contribuíram para a
formação das identidades culturais locais.
Assim, a idéia de uma identidade lusófona baseada na projeção de
uma matriz cultural, a lusa, ou - como mais comumente aparece no discurso -
na língua portuguesa e que serviria de alicerce para uma organização
internacional como a CPLP, tende a ser uma construção extremamente frágil.
Neste momento de transformações globais, um espaço político baseado
somente em uma (não muito sólida) identidade linguística não parece ter
condições de se sustentar269, pois como escreveu Hobsbawm, comentando as
transformações das “nações”, dos “Estados-nações” e dos “nacionalismos” no
final do século XX e no início do XXI, a história desse período verá “(...) grupos
primariamente étnico-linguísticos, antes retrocedendo, resistindo a, se
adaptando a, sendo absorvidos ou deslocados pela nova reestruturação
supranacional do planeta”.270 Por outro lado, a forte marca do nacionalismo
lusitano presente no discurso lusófono acaba sendo mais um empecilho para a
consolidação desse espaço comunitário, que pressupõe, por sua própria
natureza, a existência da igualdade plena entre seus membros ou que, como
na visão de Agostinho da Silva, deveria ser “um quinto império sem
269 È importante ressaltar que não estamos negando o importante papel desempenhado pela língua portuguesa nos países lusófonos, lembrando inclusive que, em muitos deles, como no Timor, a língua serviu em determinados momentos como símbolo de resistência, deixando de ser assim somente a “língua do colonizador”. Além disto, para essas sociedades pós-coloniais, a língua portuguesa tende a servir também, como já destacamos, como um importante fator de unidade nacional. Portanto, o que estamos procurando questionar sim é a supervalorização do elemento lingüístico dentro do discurso da lusofonia. 270 HOBSBAWM, Eric J. Nações e Nacionalismo desde 1780. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998, p. 214.
187
imperador”. A grande questão é que os nacionalistas portugueses tendem a
considerar um direito natural a ocupação da liderança da Comunidade por
Portugal, alegando justamente ser ele a matriz cultural de todos os demais
países lusófonos, além de ser o mais empenhado na difusão da língua
portuguesa pelo mundo, adotando isto, inclusive, como política de Estado.
Desta forma, apesar da rotatividade existente na secretaria-executiva da
organização entre os Estados-membros, as pretensões hegemônicas não-
assumidas de Portugal estão sempre a pairar sobre a Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa.
Portanto, entendemos que o discurso lusófono tem sido, até agora,
um discurso essencialmente português, pois foi construído fundamentalmente
a partir de elementos presentes no imaginário político da nação lusitana e não,
necessariamente, no dos demais povos de língua portuguesa. Neste sentido,
percebemos a lusofonia e a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
como sendo projetos políticos, acima de tudo, portugueses, tanto sob o ponto
de vista dos ditames político-estratégicos ou econômicos, quanto em seus
aspectos simbólicos. Por trabalhar com questões que marcam profundamente
a consciência e a imagem que a nação portuguesa tem de si mesma, como o
mito da vocação ecumênica dos portugueses e o da existência de uma relação
especial com os povos do ultramar271 é que se conseguiu construir um
consenso nacional em torno do projeto lusófono, apesar de vozes divergentes
ou pelo menos ponderadas como as de Alfredo Margarido e Eduardo
Lourenço. Neste sentido é que, de certa forma, o discurso da lusofonia acabou
sendo, no plano simbólico, uma reinvenção do velho sonho imperial, em que
271 Cf. ALEXANDRE, Valentim. Velho Brasil, Novas Áfricas. op. cit., p. 219-229.
188
numa espécie de evocação camoniana, o Atlântico das conquistas portuguesas
aparece como imagem recorrente. O mesmo Atlântico que povoa o imaginário
político nacional, junto com as Índias, os Brasis e as Áfricas; o Atlântico por
onde a língua portuguesa se espalhou; o Atlântico em que o sonho português
tornou-se universal; o Atlântico que se transforma no espaço de circulação por
onde se constrói a idéia de uma comunidade de povos de língua portuguesa
que ultrapassaria o espaço local e ganharia força planetária à medida que
diversos países fora da língua oficial portuguesa - mas que, mesmo de forma
fragmentada, receberam influências da cultura lusitana -, a ela se integrem,
constituindo-se assim no advento daquele “Quinto Império” sonhado por
Vieira, Pessoa e Agostinho e que está tão profundamente arraigado na
mitologia política lusitana.
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LÍNGUA – Vidas em Português. Diretor: Victor Lopes. Elenco: José Saramago,
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