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CORAÇÃO BÁRBARO Taken By The Viking Michelle Styles Um ataque viking... Um invasor honrado... Uma nova vida como amante dele! Eles haviam dito que vieram em paz, mas logo Lindisfarne estava em chamas. Annis de Birdoswald tentou fugir, porém não conseguiu escapar dos guerreiros do Norte. Haakon Haroldson, o viking sombrio e arrogante, sequestrou-a e a afastou de tudo o que ela amava. Agora, Annis precisa escolher entre continuar uma prisioneira ou viver uma vida de prazer ao lado desse poderoso invasor.

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CORAÇÃO BÁRBAROTaken By The Viking

Michelle Styles

Um ataque viking... Um invasor honrado... Uma nova vida como amante dele!

Eles haviam dito que vieram em paz, mas logo Lindisfarne estava em chamas. Annis de Birdoswald tentou fugir, porém não conseguiu escapar dos guerreiros do Norte. Haakon Haroldson, o viking sombrio e arrogante, sequestrou-a e a afastou de tudo o que ela amava. Agora, Annis precisa escolher entre continuar uma prisioneira ou viver uma vida de prazer ao lado desse poderoso invasor.

Digitalização: Simone R.Revisão: Paula Lima

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Hlq Históricos 153 - Coração bárbaro - Michelle Styles

Tradução Patrícia ChavesHARLEQUIN

2015

Querida leitora,Annis de Birdoswald estava desesperada. Obrigada a se casar com um homem

desprezível, ela buscava uma saída. Porém, seu destino mudou após uma invasão de guerreiros nórdicos à cidade a qual visitava. Capturada pelo implacável Haakon Haroldson, ela achou que viveria o resto de sua vida como prisioneira. Entretanto, o amor que sentia por este viking a libertaria.

Boa leitura!Equipe Editorial Harlequin Books

PUBLICADO MEDIANTE ACORDO COM HARLEQUIN BOOKS S.A.Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a

transmissão, no todo ou em parte.Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas

ou mortas é mera coincidência.

Título original: TAKEN BY THE VIKINGCopyright © 2007 by Michelle Styles

Originalmente publicado em 2007 por Mills & Boon Historical Romance

Projeto gráfico de capa:Núcleo i designers associados

Arte-final de capa:Isabelle Paiva

Editoração eletrônica:EDITORIARTE

Impressão:RR DONNELLEY

www.rrdonnelley.com.br

Distribuição para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil:Dinap Ltda. — Distribuidora Nacional de Publicações

Rua Dr. Kenkiti Shimomoto, n° 1678CEP 06045-390 — Osasco — SP

Editora HR Ltda.Rua Argentina, 171,4° andar

São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380Contato:

[email protected]

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Capítulo 1

8 de Junho de 793 — Lindisfarne, NortúmbriaAnnis apertou os lábios, tentando não mover a cabeça enquanto a criada trançava

seus cabelos. O que ela esperava, afinal? Que seu tio, o abade do Mosteiro de St. Cuthbert, lhe desse dinheiro para lutar contra seu padrasto? A única alternativa que ele havia sugerido fora a igreja. Ela poderia ter uma boa posição, contanto que levasse seu dote consigo.

— Milady, vai ser mais rápido se inclinar ligeiramente a cabeça para este lado.Annis estudou a parede da casa de hóspedes de St. Cuthbert, com um mural de

Maria ajoelhada ao pé da cruz, e procurou se concentrar.Fora um erro ter ido até ali. A conversa da noite anterior ainda ecoava em seus

ouvidos. Seu tio se recusara a ouvir seus argumentos. Por que ela imaginara que seria de outro modo, Annis não sabia.

Ela iria embora do mosteiro e da ilha no dia seguinte, na maré baixa, quando era possível atravessar a ponte, decidiu. Teria de voltar para casa em Birdoswald, às margens do rio Irthing, no oeste de Nortúmbria. E encarar o futuro sozinha.

— Está bom, milady?Sua nova criada, Mildreth, terminou de fazer a trança e estendeu-lhe um espelho

de mão. Annis olhou rapidamente para o seu reflexo. Os cabelos castanhos que antes lhe caíam ao lado do rosto tinham se transformado em duas graciosas tranças. Seu cabelo era o que ela considerava seu traço mais belo e atraente, embora um pouco rebelde demais para o seu gosto. Mildreth sabia o que estava fazendo, Annis reconhecia isso, mas relutava em confiar nela.

Mildreth era uma marionete de seu padrasto. Só podia ser. Ele havia ordenado que todas as criadas, mesmo as mais antigas, fossem substituídas depois que seu marido morrera, e ela retornara às terras da família. Não havia desculpa para ela continuar morando com a família de Selwyn. Ela não tinha filhos, e sua cunhada nunca gostara dela. Então Annis voltara, esperando uma recepção mais calorosa, e descobrira que o padrasto havia assumido firmemente o controle das terras da família.

— Em breve começarão os preparativos para seu noivado.— Se for a vontade de Deus... — Annis colocou o espelhinho sobre a penteadeira e

forçou-se a manter uma expressão suave. Não tinha intenção de se casar com o filho de seu padrasto, o abominável Eadgar, com suas mãos sempre úmidas e modos desagradáveis. Tampouco pretendia ir para um convento, como o tio havia sugerido. Tinha de haver algum outro jeito.

— Terá de se casar um dia, milady. Eadgar é um rapaz... — Mildreth calou-se e sua expressão ficou consternada. — Senhora, não posso mentir. Gosto da senhora. Eadgar é um terror. Todas as criadas morrem de medo dele. Não querem ficar sozinhas com ele nem por um minuto. Por favor, não comente com ninguém.

Annis segurou a mão de Mildreth. Um leve rubor coloriu as faces da moça, fazendo-a parecer quase bonita. Annis sentiu uma alegria como há muito não sentia. Sua viagem até Lindisfarne não tinha sido em vão. Ela havia encontrado uma aliada.

— Temos a mesma opinião sobre Eadgar.— Disseram que a senhora era bondosa, milady, e é mesmo.— De qualquer forma, é cedo demais para falar de casamento. — Annis ajeitou a

gola do vestido. — Meu marido ainda nem esfriou na sepultura, coitado. Haverá muito

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tempo para pensar em casamento depois que terminar o período de luto. Vim para cá para pedir conselhos ao meu tio, e agora que já os tenho vou voltar para casa.

— Como achar melhor, milady.Um súbito e frenético toque de sinos ressoou no aposento, abafando qualquer

pensamento ou voz. Cada fibra do corpo de Annis ficou tensa.— Vamos ser atacadas! — Mildreth retorceu as mãos. — Assassinadas, em nossas

camas!Annis forçou-se a soltar o ar. Apesar da crescente estridência dos sinos, ela

precisava manter-se calma. Poderia ser outra coisa. Entrar em pânico não ajudaria em nada.

— Atacadas? Mildreth, não deixe que seus medos tomem conta de você. Quem se atreveria a atacar este lugar? — Annis forçou-se a falar em um tom de voz normal. Ela não tinha certeza se estava tentando convencer a criada ou a si mesma. — Os sinos podem estar tocando por outro motivo. Algum peregrino pode ter calculado mal a maré e estar preso na ponte.

Mildreth deu um sorriso trêmulo e encolheu-se quando os sinos repicaram mais alto. Annis rezou em silêncio para que aquilo não significasse nada grave. Quem se arriscaria à condenação eterna atacando um dos locais mais sagrados e eruditos da Nortúmbria, se não de toda a Europa?

A proteção que aquele lugar oferecia era o motivo pelo qual sua família tinha preferido confiar a maior parte de sua riqueza aos monges em vez de guardá-la em cofres em suas propriedades. A grande maioria dos proprietários de terras na Nortúmbria tinha esse hábito, muito eficaz para garantir a segurança de suas posses.

Então, tão repentinamente quanto haviam começado a tocar, os sinos pararam, dando lugar a um silêncio ensurdecedor.

— Não há de ser nada. — A voz de Annis soou alta, ecoando nas paredes de madeira. — Pode ser algum navio que encalhou e um dos monges entrou em pânico. Meu tio disse que alguns dos monges noviços se agitam com qualquer coisa. Seja o que for, já deve estar resolvido.

— Deus queira, milady.Midreth assentiu com a cabeça, mas seu semblante estava nitidamente apreensivo.

Annis estendeu a mão e pousou-a sobre a de Mildreth.— Vai ficar tudo bem. — Ela tranquilizou a moça. — Estamos em um lugar de

Deus. Ele irá nos proteger.— Tem havido alguns sinais — disse Mildreth, e em seguida baixou a voz para um

sussurro. — Um dos monges disse que viu dragões voando em frente à lua. E fogueiras estranhas à noite. E redemoinhos de vento no céu. Punições para os nossos pecados! Ontem mesmo eles estavam falando disso, no refeitório.

— Eles contam essas histórias para assustar vocês, tenho certeza. — Annis deu uma risada tensa. — Por São Miguel Arcanjo, depois da colheita ninguém mais vai se lembrar de nada disso. É assim que as coisas são.

Annis levantou-se e atravessou rapidamente o quarto até a pequena janela que tinha vista para o mar. No dia anterior, ela admirara a visão da areia amarela brilhante e do mar cintilante, pontilhado por apenas algumas esparsas embarcações de pescadores. Agora, o panorama era bem diferente.

— Talvez eu tenha me enganado, Mildreth. Parece que o mosteiro tem visitas, sim. — Ela se esforçou para afastar o pânico crescente na voz. Não devia tirar conclusões precipitadas. Era muito impaciente, sua imaginação era fértil demais (bem, pelo menos fora o que seu tio dissera várias vezes nos últimos dias).

O sol da manhã lançava raios dourados na água, mas o mar já não estava vazio. Três navios com serpentes esculpidas na proa, escudos redondos nas laterais e velas

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listradas de vermelho e branco alinhavam-se na baía rasa. Um deles já estava com a proa sobre a faixa de areia, os outros dois vinham logo atrás.

Conforme Annis observava, um grupo de guerreiros desembarcou do primeiro navio e avançou com certa dificuldade através das ondas em direção à praia. Estavam vestidos com calças e cota de malha, e carregavam seus elmos e escudos redondos. Havia uma aura de selvageria ao redor deles. Eram homens rudes, pagãos, corsários.

Annis debruçou-se no parapeito para ver melhor. O líder tinha cabelos escuros que chegavam à altura dos ombros e barba crescida de vários dias. Um desenho intrincado de uma serpente lutando com uma fera cobria seu escudo. Os homens que o seguiam eram variações entre um homem com aspecto de brutamontes de cabelo esvoaçante e barba, que vinha logo atrás dele, até uma versão mais esguia e loira do líder. Ele olhou para a janela, e seu olhar surpreendentemente azul fixou-se no de Annis por um segundo. Um ligeiro sorriso curvou-lhe os lábios conforme ele se virava para cumprimentar o grupo que saía do mosteiro ao encontro deles. Annis levou uma mão ao pescoço.

Será que ele a tinha visto?Seu tio estava à frente do grupo, com sua batina branca, mais alto que os outros,

porém não tão alto quanto o líder viking, com um ar de autoconfiança e comando. Annis deu um meio-sorriso. Preocupara-se sem motivo. As habilidades diplomáticas de seu tio eram conhecidas por toda a Nortúmbria e Mércia. Ela tinha certeza de que ele lidaria bem com aqueles guerreiros.

Seu tio estendeu a mão para ser beijada, conforme a tradição. O viking ignorou o gesto e inclinou a cabeça antes de entregar uma pequena tábua a ele.

Annis viu o tio empalidecer de repente e percebeu que a mão dele tremia.O que aqueles bárbaros queriam?

Haakon Haroldson olhou com expressão de incredulidade para o rosto de traços finos e bonitos do abade. Ele havia mostrado a tábua ao homem mais velho, e ela era bastante específica. Ele deixara isso claro, fazendo questão de lê-la depois que o escriba de Oeric, o Escocês, escrevera a solicitação. E ele mesmo havia colocado o selo de Oeric na tábua.

O acordo dizia respeito ao recolhimento de moedas de ouro que, legalmente, pertenciam aos vikings. Se eles pudessem negociar ou providenciar alguma medida de proteção enquanto estivessem ali, tanto melhor. Mas ninguém os enganaria.

Aquela viagem marítima de verão estava se mostrando consideravelmente lucrativa. O novo projeto arquitetônico dos navios era eficaz, as embarcações deslizavam melhor na superfície do oceano, aumentando a velocidade. Os escoceses almejavam os casacos de pele grossa e as contas de âmbar dos vikings.

Só faltava aquela transação para concluir. Depois eles navegariam de volta para casa, com toda a dignidade.

— Viemos buscar o dinheiro que Oeric, o Escocês, nos deve.O abade ergueu uma sobrancelha.— Estou surpreso de ver um nórdico falando latim.— Somos mercadores. Aprendemos os idiomas conforme é necessário. — O olhar

de Haakon estava fixo em algum ponto acima do ombro do abade. Não havia necessidade de contar a história de sua vida, não ainda. Talvez o fizesse mais tarde, quando as negociações estivessem completas e eles estivessem desfrutando uma caneca de hidromel.

Ele ergueu as mãos, com as palmas viradas para cima. — Viemos em paz. Só queremos o que nos foi prometido.

— Como posso saber se esta tábua é genuína?— Não teríamos nos deslocado até aqui se não fosse.

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— Ouvi falar de ataques de gente como vocês a fazendas indefesas.— Trata-se de outros mercadores. Não nós. Viemos negociar, não guerrear.Haakon estava feliz por seu meio-irmão, Thrand, e principalmente o chefe de seus

remadores, Bjorn, não entenderem latim. Já fora bastante difícil convencer Bjorn de que eles deveriam tentar uma negociação pacífica. Havia grande potencial de boas tratativas com a Nortúmbria, mas havia perigos também. O povo da Nortúmbria era conhecido por suas habilidades de luta.

Haakon olhou para o guerreiro corpulento de pé ao seu lado. Muitos julgavam que o lugar ideal para Bjorn era dentro do navio, mas ele o queria ali, para o caso de haver algum problema.

Bjorn enrijeceu e suas narinas dilataram. O que seu velho amigo estaria pressentindo? Haveria valquírias na brisa amena que soprava? Haakon descartou o pensamento fantasioso.

— Viemos em paz — repetiu, mantendo o tom de voz firme.Os monges podiam parecer frágeis, mas ele tinha certeza de que o mosteiro estava

bem guardado. Não poderia ser de outra maneira. Ele ouvira as histórias sobre as fabulosas riquezas e ensinamentos que havia ali. Certamente, ele e seus homens não eram os primeiros a se sentir tentados, mas a província de Viken não contava com um número de homens suficiente para um ataque sólido. Eles haviam perdido vários para as tempestades e outros tinham adoecido no início da viagem. Precisariam de cada um dos que ali estavam para levar os navios de volta em segurança. Seria arriscado demais. Aquela questão teria de ser resolvida com diplomacia.

— Se vocês vieram em paz, então vamos conversar a respeito. — O abade inclinou a cabeça de cabelos grisalhos. — Sem dúvida, após pesar os méritos do caso, poderei avaliar melhor, não é verdade?

— Há poucos méritos a pesar.— Mas receio que tenham sido enviados para cá em uma missão inútil. Em

princípio, não tenho conhecimento da existência de qualquer dinheiro de Oeric, o Escocês, aqui na abadia.

— Isso não é problema meu. O escocês me mostrou a tábua com a sua caligrafia, com o seu selo, afirmando que sim.

Um monge com a pele do rosto esburacada, que estava ao lado do abade, puxou-o pela batina e sussurrou algo em seu ouvido. Haakon viu uma ruga aparecer na testa do abade.

— E você tem essa tábua? — O abade estendeu a mão e em seguida deixou-a pender ao lado do corpo. — Imaginei que não. Mesmo assim, vou averiguar. Vai levar algum tempo. Você e seus homens são bem-vindos para entrar e descansar. E para abastecer seus navios com água e mantimentos.

— Eu tenho o brasão dele. — Haakon comprimiu os lábios e cruzou os braços.— Oeric me garantiu que seria suficiente. Não seremos ludibriados e privados do ouro que é nosso por direito.

— Seu infame, invasor! — gritou o monge de rosto marcado. — Meu tio Oeric nunca ludibriou ninguém! Você não pode profanar este lugar sagrado com suas mentiras estúpidas!

— Isso mesmo, primo! — gritou um outro. — Esses são os invasores que destruíram a fazenda de meu pai no ano passado.

— Nós nunca... — começou Haakon.Mas, antes que ele pudesse terminar a frase, o segundo monge avançou na

direção dele empunhando uma adaga, alcançando Erik e atingindo-o no estômago antes que ele pudesse reagir. Uma mancha vermelha alastrou-se por seu gibão de couro.

— Venham! Venham! — gritou Haakon. — Fomos atacados!

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Annis debruçou-se o máximo que pôde na janela e tentou escutar a conversa entre seu tio e o recém-chegado, um homem bonito e interessante.

Seu tio, com o queixo erguido, virou-se e começou a se afastar. Alguém gritou algo bruscamente, em uma língua estrangeira. Seu tio parou. Um dos monges deu um passo à frente e golpeou um dos vikings no estômago.

Como seu tio iria punir aquela insubordinação? Os guardas de seu tio rodearam o monge para protegê-lo quando os vikings desembainharam as espadas.

Annis sentiu como se estivesse olhando através de uma parede de água. O tempo começou a passar devagar, e cada movimento parecia durar uma eternidade. Os guardas entraram em ação, mas foram imediatamente dominados.

O viking de aparência selvagem ergueu um machado, gritando em uma língua primitiva. O homem de cabelos escuros estendeu os braços para detê-lo, mas o outro deu de ombros e avançou na direção de seu tio, a lâmina do machado reluzindo ao sol da manhã.

Seu tio não se moveu. Havia um ar de indagação em seu rosto. Ele ergueu as mãos, em um gesto que Annis não sabia se era de prece ou de súplica.

O brutamonte não deu atenção. Com um golpe único e brutal, desceu o machado sobre o abade.

Annis sufocou um grito e virou o rosto para não ver a cena, mas a imagem do machado cortando o ar e do sangue jorrando, manchando de vermelho a areia dourada conforme a cabeça de seu tio rolava, estava cunhada em seu cérebro. Ela não se atreveu a olhar para fora enquanto o alarido na praia crescia, em um misto de gritos e súplicas por clemência e um cântico primitivo ritmado e tenebroso.

Os sinos recomeçaram a tocar estridentemente.Annis sentiu o corpo entorpecido. Ela cobriu a boca com a mão, e seu estômago se

contraiu dolorosamente. Sua mente recusava-se a aceitar que aquilo estivesse acontecendo. Aquele tipo de coisa não acontecia ali, no mosteiro.

Seu impulso era cair de joelhos no chão e chorar, mas, acima de tudo, ela queria acordar. Ela mordeu o lábio com força, sentiu o gosto de sangue e então soube que tudo aquilo era real, horrível, terrivelmente real. Mas seus pés continuavam dormentes. Annis sabia que, se olhasse para trás, veria a areia tingida de vermelho.

— O que foi, milady? O que aconteceu? A senhora está pálida. Diga-me, o que foi que a senhora viu? — A voz de Mildreth interrompeu a paralisia de Annis.

— Precisamos nos esconder. Depressa.— Annis retorceu as mãos. — Aconteceu uma coisa horrível na praia. Estamos correndo perigo.

Ela recolheu tudo o que estava sobre a penteadeira e guardou em uma sacola, enquanto se esforçava para pensar com clareza. Ao longo de anos, houvera rumores sobre aquele tipo de gente, que atacava fazendas e exigia contribuições das cidades próximas à costa, mas ela nunca imaginara que pudessem atacar o mosteiro. As histórias que seu tio lhe contara eram sobre roubo, estupro e daí para pior. Ele próprio achava que eram exageradas, mas agora Annis via que, ao contrário, eram até amenas. Aquela horda de selvagens era capaz de qualquer coisa. Elas precisavam sair dali, e rápido, antes que fossem descobertas.

— Esconder? — disse Mildreth com voz estridente, os olhos se arregalando no rosto fino. — Mas onde vamos nos esconder? Na capela, talvez.? São

Cuteberto poderá nos proteger, de sua tumba.— Não. — A imagem do machado descendo sobre a cabeça do tio passou

rapidamente pela mente de Annis. — Eles não respeitaram um representante de Deus, por que respeitariam este lugar sagrado?

Mildreth fez o sinal da cruz e ajoelhou-se.— Estamos perdidas!— Não repita isso, nunca mais!

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Annis segurou o braço de Mildreth e tentou fazê-la se levantar, mas a moça estava irredutível. Permaneceu ajoelhada no chão e começou a rezar o terço. Annis passou a mão pelos olhos.

Não pretendia acovardar-se. Pretendia viver. Tinha de haver um meio de escapar.— Precisamos dar um jeito de chegar ao continente. Dê o alarme.As preces de Mildreth aumentaram de velocidade.Annis arriscou um olhar para a janela. A praia agora estava infestada de guerreiros,

empunhando espadas e machados, avançando cada vez mais, como se se multiplicassem. Um ruído horrendo encheu o ar conforme os selvagens começavam a bater suas armas contra os escudos.

Um estrondo alto soou quando o portão do pátio foi arrombado. Era só uma questão de tempo.

Annis pressionou as têmporas com a ponta dos dedos. Não podia deixar Mildreth para trás. Tinham de sair dali, logo. Não estava disposta a ficar parada esperando que alguém aparecesse para ajudá-las. Àquela altura muitos já deviam ter fugido, ou estavam ocupados demais enfrentando os vikings para se lembrar dela.

Não podiam mais ficar ali, na casa de hóspedes. Era uma questão de minutos até os bárbaros invadirem o mosteiro, à procura de ouro e prata. Eles não hesitariam em capturar prisioneiros. Annis sentiu o estômago se contrair ao lembrar-se das histórias que seu tio contara à mesa do jantar, dois dias antes. Na ocasião, pareceram-lhe histórias para assustar criancinhas. Agora ela via que não chegavam nem perto a descrever o verdadeiro terror que era a realidade.

Mildreth terminou de rezar o terço e fixou o olhar à frente, pálida e com os olhos vazios. Annis agachou-se e segurou as mãos frias da moça nas suas.

— Vamos para o chiqueiro. Não há nada lá que interesse a esses homens. Eles não irão lá. Eles querem dinheiro e ouro. Assim que conseguirem, sairemos de lá sãs e salvas. Incólumes. Está me ouvindo, Mildreth?

A criada fez um gesto quase imperceptível com a cabeça, assentindo. Annis enrolou os itens restantes em uma colcha: o espelho que pertencera à sua avó, o broche de sua tia, seu crucifixo de prata.

Ela se movia com rapidez e agilidade, tentando manter a calma e pensar com clareza. Elas desceriam a escada, sairiam pela porta dos fundos e correriam para o chiqueiro. De lá havia uma vista privilegiada da ponte; quando a maré baixasse, elas atravessariam.

— Vamos! Agora!Mildreth levantou-se, deu um passo trêmulo à frente e em seguida desabou no

chão, sem forças.— Deixe-me, senhora. — As lágrimas corriam pelo rosto da moça.— Nem pensar. Vamos sair daqui juntas, você e eu.— Que Deus, Nossa Senhora e todos os santos a abençoem! — Mildreth agarrou a

mão de Annis.Outro estrondo reverberou no ar: o ruído de um machado atingindo a porta. Em

seguida, o som de gritos e de passos correndo, enquanto alguém tentava impedir a invasão. Mildreth choramingou, e Annis rezou em silêncio. Gotas de suor começaram a escorrer por seu rosto e pescoço.

— Bloqueie a porta! — Annis começou a empurrar a cama, enquanto Mildreth não se movia do lugar, encolhida. — Ajude-me, Mildreth, se tem amor à sua vida!

Em algum lugar dentro do mosteiro, uma escada rangeu.Ele não havia planejado nada daquilo. Tinham ido em paz, com o intuito de

negociar, não de guerrear.Haakon observou a batalha, ou melhor, o tumulto à sua volta. As chamas já

devoravam várias das construções do mosteiro. Ele conhecia a reputação de Lindisfarne

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como centro de aprendizado, mas não tinha como evitar aquela destruição. Imaginara que o abade tivesse mais controle sobre os monges. Ele perdera um guerreiro valente e um bom amigo, sem motivo algum, quando aquele monge enlouquecido atacara. Será que o abade esperava que ele não reagisse, diante de uma agressão tão despropositada?

— Bjorn estava certo, Haakon — avisou Thrand da soleira de uma porta. Ele estava desgrenhado, mas não estava ferido, e arrastava um baú transbordando de cálices de ouro e crucifixos cravejados de pedras preciosas. — A igreja geme sob o peso de tanto ouro e joias. Nunca vi coisa igual. Foi muito sensato da sua parte decidir que viéssemos aqui para resgatar o dinheiro que o Escocês nos devia.

— Queime as instalações. Este vai ser um ataque igual a qualquer outro, Thrand — retrucou Haakon. — Pegue tudo o que puder. Vamos comemorar quando voltarmos para casa.

Ele se recusava a sentir pena e simpatia por aqueles homens. Não haveria lugar para eles em Valhalla, ou para onde quer que Deus enviasse os guerreiros. Aqueles não eram guerreiros. Ele conhecia meninos que manejavam uma espada com mais habilidade. Aquele mosteiro era surpreendentemente desprotegido.

— Cuidado, atrás de você!Vários guardas corpulentos avançavam na direção dele, mas Thrand os alcançou

primeiro, e as espadas tilintaram. Haakon derrubou um dos homens, e Thrand cuidou dos demais.

— Sua ferocidade é digna de um berserk, Thrand, de um legítimo guerreiro nórdico.O rapaz ergueu a espada.— Matar não me dá prazer algum, Haakon. Você sabe disso. Nesse aspecto, sou

diferente de Bjorn.— Você viu Bjorn?— Não o vejo desde que a confusão começou. Que idiotice daqueles homens

terem nos atacado esperando que não fôssemos nos defender.— Eu teria preferido que Bjorn esperasse minhas ordens.— Ele é um homem perigoso — disse Thrand, dando de ombros. — Tanto para o

inimigo quanto para o amigo, quando o sangue ferve.— Ele jamais atacaria um de nós. Ele jurou que não.— Você diz isso, mas houve rumores dois anos atrás de que Bjorn quebrou o

juramento. Não estou afirmando que é verdade, mas que houve rumores, houve. — Thrand empurrou o baú com o pé. — Você é o encarregado desta expedição, e não pretendo desafiar sua autoridade. Bjorn é sua responsabilidade.

Haakon esfregou a parte de trás do pescoço, reconhecendo em silêncio a veracidade das palavras de Thrand. Bjorn era um homem desequilibrado, um perigo para todos, inclusive para ele. Ele precisava encontrar Bjorn e tentar acalmá-lo do surto de fúria que o acometera. Eles haviam jurado lealdade um ao outro, mas Haakon sabia do que Bjorn era capaz quando perdia a cabeça e a insanidade tomava conta dele.

— Bjorn! — chamou ele. — Bjorn, ganhamos o dia! É hora de dividirmos os lucros.Annis encolheu-se atrás da pilha formada pela cama, o colchão, dois baús e uma

mesa. Suas tranças tinham se soltado enquanto ela empurrava a mobília para bloquear a porta, e seus cabelos agora caíam soltos pelas costas. Ela mal ousava respirar, enquanto esperava, apavorada.

Até então o único ruído que ela ouvira dentro da casa fora o ranger das escadas. Seria um alarme falso, ou algo mais sinistro?

Será que o invasor tinha ido embora?Rolos de fumaça rodopiavam no ar, dificultando a respiração e fazendo arder os

olhos de Annis. Seus músculos estavam doloridos pelo esforço de empurrar os móveis pesados. Mildreth não a ajudara, apenas ficara ali parada, imóvel, com o olhar perdido.

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Annis rezou novamente, mas receava que Deus não a estivesse escutando. Deus havia lhes virado as costas, deixando-os à própria sorte, como em uma espécie de aviso aos demais. Pelo menos seria isso que seu tio diria, se tivesse sobrevivido.

Mas como a morte de seu tio e dos outros monges poderia agradar a Deus? Seu tio era um homem reverenciado por todos, sua devoção era bem conhecida, e sua sabedoria era respeitada. Agora ele estava morto, e seu sangue escorria na areia dourada.

Annis olhou para a faca em suas mãos.— Eu vou proteger você — falou baixinho para Mildreth, que não deu sinal de tê-la

escutado. — Eu prometo.A porta do quarto balançou e chocalhou. Annis ficou paralisada, a respiração presa

na garganta. Ela imaginou se o invasor desistiria e procuraria um alvo mais fácil.Mas então a porta se espatifou com um estrondo nauseante, como se a cama e os

outros objetos fossem um monte de gravetos secos.Um homem enorme, corpulento, com aparência animalesca no pior sentido da

palavra, entrou no quarto. O machado nas mãos dele pingava sangue. Suas vestes estavam todas sujas de sangue. Era uma verdadeira fera com forma humana. Annis enregelou.

Aquele era o homem que havia matado seu tio.Por trás do elmo, os olhos dele tinham um brilho amarelado. Como uma fera

selvagem, ele exibiu os dentes e rosnou.Socorro... Annis encolheu-se ainda mais nas sombras, para se esconder.O selvagem vasculhou o quarto com os olhos. A folha da janela bateu, abrindo e

fechando. Os olhos dele se estreitaram, atentos.Senhor Deus, fazei com que ele pense que fugimos pela janela...O monstro soltou um grunhido e virou-se para sair. O coração de Annis deu um

pulo. Contra todas as probabilidades, elas se salvariam!Vá, vá embora! Suma daqui, ela pediu em pensamento.Então, um soluço abafado escapou dos lábios de Mildreth. A fera parou e virou-se

novamente, devagar, a respiração ruidosa. Dessa vez, ele viu onde Mildreth estava agachada.

Um sorriso maligno deformou a boca do monstro conforme ele erguia o machado.

— Bjorn, finalmente o encontrei. — Haakon entrou no cômodo estreito do andar de cima. Devia ter acontecido uma luta e tanto ali, a julgar pela mobília espalhada. — Não há nada aqui.

Quem quer que estivesse neste quarto já não está mais. faz tempo.Ele ficou paralisado. O guerreiro avançava lentamente na direção de uma mulher

acuada. No outro canto do quarto, outra mulher, com os olhos brilhantes, estava encolhida nas sombras. Ela cobriu a boca com a mão, os olhos suplicantes. O maxilar de Haakon enrijeceu. Não havia honra alguma — nem fazia sentido — em matar mulheres indefesas.

— Já temos tudo o que viemos buscar e um pouco mais. É hora de partir, Bjorn, antes que a maré mude. — Haakon manteve o tom de voz firme. Precisava fazer com que Bjorn saísse daquele transe de loucura que o havia dominado.

Não houve nenhuma reação por parte de Bjorn. Ele continuou avançando, devagar, determinado. Haakon queria que a mulher se afastasse enquanto ele tentava atrair a atenção de Bjorn. Mas ela estava tão aterrorizada que não conseguia se mover, encolhida no chão como um coelhinho assustado.

— Já temos o ouro, Bjorn Bjornson. Vamos embora.

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Bjorn virou a cabeça enorme para trás e fitou Haakon como se nunca o tivesse visto antes. O olhar dele fixou-se na espada de Haakon. Um brilho selvagem surgiu nos olhos de Bjorn.

Sangue e saliva escorriam da boca do viking conforme ele começava a avançar na direção de Haakon, sacudindo o machado.

Haakon ficou imóvel. Bjorn tinha de recuperar a sanidade. Não era possível que estivesse tão alucinado a ponto de não reconhecer o amigo. Eles haviam vivido muitas aventuras juntos. Haakon nunca o tinha visto tão fora de si.

— Bjorn, sou eu, Haakon, seu jarl. Seja fiel à sua palavra. Venha, vamos embora.Uma expressão estranha apareceu nos olhos de Bjorn. Ele examinou o machado

por um momento, como se estivesse atordoado. Haakon acenou com a cabeça e com a mão, encorajando-o a sair do quarto. Aparentemente ele conseguira.

Os olhos de Bjorn então se fixaram na espada de Haakon e cintilaram com um brilho primitivo. Ficou evidente que a loucura voltara a dominá-lo quando ele lambeu os beiços.

Bjorn ergueu o machado. Haakon desviou-se para a direita e levantou o escudo. Ele sentiu o golpe do machado reverberar ao longo de seu braço. Bjorn ergueu novamente o machado.

— Eu sou seu companheiro, Bjorn! — Haakon estendeu as mãos e falou com voz suave, como se falasse com uma criancinha. — Fizemos um juramento a Thor e Odin. Somos irmãos de sangue, membros do felag.

Mas o selvagem não deu nenhum sinal de compreender as palavras de Haakon. Parecia um predador enlouquecido pelo cheiro de sangue. Tudo o que predominava ali era seu instinto matador. Um urro pavoroso emanou das profundezas de seu ser.

Haakon tornou a erguer o escudo e ouviu-o rachar sob a força do machado de Bjorn. Annis olhava, estupefata, enquanto os dois guerreiros vikings se enfrentavam, a espada de um se chocando com o machado do outro. Aquilo não fazia sentido, mas pelo menos estava servindo para desviar a atenção do brutamonte para outro foco que não Mildreth e ela própria.

— Corra, Mildreth, corra, vá! — sussurrou ela para a criada. — Para o chiqueiro! Encontro você lá.

Dessa vez, Mildreth não precisou que a ordem fosse repetida. Ela praticamente voou para fora do quarto, passando por trás do outro guerreiro, involuntariamente passando-lhe uma rasteira quando os pés de ambos quase se engancharam. O viking se desequilibrou e caiu, e o escudo e a espada lhe escaparam das mãos, voando para longe. Ele estava indefeso, agora.

Annis sabia que deveria correr também, mas suas pernas recusavam-se a se mover. Era sua única chance de escapar, mas o homem que salvara a vida de Mildreth, e provavelmente a sua também, estava ali, encurralado, correndo um perigo mortal. Aquele ser bestial daria cabo dele em poucos segundos, e em seguida seria a vez dela.

O troglodita avançou na direção de onde o outro guerreiro estava caído no chão, respirando pesadamente. Então ele parou e o fitou.

Um sorriso espalhou-se lentamente por sua cara animalesca e ele passou a língua pelos lábios.

Annis esqueceu-se de respirar.A pele que cobria o peito do selvagem se abriu na base de seu pescoço quando ele

ergueu o machado para aplicar o golpe final.

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Capítulo 2

Annis saiu do canto onde estava, segurando a faca. Era sua única e derradeira chance.

Ela não tinha escolha, precisava agir.O selvagem virou-se ligeiramente ao sentir sua aproximação. A faca bem afiada

deslizou com uma facilidade surpreendente para dentro do pescoço dele, como se todo aquele corpanzil fosse apenas uma carcaça horrenda e ressecada. Um jato de sangue jorrou da boca do viking, e uma expressão de puro espanto fez os olhos dele se esbugalharem. Imediatamente uma reação de choque tomou conta de Annis, que começou a tremer, e seus dedos úmidos de suor escorregaram do cabo da faca.

Ela desabou sobre o corpo sólido do outro guerreiro, ainda caído no chão. No mesmo instante, sentiu os braços dele envolvê-la e puxar seu corpo para debaixo do dele. Protegendo-a. Um resmungo abafado soou em seu ouvido quando ela lutou para respirar.

Um estrondo ecoou no quarto quando o selvagem desabou no chão, por pouco não caindo em cima deles.

Em uma questão de segundos, Annis tomou consciência de várias coisas: do piso de pedra contra suas costas, do peso do corpo do guerreiro sobre o seu, da respiração de ambos se misturando. Ela viu a sombra escura da barba por fazer no rosto dele e o brilho dos olhos azuis. E por fim uma golfada de ar quando ele saiu de cima dela.

Uma das mãos dele, quente e forte, engolfou a de Annis, puxando-a e ajudando-a a se levantar. Os olhos azuis exprimiam apreensão. Annis ficou ali de pé, sentindo-se zonza, apoiando-se na mão do guerreiro enquanto olhava para o corpo do brutamonte estatelado sobre uma poça de sangue que se alastrava aos poucos pelo chão.

Ela conseguira!Dividida entre a vontade de rir e de chorar, ela virou o rosto para o peito do

guerreiro, coberto pela cota de malha, e apoiou-se ali, buscando forças. Ele a enlaçou pela cintura com o braço forte. A distância, Annis podia ouvir o rumor da batalha e do fogo, mas ali, encostado em seu rosto, ela ouvia os batimentos do coração dele. Aos poucos, a consciência do que havia feito começou a tomar forma.

Ela tinha matado um homem!O monstro estava morto, e fora por suas mãos que isso acontecera.Annis afastou-se bruscamente do guerreiro, que não a impediu. Ela deu alguns

passos cambaleantes e debruçou-se sobre uma caçamba de cerâmica, tentando recuperar o controle, enquanto seu corpo tremia incontrolavelmente.

O ar enfumaçado queimava seus olhos e garganta. Ela precisava sair logo dali, ir o quanto antes ao encontro de Mildreth e tentar atravessar a ponte, mas quando se levantou suas pernas recusaram-se a mover. Se desse mais um passo, cairia de joelhos no chão.

— Eu também fiquei enjoado na primeira vez. — Uma voz de timbre grave atravessou o quarto. Era um som reconfortante, e parecia envolver Annis como um lençol de linho macio.

Ela olhou para o viking por sobre o ombro. Ele tinha falado? Ou ela estava ouvindo coisas? Certamente, um homem como aquele não falaria latim. Guerreiros pagãos não falavam o idioma da igreja. Ela devia estar imaginando coisas. Seria esse o efeito de assassinar alguém? Ouvir vozes? Ela cobriu os ouvidos com as mãos e sacudiu a cabeça para clareá-la.

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O viking tirou o elmo, e seus cabelos escuros estavam grudados na testa. Ele era alto, bem constituído, com ombros largos. Ele passou a mão pela barba crescida.

Annis fitou-o, atônita. O homem que ela salvara era o líder dos guerreiros que ela vira pouco antes na praia, o mesmo que tinha discutido com seu tio, o responsável por aquilo tudo. A vontade dela era de enterrar o rosto nas mãos e chorar. Ela salvara o homem que destruíra seu tio. Se o tivesse reconhecido antes, teria fugido junto com Mildreth.

Annis olhou para as próprias mãos, imaginando o que ele iria fazer agora, o que ele seria capaz de fazer.

— Você salvou a minha vida — disse ele em latim, com um leve sotaque. Não desagradável, apenas diferente. — Eu, Haakon Haroldson, jarl de Viken, estou em dívida com você.

Annis pestanejou, aturdida. Ela não havia imaginado, o guerreiro falava mesmo latim, tão bem quanto um nobre da Nortúmbria.

— Ele está morto? — perguntou ela, olhando para a figura desengonçada e imóvel no chão.

— Creio que sim. — Uma sombra de tristeza anuviou o semblante do viking. Ele abaixou-se e virou o rosto do homem morto para cima, murmurou alguma coisa que Annis não entendeu e depois fechou os olhos opacos. — Bjorn era um guerreiro valente. Sentiremos falta dele. As comemorações em Valhalla serão festivas hoje à noite.

— Ele tentou matar você, e você lamenta a morte dele? — Annis olhou para o viking, incrédula. — Como isso é possível?

Haakon avaliou a mulher à sua frente. Os cabelos escuros caíam sobre as costas. Ela usava um vestido verde-escuro simples, sem adornos e sem joias, bem diferente de sua madrasta e das mulheres da corte de Viken. Tinha olhos verdes grandes, e ele podia perceber que ela estava trêmula. Era óbvio que aquela mulher nunca havia matado antes. Será que ela era real, ou era uma valquíria, uma das mulheres guerreiras que varriam os campos de batalhas em busca de guerreiros dignos de Valhalla?

— Ele era um grande guerreiro. Um berserk. — Haakon olhou para o machado de Bjorn.

Quantas vezes ele havia matado? Quantas vidas, por outro lado, ele salvara com os golpes precisos de seu machado?

Era inconcebível que aquilo tivesse acontecido com Bjorn, que ele tivesse perdido a vida quebrando seu juramento e deliberadamente atacando um membro do felag, seu próprio líder. Haakon balançou a cabeça. Não, Bjorn devia ter enlouquecido. Ele tinha propensão a isso, quando se enfurecia. Com certeza, ele não tivera consciência do que estava fazendo.

— Berserk?— Ele vivia para lutar. — Haakon tentou pensar nas palavras em latim para

descrever Bjorn, mas chegou à conclusão de que não havia nenhuma.— Era um grande guerreiro.Annis assentiu, mas sua expressão indicava que não estava totalmente

convencida.Haakon contemplou o homem caído no chão. Muitos de seus companheiros teriam

gana de matar aquela moça pelo que ela havia feito, exigir o sangue dela em troca de ter matado um guerreiro como Bjorn. Ele costumava seguir o código dos guerreiros, mas, naquele caso, a intervenção da moça salvara a sua vida. E essa era a maior dívida de todas.

— Você está sob minha proteção, valquíria. — Haakon esfregou a parte de trás do pescoço. — Conte-me o que aconteceu aqui. O que você fez para provocar Bjorn?

Annis balançou a cabeça e caminhou até a janela. Então ela virou-se, estendeu as mãos e fitou-o com os olhos arredondados.

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— Eu não fiz nada. Mas... eu salvei a sua vida.Uma emoção estranha tomou conta de Haakon. Ela achava que ia morrer. Ele não

era um covarde para matar uma mulher a sangue-frio.— É por isso que você está sob minha proteção. Ninguém lhe fará mal algum.—

Haakon inclinou a cabeça. — Bjorn era valioso e querido entre meu povo. Você precisa entender isso. Ninguém imaginou que ele pudesse ser morto, muito menos por uma mulher.

— Ele ia matar você, esse...esse bruto, depois que minha criada fez você cair, sem querer. Eu fiz o que faria por qualquer pessoa. — O tom da voz de Annis elevou-se um pouco. Ela pegou desajeitadamente algumas joias em meio a toda a bagunça e estendeu-as para o viking. — Deixe-me ir, por favor. Pegue isto e deixe-me sair daqui.

Haakon olhou incrédulo para a moça bonita e esguia. Ele afastou a mão dela com as joias. Será que ela não compreendia a situação? Não tinha noção do que estava acontecendo ali? Quando ele e seus homens terminassem, não sobraria uma única construção de pé. Eles não tinham ido até lá com intenção de lutar, mas não fugiam de um desafio. Na próxima vez, os habitantes daquela ilha não se mostrariam tão determinados a resistir às reivindicações legítimas dos vikings. E tampouco eles, vikings, tolerariam aquele abuso. Eles tinham ido negociar, e encontraram uma guerra.

O corpo inteiro da moça tremia, e a área ao redor dos lábios estava pálida. Ela o fazia lembrar um cavalo amarrado. Ele queria acalmá-la, fazê-la entender, para que ela pudesse continuar viva.

— Onde estão seus guerreiros?— Meus guerreiros?— Sim, os homens que tomam conta de você. Uma preciosidade como você não

ficaria desprotegida.— Todos os homens estão ocupados, combatendo os seus.Haakon gesticulou na direção da pequena janela.— O cenário lá fora é de fim do mundo. Você não iria querer estar lá no meio.— E eu tenho escolha? — Os olhos verdes brilharam desafiadores. — Não fui eu,

nem a minha gente, que começou essa luta. Eu vou sair daqui agora.Annis deu um passo à frente, mas Haakon estendeu o braço e segurou-a com

firmeza, impedindo-a de se mover. Ele podia ver uma veia pulsando na base de seu pescoço.

— Se eu deixar você sair, você vai ser morta. Tem outros como este meu amigo aqui. lá fora.

Annis puxou o braço bruscamente, libertando-se.— Vou correr o risco.— Acredite em mim. O abade foi eliminado, destruído com um único golpe do

machado deste homem.Annis reprimiu as palavras “meu tio”, que quase saíram de sua boca. Não era

conveniente que ele soubesse quem ela era.— Eu vi. Vi vocês na praia, você é o líder dos guerreiros. Ele foi até lá recepcionar

vocês. Você é o responsável por esta chacina.— Onde você estava? — Ele arqueou uma sobrancelha. — Não vi nenhuma

mulher na praia. Talvez seu latim não seja tão bom quanto você gostaria que fosse. Nós viemos em paz e fomos atacados. Como eu disse ao abade, só queríamos o ouro que é nosso por direito, que nos foi prometido. Foi um dos monges que atacou primeiro.

— Eu vi da janela. O abade era... um bom homem.— A morte dele foi lamentável. Como você matou o homem que o liquidou, talvez

considere que a vingança foi feita. — Haakon passou a mão pelo cabelo, despenteando-o ainda mais. — Viemos aqui buscar o dinheiro que nos é devido por nossas peles e âmbar, e para oferecer nossa proteção. Homens bons perderam a vida hoje, por nada.

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— Sim, é verdade. — Annis recusava-se a chorar na frente daquele viking que a salvara. Mais tarde ela choraria pelo tio e pelos outros que haviam morrido. Agora ela tinha de planejar uma maneira de escapar dali e alertar os lordes das propriedades vizinhas sobre o perigo de invasão.

O cheiro de fumaça ficou mais forte, e o piso começou a esquentar sob os pés de Annis. Ela ouviu o estalido do fogo.

— Precisamos sair deste lugar. Meus homens receberam ordem de incendiar todas as construções.

— Prefiro morrer a sair daqui com você.— Está mentindo. — Um sorriso sardônico curvou os lábios do viking.— Como é que é?! — Annis empinou o queixo. Como aquele viking selvagem se

atrevia a falar com ela daquele jeito insolente?— Você já demonstrou que tem um grande desejo de viver. Venha comigo e eu a

levarei para um lugar seguro.Annis engoliu em seco. Cometera um grande erro naquele dia. Deveria ter deixado

o viking à sua própria sorte, para que enfrentasse o selvagem da laia dele. Mas ele tinha razão. Era preciso sair dali. Sua única esperança era conseguir de algum modo escapar, quando estivesse do lado de fora. Teria de ficar atenta à primeira oportunidade e preparar-se para fugir e esconder-se. Engoliu em seco novamente, sentindo ódio daquele homem.

— Vou fazer como está dizendo, por enquanto.— Você vai fazer como estou dizendo se quiser viver. — O tom de voz dele

endureceu. — Vamos.Annis começou a recolher seus pertences. Pegou o espelhinho de mão, todo

rachado.— O que você está fazendo?— Pegando minhas coisas.— Você não vai precisar de nada disso. — Haakon inclinou-se, pegou a faca de

Annis e limpou-a antes de devolvê-la. — Só vai precisar disto.Annis olhou para ele, desconfiada. O que exatamente aquele homem pretendia?

Ele sabia que ela tinha usado aquela faca para matar. Poderia usá-la para escapar. Antes que ele pensasse melhor e mudasse de ideia, ela pegou a faca e enfiou-a no cinto.

O viking passou um braço por sua cintura.— Quer que eu carregue você, ou consegue andar?— Eu consigo andar.Ele desceu a escada na frente, segurando a espada e parando para verificar os

cantos. Quando saíram da casa de hóspedes, o céu estava escuro, o ar, cheio de fumaça. O cenário diante deles era a ideia que Annis fazia do inferno. Ela olhou com mal-estar para as várias pilhas de objetos saqueados: tapeçarias do solário de seu tio, crucifixos quebrados incrustados com joias, baús de ouro. Uma pilha de livros, manuscritos e pergaminhos queimava no centro do pátio. Um nó se formou em sua garganta e ela passou as costas da mão pelos olhos. Toda aquela riqueza de informações, conhecimento e aprendizado destruída. Ela queria correr e tirar as bíblias do fogo, mas Haakon segurou sua mão com firmeza. Não havia escapatória.

Acima de tudo, aquela cena mostrava a Annis a realidade de sua situação. Aquilo não era um pesadelo do qual ela acordaria para ver o rosto sorridente de sua aia. Tudo em Lindisfarne tinha sido deliberada e perversamente destruído. O mundo havia mudado. Irrevogavelmente.

Annis estranhou quando Haakon não a conduziu para o navio nem para nenhum grupo de seus homens. Em vez disso, ele a levou até um montículo, um pouco afastado do cenário de destruição.

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O ar ali estava mais claro, embora o sol brilhasse como uma bola vermelha através da névoa de fumaça. Um agrupamento de pedras proporcionava uma espécie de abrigo, ainda que rudimentar, e o som dos gritos e destruição era um zumbido distante.

No alto, uma gaivota sobrevoava em círculos, alheia ao caos e à confusão ali embaixo.

Os dedos do viking afrouxaram no pulso de Annis, libertando-a. Ela esfregou o pulso, sem entender direito por que ele a levara até ali. Ele circundou as pedras em silêncio e murmurou algo em tom de aprovação.

— Você vai ficar em segurança, aqui. Espere até que tenhamos partido, e então atravesse a ponte. Rápido. Sem olhar para trás. Volte para sua casa.

— Por que você está fazendo isto?— Uma vida por uma vida. — Ele segurou o queixo de Annis com os dedos

dobrados. — Nós nos despedimos aqui, valquíria.Annis piscou para conter as súbitas lágrimas. Ele a estava libertando. Ela pensara

que era uma refém, e ele a libertara. Ela sabia que tinha de se afastar, repudiar aquele gesto de carinho.

— Adeus, Haakon Haroldson, jarl de Viken — murmurou, com os lábios a uma curta distância dos dele.

— Podemos fazer melhor que isso.Sem aviso, ele inclinou a cabeça e cobriu a boca de Annis com a sua. Foi um breve

encontro de lábios, gentil porém firme. Annis cambaleou, e ele a envolveu com os braços, puxando-a para si. A natureza do beijo se modificou, cresceu, intensificou-se, tornou-se ardente como as chamas que engolfavam Lindisfarne.

Os joelhos de Annis fraquejaram, e ela se segurou à armadura de couro de Haakon, saboreando a sensação dos lábios dele sobre os seus. E então, no minuto seguinte, ele interrompeu o beijo e a afastou. Annis olhou para ele, atordoada, reparando no peito dele, arfante, como se ele tivesse corrido algumas milhas sem parar. Assim como ela, também. Tudo isso por causa de um beijo.

Ela tentou respirar normalmente e acalmar os batimentos do coração.— Se todas as valquírias fossem como você, eu ficaria contente em ir para

Valhalla.Haakon acenou com a cabeça e virou-se, sem esperar resposta. Não queria

hesitar. O que ele estava fazendo era o certo. Ele forçou-se a afastar-se da mulher. Era o mais acertado a fazer. Ela ficaria em segurança se não saísse dali. Ele e seus homens partiriam dentro de poucas horas. Ela então estaria livre para viver sua vida, assim como ele. Ele retribuíra a dívida. Estavam quites.

Annis tocou os lábios com a ponta dos dedos enquanto observava a figura alta e de ombros largos desaparecer na névoa de fumaça. Determinado a prosseguir em sua missão, sem dúvida.

Aquele viking precisava ser tão bonito? O beijo dele fora muito melhor do que todos os beijos que ela recebera de Selwyn em todo o tempo que ficaram juntos. Selwyn sempre tentara dominá-la, mas o beijo de Haakon fora gentilmente persuasivo. E ela sentira o efeito em seu próprio corpo.

Mas aquele homem era o inimigo, apesar de tê-la libertado e lhe salvado a vida. Annis lamentava que tivessem se conhecido naquelas circunstâncias. Seria melhor nunca ter tomado conhecimento da existência de um homem como aquele.

Ela sentou-se na relva áspera e abraçou os joelhos. Estava em segurança e em liberdade. Livre para voltar para casa e refazer sua vida. Depois daquele dia, ela ansiava pela segurança e conforto dentro das paredes de pedra de Birdoswald.

As ondas atingiram os navios de velas de listras vermelhas e brancas, sinalizando a mudança de maré. Os homens pareciam figuras pequeninas a distância conforme se moviam, carregando cestos e baús para os navios. Annis podia ouvir o eco de suas

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risadas, trazido pelo vento. Quanto tempo demoraria até que eles fossem embora e ela pudesse atravessar a ponte?

Um grito rasgou o ar.O cabelo na nuca de Annis se arrepiou. Ela correu até a beirada do monte de

pedras e espiou, com a mão no cabo da faca.Não havia ninguém por ali. Uma andorinha-do-mar que voava em círculos abriu o

bico e guinchou outra vez.Annis voltou a sentar-se, segurando a faca, os ouvidos atentos. Mas não havia

ninguém. O tempo inteiro ela pensava na promessa que havia feito a Mildreth. Esperava que a criada estivesse a salvo no chiqueiro e que esperasse por ela.

Annis prometera que iria ao encontro dela, e esperava que ela ficasse lá até ela chegar. Ela sabia que deveria esperar até que os vikings partissem, mas a promessa a atormentava. Se fosse até o chiqueiro agora, ninguém a veria; e ela e Mildreth ficariam juntas.

Annis protegeu os olhos com a mão e olhou na direção dos navios novamente. Os preparativos para a partida continuavam. A maioria dos vikings estava ali; o chiqueiro ficava atrás das cozinhas. Não havia nada ali que lhes interessasse. Não havia ouro, nem joias, nem livros. Tudo que havia era estrume.

O estômago dela se contraiu. Ela precisava ir; tinha esse dever para com Mildreth.As palavras de Haakon ecoaram em sua mente. Ela estava em segurança ali. Nada

lhe aconteceria se permanecesse ali.Mas e se ele mudasse de ideia? Será que ela podia confiar em um guerreiro

pagão?A realidade era que ela não estava em segurança enquanto ele soubesse onde

encontrá-la. Precisava sair dali!Primeiro, ela cumpriria sua promessa e encontraria Mildreth. Nunca em sua vida

deixara de cumprir o que prometia, e não era agora que iria fazer isso. Iria somente até o chiqueiro, não além disso. Mildreth tinha de estar lá. Aqueles selvagens nórdicos estavam muito mais interessados em pilhar o tesouro de um dos mais ricos mosteiros da Cristandade do que em capturar porcos assustados. As duas ficariam seguras lá, e poderiam esperar pela hora de partir sem medo de serem descobertas.

Annis estremeceu ao pensar em quantas famílias da Nortúmbria e de Mércia estavam arruinadas por causa daquela invasão. Quantas haviam acreditado que seus tesouros estariam seguros sob a guarda dos monges, pois quem se arriscaria à maldição eterna?

O céu estava escuro, espesso com a fumaça, e mais parecia meia-noite do que meio-dia. Annis respirou fundo e correu colina abaixo, de volta para a cena de carnificina. A Igreja de St. Cuthbert emitia os reflexos alaranjados do fogo. Enquanto Annis olhava, uma enorme viga de madeira caiu na nave central, lançando uma chuva de faíscas para o céu.

Ela tropeçou e caiu de joelhos em uma poça. Sua mão fechou-se ao redor de um pequeno crucifixo de prata que estava na poça rasa de lama. Ela o enfiou no cinto, ao lado da faca. Aquele crucifixo fora um presente de sua mãe; Mildreth devia tê-lo levado consigo e o deixado cair, durante a fuga. Quando voltasse para Birdoswald, ela contaria a história à sua mãe, e elas ririam juntas, concordando que de fato havia sido a providência divina que permitira a ela encontrar o crucifixo.

Annis coçou o nariz, sentindo a ardência da fumaça. Seus olhos lacrimejavam. Não era o momento de pensar no que iria fazer depois que voltasse para o continente. Antes disso, tinha de dar um jeito de sobreviver.

Ela olhou em volta, esperando, mas não havia sinal do viking, e ninguém parecia estar prestando atenção nela. Na verdade, não havia ninguém ali por perto.

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Annis ajeitou o vestido em um gesto instintivo, pois o tecido de lã verde estava todo sujo e arruinado. Mas uma dama era sempre uma dama, e não perdia a classe.

Estava na hora. Ela precisava se apressar, ou viraria prisioneira.Annis mergulhou nas sombras e começou a correr junto a um muro de pedra. A

fumaça estava mais espessa, e até as pedras irradiavam calor.Milagrosamente, ninguém a deteve nem a questionou, e logo ela estava correndo

para as construções anexas do mosteiro. A cerca tinha sido derrubada, e os porcos haviam desaparecido, deixando um rastro de terra pisoteada.

— Mildreth? — chamou ela baixinho. — Sou eu, Annis. Eu disse que viria.Não houve resposta. O silêncio e quietude a envolveram, tão diferente da balbúrdia

no pátio.Annis concentrou-se, esforçando-se para ouvir algum ruído. Mildreth tinha de estar

ali. Tinha de ter conseguido escapar. Deus teria permitido que ela conseguisse; Ele as livrara do monstrengo viking.

Foi então que ela se deu conta. O telhado do chiqueiro estava em chamas. Se Mildreth tivesse conseguido chegar até ali, com certeza havia encontrado algum outro refúgio. Mas onde? Tinha de haver algum outro lugar ali por perto. Mas ela não podia se arriscar e sair procurando, decidiu Annis, contrafeita. Tinha de confiar que Mildreth daria um jeito de sair dali e que as duas se encontrariam no continente.

Ela começou a virar-se, mas algo atraiu sua atenção pelo canto do olho, um pedaço de tecido acastanhado no canto do chiqueiro. Annis levou a mão à boca para suprimir um grito e tentou se equilibrar para não cair.

Mildreth. O corpo de Mildreth, esmagado sob uma viga!Annis correu até ela. Pousou a mão no pescoço de Mildreth, mas a pele já estava

fria, e os olhos imóveis estavam fixos no vazio. Todo o ar desapareceu dos pulmões de Annis. Ela cruzou as mãos sobre o peito e começou a balançar para a frente e para trás, tentando negar para si mesma a cena à sua frente.

— Nãããooo! — O lamento saiu das profundezas da alma de Annis. Ela perdeu a noção do tempo e não saberia dizer quantos minutos haviam se passado, quando recobrou a razão e compreendeu que precisava sair dali. O fogo tomara conta de tudo, as labaredas estalavam e flamejavam à sua volta. Mas não podia deixar Mildreth assim.

Annis fechou os olhos da moça e rezou uma prece. Não tinha como saber se Mildreth tinha alguma noção disso, mas pareceu-lhe que a expressão dela se tornara mais serena. Deu-lhe um beijo na testa e levantou-se, limpando as mãos no vestido.

Mais tarde, depois que tudo aquilo tivesse terminado, ela voltaria e providenciaria para que Mildreth tivesse um enterro digno. Também procuraria os familiares da jovem e explicaria a eles o que acontecera.

Os lábios de Annis se retorceram diante de tanta injustiça. Mas precisava safar-se, e para isso tinha de atravessar a ponte em segurança. Voltaria ao abrigo de pedras, de onde poderia ver quando os navios partissem.

Ela cobriu a boca e o nariz com a manga larga do vestido quando a fumaça começou a soprar novamente e o calor do fogo atingiu seu rosto.

Na semiescuridão, Annis foi andando aos tropeços, tentando manter-se escondida. Foi primeiro em uma direção, percebeu que estava perdida e começou a ir na direção contrária, conforme a fumaça ofuscava sua visão.

Ela trombou com uma superfície sólida, cambaleou e começou a correr. Uma mão agarrou seu braço.

O homem disse alguma coisa em seu próprio idioma.— Vocês já conseguiram o que vieram buscar. Não há mais nada aqui para vocês

— respondeu Annis, forçando-se a falar com voz firme. — Vá embora!

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O homem relaxou um pouco os dedos em seu braço, e Annis arriscou um olhar para cima. Ele parecia ser mais jovem que Haakon, mas era parecido com ele e fitava-a com uma expressão zombeteira.

Ela puxou o braço com força e aprumou-se, empinando o queixo.— Vá embora. Já! — Ela apontou na direção de onde tinha vindo e rezou em

silêncio.O homem começou a se afastar, com uma expressão perplexa no rosto.Annis respirou aliviada, esperando que ele se afastasse mais para que ela pudesse

correr para o seu esconderijo. Mas de repente ele virou-se e agarrou-a pelos ombros. Os lábios dele se curvaram em um sorriso repugnante conforme o rosto dele se aproximava cada vez mais.

Capítulo 3

— Haakon Haroldson!A súplica soou alta e desesperada, enquanto Annis tentava se libertar do viking.

Haakon avisara que aquele tipo de coisa poderia acontecer, mas ela ignorara a advertência. Deveria ter dado mais atenção. Estava furiosa com seu atacante e mais furiosa ainda consigo mesma. Acreditara que estava tomando a atitude certa e se enganara. Mas era tarde demais para arrependimentos.

O guerreiro agarrou os cabelos de Annis e torceu-os ao redor da mão, aprisionando-a e machucando-a. A lâmina de uma espada brilhou em sua outra mão. Por um segundo, o coração dela parou de bater. Ela ficou paralisada.

Aquilo era um pesadelo. Pior, pois ela estava acordada. Tivera uma chance de escapar e a jogara fora, por nada. O pensamento deixava um gosto amargo em sua boca.

Annis sentiu o corpo começar a ceder. A visão ficou turva, e gotículas de suor frio umedeceram sua nuca. Não podia desmaiar. Não sobrevivera àquilo tudo para agora simplesmente morrer pelas mãos daquele homem.

Ela deu um forte pontapé com a ponta da bota na canela do viking, ouviu-o praguejar e em seguida ele soltou seu cabelo. Ela desvencilhou os fios restantes com os dedos, e o guerreiro ergueu a mão. Annis abaixou-se, rezou baixinho e preparou-se para sair correndo.

De repente, o jovem guerreiro foi puxado para trás e Haakon apareceu, com o semblante transtornado por uma expressão tenebrosa.

— Ele machucou você? — quis saber, segurando gentilmente o braço de Annis.— Não, não. Ele não me machucou. — Annis meneou a cabeça, mas logo em

seguida começou a tremer incontrolavelmente. Ela cruzou os braços ao redor da cintura, abraçando a si mesma, mas o tremor só aumentava.

Os olhos de Haakon pareciam duas adagas, e ele estava usando o elmo novamente. Não era mais o homem que a salvara, mas voltara a ser o guerreiro que ela vira chegar à praia.

Annis engoliu em seco e forçou seus membros a pararem de tremer, sentindo uma onda de exaustão tomar conta. Queria deitar ali mesmo, no chão, e nunca mais levantar.

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Aquele pesadelo tinha de ter um fim. Ela precisava acordar, não aguentava mais. Nada daquilo deveria estar acontecendo. Ela tinha planejado tão metodicamente sua vida, e agora não restara mais nada. Nada.

Outra onda de cansaço percorreu o corpo de Annis, deixando em seu rastro um entorpecimento gelado. Mais tarde ela pensaria sobre todo o horror que havia acontecido ali, mas agora tudo o que ela queria era desaparecer. Suas pálpebras ficaram mais pesadas que chumbo e começaram a fechar. Ela deixou-se cair no chão sujo e apoiou o queixo nos joelhos dobrados, encostada às pernas de Haakon. De uma maneira ou de outra, aquele homem havia se preocupado com ela antes, mas ela não se importava com mais nada.

Haakon resistiu ao impulso de sacudir aquela mulher e forçá-la a se levantar. Ele a tinha levado para um lugar seguro, e pedido para que não saísse de lá. Ela só precisaria ter esperado que eles partissem e então poderia ter voltado para sua família, com apenas a lembrança de um grande susto. Mas ela o ignorara e voltara para o mosteiro. Fora pela sorte de Odin que ele havia se deparado com ela e Thrand engalfinhados antes que algo pior acontecesse.

Com toda a certeza, aquela moça compreendera o perigo que estava correndo. Seus homens tinham pouca consideração pelas mulheres. Eram mais empenhados em capturar os homens. As mulheres eram simplesmente usadas e descartadas.

— Esta moça está sob minha proteção, Thrand — disse Haakon, movendo as pernas para que Annis ficasse mais confortável. — E eu não gostaria nem um pouco de mandar você para Valhalla antes da hora.

— Sob sua proteção? — O irmão de Haakon deu de ombros e esfregou o queixo. — Eu a encontrei perambulando por aqui, sozinha. Você deveria vigiar melhor suas mulheres.

— Ivar disse que você estava com problemas. — Haakon apoiou as mãos no quadril, deixou o comentário passar e fingiu ignorar o sarcasmo do meio-irmão. — Ele achou que você talvez precisasse da ajuda de alguém mais forte.

— Nada que eu não pudesse contornar. Um monge estava resistindo à captura. — Thrand abaixou-se e pegou sua espada. — Na próxima vez, fique de olho em seus prisioneiros. Tem muitos por aí com sede de sangue.

— Quantos nós perdemos? Na praia eu sei, mas aqui no mosteiro? — Haakon passou a mão pelos cabelos. Em uma batalha como aquela, era de se esperar que um número considerável de homens fossem para Valhalla. Sem dúvida, a pior coisa que ele teria de fazer seria dar a notícia às esposas, noivas e famílias, quando voltassem para Viken.

— Alguns feridos, talvez uma meia dúzia com ferimentos graves. — Thrand franziu a testa. — Bjorn está sumido, mas você sabe como ele se comporta quando a loucura toma conta. Você é o único que ele respeita. Ele vai aparecer antes que o ouro seja todo embarcado, sem dúvida carregando algum tesouro e com o machado pingando sangue. Por todos os deuses, a invasão foi um sucesso.

— Bjorn está morto. — Haakon deixou os braços penderem ao lado do corpo, em um gesto de desafio para que o irmão o questionasse.

— Morto?! Como? Por um destes fracotes?! Um garoto nosso com uma espada de madeira luta melhor do que qualquer um aqui. — Os olhos de Thrand se arregalaram. — Bjorn não era páreo para nenhum homem aqui! E você esqueceu o que disse a vidente? Que nenhum homem conseguiria matá-lo?

— Eu me esqueci da profecia quando ele me atacou. A loucura foi tanta que ele não me reconheceu. Nós nos enfrentamos na casa de hóspedes, e eu não estava disposto a ir para Valhalla, nem mesmo por ele.

Thrand deixou escapar um assobio baixo.— E pensar que você insistiu para que ele viesse. Ele pertence a um clã poderoso.

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Haakon baixou os olhos para Annis. A cabeça dela estava inclinada para o lado, e a testa, franzida, como se ela tentasse acompanhar o diálogo. Os cabelos estavam revoltos, e o vestido, todo manchado. Mas ele se recusava a contar a verdade a Thrand. Ele fizera um juramento. Muitos ali exigiriam a vida daquela moça como punição por ter matado um guerreiro tão valioso. Contudo, Haakon devia a ela a sua vida. E garantiria a segurança da moça, quisesse ela ou não.

— Deixe que me desafiem. Eu tenho minha espada. — Haakon levou a mão ao cinto.

Thrand ergueu as mãos.— Sua valentia e suas façanhas são bem conhecidas, e existem lendas sobre o

poder da sua espada, que só irão se intensificar agora que você liquidou Bjorn. Embora o preço a pagar deva ser altíssimo.

Haakon assimilou devagar as palavras do irmão, enquanto estudava a moça sentada aos seus pés. O que Thrand diria se soubesse a verdade? Ele ofereceria a mulher para aplacar a revolta dos familiares de Bjorn?

— Eu estava preocupado demais tentando salvar minha própria pele para pensar na quantia que vou dever à família de Bjorn. Ou no que os amigos dele irão fazer comigo. Duvido que ele tenha pensado, por um segundo sequer, no que ficaria devendo a você e à nossa mãe se tivesse me matado.

— Eu cobraria um valor alto por você, meu irmão. Você fez muito por nossa família. — Thrand deu de ombros. — Da minha parte, estou contente que você tenha matado Bjorn. Se a família dele não aceitar a compensação que você oferecer, eles ainda podem apelar para Thorkell. Ele bem que poderia fazer alguma coisa pela realeza além de receber uma parte dos nossos bens.

As palavras foram proferidas em um tom descontraído, mas Haakon sentiu uma ligeira inquietação. Uma sensação que ele atribuiu ao cansaço. Ele confiava no meio-irmão.

— Você está certo, Thrand. Eu nunca esqueço minhas obrigações.— E a mulher? Você ainda não disse o que vai fazer com ela. Não vai faltar quem

queira disputá-la com você, principalmente se ela for vista sozinha de novo. Sorte sua ter sido eu que a encontrei.

Haakon olhou para Annis com a testa franzida. Ela não tinha se movido desde que ele tirara Thrand de perto dela.

Ele imaginara que ela estava sã e salva atrás das pedras, escondida de todos. Mas Thrand a encontrara, ouvira-a falar em latim. Thrand não era tolo, chegaria à mesma conclusão que ele chegara: que aquela mulher era da nobreza e que potencialmente valia uma alta quantia em dinheiro. Ela seria visada por todos os homens.

Haakon retorceu os lábios. Uma mulher sozinha ficaria à mercê de perigos incalculáveis. Ele não faria isso nem com o pior de seus inimigos. E ele fizera um juramento de proteger aquela mulher. Ela teria de ficar diretamente sob sua guarda, e, quando eles voltassem para Viken, ele pediria aos seus contatos na corte de Carlos Magno e no Sacro Império Romano-Germânico para enviar uma mensagem de resgate à família dela.

— Isso sou eu que decido. Ela me pertence agora.— Peço desculpas mais uma vez, Haakon. — Thrand curvou-se em uma mesura.

— Eu não sabia a quem ela pertencia.— Bem, agora você já sabe. E, pelos nossos laços fraternos, é bom que você não

se esqueça. Não cobice aquilo que é meu.— Nunca. Não me responsabilize pela ambição de minha mãe. — Thrand

empertigou-se e afastou-se na direção da praia.Haakon esperou que ele se distanciasse para voltar a atenção à moça, que não se

movera durante todo o tempo. Ele curvou-se e tirou a faca do cinto dela.

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— Isto é meu, creio eu.Annis levantou-se de repente, com os olhos brilhando de raiva. Ela estendeu a mão

para recuperar a faca, mas Haakon recuou e calmamente enfiou-a em seu próprio cinto.— Que direito você tem de fazer isso? Devolva-me a faca!— Eu lhe disse que você ficaria em segurança atrás das pedras. Mas você preferiu

me desobedecer.— Eu precisava encontrar minha aia...— Ela afastou os fios castanhos que lhe

caíam sobre os olhos e estendeu as mãos em um gesto de súplica. — Lembra-se dela, a moça que fez você tropeçar sem querer.

— E você a encontrou? — indagou Haakon com voz suave. — Onde ela está? Ou ela foi capturada?

— Ela está morta. — Uma expressão de profunda dor anuviou o rosto de Annis.— O telhado do chiqueiro desabou em cima dela.

— Eu sinto muito.— Eu tinha dito a ela que fosse para lá e me esperasse. Achei que ela estaria

segura lá. E no fim. — Annis balançou a cabeça, desconsolada. — Eu sei que não deveria ter saído dali onde você me deixou, mas eu precisava ir ao encontro dela, conforme prometi. — Ela escondeu o rosto nas mãos. — Você consegue entender isso? Vai me deixar ir embora, como da outra vez?

Haakon resistiu ao impulso de abraçá-la.— Você é minha prisioneira agora. Lindisfarne não é mais um lugar seguro. Nem

para você, nem para ninguém.Annis não se moveu, ficou apenas ali parada, olhando para ele, com expressão

sombria. Apesar do calor, ela tremia levemente. Os lábios estavam azulados, mas ela manteve-se firme, ereta, sem se encolher como uma bola dessa vez.

Haakon desamarrou sua capa e colocou-a sobre os ombros dela, fechando o broche no pescoço.

A capa era incrivelmente pesada. A vontade de Annis era arrancá-la e sair correndo, mas o recente confronto com o outro viking a deixara mais cautelosa. A capa ainda retinha o calor do corpo de Haakon, que se espalhou pelo dela, fazendo-a relembrar o beijo que haviam trocado. Ao sentir o cheiro dele impregnado na capa, Annis sentiu uma intimidade que nunca sentira antes. Seu marido jamais teria um gesto assim, de lhe oferecer sua capa.

Ela levou as mãos ao fecho, tentando abri-lo. Queria devolver a capa; não tinha o direito de usá-la. Mas o alfinete espetou seu dedo, e ela o levou à boca, com uma súbita exclamação de dor.

— Pare com isso. — A voz de Haakon não dava margem a recusas.Mas o que ela era, afinal? Prisioneiros não usavam as capas de seus captores. Ela

tinha visto grupos de monges derrotados e cabisbaixos, amarrados uns aos outros. Ela, pelo menos, tinha as mãos livres. Não sofrera nenhuma humilhação. ainda.

Annis deixou os braços penderem ao lado do corpo.— Você tem uma expressão determinada em seu rosto, valquíria.— As chamas estão consumindo tudo. Eu sou prisioneira — disse ela, vendo

passar um grupo de guerreiros nórdicos carregando cálices, crucifixos e vários frascos de hidromel. — Minha vida. Meu mundo. Nada mais voltará a ser como antes.

— O mundo muda constantemente. — Haakon pousou as mãos nos ombros dela. — Mas pelo menos você está viva.

Você verá o sol nascer e se pôr muitas e muitas vezes, ainda.Annis sabia que deveria recuar, repudiar o toque daquele homem, mas seu corpo

recusava-se a se mover. Naquele mundo irreconhecível para ela, Haakon representava um porto seguro. O calor das mãos dele fluía por seu corpo, o rosto estava tão próximo do

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seu que, se ela levantasse só um pouco os lábios, eles se tocariam. Ela fechou os olhos, saboreando a sensação. Queria deitar o rosto no peito dele.

O que isso significava?, Annis perguntou a si mesma. Que ela era leviana? Sua cabeça latejou de dor, e ela forçou-se a abrir os olhos e dar um passo para trás. Tentou novamente e dessa vez conseguiu soltar o fecho da capa, que deslizou pelos seus ombros.

— Não estou com frio — disse, com o queixo erguido. — Você vai precisar dela mais do que eu.

— Deixe-a sobre os ombros. É um sinal para os outros membros do felag de que você me pertence. Você não será molestada nem perturbada, aqui ou no navio. Não pretendo resgatar você mais uma vez.

Um calafrio percorreu a espinha de Annis. Como assim, ela pertencia a ele? Por mais que quisesse evitar a palavra, fora exatamente o que ele dissera. Ela era uma prisioneira agora, escrava daquele homem. Por que tinha salvado a vida dele.? Se soubesse, teria fugido junto com Mildreth e o deixado lá para enfrentar a fera. Logo em seguida a esse pensamento, porém, um outro se sobrepôs: se tivesse ido junto com Mildreth, talvez tivesse encontrado o mesmo triste destino da pobre moça.

— Eu não compreendo direito as palavras que você usa — disse ela, para distrair a si mesma daqueles pensamentos sinistros. Se o induzisse a falar, talvez conseguisse encontrar um meio de escapar. — Felag... não sei o que significa isso.

— Vários vocábulos de sua língua também eram estranhos para mim quando comecei a fazer negociações. — Um ligeiro sorriso curvou os lábios dele.

— Você ainda não me disse seu nome. Ou terei de escolher um para você? Eu soube que você era uma nobre no instante em que você disse a primeira palavra, lá em cima no quarto. Que filha de servos falaria tão fluentemente o latim?

Annis baixou os olhos, sentindo a garganta apertar-se. Não queria perder seu nome.

— Annis — murmurou. — Annis de Birdoswald, na margem do rio Irthing. Meu pai era o conde de Birdoswald.

— Quando for seguro, informarei sua família de seu paradeiro, Annis de Birdoswald.

Annis cerrou os punhos com tanta força que sentiu dor. Ela sabia o que “informar sua família” significava. Haakon ia pedir um resgate para libertá-la.

— Quando você vai avisá-los? — Não havia nada que ela pudesse fazer a respeito. Era assim que as coisas eram, na guerra. Selwyn havia sido feito refém duas vezes, primeiro em uma caverna na Escócia e depois em Mércia. Já era esperado. Mas grande parte da fortuna de sua família estava naqueles baús que estavam sendo saqueados.

Sua família pagaria o resgate ou simplesmente veria a situação como a vontade de Deus? Seu padrasto poderia usar essa captura como o pretexto final de que precisava para tomar posse de Birdoswald. Por outro lado, era possível que ele ainda tivesse um resquício de honra e senso de dever.

— Na hora certa, e em uma posição segura. — O semblante de Haakon estava impassível, o olhar, severo.

Annis assentiu. Os invasores não ficariam ali. Eles eram muito poucos para enfrentar os homens da Nortúmbria. E não seriam só os da Nortúmbria, mas a Bretanha inteira, quando a notícia se espalhasse. Não, eles não ficariam. Retornariam para as terras nórdicas, e ela iria com eles, para esperar um resgate que talvez nunca fosse pago.

— O que é felag? — perguntou Annis, para desviar o pensamento do rumo indesejado que estava tomando.

— Felag é uma associação de mercadores. Fizemos um juramento de sangue antes de embarcar nesta viagem. Todos os bens arrecadados serão repartidos de acordo com a contribuição que cada homem fez no início da viagem.

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Cada homem receberia uma parte do tesouro saqueado de Lindisfarne. Annis comprimiu os lábios e reprimiu uma resposta ríspida.

— Assim que voltarmos para nossa terra natal, toda as contas serão acertadas e sua família será notificada.

— Contas? — Nós viemos negociar, âmbar, peles e pedra-sabão. Nossa temporada estava boa até encontrarmos o Escocês.— Haakon sorriu subitamente. — Agora está excelente. A Nortúmbria inteira vai saber o que aconteceu aqui, e não vão tentar nos ludibriar. Conquistamos o respeito deles.

— Não será tão fácil como você pensa. Vocês atacaram monges, homens de Deus. Lindisfarne era um centro de aprendizado. O povo da Nortúmbria tem boa memória.

Um breve brilho de inquietação perpassou pelo olhar de Haakon, mas foi só.— A sua religião não é a nossa. Nós louvamos os Aesir, com Odin e Thor.— A Europa inteira vai rechaçar vocês. Ninguém vai mais querer negociar com

vocês.— Eles vão sim, Annis — disse Haakon, com um sorriso de superioridade. — Eles

vão negociar conosco porque querem nossas mercadorias, nossas peles e âmbar. E na próxima vez eles serão mais honestos em suas tratativas com os escandinavos. É assim que as coisas são.

Annis cruzou os braços ao redor da cintura enquanto via em silêncio as últimas faíscas da capela voarem para o ar. Recusava-se a chorar. Detestava aqueles guerreiros pagãos. Se ao menos Haakon não tivesse lhe tirado a faca. Então ela a enfiaria nele. Com prazer.

Ela virou o rosto e examinou as manchas em seu vestido. Não, não era verdade. Ela não queria ver aquele viking morto, apesar de tudo. Ele salvara a sua vida, duas vezes.

Vagamente, Annis percebeu que Haakon continuava falando.— Fique com a capa e siga-me, se tem algum apreço pela vida.— Aonde você vai me levar? — Annis abominou o tremor na própria voz.— Você vai ficar com os outros prisioneiros, já que está tão determinada a

acompanhá-los.— Quem mais vocês pegaram? — Annis pensou nos frades bondosos e na

comunidade do mosteiro. A maior parte do tempo deles era dedicada a interpretar os evangelhos. Quanto tempo eles durariam nas mãos daqueles pagãos?

— Homens fortes, e os líderes da comunidade, se ainda estiverem vivos. Não sobraram muitos. Vou pedir o resgate ao seu papa, em Roma.

— Eu rogo a Deus que ele pague.— O vento está começando a mudar. Já temos o que viemos buscar. Preciso ir até

os navios, ver como estão as coisas. — Haakon começou a se afastar, mas logo parou e virou-se, com uma sobrancelha arqueada. — Se você preza a sua vida, fique com a capa e não teste a minha paciência. Alguns dos homens vão considerar que você está ocupando um espaço que seria melhor aproveitado por um baú de ouro. Você deveria me agradecer, Annis de Birdoswald. Você me pertence, agora. Existem destinos piores.

— Sim, eu sei.

— Thrand me contou que você encontrou uma mulher. — A voz do companheiro jarl de Haakon interrompeu a concentração dele.

— E.? — Haakon virou-se de onde estava contemplando os baús de moedas de ouro e prata. O maior problema era como transportar aquilo tudo para Viken a bordo doSerpente Dourada. Nunca, nem em seus sonhos mais fantasiosos, ele imaginara que

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uma invasão pudesse ser tão lucrativa. E nem era para ter sido uma invasão. O peso teria de ser cuidadosamente distribuído.

— Tínhamos um acordo, nada de mulheres nesta viagem. Elas não rendem dinheiro suficiente. A sua terá o mesmo destino das outras.

Haakon rangeu os dentes e empertigou-se, parecendo ficar ainda mais alto. Não devia explicações a ninguém.

— As circunstâncias mudaram.— Thrand disse que é uma criada. Ele a viu perto das cozinhas.— Meu meio-irmão diz muitas coisas, e algumas são verdade. Mas essa não.Por que Thrand não conseguia ficar de boca fechada? Ele não tinha nada que ir se

queixar para outro jarl. O sucesso daquela viagem, antes mesmo da invasão, significava que Thrand teria dinheiro suficiente para comprar uma propriedade. Finalmente a madrasta de Haakon poderia ir embora. Ela já ficara tempo demais no comando da fazenda que Haakon herdara do pai, exigindo favores e benefícios, sem fazer segredo de sua contrariedade pelo fato de o enteado, e não o filho, ser o primogênito.

— A mulher a quem Thrand está se referindo é filha de um lorde da Nortúmbria. Pense no que ela pode valer.

— Então você não pretende fazer dela sua meretriz?— Ainda não pensei a respeito — mentiu Haakon. Ele olhou na direção onde Annis

se encontrava, com ar de dignidade e desafio. A brisa leve soprou uma mecha de cabelo para sua boca, e ela a afastou com um gesto impaciente. Haakon sentiu o coração bater mais rápido ao lembrar-se do beijo e do modo como o corpo dela se colara ao seu, quase em uma entrega silenciosa. Ele possuiria aquela mulher, mas, quando isso acontecesse, queria que ela participasse ativamente. Não seria ali, no meio dos escombros, mas em algum lugar tranquilo, sem pressa, onde ele pudesse desfrutar as delícias daquele corpo tentador.

— A família vai pagar o resgate?— Eu creio que sim. Confie em mim, meu amigo. A moça vai conosco para Viken.A expressão tensa de Vikar relaxou, e ele descruzou os braços e sorriu. Inclinou-se

para a frente e deu um tapinha nas costas de Haakon.— Confiar em você? Eu navegaria com você para a toca da Serpente de Midgard

esperando voltar com um navio cheio de ouro.Haakon experimentou uma sensação de alívio. Com Vikar do seu lado, seriam

poucos os que se atreveriam a questionar abertamente sua decisão de manter Annis como refém, em vez de simplesmente possuí-la e depois abandoná-la. Ele não queria se desentender com seus companheiros jarls, mas também conhecia seus deveres. Annis merecia sua proteção.

Haakon começou a reposicionar o baú de moedas de ouro na parte central do navio. Gradualmente, ele tomou consciência de que Vikar ainda estava lá, observando-o com uma expressão levemente zombeteira.

Por que outro motivo seu amigo o teria procurado?— Diga-me, Haakon, é verdade a outra história que seu irmão está contando?

Você derrotou Bjorn em uma luta justa?— Bjorn está morto, e eu era o único guerreiro presente quando ele morreu.

Pagarei o devido preço à família dele. Mas ouça uma coisa e entenda, Vikar...— Ele ergueu o punho direito. — Eu não descumpro juramentos.Vikar assentiu, aparentemente satisfeito.— Thorkell não esperaria menos que isso.— Sempre cumpro o meu dever, Vikar.

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Annis apoiou a cabeça na amurada do navio. Ela e mais uma dezena de monges, era tudo o que ela vira até então. Seriam os únicos sobreviventes? Os únicos que haviam sobrado de toda a população de Lindisfarne? Annis não queria nem pensar nisso.

Deveria levantar-se e olhar uma última vez para Lindisfarne, mas suas pernas recusavam-se a se mover. Talvez fosse melhor assim. Ela tinha visto o pouco que sobrara das construções, terminando de queimar lentamente, quando ela e os outros prisioneiros foram levados para a praia. Um monge havia tentado escapar e fora devidamente punido. Depois disso, ninguém mais se atrevera a se mover.

De repente, um alarido soou no navio, cada vez mais alto.— Viken! Viken! Viken!— O que eles estão gritando? — perguntou um dos monges, em um sussurro

rouco.— Viken. É de lá que eles são — explicou Annis.— Os Vikings não são de lugar nenhum! — disse outro monge, o que tinha o rosto

marcado. — São piratas, corsários pagãos, isso é o que eles são! Saquearam um lugar sagrado. As almas deles vão sofrer a maldição eterna.

Annis reconheceu o monge que fazia parte do séquito de seu tio. O nome dele era Aelfric. Como ele sobrevivera quando todos os outros estavam mortos? Ele sacudiu um punho fechado no ar, contra o céu escuro, praguejando contra os invasores.

— Está nas mãos de Deus — disse um terceiro, e gemeu de dor.Annis foi até ele, ajoelhou-se e tentou erguer o rapaz.— Posso fazer alguma coisa para ajudá-lo?O monge segurou a mão dela.— Perdoe-os, eles não sabem o que fazem. Lembre-se sempre da Nortúmbria.Então ele fechou os olhos, e uma expressão de paz se espalhou pelo seu rosto.Annis encolheu-se quando os vikings começaram a subir a bordo, rindo e falando

alto. Pareciam estar entusiasmados com o resultado da invasão, e tudo em que ela conseguia pensar era nas inúmeras vidas que haviam sido ceifadas.

Ela reconheceu Haakon e seu irmão, ambos de costas, quando eles pegaram um remo perto dela. O navio começou a deslizar sobre a água, levando-a para longe da Nortúmbria, para longe de tudo que ela conhecia.

Uma lágrima solitária correu pelo rosto de Annis, e ela deixou-a cair, sem enxugá-la.

— Algum dia vou recuperar minha liberdade — jurou baixinho, cerrando as mãos em punhos. — De jeito nenhum serei escrava desse viking para sempre! De jeito nenhum!

Capítulo 4

— Finalmente de volta ao lar! — exclamou Thrand, quando o Serpente Dourada deslizou para a faixa de areia na praia. — Como eu senti falta daqui!

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— Eu agradeço por cada dia que passo aqui. — Haakon respirou fundo, sentindo a alegria de voltar a pisar em sua terra natal. Ele se espreguiçou, com uma sensação de satisfação.

— Mas você tem sorte de poder viver essas aventuras, conhecer novas terras, outras pessoas, conquistar tesouros.

— Mas eu nunca esqueço este fiorde e a casa no promontório. São a minha razão de viver. — Havia algo especial naquelas terras e no perfume dos pinheiros que o fazia sentir-se acolhido. Ali era seu lar, e ele conhecia cada centímetro daquele solo. Ao longo dos anos que havia passado na corte de Carlos Magno, ele fora até ali várias vezes, sempre tendo em mente que era um escandinavo, e não um súdito de Carlos Magno. — Se eu pudesse, ficaria aqui, cuidando da fazenda, mas as colheitas estão muito instáveis. Meu povo vem em primeiro lugar. Por isso tenho de sair para negociar.

— Viver aventuras seria uma descrição melhor.— Agora que você teve a experiência de uma viagem, Thrand, viu que nem sempre

a aventura é segura ou agradável.— Mas nós acumulamos uma bela quantidade de ouro e tesouros, e a viagem de

volta foi tranquila. — Thrand ergueu as mãos acima da cabeça. — Njord, o deus do mar, estava de bom humor.

— Sim, o mar estava calmo e os ventos, favoráveis. Foi excelente.Thrand ficou subitamente sério.— Mas agora teremos de aguentar minha mãe.— Ela esperava que eu morresse. — Haakon olhou para as paredes de madeira do

salão e para as construções anexas. — Não lamento desapontá-la, nem um pouco.— Ela amaldiçoou você, e nem gosto de pensar no que ela disse de mim quando

descobriu que, apesar de tudo, você permitiu que eu fosse junto. — Thrand tocou um baú com o bico da bota. — Acho que vou começar a descarregar. Você vai à cerimônia de boas-vindas sozinho. Afinal, você é o jarl da propriedade.

— Como quiser. Sua mãe terá de ser enfrentada, Thrand, mais cedo ou mais tarde.— Por mim, quanto mais tarde melhor. — Thrand sorriu e cruzou as mãos atrás da

cabeça. — Quando ela souber que eu tive êxito e voltei carregado de ouro. você sabe como ela é.

— Eu sei. — Haakon inclinou a cabeça na direção do salão nobre com seu telhado de duas águas. — E, se você quiser evitar Guthrun, é bom começar a descarregar esses baús. Aí vem a comitiva de boas-vindas.

— Melhor você do que eu. — Thrand deu um tapinha nas costas do irmão e afastou-se.

Os lábios de Haakon se curvaram em um sorriso amargo quando sua madrasta saiu do salão nobre, trazendo o tradicional chifre com hidromel. Não havia um único fio do cabelo loiro grisalho fora do lugar, e ela usava um vestido-avental sobre uma blusa de linho. Os grandes broches de ouro que seu pai dera a ela reluziam, prendendo as duas alças largas do vestido. Seus olhos se arregalaram levemente, e ela tremeu, derramando um pouco de hidromel, quando viu quem estava ali à sua frente.

Ela não esperara vê-lo novamente, Haakon concluiu, com uma súbita tomada de consciência. Ela tinha avistado apenas a vela vermelha e branca e não fazia ideia de quem estava no navio.

— Nós voltamos, Guthrun — disse ele, aceitando o hidromel e bebendo-o enquanto seus cães corriam, latindo, para recepcioná-lo. Balançando o rabo emplumado e com uma mancha branca ao redor de um olho, Floki vinha na frente, parecendo mais esperto que nunca, determinado a ser o primeiro a cumprimentar o dono. Haakon inclinou-se para afagar seu elkhound favorito, que respondeu deitando-se com as patas para cima.

— Eu imaginei que você voltaria, de alguma maneira. Os deuses sempre estiveram a seu favor, Haakon Haroldson. — Guthrun deu de ombros em um gesto exagerado. —

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Voltou antes do que eu esperava. As coisas não correram bem? Os mastros do navio quebraram? Eu avisei que a lua não estava favorável para viajar.

Haakon inspirou fundo para manter o controle. Não queria discutir na frente de seus homens.

— Estou feliz por voltar para minha terra escandinava e meu lar com a honra intacta e meu navio carregado de ouro.

— Você trouxe seu irmão intacto também? — perguntou ela, em um tom de voz enganosamente afável e os olhos semicerrados.

— Thrand sobreviveu e prosperou, como eu previa. — Haakon devolveu o chifre de hidromel à madrasta. Limpou a boca com as costas da mão, lembrando-se de como ela havia esbravejado e puxado os cabelos ao ser informada de que Thrand também iria.

— Ele me ajudou bastante, saiu-se muito bem, e um dia os bardos irão cantar em homenagem às suas proezas em combate.

Guthrun assentiu com a cabeça.— E os outros membros do felag? Também voltaram?— Nós perdemos Bjorn — disse Haakon, em tom calmo. Não havia necessidade de

recontar a história com detalhes. Logo ela ficaria sabendo, de qualquer modo.— A família dele vai ficar arrasada. — Os olhos claros tremularam com uma

emoção que Haakon não soube identificar. Tristeza? Medo? Mas foi tão fugaz que ele ficou em dúvida se teria sido apenas impressão.

— Bjorn era um guerreiro renomado. Como foi que ele morreu?— Ele teve um surto e não me reconheceu. Atacou-me e nós lutamos. — Haakon

olhou para onde Annis e os outros prisioneiros estavam desembarcando. — É impossível ater-se a um juramento quando um homem enlouquece. Ele ficou completamente fora de si.

— É uma pena que ele tenha tido um fim tão triste.Guthrun inclinou a cabeça, em uma personificação perfeita de uma dama de Viken,

mas Haakon sabia que ela disfarçava bem. Ela nunca perdoara o marido por ter tido um filho antes do dela. Haakon a teria mandado embora dois anos antes, quando o pai morrera, mas ela havia herdado parte da propriedade, e até aquele momento ele não conseguira a quantidade de ouro necessária para comprá-la.

— Você vai ter de pagar uma compensação. Espero que tenha condições de pagar. A colheita este ano foi mais fraca que no ano passado.

— A viagem rendeu ouro e prata suficientes.Guthrun esforçou-se para disfarçar, mas Haakon a conhecia bem. Sabia o que

motivava sua madrasta: luxo, dinheiro e o filho. Ela esfregou a ponta do indicador na do polegar.

— Quanto é a parte do meu filho? Ele é seu meio-irmão, Haakon Haroldson, tem direito a mais do que um simples membro do felag.

— Nós conseguimos muito mais do que esperávamos. Thrand terá condições de adquirir uma propriedade e vassalos.

— Vejo que eu estava certa em insistir que você levasse Thrand nessa expedição. — O sorriso dela se alargou quando ela acenou para o filho, que supervisionava o descarregamento do navio. — Sem dúvida alguma, ele contribuiu muito para o êxito dessa empreitada.

— Odin e Thor estavam conosco, providenciando ouro, prata e prisioneiros. — Haakon gesticulou na direção onde estavam Annis e o grupo de monges, sujos e salpicados de lama. No meio do grupo, Annis se mantinha ereta e com o queixo erguido, não mais curvada e amedrontada, mas sim com um olhar de desafio. Durante toda a viagem, ela não se queixara nem uma única vez, apenas observara tudo ao seu redor em silêncio. — Vai demorar alguns dias para descarregar tudo e dividir o produto do saque. Depois disso faremos nossas oferendas a Aesir e comemoraremos.

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— Aquela mulher está usando sua capa — observou Guthrun.— Sim, ela está sob minha proteção — explicou Haakon. — Ela é filha de um nobre

da Nortúmbria.Guthrun deixou escapar um murmúrio de irritação.— Espero que ela trabalhe. Não há lugar aqui na fazenda para pessoas ociosas e

indolentes, mesmo que sejam concubinas.— Ela não é minha concubina.Os lábios de Guthrun se estreitaram em uma linha fina, em um esboço de sorriso.— Obrigada. Até que você se case, vou continuar a tomar conta da casa como

sempre fiz.— Até que o resgate seja pago por todos os prisioneiros, eles irão trabalhar em

troca de abrigo e alimento — reforçou Haakon.— E você não teme o deus deles? — Guthrun inclinou a cabeça para o lado.—

Dizem que ele é muito poderoso.— Se o deus deles não quisesse que eles estivessem aqui, ele os teria protegido.

— Haakon virou-se para o grupo e falou com eles em latim: — O vosso deus julgou adequado entregá-los aos escandinavos. Louvem quem lhes aprouver. Não faz diferença para mim, nem me interessa. Vou pedir resgate ao vosso papa em Roma. Obedeçam à minha madrasta, Guthrun, e sirvam a ela como fariam comigo.

Os monges foram retirados de lá, deixando Annis sozinha. A brisa marinha soprava em seus cabelos, fazendo-os esvoaçar, e no vestido, grudando-o ao corpo dela. Ela encarou Haakon com ar de desafio.

— É intrigante que uma mulher tenha esse tipo de atitude — disse Guthrun. — Talvez ela seja sua concubina, sim. Nenhuma prisioneira irá ditar regras aqui em minha casa, por mais nobre que seja. Ela tem um ar petulante. Não quero que ela intimide minhas criadas. Como vou saber do que essa gente é capaz?

Haakon franziu a testa. Aquilo era um estratagema de Guthrun, ou ela de fato estava com medo? Ele sabia do que Annis era capaz. Lembrava-se da primeira visão que tivera dela, com os cabelos caindo pelas costas e a expressão determinada no rosto quando fora em seu socorro, sem temer pela própria vida.

— Ela não vai lhe fazer mal, Guthrun. Eu lhe dou a minha palavra. — Haakon virou-se para Annis. — Minha madrasta quer se garantir que você não fará mal nenhum a ela.

— Mal? — Annis estendeu as mãos e seus olhos se arredondaram. — Por que eu faria mal a ela? Para onde eu iria? Minha casa fica do outro lado do oceano. Eu não tenho armas.

— Você concorda em se comportar? Ou vai novamente fazer promessas doces que nada significam?

Haakon a fitou até que ela baixou os olhos, admitindo derrota.— Enquanto eu estiver aqui, vou aceitar suas regras. — A voz de Annis embargou

e ela engoliu em seco. — Que escolha eu tenho? Você é o dono e senhor aqui. Não vou lhe causar problemas, nem manchar minha honra de cidadã da Nortúmbria.

— Você está certa, não tem escolha.— Ele voltou-se para Guthrun, cujo sorriso tinha se tornado cada vez mais paralisado ao longo da conversa. — Você não terá problemas. Ela deu sua palavra de mulher da nobreza.

— Obrigada, Haakon. — Guthrun inclinou a cabeça. — Vou ver meu filho, agora. Ele precisa de mim e dos meus conselhos.

— Ele está descarregando o navio. Quando ele terminar, irá falar com você. Acomode Annis com as mulheres. Ela pode fazer algum serviço leve enquanto estiver aqui, esperando pelo resgate.

— Quando a moça estiver acomodada, espero poder ver meu filho.Haakon notou a ruga na testa de Annis e perguntou-se até que ponto ela entendia

o idioma escandinavo. O lábio inferior estava projetado para fora e tinha a cor de morango

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maduro. Ele imaginou que sabor teria naquele momento; se traria um travo levemente salgado da água do mar ou se seria tão doce como quando eles se beijaram.

Uma sensação indesejada percorreu seu corpo. Contrafeito, ele afastou os pensamentos. Não era o momento, e ele não tinha intenção de levar Annis para a cama. Isso complicaria a situação. Ele tinha uma regra: não levar suas amantes para dentro de sua casa. Ele se divertia quando estava na corte de Thorkell ou quando estava fora do país. Uma ou duas noites de paixão sempre haviam sido suficientes, mas depois disso a emoção da conquista fenecia.

Não podia deixar de imaginar como seria com Annis, mas recusava-se a quebrar a regra para descobrir.

— Guthrun lhe dará as orientações. — As palavras soaram mais ríspidas do que ele pretendia. — Obedeça, ou terá de se ver comigo.

— Em tudo? — Annis inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse surpresa.— Até eu decidir em contrário.Annis trincou os dentes enquanto seguia a madrasta de Haakon para dentro da

construção longa e baixa de madeira. Seria mais fácil se a tivessem colocado em um calabouço, se a tratassem como prisioneira em vez de escrava. Dessa forma ela poderia pensar em uma maneira de escapar. Mas em vez disso ela levaria uma vida doméstica naquele lugar, lembrando-se a cada dia que as chances de seu padrasto pagar o resgate eram mínimas.

A precariedade da casa e do salão nobre chocaram Annis. Em Birdoswald, eles viviam em construções de pedra, tão antigas que diziam que a legião romana as havia construído. A lareira ficava em um canto do cômodo, em vez de no centro, como ali. E eles tinham acomodações separadas, não áreas elevadas no perímetro do salão.

— Muito bem. — Guthrun estendeu o braço e esfregou o tecido de lã do vestido de Annis entre a ponta dos dedos.

— Você vai trabalhar aqui.Para surpresa de Annis, ela achou relativamente fácil entender o que Guthrun

falava. Era como ouvir seu próprio idioma com um sotaque carregado.— Não tenho medo do trabalho. Não tenho medo de nada, depois do que passei.Guthrun arqueou as sobrancelhas. Em seguida bateu palmas e uma criada

apareceu, uma loira robusta com olhinhos pequenos e um sorriso caloroso.— Tove, encarregue-se desta moça — ordenou. — Meu filho espera por mim.Ela trocou algumas palavras com Tove, que sorriu discretamente e fez uma mesura

exagerada. Guthrun então se afastou, deixando Annis sozinha com a criada. No mesmo instante a atitude da moça mudou, sua expressão tornando-se mais astuta e menos bajuladora.

Tove foi até um baú, abriu-o, tirou de dentro uma túnica de linho e um vestido-avental e jogou-os para Annis.

— Troque-se.Um nó se formou na garganta de Annis. Ela sempre tivera ajuda para se vestir,

para se despir e para trocar de roupa. Isso acabara. Ela olhou em volta à procura de algum biombo atrás do qual pudesse se trocar, mas não havia nada. Ela levou as mãos ao broche da capa de Haakon, mas não conseguiu abri-lo. Tove estalou a língua, impaciente; deu um passo à frente e tirou o broche, praticamente arrancando a capa dos ombros de Annis.

Tove estalou os dedos.— O resto. E sem cobrir a cabeça. Você é uma prisioneira.O crucifixo de prata caiu no chão, e Tove abaixou-se para pegá-lo.— Não é mais seu — avisou ela, colocando-o sobre a capa dobrada.Annis chegou a estender a mão para pegar o crucifixo de volta, com um murmúrio

de protesto, mas então viu os entalhes de animais em alto-relevo no baú de madeira e

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lembrou-se de que não estava em casa. Calou-se e deixou as mãos penderem ao lado do corpo.

Tove fechou o baú, trancou-o e guardou a chave no bolso. O crucifixo estava ali dentro, não era mais seu. Annis olhou para o baú entalhado. Não tinha mais nada para lembrá-la de casa, somente suas recordações.

Annis estremeceu de leve. Em seguida, porém, trocou rapidamente de roupa. O linho áspero pinicava sua pele.

Tove a conduziu para uma cozinha relativamente pequena, onde uma fogueira ardia no centro do aposento. Uma caldeira com sopa borbulhava sobre o fogo, e várias criadas estavam ocupadas sovando massa de pão. Dois gatos enormes, maiores que qualquer um que Annis já tivesse visto até então, estavam esparramados diante do fogo. Em vez de serem afugentados do recinto, como aconteceria em sua casa, as criadas pareciam satisfeitas com a presença dos felinos, parando para acariciá-los conforme passavam por eles. Outras três mulheres estavam entretidas fiando e tecendo. Tove anunciou a presença da recém-chegada e algumas das moças riram baixinho.

Tove deu um empurrão no ombro de Annis, apontou para um saco de cevada, depois para o moedor de grãos, e gesticulou como se estivesse moendo a cevada. O coração de Annis afundou. Ela nunca precisara fazer nada semelhante antes; era o tipo de tarefa executada pelos criados de categoria mais inferior. Ela apertou os dentes, pegou um punhado de cevada e colocou-a na pedra de moer.

Depois de esfregar várias vezes as mós, Annis viu os grãos virarem uma farinha grossa. Não era tão difícil quanto ela pensara a princípio. Ela sorriu triunfante e recolocou as mós no lugar.

Tove disse alguma coisa, e as moças desataram a rir. Tove apontou para o saco. Annis olhou para ela, boquiaberta. Era para ela moer todo o conteúdo do saco!

Ela pegou mais um punhado de cevada e começou a triturar, mais rápido dessa vez. Seus ombros protestaram, desabituados ao exercício. Mas ela faria aquilo, moeria toda aquela cevada, sem demonstrar desconforto ou contrariedade.

Ela começou a moer cada vez mais rápido, forçando o ritmo, e então, de repente, a pedra emborcou e tombou, espalhando farinha por toda parte, para grande divertimento de Tove e das outras. Annis queria cair de joelhos e chorar, mas em vez disso forçou-se a se controlar e começou a recolher a farinha com as mãos. Porém, quanto mais ela limpava, mais sujeira ela fazia. Um dos gatos pulou no meio do pó e começou a se esfregar no chão, enquanto as risadas das moças ficavam cada vez mais altas.

Uma das criadas, com os dentes mais compridos que Annis já tinha visto, disse alguma coisa em escandinavo, acenando com as mãos e balançando a cabeça.

— Podem deixar, eu limpo. Fui eu que fiz a bagunça — respondeu Annis, primeiro em latim, depois em seu próprio idioma.

— Deixe-me ajudar.A moça tirou o gato, pegou uma escova e rapidamente varreu a farinha, formando

um montículo. Em seguida, colocou tudo em uma outra cumbuca.Annis mordeu o lábio e agradeceu.— É preciso esvaziar o moedor de tempos em tempos, senão. — A moça

gesticulou, mostrando o que poderia acontecer. — Mas isso já aconteceu comigo também, várias vezes.

Annis sentiu um nó crescer na garganta. Ela segurou a mão da moça.— Obrigada.— Ingrid. — A criada ergueu um dedo e disse alguma coisa em escandinavo.Annis espalmou a mão no peito e falou pausadamente:— Annis. Meu nome é Annis. Se você falar devagar, eu consigo entender você.— Eu sou Ingrid — repetiu a moça, sorrindo e de repente parecendo mais bonita,

em vez de uma lebre assustada.

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— Tove tumultua demais. Ela está louca para dormir com um dos jarls e ficar grávida, como se isso fosse fazer alguma diferença no futuro dela.

— O que isso tem a ver comigo?— Elas estão curiosas para saber se você dormiu com lorde Haakon, lá no seu

país, e se foi por isso que ele a trouxe para cá. O jarl nunca trouxe uma mulher aqui antes.

Annis sentiu o rosto queimar.— Não. Eu sou uma prisioneira, não uma concubina.— Elas pensavam que talvez você fosse. Muitas aqui gostariam de dormir com ele.

Ele tem a reputação de ser um amante gentil e atencioso.Annis sentiu que ficava ainda mais vermelha, conforme se lembrava do beijo que

haviam trocado. O que as moças comentavam devia ter fundamento. Mas Haakon devia ser como Selwyn, que trocava de amante como trocava de roupa.

— Ele está mais interessado no resgate que espera receber.— Se isso for verdade, Tove vai ficar feliz da vida. — Ingrid aproximou-se mais. —

Mas você há de concordar comigo que ele é lindo. e que braços fortes ele tem!— Sim, eu concordo.As moças que estavam mais próximas riram.Ingrid pegou as pedras de moer das mãos de Annis, colocou um pouco de cevada

na cumbuca e mostrou a Annis como moer direito.— Assim, viu? Tove sempre manda as recém-chegadas moerem cevada. Ela

nunca ensina, mas eu ajudo.Uma onda de alívio percorreu Annis, e seus olhos se encheram de lágrimas. Ela

não esperara ser tratada com amabilidade. De alguma forma, isso a fazia sentir-se menos sozinha. Aquela moça parecia ser uma boa amiga. Fazia tempo que ela não tinha uma amiga. A última fora antes de Selwyn morrer.

— Por que os gatos podem entrar em casa, aqui?— Não tem gatos na cozinha, lá onde você mora?Annis balançou a cabeça.Ingrid abaixou-se e pegou o gato preto e branco malhado, aninhando-o em seus

braços.— Esta é Kisa, a cinza é Fress. Elas são protegidas da deusa Freya e ajudam a

caçar os ratos.Annis repetiu os nomes e estendeu um dedo para a gata. Kisa respondeu

imediatamente, ronronando e inclinando a cabeça para trás.— Elas são enormes. Nunca vi gatos deste tamanho.— Kisa gostou de você. Não é todo mundo que ela deixa passar a mão. Os gatos

conhecem as pessoas, sabia? — Ingrid acenou com a cabeça, para reafirmar o que dizia. — Eu acho que também vou gostar de você.

Annis começou a moer a cevada novamente, dessa vez seguindo as instruções de Ingrid e com Kisa deitada aos seus pés.

Annis enxugou o suor da testa. O saco, que estava cheio, continha agora apenas alguns punhados de grãos no fundo. Ela passara dois dias inteiros trabalhando, mas agora estava perto de acabar. A única vantagem era que ela chegava ao fim do dia tão cansada que adormecia assim que fechava os olhos, deitada no catre ao lado de Ingrid. Ela dormia tão profundamente que nem sonhava. O que era bom, pois se sonhasse seria com construções em chamas e guerreiros violentos.

Ela ergueu a mó e recomeçou a trabalhar.— Ai!. — A bolha em sua mão direita estourou, e cada movimento era doloroso

demais. Annis resistiu à tentação de chorar. De tudo o que havia acontecido com ela,

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aquela bolha era o que mais doía. Uma coisa insignificante, pela qual não valia a pena chorar. Os monges, certamente, estavam sofrendo muito mais, e, no entanto, naquela manhã, ela os ouvira entoar seus cânticos enquanto trabalhavam na fazenda.

Ela limpou uma lágrima com a manga da blusa.— O que foi? — perguntou Ingrid, largando a massa de pão e aproximando-se.— É só uma bolha que estourou.— Deixe-me ver. — Ingrid segurou a mão dela.A ferida aberta brilhava na pele de Annis.— Não é nada grave — insistiu ela.— Suas mãos são muito delicadas — disse Ingrid. — Você nunca fez esse tipo de

trabalho antes.— Logo elas vão ficar calejadas.— Haakon está esperando um resgate alto, não é?— Sim — murmurou Annis com dificuldade.— Ele sabe que você está sendo forçada a fazer este trabalho?— Eu acho que sim. — Annis sentiu a dor na parte posterior da cabeça refletir-se

na base da espinha. Não tinha dúvida de que Haakon sabia o que estava acontecendo. Não se admiraria se ele mesmo tivesse sugerido que lhe fosse atribuída aquela tarefa e que estivesse se comprazendo em humilhá-la. — Se eu tivesse meu unguento especial, eu poderia passar, para aliviar um pouco.

— Que unguento é? — quis saber Ingrid, atrapalhando-se um pouco com a palavra.

— Eu que faço, com ervas e sebo. É uma receita simples de fazer, só é preciso ter os ingredientes.

— Isso é ótimo. — Ingrid sorriu. — Você conhece ervas e remédios?— Sim.— Então é um desperdício você trabalhar aqui na cozinha.Annis ia retrucar, mas Ingrid já tinha se afastado. Ela deu de ombros. Pousou a

mão na mó e fez uma careta de dor. Precisava ir em frente, tinha de terminar aquela tarefa. Não pensaria no que sua cunhada e sua mãe estariam fazendo naquele momento. Em vez disso, ocuparia sua mente pensando nas ervas e receitas que sabia preparar, para distrair-se da dor latejante.

Ela torceu a mó com toda a força de que foi capaz, ignorando a dor que se alastrou por seu braço. A pedra começou a se inclinar. Ela estendeu o braço para não deixá-la cair, mas de repente duas mãos fortes apareceram e recolocaram a pedra sobre a mesa.

O ar vibrou com uma energia que não estava ali antes. Annis ergueu o rosto devagar.

Haakon estava de pé diante dela, com um grande cão ao seu lado balançando a cauda. Como e quando ele chegara, ela não fazia ideia; estivera concentrada na moagem e não prestara atenção ao redor. Mas o fato era que ele estava ali, parecendo bem diferente do guerreiro do qual ela se lembrava de Lindisfarne.

Ele tinha tomado banho, e os cabelos ainda estavam úmidos. Em vez da cota de malha, ele usava uma camisa de lã fina azul e uma calça justa. Os pés estavam calçados em botas de couro cru. Ele emanava uma vitalidade que preenchia o aposento inteiro.

— Deseja alguma coisa, milorde? — perguntou Annis, mantendo o tom de voz frio e formal. Não tinha dúvidas de quem era o responsável por sua situação atual e estava determinada a mostrar a ele que aquelas tarefas rudes não abalariam seu estado de espírito.

— Ingrid foi falar comigo. Ela disse que você se queixou.— Estou fazendo a tarefa que me foi atribuída, moer cevada. — Annis voltou a se

concentrar na mó. — Posso ser um pouco lenta, mas a cevada está sendo moída.

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— Você é uma mulher de muitos talentos. — A voz dele continha um tom de riso, o que irritou Annis. Ela certamente não sentia prazer algum em ser prisioneira. — O que você acha, Floki?

O cão inclinou a cabeça e latiu.— Está vendo, Floki concorda comigo. Haakon inclinou-se e deu ao cão uma

guloseima de uma das travessas.— Eu não seria capaz de administrar a propriedade do meu marido se não

soubesse moer trigo e cevada. — Annis escondeu as mãos sob as dobras do vestido e o fitou, desafiadora.

Haakon pareceu aceitar a afirmação.— E você entende meu idioma com facilidade.— Eu aprendo depressa. — Ela deu de ombros.Em seguida estendeu a mão para pegar a maldita pedra. Se retomasse o trabalho,

talvez ele fosse embora e ela conseguisse se concentrar em sua tarefa em vez de ficar pensando como os ombros dele eram largos e como a calça se amoldava bem às pernas longas e fortes.

— Isso facilita a vida. — Haakon colocou uma das mãos sobre a dela, impedindo-a de mover-se. Foi um gesto firme, decidido. — Quero conversar com você em outro lugar. Meu assunto com você não interessa às fofoqueiras aqui da cozinha.

Annis levantou-se e tentou ignorar os sorrisinhos das outras criadas.Haakon a conduziu até um aposento pequeno do lado de fora do salão, uma

espécie de alcova. Havia um banco encostado a uma das paredes, mas Haakon permaneceu de pé, olhando para Annis com o semblante inflexível e severo.

— Por que os monges deixaram você falar em nome deles? — perguntou, quebrando o silêncio. — Todos eles têm língua.

— Ninguém me pediu para dizer nada. Eu decidi falar. — A raiva cresceu dentro de Annis. — Alguém tinha de fazer isso.

— E eles deixaram. Ninguém protestou. Por quê?— O abade era meu tio. — O vento despenteou os cabelos de Annis. Ela olhou

para a baía, onde os navios de serpente estavam fincados na areia, as ondas batendo suavemente nos cascos.

— As regras do mosteiro são fortes. Temerosas.— E você não é?— Quando a ocasião exige. — Annis ignorou a apreensão que lhe contraiu o

estômago. Sabia que, qualquer que fosse a punição que Haakon decidisse lhe impingir, ela falaria de novo. Alguém tinha de dar voz à situação dos monges.

— Isso explica bastante coisa. — A expressão dele era inescrutável. — Minha madrasta não gostou nada disso.

— Você enviou os pedidos de resgate?— Eles serão enviados no próximo navio que zarpar para o Sacro Império Romano.

Tenho contatos na corte de Carlos Magno.Annis assentiu com a cabeça. Sem dúvida, Haakon usaria isso como desculpa para

aumentar seu resgate. Ela queria dizer a ele que seu padrasto nunca pagaria para salvá-la. Ele consideraria aquilo como uma justificativa para tomar o controle de todas as terras que circundavam Birdoswald.

Mas as palavras não saíram. Se ela as dissesse, sua mais ínfima partícula de esperança, aquilo que ainda a mantinha de pé, desapareceria. Seu lar estaria perdido para sempre.

— Estou ansiosa pela resposta. — Ela segurou as dobras do vestido para Haakon não perceber que ela tremia.

— Você parece bem confiante quanto ao seu resgate — disse ele.— Eu estou.

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Era uma mentira branca. Ele descobriria seu erro em breve. Nesse meio-tempo, talvez ela conseguisse ajudar os monges. A Igreja, Annis tinha certeza, ofereceria dinheiro. Ela já ouvira falar de casos semelhantes. A Igreja não aprovava que cristãos fossem escravos de pagãos, mas ela sentia que a preocupação era maior com aqueles que faziam votos religiosos.

Talvez ela devesse ter feito seus votos, como o tio queria. Mas não teriam sido sinceros. Ela não tinha vocação. Sonhava em ter um lar, filhos, uma família, um marido que a quisesse pelo que ela era, não pelo dote que poderia levar para o casamento. Teria sido uma falsidade fazer os votos religiosos.

Haakon não disse nada, enquanto desenhava com os dedos os contornos rústicos da pilastra de madeira. Era como se os dois estivessem em uma disputa, uma batalha de vontades, cada um esperando que o outro falasse. Perdesse. Annis estava mais consciente que nunca da presença de Haakon, de sua força viril.

— Annis! Annis, onde você está? Ainda tem cevada para moer. Annis! — A voz estridente de Tove quebrou o feitiço do momento. — Annis! Você vai ser castigada.

— Tove está me chamando. Preciso voltar ao meu trabalho. — Annis ergueu o queixo e fitou Haakon diretamente nos olhos. — Algo que vou tentar fazer com mais entusiasmo daqui por diante.

— Guthrun sabe que você está moendo grãos, fazendo esses trabalhos subalternos?

— Tove manda na cozinha. — Annis encolheu ligeiramente os ombros. Tinha de ser justa. Não vira Guthrun desde que começara a trabalhar na cozinha. Não tinha ideia se ela sabia o que Tove a mandara fazer. — Faço o que me ordenam.

Haakon segurou o pulso de Annis e virou-lhe a palma para cima.— Você não está habituada a fazer esse tipo de trabalho. Sua mão está cheia de

bolhas.Annis puxou a mão.— Também não estou acostumada a ser prisioneira. Os monges estão sofrendo

muito mais.Os olhos de Haakon brilharam como duas faíscas azuis, mas ele não tentou

segurar a mão dela de novo.— Os monges sabem trabalhar. Nenhum deles nasceu na nobreza. Já você é uma

dama. É diferente. — Ele passou o polegar pelos lábios. — Ingrid me disse que você sabe fazer unguentos para as mãos, para curar bolhas.

— Eu sei fazer um — retrucou Annis cautelosa. O que exatamente Ingrid contara a ele?

— Então faça.— Eu não tenho as ervas necessárias.— São ervas exóticas? Ou você não sabe quais ervas são necessárias? — A voz

dele era seca e fria.Annis pensou por um momento. Precisava ser cuidadosa. Não queria parecer

orgulhosa demais; e se a pomada não fizesse efeito? Mas pelo menos ela tinha uma chance! Qualquer coisa era melhor do que moer cevada. Rapidamente, ela listou as ervas de que precisava, contando cada uma na ponta dos dedos e terminando com lavanda.

Haakon assentiu e olhou para ela com expressão especulativa, porém impressionada. Annis forçou-se a controlar a esperança crescente. Será que ele lhe daria permissão para tentar?

— Interessante. — Ele esfregou as mãos na calça. — Volte para o seu trabalho.— Mas, mas, você vai falar com Guthrun? Sobre o unguento? É rápido de preparar.— Volte ao trabalho, Annis. Faça suas tarefas.— Isso é uma ordem? — perguntou Annis desanimada. Tivera tanta certeza de que

seria dispensada.

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A fisionomia de Haakon endureceu.— Já falei para não testar a minha paciência.— A sua palavra é lei.Um brilho azul flamejou nos olhos dele.— Sim, e é bom que você se lembre disso.

Capítulo 5

— O jarl pediu que isto fosse entregue na cozinha.Annis ouviu a inflexão melodiosa da Nortúmbria em vez do sotaque áspero dos

vikings. Aelfric, o único monge próximo ao seu tio que tinha sobrevivido, estava parado na entrada da cozinha. Ele trazia nas mãos um sortimento de ervas desidratadas, que colocou sobre a mesa. Ele contraiu os lábios em um gesto de desaprovação quando Kisa subiu na mesa e começou a cheirar as ervas. Annis apressou-se a segurar a gata no colo.

— Ele disse por quê? — perguntou Ingrid, examinando as ervas. — O que ele quer que seja feito com isto? Temperar a carne?

— É para lady Annis. — O deboche na voz de Aelfric era inequívoco.Annis olhou para as ervas. Tudo que ela pedira a Haakon estava ali.— É para fazer um unguento para curar bolhas. Eu falei com Haakon sobre isso e

ele se lembrou de mandar as ervas.— Haakon se lembra de tudo — disse Ingrid. — Sempre quando volta de uma

viagem, ele inspeciona tudo. Nada escapa aos olhos dele, e ai de quem se esquecer de obedecer às suas ordens. Ele se preocupa com as pessoas daqui. Está sempre procurando maneiras de melhorar as condições delas.

— Faltou a lavanda, milady — falou Aelfric em latim. — Acredito que o viking queira o unguento para os cavalos.

— Obrigada, Aelfric, por me trazer as ervas — disse Annis. Uma súbita saudade de casa a acometeu. — E como vocês estão, você e os outros monges?

— Estamos bem, milady. — Ele inclinou a cabeça, e Annis viu o cabelo começando a crescer na tonsura redonda. Em poucas semanas, ele pareceria um homem como qualquer outro, em vez de um monge.

— Todos vocês?— Estamos sobrevivendo, nos alimentando. — respondeu ele em latim. — O

trabalho não é mais pesado do que a maioria de nós já fazia na abadia, embora o solo seja pobre.

Uma centena de perguntas ocorreu a Annis, mas ela sabia que Tove os estava observando atentamente.

— Sonho com o dia em que todos voltaremos para casa outra vez — disse ela, no idioma da Nortúmbria, para que as mulheres percebessem que eles estavam falando de assuntos triviais. Tove retorceu os lábios e retomou seu trabalho.

— Eu também, milady. — Ele curvou-se ligeiramente, fez o sinal da cruz e saiu.

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— Você sabe mesmo fazer unguento para mãos rachadas e com bolhas, com essas plantas secas aí? — perguntou Tove, com o nariz empinado.

— Se eu tiver um pouco de banha, eu faço, sim. — Annis afastou as ervas para um lado. Queria começar imediatamente, mas suspeitava que Tove tivesse outro saco de grãos para ela moer.

— Foi o jarl Haakon que mandou essas ervas?— Sim. — Annis tocou as ervas e as esfregou, liberando seu perfume.— O que está esperando, então? Faça logo esse tal unguento. Minhas mãos estão

ásperas. Quero que fiquem macias.

Annis hesitou. O salão nobre formigava, com homens jogando dados e bebendo. Haakon estava de costas para ela. Sua risada ressoou no salão. Ela mordeu o lábio. Ele estava ocupado, rodeado por seus homens. Ela poderia se retirar se quisesse, voltar para a cozinha. Mas endireitou os ombros. Não iria fugir, como uma covarde. Haakon merecia seu agradecimento.

Ele virou-se quando ela se aproximou, e arqueou uma sobrancelha.— Sim? Algum problema?— Eu queria lhe agradecer. — Annis torceu a ponta do avental entre os dedos.

Sentir-se grata era uma coisa, agradecer a ele pessoalmente e diante dos outros homens era outra, bem diferente. Ela forçou-se a erguer o queixo e o fitou.

— Agradecer? — Haakon segurou-a pelo cotovelo e levou-a para um canto mais sossegado do salão. — Pelo quê?

— Desde que Tove soube ontem que tenho habilidade com ervas, ela tem me mandado fazer unguentos e poções. — Annis deu um ligeiro sorriso.

— E suas mãos?— Estão melhorando. — Ela estendeu as palmas para ele ver. — A vermelhidão já

sumiu. Logo estarão normais outra vez.— Mas o que isso tem a ver comigo? — Haakon inclinou a cabeça para o lado, os

olhos fixos na boca de Annis.— Você providenciou as ervas — explicou ela. — Deu-me a oportunidade.— Eu providenciei as ervas porque uma mulher com as mãos machucadas não tem

serventia para mim.— Mesmo assim lhe sou grata. — Annis sentiu um nó na garganta.— Ótimo. — Ele assentiu e voltou para perto dos homens.Um murmúrio de risos elevou-se no ar, e Annis se encolheu. Certamente, estavam

debochando dela. Ela conhecia o tipo de piadas grosseiras que Selwyn e seus companheiros costumavam fazer. Por que Haakon seria diferente? Os homens eram todos iguais. Ela fora tola em imaginar o contrário. Não queria mais nenhuma proximidade com aquele viking.

— Espero que você já tenha escolhido o guerreiro a quem quer servir — disse Tove com um sorriso afetado, enquanto amarrava seu vestido-avental na cintura de tal maneira a evidenciar suas curvas. Em vez de ajudar com as ervilhas, ela ficava olhando o próprio reflexo nas baixelas de prata e arrumando o cabelo e a roupa. Mas parecia ter um sexto sentido com relação ao momento em que Guthrun poderia vir para supervisionar as coisas. Toda vez que Guthrun aparecia, Tove estava debruçada sobre uma caldeira ou vasilha, mostrando eficiência. Guthrun suspirava e dizia às outras criadas que seguissem o exemplo dela.

— Como assim, Tove? — perguntou Annis, sem disfarçar o ceticismo na voz.— Esses homens ficaram muito tempo sem companhia feminina. — Tove fez

biquinho e moveu sugestivamente os quadris enquanto andava pela cozinha.

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— Eu não pensei sobre isso — respondeu Annis, sem encarar a outra mulher. Esperava que, quando chegasse a hora, conseguisse manter-se afastada. Nos últimos dias, conseguira convencer a si mesma de que a atração que sentia por Haakon era uma aberração. Agora que estava começando a se adaptar à sua nova situação, o estranho sentimento que ele lhe inspirava desapareceria. Ela não queria nem pensar em corpos entrelaçados e beijos roubados. Suas mãos tremeram e ela as escondeu dentro da sobreveste.

— É uma questão de escolher ou ser escolhida — disse Tove, arrancando risadas das moças. — É muito simples. Você serve hidromel ou cerveja para o guerreiro que você quer e fica ao lado dele. Aí ele a agarra.

Annis não se surpreendia com aquilo. Era a mesma coisa na Nortúmbria. Só que lá ela se sentava à mesa do tablado, longe da atividade. Já Selwyn fazia questão de participar. Durante todo o tempo de seu casamento, Annis suportara a humilhação de ver Selwyn escolher a mulher que mais se adequava ao seu gosto e vontade a cada noite... sabendo que o único atrativo que ela tinha para o marido era seu dote e o prestígio de sua família.

— E, sim, nós sabemos quem você escolheria, Tove!Os risos femininos preencheram a cozinha.— Será que sabem mesmo, Ingrid? — Tove levou um dedo à boca, e seus olhos

brilharam. — Eu desisti de Haakon há meses. Ele ainda tem uma queda pela rainha de Thorkell, Asa. Os homens pairam em volta dela como abelhas no mel.

— Isso é só fofoca, Tove — apressou-se a dizer Ingrid, olhando por sobre o ombro. — Como pode espalhar essas histórias?

— Mas todo mundo sabe que eles já foram muito próximos, quando ele mandou Birka buscá-la. E você sabe que teve o dedo dela no divórcio de Vikar. — Tove ajeitou o cabelo com as mãos. — De qualquer forma, existem outros jarls no reino de Thorkell.

— Mas nenhum tão bonito — disse uma das amigas de Tove, com um suspiro.— Acho que eu prefiro Vikar a Ivar, mesmo ele tendo perdido a esposa há seis

meses. Ele tem aquela cicatriz horrível no rosto. — Tove rodopiou no meio da cozinha, fazendo o vestido rodar e revelando os tornozelos. — Poucos homens resistem aos meus tornozelos. Bardos já escreveram poesias para eles.

— Foi um bardo, e ele era vesgo — comentou uma das moças, arrancando risadas das outras.

O rosto de Tove ficou vermelho e ela apoiou as mãos na cintura.— Quem disse isso?!Um súbito silêncio pairou na cozinha, e o ar vibrava de tensão enquanto todas as

moças se concentravam em suas tarefas.— Ingrid, foi você!Annis pôs de lado a vasilha de ervilhas quando Kisa pulou para o seu colo. Se

houvesse uma briga, ela não hesitaria. Sabia quem iria defender.— Como assim, Tove? — perguntou Ingrid, enquanto abria mais uma vagem de

ervilha sobre sua vasilha.Annis olhou de Tove para Ingrid. Tove exibia uma expressão de superioridade.— Você escutou os versos de enxerida que é, e todo mundo aqui sabe que você

está de olho em Thrand desde o seu primeiro dia.O rosto de Ingrid ficou vermelho.— Ele é simpático, tem um sorriso bonito e bons modos.— É bom que a mãe dele não a escute falando assim. Ela tem grandes planos para

ele. a filha de um jarl, com um grande dote. — Tove deu uma risada estridente e inclinou-se até o seu rosto ficar nivelado com o de Ingrid. — Deve ser por isso que você foi transferida para a cozinha em vez de servir às mesas. Seus dias estão contados, Ingrid.

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— Thrand e eu éramos amigos antes de ele partir na expedição. — Ingrid pegou Fress no colo e enterrou o rosto no pelo cinzento. — Não sei como ele se sente agora, não nos falamos desde que ele voltou. Ele nem perguntou sobre Fress e Kisa. E foi ele quem as recolheu quando eram filhotes.

— Você está falando do irmão de Haakon? — Annis quis saber.— Sim. Parte da propriedade pertence a ele, mas ele tem planos de comprar sua

própria fazenda. Nem sempre ele e Haakon estão de acordo. Ele costumava se abrir comigo. — Ingrid passou a mão pelo cabelo. — Ele é muito bonito e gentil. Gosta de brincar com Kisa e Fress, puxando um barbante para elas correrem atrás.

— Eu posso fazer a sua parte na cozinha se você quiser, Ingrid — ofereceu Annis. Ingrid merecia coisa melhor do que Thrand, mas, se era a escolha dela, Annis estava disposta a ajudar.

— Verdade? — Os olhos de Ingrid se iluminaram. — Está falando sério? Eu achei que você ia querer servir o hidromel nas mesas.

— Não faço questão nenhuma — declarou Annis com firmeza. — Duvido que alguém vá notar. Estarão ocupados demais comendo e bebendo para reparar em quem está servindo.

Ingrid transferiu o peso de um pé para o outro.— Se você tem certeza.— Shh... Ande logo, vá se arrumar, e vamos torcer para que tudo dê certo.Ingrid esboçou um sorriso de contentamento e saiu da cozinha, rebolando.Annis pressionou as pontas dos dedos. Ficaria segura ali na cozinha. Ninguém se

lembraria dela. Quem sabe, quando a festa estivesse no auge, ela tentasse dar um jeito de escapar junto com os monges.

Annis lavou o rosto com a água fria do balde que ficava ao lado do estábulo. Ela trabalhara exaustivamente nos preparativos para a festa, e ainda não estava tudo pronto. Não via a hora de se deitar e dormir, mas a noite ainda estava só começando.

— Aprontando-se para a festa? — A voz grave de Haakon soou atrás dela. — Parece que o estoque de ervas secas se esgotou. Não só para fins estéticos, espero. Se bem que, sem dúvida, meus homens apreciariam os resultados.

Annis virou-se com um ligeiro sobressalto. Haakon estava logo atrás dela, a meio metro de distância, observando-a com ar de curiosidade. O cão esfregava o focinho em sua perna, pedindo atenção. Annis acariciou a cabeça do animal e tentou pensar em uma resposta adequada. Haakon falava como se ela desejasse atrair a atenção dos homens.

Ele deu um passo à frente, chegando tão perto que ela podia distinguir cada cílio nos olhos dele.

— Só vim me refrescar um pouco. Está muito quente, e o trabalho na cozinha não é fácil — murmurou, cautelosa. Cada nervo em seu corpo vibrava com a consciência da proximidade de Haakon, conforme ela se lembrava do beijo que haviam trocado. Ela amaldiçoou em silêncio a fofoca de Tove por inspirar a recordação.

— É só por isso?— Por que mais seria? — Annis fitou os olhos azuis. Ele que dissesse as palavras.

Ele que a acusasse de se comportar de maneira sedutora. Ela sabia que seu comportamento era exemplar.

— Depois que os navios vitoriosos desfilarem com suas proas enfeitadas e forem abençoados pelos sacerdotes de Odin e Thor, você e seus companheiros serão exibidos juntamente com o restante do tesouro capturado.

— Eu já imaginava. — Annis abominou a si mesma pelo tremor na própria voz. Indicava que estava prestes a irromper em lágrimas, mas ela se recusava a chorar na frente de Haakon.

— O bardo principal vai declamar a história da viagem do felag. Ele vai incluir minha luta com Bjorn.

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— Ele vai citar meu nome?— Não, ele vai narrar a versão que eu contei a ele — respondeu Haakon, sério.— O que realmente aconteceu naquele quarto permanecerá um segredo só nosso.Annis sentiu a cabeça latejar. Queria acreditar que ele estava fazendo aquilo

unicamente para sua própria glória, mas seu coração lhe dizia que ele a estava protegendo. Ela percebera como Bjorn era estimado e sabia que muitos lamentavam profundamente a sua morte. Eles tinham aceitado a explicação de Haakon porque ele era o líder e era muito respeitado também. Mas iriam querer vingança se soubessem a verdade.

— Obrigada por me avisar. Vou manter a expressão neutra e impassível.Um breve sorriso cruzou o semblante de Haakon.— Eu sabia que você iria compreender, valquíria.— Faz sentido. — Annis acalentou em silêncio o uso dele do termo “valquíria” em

relação a ela. — E depois disso, o que vai acontecer?— Depende. — A voz dele soou com um timbre enrouquecido, e Annis sentiu-se

hipnotizada por aqueles olhos azuis. Os cílios dele eram um pouco mais claros que os cabelos castanho-escuros, ela notou, e os lábios eram firmes. O corpo de Annis começou a oscilar na direção dele e sua boca ficou seca.

Floki empurrou o focinho gelado sob a mão dela outra vez. Annis piscou e recuperou o autocontrole. O momento mágico tinha passado. Ela balançou a cabeça. Tove e suas histórias.

— Não tenho certeza se compreendo.— Sua voz soou grossa aos seus próprios ouvidos.

Annis se concentrou em afagar a cabeça de Floki para disfarçar o constrangimento.— Depende de você — disse Haakon. — Os festejos durarão a noite toda e

continuarão amanhã e depois.Ele assobiou para Floki, e o cão correu para o seu lado.

O alarido da festa ressoava na cozinha. O som de vozes, risos, canecas e passos no chão de terra batida parecia tão assustador quanto os gritos de guerra que ainda ecoavam na mente de Annis.

Suas previsões tinham se concretizado. Guthrun e Tove estavam ocupadas demais para reparar em quem estava servindo o hidromel. Ela conseguira ficar na cozinha, reabastecendo os jarros de hidromel e as travessas de comida.

— Annis! — chamou Ingrid. — Annis, preciso de ajuda.Annis virou-se, respirando fundo.— O que foi, Ingrid?— É meio embaraçoso, mas tem uma pessoa que pediu para falar comigo em

particular, e os guerreiros estão querendo mais hidromel. Você me faria o enorme favor de levar o jarro e servi-los? Eu volto em um instante.

O primeiro impulso de Annis foi recusar, mas, ao ver a expressão ansiosa e afogueada de Ingrid, ela resolveu ceder. Ela podia não gostar de Thrand, mas Ingrid era sua amiga e estava mais do que entusiasmada. Que mal poderia haver, afinal?

— Está bem, Ingrid. Pode ir.Ingrid apertou a mão de Annis, agradecida.Annis pegou o jarro e foi para o salão. O recinto estava transformado. Mesas

compridas haviam sido dispostas junto às paredes de madeira, que estavam enfeitadas com tapeçarias; os bancos estavam forrados com peles e couros, e todas as tochas estavam acesas; no centro do salão, uma fogueira crepitava. O tablado estava na extremidade oposta à cozinha.

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Annis olhou na direção da mesa elevada e sua respiração ficou presa na garganta. Haakon estava esplendoroso, com os cabelos parecendo mais escuros à luz das tochas e com uma abundância de ouro no pescoço e nos braços. Ele usava uma túnica vermelha ricamente bordada e uma capa vermelha combinando. Era um traje exótico, porém tão refinado quanto os que ela costumava ver na Nortúmbria.

A boca de Annis ficou seca, e seu coração disparou. Ela queria sentir ódio de Haakon, mas seus olhos pareciam ter vontade própria e teimavam em se fixar nele o tempo todo, nos dedos longos, no modo como se curvavam ao redor do chifre de bebida. Sentia-se zonza, como se tivesse ingerido vários litros de hidromel. Engoliu em seco e concentrou-se em seus passos no chão irregular.

De tempos em tempos, Annis parava para reabastecer os jarros com hidromel. Quando ela chegou à mesa elevada no tablado, Guthrun arqueou as sobrancelhas, mas estendeu o chifre para ser servida, ao lado do de Thrand.

Annis inclinou a cabeça, intrigada. Ela se enganara. Ingrid não tinha ido se encontrar com Thrand. Ele estava ali, junto com Haakon e os outros jarls. Os olhos dele estavam ligeiramente desfocados, e ele estava entretendo os ocupantes da mesa com uma narrativa da invasão.

— Finalmente, Annis, você apareceu — disse Haakon com sua voz retumbante.— Eu estava começando a ficar preocupado. Você sumiu depois que os prisioneiros foram exibidos. Imagino que tenha tentado fugir, mas, como os navios estão muito bem guardados, você desistiu.

— Eu estava na cozinha — retrucou ela, impassível, começando a encher os chifres com hidromel. Tentou se concentrar na tarefa, mas a imagem das mãos de Haakon assombrava sua mente.

— Sua tonta, você derramou hidromel na mesa inteira! — esbravejou Guthrun.Annis se assustou e levantou o jarro, derramando mais algumas gotas.— Não faz mal — disse um dos guerreiros. — Provavelmente essa moçoila da

Nortúmbria nunca viu tantos guerreiros vikings reunidos em toda a sua glória. Ficou nervosa, coitadinha...

Os outros ocupantes da mesa explodiram em sonoras gargalhadas.— Quer se encrencar ainda mais? — sussurrou Tove no ouvido de Annis. Em

seguida empurrou-a com o cotovelo e aproximou-se da mesa. — Sou eu que sirvo a esta mesa.

Annis assentiu com a cabeça e passou a encher os chifres nas mesas laterais.— Ela é muito graciosa — disse Vikar, inclinando-se para Haakon depois que Annis

se afastou. — Agora entendo por que você não quis abrir mão dela.— Eu disse a você que ela é uma refém valiosa, uma nobre — retrucou Haakon,

desviando o olhar da direção de Annis para não prestar atenção no modo como ela se movia, segurando o jarro e quase tropeçando nos cães deitados aos pés dos guerreiros. A lembrança do contato com o corpo dela próximo ao seu se repetia sem parar em sua mente. Havia paixão naquela mulher, ele tinha certeza. Uma paixão que estava apenas esperando para ser liberada.

— E desde quando isso é motivo para não abrir mão de uma prisioneira? — Vikar emborcou seu chifre e bebeu o conteúdo em um único gole. — Quando minha prima Sigrid foi capturada, ela voltou para casa com dois bebês nos braços. É algo já esperado. E aí fica a cargo de seu lorde decidir o que fazer. Se ele tivesse cuidado dela direito, para começar, os encantos da moça não ficariam disponíveis.

— É um aspecto a se considerar. — Haakon esfregou o queixo. Vikar tinha razão. Se Annis tivesse a proteção adequada, ele nunca a teria capturado. Ela teria morrido naquela ilha.

— E, se você não tem esse tipo de interesse nela — prosseguiu Vikar — , há outros que têm e que podem estar dispostos a adiantar o resgate. Eu, por exemplo.

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— Ela não está à venda! — Haakon bateu na mesa com o punho fechado. — Eu tenho meus princípios.

— Foi só uma sugestão, mas, se eu fosse você, deixaria bem claras as minhas intenções para todos os outros. Grandes quantidades de cerveja e hidromel foram ingeridas, e os rapazes irão procurar... companhia.

— Eles podem procurar à vontade, contanto que não ponham as mãos em nenhuma prisioneira.

— Já que é assim, posso me apresentar à loirinha rechonchuda? Ela olhou para mim a noite toda, e acho que aquele busto macio pode ser um bom travesseiro para eu passar a noite.

Annis colocou o jarro na mesa.Quanto, exatamente, aqueles guerreiros ainda iam beber? Eles já tinham drenado

dez barris de hidromel e cerveja. E continuavam pedindo mais, e nem sinal de Ingrid.Annis suspirou, encheu o jarro com o que ainda restava no barril e voltou para o

salão. Uma roda de dança sapateada tinha começado ao redor da fogueira central.Quando Annis entrou de volta no recinto iluminado por tochas, vários guerreiros

bloquearam seu caminho. Ela podia sentir o hálito adocicado de hidromel nas falas arrastadas, e pelo menos dois deles já cambaleavam.

— Não quer dançar, formosura da Nortúmbria? — perguntou um deles, passando a mão sugestivamente no braço dela. — Eu tenho a impressão de que você é uma boa dançarina.

Annis titubeou. Ela deveria ter imaginado que aquilo iria acontecer. Ela ouvira as conversas. Mas, por alguma razão, esperara ser poupada, com tantas outras mulheres mais do que dispostas ali presentes. Ela sorriu e balançou a cabeça, tentando se desvencilhar.

— Não, muito obrigada, senhor. Eu. aviso se precisar de ajuda, obrigada.O guerreiro, porém, ignorou a recusa e enlaçou a cintura de Annis.— Posso ajudá-la no que quiser, meu bem.— Eu duvido. — Annis virou-se quando os brados dos outros homens aumentaram.

Um círculo havia se formado em volta dela e do guerreiro. Ela tinha de se livrar daquilo, mas como?

O círculo começou a se fechar, e o guerreiro a estreitou nos braços. Annis virou o rosto e os lábios dele roçaram em seu cabelo. Ela se inclinou para trás, esquivando-se.

— Solte-me!— Que mocinha espevitada, hein? Do jeitinho que eu gosto que minhas mulheres

sejam.O viking enxugou a saliva que lhe escorria da boca e investiu novamente.— Quando uma dama diz “não”, é não, Godfred!Annis virou-se para ver Haakon avançando na direção deles. O homem recuou,

erguendo as mãos.— Por que você está aqui, Annis? — Os olhos de Haakon brilhavam

perigosamente.— Eu estava tentando ir servir hidromel nas mesas — explicou ela, levantando o

jarro.— E estes homens a impediram de prosseguir. Sim, eu vi.— A culpa não foi minha.— Ah. Você simplesmente apareceu e a luxúria tomou conta deles todos, foi isso.

— A voz de Haakon transbordava sarcasmo, e ele arqueou uma sobrancelha.Como ele se atrevia a insinuar que ela provocara aqueles avanços?! Os homens

estavam bêbados! Ela não era uma mulher devassa!

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— Não sei por que isso aconteceu. — Annis afastou uma mecha de cabelo para trás da orelha e tentou ajeitar a sobreveste amarrotada.

— Nisso teremos de discordar.— Pense o que quiser, não vai mudar nada. Agora, se me der licença. — Annis

começou a se afastar em direção ao salão. Suas pernas tremiam. O que ela gostaria mesmo era de voltar para a cozinha e sentar-se lá, sozinha.

— Às vezes você tira conclusões precipitadas — murmurou Haakon em seu ouvido.

Annis mal teve tempo de respirar antes que ele a segurasse, a puxasse para seus braços e cobrisse seus lábios com o dele. Dessa vez, o beijo não foi delicado, foi ávido. Visava a subjugar e mostrar quem estava no comando. E, para horror de Annis, ela sentiu seu corpo reagir, contra a sua vontade, à invasão da língua de Haakon, enquanto ele corria os dedos por entre seus cabelos. Uma onda de calor a envolveu.

Não importava que eles estivessem rodeados pelos homens. Annis sabia que tinha de se defender, mas, em vez disso, suas mãos se agarravam à túnica de Haakon. Ela queria que o beijo continuasse, queria sentir a força e o gosto daquele homem.

Então ele ergueu a cabeça, libertando-a bruscamente. Annis cambaleou para trás e caiu sentada no chão, arrancando gargalhadas dos homens.

Haakon murmurou algumas palavras ásperas e os risos cessaram.— O que você disse a eles? — perguntou Annis com os lábios formigando,

ignorando a mão que ele lhe estendia e levantando-se sem ajuda.— Eu achei que o idioma da Nortúmbria fosse o mesmo da Escandinávia.— Nem todas as palavras.— Eu disse a eles que você é minha. — Haakon ergueu o queixo, em um gesto

arrogante. — E que é bom eles se lembrarem de quem manda aqui.— Eu não sou sua! — retrucou Annis, enraivecida, desprezando Haakon e as

sensações indesejadas que ainda percorriam seu corpo.— Você prefere um dos outros guerreiros? — Ele a fitou intensamente.— Será que eu me enganei ao achar que você não estava gostando do assédio

que estava acontecendo aqui?— Claro que eu não estava gostando!— respondeu Annis, zangada, contrariada

consigo mesma por quase ter se derretido nos braços dele. Deveria ter mais autocontrole. Tinha de se lembrar de quem ele era e que era responsável por sua atual situação. Não podia reagir daquela forma a um beijo dele, simplesmente não podia! — Agora, se me permitir, vou voltar aos meus afazeres. milorde.

Haakon passou a mão gentilmente pelo ombro de Annis. Ela teve de se conter para não gemer alto. Deu um passo para trás e passou os braços ao redor da cintura, em um esforço de afastar as sensações contraditórias que a avassalavam.

— Não precisa ter medo, Annis. Eu nunca forcei nenhuma mulher a se deitar comigo, e nenhuma delas nunca reclamou das minhas atenções.

— Não é disso que tenho medo. — Annis ergueu o queixo. Ela nunca achara Selwyn particularmente atraente, com seus modos abrutalhados e risada vulgar. De certa forma, sentia-se agradecida quando ele encontrava outras companhias, mas nunca tivera medo dele. Sabia o valor que tinha para ele. Mas os beijos de Haakon a induziam a sentir que estava perdendo alguma coisa. Seu corpo traiçoeiro clamava por mais, muito mais.

— Do que você tem medo, então?— Você é meu inimigo. Você me raptou.Haakon franziu as sobrancelhas.— Eu disse a você para ficar escondida atrás das pedras até a hora de os navios

zarparem, mas você resolveu me desobedecer e ir até o mosteiro.— Eu lhe expliquei por que fiz isso.Um sorriso suavizou as feições dele.

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— Então chegamos a um impasse. Se lhe aprouver que nos conheçamos melhor, sabe onde me encontrar.

— Acho que sua presença está sendo solicitada na mesa. Sua madrasta parece aflita para atrair sua atenção.

Haakon olhou na direção da mesa no tablado e estreitou os olhos.— Não é aconselhável contrariar os planos de minha madrasta para a festa. Já nos

demoramos tempo demais aqui. Talvez eu devesse ter jogado você em cima do meu ombro e a levado para o meu quarto. Lamento não poder aceitar o convite que seus lábios sugeriram agora mesmo, quando nos beijamos.

— Meus lábios não sugeriram nada!— Ah, mas nós dois sabemos a verdade, não sabemos, Annis?Annis amaldiçoou a si mesma quando sentiu o rosto queimar. Quando ela

conseguiu pensar em uma resposta adequada, Haakon já não estava mais ali.

Capítulo 6

DEPOIS DE algum tempo, as tochas crepitaram com um chiado e se apagaram. O som de risos ecoou no salão, juntamente com o dos colchões sendo desenrolados conforme as pessoas encontravam um lugar para dormir. Annis voltou para o colchão estreito de palha que usara nas últimas noites. Nem Ingrid nem Tove tinham voltado ainda, e ela pôde se esparramar um pouco mais, deitada com as mãos sob a cabeça e as pernas esticadas.

Toda vez que fechava os olhos, a lembrança do beijo de Haakon tomava conta de sua mente. Ali, no escuro, ela admitia para si mesma que desejava sentir os lábios dele sobre os seus, as mãos dele em sua pele. Ela apertou os olhos com força, obrigando-se a desviar o pensamento para o seu lar, sua vida antiga.

Como podia desejar um homem que destruíra seu mundo?

QUANDO FINALMENTE o céu começou a clarear, Annis atravessou o salão, sem se dar ao trabalho de procurar seu vestido-avental. Uma risada masculina soou dos aposentos de Haakon, seguida por uma mais baixa, feminina, que parecia muito ser de Tove. Annis sentiu-se gelar, com o coração pesado. Retorceu os lábios, dizendo a si mesma que aquilo não fazia a menor diferença para ela. Não estava interessada em Haakon. Dois dos cães ergueram a cabeça, mas não se moveram de perto das brasas que haviam restado da fogueira.

Annis levantou o ferrolho e saiu, antes que perdesse a coragem. Inspirou profundamente o ar frio, pela primeira vez com uma sensação de bem-estar desde aquele dia fatídico.

Sentia-se livre. Para respirar. Para pensar.

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O pátio estava em silêncio. As vacas, cabras e ovelhas pareciam sentinelas mudas. As ondas lambiam gentilmente os cascos dos navios, cujas proas estavam fincadas na areia.

Um calafrio percorreu Annis. Mesmo que não tivessem aqueles adornos de serpentes, as embarcações tinham uma aparência ameaçadora e de mau agouro. Mas naquele momento pareciam sem vida, desprotegidas.

Não havia ninguém acordado para observar seus movimentos. Ela podia ir aonde quisesse, pelo menos por enquanto. Annis olhou para o mar com expressão séria. Na verdade, não podia ir justamente para onde mais queria ir, sua casa. Ficava do outro lado do mar, um mar que ela não tinha como atravessar. Mas algum dia ela sairia dali. Disso ela não tinha dúvida.

Annis deixou para trás os navios, contornou o salão pelo lado de fora e desceu a encosta suave até o lago que fornecia água potável. A superfície cristalina refletia a claridade rósea do céu. Um rolo de fumaça saía da chaminé de uma choupana, na margem oposta.

Annis caminhou sobre a relva macia em direção à margem do lago, quando de repente notou que havia alguém dentro da água.

Ela apressou-se a se esconder atrás de um arbusto de bétulas e observou quando o banhista parou de nadar e ficou em pé. A água pingava de seus cabelos sobre os ombros e o peito nu.

Haakon. Haakon estava ali, não no salão, nem em seus aposentos. Annis ficou olhando, enquanto uma onda de alívio e alegria a engolfava. O peito dele era muito mais musculoso do que ela imaginara, estreitando-se em direção aos quadris e pernas, que pareciam esculpidas à imagem de uma estátua de um deus grego.

As gotículas de água na pele dele refletiam o brilho dos primeiros raios de sol. Annis sentiu uma súbita onda de calor. Tinha de ficar ali onde estava, se não quisesse ser vista. Se saísse agora, ele saberia que ela o estivera observando. Ela se escondeu mais atrás do arbusto, sem, no entanto, conseguir desviar os olhos do corpo de Haakon, fascinada com o modo como os músculos dele ondulavam enquanto ele se vestia.

O coração de Annis disparou, e ela mal respirava, com medo de que Haakon a descobrisse ali espiando.

Um galho estalou quando ele começou a se afastar em direção aos estábulos, sem olhar na direção dela. Annis deixou escapar um suspiro e encostou o rosto no tronco macio da bétula.

Saíra de casa para escapar do calor sufocante, e agora seu corpo praticamente ardia. A ideia de voltar para o salão era repulsiva. Ela teria de se deitar e ficar acordada ouvindo os sons de outras pessoas se esbaldando, enquanto ansiava por tocar a pele de Haakon e lamber as gotículas de água doce.

Annis pressionou as palmas das mãos contra as coxas, expulsando aqueles pensamentos.

O que estava acontecendo com ela?Antes da invasão ao mosteiro, ela nunca sentira nada disso, por homem nenhum,

mas depois do beijo da noite anterior só conseguia pensar em Haakon e desejá-lo de uma maneira que, para ela, era desconhecida. Deveria desprezá-lo, a ele e a tudo o que ele representava. Tinha de desprezá-lo!

Annis esperou até que tudo ficasse em silêncio novamente e saiu de trás do arbusto, de volta para o salão.

O pátio já não estava deserto e silencioso. Vários guerreiros perambulavam por ali, cautelosamente, como se estivessem com a cabeça pesada e dolorida, enquanto as galinhas ciscavam nas fendas entre as pedras, à procura de grãos.

Annis estava chegando ao salão quando encontrou Aelfric. O rosto do monge ficou vermelho e em seguida empalideceu, quando ela se aproximou. Ele enfiou dentro da

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túnica o que parecia ser um filão de pão e uma moringa de vinho, e em seguida virou-se para ela com um ar de superioridade no rosto.

— Existe alguma razão para você estar aqui? — perguntou Annis, receando que um dos monges tivesse adoecido. Ela teve a impressão de ver o rosto marcado enrubescer.

— Eu queria ver se você precisava...precisava de... mais ervas para o seu unguento, mas obviamente você teve de cumprir outras tarefas esta manhã.

— Eu tenho tudo de que preciso — disse Annis, observando o monge, tentando se lembrar do que sabia sobre ele. Ele era jovem e vinha de uma boa família. Seu tio havia depositado grandes expectativas no rapaz. Annis mordiscou o lábio. Não podia tirar conclusões precipitadas. A presença dele na cozinha podia ser completamente inocente. — Posso ajudar você em alguma coisa?

— Eu soube que você e o jarl se beijaram ontem à noite. — Aelfric estreitou os olhos e suas feições se contorceram. — Amiguinha de um pagão, não é? E justo quem.

— Se você soube, então também sabe que eu não tive escolha. — Annis cruzou os braços, mas forçou-se a falar com tom de voz calmo.

— Uma verdadeira cristã não. — começou o monge, adotando uma postura de beato, embora seus olhos tivessem um brilho malicioso.

— Você não é meu confessor, Aelfric. Por favor, lembre-se disso.Annis virou-se para ir embora, de cabeça erguida, mas Aelfric a segurou pelo

braço.— Mulher orgulhosa, arrogante, você está cega!— Se meu tio estivesse vivo, você não se atreveria a falar comigo desse jeito! —

Annis desvencilhou-se dele.— Alguém tem de falar a verdade! — gritou Aelfric, e em seguida prosseguiu em

um tom mais conciliatório: — Annis, como alguém que tem uma preocupação com a alma imortal, eu sinto que é meu dever alertá-la. Tudo isto um dia vai acabar, e você vai voltar para sua vida na Nortúmbria. Eu sei que Eadgar fez uma oferta. Seu tio me falou da esperança dele. Ele é um bom homem.

— A Nortúmbria e Birdoswald estão sempre em meu pensamento.Annis fechou os olhos. Quase se esquecera da existência de Eadgar. Ele tinha o

mesmo significado que a vaga lembrança de um pesadelo. Pelo menos havia uma vantagem em ter sido capturada. Eadgar já teria escolhido alguém para se casar com ela, se nada daquilo tivesse acontecido. Então, uma vozinha dentro dela insistiu que não era essa a única vantagem. Mas Annis apressou-se a calar a voz indesejável.

— Você parece angustiada. Vamos conversar em outra hora. Enquanto isso, vou rezar por você.

Annis abriu os olhos e viu Aelfric se afastando. Ela cruzou os braços em volta da cintura, dizendo a si mesma que precisava se concentrar nas coisas que eram mais importantes: voltar para casa e para sua vida.

— Annis! — A voz grave de Haakon a envolveu como um manto macio.Ela virou-se com um sobressalto. Haakon estava parado na porta do estábulo. O

linho fino e alvo de sua camisa se amoldava com perfeição ao tórax musculoso, e os cabelos ainda estavam úmidos do banho no lago. Annis sentiu a boca seca ao se lembrar da imagem de Haakon saindo nu da água.

— Deseja alguma coisa? — Sua voz soou estranha para ela própria. Ela engoliu em seco e tentou de novo. — Que bom ver você, Haakon.

— O que você estava falando com aquele monge?— Ele me perguntou se eu precisava de mais ervas. — Annis apressou-se a

responder. Tinha certeza de que Aelfric mentira e inventara essa desculpa, mas não iria trair um conterrâneo. E tudo que Aelfric de fato fizera fora expressar preocupação com sua alma imortal.

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— A esta hora da manhã? — Ele arqueou uma sobrancelha.— Parece que houve muitas pessoas madrugadoras hoje. — Annis tentou dar uma

risada descontraída. Precisou se conter para não perguntar a Haakon onde ele havia passado a noite.

— Você certamente é uma delas.O coração de Annis deu um pulo. Será que ele a tinha visto, perto do lago? Não era

possível; ela se escondera muito bem.— Eu perdi o sono e resolvi caminhar até o fiorde. Achei que não havia mal

nenhum nisso.— Mal nenhum, de fato. — Haakon inclinou a cabeça para o lado, e seu olhar

percorreu Annis de cima a baixo.— Eu só estava comentando.Annis transferiu o peso de um pé para o outro e se arrependeu por não ter

procurado sua sobreveste. O camisolão que estava usando era muito fino.— Você também perdeu o sono? — Annis sentiu o rosto queimar. — Os aposentos

de dormir estavam lotados.— Eu cedi o meu para Vikar. Ele precisava de privacidade, mais do que eu. Passei

a noite na choupana do lago.Vikar! Era um dos outros jarls que estava nos aposentos de Haakon. Annis engoliu

em seco mais uma vez. A risada que ela ouvira mais cedo era de Vikar, então. Isso não deveria fazer a menor diferença para ela, mas fazia.

— A choupana é confortável?— Você a viu?— Só de longe. — Annis controlou o tom de voz. De maneira alguma ele podia

suspeitar que ela o espiara nadando. — Fiquei pensando o que teria lá. Até pensei em perguntar a Ingrid, mas esqueci.

— É minha casa de banho a vapor. Você gosta de banho a vapor, Annis?Annis olhou para o chão de terra batida do pátio.— Nunca experimentei. Não temos isso na Nortúmbria.— Precisa experimentar alguma hora. É muito bom.Annis ergueu o rosto e se deparou com o olhar de Haakon fixo nela. Com esforço,

desviou o olhar. Precisava se controlar, ou ficaria pior que Tove.— Bem, preciso trabalhar. Ingrid já deve estar me procurando. — A respiração dela

acelerou quando as admoestações de Aelfric ecoaram em sua mente. Era pervertido de sua parte ter esses pensamentos, espiar um homem nu nadando e depois imaginar como seria tomar banho junto com ele.

— Como quiser. — Haakon não fez menção de se afastar, simplesmente ficou ali parado, olhando para ela.

Annis forçou suas pernas a se moverem, a afastar-se da tentação que aquele homem representava. Tratou de encontrar sua sobreveste, dobrada no pé do colchão de palha, e foi para a cozinha. Ingrid estava lá, mexendo uma panela de mingau. Ela cobriu a boca com a mão e bocejou longamente.

— Eu procurei você mais cedo — disse ela. — Um dos monges veio perguntar como você estava.

— Eu fui andar um pouco. Acordei cedo e não consegui mais pegar no sono. O salão estava muito barulhento. — Annis sentiu que estava voltando ao normal.

— É assim sempre que tem festa. Gente demais, um tumulto. — Ingrid sorriu. — E eu aqui achando que você tinha encontrado um guerreiro bonito para aquecer sua cama!

Annis sentiu o rosto avermelhar e esperou que Ingrid pensasse que era do calor do fogo. Ela riu, entrando na brincadeira.

— Nenhum me encantou, para ser sincera. Mas quem era o rapaz que saiu com você? Eu vi Thrand na mesa do tablado.

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— Já desisti de Thrand. Ele é grosseiro e inculto. Há outra pessoa, que já viajou muito e é gentil e cavalheiro. Ele se importa com o que acontece comigo.

Um brado alto soou de repente, seguido por um longo sopro de berrante, interrompendo a conversa de Annis com Ingrid.

— O que é isso? — perguntou Annis.— É um sinal de que foi avistada a vela de um navio.— Mas de alguém amigo ou inimigo?— Annis apoiou uma das mãos na mesa para

impedir que seus joelhos se dobrassem. Ela se lembrava muito bem do que havia acontecido na última vez em que navios foram avistados.

— Vamos saber quando chegarem. — Ingrid cobriu a mão de Annis com a sua, tranquilizando-a. — Eu não me preocuparia. O jarl e seus homens estão aqui. Só mesmo alguém completamente insano para atacar esta fortaleza.

HAAKON PROTEGEU os olhos do sol com a mão em concha. Apesar da distância, ele conseguiu distinguir a embarcação que navegava em direção ao fiorde. Um urso com a boca aberta em um rosnado, o símbolo dos Bjornsons, a família de Bjorn, adornava a proa, alto e imponente.

Haakon franziu a testa enquanto afagava distraidamente a cabeça de Floki. Aquele navio não deveria estar ali. Não houvera tempo para eles terem recebido a notícia da morte de Bjorn, nem do regresso do felag. Ainda levaria vários dias para que o barco que ele enviara costa acima com a mensagem chegasse ao destino.

— Problemas? — perguntou Thrand, vindo se pôr ao lado do irmão, enquanto Haakon ajeitava o cinto com a espada na cintura.

— Possivelmente, sim. O barco é dos Bjornsons. — Haakon passou a mão pelo cabelo, refletindo sobre as possibilidades. O que quer que o capitão daquele navio tivesse em mente, ele teria de enfrentar a força total do felag. Haakon perguntava-se qual seria o motivo da visita. Aquela não era a rota habitual de comércio dos Bjornsons.

— Eu pretendia encontrar a família de Bjorn na corte de Thorkell, onde estaríamos em território neutro, mas parece que os deuses decidiram diferente.

Thrand deixou escapar um assobio baixo.— E você acha que eles vão aceitar bem a notícia? Vão se contentar com o

pagamento da compensação? Você conhece a reputação dessa família.— Eu sei de três vinganças sangrentas em que eles se envolveram. Foram ataques

não provocados que acabaram virando uma luta mortal. Mas não tenho intenção de me sentar ao lado de Odin antes da hora. — Haakon levou a mão ao cabo da espada. Lembrava-se claramente do que acontecera com alguns jarls de hierarquia menor, dois anos antes, quando o clã Bjornson viera e encontrara um de seus membros assassinado.

— Não tenho medo da família de Bjorn. Vou fazer uma oferta justa, mas não aqui. Na corte de Thorkell, com a assessoria dos nobres, se ele assim desejar, para avaliar os fatos do caso e estabelecer uma quantia em ouro e prata, que irei pagar. É ele o rei. Ele quer pôr um fim nas rixas de sangue, e eu concordo. Não levam a nada, apenas colocam os vikings uns contra os outros, enfraquecendo-nos e nos tornando vulneráveis aos nossos inimigos.

— As rixas de sangue nunca vão acabar, Haakon. Existe a questão da honra envolvida.

— A honra pode ser reconhecida de outras formas, Thrand. Lembre-se disso.— Vou chamar os membros do felag para fazerem a sua retaguarda — avisou

Thrand com evidente ansiedade na voz, segurando o cotovelo de Haakon. Seus olhos brilhavam, antevendo uma luta. — A irmandade não foi formalmente separada. Sigfrid e o resto do clã Bjornson terão de entender que um ataque a um de nós é um ataque a todos.

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— Creio que consigo lidar sozinho com o irmão de Bjorn. — Haakon reconhecia o bom senso nas palavras de Thrand, mas não queria que depois dissessem que ele precisava da proteção dos companheiros. Ele não duvidava da própria capacidade de enfrentar os irmãos de Bjorn em uma luta leal, se fosse o caso. Mas não seria. Sigfrid era prudente, um homem que preferia ter pontos a seu favor em vez de contra si.

— Minha espada está afiada, e minha visão está ótima.— Mas nós não queremos perder você. — O semblante de Thrand assumiu uma

expressão de súplica. — Você é um homem que tripudia com a morte e tem faro para achar ouro. Os homens ficarão atrás de você. Você só precisa dizer uma palavra e a ordem estará dada. Nós sabemos o que aconteceu quando Bjorn morreu.

Haakon segurou o antebraço de Thrand enquanto observava a crista branca das ondas batendo contra o navio conforme ele se aproximava da praia. Tripudiar com a morte era uma descrição adequada. Haakon lamentava que Thrand não conhecesse as circunstâncias exatas que haviam levado à morte de Bjorn, mas agora, mais do que nunca, ele tinha de manter isso em segredo, pelo menos até que Annis partisse dali. Não permitira, de maneira alguma, que qualquer um dos Bjornsons quisesse se vingar dela.

— Eles já vão desembarcar. Fique aqui comigo, Thrand. Vamos recebê-los, de guerreiro para guerreiro. Até a morte.

O irmão mais velho de Bjorn pulou para o mar e caminhou através das ondas até onde os dois vikings aguardavam. Tirou o elmo e segurou-o com as duas mãos. A espada estava embainhada.

— Eu vim em paz, Haakon Haroldson.— E eu o recebo em paz. — Haakon pousou a mão no antebraço de Sigfrid,

fazendo questão de demonstrar firmeza e determinação. Qualquer coisa menos que isso seria um sinal de fraqueza. — Como chegou tão rápido? Os mensageiros partiram ontem. Faz poucos dias que chegamos e ainda não terminamos a festa de boas-vindas.

Sigfrid ficou ali parado, com as pernas afastadas. O vento suave despenteava seus fartos cabelos loiros, dando-lhe a mesma aparência de urso do irmão. Havia rumores de que o clã Bjornson havia sido fundado por um gigante. Haakon tinha suas dúvidas quanto a isso, mas reconhecia a dedicação e habilidade da família inteira no que dizia respeito à luta e guerra.

— Seis noites atrás, nós vimos fenômenos no céu. — Sigfrid gesticulou em direção ao norte. — Luzes estranhas que pareciam navios navegando no mar escuro. Então Thor apareceu com sua carruagem de trovões e relâmpagos. As mulheres do clã ficaram assustadas quando o ensopado queimou e o leite de minha melhor vaca secou. Nossa vidente disse que era um presságio e que precisávamos vir o quanto antes para a sua propriedade.

— É a mesma vidente que disse que nenhum homem seria capaz de matar Bjorn? — murmurou Thrand no ouvido de Haakon.

— O que levou vocês a deduzir que esses fenômenos significavam que deveriam vir aqui o quanto antes? — indagou Haakon. Mentalmente, ele contou os vinte guerreiros que apareceram no convés do navio, homens escolhidos a dedo. Sigfrid não viera com intenção de fazer uma visita social à sua madrasta.

Sigfrid virou o elmo nas mãos, claramente inquieto.— A vidente interpretou as luzes no céu como uma grande batalha, e que um

guerreiro poderoso havia sido abatido. Como ela já nos disse que Bjorn não estava destinado a morrer pelas mãos de um homem, eu pensei em você, se você teria tido esse infortúnio. Não pensei em ninguém mais. Eu vim em paz, acredite.

— Fico grato por sua preocupação. Sua vidente é bastante renomada. — Haakon inclinou a cabeça. Se houvesse derramamento de sangue durante aquela visita, ele queria dizer a Thorkell que não fora ele quem rompera a paz. — Mas, como pode ver, estou bem e voltei da viagem ileso.

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— Sigfrid, você precisa saber. — interveio Thrand. — Os videntes não são mais como eram antigamente. Depois de algum tempo, eles perdem o dom.

Haakon ignorou Thrand diligentemente. Ele já tinha presenciado fenômenos como aqueles no passado, como justificativa para atacar ou ocupar uma propriedade. Mas como Sigfrid não viera com escudos pendurados no navio, ele não podia acusá-lo disso. ainda.

— Nossa vidente tem boa reputação. — Sigfrid tirou um pelo de sua capa. — Todas as mulheres do meu clã pediram que eu a levasse em consideração. E ela teria me cobrado, se eu não tivesse seguido seu conselho.

— Mas por que pensou em mim? Há muitos outros grandes guerreiros no felag.— Depois do meu irmão, você é o maior guerreiro de Viken. — Sigfrid curvou-se

em uma mesura. — Suas terras são prósperas. Caso você morresse, elas precisariam ser protegidas contra pilhagens. Você deixou sua madrasta sem sentinelas. Ela precisa de um braço forte para ajudá-la a defender-se de invasores.

Um sorriso retorceu os lábios de Haakon. Tudo meias-verdades. O que Sigfrid queria dizer era que ele queria estar em uma posição tal que pudesse reivindicar as terras, mais provavelmente casando-se com

Guthrun. De acordo com a lei de Viken, Guthrun herdaria a propriedade se Haakon e Thrand morressem. Em vários aspectos, Sigfrid e aquela bruxa se mereciam.

Haakon olhou para Thrand e viu que ele estava pálido. Ele também não precisava de um vidente para saber quais eram as intenções de Sigfrid para ambos.

— Sua vidente interpretou erroneamente os sinais. Minha saúde está ótima, e pretendo que continue assim. Ainda não chegou minha hora de me sentar à mesa de banquetes de Odin.

— E, apesar das previsões de minha mãe, eu também voltei inteiro. — A voz de Thrand soou ligeiramente aguda. — Os deuses abençoaram nossa viagem.

— E voltaram antes do previsto. — Sigfrid apertou o elmo entre as mãos. — A vidente deve ter se enganado mesmo. Ela parecia estar tão segura. Espero que perdoe minha preocupação.

— E eu espero que, na próxima vez, você seja mais circunspecto em sua interpretação. — Haakon levou a mão ao cinto que segurava a espada. — Minha propriedade e minhas terras estão bem protegidas por meus homens. Embora suas intenções sem dúvida fossem honradas, estavam equivocadas. Erros trágicos já ocorreram no passado.

— Eu só queria proteger vocês e suas terras. Juro por Odin e Thor. — Sigfrid olhou para o grupo cada vez mais numeroso de guerreiros. — Posso saber onde meu irmão está? Ele acompanhou vocês nessa viagem, apesar dos presságios.

Haakon sentiu o peso da responsabilidade. Precisava encontrar a forma certa de contar a Sigfrid sobre a morte de Bjorn, e fazê-lo de tal maneira que uma luta sangrenta não irrompesse imediatamente entre os dois clãs. Já vira homens demais morrerem naquela temporada. Se eles tivessem se encontrado na corte de Thorkell, pelo menos uma quantidade apropriada de anéis de ouro poderia ser oferecida.

Haakon colocou a mão no ombro de Sigfrid e afastou-se com ele do grupo. Thrand os seguiu, acenando com a cabeça para o irmão e mostrando que sua mão estava no cabo da espada. Haakon inclinou a cabeça, assentindo em silêncio. Ficava satisfeito de ver que Thrand havia amadurecido e se tornado um guerreiro hábil e valente. Não o desonraria pedindo a ele que saísse dali. Palavras ditas naquele momento poderiam afetar o futuro do rapaz.

— A vidente não mentiu — disse Haakon, olhando para o fiorde diante deles. — Ela só interpretou um pouco errado as runas. Houve uma luta ferrenha, e um guerreiro poderoso perdeu a vida.

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Os ombros de Sigfrid se curvaram, e sua fisionomia se transformou em uma expressão de dor. Haakon deu um passo à frente, mas o viking ergueu uma das mãos, e ele parou.

— Diga-me que meu irmão morreu enfrentando o inimigo.— Bjorn morreu lutando. Contra mim, em uma batalha de vida ou morte.— Contra você? Mas...eu não compreendo. Bjorn jamais se voltaria contra o líder

do felag. Ele adorava lutar. Quanto maior a batalha, melhor. Ele não almejava ser líder. E certamente você não está insinuando que meu irmão quebrou seu juramento.

— Bjorn foi dominado pela loucura — interrompeu Thrand, dando um passo à frente. — Desculpe-me, Sigfrid, mas acho que você precisa saber a verdade, e meu irmão pode pôr panos quentes para amenizar seu sofrimento. Fazia algum tempo que ninguém via Bjorn, e Haakon foi procurá-lo. Estávamos ateando fogo nas instalações do mosteiro, e Haakon queria se certificar de que Bjorn estava bem. Você sabe da predição mais antiga de que Bjorn morreria pelo fogo.

Sigfrid assentiu e cofiou a barba.— Continue.— Não há muito para contar. Bjorn estava em transe e não reconheceu Haakon.

Eles lutaram e Bjorn perdeu. Foi uma fatalidade.O viking pareceu envelhecer alguns anos em segundos. Ele balançou a cabeça.— Mas a vidente disse que...— A vidente se enganou, Sigfrid. — Haakon fez um gesto com a mão,

interrompendo-o. — A verdade é que Bjorn era mortal, tanto quanto você e eu. Não tenho dúvida de que as valquírias o resgataram e que ele está agora sentado à direita de Odin, em Valhalla.

— Assim espero — murmurou Sigfrid, desolado.Ele enxugou uma lágrima e voltou a contemplar o mar. Uma gaivota piou,

rompendo o silêncio. Haakon deu a ele o tempo de que precisava. Perder um irmão era um golpe terrível. Ele sabia como Bjorn e Sigfrid eram unidos. A última coisa que Bjorn fizera antes de partir fora enviar uma mensagem ao irmão.

— Bjorn era um irmão exemplar — disse Sigfrid. — Honesto, leal. Era um homem forte e saudável. Tínhamos grandes expectativas para essa viagem. Nossa colheita não foi boa nos últimos três anos.

— Nós queimamos o corpo dele, mas eu guardei o escudo e os braceletes, como é o costume.

— E a compensação?— Ainda é muito cedo para falar sobre isso. — Haakon passou um braço sobre os

ombros de Sigfrid. — Thorkell irá determinar o valor. Vamos entrar e repartir um pão. Veja, Guthrun está vindo recepcioná-lo.

Ele gesticulou na direção de Guthrun, que se aproximava trazendo um chifre de hidromel. As outras mulheres da casa vinham em séquito atrás dela, cada uma carregando um chifre. Annis vinha por último e, ao contrário das outras mulheres, não usava lenço na cabeça erguida, deixando os cabelos soltos ao vento. Haakon lembrou-se da sensação daqueles cabelos em suas mãos e surpreendeu-se com aquela forte reação à simples visão dela. Estava parecendo um rapazinho de coração partido.

— E quem é a moça que vem ali atrás?— indagou Sigfrid. — Ela não parece ser de Viken.

— É uma nobre da Nortúmbria que Haakon capturou — respondeu Thrand.— Haakon espera receber um bom resgate por ela e pelos monges.

— Quantas você trouxe? — Sigfrid passou a língua pelos lábios e esfregou as mãos, como se tivesse visto uma cabeça de gado valiosa. — Graciosas as mulheres da Nortúmbria, não? Quanto você quer por ela? Ela parece ser muito interessante.

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— Não havia outras mulheres nobres na ilha — retrucou Haakon, forçando-se a falar em tom indiferente, embora sentisse uma onda de raiva crescer em seu íntimo. — E ela não está à venda.

— Eu imaginei que um punhado de prata nas mãos valesse mais do que uma promessa de ouro — disse Sigfrid com olhar astuto.

— Ela não está à venda e está sob minha proteção. Pode avisar seus homens.— Sua palavra é lei aqui. — Sigfrid fez uma mesura, mas o sarcasmo era evidente

em sua atitude. — Mas ela é uma tentação. Se mudar de ideia...— Você é bem-vindo aqui, Sigfrid, e merecedor da minha hospitalidade. Eu lhe

asseguro que seu irmão foi tratado com todas as honras devidas a um membro do felag.Sigfrid aceitou o chifre de hidromel das mãos de Guthrun, que sorriu com os lábios

fechados.— Não recuso sua hospitalidade. Vamos ficar algum tempo para descansar e nos

abastecer de água. Mas eu gostaria de saber sobre suas explorações.— Será uma honra se aceitarem nosso convite para se juntarem a nós nas

comemorações. Temos muito a celebrar. — Haakon segurou o braço de Thrand e baixou a voz. — Quero que você e os outros do felag se controlem. Relevem qualquer provocação. Não quero nenhum tipo de confusão.

— Entendi. — Thrand assentiu brevemente com a cabeça. — Sigfrid está querendo algo. Ele não esperava encontrar você aqui. Não acredito nessa história de vidente. Ele veio aqui com alguma coisa em mente. Conheço Sigfrid faz tempo. Ele tem algum plano.

— E eu pretendo dar um jeito para que ele vá embora sem conseguir.

O VENTO fez a sobreveste de Annis farfalhar e enrolar-se em suas pernas, expondo os tornozelos. Ela havia ficado ali o máximo de tempo possível, depois que as outras mulheres voltaram para dentro do salão com os recém-chegados. O líder deles lembrava um pouco o homem-fera que ela matara, com mãos tão grandes que poderiam esmagar um crânio. Ela havia lutado contra o medo, tinha feito questão de manter-se altiva, mas o mero pensamento de voltar para o salão com aqueles homens a apavorava.

— Annis. — Dedos firmes seguraram seu cotovelo, e ela virou-se. A brisa despenteava o cabelo de Haakon, que a fitava com determinação.

A respiração dela ficou suspensa por alguns segundos.— Haakon — murmurou por fim.— Os homens que chegaram são do clã de Bjorn.— Eu os achei parecidos com ele. — Suas mãos tinham tremido quando ela

oferecera o chifre de hidromel, mas isso ela não confessaria. A imagem de Bjorn desabando no chão veio à sua lembrança. Annis tinha certeza de que aqueles homens sabiam quem o havia matado, pela expressão em seus olhos.

— Eu contei a Sigfrid sobre a morte do irmão dele, e como aconteceu. Contei a mesma história que estou contando a todos.

— Mas...— Você vai ficar de boca fechada se tem amor à sua vida, Annis. Saiba que você

está sob minha proteção.— Sua prisioneira, você quer dizer.— Há coisas piores do que ser minha prisioneira, Annis.Um calafrio percorreu o corpo dela. Haakon soltou seu cotovelo e ela cambaleou

para trás, segurando o braço com a outra mão.— Vou entrar agora.— E Annis, roupa branca é o que mais se destaca em meio ao arvoredo.Ela engoliu em seco e virou-se, trêmula. Ele a tinha visto! Sabia que ela o ficara

espiando no lago, mas não dissera nada, até agora. Um arrepio a percorreu. O que ela

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teria feito se ele tivesse chegado perto dela, naquela ocasião? Teria se derretido em seus braços e se entregado?

— Preciso voltar para a cozinha.— Seria sensato, Annis, ficar com as outras.— Era essa a minha intenção.— É gratificante ver que você consegue aprender.ANNIS TENTOU se concentrar em seu fuso. Ela havia se reunido às outras mulheres

no salão nobre depois do confronto com Haakon. Não precisava de mais nada além da advertência velada que ele lhe fizera. Havia vários outros guerreiros no salão, jogando dados em um jogo que ela reconhecia vagamente. Os olhares inexpressivos dos homens do outro clã a deixavam apavorada. Ela inclinou a cabeça e tentou se concentrar em fiar.

— Você roubou! — gritou Thrand, levantando-se. — Era a minha vez, você roubou!O guerreiro Bjornson também se pôs de pé, e os dois foram para o chão,

atracados. Annis ficou olhando, horrorizada, enquanto eles rolavam na direção do fogo. Queria gritar, mas seus músculos pareciam paralisados.

Ouviu-se um chiado e o cheiro de queimado impregnou o ar quando a dupla alcançou o fogo.

— Façam alguma coisa!Um outro guerreiro se aproximou e apartou os dois.— Vou pegar manteiga — avisou Ingrid, correndo para a cozinha.— Não, melhor o unguento! — exclamou Annis, segurando a manga de Ingrid. — A

manteiga ajuda a cicatrizar, mas o unguento hidrata a pele. Já usei para queimaduras, em casa. Vou buscar.

As duas hesitaram e pararam, enquanto Tove e Guthrun choravam alto.— Tenho medo da cicatriz que pode ficar. — Ingrid levou a mão ao rosto. — Que

cheiro horrível. Façam alguma coisa, rápido!— Vai ser preciso algo mais forte que manteiga para evitar a cicatriz — disse

alguém.Annis não esperou mais nem um segundo; saiu correndo do salão para ir buscar o

unguento. Gritos e lamúrias ecoavam no salão, e um dos bancos foi virado. Tove e Guthrun cobriram o rosto com suas sobrevestes, e um grupo de homens segurava o guerreiro Bjornson, enquanto outro grupo se debruçava sobre o corpo prostrado de Thrand.

Annis voltou e foi direto até onde Thrand estava, deitado no chão. Metade do rosto dele estava em carne viva, e um olho estava fechado. Ela abriu caminho por entre os homens e ajoelhou-se ao lado dele.

— Com licença, por favor. Deixe-me ver se posso ajudar.— O que está acontecendo aqui? — exigiu Haakon, atravessando o salão a passos

largos. — Qual o motivo dessa gritaria? Eu escutei do fiorde, onde estava me despedindo de Vikar e de Ivar. Vocês estão fazendo mais barulho do que uma briga de garanhões.

— Thrand se desentendeu com um dos rapazes do clã Bjorn por causa do tafl. Ele pegou o rei de Thrand, mas era a vez de Thrand jogar. O Bjornson roubou! — disse um dos guerreiros, enquanto Thrand tentava se sentar.

Haakon franziu a testa ao ver o irmão. Thrand tinha sorte de estar consciente. Ele já tinha visto guerreiros morrerem em consequência de queimaduras daquele grau. O máximo que ele podia esperar era que Thrand continuasse enxergando de um olho, pelo menos. Os dias dele como guerreiro provavelmente estavam acabados. Era coincidência demais. Sigfrid tinha planejado aquela briga. Mas por quê?

O outro guerreiro se debatia, tentando livrar-se das mãos que o seguravam, chamando Thrand de mentiroso e de ladrão, xingando e praguejando contra tudo e contra todos.

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— Chega! — vociferou Haakon, e o salão inteiro ficou em silêncio, exceto pelos soluços de Guthrun. — Levem-no para Sigfrid. Ele é quem deve lidar com seus homens. Por causa dessa briga infantil, um homem está ferido. — Ele encarou o guerreiro briguento. — É bom você rezar para que meu irmão se recupere!

O homem foi levado, rosnando e resmungando sem parar.Haakon voltou-se para Thrand.— Tenho lembrança de ter lhe dito para se controlar e evitar tumulto.— Você disse, mas que mal poderia haver em um jogo de tafl, ainda mais depois

de tudo pelo que passamos? — Thrand tentou sorrir, mas tudo que conseguiu foi fazer uma careta, já que somente metade de seu rosto se movia. Um dos olhos continuava fechado, e o cabelo estava chamuscado daquele lado da cabeça.

— Não é o jogo, é o seu pavio curto, rapaz! — Haakon colocou a mão o ombro do irmão. — Na próxima vez, escute o meu conselho, está bem? Eu não falo à toa, Thrand.

Thrand gemeu e deitou-se novamente, cobrindo o rosto com as mãos como se quisesse segurar a pele no lugar.

— Ahh, tudo o que eu quero agora é me livrar dessa dor. — choramingou.— Eu tenho algo que acho que pode ajudar. Já vi fazer um bom efeito várias vezes,

lá em Birdoswald.Haakon olhou para baixo e viu Annis agachada ao lado de Thrand, segurando um

pequeno frasco. Comoveu-o vê-la ali, ansiosa para ajudar, mas ele reprimiu a emoção ao ver vários outros homens de Sigfrid rodeando a cena do acidente. Não podia se arriscar a deixar que Sigfrid soubesse que ele alimentava algum sentimento pela moça.

— Por que está aqui, Annis? Não tem o suficiente com que se ocupar na cozinha?— Eu tenho um pouco de experiência com esses ferimentos. É uma habilidade que

minha avó me ensinou. Ela aprendeu com a avó dela, que era celta.Annis afastou as mãos de Thrand do rosto e examinou os ferimentos. Eram graves,

mas ela já vira piores no ano anterior, quando a cozinha pegara fogo e cozinheiro de Selwyn se queimara tentando salvar seu precioso estoque de sal. Não queria pensar no modo ríspido como Haakon falara com ela, tão diferente de quando haviam conversado perto do lago. Tinha de se concentrar no problema mais imediato, que era salvar Thrand de um dano permanente. E ela podia fazer isso. O cozinheiro havia se recuperado com apenas algumas cicatrizes quase invisíveis no rosto e nas mãos. — Este unguento já realizou maravilhas no passado. Não vejo razão para não dar resultado agora.

Annis mordeu o lábio e esperou que Haakon dissesse alguma coisa. Ela podia não gostar de Thrand, mas nem por isso iria deixá-lo naquele sofrimento. E, acima de tudo, queria usar sua habilidade. Orgulhava-se de seu talento, mesmo que fosse para curar um viking.

— Ele vai precisar de algo mais?— Vai precisar de repouso por alguns dias, até que a pele comece a cicatrizar. O

unguento vai ajudar bastante, depois vou passar uma camada de mel e cobrir com um tecido de linho. É possível que ele fique com algumas cicatrizes. — Annis tocou gentilmente alguns pontos do rosto de Thrand com a ponta dos dedos. Tinha de pensar com calma e cuidado. Lembrava-se de sua avó sempre dizer que era muito fácil errar quando se entrava em pânico. — Também seria bom ele beber um pouco de hidromel, para aliviar a dor.

Thrand gemeu alto.— Meu rosto! Meu rosto! Vou ficar deformado!— As mulheres adoram um guerreiro ferido, Thrand. Um rosto marcado faz parte

do charme. Não é, Annis?— Sim, é verdade. — Annis tentou falar com naturalidade, mas tudo em que

conseguia pensar era nas intrincadas cicatrizes nas costas de Haakon. Ela virou-se para Thrand. — Por favor, deixe-me passar o unguento. Vai arder um pouco, mas vai melhorar.

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— Não é hora de brincadeiras, irmão. Estou sentindo dor.— Às vezes é bom escutar os outros, para variar, Thrand. — Haakon sinalizou para

que Annis começasse o procedimento. — Muito bem, Annis, vou seguir seus conselhos. Mas você será a responsável pelo que acontecer com ele, seja o melhor ou o pior.

A mão de Annis tremeu ligeiramente quando ela aplicou a primeira camada de unguento.

— O que quer dizer com isso?— Se você tem certeza de que pode curá-lo com isso, espero que assuma a

responsabilidade. Vou dispor a área da despensa da cozinha para você cuidar dele. É mais privativo do que aqui. Quero que meu irmão se recupere logo.

— Será ótimo. — Annis continuou espalhando o unguento, com movimentos suaves, porém firmes. — Isto aqui é bem melhor que manteiga.

Thrand soltou um gemido e fechou os olhos, deitado no chão de terra batida.Haakon ficou ali parado, com as pernas afastadas, observando Annis. Os cabelos

dela ondulavam em volta do pescoço, realçando as formas suaves. Ela era uma mulher determinada, tinha de reconhecer isso. Não demonstrava hesitação em suas palavras e ações, e Haakon sentia que sua admiração por ela crescia cada vez mais. Ela era diferente de qualquer outra mulher que ele conhecera. E ele não sabia dizer se isso era bom ou ruim.

— Haakon, o que você está fazendo? — perguntou Guthrun com aspereza, segurando o cotovelo dele e baixando a voz para um sussurro estridente. — Eu tenho condições de cuidar do meu filho. Vou chamar a vidente. Ela pode ler os presságios e dizer o que precisa ser feito. Qual a melhor forma de apaziguar os deuses.

— Pode chamar. Enquanto isso, deixe a moça ajudar. O método dela mostra bom senso, algo que até agora não tinha aparecido desde que essa confusão começou. Não temos nenhuma outra curandeira por aqui.

— Eu sabia que você era um bruto insensível! — Guthrun enxugou os olhos com a manga do vestido. — Você não tem consideração pelos sentimentos de uma mãe? Eu não podia imaginar que isso iria acontecer quando sugeri que jogassem tafl. Um jogo de tabuleiro! Eu queria evitar problemas, não causá-los.

Haakon olhou para a outra extremidade do salão; os homens de Sigfrid e alguns outros, do felag, perambulavam por ali. Antes a atmosfera no salão era de alegria, mas agora havia algo sinistro no ar. Se ele não tomasse cuidado, uma batalha poderia irromper a qualquer momento. Incomodava-o o fato de o guerreiro de Sigfrid ter implicado justamente com seu irmão. A ofensa era clara e inequívoca.

Quanto tempo levaria até que acontecesse algo que ele não poderia ignorar? Quanto tempo demoraria para que ele fosse diretamente atacado? Ele voltou a olhar para Annis e seus cabelos levemente encaracolados. Ou será que tentariam atingir outro alvo? Forçá-lo a defender Annis, por exemplo, e depois acusá-lo de usar de força sem motivo. Ele deveria ter previsto aquela situação. Ingenuamente, subestimara Sigfrid.

— Você vai continuar recepcionando nossos visitantes. Não quero que digam que não somos hospitaleiros. — Então Haakon suavizou o tom de voz, reparando na dor estampada no rosto da madrasta. Ela parecia genuinamente abalada, mas ele não conseguia se livrar da sensação de que ela tinha algo a ver com a inesperada chegada de Sigfrid. Por outro lado, ele não tinha dúvida do amor de Guthrun por Thrand. Ela jamais colocaria o filho deliberadamente em perigo. — Não há muito que você possa fazer aqui, Guthrun, chorando e lamentando. Se houver alguma novidade, eu aviso você.

Guthrun olhou para o grupo de guerreiros do outro lado do salão e de volta para seu filho, claramente dividida entre o amor de mãe e o dever de anfitriã.

— Pode ir, mãe. É só uma queimadura. Já está melhorando, com esse unguento.

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— Está bem, mas se alguma coisa acontecer com meu filho. — Guthrun enterrou os dedos no braço de Haakon e puxou-o, fazendo-o se inclinar para que ela falasse em seu ouvido — ... vou responsabilizar essa bruxa. Vou exigir o direito de puni-la.

— Não vai acontecer nada com ele, Guthrun, prometo. — Haakon retirou os dedos dela de sua manga, um por um.

— Você trouxe meu filho de volta são e salvo, com uma boa quantidade de ouro, e você governa este lugar. — Ela retorceu o tecido da sobreveste entre as mãos. — O que uma mulher como eu pode fazer? Terei de confiar em você.

— Exatamente.Annis viu o restante do grupo começar a se afastar. O som de vozes foi se

distanciando aos poucos, e ela espalhou mais unguento no rosto de Thrand, concentrando-se em amaciar a pele, sem olhar na direção de Haakon.

— Você sabe como foi que essa briga começou? — perguntou ele.— Foi tudo muito rápido. Quando ouvi as vozes alteradas, eles já estavam rolando

no chão.— Meu irmão precisa aprender a se controlar — disse Haakon, em tom cauteloso.Annis terminou de passar o unguento e sentou-se nos calcanhares.— Poderia ter sido bem pior. Se fosse um pouquinho mais para a direita, ele teria

perdido o olho. Mas, do jeito que foi, acho que ele vai ficar bem.— Quero que você faça companhia a ele. — Haakon colocou a mão sobre o ombro

dela. — Assim, vocês dois ficarão em segurança.— Segurança? — Annis levou a mão ao pescoço. — Mas. ninguém me ameaçou.— Não estou totalmente convencido de que isso foi fortuito, Annis, e quero que

alguém fique de olho em Thrand. Sigfrid ficou encantado com você e fez duas ofertas, aumentando o valor a cada vez.

Annis prendeu a respiração. Não queria chorar, recusava-se a chorar. Haakon olhava para ela com uma sobrancelha erguida, esperando uma resposta.

O que ele queria que ela dissesse? Que concordava em ser concubina daquele brutamonte desgrenhado? Ou ele queria que ela fosse sincera e dissesse que ansiava pelo toque dele, Haakon? Que queria, contra todo o bom senso do mundo, sentir os lábios dele nos seus? Ela não podia admitir isso.

Annis limpou as mãos no avental e levantou-se.— Você disse que enviou uma mensagem a Carlos Magno. — Ela forçou a voz a

soar calma e pausada.— Mandei. — Haakon fez uma mesura. — E eu disse isso a Sigfrid. Não posso

considerar a oferta dele até saber quanto sua família está disposta a pagar pelo seu resgate.

De alguma forma, as palavras dele não a fizeram sentir-se melhor. Annis engoliu em seco. Ultimamente, parecia que ela estava à mercê de um destino inclemente.

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Capítulo 7

— Um de seus homens atacou meu irmão — disse Haakon sem preâmbulos, quando Sigfrid foi se sentar ao seu lado perto do lago.

Floki e os outros dois cães levantaram a cabeça. Floki deu um rosnado baixo, mas Haakon fez um sinal para que ele ficasse quieto. O cachorro obedeceu e deitou-se com o focinho sobre as patas. Uma brisa suave e tépida soprava, sem chegar a agitar a superfície do lago. As águas plácidas pareciam encobrir as profundezas traiçoeiras do lago, como um mau agouro. Mas talvez fosse só impressão.

Haakon convocara Sigfrid para aquele encontro. Preferia falar com ele ali a confrontá-lo no salão, onde os homens se sentiriam no dever de tomar partido e os ânimos poderiam se exaltar. Na medida do possível, ele queria evitar violência. Homens mortos não tinham serventia alguma.

— Eu soube. — Sigfrid parou diante de Haakon com as pernas afastadas e flexionando as mãos gigantes, como se procurasse um pescoço para torcer. — Muito desagradável.

— Ele abusou da minha hospitalidade.— E o que você queria que eu fizesse?— retrucou Sigfrid, com o rosto vermelho e

as mãos gesticulando em uma demonstração de irritação. — Eu estava com você no fiorde, dando adeus a Vikar e Ivar. Que culpa eu tenho se um dos meus homens se enfureceu por ser chamado de ladrão? Certamente, Thrand também foi responsável. Ele poderia ter medido suas palavras. Mas ele é muito jovem. A sabedoria vem com a maturidade.

— Seu guerreiro segurou o rosto de meu irmão no fogo, causando uma queimadura grave. Ele vai ficar marcado para o resto da vida. — Haakon atirou um pedregulho no lago e ficou observando a água se agitar em círculos.

— Ele se exaltou. Meu irmão está morto, e essa ferida também não vai cicatrizar dentro de mim. Eu diria que houve culpa dos dois lados. Foi um acidente.

Sigfrid parecia um galo pronto para a briga, mas Haakon não pretendia dar ensejo para isso. Não era mais um rapaz de 20 anos que tinha de provar algo para os outros e para si mesmo. Aprendera do jeito mais difícil. Precisava ter paciência e esperar o momento certo.

— Eu compreendo, mas não há como negar o fato de que um de seus homens feriu o irmão de um jarl. Thrand poderia ter perdido a visão. Eu espero uma compensação. — Haakon atirou outra pedra na água.

— Eu soube que sua concubina está cuidando dele, com muito carinho. Certamente ela terá de pagar se Thrand morrer.

— Isso é assunto meu. E ela é uma refém valiosa, não é concubina.— Peço desculpas pelo equívoco. — Um leve sorriso curvou os lábios de Sigfrid.Haakon respirou fundo para não perder o controle, mas sabia que Sigfrid não era

tolo e que enxergava longe. E agora Annis poderia ser envolvida na teia que o homem estava tecendo. Depois do incidente no salão, Haakon sabia que as intenções de Sigfrid estavam longe de ser honradas.

— Estamos discutindo o ato que causou sérios danos ao meu irmão.

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— Como quiser. — Sigfrid inclinou a cabeça. — Mas meu guerreiro precisa de tempo para se recompor. A honra dele foi insultada. Aliás, pelo que ele me contou, a honra de todo o clã. Isso deve ser levado em consideração.

— Receio que a dor pela perda de seu irmão esteja sobrepujando seu senso natural de cautela, Sigfrid. — Haakon jogou a terceira pedra no lago e virou-se para o outro viking. Aquele era o momento do impasse. ou Sigfrid o desafiaria abertamente, ou partiria em paz. — Vocês estão em desvantagem, Sigfrid. Nós somos muito mais numerosos. Mesmo com a partida de Vikar e Ivar. Meus homens são leais a mim. Navegamos juntos por esses mares e conquistamos uma grande quantidade de ouro. Sua família já não teve perdas suficientes? A esposa e as concubinas de Bjorn têm o direito de ser informadas de sua morte. Ele tem um filho pequeno para herdar seus bens.

Haakon esperou. Do outro lado do lago, um pássaro piou longamente. Qual seria a decisão de Sigfrid? Será que ele tinha noção de que um ataque estava fadado ao fracasso? Ou ele não resistiria a uma luta?

Sigfrid piscou, pensativo. Em seguida também pegou um pedrisco e jogou-o na água.

— Você tem razão. Hilde precisa saber. Temos de tomar providências para uma cerimônia fúnebre, mesmo que simbólica. E o vento está favorável. Lamento não poder ficar para as comemorações desta noite. Transmita meu pedido de desculpas para sua adorável madrasta.

— Thorkell irá resolver essa questão entre nós.— Vou esperar para ver o que ele diz antes de definir meu curso de ação. Talvez

ele precise convocar os nobres de Storting para ajudá-lo a decidir. — Sigfrid bateu os punhos um contra o outro e ergueu o queixo.

— Vai pedir a ele que reúna os jarls?— Vou pensar. Ainda não decidi nada. Tenho de prantear a morte de meu irmão

primeiro.— A decisão é sua. Conto que, quando chegar a hora, você fará a escolha mais

prudente, como fez até agora. — Haakon levou a mão ao cinto que segurava a espada, para que Sigfrid não tivesse nenhuma dúvida. Ele estava preparado para usar a força para defender o que era seu de direito.

— Meus homens e eu partiremos em paz. — Sigfrid enfiou os polegares no cinto. — Mas a questão entre nós ainda não está concluída, Haakon Haroldson.

Haakon inclinou a cabeça.— Espero que a paz perdure quando voltarmos a nos encontrar.

— COMO VAI o paciente? Está obedecendo às suas ordens?Annis parou e colocou de lado a faca que estava usando para picar ervas. Uma

onda de alegria a invadiu, mas logo em seguida repreendeu-se. Tinha de parar de ver castelos nas nuvens; Haakon não estava ali para vê-la, e sim para ver o irmão.

— Finalmente ele dormiu. Espero que durma a maior parte da noite.— Ele vai se recuperar? Totalmente? Meu irmão é muito jovem, um guerreiro

promissor.— Esse tipo de coisa leva tempo. — Annis olhou rapidamente para cima e deparou

com toda a imponência de Haakon em seu traje de gala. Como na véspera, ele usava uma túnica ricamente bordada e uma capa. O broche representando um trevo enfatizava a largura de seus ombros. Involuntariamente, ela se lembrou de como era o corpo dele nu e sem adornos, quando o vira sair do lago.

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Annis apressou-se a fitar as próprias mãos. Tinha jurado para si mesma que não pensaria mais nisso. Mas, ao contrário do que ela esperava, seu sentimento por Haakon só aumentava, em vez de diminuir.

— Se Deus quiser, o rosto dele não vai ficar tão marcado, como minha madrasta tanto teme.

— Eu acredito que ele se defendeu valentemente do pior — disse Annis, forçando-se a focar o pensamento em Thrand em vez de nos ombros de Haakon. — Ingrid contou que parecia que o outro rapaz estava deliberadamente tentando empurrar o rosto de Thrand para as brasas. Mas pode ter sido impressão dela, claro. Em horas como essa as pessoas ficam atordoadas, e podem acabar vendo coisas que não existem.

— Eu sei.Annis esperava que Haakon dissesse qualquer coisa, algumas palavras amenas e

reconfortantes, e fosse embora, mas ele continuou ali parado ao pé da mesa, olhando para ela em silêncio. Ele tinha nas mãos um tabuleiro de jogo com intrincadas peças esculpidas em pedra dispostas em cima, e havia um ar de indagação em seu rosto, quase como se ele esperasse que ela perguntasse alguma coisa ou o convidasse para jogar.

Seu coração acelerou, e ela pressionou as mãos contra a superfície da mesa. Aquilo era concreto, sólido, não mais um de seus devaneios. Ela precisava assumir o controle da situação, em vez de se afogar nas profundezas daqueles olhos azuis. Tinha de conservar seu amor-próprio. Aelfric estava certo, ela cedera com muita facilidade ao desejo quando Haakon a beijara no salão. Agora ela conseguia ver isso.

— Eu...achei que sua presença era aguardada no salão. — Annis sinalizou com a cabeça na direção da porta, mas Haakon ignorou a insinuação.

— Os bardos estão recitando poesias sobre Thor e sobre como o martelo dele foi roubado. Já ouvi a história incontáveis vezes, mas Guthrun quis ouvir de novo. Ela está lá, derramando lágrimas por causa de Thrand. Acredito que ela seria capaz de arrancar o coração de Sigfrid, se pudesse. Foi bom ele ter ido embora.

— Você decidiu se retirar do salão? — Annis inclinou a cabeça para o lado.— Depois dos brindes e alianças de paz, posso fazer o que bem entender. —

Haakon deu de ombros. — Meus homens não precisam me ver para saber que esta é a minha casa e que devo ser respeitado. Eu queria ficar um tempo sozinho.

— Como você fez na outra noite — lembrou Annis, e logo em seguida se arrependeu de ter falado, quando uma familiar onda de calor a envolveu. Podia dar a impressão de que ela queria que se repetisse, e não era verdade. De jeito nenhum.

Os olhos de Haakon se iluminaram.— Eu estava pensando em jogar uma partida de tafl. Ajuda a focar minha mente.

Preciso clarear as ideias e analisar essa visita inesperada de Sigfrid.— Por que ele veio de navio? Ele pretendia invadir? É isso que você está

pensando?Annis imaginou que ele estava olhando para ela com um respeito renovado.— Não viajamos de navio apenas para invadir. — Haakon riu baixinho. — Toda a

nossa comunicação é feita pelo mar. Nossa terra é abençoada com fiordes e uma orla extensa.

— Mas eu vi cavalos, com as crinas cor de palha.— Eu uso os cavalos para caçar e para viagens curtas. O mar é a nossa estrada.

Nos limites da fazenda, há florestas impenetráveis e montanhas altas e solitárias, onde vivem duendes e outras entidades. Ouvimos contar histórias de pessoas que foram para lá e nunca retornaram.

— Você poderia ser um bardo, contando essas histórias. Duendes. — Annis riu, divertida, mas um arrepio a percorreu. Não eram os duendes que a preocupavam, mas os ursos e os lobos. Seu pai fora ferido em um confronto com um lobo. Os ferimentos demoraram anos para sarar, e fora nessa ocasião que ela descobrira seu dom.

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— Eu lhe agradeço, embora talvez você não tenha noção do elogio que me fez. Quando eu era menino, eu costumava ficar acordado de noite, imaginando, criando histórias na minha cabeça. Isso me ajudava a não me sentir tão sozinho na corte de Carlos Magno.

— Haakon fez uma mesura. — Mas minhas responsabilidades me levaram em outra direção.

Annis tentou se concentrar em misturar mais uma porção de unguento, mas Haakon continuou olhando fixamente para ela, deixando-a inquieta. Era fácil ficar com raiva dele quando ele era o guerreiro, mas quando ele se dirigia a ela naquele estado de espírito amigável, como se fossem iguais, ela se sentia perigosamente atraída.

Ela queria que ele ficasse. Queria saber mais sobre Haakon, sobre o seu passado. A proximidade dele e o hidromel que ela havia bebido começaram a fazer efeito, provocando uma sensação de leveza e entorpecimento.

Haakon assentiu com a cabeça, mas não se moveu. Também não parecia desapontado. Colocou o tabuleiro sobre a mesa.

— Vou encontrar outro parceiro para o jogo, já que Thrand está dormindo.O coração de Annis acelerou ainda mais, e a sensação de leveza era cada vez

maior. Ela imaginou se o tafl em Viken seria igual ao que se jogava na Nortúmbria. Lá, era um jogo de tabuleiro em que o oponente tentava capturar o rei do outro jogador. Seu pai às vezes o chamava de “Raposa e Gansos”. Ela respirou fundo.

— Não sei como é esse jogo, mas quando meu pai era vivo eu às vezes jogava com ele a nossa versão de tafl. Ou então jogávamos Trilha.

— Se eu arrumar as peças, você vai entender o jogo. — Haakon começou a explicar as regras e Annis viu que era mesmo muito parecido com o que ela conhecia, enquanto ele separava as peças azuis e brancas.

Eles jogaram a primeira partida em silêncio, e Annis se esforçou para se concentrar mais no jogo do que em Haakon. Rapidamente, ela conseguiu tomar várias fichas dele. Haakon arqueou uma sobrancelha e um sorriso surgiu em seus lábios.

— Você é uma adversária mais difícil do que eu pensava — disse ele, quando finalmente pegou o rei dela.

— Eu lhe disse que já tinha jogado. É muito parecido com o que jogamos na Nortúmbria. O rei também fica no centro e os vassalos, em volta.

— Estou vendo que tenho de ficar esperto quando jogar com você, valquíria.— Eu também — retrucou Annis, olhando fixamente para as peças no tabuleiro.

Uma onda de calor a percorreu. Ele estava falando do jogo.Com certeza estava falando do jogo.Durante a partida, conforme eles avançavam sem vantagem para nenhum dos

dois, Annis viu-se fazendo de conta que era livre e que eles eram amigos. Imaginou como seria, mas logo descartou o pensamento como sendo pura fantasia. Não havia possibilidade de eles ficarem juntos. Haakon só estava interessado no pagamento de seu resgate, e, se ele não fosse pago, ela seria vendida. Não havia espaço em sua vida para sonhos românticos com Haakon. Ela mordeu o lábio.

— Em que você está pensando, com essa expressão preocupada? — A voz de Haakon interrompeu seu devaneio. — Você pegou essa peça branca três vezes e colocou de volta.

— Ah, desculpe. Estava distraída.Ela moveu uma peça e Haakon fez um ponto. Então ela percebeu uma abertura e

moveu outra peça. Haakon fez sua jogada e caiu na armadilha.— Seu rei é meu, Haakon Haroldson!— Como... como você fez isso? — Haakon olhou para o tabuleiro e de volta para

Annis. Em seguida sorriu. — Isso me serviu de lição!— Qual lição? — perguntou ela baixinho, mais baixinho do que gostaria.

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— Para prestar atenção no jogo em vez de me distrair com lábios rosados e no modo como eles fazem biquinho quando você está concentrada.

O rei caiu da mão de Annis para o chão. Ela inclinou-se para pegá-lo e seus dedos tocaram os de Haakon. Ela retirou a mão depressa, como se tivesse se queimado.

— Agora é você quem está tentando me desconcentrar — disse Annis, fitando-o.Haakon sorriu e levantou-se, indo postar-se atrás dela. Estava tão próximo que ela

podia sentir o calor do corpo dele emanando, como se clamasse por ela. Annis queria encostar nele, abraçá-lo, mas obrigou-se a ficar imóvel, lembrando-se das palavras de Aelfric.

Ela já havia traído seu povo uma vez, ao deixar que Haakon a beijasse. E não tinha intenção de fazer isso novamente.

— Está bem. Eu já vou indo.Annis virou-se e olhou para ele por sobre o ombro.Um músculo se contraiu no maxilar de Haakon e ele deu um passo para trás. Os

olhos azuis brilhavam. Ele estendeu o braço e pousou a mão no ombro dela, puxando a alça da sobreveste.

— Eu não esqueci. Eu me lembro de tudo, de todos os nossos encontros. Pena que não fizemos apostas.

— Prisioneiros podem fazer apostas?Annis tentou disfarçar a tensão na voz. De repente ficou difícil respirar. Ela poderia

ter apostado pela liberdade em troca de seu corpo? E se ela perdesse? Forçou-se a permanecer calada, apesar da enorme tentação de dizer as palavras.

— Depende — murmurou Haakon, segurando uma mecha do cabelo dela, em um gesto extremamente suave, mas que causou um verdadeiro tumulto dentro de Annis.

Ela se sentiu desamparada, conforme toda a determinação a abandonava. Desejava aquele homem. Queria que ele a beijasse novamente.

Um gemido veio do canto onde Thrand estava deitado, e ele se moveu no colchão de palha. Annis apressou-se a ir até ele. Espiou sob as bandagens e sentou-se sobre os calcanhares.

— Ele está agitado. Vai precisar de mais unguento, senão vai começar a coçar o rosto, e isso não vai ajudar em nada.

— Ele precisa de você, mais do que eu. — Haakon colocou a mão no ombro de Annis. — Continuamos nosso jogo em um outro dia. Sei entender um recado.

— Eu não pretendi dar nenhum recado.Os lábios dele se curvaram em um sorriso jovial.— Às vezes eles vêm dos deuses.Agora você precisa cuidar do seu paciente. Achei produtivo jogar tafl com você,

Annis. Na próxima vez, jogaremos com apostas.Annis sentiu um vazio no coração quando ele se virou e saiu, sem olhar para trás.

Ficou ali o olhando desaparecer, relembrando o toque das mãos dele. Em seguida balançou a cabeça, contrariada. Não queria sentir nada de bom por aquele homem. Virou-se para Thrand e concentrou-se em levantar as bandagens, com cuidado para não machucar a pele.

— ANNIS — DISSE Aelfric em latim, entrando na cozinha bem cedo na manhã seguinte, antes que as atividades do dia tivessem começado.

Kisa e Fress se achegaram a ele, que começou a espirrar.— Acabei de saber que ontem à noite você atendeu um dos vikings. Como pôde

fazer isso? Eles são pagãos! Eles até deixam estes seres entrar na casa, e todo mundo sabe que eles são criaturas do demônio. Veja o tamanho deles, não são normais!

Ele estremeceu exageradamente.

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— Ele se feriu e estava sentido dor, Aelfric. — Annis pegou as gatas e tirou-as de perto de Aelfric. Tinha demorado, mas ela conseguira fazer Thrand dormir outra vez. Depois ela cochilara perto da fogueira da cozinha, em vez de ir se deitar. Já tinha decidido que naquele dia não iria até o lago, em parte com medo do que poderia ver e em parte com medo de que Haakon não estivesse lá. Em vez disso, se dividiria entre o serviço na cozinha e os cuidados com Thrand. — Imaginei que você, como monge, soubesse melhor que ninguém que temos o dever de ajudar os que estão sofrendo, independentemente de religião.

A expressão de Aelfric endureceu e ele se empertigou, com ar presunçoso. Ele ergueu a mão e começou a contar nos dedos:

— Ele é um viking. Ajudou a saquear Lindisfarne, sem consideração ou compaixão pelos seus habitantes. Os vikings são animais pagãos, sem ética e com um código diferente de conduta.

— O estilo de vida deles é diferente, sim — concordou Annis, incomodada com a descrição de Haakon como sendo um animal. Ele não era. Era tudo bem mais complicado que isso.

— Você tem rezado com seu crucifixo?— Meu crucifixo? — Annis inclinou a cabeça e olhou para o monge. — Guthrun o

tirou de mim quando chegamos. É um objeto valioso demais para ficar com um refém.Aelfric levou um dedo à lateral do nariz e piscou.— Se você procurar, quem sabe o encontra.— Não tenho tempo para isso, Aelfric.— Annis tirou Kisa de cima da mesa. — Tem muito trabalho a ser feito. E falar em

latim pode levar alguém a pensar que tenho algo a esconder. Fale na nossa língua.Aelfric colocou a mão fria e pegajosa sobre a de Annis, mas continuou a falar em

latim:— Só quero que você não se esqueça de onde veio e por que está aqui.— E você acha que me esqueci? — Ela se levantou e pressionou as palmas das

mãos sobre a mesa. Sabia que Haakon era diferente. Acreditava quando ele dizia que não tivera intenção de saquear Lindisfarne, mas os acontecimentos daquele dia não saíam de sua mente. — Eu me lembro daquele dia a cada vez que respiro. Eu estava lá e sobrevivi. E é por isso que estou aqui, que estamos todos aqui.

Aelfric ficou vermelho e transferiu o peso de um pé para o outro, enquanto ajeitava a túnica.

— É que você deu toda a impressão de...— Impressão — repetiu Annis, com ênfase. — As aparências enganam, Aelfric. —

Ela cruzou os braços. — Assim como você, eu sinto falta da Nortúmbria, a cada segundo. Também gostaria de estar lá, de continuar livre e viver minha vida normalmente. Não tenho inclinação nenhuma para ser prisioneira.

Um brilho estranho iluminou os olhos de Aelfric. Ele inclinou-se para a frente e baixou a voz.

— Eu tenho um plano.— Um plano para quê?Ele fez um sinal para que ela ficasse quieta e olhou por sobre o ombro. Ao

certificar-se de que Thrand dormia, ele continuou:— Escutei dois vikings conversando ontem. O rei deles não sabia de nada sobre os

planos de invasão. Ele pode ficar do nosso lado. É por isso que eles vão para a corte de Carlos Magno.

— Eu não acredito que a invasão tenha sido planejada. — A boca de Annis ficou seca. Não podia ter sido. Ela se lembrava de como Haakon ficara furioso naquele dia. Ele culpava os monges pelo ataque.

O rosto de Aelfric ficou escarlate de raiva, e seus olhos se arregalaram.

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— Quer que eu acredite que esses pagãos gananciosos não nos usaram como ameixas maduras? — disse ele, com voz exaltada. — Aquela história de ir em busca de pagamento foi só uma desculpa!

— Não foi nada disso. Meu tio sempre pagou tudo o que era devido. Ele nunca enganou ninguém. Mas ele não podia confiar cegamente em homens pagãos como os vikings.

As mãos de Annis tremeram quando ela se lembrou da reação violenta do monge. Era inacreditável que Aelfric tivesse sobrevivido àquele primeiro ataque, mas ele devia ter se escondido, confuso e em pânico. Uma atitude covarde, seguida por mais covardia ainda.

— Foi sua família que causou tudo isso.— Não foi! Foram Haakon e seus homens! A culpa é deles! Você não estava na

praia quando eles chegaram, mas eu estava. E foi só pela graça de Deus que eu sobrevivi. Um dos monges caiu em cima de mim e eu fiquei lá deitado, me fingindo de morto. Mais tarde, quando tentei escapar, fui capturado.

Annis virou-se para o fogo e cruzou os braços em volta da cintura, em uma tentativa de se aquecer. Estava irritada com Aelfric. Em sua arrogância, ele tinha tanta culpa pela tragédia quanto os vikings. Ele até podia ter razão no sentido de que eles atacariam de qualquer maneira, mas ela tendia a acreditar em Haakon quando ele dizia que tinham ido até lá em missão de paz, apenas para reaver o ouro que, por direito, lhes pertencia. E ele afirmara que os monges os haviam confrontado, acusando-os de irem roubar, exatamente aquilo de que Aelfric agora se gabava de ter participado.

Ela tentou se lembrar da sequência de eventos. Dois monges tinham avançado e atacado. Se o primo de Aelfric tivesse mantido o controle, será que seu tio, Mildreth e os outros não estariam vivos agora? Ou Haakon e os demais membros do felag teriam atacado de qualquer maneira? Annis não tinha mais certeza de em que queria acreditar.

Depois de respirar fundo várias vezes e de sentir que estava no controle de si mesma, ela voltou-se para Aelfric.

— Eu entendo.— Entende o quê? — retrucou Aelfric, com o rosto vermelho e as narinas dilatadas.

— Não há nada para entender. Os vikings não tinham direito a pagamento algum. Eles são pagãos!

— Mas discutir o que é certo ou errado e o que é direito ou não é não vai nos ajudar em nada. — Annis apertou o avental entre as mãos. Se não tomasse cuidado, sairia do sério e acabaria agredindo Aelfric. Sem dúvida ele tinha uma grande parte de responsabilidade sobre tudo que acontecera.

— Ah, mas você é só uma mulher. — Aelfric fez um gesto de pouco-caso. — Não se pode esperar que compreenda o significado de tudo isso. Precisa ser orientada pelos homens. Acho que seu primeiro marido fracassou nessa parte.

Annis precisou se controlar para não atirar em Aelfric a primeira coisa que visse à sua frente. Afinal, ele era um clérigo. Ela começou a contar em silêncio, mas percebeu que não estava adiantando.

— Talvez você possa me explicar, então. Em palavras simples e básicas, sim.? Que uma mulher consiga entender.

— O rei deles pode ser nosso aliado — disse Aelfric. — Ele não vai querer se indispor com Carlos Magno. Se pudéssemos chegar até ele, seríamos libertados imediatamente. Ele não vai querer que toda a Cristandade se una contra ele.

— E como, exatamente, você pretende conseguir isso, Aelfric? — Annis cruzou os braços, conforme o pouco respeito que ela ainda sentia por aquele rapaz desparecia por completo. — Esqueceu que nenhum de nós sabe pilotar os navios deles?

Aelfric olhou por sobre o ombro e baixou a voz.

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— Não será necessário. Essa quantidade de navios não passa de um ardil da parte deles. A corte do rei fica a poucos dias de viagem, para o sul. Pretendo partir hoje, quando os vikings estiverem entretidos com os jogos e bebedeira. Irei por terra.

— Tem animais selvagens na floresta, e montanhas a transpor. É por isso que os vikings vão pelo mar. Você não vai conseguir, e ainda vai deixar todos os outros em perigo.

— Quem lhe disse isso? Um viking? — Aelfric retorceu os lábios. — Não deve confiar nessa gente, Annis. Irei para o sul, passando entre as montanhas. O caminho é tranquilo, tem uma estrada. Eu vi com meus próprios olhos.

— E até onde vai essa estrada? Será que não acaba logo depois da fazenda vizinha? Ou não vira uma trilha de cervos no meio da floresta?

— Não faço ideia, mas nunca vou saber se não tentar. Você pode ir comigo, se quiser.

— Eu acho esse seu plano arriscado demais. Os outros monges sabem das suas intenções?

— Eles são uns medrosos e acham que Deus e o papa vão resgatá-los sem que tenham de mover um dedo. — Aelfric revirou os olhos. — Estou farto deles.

— Pode ser ruim para os que ficam — observou Annis. Conseguia entender o desejo de Aelfric de escapar, mas ele não deveria se aventurar sozinho. —

Nem todos são iguais a você.— Deus é Pai. — Aelfric segurou-a pelo cotovelo. — E então, vem comigo?— Acho que você está cometendo um grande erro, Aelfric. Não se pode

simplesmente abandonar as pessoas. — Ela puxou o braço e o esfregou. — Eu vou ficar. E, se alguém perguntar, vou dizer que você agiu sozinho.

— Eu deveria ter previsto. — Os olhos dele se estreitaram. — Se você abrir a sua boca, as coisas podem ficar difíceis para você, menina. Eu vou dizer que a ideia foi sua e que você me mandou ir.

Annis prendeu a respiração.— Mas isso é mentira!— É você quem está dizendo que é.— Você quer me ensinar como conduzir minha vida e está disposto a sacrificar

seus irmãos. Nossa associação termina aqui!— Vou rezar por você, irmã, quando voltar para a civilização. Vim aqui esperando

conseguir algo para comer, e tudo que consegui foram palavras ásperas. — Aelfric virou-se e caminhou para a porta com os ombros arqueados.

Annis sentiu um súbito remorso. Ele estava sozinho, em uma terra estrangeira. Ela compreendia o que era ansiar por ficar livre. O plano de Aelfric cairia por terra assim que ele chegasse ao limite da primeira campina. Ele se daria conta da insensatez que estava cometendo, deixando os outros para trás.

— Aelfric! — chamou ela, e ele parou. Em seguida correu até um baú e pegou um filão de pão. — Pegue, leve isto. Você pode precisar. em sua jornada.

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Capítulo 8

Annis abaixou-se e deixou que a água fria do lago passasse por entre seus dedos. Aelfric a irritava profundamente. A última coisa de que ela precisava, ou queria, era preocupar-se com ele. Ficara aliviada quando Ingrid aparecera e dissera que ela parecia estar agitada, sugerindo que ela fosse até o lago para espairecer.

Ela respirou fundo, observando um rolo de fumaça subir da choupana na outra margem. Quem estaria usando a casa de banho? Ela protegeu os olhos do sol com a mão em concha, mas não havia ninguém por ali.

Com um suspiro, tirou os sapatos e enfiou os pés na água.— Eu estava me perguntando quando você viria até aqui outra vez.Annis virou-se para se deparar com Haakon olhando para ela. A camisa de linho se

amoldava ao peito forte, realçando os músculos que ela já sabia que estavam ali. Ela concluiu que ele havia acabado de se vestir, depois de ter nadado no lago.

— Este lago é muito pitoresco e atrativo.Haakon inclinou a cabeça para trás e riu alto.— Nada desconcerta você, Annis?— Algumas coisas — admitiu ela, olhando para dois patinhos que deslizavam

alegremente sobre a água, alheios a todos os problemas do mundo.— Vai me dizer quais são? Ou terei de descobrir?— Você terá de descobrir.— É mesmo? — Ele pousou as mãos nos ombros dela. — Por que veio aqui,

Annis?Ela precisava dizer alguma coisa, pensar em um pretexto que não tivesse a ver

com ele.— Estava quente demais na cozinha. Ingrid está cuidando de Thrand. Não quis

perturbá-los.— Tem razão. Eu não tinha percebido como Ingrid e meu irmão eram próximos.Annis deu de ombros e ficou na ponta dos pés, olhando o lago. Quase podia ver o

vapor emanando do corpo de Haakon.— Por que outro motivo eu viria aqui?— Eu consigo pensar em vários. — Ele sorriu. — Tenho subestimado você, para

desvantagem minha.— Estou dizendo a verdade. Eu estava sufocando na cozinha.

— E agora? Está com calor, ainda? Annis passou a mão pelos cabelos. O que responder? Qualquer coisa que dissesse seria mentira. Sentia muito mais calor perto dele.

— Pelo menos consigo respirar.— Mas continua pouco à vontade.Sem esperar por uma resposta,Haakon a pegou nos braços e entrou no lago.

— Haakon! O que você está fazendo?— Annis esperneou, mas ele continuou avançando dentro do lago. O contato de

seu corpo com aquele tórax largo e musculoso a deixava aturdida. Ela prendeu a respiração ao ver uma gotícula de água escorrer pelo pescoço dele.

— Fique quieta, se não quiser que todos venham ver o que está acontecendo.

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A água estava na altura dos joelhos de Haakon. A barra do vestido de Annis já estava molhada. O que ele pretendia?

— Ponha-me no chão, neste instante!— Quem sou eu para desobedecer ao comando de uma dama.Ele então a soltou, e ela caiu com tudo na água. Seus pés tocaram o fundo do lago

e ela se levantou, cuspindo água e afastando o cabelo de cima dos olhos.— Você fez de propósito!— Você não disse que estava com calor? Eu só quis refrescá-la — disse Haakon,

sem parecer arrependido.— Eu nem sei nadar direito.— Eu teria salvado você, caso se afogasse. — Ele ficou subitamente sério.— O lago não é fundo. Não passa da sua cintura. E você disse que queria se

refrescar do calor.— Refrescar-me é uma coisa, ficar completamente ensopada é outra. — Annis

espalmou as mãos no peito de Haakon e o empurrou. — Você também parece encalorado. Por que não se refresca também?

Ele caiu para trás, esparrinhando água ruidosamente. Mas levantou-se em um piscar de olhos. A água pingava por todo o corpo dele, colando a camisa ao tronco, esculpindo cada músculo, deixando pouco por conta da imaginação, trazendo à lembrança de Annis a visão do outro dia. Os olhos de Haakon escureceram, e ela percebeu, consternada, que seu vestido estava todo transparente.

— Você vai me pagar por isso — disse ele, borrifando água na direção dela.Annis tinha de admitir que era refrescante. Ela começou a rir, divertida, e jogou

água nele também.— Foi você quem começou!— E você deu o troco.— Estou toda ensopada! — Annis abriu os braços, pingando água. — Pareço um

rato afogado.— Você parece. — Haakon deu um passo na direção dela.— Pareço o quê? — A voz de Annis soou estranha aos seus próprios ouvidos.

Nesse momento, ela descobriu que não conseguia se mover. A expressão dos olhos dele estava diferente, refletindo o azul-acinzentado do lago, de maneira tão profunda que ela sentiu que poderia se afogar ali, naqueles olhos.

Haakon estendeu a mão e a puxou para seus braços. Annis sentiu a água fria envolvê-la e em seguida o toque da língua dele contornando sua boca. Gentil, persuasivo. Um tipo de beijo diferente do que haviam trocado na festa. Na festa, Haakon procurara dominá-la, demonstrar sua posse sobre ela; agora não, agora ele a solicitava. Ele segurou-lhe o rosto com as duas mãos conforme os lábios de ambos se uniam.

O beijo tornou-se uma exploração, longa e lenta. Profunda. Intensa. Recuando, avançando e recuando novamente. Fazendo-a querer mais. Annis gemeu baixinho e também levou as mãos ao rosto de Haakon, deslizando-as pela cabeça e pelos ombros dele, agarrando-se a ele, arqueando o corpo, sentindo os seios incharem e os mamilos intumescerem.

Haakon deslizou as mãos pelas costas dela, enlaçou-a pelas nádegas e puxou-a para si. Annis sentiu a rigidez do corpo dele através das roupas molhadas e estremeceu de leve.

Ele levantou a cabeça e afastou os cabelos dela do rosto. O peito dele se expandiu, esticando o tecido da túnica, e a respiração dele ficou ofegante como se ele tivesse atravessado o lago a nado.

— Deveríamos ir para um lugar mais seco.

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— O salão, não. Nem seu quarto. — Annis passou a língua pelos lábios. Eles não podiam voltar para perto das outras pessoas. O que haviam compartilhado era só deles. Mas ele tinha razão, não podiam ficar ali para sempre, se beijando no meio do lago.

Ele balançou a cabeça.— Sei de outro lugar, onde você poderá secar suas roupas.Annis sentiu-se tentada a perguntar de quem era a culpa por ela estar pingando

água, mas as palavras de recusa travaram em sua garganta. Seu corpo ansiava pelo toque das mãos dele. Em silêncio, ela assentiu.

Haakon a pegou no colo novamente e saiu do lago. Dessa vez Annis não se debateu, simplesmente desfrutou a sensação de estar nos braços dele.

Ele abriu a porta da choupana e deixou Annis deslizar por seu corpo até os pés dela tocarem o chão.

— As pedras já estão aquecidas — murmurou ele.O ar quente envolveu Annis. A choupana cheirava a fumaça de madeira e vapor.

Ela apoiou a mão na parede e sentiu o calor. Viu os bancos ao redor do recinto e uma pilha de pedras no centro.

Sua boca ficou seca quando a enormidade do que estava prestes a fazer penetrou sua consciência. Banhos a vapor eram uma prática pagã. Os verdadeiros cristãos os repudiavam. E as mulheres cristãs também não beijavam despudoradamente um homem no meio de um lago. Annis engoliu em seco, sentindo como se um balde de água fria tivesse sido jogado sobre ela. Fizera tantas coisas nos últimos dias que uma mulher direita não faria. Uma mulher direita estaria morta àquela altura. Ela era imoral. Imoral.

Annis recuou, segurando a gola do vestido de linho, que se abrira. Queria encontrar uma justificativa razoável para seu comportamento, mas não conseguia pensar em nenhuma.

Haakon sentiu a hesitação dela. Embora apenas alguns minutos antes ela parecesse disposta a entregar-se incondicionalmente, agora estava claramente relutante, com a expressão atormentada e evitando fitá-lo. O que será que a perturbava?

Ele não iria deixá-la recuar assim. Seu corpo ansiava por ela, com urgência. Ele passara a maior parte da noite pensando nela, depois da partida de tafl. Mas ele queria uma parceira que estivesse disposta.

— Fique comigo — pediu em voz baixa, tocando o ombro dela.— Eu preciso ir. Tem muita coisa para fazer. Preciso ver como Thrand está. —

Annis passou por Haakon, mas ele bloqueou sua passagem, colocando-se entre ela e a porta.

— Você está com medo, é isso?— Eu. — Ela balançou a cabeça, desamparada, e olhou para as mãos. Inocente,

vulnerável e muito, muito desejável.Haakon iria parar com aquele tormento, agora. Não a forçaria, mas mostraria a ela

como podia ser bom. Ele vira, e sentira, a reação dela no lago. Ele a teria possuído ali mesmo, mas não queria dar ensejo para fofocas de criadas entediadas. Sua vida íntima era particular, não um espetáculo para ser assistido por uma plateia.

O desejo estava evidente nos olhos de Annis, por baixo da hesitação. Ele tinha de fazê-la parar de pensar muito. Haakon inclinou a cabeça e deslizou os lábios pelo pescoço delicado. Ela deu um suspiro trêmulo.

— Você vai gostar, Annis.— Eu tenho escolha? — Os olhos dela pareciam duas lagoas escuras, e os lábios

eram carnudos.— Não.

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Ele a segurou com mais firmeza e recapturou-lhe a boca, entreabrindo-lhe os lábios com a língua, até que ela permitiu a erótica invasão, quente, doce, contendo promessas intensas.

Haakon a beijou sem pressa, explorando-lhe a boca, até que, aos poucos, ela começou a relaxar e amolecer em seus braços. Os seios de Annis roçaram o peito dele, e ela suspirou, erguendo os braços e envolvendo-lhe o pescoço.

Ele conseguira.Haakon passou a mão pelo ombro de Annis, apertando gentilmente, moldando o

vestido molhado ao corpo dela.— Você precisa se secar. Não quero que pegue um resfriado.— Você estava certo — murmurou ela, com a voz rouca. — É. diferente. Não era

assim. com meu marido.Haakon puxou o vestido de Annis para cima e tirou-o pela cabeça. Com a outra

mão, segurou firmemente a cintura dela e puxou-a para si. — Não temos pressa, Annis. Você dita o ritmo. Sinta o que está fazendo com meu corpo.

Ela não recuou nem enrijeceu quando Haakon deslizou as mãos pela pele macia e segurou-lhe as nádegas, puxando-a ainda mais contra si.

— Você também está molhado — murmurou ela.— Cada coisa a seu tempo.Ele inclinou a cabeça e começou a provocá-la, tocando a pele de Annis com a

ponta da língua.— O que você está fazendo? — A respiração dela ficou suspensa enquanto a boca

de Haakon ia descendo mais, beijando cada centímetro de seu corpo.— Secando você. Sua pele tem gosto de mel e de flores do campo — murmurou

ele, alcançando um mamilo e lambendo-o.Com a língua, Haakon circulou o mamilo, sugou e circulou-o novamente. Enquanto

isso, o calor crescia dentro de Annis, intoxicando-a com um langor mais potente do que o mais forte hidromel. Ela estremeceu, com sensações novas, sentindo partes do corpo que desconhecia. Seu corpo ansiava por mais. Ela enterrou as mãos nos cabelos de Haakon enquanto ele continuava descendo, deslizando as mãos por suas costas. Os lábios dele chegaram ao seu umbigo. Ela gemeu baixinho quando ele se inclinou e sugou.

As pernas de Annis cederam quando o desejo a avassalou com uma intensidade indescritível. Ela segurou-se à camisa molhada dele, mas sentiu-se sendo erguida e depois gentilmente deitada no chão de madeira. O vapor quente a envolveu, acariciando-lhe a pele.

Haakon ergueu o tronco e tirou a camisa, revelando os músculos do peito. Em seguida tirou a calça e colocou-a sobre as pedras quentes que exalavam nuvens de vapor. Assim, de perto, ele era ainda mais magnífico do que quando Annis o vira de longe, no lago. Uma nesga de claridade passava pela fresta sob a porta, criando um jogo de luz e sombra no peito e nos braços dele, deixando-a fascinada.

Tudo em que ela conseguia pensar era que estava segura nos braços de Haakon. Ele a salvara, duas vezes, e agora se oferecia para levá-la a um paraíso que ela não conhecia. Um lugar aonde, instintivamente, o corpo dela ansiava por ir. Com Haakon. Ela o desejava e deixaria para pensar a respeito daquilo tudo em uma outra hora.

Annis ergueu os braços e tocou a pele tépida. Uma ou outra gotícula de água ainda permanecia ali, e ela recolheu-as com os dedos e levou-as à boca. Tinham um sabor doce, fresco e algo mais, indefinível, que pertencia só a ele.

O que estava acontecendo com Haakon era diferente de tudo que Annis experimentara até então. O marido só se preocupara consigo mesmo. Quando alcançava o auge da satisfação, grunhia e em seguida virava para o lado e adormecia. Annis sabia

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que tinha de haver algo mais que aquilo no ato de amor e sentia-se fracassada, deficiente. Agora percebia que o problema não era com ela, mas com o marido.

Ela segurou o rosto de Haakon e o trouxe para perto do seu, sentindo toda a extensão do corpo dele sobre o seu. A maciez deu lugar à rigidez masculina, de uma maneira que ela nunca sentira antes. Queria usufruir ao máximo aquele momento.

Annis deslizou as mãos pelas costas dele, sentindo um misto de maciez e das cicatrizes das batalhas.

— Haakon.Ele colocou um dedo nos lábios dela.— Shh. Deixe-me mostrar a você como pode ser entre um homem e uma mulher.Mais uma vez, ele traçou uma linha de beijos no corpo de Annis, até alcançar a

penugem macia do baixo-ventre. Ela precisava saber o que viria em seguida. Ele inclinou a cabeça e explorou os recessos escondidos do corpo feminino, enquanto ela arqueava os quadris, em um convite silencioso.

E então Annis se esqueceu de tudo, sentindo apenas o toque da língua de Haakon em sua pele ardente.

O anseio por mais se acumulava dentro dela, ameaçando explodir. Ela segurou os ombros de Haakon, puxando-o para cima, e entreabriu as pernas em um gesto instintivo.

Ele pressionou os lábios abertos em vários pontos do abdômen de Annis e nos seios, e por fim a penetrou devagar, apenas para retroceder em seguida, quase enlouquecendo-a. Ela arqueou mais os quadris, acolhendo-o dentro de si. E então, com uma súbita confiança, Annis começou a se mover, lentamente a princípio, e depois mais rápido. Haakon acompanhou o ritmo dela, enquanto ela enterrava as unhas em seus ombros. Desejava aquele homem com uma intensidade assustadora, queria senti-lo cada vez mais dentro de si, cada vez mais, até que um vagalhão de sensações extraordinárias a engolfou e um grito rouco escapou do mais profundo âmago de seu ser.

HAAKON ERGUEU-SE sobre um cotovelo e olhou para ela. O rosto bonito parecia pálido em contraste com os cabelos castanho-escuros espalhados em volta.

Ele imaginara que uma vez seria suficiente para ele. Mas agora percebia que nem cem, nem mil vezes seriam suficientes. Ao contrário, quanto mais ele tivesse aquela mulher, mais ele iria querê-la.

Não tinha vontade de sair dali. Poderia permanecer assim por horas a fio, mas escutou movimento do lado de fora da choupana. Era o dia de receber os arrendatários de terras, resolver impasses e dar-lhes de comer e de beber. Aquele não era o dia propício para ficar com Annis, por mais que ele quisesse. Haakon tinha responsabilidades. Aquela era a sua terra, o seu povo, a razão pela qual ele desbravava os mares.

Haveria tempo para Annis depois.Haakon beijou-a na testa e levantou-se, um pouco contrafeito. Apressado, vestiu a

calça já seca.— Precisamos ir.Annis piscou e tentou focar a vista na penumbra. Ela parecia confusa, e pareceu

demorar um pouco para se localizar e lembrar-se de quem era.Ela sentou-se e dobrou os joelhos, cobrindo os seios.— Ir.? Aonde?— A manhã já está acabando. — Haakon evitou olhar na direção de Annis,

receando não ter a determinação necessária para afastar-se dela. — Tenho compromissos, assuntos a resolver.

Annis forçou-se a levantar e vestir a roupa. Seu vestido estava seco em algumas partes e úmido em outras, e completamente amarrotado. A enormidade do que acabara

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de acontecer a avassalou. Ela tinha se entregado, e agora Haakon a descartava. Ele não era muito diferente de Selwyn, afinal. A única diferença era que, com Haakon, ela sentira prazer. E agora teria de sair daquela choupana isolada e voltar para a casa principal, com o vestido naquele estado deplorável.

Haakon ficou de costas para ela enquanto ajustava o cinto da túnica.Annis franziu a testa. Pelo menos, ninguém os vira juntos.— O que vai acontecer comigo? — perguntou, dando voz aos seus medos.Haakon parou na soleira da porta.— Não entendi sua pergunta. Vai voltar comigo para o salão? — A voz dele

interrompeu os pensamentos tumultuados de Annis.— Eu posso voltar sozinha. — Ela ergueu o queixo. — Não quero dar motivo para

comentários.Os olhos de Haakon pareciam duas espadas de safira. Os lábios dele se

estreitaram em uma linha fina, mas Annis enfrentou o olhar fulminante. Não tinha intenção nenhuma de tornar-se alvo do rancor de Guthrun e de Tove. O que acontecera ali deveria permanecer em segredo. E ela precisava, por todos os meios, evitar que voltasse a acontecer.

— Então volte logo, ou mandarei meus homens buscá-la.Haakon saiu da choupana sem olhar para trás. Annis ainda ficou alguns minutos,

fazendo uma trança no cabelo e esticando o vestido o máximo que podia. Então ela saiu da pequena construção de madeira, fechando a porta sem fazer barulho.

O que havia acontecido ali não mudava nada, ela repetia para si mesma, tentando convencer-se. Seu coração, entretanto, teimava em dizer que Haakon mudara tudo em sua vida.

Capítulo 9

— Sumiu! — exclamou Guthrun com a voz esganiçada, assustando as gatas, que correram para se esconder. — Desapareceu sem deixar rastro!

Annis parou com a mão na maçaneta da porta da cozinha. Ela conseguira achar um outro vestido, mais velho, trocara de roupa e voltara para a cozinha. Tove e Ingrid olharam para ela com ar de indagação, e por um momento ela imaginou se seu encontro com Haakon estaria estampado em seu rosto.

— O que aconteceu? — perguntou ela, enquanto Guthrun andava de um lado para o outro, na cozinha.

— Está faltando um filão de pão — sussurrou Ingrid. — O pão de trigo especial, dela.

Pão. O pão que ela dera a Aelfric mais cedo. Ela presumira que era de cevada. Não pensara duas vezes, simplesmente pegara o pão, sem imaginar que haveria consequências. Annis engoliu em seco. Não, não podia ser. Ela sabia a diferença. O pão que ela dera a Aelfric era de cevada.

Tove e Ingrid se entreolharam com expressão apreensiva e pararam de fiar.

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— Não sabemos nada sobre esse pão — disseram as duas em coro com as outras moças que trabalhavam na cozinha.

— E você? — Guthrun se aproximou de Annis e estalou os dedos diante do rosto dela. — O que sabe sobre o pão? Será que o transformou em unguento ou outro remédio?

— Não faço ideia de onde possa estar. — Annis enfrentou o olhar de Guthrun.— Pão não é um ingrediente que eu use para fazer remédios. Você usa?

O rosto de Guthrun ficou vermelho e suas feições se contraíram, como se ela tivesse engolido uma ameixa amarga.

— Eu não faço remédios. Isso é tarefa de videntes e curandeiras.— É uma pena — murmurou Annis, mas forçou-se a sorrir com doçura.Guthrun afastou-se pisando duro, abrindo baús. Por fim, ela encontrou o pão, sob

um guardanapo de linho branco.— Hum. Quero uma vistoria completa no salão, para o caso de alguma outra coisa

ter sumido. — Os olhos escuros de Guthrun brilhavam. — Podemos ter algum larápio por aqui.

— Com tantos guerreiros por perto? — murmurou Ingrid, só para Annis ouvir.— Quem se atreveria? Guthrun está querendo criar confusão. Tome cuidado,

Annis. Nossa patroa procura um pretexto para descontar em alguém quando está de mau humor, e nem Haakon será capaz de proteger você.

— Por quê? Eu não fiz nada errado. — Annis cruzou os braços ao redor da cintura. Não era possível que Guthrun suspeitasse dela com Haakon. Era muito recente; não houvera tempo ainda.

— Ela tem medo de você e do seu poder de curar.— O que foi? — exigiu Guthrun, estreitando os olhos e apoiando uma das mãos na

cintura.— Nada. Queremos ajudar a procurar.— Annis levantou-se e limpou as mãos no avental. — Apenas me diga, o que

devemos procurar?Guthrun resmungou baixinho e foi até o enorme baú que ocupava um dos lados da

cozinha. Pegou uma chave, destrancou-o e levantou a tampa. O conteúdo estava jogado lá dentro sem nenhuma ordem ou método. Ela tirou de dentro o vestido de Annis e a capa de Haakon, mas não o crucifixo de prata. Annis engoliu em seco, contendo-se para não correr e arrancar seu vestido das mãos dela.

— Sumiram! — Guthrun gritou, vasculhando dentro do baú.— O que foi que sumiu? — Annis quis saber, esticando o pescoço para espiar

dentro do baú, juntamente com Ingrid e Tove. O rosto de Ingrid estava franzido.— Estamos perdidas. Ela vai nos bater com a vara — murmurou Tove. — Quem foi

a imbecil que deixou o baú nessa bagunça?Um soluço escapou da garganta de Ingrid. Ela cobriu a boca com a mão em

resposta ao olhar fulminante de Tove. Um calafrio de medo percorreu a espinha de Annis. Qual seria o castigo que Guthrun poderia lhes infligir que deixava Ingrid tão apavorada?

— Meus broches ovais, as contas de âmbar que Thrand me deu no ano passado e o crucifixo de prata. — Guthrun agarrou os cabelos. — Quem foi que os pegou?!

— Acalme-se, Guthrun. Não adianta nada ficar assim — disse Tove, em um tom de voz tranquilizador. — Tenho certeza de que há uma explicação simples para isso. Devem estar em outro baú.

— Não, eu sempre os guardo aqui! — A voz de Guthrun elevou-se para um timbre esganiçado. Vocês sabem disso, Ingrid, Tove. Alguém pegou!

Annis sentiu-se gelada de repente. Tinha vontade de chorar. O crucifixo era sua última lembrança de casa, o único elo com o passado. Até então ela tinha esperança de que lhe fosse devolvido se o resgate fosse pago.

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O fato de ele estar naquele baú lhe dava esperança. Algum dia, ela o recuperaria e deixaria de ser uma refém. Mas agora seu crucifixo se fora, tinha sido roubado por algum ganancioso que iria mandar derretê-lo.

— O que está acontecendo aqui? Dá para ouvir a gritaria nos estábulos! — Haakon entrou na cozinha e parou ao ver a pilha de roupas e objetos no chão.

— O que houve aqui?— Minhas coisas sumiram do baú! — Guthrun enxugou os olhos. — Meus broches,

minhas contas de âmbar.Como é possível isso? Nem meu baú pessoal tem segurança mais?!

Haakon foi até o baú e examinou metodicamente o conteúdo. Depois se apoiou em um dos joelhos e meneou a cabeça.

— Tem razão. Não tem nada de valor aqui dentro. Quem teve acesso ao baú?— Eu o mantenho sempre trancado — disse Guthrun. — Eu sei como são alguns

do felag, roubariam até da própria mãe, se pudessem escapar ilesos!— A fechadura não foi arrombada. — Haakon levantou-se e apoiou as mãos no

quadril, com ar pensativo. — Alguém poderia ter tido acesso à chave?— Todas as moças da cozinha sabem onde eu guardo minhas chaves. Ingrid usou-

as recentemente para pegar tecidos de linho para fazer bandagens para Thrand — disse Guthrun.

Ingrid cobriu a boca com a mão, horrorizada.— Eu estava ocupada com outros afazeres e nem supervisionei. Vamos verificar as

coisas delas?— Pode ser, mas não acredito que encontremos alguma coisa. — Haakon revirou

os olhos. — Será que você não guardou essas coisas em outro lugar? Como daquela vez em que você me acusou de pegar os chifres de bebida?

— Aquilo foi diferente. — Guthrun levou as mãos ao rosto. — Eu exijo uma busca! Tenho esse direito, Haakon, como dona desta casa.

— Como quiser, Guthrun, mas eu duvido que um ladrão fosse esconder alguma coisa aqui, onde poderia ser facilmente descoberto.

Todos os colchões foram vasculhados, um por um. Annis ficava cada vez mais aliviada, conforme a procura avançava e nada era encontrado. Ela apertou a mão gelada de Ingrid quando Guthrun sacudiu a coberta de pele. Ingrid acenou levemente com a cabeça.

Por fim, Guthrun chegou ao colchão de Annis. Ela sacudiu a coberta e o crucifixo caiu no chão com um ruído metálico. Estava ali, a prata brilhando contra o chão de terra batida. Annis ficou olhando incrédula enquanto Guthrun se abaixava para pegá-lo, segurando-o entre os dedos magros, parecidos com garras, e com um largo sorriso no rosto.

— Está vendo, Haakon, eu lhe disse que ela não era de confiança. — Os olhos dela se estreitaram e ela sacudiu o punho fechado na direção de Annis. — Onde está o resto, prisioneira? Onde escondeu minhas coisas?

— Como, como ele foi parar aí?Annis ergueu as mãos, desamparada, e lançou um olhar de apelo a Haakon, que

permanecia imóvel e com uma expressão fria nos olhos azuis. Annis tornou a baixar as mãos, deixando-as pender ao lado do corpo, contendo-se para não torcer o avental. As outras mulheres já se reuniam atrás de Guthrun, cochichando por trás das mãos e olhando para Annis com olhares acusadores.

Haakon era sua última esperança. Ele tinha de acreditar que ela não era uma ladra. Ela não roubara aquelas coisas. Nem poderia, uma vez que não tinha a menor ideia de onde Guthrun guardava a chave do baú. Ela era inocente, e Haakon era sua última esperança.

Ele pegou o crucifixo das mãos de Guthrun e colocou-o no cinto.

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— Não estava aqui quando arrumei a cama esta manhã. — Annis tentou novamente, esperando receber algum apoio de Haakon e tentando não se desesperar. Eu passei a noite na cozinha, observando Thrand, sentada ao lado do forno de assar, para o caso de ele acordar ou precisar de mais unguento.

O silêncio era ensurdecedor. Ele tinha de acreditar nela! Os momentos que eles haviam passado juntos na choupana tinham de ter significado alguma coisa.

Annis fechou os olhos e pressionou-os com os dedos, rezando para que Haakon dissesse alguma coisa, que a defendesse. Mas ele não se movia, apenas ficava ali parado e sem dizer nada, com as sobrancelhas franzidas e os braços cruzados, um guerreiro formidável, não o amante gentil da choupana.

— Quando foi a última vez que você viu seus broches, Guthrun? — perguntou Haakon finalmente, com voz calma. — Há muita coisa a ser feita hoje, e eu gostaria de resolver esse mistério logo. E não quero que ninguém seja punido injustamente, só porque você não consegue se lembrar.

— Annis está mentindo! Veja como ela está vermelha. — Guthrun apontou um dedo para ela. — Ela escondeu as joias em algum lugar. Talvez com um dos monges, que esteja de conluio com ela.

— Eu escutei Annis falando em latim, hoje cedo — disse Thrand, do canto onde estava deitado. Ele se ergueu e apoiou-se em um cotovelo, o rosto parcialmente coberto pelas bandagens.

— No começo achei que estava sonhando, mas depois percebi que havia um homem e uma mulher conversando, em latim. Annis é a única mulher aqui que fala latim.

— Você entendeu o que eles disseram, filho? — perguntou Guthrun, ansiosa. — O que estavam tramando?

A boca de Annis ficou seca. Aquilo parecia um pesadelo. Era como se o mundo estivesse ameaçando desabar sobre sua cabeça. Ela tentou inspirar o ar e não entrar em pânico. O que poderia acontecer, afinal? Ela já era uma prisioneira. Como sua situação poderia ficar ainda pior?

— Não, mãe. Mas eu vi que ela entregou alguma coisa para ele.Annis respirou fundo. Precisava falar, esclarecer aquilo tudo.— O monge Aelfric esteve aqui de manhã, sim, é verdade. Eu dei a ele um pedaço

do meu pão do desjejum, porque ele parecia estar com fome. Depois ele foi embora. Ele queria saber se eu precisava de mais ervas. E ele tem o hábito de falar em latim.

Era uma explicação pouco convincente, Annis sabia, mas ela não iria trair Aelfric. O castigo por tentar fugir seria tão severo quanto na Nortúmbria, talvez pior. Ela não queria que nenhum dos monges fosse punido por causa de uma delação sua. E ela também não tinha ideia de para onde ele havia ido depois que saíra da cozinha.

Annis esperou, mas Haakon limitou-se a arquear uma sobrancelha, com uma expressão ainda mais sisuda que antes. Ele virou-se de costas para Annis, ignorando suas palavras.

— Devemos convocar os monges a se apresentarem aqui? — perguntou, em um tom enfastiado. — Interrogá-los? Desconfio que você não vá me deixar em paz, Guthrun, enquanto esse pequeno mistério não for resolvido.

— Certamente, Haakon. Você é o jarl aqui — respondeu Guthrun, triunfante. — Tudo que eu quero é reaver meus pertences e restaurar a ordem.

Haakon deu uma ordem e todos os monges foram trazidos até a área externa da cozinha, aos trambolhões e com as cabeças baixas, como se estivessem rezando. Todo o ar desapareceu dos pulmões de Annis, e sua cabeça girou.

Aelfric não estava entre eles.Ele tinha levado adiante seu plano de fuga. Ela não sabia quanto tempo fazia que

ele partira; podia apenas calcular. Mas ele fugira, e esse fato logo seria descoberto. Os

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demais certamente seriam punidos, ainda mais com Guthrun naquele estado de espírito e mal-humorada.

Annis sentia frio e calor alternadamente, conforme se lembrava das palavras de Haakon no primeiro dia em que chegaram a Viken.

O que aconteceria com Aelfric quando fosse pego? E o que aconteceria com ela? Será que Haakon compreenderia que ela não tinha culpa de nada? Ele precisava entender isso!

Annis olhou de Haakon para os monges e de volta para Haakon.— Qual de vocês é Aelfric?Os monges se agitaram e murmuraram em latim. Em seguida todos olharam para

Annis, com expressão de súplica.— Aelfric não está aqui, milorde — disse ela, com voz calma. — Todos os outros

monges estão aqui, menos Aelfric.Haakon levou a mão ao cinto e pareceu ficar ainda mais alto. A caçada aos objetos

desaparecidos assumira um aspecto mais sério.— Não está aqui? E onde ele está?— Eu não faço ideia. — Annis desviou o olhar do rosto dele para os monges, que

se moviam, irrequietos. — A última vez que o vi foi...— Sim, eu sei. — Haakon ergueu uma mão para interrompê-la. — Pode parar com

esses protestos de inocência, Annis. Você falou com esse rapaz hoje cedo. Em latim. Por que falaram em latim?

Annis fixou o olhar em um seixo no chão. Ela moveu os lábios, mas sua voz não saiu.

— Annis? — Haakon chamou, irritado. Não tinha tempo para aquele tipo de joguinho. Era óbvio que ela sabia mais do que estava disposta a falar. Estava claro na postura dela. Annis o usara. Tinha ido até o lago com um único objetivo em mente. seduzi-lo. Ela o seduzira para que o monge pudesse fugir. E, o pior, ele se deixara usar. Mas fora a primeira e última vez.

— Eu já disse por quê! — Ela cerrou os punhos.— Está faltando algum dos prisioneiros? — perguntou Guthrun, com veneno

disfarçado de doçura na voz. — Já olharam em todos os baús?— O monge vai aparecer, de um jeito ou de outro — disse Haakon. Ele virou-se

para os homens que haviam trazido os prisioneiros e os vigiavam. — Há alguma razão para ele não estar aqui?

— Não, milorde. — Um dos guardas balançou a cabeça. — Estavam todos aqui, mais cedo. Aí eu e os rapazes começamos a brincar de luta, e de repente ele não estava mais.

— Sumiu, sem mais nem menos?— Sim, senhor.— E de quem foi a ideia de brincar de luta?— Eu não me lembro, milorde.Haakon apertou os dentes, tentando manter o controle. E, durante todo o tempo,

Annis ficava olhando para ele com aqueles olhos enormes, implorando que ele acreditasse nela. Ela o tinha traído! Usado! Que mentirosa consumada ela era!

— Quero que o encontrem! Agora!Haakon levantou a mão e fez um sinal para que fosse tocado o alarme. Segundos

depois, um longo sopro de chifre soou na fazenda inteira. Uma chamada às armas. Em seguida, uma cacofonia de latidos e gritos elevou-se no ar. Homens corriam em todas as direções, chamando os cães. Cavalos foram trazidos e montados, enquanto Haakon dava as ordens, orientando seus homens.

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Ele estava tomado pela fúria. Ele advertira os prisioneiros. Tratara-os bem e era isso o que recebia em troca?! Aquele monge não agira sozinho. Não podia ser. Alguém o havia ajudado.

E ele tomaria providências para que esse alguém fosse punido.Annis pressionou as mãos uma contra a outra, enquanto via a busca sendo

organizada. No espaço de poucos minutos, a equipe de busca já havia partido, só restando os monges, Haakon, Guthrun e as criadas. Os gritos e latidos se distanciavam cada vez mais.

Será que Aelfric fugira mesmo? Estaria na estrada naquele momento, convencido de que partia rumo à liberdade? Por quanto tempo mais? Ele seria trazido de volta, com as mãos amarradas, puxado por um cavalo a galope? Ou algo ainda pior? Annis cobriu o rosto com as mãos. Sabia como os vikings podiam ser cruéis. A invasão de Lindisfarne assombrava seus sonhos, todas as noites.

Ela podia ter tentado dissuadir Aelfric de fugir, mas não queria que ele fosse encontrado. E não podia traí-lo. Devia ter sido ele que roubara os broches e o âmbar, mas como ele conseguira ter acesso ao baú?

Annis arriscou um olhar para Haakon. A expressão dele estava séria, fria. Um arrepio a percorreu. Ela olhou para a direita e para a esquerda. Já não havia nenhum homem nem cavalo à vista. Os latidos dos cães se distanciavam mais e mais.

O olhar astuto de Haakon estava fixo nela. A capa esvoaçava ao vento, dando-lhe um ar de mais perigoso ainda. Um líder no comando.

— Você precisa castigá-la! — gritou Guthrun, com sua voz irritantemente estridente. — Ela me desafiou! Desafiou você! Ela ajudou um prisioneiro a fugir e tudo o que você faz é ficar aí parado, olhando para ela.

— Castigar-me? — Annis sentiu um súbito acesso de náusea e começou a tremer. — Eu não fiz nada! Não tive nada a ver com o roubo, nem ajudei Aelfric a fugir. Sou inocente!

Haakon sentiu a fúria crescer dentro de si quando os olhos de Annis brilharam com lágrimas não derramadas. Lágrimas falsas, que ela equivocadamente acreditava que fossem comovê-lo. Ele apertou os lábios em uma linha fina. Vira aquele tipo de estratagema ser usado muitas vezes contra seu pai e jurara nunca se deixar afetar por eles.

Estava profundamente decepcionado. Ele confiara em Annis, e ela o havia traído, ajudando o tal monge a escapar.

Haakon chegara a acreditar que existia um sentimento de afeto entre ele e Annis, que uma amizade estava nascendo. E agora ela se declarava inocente. Ela própria tinha confessado que falara com o monge naquela manhã. Tinham falado em latim em vez do idioma deles. Haakon tinha certeza de que fora para que ninguém entendesse o que diziam. Depois disso ela fora até o lago e o seduzira. Devia julgá-lo um tolo. Brincara com seu desejo por ela, e agora esperava safar-se impune.

Annis o fitou com os olhos grandes e os lábios trêmulos. Será que ela não via como tinha sido bem tratada? Parecia que não. Infelizmente, Guthrun estava certa. Teria de castigar Annis, se não quisesse se arriscar a perder o controle de sua propriedade e seus homens. Ele não tinha escolha.

— Desde que você chegou aqui, não tratei você como uma prisioneira. Eu esperava, no mínimo, algum reconhecimento.

— Mas eu reconheço! Fiz tudo o que você pediu. — Annis fez uma pausa. Seu corpo inteiro começou a tremer incontrolavelmente conforme o medo a dominava. — Por favor, acredite em mim!

— Eu acredito na evidência que está diante dos meus olhos. — Haakon levou a mão ao cinto, reprimindo a fúria que sentia.

Annis o encarou com ar de desafio, os olhos verdes flamejantes.

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— Diga o que foi que eu fiz, então! Eu nunca nem sequer cheguei perto daquele baú! Pergunte a Ingrid, ela sabe. — Ela apontou na direção da cozinha. — Eu tive de pedir mais panos de linho para fazer bandagens, pois nem sabia onde ficavam guardados.

Haakon olhou para Ingrid, que os observava a uma curta distância, pálida e imóvel. Ela assentiu brevemente com a cabeça e cambaleou. Tove e outras duas moças a seguraram para ela não cair.

— Ingrid trabalha aqui há mais de dois anos e nunca houve problema algum com ela. Ela é prestativa e se desdobra para ajudar todo mundo, inclusive os recém-chegados. Você deveria se envergonhar de acusá-la. Tem provas, por acaso?

— Não estou acusando Ingrid! Só estou dizendo que ela sabe que eu não cheguei perto daquele baú. Eu sou inocente. — Aos poucos, o tom de desespero na voz de Annis deu lugar à serenidade. — Deus sabe que sou inocente.

— E você nega ter ajudado o monge Aelfric a fugir?— Eu dei a ele um pedaço de pão. Só isso. Não o ajudei de nenhuma outra forma.— Isso é verdade? — Haakon voltou-se para o monge mais velho do grupo.O homem inclinou a cabeça, mas não disse nada.— Digam-me. Quem o ajudou a fugir? Não acredito que ele tenha agido sozinho.Os monges se entreolharam e depois olharam para Annis, inquietos. Um deles

levantou as mãos e começou a rezar.— Digam logo, ou será pior para vocês!— Não ajudamos nosso irmão, pois não concordamos com o que ele ia fazer. — O

monge mais velho curvou-se novamente e começou a falar pausadamente em seu próprio idioma.

— Soubemos que ele teve alguma ajuda da cozinha, mas não sei de quem. Nem quis saber. Aelfric quebrou as regras da nossa ordem, a regra de São Benedito.

— Não fui eu, eu não o ajudei em nada — insistiu Annis. — Só lhe dei um pedaço de pão porque achei que ele estava com fome.

A brisa soprou nos cabelos de Annis, afastando-os do rosto. Ela parecia tão nobre, tão segura, dizendo aquelas palavras, mas Haakon sabia que era mentira. Não era cego. Estava claro como tudo acontecera. De alguma forma, Annis conseguira abrir o baú e entregara as joias a Aelfric. E guardara o crucifixo consigo.

A única coisa que o intrigava era ela não ter tentado fugir junto. Ou talvez ela pretendesse fazer isso, mas Aelfric a tivesse traído no último momento e se esgueirado enquanto os guardas brincavam de luta e Annis se esbaldava com ele, preferindo fugir sozinho. Annis, por sua vez, devia ter deduzido que a atração que ele sentia por ela lhe garantiria proteção incondicional. Deduzira errado.

Haakon recusava-se a se deixar levar pela emoção. Ele era o jarl. Tinha de decidir o que era certo e melhor para seu povo. Esse era seu dever primordial.

— Muito bem, já que você insiste em contar histórias em que somente uma criança acreditaria, você será marcada como prisioneira, para que o mundo inteiro saiba, a um mero olhar, o que você é.

Ele fez um sinal para dois de seus homens, que seguraram os braços de Annis, imobilizando-a. Ela começou a se debater, perdendo a calma.

— Como assim?! — Sua voz denotava pânico.Haakon retorceu a boca, contrafeito. Se ela achava que ele seria condescendente

porque eles haviam se deitado juntos, estava muito enganada.— Você será marcada como prisioneira, para que o mundo inteiro saiba, a um

simples olhar, exatamente o que você é.Ele fez um sinal para dois de seus homens, que imobilizaram Annis, segurando-lhe

os braços ao lado do corpo. Ela tentou se libertar, conforme a calma a abandonava.— O que você está querendo dizer? — Sua voz tinha um tom de pânico.

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Haakon rangeu os dentes. Ela acreditava que ele teria clemência só porque haviam se deitado nos braços um do outro?

— Cortem o cabelo dela. Coloquem-lhe uma coleira no pescoço, depois a levem até o chiqueiro, onde ela poderá refletir sobre o que fez. — Haakon olhou para Annis, sentindo ódio. Ela mentira para ele, sussurrara palavras doces e lhe dera conselhos. Perguntara como eram as terras ao sul.

Ele se encantara com ela, desejara-a, tivera vontade de ficar ao lado dela, e o tempo inteiro a intenção dela era traí-lo. Ele deveria ter se lembrado da lição que havia aprendido na juventude. Não se podia confiar nas mulheres.

— Ela pode ficar lá e ver se gosta mais desse tipo de hospitalidade viking.Haakon achou que ela iria começar a chorar e fazer uma encenação para que ele

ficasse com pena, mas ela continuou com a cabeça erguida.— Coloquem coleiras nos monges também. Se tentarem escapar, serão

reconhecidos por aquilo que são, propriedade minha. — Ele acenou com a cabeça para a madrasta. — O castigo pode começar.

Guthrun avançou na direção de Annis com passos decididos e uma tesoura brilhando ao sol da tarde. Toda a compostura de Annis desapareceu quando a primeira mecha de seu cabelo foi cortada.

— Escutem o que estou dizendo! Eu sou inocente! Eu não fiz nada! Por favor, acreditem em mim! Acreditem em mim!

Ela moveu a cabeça para tentar se livrar, mas em vão. Os cabelos caíam no chão em nacos, até formar um tapete em volta de seus pés. O coração de Haakon se confrangeu quando ele se lembrou de como tinha passado os dedos por aqueles fios sedosos. Mas afastou o pensamento e forçou-se a manter a expressão impassível. Quando a última mecha caiu e a coleira foi presa em seu pescoço, Annis ficou em silêncio e olhou para Haakon com expressão acusadora.

Ele virou-se de costas e afastou-se, mas a angústia que vira nos olhos dela o atormentava.

Capítulo 10

Annis deitou-se de costas na palha. Uma nesga de claridade penetrava por uma das frestas, mas, fora isso, o chiqueiro estava na penumbra. Ela escutara os homens e os cães retornando algum tempo antes, mas deduzira que não haviam encontrado Aelfric, já que ninguém tinha vindo buscá-la.

Como as coisas tinham chegado àquele ponto? Uma coleira áspera pinicando seu pescoço e as mãos esfoladas pela corda que as amarrava atrás das costas. Pior que aquilo, só a morte. Ela, uma dama de linhagem nobre, jogada em uma pocilga imunda como prisioneira! Ser casada com Eadgar não poderia ser pior que aquilo.

Annis fechou os olhos, desolada. Tinha confiado em um viking. Tinha se entregado a ele, de espontânea vontade. Acreditara que Haakon era diferente dos outros. Ele falava latim, e ela vira a bondade e a humanidade nas atitudes dele.

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Um soluço baixo escapou de seus lábios.Não importava mais se o resgate seria pago ou não. Até então, ela tivera

esperança de conseguir convencer Haakon a libertá-la, em algum momento. Afinal, ela salvara a vida dele. E era assim que ele retribuía?!

Agora Annis sabia que a liberdade estava fora do alcance. Seria apenas uma lembrança, confinada a seus sonhos. Ela havia sido marcada como escrava, e era como escrava que terminaria seus dias, a não ser que resolvesse agir por contra própria e desse um jeito de escapar.

Escapar. A simples ideia fazia seu coração acelerar. Aelfric estava certo, por mais que ela detestasse admitir. Era a única solução.

Mas como? Mesmo que conseguisse escapar dali, como voltaria para a Nortúmbria?

Annis empurrou um punhado de palha com o pé.Eles a vigiariam sem descanso, agora, preparados para a menor das infrações, real

ou imaginária.Apesar do que havia acontecido entre eles, Haakon escolhera ignorá-la. Isso

tornava tudo mais doloroso. A expressão endurecida dele enquanto Guthrun cortava seu cabelo, as mãos dele empurrando-a para dentro do chiqueiro, e, acima de tudo, o olhar de indignação, como se fosse ela que o tivesse traído! Ela se sentia usada e humilhada.

Annis moveu os braços e rolou sobre a palha, tentando encontrar uma posição mais confortável, e parou quando sua mão direita encostou em algo pontiagudo, de metal. Ela passou um dedo pelo objeto. Era apenas ligeiramente afiado, mas era a única coisa ao seu alcance, o único indício de boa sorte que surgia à sua frente nos últimos tempos.

Annis colocou a mão na massa, esfregando a corda que amarrava seus pulsos para cima e para baixo contra o objeto perfurante. Uma eternidade pareceu passar, e o calor dentro do chiqueiro tornou-se insuportável. Pequenas moscas, atraídas pelo suor, voejavam em volta dela, entrando em seu nariz e sua boca. Annis queria muito poder enxugar o suor dos olhos e coçar o nariz, mas o máximo que conseguia fazer era esfregar o rosto no ombro. E nada de a corda se romper.

Ela perguntou-se se tinha sido colocada ali para efeito de tortura.Annis redobrou os esforços e então, sem aviso, a corda se rompeu e ela ficou livre.No mesmo instante trouxe os braços para a frente, sacudiu-os e esfregou os pulsos

dormentes. Ela tocou a coleira em seu pescoço. Uma escrava, sem tirar nem pôr. Ela poderia perfeitamente viver com o cabelo curto; era até mais fresco. Mas com a coleira, jamais. Era uma mulher livre, uma dama, e não fizera nada para merecer aquele tratamento.

Ela seguiria as indicações que ouvira de Aelfric, esperando que ele estivesse certo em seus cálculos.

Annis engatinhou sobre a palha, mas a porta estava trancada. Ela praguejou baixinho, palavras que jamais diria diante de qualquer outra pessoa do mundo. Seu pescoço e seus braços estavam doloridos, mas o que doía mais era o fato de Haakon não ter lhe dado chance de explicar e não querer ouvir o que ela tinha a dizer. Será que ele não via que não fazia sentido ela esconder o crucifixo em sua própria cama?

— Annis. — Ela ouviu Ingrid chamar baixinho. — Está acordada?Ela apressou-se a voltar para onde estava antes e deitou-se sobre os braços. O

que será que Ingrid queria? Ela acreditara que a moça fosse sua amiga, mas ela não dissera uma única palavra para reforçar seus argumentos. Ela sabia que Annis nunca tinha chegado perto daquele baú.

— O que foi, Ingrid?— Eu lhe trouxe comida. Fiquei aflita de imaginar você com fome. Desculpe ter

demorado tanto, mas eu tive de esperar até que todas estivessem comendo. — A porta abriu-se e Ingrid apareceu na soleira, trazendo pão e queijo. Ela colocou cuidadosamente

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o prato no chão. — Achei que você estaria com fome. Você disse que repartiu seu pão do desjejum com... Aelfric.

Alguma coisa no modo como ela pronunciou o nome do monge deixou Annis alerta. Fora quase imperceptível, mas a voz dela tremera ligeiramente. Annis relembrou a manhã após a festa. Ela não questionara a presença de Aelfric ali. Será que ele já estava planejando fugir, naquela ocasião? Será que Ingrid o ajudara de alguma forma?

Uma ideia se formou em sua mente. Ingrid poderia vir a ser muito útil. Se ao menos ela conseguisse fazê-la chegar mais perto. Ela nunca gostara das lições de defesa pessoal que o pai lhe dera, achava os procedimentos abomináveis, mas agora iria precisar deles. Tinha de rememorar suas habilidades enferrujadas.

— Está muito longe, Ingrid, não alcanço. E não vou conseguir comer com as mãos amarradas. — Annis forçou a voz a soar frágil, cansada e desesperançada.

Ingrid entrou no chiqueiro e empurrou o prato para a frente. Para mais perto, mas ainda não perto o suficiente. A expressão dela mal era distinguível na penumbra.

— Eu sinto muito, mas não posso desamarrar você, Annis. Eu sei que você deve estar desconfortável e dolorida, mas. — Ingrid estalou a língua — ... Haakon ficaria furioso. Acho que nunca o vi tão zangado. Ele está gritando com todo mundo. As gatas até se esconderam atrás do batedor de manteiga e o derrubaram.

— Bem feito — murmurou Annis.— Haakon faz isso para proteger a propriedade. Ele é o responsável por tudo aqui.

Aqueles que erram têm de ser punidos. — Ingrid arqueou as sobrancelhas. — Imagino que seja assim também lá onde você mora.

— Acontece que eu não fiz nada! Sou inocente. Você sabe que eu nunca mexi naquele baú. — Annis teve de se conter para não tirar as mãos de baixo do corpo e socar o chão. Tinha de ser cautelosa, e precisava descobrir o que Ingrid sabia. Fora mais do que amizade que trouxera Ingrid até ali. Aelfric tinha contado com a ajuda de mais alguém em sua fuga. Só podia ser.

Ingrid, talvez?Annis relembrou a ocasião em que o encontrara no pátio. Por que ele estava ali? E

Ingrid tinha entrado na cozinha logo depois que Aelfric fora embora. Fora ela quem sugerira que Annis fosse espairecer no lago. Ou a ideia teria sido de Aelfric?

Ingrid olhou para ela, preocupada.— Você entende, não é, que estou correndo um risco enorme para trazer comida

para você?— Não estou pedindo para você me desamarrar, só para trazer o prato mais perto.

Não vou mordê-la. — Annis deu uma risadinha, para parecer descontraída.Ingrid se aproximou devagar.Annis esperou, tensa, quase sem respirar. Ingrid chegou mais perto... mais perto.

Annis prendeu a língua entre os dentes, forçando-se a esperar.Ingrid colocou o prato no chão, quase debaixo do nariz de Annis, e começou a se

afastar novamente.Um passo, dois. Annis mordeu o lábio. Respirou fundo. Agora!Ela pulou, agarrou Ingrid e a derrubou no chão de palha.Ingrid se debateu, defendendo-se com as mãos, arranhando o rosto de Annis.

Annis segurou uma das mãos dela, depois a outra, mas Ingrid a empurrou, forçando o rosto dela contra o chão.

A palha entrou nas narinas e nos olhos de Annis, mas ela se retorceu e acertou o estômago de Ingrid com os joelhos. Novamente as posições se inverteram, e Annis ficou por cima. Ela segurou os antebraços de Ingrid, dominando-a, imobilizando-a com os joelhos.

Ingrid deu um grito de surpresa, mas Annis cobriu-lhe a boca e o nariz com uma das mãos.

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— Quero que você responda às minhas perguntas apenas mexendo a cabeça. Entendeu?

Ingrid não respondeu. Annis sacudiu o ombro dela, e recebeu um aceno positivo com a cabeça.

— Não lhe quero mal e não quero machucá-la, mas preciso sair deste lugar sabendo a verdade. — Annis aproximou o rosto do de Ingrid. — Você deixou Aelfric mexer no baú, não foi? Foi você a pessoa da cozinha que o ajudou.

Ingrid piscou, e uma lágrima escorreu por seu rosto.Annis afastou qualquer sentimento de pena. Aquela mulher era responsável por

sua punição. Permitira que Haakon pensasse que ela mentira.Annis sacudiu novamente o ombro de Ingrid, zangada.— Responda!Ingrid assentiu lentamente e balbuciou algo contra a mão de Annis. Alguma

desculpa esfarrapada, com certeza pondo a culpa no charme de Aelfric. Annis retorceu os lábios. Ela tinha confiado naquela moça.

— Que isso lhe ensine a não acreditar em estranhos! Acredito que você não sabia que ele ia roubar o colar de Guthrun; ele deve ter lhe contado uma história plausível. Deve até ter dado uma excelente justificativa para que você me mandasse ir para o lago.

Ingrid parou de balbuciar e assentiu vigorosamente com a cabeça.— Tem alguém aí fora me vigiando?Ingrid hesitou e franziu a testa, pensativa. Em seguida balançou a cabeça devagar.Annis estudou a moça. Será que ela podia acreditar?Olhou por sobre o ombro na direção da porta aberta, por onde o sol entrava. Era

impossível dizer que horas eram, mas ela podia ouvir o tilintar de pratos na cozinha. Hora de refeição, portanto menores eram as chances de haver alguém por ali.

Agora que ela começara, tinha de ir até o fim. Fosse para ficar livre, fosse para morrer. Ingrid podia estar mentindo e mandando-a para uma armadilha, mas era tarde demais para desistir. Tinha de confiar em sua intuição, e sua intuição lhe dizia que Haakon achava que ela estava segura.

Ele não desperdiçaria o tempo de um de seus guerreiros para vigiar uma prisioneira que não tinha como escapar, amarrada dentro de um recinto trancado.

Ingrid resmungou alguma coisa.— Eu detesto fazer isso, Ingrid, mas aqui nós trocamos de lugar e nos despedimos.Annis agiu depressa. Ela puxou a touca de Ingrid, amassou-a e enfiou-a na boca

da moça. Depois usou o avental para amarrar-lhe as mãos nas costas. Por fim tirou a ferramenta pontiaguda do meio da palha e jogou-a para longe.

O tempo pareceu parar. Annis espiou para fora do chiqueiro. Ingrid dissera a verdade.

Não havia ninguém. E, o mais importante, não havia nenhum cão também.Ela fechou a porta do chiqueiro sem fazer ruído e correu até o estábulo. Os cavalos

relincharam, e Annis rejeitou imediatamente a ideia de pegar um deles. O barulho sem dúvida alertaria Haakon ou um de seus homens.

Ela teria de ir a pé.O som de um riso abafado chegou aos ouvidos de Annis. Tove. E outra voz, mais

profunda, desconhecida. Annis parou ao ver o casal abraçado em um canto do estábulo. Recuou devagar, o coração batendo tão forte que parecia prestes a sair do peito.

Quando chegou à choupana de banho a vapor na margem do lago, Annis olhou por sobre o ombro.

Ninguém. Ela conseguira!As paredes da choupana estavam frias, sinal de que não havia ninguém lá dentro.

Ela não hesitou; contornou parte do lago e entrou na floresta de pinheiros, tomando a precaução de seguir pela margem do riacho para que os cães tivessem dificuldade de

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farejar seu rastro. Então enveredou para o sul, mudando de direção várias vezes, para confundir ainda mais os coitadinhos dos cães.

As árvores começaram a ficar mais esparsas, e ela descobriu uma trilha que aparentemente ia em direção ao sul.

Havia uma grande probabilidade de Aelfric ter dito a verdade. O caminho para a corte de Thorkell podia não ser tão complicado, afinal. Annis foi acompanhando a linha de árvores na margem da estrada, pronta para correr e se esconder se aparecesse alguém.

Depois de uma curva, Annis avistou a estrada se estendendo a perder de vista, com nada para trás além do bosque de pinheiros. Ela conseguira. Escapara, e tinha a vida inteira pela frente.

— VOCÊ NÃO está prestando atenção, Haakon. Seu rei está em perigo e você não fez nenhum movimento para protegê-lo.

Haakon olhou para o irmão. Thrand estava recostado em uma pilha de peles e travesseiros. Fress e Kisa estavam enrodilhadas no pé da cama. As bandagens de linho cobriam parcialmente o rosto dele, mas seus olhos estavam mais argutos que nunca. Haakon imaginara que o jogo de tafl o distrairia, desviando seus pensamentos de Annis, mas só estava aumentando sua inquietação.

Como era possível que alguém que jogava tafl tão bem, que parecia ser tão inteligente, fosse esconder o crucifixo na própria cama?

— Não faz sentido. — Ele moveu uma peça e bloqueou Thrand.— O que não faz sentido? — Thrand capturou a peça de Haakon.— Ela é uma mulher inteligente. Por que deixaria o crucifixo em um lugar tão fácil

de ser encontrado?— Se eu entendesse como a cabeça das mulheres funciona, eu seria um homem

rico. Veja Ingrid, por exemplo. toda oferecida para o meu lado antes de partirmos. E depois que voltamos. em triunfo, ela me ignorou. Só porque flertei um pouco com Tove. Depois estava toda chorosa quando veio trocar minhas bandagens. o coração confrangido por minha causa. Então fiquei convencido de que ela viria aquecer minha cama mais tarde, mas que nada, desapareceu. Sem uma palavra. Simplesmente sumiu.

— Chorosa? — Haakon arqueou uma sobrancelha. — Mas você está sarando rápido. Annis fez um bom trabalho, cuidou muito bem de você. O unguento dela é bastante eficaz. Duvido que você fique com o rosto marcado. O comportamento de Ingrid não faz sentido. Não era por sua causa que ela estava chorando, meu irmão.

— Como eu disse, quem consegue entender as mulheres? — Thrand cruzou as mãos atrás da cabeça. — O que eu posso fazer, se sou irresistível?

— Mas você disse que ela sumiu.Um calafrio percorreu a espinha de Haakon. Teria ele se enganado? Teria culpado

a mulher errada? Será que ele cometera uma injustiça com Annis?Ela não saía de seu pensamento. Assombrava seus sonhos. Haakon sabia que a

desejava mais do que nunca depois do encontro no lago, mas a intensidade de seu sentimento o assustava. Deixava-o vulnerável, levava-o a pensar que estava se tornando igual ao pai. Lembrava-se de como o pai havia sofrido quando sua mãe morrera ao dar à luz e depois como seu pai, um homem sempre tão altivo, se tornara um escravo de Guthrun. Haakon prometera a si mesmo que aquilo nunca aconteceria com ele.

E então, toda aquela confusão acontecera, e ele achara que estava evidente quem era a culpada. Annis o atraíra para o lago, fizera amor com ele só para dar mais tempo ao monge.

Haakon recusava-se a ser feito de tolo. Os músculos de sua nuca enrijeceram, sua cabeça começou a latejar. Recusava-se a ficar igual ao pai.

— Quando foi que Ingrid sumiu?

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— Ela vai aparecer daqui a pouco. — Thrand moveu outra peça no tabuleiro.— Eu que imaginei que ela viria mais cedo. Provavelmente, minha mãe a incumbiu

de alguma tarefa.Haakon resmungou e voltou a se concentrar no jogo. Havia algum ponto-chave que

esclareceria aquele episódio, mas ele não conseguia identificá-lo.— Sabe — disse Thrand, movendo a próxima peça — , eu fico me perguntando.

Por que o monge não levou Annis com ele? Quero dizer, ela é uma moça forte, saudável, poderia ajudá-lo e fazer companhia. Mas não, ela ficou. Por que será?

— Os outros monges também ficaram.— Haakon tentou afastar a imagem dos olhos verdes acusadores.

— Mas ele e Annis conversaram! Eu os ouvi, como se estivessem discutindo. Se ele queria que ela fosse junto e ela se recusou a ir, por que ela fez segredo disso? Por que não contou a você? Seria um ponto a favor dela.

— Thrand, você avisaria alguém se um companheiro seu estivesse planejando uma fuga?

Thrand ficou em silêncio enquanto rodopiava a peça do rei que tinha acabado de capturar.

— Tem razão. Eu não entendo latim, só sei que estavam discutindo. Ele estava zangado, elevou a voz, e ela também. Depois ele foi embora. Logo em seguida ela foi chamar Ingrid e pediu para ela trocar meu curativo.

— E por que ela contaria uma história diferente?— Você conhece minha mãe. Ela queria punir Annis. Estava procurando um

pretexto para isso.Haakon mudou de posição no banco e resistiu à tentação de dar um soco em

Thrand.— E o baú de roupa de cama? E o crucifixo na cama de Annis?Thrand recostou-se nos travesseiros. Uniu as pontas dos dedos e olhou para o

teto.— Também pensei nisso. Eu tive de esperar enquanto Annis procurava Ingrid e a

chave. Meu rosto ardia muito. Em nenhum momento Annis chegou perto daquele baú.Uma pontada de remorso cutucou a consciência de Haakon. Teria ele acreditado

no pior a respeito de Annis porque ele também estava procurando um pretexto? Porque tinha medo de confiar?

Ele balançou a cabeça, tentando dispersar as dúvidas. Thrand estava certo. Precisava de respostas, e precisava logo!

O ar na cozinha estava quente, abafado, atrapalhando sua capacidade de raciocinar com clareza. Haakon levantou-se e foi até a porta.

— Aonde você pensa que vai? Não terminamos a partida. Não quer saber mais sobre a minha teoria?

— Vou dar uma volta aí fora para verificar se está tudo bem.— Haakon? — Thrand chamou da cama, e Haakon virou-se para trás. — Quando

você falar com Annis, dê a ela meus parabéns. Esse unguento é divino.Haakon fechou a porta com mais ruído que o necessário.

OS PÉS de Annis doíam. Suas botas estavam ensopadas, ferindo os dedos dos pés. Não tinha ideia de quanto tempo fazia que estava naquela estrada, ora correndo, ora cambaleando. Perdera a conta de por quantas árvores e curvas havia passado, ou de quantos trechos enlameados e esburacados havia na estrada, por causa dos córregos e riachos que a atravessavam.

Ela tivera até de contornar uma casa de fazenda onde havia um cão latindo e um bebê chorando.

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O sol pouco se movia naquela época do ano, e o céu não chegava a escurecer completamente, mesmo tarde da noite.

O uivo de um lobo ecoou no ar, enviando um calafrio ao longo da espinha de Annis. Ela apressou o passo, quase correndo, mas ainda caminhando. Olhou por sobre o ombro direito, depois sobre o esquerdo. Não havia nada à vista, somente a vastidão da floresta.

Nos lugares onde batia o sol, ela via sombras se movendo, depois parando e movendo-se outra vez. Havia alguma coisa li. Perseguindo-a.

Outro uivo soou, e galhos estalaram. O som estava mais próximo. Annis gelou e tentou pensar no que fazer, mas sua mente era um vazio total.

Tudo o que ela sabia era que tinha de sobreviver.

HAAKON FRANZIU a testa. O pátio estava diferente. Alguma coisa mudara, quase como se estivesse faltando algo. Ele desconsiderou a sensação e continuou a vistoria, dirigindo-se para o chiqueiro.

A porta não estava devidamente trancada. Alguém se esquecera de prender a corda na tranca. Se Annis empurrasse com força, conseguiria abrir. Quem estivera ali? E quando? Ele verificara a tranca duas vezes depois que colocara Annis lá dentro.

Floki latiu e bateu com a pata na porta.— Annis? Annis, você está aí?Ele puxou a porta e espiou para dentro. Na penumbra, viu um vulto amontoado no

chão, produzindo ruídos abafados e esperneando. Mas não era Annis. Os cabelos eram loiros e compridos.

Floki soltou um rosnado baixo e depois foi lamber o rosto da mulher, que tentava esquivar-se dele.

Annis tinha sumido!Haakon foi até a mulher de bruços, afastando Floki do caminho. Ingrid! Ele exalou o

ar e resistiu à tentação de sacudir a moça. O que, em nome de Odin, ela estava fazendo ali?! Seria uma cúmplice, ou outra vítima da traição de Annis?

Ele puxou a touca da boca de Ingrid.Ela tossiu e pigarreou, um pouco engasgada. Olhou para Haakon com expressão

tristonha, e uma lágrima escorreu por seu rosto. Haakon ergueu os olhos para o teto, impaciente. Por que as mulheres choravam por qualquer coisa? Por Odin, Ingrid não fora capaz nem sequer de cuspir aquela touca.!

— Quero uma explicação para isto! — exclamou, com uma das mãos no quadril. Ingrid teria voluntariamente concordado em trocar de lugar com Annis, ou a dama da Nortúmbria havia conseguido reverter a situação?

— Aquela bruxa me amarrou! Eu vim trazer comida para ela, e ela pulou em cima de mim. Ela me enganou. — As lágrimas rolavam pelo rosto de Ingrid, e ela apoiou a cabeça nos joelhos. — Isso que é gratidão. Eu fui amiga dela, me arrisquei por ela, e é assim que ela retribui.

— É mesmo? — Haakon afagou a cabeça de Floki antes de começar a desamarrar o nó que prendia os pulsos de Ingrid. No fundo ele sentia admiração por Annis, e ela certamente sabia se fazer de ingênua. — As mãos de Annis estavam amarradas com uma corda. E bem amarradas. Não vejo como uma pessoa com as mãos amarradas pode amarrar outra pessoa, mas talvez eu esteja enganado.

— Ela não estava amarrada. As mãos dela estavam livres. Talvez quem a amarrou não o tenha feito direito.

Haakon tentou se controlar e apenas arqueou uma sobrancelha.— E quem lhe deu permissão para trazer comida para Annis? Ou você tomou essa

decisão por si mesma?

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— Eu fiquei com pena dela. Eu lhe disse, nós éramos amigas, e afinal de contas ela salvou Thrand.

— E o que ela fez quando você veio? Ela pediu que você a ajudasse?— Não, ela só fingiu que estava amarrada e pediu que eu trouxesse o prato mais

perto. Aí pulou em cima de mim e me amarrou. — Ingrid pressionou as têmporas. — Ah, minha cabeça. Parece que Thor me martelou sem piedade!

Haakon sentou-se nos calcanhares, pensativo. De alguma forma, Annis conseguira se livrar da corda. Não acreditava que ela tivesse conseguido desfazer o nó. O mais provável era que tivesse cortado a corda em alguma superfície ou ferramenta que estivesse por ali. Mas alguma coisa na história de Ingrid não se encaixava. Thrand a vira chorando. E, desde que Ingrid trabalhava ali, não havia um único relato sequer de desobediência ou indisciplina. Por que ela sentira necessidade de ir ver Annis? Fazia poucas horas que Annis estava confinada. O primeiro grupo de busca de Aelfric tinha voltado fazia pouco tempo. Não se justificava a preocupação de Ingrid de que a amiga estivesse com fome.

— Eu posso ir? — perguntou ela, em um tom ligeiramente petulante enquanto esfregava os pulsos. — As gatas devem estar sentindo minha falta, e prometi a Thrand que...

— Você sabe mais do que está dizendo, não é, Ingrid? — Haakon segurou o braço dela e forçou-a a fitá-lo. Ele sempre achara que Ingrid era uma boa moça, mas não a ponto de trocar de lugar com Annis voluntariamente. Ela sabia qual era a punição para quem ajudava os prisioneiros a fugir.

Ingrid enterrou o rosto nas mãos, mas Haakon segurou-lhe o queixo e obrigou-a a encará-lo. Novamente ela desviou o olhar e tentou se afastar.

— Diga-me o que você sabe!— Não sei do que você está falando.Eu vim trazer comida para Annis porque ela

sempre foi boa para mim. Só isso. — Ingrid enxugou o rosto com a manga. — E é assim que ela me retribui. Eu até arrumei roupa de cama limpa para ela quando ela me pediu, já que ela não sabia onde tinha. Arrumei os panos de linho para ela fazer as bandagens. Se não fosse isso ela não teria conseguido cuidar de Thrand como cuidou. Mas ela por acaso me agradeceu? Não.

Ingrid prendeu a respiração de repente e levou a mão à boca. Haakon cerrou os punhos e socou uma viga de madeira. Ingrid recuou com um sobressalto.

— Por favor, acredite, eu não quis prejudicar Annis! — Ela se encolheu no chão, soluçando.

Haakon olhou para a criada. Queria sentir pena dela, mas podia ver com toda a clareza o que havia acontecido. Fora um tolo, precipitara-se ao acreditar em Guthrun. E agora Annis tinha desaparecido.

— Era você quem guardava a chave do baú. Annis nunca chegou perto dele. Ela ficou surpresa ao ver o crucifixo, mas você não. — Haakon lembrou-se da expressão chocada de Annis.

— Como. — Ingrid calou-se e engoliu em seco. Seu tom de voz se tornou mais respeitoso. — Sim, mas eu não peguei nada.

— Quem estava com você? Diga-me agora, ou vai ser pior para você!— Aelfric — veio a resposta atabalhoada. As lágrimas corriam copiosamente pelo

rosto dela. Então ela começou a soluçar ruidosamente, com toda a certeza pretendendo amolecer o coração de Haakon. — Ele colocou o crucifixo entre as cobertas da cama de Annis como um lembrete, ele me disse. Ele prometeu que mandaria me buscar assim que conseguisse chegar a um lugar seguro. Disse que me levaria para a casa dele e que eu viveria como uma grande dama, com criados me servindo. Ele é filho de um nobre. Se eu ficar aqui, o máximo que vou ser é concubina de um guerreiro de menor hierarquia.

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— Aelfric é um monge! — Haakon olhou para ela, surpreso. — Ele segue as leis da Igreja de Roma!

— Eu... não entendi.— Monges não se casam, Ingrid. Eles fazem voto de castidade, devotam sua vida

a Cristo. Ele mentiu para você. — Haakon sentiu uma pontinha de pena da moça. Em muitos aspectos ela era inocente, mas uma inocente que causara muitos problemas, talvez mais do que ela própria poderia imaginar.

Annis escapara, mas será que ela conseguiria sobreviver?— Ele mentiu para mim? — Ingrid esfregou os olhos com as costas da mão.— Não

pode ser! Ele é tão amável, tão gentil. Era bondoso com as gatas, pegava-as no colo, mesmo o pelo delas o fazendo espirrar. E ele me deu um beijo na testa, não ficou me dando palmadas no traseiro como alguns guerreiros vikings fazem. Ele não pode ter mentido.

— Ele mentiu, você sabe disso, e você deixou que uma pessoa inocente pagasse pelo seu erro. Ficou calada e deixou que Annis fosse castigada por uma coisa que você fez. — Haakon respirou fundo. — Você tem alguma ideia de para onde ela foi? Ela, ou ele?Alguma pista?

— Como eu posso saber? Eu estava amarrada aqui quando aquela bruxa fugiu! — gritou Ingrid, indignada. Ela passou por Haakon com passos furiosos e foi para o pátio, onde respirou fundo.

— Cruzes, como o chiqueiro é fedorento!Haakon resistiu à tentação de sacudi-la. Não podia perder tempo; tinha de

encontrar Annis.Ingrid já não tinha serventia alguma para ele.Ele enfiou os polegares dentro do cinto, em um esforço para se controlar. As

mentiras e o egoísmo de Ingrid haviam causado aquilo tudo, e ele suspeitava que ela continuava mentindo, tentando proteger o amante, Aelfric.

— Quando eu voltar, quero você e todos os seus pertences fora desta propriedade.Ingrid ficou pálida. Seu corpo oscilou, como se ela fosse desmaiar. Haakon sentiu

uma pontinha de satisfação. O que quer que fosse que ela esperava, certamente não era aquilo. Sem dúvida, ela imaginara que tudo ficaria bem, já que seu pai era um homem livre e proprietário de uma fazenda de tamanho razoável. Era uma honra ter uma moça como ela trabalhando ali, Guthrun costumava comentar isso com frequência. Haakon chegara, inclusive, a pensar nela como uma possível noiva para Thrand. Mas agora tudo mudara.

— Mas...mas e meus pais? Não posso voltar para casa em desgraça! — choramingou ela. — Eles têm planos para mim. Esperam que eu encontre um rapaz para me casar e que aprenda a ser uma boa dona de casa. Você não pode me mandar embora.

— Você deveria ter pensado nisso antes de acreditar na conversa de um monge prisioneiro.

— A corte de Thorkell. para o sul — Ingrid falou, olhando para o chão. — Aelfric acreditava que Thorkell talvez o ajudasse. Ele disse que o rei não sabia sobre a invasão e que um grande mal iria acontecer àqueles que tomaram parte nela.

— Aelfric obviamente não conhece nosso estimado rei. Ele não tem muita simpatia por monges.

Haakon deu as costas para Ingrid e encaminhou-se para os estábulos. Queria correr, mas forçou-se a raciocinar e traçar um plano. Quão longe ela teria ido? Ela fugira de um perigo ali para enfrentar perigos ainda maiores!

Precisava encontrá-la.

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Floki corria ao seu lado. Rapidamente, ele selou o primeiro garanhão. Em seguida montou e começou a cavalgar, mas logo parou, voltou até o salão, pegou o vestido de Annis dentro do baú e colocou-o no focinho de Floki.

— Encontre-a — disse ele.Floki cheirou a roupa, latiu e saiu correndo pela estrada que ia para o sul. Haakon

tentou se concentrar na estrada diante de si em vez de nos ursos e lobos que espreitavam na floresta. Ele a encontraria e a traria de volta viva. Repararia o mal que lhe fizera.

Ela tinha de estar viva.

Capítulo 11

Annis abandonou a trilha que aos poucos desaparecia e enveredou por um bosque de bétulas e árvores carregadas de cipós, à procura de um lugar para passar a noite. Suas pernas doíam pelo esforço de correr, e seus pulsos e mãos estavam cobertos de vergões vermelhos causados pelas cordas. Ela queria encontrar um lugar onde pudesse se deitar e dormir. E rezava para que fosse um sono sem sonhos, sem imagens de um viking moreno de ombros largos e um sorriso terno que a beijava com paixão e depois a traía.

O uivo dos lobos ecoavam em seu cérebro. Quão perto eles estariam? Se estivessem próximos, ela devia procurar um local alto, já que não tinha como acender uma fogueira. Não tinha pedra de sílex, nada que pudesse produzir sequer uma faísca.

Annis fechou os olhos e os pressionou com as mãos. Precisava manter a calma. Entrar em pânico não ajudaria em nada. Essa fora uma lição que ela havia aprendido em Lindisfarne.

Fora insensato de sua parte fugir sem ao menos uma faca, sem absolutamente nenhum meio de sobreviver. Ela nem mesmo tinha ideia de quanto tempo levaria para chegar a um lugar minimamente civilizado. Seu estômago já começava a protestar, com fome, e, apesar do sol, ela tremia. Como seria durante a noite?

Mas ela não tinha escolha.Ficar na fazenda representaria outro tipo de morte. Agora, pelo menos ela tinha seu

orgulho, ainda que não tivesse mais nada. Não era uma escrava. Se Haakon não hesitara em puni-la tão severamente por algo que ela não fizera, ela não queria pensar como ele reagiria quando o resgate nunca chegasse.

Seus lábios começaram a tremer novamente e ela forçou-se a continuar andando, para distanciar-se o máximo possível de Haakon e de sua suposta e duvidosa proteção.

Ela passou a mão pelos cabelos tosquiados. Os fios estavam curtos e espetados, e sua cabeça estava mais leve, mas ela sempre tivera orgulho de seu cabelo. Seu tio não achara graça quando ela dissera, brincando, que se cortar o cabelo era uma condição para entrar no convento, ela jamais seria freira. Ele a acusara de ser vaidosa. O que ele diria se pudesse vê-la agora? Diria que era um castigo justo para uma mulher que não

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conseguia satisfazer o marido? O tio a culpara pelas amantes de Selwyn e por ela não ter conseguido convencê-lo a fazer uma doação mais vultosa para a Igreja.

Seu cabelo voltaria a crescer. Era um preço pequeno a pagar para ter de volta sua liberdade e ter as ilusões destruídas. Haakon provara que era da mesma cepa de Selwyn. Um homem inflexível e de má vontade.

Um arbusto espinhoso arranhou a panturrilha de Annis antes de se emaranhar em seu vestido, prendendo-a, fazendo-a cair com um joelho sobre um monte de dedaleiras. Ela inclinou-se e puxou o vestido, impaciente. Parecia que até as plantas estavam querendo aprisioná-la.

De repente, ela gelou.Na claridade fraca do sol poente, um par de olhos amarelos, dentes brancos

pontiagudos e um focinho escuro surgiram em meio à vegetação. Annis recuou devagar, mal ousando respirar. Então ela ouviu o ruído de passos abafados ao seu redor. Ela piscou e o som desvaneceu.

Estaria sua imaginação lhe pregando peças?Annis limpou as mãos no vestido e pôs-se de pé. Só podia ser. Os lobos tinham

medo de humanos. Fugiam e escondiam-se ao som de passos e vozes. Ela forçou-se a entoar uma cantiga bem baixinho, uma melodia que seu marido e os amigos costumavam cantar quando estavam embriagados, a altas horas da noite. Então recomeçou a andar, resoluta, apesar dos calafrios que a percorriam, com a sensação de que estava sendo espreitada.

A canção morreu em seus lábios. Tudo estava em silêncio, mas as folhas de um arbusto farfalharam. Ela precisava encontrar rapidamente um lugar seguro para passar a noite.

Alguma coisa roçou em seu ombro, e ela ergueu os olhos. Havia um cipó e um galho relativamente baixo, que parecia forte o bastante para aguentar seu peso. Ou subia ali, ou procurava a próxima árvore.

Então ela viu uma sombra mover-se e soube que tinha de subir na árvore imediatamente. Ela virou-se e procurou um apoio para os pés no tronco macio. Começou a subir, mas escorregou quando o primeiro lobo apareceu, rosnando e com os dentes arreganhados.

Annis agarrou-se com todas as forças ao cipó, mas não conseguiu subir mais do que uns poucos centímetros. Com uma força sobre-humana, gerada pelo medo, ela puxou o cipó e subiu um pouco mais, apoiando os pés no tronco da árvore. Dessa vez ela conseguiu segurar o galho, onde ficou balançando com as pernas encolhidas enquanto o lobo tentava alcançar seus pés. Annis agarrou o galho com todas as forças e conseguiu dobrar os braços e as pernas ao redor dele.

Ela olhou para baixo, mas arrependeu-se em seguida. O lobo deu um salto, mas caiu, arranhando o tronco com as garras e soltando um uivo baixo que quase fez o coração de Annis parar.

Com as mãos úmidas, ela se agarrou o máximo que pôde ao galho e começou a cantarolar baixinho outra vez. O lobo sentou-se e inclinou a cabeça, observando-a com os olhos amarelos, e depois começou a rodear a árvore.

Então Annis deu-se conta de que não poderia ficar ali para sempre, pendurada feito um morcego demente. Seus braços e pernas começaram a doer, e sua cabeça, a rodar. Ela tinha de se mover, mudar de posição, dar um jeito de sair dali.

Devagarinho, ela desenganchou uma perna, depois a outra, e usou os braços para impelir-se para cima, até ficar com o corpo dobrado sobre o galho, pela cintura. Concentrando-se em cada movimento, ela acabou conseguindo sentar-se em cima do galho e então olhou para baixo.

Outros dois lobos tinham se reunido ao primeiro, e os três circulavam em volta da árvore. De vez em quando um deles olhava para cima. Annis viu uma revoada de corvos

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sobrevoando a copa da árvore, crocitando alto. Ela se moveu devagar sobre o galho até se encostar-se ao tronco, perguntando-se quando aqueles animais se cansariam e desistiriam.

Um dos lobos inclinou a cabeça para trás e uivou longamente.

O UIVO do lobo ecoando na floresta fez com que Haakon se enrijecesse em seu cavalo. Todos os seus pensamentos se concentraram no que poderia haver à sua frente. Aquele som era suficiente para provocar um calafrio na espinha do mais corajoso e endurecido dos guerreiros, uma alcateia de lobos em movimento, avançando, famintos.

Floki empinou as orelhas, farejou o ar e uivou.— Sim, eu sei. Os lobos estão caçando. Eles têm filhotes para alimentar. É comum

nesta época do ano.Haakon respirou fundo. Mais uma preocupação para atormentá-lo.Como Annis tinha conseguido escapar do chiqueiro e fugir da fazenda, e ainda por

cima sem que ninguém visse? O lugar estava bem vigiado. Sem dúvida, seus guardas haviam subestimado o expediente e a determinação dela.

Haakon balançou a cabeça e estalou a língua. Ele também a tinha subestimado. Mais que os outros. Tinha colocado o orgulho à frente do bom senso.

E será que Annis tinha noção do perigo que estava correndo? Teria levado consigo algum mantimento ou arma, ou simplesmente fugira de mãos vazias?

Floki deu indícios de farejar o cheiro dela logo ao sul do lago. Suas orelhas empinaram e ele começou a andar mais rápido, conforme esquadrinhava uma margem da estrada e depois a outra. Ele farejou o ar, latiu e encaminhou-se para o sul.

Aparentemente — e felizmente — Annis fugira pela trilha que levava às fazendas adjacentes, em vez de enveredar às cegas para dentro da floresta.

Havia uma boa possibilidade de que os lobos e ursos evitassem a estrada, pois não gostavam de se defrontar com humanos. Mas Haakon sabia que alguns trechos da estrada cortavam os bosques de bétulas e pinheiros. E agora havia uma matilha de lobos nas redondezas, e eles não poupariam um humano solitário.

Outro uivo ressoou a distância. Floki aumentou a velocidade, e Haakon esporeou o cavalo, que passou de trotar a galopar, cada vez mais rápido, chegando a tirar as quatro patas do chão de uma vez só, correndo logo atrás de Floki.

Haakon rezava aos deuses para que fosse Annis que o cão tivesse rastreado.

ANNIS TRANSFERIU o peso para a direita, procurando alongar os músculos. Havia ficado tanto tempo na mesma posição que seus membros estavam dormentes. Os lobos continuavam ali, rodeando a árvore, e vez ou outra o que tinha o lombo acinzentado erguia a cabeça e uivava, fazendo-a se arrepiar.

Por mais que Annis detestasse admitir, Haakon estava certo. Fora dos limites da fazenda havia um mundo diferente, perigoso. Fora ingenuidade dela pensar o contrário. Da mesma forma que ele tivera razão ao aconselhá-la a não sair do abrigo de pedras, ele tinha razão também com relação a Viken. Aquelas terras estavam longe de ser seguras. Ela deveria ter dado ouvidos a ele. E o pior de tudo era que ela queria vê-lo novamente, queria pedir desculpas!

Annis encostou o rosto ao tronco da árvore. Acima de qualquer coisa, mesmo depois de tudo o que havia acontecido, ela queria sentir os braços fortes de Haakon ao seu redor, ouvir a voz dele reconfortando-a.

Infelizmente, isso era impossível. Ele não era o homem que ela imaginara.Assim que sua fuga fosse descoberta, os homens de Haakon sairiam com os

cavalos e cães à sua procura, enquanto ele permaneceria são e salvo na segurança de

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seu salão. Haakon a destruíra, e a consciência desse fato era angustiante. Annis tentou desviar o rumo de seus pensamentos.

Sua boca ficou mais seca que nunca, e ela tentou ignorar a sensação de fome e o estômago que roncava. Tinha de se concentrar em sobreviver; alimentar-se era uma prioridade secundária naquele momento. Certamente acabaria encontrando algum riacho e frutinhas silvestres. Tinha de haver algo assim ali na floresta.

Ela esticou o pescoço, tentando avistar algum brilho de água em meio ao arvoredo, mas não viu nada. Virou o corpo para o outro lado, na direção da montanha escura. Nesse instante ela ouviu um estalo, e o galho no qual estava sentada pareceu ceder um pouco.

Annis fechou os olhos e rezou baixinho.— Senhor do Céu, não deixe este galho quebrar, por favor.Ao ouvir o ruído do galho, os lobos ficaram imóveis feito estátuas. Annis viu a

língua rosada de um deles lamber o focinho. Agarrou-se com mais força ao tronco da árvore, mas o galho estalou de novo, sob seu peso.

Fora ilusão achar que estaria em segurança ali. Estava em uma armadilha, isso sim. Encurralada. Teria de fugir novamente. Apesar do ar tépido, ela começou a tremer incontrolavelmente.

Ergueu os olhos para o topo da árvore. Para onde poderia ir, Santo Deus? Aquele galho não aguentaria muito tempo, e os outros eram altos demais, impossíveis de alcançar. Havia um outro um pouco abaixo, do outro lado, que parecia sólido, mas ali os lobos a alcançariam com um simples salto.

Ela precisava fazer alguma coisa, mas o quê?, pensou desesperada.Annis tensionou os músculos e preparou-se para pular. Era a única maneira. Tinha

de calcular direito quando e onde cairia. Ela inclinou-se para a frente, mirando um ponto mais distante dos lobos.

No momento em que ela pulou, o galho caiu com um estrondo. Annis caiu ao lado do galho, rolou para longe e então se levantou.

Mas o ruído assustara os lobos, que desapareceram dentro da vegetação.Annis quebrou um pedaço do galho, para levar como arma. Pelo menos era alguma

coisa para se defender, caso os lobos voltassem. Ela procurou outra árvore onde pudesse subir. E então ficou paralisada ao deparar com um pequeno brilho amarelo, movendo-se furtivamente.

Os lobos estavam de volta, e em maior número, farejando uma presa fácil.Ela ficou imóvel, em silêncio, com a respiração suspensa.As formas cinza-escuras se esgueiravam cada vez para mais perto.Annis olhou para um lado, depois para o outro, quase sem se mexer. Não tinha

como saber de onde viria o primeiro ataque. Vagarosamente, ela foi recuando, até encostar no tronco de uma árvore. A casca áspera pinicou suas costas, mas pelo menos era larga e sólida.

— Socorro! — gritou ela, por fim. — Socorro, alguém me ajude, por favor!Annis ergueu o galho, pronta para lutar. Não acreditava que tinha conseguido

escapar de um bando de vikings selvagens para ser devorada por uma alcateia de lobos. Ela impulsionou o galho para trás, preparada para bater no primeiro lobo.

Então, do nada, um vulto branco e cinza surgiu do lado direito, pulou em cima do líder dos lobos com um rosnado feroz, e os dois rolaram sobre a terra e as folhas secas caídas no chão.

Outro lobo? Um cachorro? Bem, não fazia diferença. Alguém ouvira seus gritos de socorro.

O cão abocanhou o pescoço do lobo, sacudiu-o e jogou-o para o alto. O animal caiu no chão com um baque. Então o cão se pôs diante de Annis, de costas para ela e de

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frente para os lobos, com os dentes arreganhados, desafiando-os a atacar outra vez. Foi quando Annis reparou na mancha branca ao redor do olho e no rabo emplumado.

O cachorro de Haakon! Floki!Mas... se ele estava ali. Haakon devia estar também!Seu coração deu um pulo. Ela teria uma chance. Se aguentasse só mais um

pouco, seria salva!— Haakon! Socorro!O único som que ela ouviu em resposta foi o rosnado de um dos lobos. Annis

estremeceu. Será que estava sozinha, afinal?O cheiro de sangue deixou os lobos enlouquecidos, e eles tornaram a avançar,

desta vez rosnando e atacando Floki. Floki esticou as patas e rosnou de volta, desafiando e ao mesmo tempo defendendo-se.

Um dos lobos tomou a dianteira.Annis mirou a cabeça da fera e golpeou-a com o galho. O lobo parou, e ela bateu

outra vez, com tanta força que o galho se partiu e o animal cambaleou. Floki rosnou e mordeu o pescoço do lobo, que se sacudiu em um espasmo e depois ficou imóvel. Morto.

Os outros lobos pareceram avaliar os dois abatidos do bando, como se reconsiderassem.

Annis estendeu a mão trêmula e acariciou a cabeça de Floki. Será que ele tinha ido até ali sozinho?

— Haakon! Estou aqui, Haakon! — gritou mais uma vez. De repente desejou com todas as forças que ele estivesse ali! Precisava dele, mais do que nunca.

— Segure a minha mão! Aqui, Annis, agora!Haakon! Ele vinha a cavalo, a todo o galope! E inclinava-se para ela com um braço

estendido.Annis não pensou duas vezes. Estendeu a mão e sentiu os braços fortes

envolverem sua cintura, levantando-a. De volta para a segurança. De volta para o cativeiro.

Annis não conseguia raciocinar. Tudo que ela sabia era que aquele homem a tinha salvado da morte certa. Ela queria enterrar o rosto no peito de Haakon e inebriar-se com o aroma masculino. Aquilo era real, ele estava ali, e sua provação tinha terminado.

Um dos lobos arreganhou os dentes e pulou com as garras abertas na anca do cavalo. O cavalo parou e empinou, jogando Haakon e Annis no chão. Em seguida saiu em disparada, batendo os cascos em um ruído que foi rapidamente sumindo na distância.

Haakon amorteceu a queda de Annis, que rolou para cima dele. Ela apoiou as mãos na terra, forçando-se a ficar em pé. Haakon não se movia. Estava esparramado no chão, com o rosto para baixo.

— Haakon! Haakon, levante-se! — Annis puxou a túnica de couro dele.Ele gemeu e começou a se erguer, mas caiu novamente, sem forças.Os lobos vinham rastejando outra vez, avançando devagar. Annis olhou para a

direita e para a esquerda. Precisava de uma arma. O galho quebrado estava a vários metros de distância.

Floki correu na direção deles, ganindo, com uma das pernas traseiras deixando um rastro de sangue na terra.

Um lobo avançou, e Floki deu outro rosnado de aviso e saltou. Cão e lobo rolaram várias vezes, atracados, até que, dessa vez, foi Floki que ficou imóvel.

Annis resistiu ao impulso de enterrar o rosto nas mãos. Ela começou a engatinhar na direção do galho quebrado, mas Haakon já estava de pé, brandindo a espada.

— Afaste-se, Annis! Não se mexa. Se você correr, eles vão correr atrás de você.Ele deu um passo à frente, cortando o ar com a espada, o olhar atento ao redor.— O que você vai fazer?— Lutar. É o que eu sei fazer bem.

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A lâmina da espada de Haakon cintilou no lusco-fusco enquanto ele avançava por entre os lobos, cortando e esfaqueando, tentando chegar perto de Floki.

Um lobo caiu, depois outro.Os demais fugiram. Mas Haakon continuava brandindo a espada, para defender a

si mesmo, Annis e Floki, até que todos os lobos desapareceram. Então ele baixou a espada, o rosto sangrando e abatido.

O silêncio que veio a seguir foi inesperado. A princípio, Annis achou que devia estar enganada. Não havia uivos, nem folhagens farfalhando, somente a brisa soprando amena por entre as folhas das árvores.

Ela cambaleou até Haakon, que estendeu um braço e a puxou para si. Um gemido escapou dos lábios dela.

— Shh, está tudo bem — murmurou Haakon, com a boca em seus cabelos. — Eles foram embora. Você está em segurança. Eu estou aqui, com você.

— Você veio atrás de mim. — Annis tocou o peito dele, os braços, como se quisesse comprovar que ele era real, que existia e estava ali, respirando, vivo.

— Você achou que eu iria deixar você ir embora tão facilmente?— Eu não tinha ideia.Annis inclinou a cabeça para trás, e Haakon a puxou para si. Ela enterrou o rosto

na túnica de couro, enquanto ele acariciava os cabelos mal cortados e espetados. Não havia necessidade de palavras. O coração dele batia contra o ouvido de Annis, e isso era suficiente.

Depois que parou de tremer, ela se afastou. Os braços de Haakon penderam e ela deu três passos para trás.

Havia cinco lobos mortos, e Floki gania baixinho. Annis ajoelhou-se na terra macia ao lado do cão. Podia ver as marcas de dentadas no corpo dele. Aquele cão tentara salvá-la e quase perdera a vida fazendo isso. Era ela quem deveria estar caída no chão, sangrando, mas em vez disso era o pobre animalzinho.

Ele não podia morrer, não depois de tudo o que fizera.— Acho que ele tem chances de sobreviver, com os cuidados adequados.— Annis

começou a rasgar tiras de pano da barra de seu vestido. — Se eu enfaixar a perna dele e conseguirmos mantê-lo quieto por alguns dias, ele vai se recuperar.

— Esta clareira é muito devassada. É impossível nos defendermos aqui — disse Haakon, em tom apreensivo. — Estamos em perigo, vamos sair daqui. Venha.

Annis ergueu os olhos para ele e contemplou as feições marcantes e tensas. Ele a olhava como se ela fosse culpada pelo que acontecera com o cão. Mas Annis não pedira que ele viesse atrás dela, nem que Floki enfrentasse os lobos. Mas o fato era que o cão salvara sua vida. E agora ela tinha uma dívida para com ele.

— Não podemos deixar Floki morrer. Ele salvou a minha vida. Tentou salvar a sua. Ele precisa da nossa ajuda, por favor.

Haakon resmungou alguma coisa, exasperado, enquanto limpava a espada na relva coberta de musgo, deixando manchas vermelhas no chão.

— Os lobos vão se reagrupar e voltar. O cheiro de sangue vai atraí-los. Floki não pode andar com essa perna. Ele não vai durar muito, lamentavelmente.

— Então talvez seja melhor eu ficar e enfrentá-los se eles voltarem. — Annis debruçou-se sobre Floki para examinar os ferimentos, e o cão soltou um ganido.

— Está maluca? — Haakon segurou o braço dela, enraivecido. — Eu não vim até aqui para encontrar você e depois deixá-la à mercê dos lobos. Vai deixar que o sacrifício deste animal tenha sido em vão? Se ficar aqui, tudo o que ele sofreu por sua causa não terá sentido algum.

Annis pressionou a palma das mãos nas pernas para recuperar o controle. Responder gritando não adiantaria nada, só pioraria a situação. Ela contou devagar e respirou fundo, antes de falar:

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— Ajude-me a salvar este cachorro.Vamos levá-lo conosco. Ele é um bom cão.— E eu não sei disso? — retrucou Haakon, mais calmo. Ele se ajoelhou e afagou o

bichinho. — Eu o crio desde que era um filhote, Annis. Mas o ferimento é muito grave.— Eu posso salvá-lo. Por favor, me dê essa oportunidade. Deixe-me enfaixar os

ferimentos.Haakon suspirou, colocou o cão sobre os ombros e começou a andar, não em

direção à estrada, mas para dentro da floresta. Annis correu atrás dele, esforçando-se para acompanhar o ritmo dos passos largos, conforme ele se embrenhava cada vez mais entre a vegetação.

— Aonde você está indo? A estrada é para o outro lado. — Ela apontou com a mão. Será que o choque de ver seu cão entre a vida e a morte deixara Haakon perturbado? — Está pensando em carregar Floki até a fazenda?

Annis não estava preparada para voltar. Recusava-se a ser encarcerada novamente.

— Sei onde estamos. — Haakon não diminuiu o passo. — Tem uma cabana velha de lenhador logo adiante.

— Mas... — Annis olhou por sobre o ombro, quase certa de que as folhagens estavam se mexendo e que havia olhos espreitando. Ela segurou o cotovelo de Haakon.

— Podemos nos abrigar lá — disse ele.— E você pode cuidar de Floki. Talvez você esteja certa e ele não vá para Valhalla.

— A voz de Haakon embargou ligeiramente. — Porque certamente, se existe um cão que merece ir para lá, é Floki, por sua coragem.

— Como você sabe que tem uma cabana?Haakon virou-se para fitá-la com os olhos azuis cortantes.— Esta é a minha terra. Conheço cada recanto, cada pedra, cada árvore.Annis parou. Não acreditava que, depois de tudo pelo que tinha passado, andado,

de todo o perigo a que ficara exposta, não havia nem ao menos saído da propriedade. Que fuga patética. Ela levou a mão à coleira no pescoço.

— Cada pedra? Duvido.Haakon sorriu e ajeitou o peso do cão sobre os ombros.— É modo de falar. Mas eu sei que tem uma cabana, porque me escondi lá quando

era pequeno, para não ter de ir embora. O lenhador era meu amigo, um antigo companheiro de navio do meu pai. Ele me ensinou muita coisa sobre a floresta, como decifrá-la e compreendê-la.

— E você conseguiu não viajar?— Não. Meu pai me achou. — Haakon sorriu, com o olhar distante. — Gorm não

concordou em me esconder. Mas eu aprendi a aceitar minha punição como um homem. Deixei esta terra sem olhar para trás, e jurei para mim mesmo que um dia eu voltaria e que tudo isto seria meu. Passaram-se dez anos até eu conseguir voltar, mas consegui.

— Quantos anos você tinha quando partiu?— Sete.Annis mordeu o lábio. Quais lições Haakon teria aprendido? Será que ele não

entendia seu desejo de voltar para casa também?— E, quando você voltou, estava tudo igual?Haakon balançou a cabeça.— Não, muita coisa tinha mudado. Meu pai estava doente. Ele tinha negligenciado

as terras. Tinha muita coisa a ser feita. E ainda há muito trabalho a fazer. Meu povo merece.

— Mas. — Annis queria saber mais — . é uma fazenda próspera agora. Eu vi os depósitos de grãos, os animais.

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— Venha, vamos rápido. Ainda temos de andar um pouco até ficarmos em segurança atrás de uma porta fechada. Lembre-me de lhe contar a história qualquer hora dessas.

Haakon apertou ainda mais o passo, com expressão determinada no rosto.Annis tentou segui-lo, mas de repente suas pernas se recusaram a obedecer, e ela

caiu sentada no chão.— Espere um pouco...preciso descansar.— Você pode descansar na cabana. Vamos!— Eu não consigo, minhas pernas doem.Annis começou a chorar, e Haakon parou.— Você foi mordida?Ela balançou a cabeça.— Milagrosamente, nenhum dos lobos encostou em mim. A saia do meu vestido se

rasgou um pouco quando pulei da árvore, mas eu não me machuquei. Mas, preciso descansar.

Ela apoiou a mão em um tronco de bétula, sentindo a casca fria na pele.— Você pode descansar na cabana. Aqui é perigoso. Os lobos podem voltar a

qualquer momento. Não acha que já causou problemas suficientes?Annis queria falar, despejar toda a história sobre Ingrid e Aelfric, mas de que

adiantaria? Provavelmente Haakon a culparia, ainda por cima. Ela queria esquecer aquele episódio. Tinha tentado fugir e fracassara.

— Quem mais está procurando por mim?— Eu vim sozinho. — Haakon ajeitou Floki novamente sobre os ombros. — Agora

vamos, porque não posso carregar vocês dois. Falta pouco. É logo ali, depois da próxima colina.

— Eu não pedi para você me carregar — disse Annis, brava. Ela forçou as pernas a se moverem. Mais tarde decidiria o que fazer.

Capítulo 12

Conforme Haakon havia prometido, a cabana logo apareceu. A luta tinha terminado. Ela tentou correr, meio cambaleando até a cabana. Seus dedos trêmulos tatearam a porta.

— A porta está trancada.Annis teve vontade de cair de joelhos e chorar. Estava diante de uma cabana de

quatro paredes e uma porta, trancada para evitar invasores. A segurança estava tão próxima, mas ao mesmo tempo fora de alcance. Mas, depois de tudo o que tinha passado, já não conseguia mais chorar.

— Permita-me. Conheço o truque para abri-la — disse Haakon, abrindo a porta com facilidade.

Ao mesmo tempo em que o interior era compacto e pequeno, era confortável e estava seco. Havia uma pilha de folhas secas e gravetos reunidos em uma fogueira. No

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buraco de saída de fumaça, uma coruja branca observava tudo, mas logo crocitou duas vezes e bateu as asas, desaparecendo na noite.

As pernas de Annis começaram a tremer e ela se deixou cair no chão. Naquele instante, a grandiosidade do que tinha acontecido se abateu sobre ela. Sempre que fechava os olhos, via as presas dos lobos à mostra. Decidiu, então, dobrar as pernas e apoiar a cabeça nos joelhos.

Haakon colocou Floki no chão e fechou a porta, colocando a viga para trancá-la por dentro com um som sólido e reconfortante.

— Vamos ficar aqui. A porta é de madeira grossa e nos manterá a salvo dos lobos e outros predadores. Você não precisa ter medo de nada aqui dentro.

— Estou com frio, muito frio — disse ela, batendo os dentes.— Ainda bem que trago uma pedra de sílex e uma barra de metal no cinto — disse

ele, tirando os itens da tira na cintura. — Logo a cabana estará aquecida. Eu trouxe um pedaço de pão e um de queijo que podemos dividir.

Comida. A boca de Annis salivou. Nunca um pedaço de pão seco e queijo lhe apeteceram tanto, mas ela acenou.

— Primeiro vou examinar Floki.— Você não está em condições de nada. O sangramento de Floki parou. Coma e

se aqueça. Com o tempo o choque passará.— Ainda preciso examiná-lo.— Depois. Você precisa se recuperar primeiro. E vai examinar Floki quando eu

disser, e não antes.O protesto de Annis morreu em seus lábios. Haakon estava certo. As mãos dela

tremiam, e não conseguiria fazer muita coisa naquele estado.— Obrigada. — Ela estendeu a mão. — Obrigada por tudo.— Você acredita em mim agora? — perguntou Haakon, tirando a túnica de couro.

— A floresta é muito perigosa. Suas chances de sobrevivência aumentam muito comigo ao seu lado.

— Você vai me amarrar de novo? — perguntou ela, meneando a cabeça.Annis queria saber por que ele tinha ido procurá-la. Seria porque estava

preocupado com sua segurança, ou porque não queria arcar com a perda de uma valiosa refém? Ela esboçou um sorriso. Na verdade, não importava muito o motivo. Sem a ajuda dele, ela estaria morta agora, com o corpo mutilado, uma possibilidade em que não ousava pensar.

— Se amarrá-la, você não poderá cuidar de Floki. — Haakon correu a mão pelos cabelos. — Para onde você fugiria, Annis? Quer morrer no meio dos lobos? Não é uma morte bonita. Você teve muita sorte. Nós não nos machucamos muito.

Annis colocou a mão na cabeça e tentou pensar. Sua mente estava em turbilhão e fora de controle de novo. Sabia que devia detestar ter sido recapturada, mas na verdade tinha sido um alívio. Ela não teria como sobreviver na mata selvagem. Mais uma vez questionou o tipo de vida que estava levando. E, mesmo assim, tudo o que mais desejava era recostar a cabeça no peito de Haakon.

— Achei que meus dias tinham terminado quando o cavalo empinou e nos atirou no chão.

— Nós vencemos. Estamos vivos e é isso que conta. — Haakon a consolou apertando o ombro dela rapidamente, antes de juntar alguns gravetos no canto da cabana.

— Graças a Floki. Ele nos defendeu e venceu os lobos. — Floki lambeu a mão de Annis. — Como você sabia que eu tinha fugido?

— Encontrei Ingrid no chiqueiro. Ela não estava muito feliz por ter sido amarrada.

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— Ela foi me levar comida. Talvez eu não tenha sido muito grata. — Annis mordiscou o lábio. Será que devia contar o que tinha descoberto? Quem era o verdadeiro culpado? Será que isso importava depois do que havia passado?

— Foi a melhor maneira que encontrei. Eu precisava fugir.— Como você conseguiu?— Meu pai sempre quis que eu aprendesse como derrubar um homem. Ele achava

que eu tinha de estar preparada para tudo.— Mas não é uma prática que você use sempre.— Nunca tinha usado. — Ela deu um sorriso rápido. — Espero não precisar usar

de novo.— É bom saber que seu pai cuidava de sua segurança.— Minha vida não foi mais a mesma depois que ele morreu e minha mãe se casou

de novo. — Annis passou a mão no cabelo. — Ele cuidava de mim. Fui a única filha dele que sobreviveu depois da infância.

— Tive de mandar Ingrid embora. — A voz de Haakon reverberou nas paredes da cabana.

Haakon começou a colocar os gravetos metodicamente para fazer uma fogueira. Ele estava de costas para ela. Annis pressionou as mãos. Será que ele tinha mandado Ingrid embora por achar que ela a havia ajudado a fugir?

— Você a mandou embora? Por quê?— perguntou Annis sem pensar duas vezes.— Aelfric a seduziu e ela lhe deu a chave do cofre. — Haakon virou-se para Annis

com os lábios esbranquiçados e olhar angustiado. — Você alegou inocência e eu não acreditei. Isso não me saiu da cabeça. Peço seu perdão.

Annis sentiu a garganta fechar e não conseguiu responder de outro jeito senão meneando a cabeça. Não se tratava de triunfo, mas de um cansaço dolorido.

— Continue.Haakon disse a ela tudo o que Ingrid havia contado. Annis sentiu dificuldade em ter

pena de Ingrid. Ela tinha causado tudo aquilo para si mesma, ela e aquele monge herege.— Imagino que ele tenha colocado o crucifixo na minha roupa de cama para me

lembrar do meu dever — disse Annis, torcendo a boca. — Ele disse que eu era uma mulher perversa.

— Perversa? — Haakon ergueu uma sobrancelha. — Eu a chamaria de outras coisas, mas nunca de perversa, Annis. Por que ele a chamaria assim?

— Fiz coisas que não era para fazer. Eu deveria estar morta. Ele me disse isso. — Annis cruzou os braços. — Ele cortejava Ingrid a todo instante, sussurrando mentiras. Ele colocou todo mundo em perigo.

— Por que você e ele discutiram hoje cedo?Annis levou a mão à testa. Tinha sido naquela manhã, mesmo? Parecia fazer tanto

tempo. Mas, apesar de tudo, Haakon tinha saído à sua procura e salvado sua vida. Devia a verdade a ele.

— Ele queria fugir e me convidou para ir junto, mas eu recusei. Disse a ele para pensar nos outros. Claro que não foi o que ele fez. Ingrid achou que eu estava muito alterada e sugeriu que eu desse uma volta até o lago. Eu não sabia que você estava ali perto, nem que Aelfric escaparia enquanto... enquanto estávamos juntos.

— Ele só se preocupou consigo mesmo, Annis.— Meu tio o respeitava muito. Esperava-se que Aelfric atingisse muitas cosias. O

plano de meu tio era mandá-lo para Roma. Ele parecia tão devoto, mas me fez sentir-me suja. — Annis passou a mão pelo nariz. Ela queria explicar e que Haakon entendesse a razão pela qual ela havia fugido. Continuou a falar com a voz fraca. — Ele me fez sentir que eu deveria ter morrido.

— Ele mentiu para você — disse Haakon, olhando-a com carinho, mas manteve as mãos ao lado do corpo.

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Bastava um gesto apenas para que ela caísse nos braços dele, mas não lhe restou alternativa se não se ajoelhar ao lado de Floki.

— Você não fez nada para se envergonhar. Você sobreviveu.— Mas... mas... — Annis tentou pensar em um argumento lógico que explicasse

por que Aelfric tinha razão, mas queria acreditar em Haakon. Não era ruim ter sobrevivido.— O mundo perderia muito se você estivesse morta. Você tem o poder da cura.

Salvou Thrand de ficar desfigurado para sempre. — Haakon ajoelhou-se ao lado de Floki e o acariciou. — Quem teria salvado Floki se você tivesse morrido? É melhor se concentrar em viver, do que se culpar por não ter morrido.

Annis voltou a atenção para o cachorro. O corte na perna traseira era fundo. Assim que ela tocou o sangue coagulado, o ferimento voltou a sangrar em profusão. Annis estremeceu ao lembrar como Floki tinha sacudido o lobo pelo pescoço.

Tudo o que tinha de fazer era parar o sangramento e amarrar a ferida. Só isso! Ela sabia o quanto gostava daquele animal, por isso tinha de salvá-lo.

Mas como? Ela cortou outra faixa de tecido de seu vestido e colocou sobre o ferimento, apertando com força, mas o sangue continuava a fluir.

Annis olhou ao redor. Precisava arrumar alguma coisa que parasse o sangramento, mas o pequeno cômodo tinha apenas algumas folhas. Haakon se abaixou, segurando a barra de metal em uma mão e na outra um graveto.

— Posso pegar esse graveto antes que você o jogue fora? Preciso usar em Floki.— Mas qual a serventia de um graveto? Além de acender uma fogueira?Em vez de responder, Annis pegou o graveto com cuidado para não encostar a

mão na de Haakon.Ela raspou uma espécie de fungo do graveto e esfregou-o no ferimento da perna

de Floki. O sangramento parou imediatamente. Em seguida, ela enfaixou a perna com movimentos lentos e simples, para afastar da mente a presença daquele homem alto e forte ao seu lado.

— Isto evitará que sangre muito. Já vi usarem isso e dar certo.Haakon balançou a cabeça. Ele produziu uma faísca com a barra de metal e o

graveto e colocou galhos na fogueira. Diferente das barras de metal da Nortúmbria, a de Haakon era curvada e decorada com serpentes e ficava pendurada atrás do cinto dele junto com a pedra de sílex. O fogo logo pegou nos gravetos secos, aquecendo e iluminando o cômodo.

Annis terminou de enfaixar a pata de Floki e sentou-se sobre os calcanhares, estendendo as mãos sobre o fogo.

— É estranho. Hoje de manhã achei que estava quente, mas agora meu corpo inteiro está frio.

Haakon resistiu à urgência de recostar o rosto no cabelo tosquiado de Annis e implorar pelo seu perdão de novo. Ele bem sabia que a tinha punido por ciúme e temor. Não saberia nem como começar a explicar como tinha tido medo ao encontrá-la acuada pelos lobos, lutando pela vida. E, logo depois, a primeira preocupação dela tinha sido com o cão.

— Sua tarefa terminou. — Ele estendeu a ela um pedaço de pão e queijo em uma tentativa de fazer as pazes.

Annis pegou o pão e o mordeu faminta, como se não comesse há dias. Ele achou que ela iria comer todo o pão, mas ela o partiu e entregou um pedaço a ele.

— Sobrevivi até agora — disse ela, voltando a mão para junto do corpo. — Falta saber o que acontecerá comigo depois.

— Eu não a farei sofrer mais, prometo.Ela o fitou com olhos angustiados e ele a ajudou a se levantar, abraçando-a com a

intenção de beijá-la. Mas a dor na costela o impediu de se movimentar mais, levando-o a gemer. Annis virou a cabeça e se afastou.

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— Você está ferido. Deveria ter me dito para que eu pudesse ajudá-lo.Ao olhar para baixo, ele viu umas manchas escuras na túnica de baixo.— Foi apenas uma mordida no meu braço e alguns arranhões. Os lobos se feriram

bem mais do que eu. Você não vai precisar colocar o fungo do graveto em mim.— Tire sua túnica de baixo. Deixe-me decidir o que fazer. Sou uma curandeira —

disse ela, inclinando a cabeça para onde Floki descansava.Haakon obedeceu e tirou a túnica.— Está vendo? Não há nada com que se preocupar. Já tive ferimentos bem piores.— Você tem razão, são ferimentos leves. Você sobreviverá. Serão apenas alguns

dias de desconforto e inchaço. — Ela passou a mão de leve sobre o machucado mais profundo.

Haakon segurou a mão dela, impedindo-a de continuar. Ele a desejava, mas sabia que tinha de ir devagar. Se ela o tocasse, era óbvio que o desejo tomaria conta dele com a mesma intensidade do fogo que queimava no meio do cômodo.

Annis ficou chocada com a reação dele, levando-o a entender que precisava ser paciente.

Haakon não queria ser acusado de ter se aproveitado dela, mas queria liberar a paixão que habitava o fundo de seu coração. Sua vontade era de que ela nunca mais se sentisse envergonhada. E ela precisava ouvir a vontade de seu corpo, dominado pelo desejo. Mas, para que isso acontecesse, ele teria de ir com calma e ganhar a confiança dela.

— Não precisa se apavorar. Minha túnica de couro evitou que a mordida cravasse na minha pele.

Annis puxou a mão, deixando-a ao lado do corpo.— Eu não fazia ideia. Deve ter doído carregar Floki como você fez.— Na verdade, não. Estou acostumado. Quero que esse cachorro viva tanto

quanto você. Precisávamos andar o mais rápido possível até um lugar seguro. — Haakon passou a mão pelo cabelo. — Ficaremos aqui até Floki melhorar.

— E se eu quiser ir embora antes.? — As chamas iluminaram os olhos dela.— Você quer viver, não é? Ir para o sul pelas montanhas será morte certa. — Ele a

acariciou na mão. — Há sempre a promessa de o resgate chegar.Haakon comprimiu os lábios. Odiava pensar em perder Annis, embora soubesse

que era o que aconteceria quando o resgate fosse pago.Ela arrumou a faixa ao redor da pata de Floki e baixou a cabeça, concentrada no

que fazia.— Essa sempre será uma possibilidade.— Virá antes do que você espera. — Haakon pousou a mão sobre o ombro dela.

Não ousaria dizer a ela como queria que o resgate demorasse o máximo possível. Naquele dia mesmo correra um grande risco de perdê-la e pretendia confiar em sua intuição durante o tempo que ficassem juntos.

— Você tem certeza disso? — perguntou Annis, bocejando.— É verdade, e você deve dormir. Venha, recoste-se em mim. Eu a manterei

aquecida.Annis colocou a mão sobre a boca para abafar mais um bocejo.— Vou dormir perto de Floki, caso o sangramento recomece.— Do que está com medo, Annis, de mim ou do seu próprio desejo?Não houve resposta. O único som era o crepitar da lenha no fogo. Quando ele

levantou a cabeça para olhar, viu que ela tinha fechado os olhos e, exausta, tinha caído no sono.

Com cuidado, ele dobrou a túnica de couro e colocou-a sob a cabeça dela, afastando-lhe os cabelos do rosto e beijando-a na testa. Havia tanto a dizer, mas ficaria para outra hora.

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QUANDO ANNIS abriu os olhos, o sol se insinuava pelo buraco por onde saía a fumaça, iluminando o cômodo. Espreguiçou-se e logo percebeu que a cabana estava vazia. Estava acompanhada apenas por Floki, que dormia tranquilamente. Ela dobrou as pernas e as abraçou.

Haakon tinha ido procurá-la pessoalmente, em vez de mandar um de seus homens, o que significava que ele deveria desejá-la de alguma forma. Mas ele nem sequer havia tentado beijá-la, e como ela gostaria de ter sentido os lábios dele contra os seus!

Haakon apareceu à porta e a fechou com um clique. A túnica de linho amoldava-se ao tórax dele, realçando os músculos que Annis já conhecia. Ele se moveu devagar como se estivesse com dor.

Annis o observou, procurando forças para odiá-lo, mas sua atenção se voltou para o movimento das mãos dele, embora seu corpo ainda vibrasse de paixão.

— Fui procurar alguma coisa para o nosso desjejum. — Os olhos dele brilhavam. — Você estava dormindo profundamente, até roncando baixinho. Eu não quis acordá-la.

— Eu não ronco.— Então deve ter sido Floki. — Haakon disfarçou um sorriso.Ao ouvir seu nome, Floki levantou a cabeça e balançou o rabo.— Deve ter sido — concordou Annis, sorrindo. Então examinou a perna de Floki.

Dessa vez, a faixa tinha ficado no lugar. — Parece que Floki está melhor, o sangramento parou.

— Graças a você.— E ao fungo do graveto.— Isso também ajudou. — Haakon passou o dedo no rosto. — Você quer comer

alguns morangos, ou posso comê-los sozinho?— Morangos?— Morangos verdadeiros. — Quando ele abriu a mão, Annis viu as frutinhas

vermelhas. — Daqui a alguns dias teremos as amoras silvestres, um sabor dos deuses, cor de laranja e deliciosas.

— Nunca comi amoras silvestres.— Mas vai experimentar. Em algumas semanas estarão maduras.Haakon estava diferente naquele dia.Parecia mais jovem e mais despretensioso. Estava à vontade, bem diferente do

guerreiro que ela tinha visto nos últimos dias, remetendo-a ao homem que encontrara no lago. Quem era ele, afinal? Será que seria ousada o suficiente a ponto de confiar nele? Ele havia pedido desculpas, algo que Selwyn jamais faria.

— Quando vamos sair daqui? — perguntou Annis. — Imagino que não vamos esperar até as amoras silvestres amadurecerem.

— Não iremos hoje. Floki precisa de um dia ou dois para se recuperar. Ele precisará andar durante a maior parte do percurso. A distância é muito grande para eu carregá-lo. — Haakon ficou sério de repente. — Meu cavalo fugiu. É capaz de ter voltado para casa, mas não posso contar com isso. Logo meus homens sairão à minha procura.

— Você pode voltar e eu fico aqui com Floki.Haakon estreitou os olhos.— Acho que não. Devemos voltar juntos.— Estarei aqui quando você voltar — disse Annis, baixando a voz. — Ontem

escapei da morte por pouco e não quero passar por aquilo de novo. Vou esperar pelo resgate.

— Não há nenhuma resposta ainda.

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— Vou ficar. Devo a você minha vida, da mesma forma que um dia salvei a sua. — Annis colocou a mão sobre o abdômen. — Já esqueci o sabor do pão de ontem e, pelo cheiro, esses morangos parecem deliciosos.

— A comida é uma tentação para você— disse Haakon, colocando um punhado de morangos sobre a saia dela.

— Devo acrescentar esse detalhe à minha tática de sedução.Sedução. Annis sentiu a pele arrepiar inteira ao som daquela palavra. Será que ele

estava falando sério? Mesmo depois de tudo que haviam passado juntos, ele ainda a desejava? Só de pensar sentiu o coração se aquecer, mas recusou-se a se deixar levar pelo sentimento. Assim, achou melhor focar a atenção nos morangos.

— Estavam muito bons — disse ela, lambendo os dedos.— Seu queixo está sujo de morango. — Haakon se aproximou e tirou o pequeno

veio de suco com o dedo, assim como um pai faria com uma criança.Mesmo tentando se controlar ao extremo, Annis sentiu os lábios formigarem de

desejo e inclinou a cabeça para trás, convidando-o a beijá-la, mas Haakon, em vez de tocá-la com a boca, parecia mais interessado em procurar algo no rosto dela.

— Vamos jogar para passar o tempo? — perguntou, inquieto.— Que tipo de jogo? Não creio que tenha trazido um tabuleiro — disse ela, sorrindo

e tentando acalmar o coração disparado.— Gorm riscou um jogo no chão bem aqui. Podemos usar os pedregulhos para

jogar. Gorm e eu costumávamos jogar sempre que eu vinha visitá-lo.— Se você quiser. — Ao olhar para o desenho no chão, Annis soube qual era o

jogo .Era Trilha. O objetivo era conseguir alinhar três pedregulhos em uma fileira e tirar

as peças do oponente do tabuleiro. Bem, jogar iria distraí-la e ela não pensaria em beijar Haakon. Ele já tinha mostrado estar hesitante.

— Você está com medo?— Eu enfrentei uma alcateia de lobos, por que estaria com medo de um simples

jogo? — Annis esboçou um sorriso, mas seu coração batia descompassado.A motivação naquele instante era descobrir se Haakon também a desejava. Ou

será que o interesse dele se restringia ao resgate que receberia por ela?Annis sabia que ele a havia desejado uma vez, mas não tinha tentado nada desde

que haviam chegado àquela cabana. Seria preciso assumir o risco, pois tinha de descobrir a verdade.

Assim, respirou fundo e indagou:— Vamos apostar alguma coisa?— Pensei em jogar apenas, mas se você insiste. — Haakon se inclinou para a

frente. — Quais são seus termos? O que quer apostar?Annis correu a ponta da língua pelos lábios antes de responder:— Se eu ganhar você precisa me fazer um favor.— Depende do favor.— Você só saberá se eu ganhar.— Aviso que jogarei sério e não a deixarei ganhar facilmente.— Não me refiro a esse tipo de favor.— Ela engoliu em seco. — Trata-se de algo

bem diferente.— Isso parece intrigante. Mas e se eu ganhar?— Então eu lhe obedecerei e farei um favor para você.— Combinado — assentiu ele, inclinando-se para a frente. — Pretendo ganhar,

valquíria.— Eu também.

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Haakon dispôs os pedregulhos e Annis fez a primeira jogada. Sua mão tremeu quando ela colocou o pedregulho no centro. Haakon colocou os dele nos cantos e o jogo começou, uma vez cada um, entretidos.

Annis se esforçou ao máximo para se concentrar no tabuleiro e não na maneira sensual como Haakon estava sentado e muito menos na pele morena do peito que aparecia pela abertura da túnica.

Havia seis peças remanescentes no tabuleiro. O próximo que conseguisse alinhar três pedregulhos poderia tirar o último.

Annis estudou o tabuleiro. Parecia simples, até demais. Ela moveu um pedregulho. Haakon reagiu, mas ela conseguiu alinhar seu terceiro pedregulho.

— Eu ganhei, ganhei! Consegui o objetivo.Haakon olhava atônito para o tabuleiro e contava nos dedos.— Impossível. Eu nunca perdi esse jogo, mesmo antes de ir para a corte de Carlos

Magno.— Você está duvidando do resultado?— Annis inclinou a cabeça e olhou para ele

de soslaio, saboreando a vitória.— O que quer que eu faça? Estou esperando suas ordens.— Quero que faça amor comigo — sussurrou ela rápido, antes que perdesse a

coragem.Ficou observando o rosto dele, esperando algum sinal. Haakon estava imóvel,

apenas respirando devagar. Sem jeito, ela voltou a olhar para o tabuleiro e, com as mãos trêmulas, começou a tirar os pedregulhos do tabuleiro.

— Ah, Annis, não precisaríamos ter jogado por isso. — Haakon acariciou o rosto dela com as costas da mão para depois lhe levantar o queixo para que seus olhares se cruzassem. Foi quando ela viu a chama da paixão reluzindo nos olhos dele. — Eu a desejo desde que chegamos aqui, mas minhas costelas estão doloridas.

— Entendo. — Annis manteve o queixo erguido, mas sentindo-se uma tola. Deveria ter desconfiado que ele teria uma explicação simples por não ter tomado uma atitude.

Annis era iniciante no jogo da sedução, e até então não tinha tido muito sucesso. A desculpa de Haakon tinha sido uma maneira delicada de recusá-la. Ela se forçou a sorrir para disfarçar o desapontamento.

— Entendi. Foi apenas uma sugestão. Deixe-me pensar um pouco e pedirei outro favor.

— Acho que não encontrará nada. — Ele fez uma pausa e colocou as mãos atrás da cabeça. — Se quiser fazer amor, terá de tomar a iniciativa. A atitude tem de partir de você. Não quero que digam depois que eu a forcei.

Annis se aproximou e o beijou na boca rapidamente, como se uma borboleta tivesse pousado nos lábios dele. Depois voltou a se sentar como estava.

— Pronto, está vendo?— Você precisa fazer mais do que isso— disse ele, sério. — Annis, você disse que

ficou envergonhada antes. Não tenho intenção alguma de que se sinta assim de novo. Mostre o quanto me deseja.

— Eu desejo você. — Annis colocou as mãos no rosto e sentiu que sua pele estava quente. Havia explicado errado.

— Não tenho vergonha quando estou com você.— Prove. Faça amor comigo — disse ele com a voz rouca. — Satisfaça-me do jeito

que quero lhe dar prazer.Era um teste. Mas Annis sabia que, se não aproveitasse a oportunidade, seria

difícil ter outra. Assim, colocou as mãos sobre as pernas, respirando fundo, tentando imaginar o que faria. Ela teria que dar o primeiro passo.

— Deite-se.

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Haakon ergueu uma sobrancelha ao ouvir o tom autoritário da voz dela e deitou-se sobre a túnica de couro.

— Assim?— Exatamente.— O que pretende fazer? — perguntou ele com a voz aveludada.— Você verá. Aceito o desafio e provarei que você está errado. Ninguém está me

forçando a nada — disse ela, correndo a mão pelo tórax dele.Ao perceber a reação dele, Annis se encorajou e circulou os mamilos dele com a

ponta dos dedos. Em seguida abaixou-se e capturou os lábios dele em um beijo voluptuoso, insinuando a língua para dentro da boca dele. Haakon entreabriu os lábios, dando-lhe passagem, e ela aproveitou para sorver o gosto dele e provocar-lhe a língua para que bailassem juntas em um ritmo erótico.

— Era isso que você tinha em mente?— murmurou ela, sem afastar os lábios dos dele.

— Humm, talvez. — Haakon segurou o rosto dela com as duas mãos. — Podíamos tentar de novo para ter certeza.

Annis sentiu o corpo se aquecer ao sentir as mãos dele deslizarem por suas costas e puxá-la por cima dele. Sentiu a masculinidade túrgida de encontro ao seu ventre e sabia que, se permitisse, ele assumiria o controle.

— Você sabe fazer melhor do que isso? — perguntou ele, delineando o queixo dela com a ponta da linha. — Como pretende me seduzir?

— Achei que tínhamos concordado que eu estaria no comando.— É verdade — respondeu ele, deixando as mãos ao lado do corpo. — O que quer

que eu faça?— Aproveite. — De repente ela sabia o que fazer e provaria que sabia tanto dar

quanto receber prazer.As vezes em que tinha feito amor com o marido, tinham sido muito breves. Ele não

pedia nada e tampouco cedia alguma coisa. E ela sempre soube que era capaz de dar muito mais. Poderia também fazer com Haakon o que ele tinha feito no lago. Foi então que sentiu uma onda de poder invadi-la. Sabia que era capaz. Afinal, eram suas mãos e seu corpo que o deixavam naquele enlevo.

Ela se levantou um pouco, o suficiente para puxar a túnica, desnudando-lhe o tórax. Os cortes e marcas roxas do dia anterior não estavam tão feios, mas visíveis. Abaixando a cabeça, ela pressionou a boca no vão do pescoço dele e deleitou-se com o sabor da pele masculina. Como se tivesse todo o tempo do mundo, beijou-o com carinho, deixando uma trilha de fogo por onde passava na direção dos quadris dele.

Haakon gemeu e revirou os olhos de prazer.Os dedos de Annis já não tremiam mais, tanto que, com facilidade, ela conseguiu

desamarrar a calça dele e empurrá-la para baixo, centímetro por centímetro, deliciando-se com cada pedacinho de pele desnudada. Até que o tecido passou pelo órgão dele, revelando a masculinidade plena.

Ela respirou fundo. A Annis de outrora teria se amedrontado, mas a mulher na qual ela havia se tornado era insaciável. Mesmo assim, tocou-o na superfície aveludada com a ponta dos dedos. Era como se tocasse uma espada embainhada com seda. Mais confiante, segurou-o com a mão inteira, sentindo-o pulsar e deliciando-se com a sensação.

— Annis.Ela colocou o dedo sobre os lábios dele para silenciá-lo, mas Haakon levantou as

mãos e acariciou-lhe os seios. Ela sentiu-se engolfada por um tufão de sensações alucinantes, enquanto sua feminilidade também respondia, umedecendo-se.

— Só um de nós está nu — disse ele, rindo ao mesmo tempo.

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— Eu sei — sussurrou Annis, mas sem intenção nenhuma de se livrar do vestido. Ainda não.

Em vez de se despir, ela percorreu os lábios até o rosto dele e o beijou longamente na boca, depois desceu pelo pescoço e foi seguindo a trilha de pelos esparsos e encaracolados no meio do peito, até chegar à profusão de pelos mais densos que envolviam o membro.

Gemendo de prazer, ele a segurou pela cabeça para que ela continuasse ali, o que conferiu a Annis uma magnitude fervorosa de poder e prazer ao mesmo tempo.

Já não existiam mais reservas, quando ela circulou a ponta do membro com a língua, desvendando prazeres desconhecidos, sorvendo o mel que ele expelia.

— Por favor — suplicou ele, rasgando o vestido de Annis. — Deixe-me possuí-la.Annis ergueu o corpo e tirou o vestido. Haakon segurou-a pelo quadril e a guiou

para que o cavalgasse. Ela obedeceu, abrindo-se de corpo e alma para recebê-lo.Os movimentos começaram lentos, mas cada vez ele a penetrava mais. De repente

Annis parou de se mexer, sentindo a imensidão da masculinidade preenchendo-lhe o corpo.

— Você diz quando for a hora — sussurrou ele. — Assuma o controle.Assuma o controle. A ordem foi o estopim para que seu corpo inteiro se

incendiasse de paixão. Ela olhou para baixo, para onde seus corpos se fundiam. Um homem e uma mulher, mas um único ser.

Levantou um pouco o corpo e desceu sobre Haakon novamente, até se sentar sobre a pélvis masculina. Ele a segurava pelas nádegas com força, ao mesmo tempo em que a acariciava e imprimia o ritmo da marcha rumo ao prazer supremo. Annis começou a se movimentar, enquanto inclinava o corpo para que seus mamilos intumescidos roçassem o peito dele. Até que se concentrou apenas em montá-lo e movimentar-se com maior rapidez, ao pressentir que estavam prestes a galgar até os píncaros do prazer.

Ah, como ela almejara aquela completude!Aos poucos foram engolfados por um redemoinho de delícias inexplicáveis. Annis

gritou quando chegou ao clímax e teve a impressão de tê-lo ouvido gritar também, anunciando a perfeita sintonia em que se encontravam. Depois, deixou-se cair sobre o peito largo e foi envolvida pelos braços fortes.

MAIS TARDE, bem mais tarde, Annis acordou com Haakon observando-a.Ainda estavam abraçados, e ele tinha uma expressão estranha nos olhos, mas

acariciou-lhe gentilmente a cabeça.Annis sussurrou o nome dele e o abraçou, percebendo que seu corpo começava a

responder à proximidade. Haakon a desejava por quem ela era, e não pelo que ela poderia prover para a relação. Feliz, curvou as costas, passou a perna sobre as dele e fechou os olhos para aprofundar a sensação gostosa.

— Quando voltarmos para o salão, vou nomeá-la minha concubina — disse ele em seu ouvido.

Annis arregalou os olhos, afastou-se e se sentou.— O que...o que você disse?— Quero que todos saibam que você é minha concubina. Você dormirá na minha

cama.— Eu entendo — disse ela, respirando por entre os lábios. — Foi tudo muito rápido

e inesperado.— Você achou que eu iria simplesmente me deitar com você e deixá-la?— Foi o que aconteceu na última vez — comentou ela, com um riso nervoso.— Annis, eu vim atrás de você, não mandei nenhum de meus homens.— Eu sei e fiquei lisonjeada.

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— Todos no salão ficarão sabendo. É melhor oficializar e reconhecer você como minha concubina.

— Eu não esperava ser chamada de sua amante ou concubina.— Você me seduziu.— Sim, mas...— O que a incomoda? Pelo que sei, você gosta dos meus carinhos. — Haakon

passou a mão pela perna dela, deixando uma trilha de calor sensual em sua pele. — Você recebeu minha semente, Annis. Duas vezes. Temos de considerar a possibilidade de você ter uma criança, e não vou fugir das minhas responsabilidades.

Annis abriu a boca, fechando-a em seguida. Um filho...Ela se levantou e afastou-se, com o olhar fixo na parede da cabana. Não tinha

pensado no futuro, apenas no momento presente.— Entendo que isso é uma honra para mim. Tove e os outros me explicaram a

diferença entre uma concubina reconhecida e a mulher com quem um homem se deita. Devo dormir na sua cama, e, se tivermos um filho, você o reconhecerá.

— E ele terá os benefícios do filho de um jarl.Annis colocou as mãos no rosto, procurando ignorar o frio que lhe invadira o corpo.— Mas, quando o resgate chegar, quero ser livre para ir embora e levar meu filho

comigo.Haakon desviou o olhar, mas Annis vislumbrou um brilho diferente.— Discutiremos sobre isso quando for a hora.Annis entrelaçou os dedos das mãos. Precisava ter o direito de ficar com o filho, se

tivesse. Seu futuro dependia disso. Se voltasse para a casa de Haakon, queria ficar livre de ser ameaçada por Guthrun.

E, como Haakon havia dito, discutiriam depois, caso tivessem um filho.Ela não ficara grávida quando estava casada com Sewlyn, mas sabia que pelo

menos três meninos e uma menina da aldeia fora do castelo tinham os olhos muito parecidos com os dele. A culpa tinha sido dela e não dele, conforme ele fizera questão de lembrá-la várias vezes antes de morrer.

Annis afastou o pensamento sobre filhos. Não iria acontecer nada. Ela se recusava a se preocupar por antecipação, mas, se acontecesse, partir seria impossível.

— Annis? Você está com a testa franzida e não me deu nenhuma resposta ainda.— É mesmo? — Ela forçou um sorriso, talvez o mais difícil que já tivesse dado.Ela, uma dama bem-nascida, esposa por engano de um conquistador, tinha se

transformado em uma concubina.Lembrou-se das palavras da última amante de Selwyn, que nenhum homem iria se

deitar com ela por vontade própria. Ela era desejada apenas por sua fortuna.Annis sabia que havia sido um comentário maldoso, mas possuía um fundo de

verdade. Quanto tempo duraria a atração que Haakon sentia por ela? A de Selwyn mudava com o vento.

Ela não podia pensar naquilo. O passado tinha ficado para trás e o futuro era incerto. A única coisa certa era o presente.

De súbito, Annis sentiu um zumbido no ouvido e uma súbita fraqueza.Fechou os olhos e desejou que tudo aquilo tivesse sido um sonho.— Annis?Ela abriu os olhos ao ouvir seu nome. Haakon queria uma resposta naquele

instante. Ele merecia uma resposta.Qualquer que fosse sua resposta, sua situação seria mais precária do que quando

estava no chiqueiro.Mas como poderia recusar?

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Ela engoliu em seco. Afinal, tinha dado todas as razões para que Haakon pensasse que ela ansiava por aquela posição. Ela o havia seduzido. Tinha de aceitar as consequências.

Annis sentiu como se as paredes da cabana estivessem se fechando sobre ela, comprimindo-a. Haakon continuava na mesma posição, com os olhos fixos nela.

— Annis, qual é a sua resposta?Ela se inclinou para a frente, segurou o rosto dele entre as mãos e se recusou a

continuar pensando no que poderia acontecer.— Sim. serei sua concubina.

Capítulo 13

— Temos visitas — disse Annis na manhã seguinte, ao voltar do banho no riacho próximo à cabana. — Ela protegeu os olhos do sol. — Seis homens a cavalo.

Haakon foi para o lado dela, com a mão já no cabo da espada. Ele apertou os olhos contra o sol, e seus ombros relaxaram.

— Nosso idílio acabou, valquíria. É hora de voltarmos para casa. Thrand nos encontrou.

Annis teve a impressão de detectar uma ponta de frustração na voz dele. Ou seria apenas sua mente lhe pregando peças, refletindo seu próprio estado de espírito?

O rosto dele estava sério, a expressão, indefinível.De repente, tudo havia mudado. Ela e Haakon tinham estabelecido uma trégua

frágil, e ela tinha esperança de que perdurasse. Esperava que as palavras dele sobre ela ser sua concubina até o resgate ser pago não tivessem sido ditas no ardor da paixão.

Annis já descobrira como a paixão podia ser efêmera.Todas as dúvidas que ela havia posto de lado no dia anterior voltaram com força.— Isso é bom ou ruim?— É necessário.Annis observou enquanto Haakon caminhava na direção de Thrand e os outros

homens com passo firme e sem olhar para trás. Um nó se formou em sua garganta. Sabia que seria muito fácil apaixonar-se por aquele homem, e apaixonar-se não fazia parte do acordo. Ele só havia feito a proposta para que ela fosse sua concubina depois de terem feito amor. Annis tinha consciência disso.

Ela ansiava pelo toque de Haakon, mas acima de tudo queria que ele sentisse algo por ela.

Precisava ter esperança de que o desejo dele por ela durasse. Selwyn trocava de amante quase com a mesma frequência com que tomava banho. Quanto a Haakon, tudo o que Annis sabia era que ele não tinha ninguém além dela. por enquanto.

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OS SEIS cavalos cobriram a distância até a cabana em um passo tranquilo. Thrand desmontou e cumprimentou Haakon efusivamente, com tapinhas nas costas. Haakon desviou o pensamento de Annis e concentrou-se no irmão. O rosto de Thrand melhorara muito desde a última vez que o vira. Tudo o que restara da queimadura era uma mancha vermelha e áspera no meio da face.

— Finalmente o encontramos, Haakon. Seu cavalo voltou sozinho ontem, machucado e sangrando. Minha mãe receou o pior.

— Ela já mandou acender a pira funerária para mim? — Haakon riu baixinho. Ele podia muito bem imaginar a cena. Guthrun torcendo as mãos, lamentando a terrível tragédia, mas secretamente pensando em como tirar vantagem da situação.

Thrand levantou as mãos, gesticulando.— Você conhece minha mãe. Às vezes, acho que ela não vai sossegar enquanto

não assumir o controle da propriedade inteira.— Já se passou bastante tempo desde que meu pai morreu. Talvez esteja na hora

de ela se casar de novo. — Haakon apontou para o mar. — Ir tumultuar em outra parte. A ambição dela é por você, único filho dela. Ela quer o melhor para você.

— É exatamente o que eu penso, e não pretendo deixá-la se intrometer na administração da minha propriedade, quando eu tiver uma. Tenho planos de me casar um dia. — Thrand inclinou-se para a frente e deu outro tapinha nas costas do irmão. — E não desejo esse infortúnio para mulher alguma.

Haakon riu.— Você conhece bem sua mãe.— Vejo que você encontrou o que estava procurando. — Thrand acenou para

Annis, que permanecera na porta da cabana.— Sim, eu a encontrei — disse Haakon, olhando para ela, sério.Ela estava com as mãos recatadamente cruzadas à sua frente, o olhar baixo. Os

cabelos ainda estavam úmidos do banho. Haakon lembrou-se do sabor dos lábios dela quando ficaram embaixo da cachoeira naquela manhã.

Não valia a pensa pensar no que poderia ter acontecido se ele não a tivesse encontrado no momento certo. Mais de uma vez, durante a noite, ele acordara com o choro baixo de Annis e a abraçara, até o pesadelo passar e ela voltar a dormir tranquila.

— Ela parece estar bem.— Foi Floki que a encontrou primeiro, cercada por lobos. — Haakon apontou para

Floki, que mancava sobre três patas. — Thor e Odin estavam comigo ontem. Não gosto de pensar no que teria acontecido.

— Nós vimos as carcaças dos lobos e ficamos imaginando. — Thrand abaixou-se para acariciar Floki. — Como foi? Conte-me.

— Em uma outra hora, Thrand. — Haakon espreguiçou-se de um jeito exagerado.— Você pretende fazer dela sua concubina? — Thrand voltou-se para o irmão com

expressão séria. — Sabe o que vão falar, se não fizer isso.A brisa roçou nos cabelos de Annis. Haakon sabia o que seu irmão queria dizer.

Não, Annis estava sob sua proteção, e ele pretendia que continuasse assim. Mas ele vira a expressão dela quando tentara falar sobre a possibilidade de ela ficar grávida.

— É essa a minha intenção. Já conversei com ela a respeito.— E ela concordou? — Thrand ergueu as sobrancelhas.— Sim. Ela compreendeu que é a coisa mais lógica a fazer.Thrand passou um braço sobre os ombros de Haakon.— Eu sempre achei que as mulheres gostassem de ser cortejadas. Se precisar de

algum conselho.— Eu já vi você cortejar e sei como isso acaba. — Haakon afastou o braço de

Thrand. Não se sentia disposto a confidenciar seus pensamentos a Thrand. Ele e o meio-irmão haviam se tornado mais próximos nas últimas semanas, mas seus sentimentos por

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Annis ainda eram uma novidade, até para si mesmo. — Vou cortejar à minha maneira. Annis é minha concubina. Ela será devidamente respeitada em minha casa.

— Muitos irão aprovar.— Você descobriu alguma coisa sobre o paradeiro do monge? — indagou Haakon,

mudando de assunto. A ideia de Annis ser a senhora de sua casa era algo que ele desejava um pouco demais, além do que deveria, e ele se forçou a se concentrar em assuntos mais prementes. — Preciso saber se encontraram o corpo dele.

— Procuramos por toda parte, e até agora nada. Nem sinal dele. — Thrand ficou sério. — Mas você sabe tão bem quanto eu dos perigos a que ele está sujeito. Duvido que tenha sobrevivido uma noite sequer. Ontem vimos uma revoada de corvos sobrevoando ao sul, e, você sabe, isso significa que algum animal de grande porte está morto na região.

Haakon olhou para Thrand. Seu irmão provavelmente tinha razão, mas sempre havia a possibilidade de o monge ter sobrevivido e conseguir chegar a Thorkell.

E se assim fosse? Como sua história seria interpretada, e por quem? Haakon estava ciente de que tinha inimigos na corte e dentro de Storting. Seu êxito com o felagnaturalmente gerava inveja por parte de outros jarls. No ano passado mesmo, Bose, o mordomo do rei, tinha propagado rumores infundados de um suposto relacionamento de Haakon com Asa, a rainha de Thorkell.

Haakon apertou os lábios, apreensivo. Seria melhor se Aelfric tivesse morrido. E era tudo tão desnecessário. Se Aelfric tivesse obedecido, poderia estar vivo agora, em vez de devorado por um bando de corvos esfomeados. E pensar que poderia ter sido Annis.

Haakon balançou a cabeça para afastar o pensamento.— Pode ser, mas, não sei, algo me diz que talvez ainda tenhamos notícias daquele

monge. Segundo Annis, ele pode ter sobrevivido.— Acha que devemos continuar procurando?Haakon olhou para o horizonte. Eram tantas as possibilidades. O monge poderia

estar vivo ou morto, e seu corpo poderia estar em alguma das centenas de ravinas que existiam por ali.

— Não, mas fique de olho quando estiver cavalgando, e avise aos homens para fazer o mesmo. Alerte as fazendas vizinhas. Na pior das hipóteses, podemos recuperar os broches de sua mãe, pelo menos.

Haakon esperou ver Thrand sorrir, mas o rapaz ficou sério e obviamente tenso, com as mãos crispadas.

— Conte-me tudo, Thrand. Não omita nada, por mais insignificante que possa parecer. — Haakon falava em tom de voz calmo, mas toda sorte de possibilidades passava por sua mente. Alguma coisa, além do simples sumiço de Aelfric, incomodava seu irmão.

— Um dos rapazes avistou uma vela na costa sul do fiorde — disse Thrand. — As palavras saíram em torrente de seus lábios, cada vez mais rápidas. — Foi só de relance, porque o barco estava se distanciando, mas ele tem certeza de ter visto. Xadrez vermelho e branco, como as do clã Bjornson. Foi logo depois de termos visto os corvos sobrevoando em círculos. Eu teria mandado um grupo de homens para investigar, mas seu cavalo chegou ferido, e aí o tumulto se instalou. A prioridade passou a ser encontrar você.

— Você já deveria saber que eu sempre volto são e salvo, mais cedo ou mais tarde. — Haakon gesticulou, dispensando os temores de Thrand. Ele preferiria que o irmão tivesse demorado um pouco mais para encontrá-lo, pelo menos até que ele estivesse mais seguro a respeito de Annis, mas nem sempre as coisas ocorriam como se queria. Ele tinha outras responsabilidades. Sempre tivera. E uma delas era avaliar os possíveis riscos para a segurança de seu povo.

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— Estamos no verão. Não há nada de estranho ou suspeito em um barco indo para o sul. Nem todos param na nossa propriedade. Lembra-se daquele mercador de peles que queria me ludibriar? Os barcos são todos parecidos, é fácil confundir.

— Eu falei sobre isso com Harold. Ele jurou que era o navio de Sigfrid, zarpando da praia.

Haakon ficou pensativo.— Sigfrid deveria estar a várias milhas ao norte, já. A menos que...— A menos que o quê? Eu disse a Harold que ele estava vendo coisas e que devia

parar de beber tanta cerveja.Haakon olhou para a floresta, aparentemente pacífica, mas repleta de predadores

prontos para tirar vantagem dos incautos. Da mesma forma, havia disputas na corte de Viken, e era somente a força da personalidade de Thorkell e seu braço forte que garantiam a frágil trégua entre os jarls.

— Acho que devemos nos preparar para uma convocação de Thorkell a qualquer momento — disse ele. — Se era Sigfrid, ele foi exigir a reunião do Storting. Vai querer que todos os nobres e homens livres investiguem a morte de Bjorn.

— Mas...Sigfrid não voltou para casa para avisar a família e fazer a cerimônia fúnebre para Bjorn? Ele deve ter ido. Os dois eram muito unidos, e ele devia estar preocupado com a cunhada viúva— observou Thrand, surpreso.

— Sigfrid é um político astuto. Ele pode ter chegado à conclusão de que seria mais vantajoso contar a versão dele a Thorkell e pedir a reunião e o julgamento do Storting.

— E quando vamos saber? — Linhas de preocupação surgiram no rosto de Thrand. — Uma briga com aquele clã...Nós poderíamos vencer no final, mas a que custo?

Haakon retorceu os lábios. Deveria ter pensando nas consequências quando Sigfrid partira, obviamente com intenção de ir a Thorkell, apesar da advertência do rei de que os jarls deveriam aguardar ser convocados.

— Em uma semana, dez dias no máximo. Você sabe como demora para um barco vir de Kaupang até aqui, mesmo com vento bom. — Haakon olhou para a cabana. O tempo que ele havia passado ali com Annis já lhe parecia um sonho, a calma antes da tempestade. — Precisamos estar prontos para partir. Vai demorar pelo menos uma semana para preparar adequadamente um navio.

— Então vamos. Espero que cheguemos a Thorkell antes que Sigfrid o envenene contra nós. Se bem que ele vai ter de acreditar em você. Você fez uma oferta justa pela vida de Bjorn quando enviou a mensagem.

— Sigfrid ainda vai ter de revelar por que veio aqui — lembrou Haakon. — Eu desconfio que ele não vá querer fazer acordo. Vai querer forçar uma vingança sangrenta, acreditando que vai ganhar, mas vai querer fazê-lo com o apoio de Thorkell e dos nobres.

— Você acha que ele pretendia atacar quando veio?— Não sei mais em que acreditar.— Haakon, há algum problema? — Annis colocou a mão no braço dele, e Haakon

a afagou. — Você me parece preocupado. Encontraram o corpo de Aelfric?Haakon balançou a cabeça.— Não. Não é nada com que você tenha de se preocupar. — Ele apertou mais uma

vez a mão de Annis. Era importante mantê-la em segurança. Se Sigfrid viesse a descobrir quem matara seu irmão, a vida dela estaria em perigo. Ela já tinha problemas suficientes para ainda se preocupar com algo que talvez nunca acontecesse. Ele havia jurado protegê-la até devolvê-la à família. — Mas precisamos voltar para casa, o quanto antes.

Haakon deu ordens aos homens para providenciar um trenó para puxar Floki e para retirar toda a carne dos lobos, depois se voltou para Annis.

— Vamos embora. Precisamos sair daqui enquanto ainda está claro. Temos várias milhas para percorrer.

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Annis fitou-o com expressão surpresa e segurou a coleira em seu pescoço. Haakon sentiu um mal-estar ao ver o gesto, mas ela ficaria mais segura se sua condição de prisioneira fosse conhecida.

— Não há cavalos suficientes.— Você irá comigo.Haakon montou em um cavalo castanho com crina dourada e estendeu a mão para

ajudar Annis a subir, acomodando-a à sua frente. Ela se sentou ereta, procurando encostar nele o mínimo possível. As dúvidas já começavam a atormentá-la.

— Sente-se de frente para mim e segure-se em minha cintura, para ter mais equilíbrio — disse ele. Aquela relação duraria até quando ele decretasse.

Annis obedeceu e viu-se cara a cara com Haakon, os lábios de ambos a poucos centímetros de distância. Ele bateu as botas nas ancas do cavalo, e o movimento do galope fazia com que Annis balançasse contra o corpo de Haakon. Ela o abraçou pela cintura e encostou o rosto no peito largo, conforme o cavalo atravessava a floresta.

— O que os outros vão pensar? — murmurou Annis, sentindo o rosto arder, mas sem afastar-se de Haakon.

— Eles vão saber de qualquer maneira, quando chegarmos em casa. Eu lhe disse que pretendo torná-la formalmente minha concubina. Não foram palavras ditas ao vento, no calor da paixão, Annis. Eu cumpro minhas promessas.

Concubina de Haakon. Concubina. A palavra ecoava na mente de Annis. Ela tinha de aceitar o que havia se tornado. Fora ela que o havia seduzido. Ninguém a ameaçara com uma espada nem a obrigara a coisa alguma. Haakon pedira e ela não tivera forças para recusar. Na verdade, não quisera recusar. Era somente agora, quando estavam voltando para a realidade, que a dúvida começava a insidiar-se. O que aconteceria com ela depois que aquela paixão acabasse? Haakon a passaria para outro jarl, e depois para outro, e ela acabaria se tornando uma mulher vivida e devassa?

O movimento do cavalo fazia com que os corpos deles se tocassem, balançassem um contra o outro, excitando-a. Mas não era uma sensação meramente física. Annis sabia que estava começando a gostar de Haakon, a nutrir um afeto sincero por ele. Gostava de conversar com ele, de vê-lo sorrir. Como seria quando ele se cansasse dela?

Ela já passara pela experiência antes, tivera um marido que vivia rodeado de amantes. Por que Haakon seria diferente? E o pior era que ela queria que ele fosse diferente. Queria que ele gostasse dela também.

Mas Annis sabia que teria de guardar seus sentimentos para si. Haakon já tinha poder suficiente — até demais — sobre ela.

DEPOIS DE algum tempo, a ampla construção de madeira surgiu do outro lado do lago. Annis não imaginara que voltaria a ver aquele lugar, e um nó formou-se em sua garganta.

Guthrun estreitou os olhos quando viu quem estava nos braços de Haakon e estalou a língua no céu da boca.

— Resgatei nossa fugitiva — anunciou Haakon, fazendo Annis deslizar para o chão, porém sem ao menos lhe apertar os dedos para reconfortá-la.

Annis apressou-se a puxar o vestido rasgado para baixo. Sabia que estava revelando suas pernas mais do que o necessário. Cerrou as mãos em uma tentativa de parar de tremer e enfrentou o olhar de Guthrun com a cabeça erguida.

— Muito bem. — Guthrun acenou com a cabeça. — Pelo menos esta está viva. Suponho que seja pedir demais que ela me devolva os broches.

— Você sabe quem pegou os broches, Guthrun — disse Haakon. — Está querendo criar confusão, e não vou permitir isso aqui em minha casa.

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— Não estou querendo nada disso. — A voz de Guthrun elevou-se para aquele pico esganiçado de indignação. — Eu só queria deixar bem claro como fui lesada. E seu cavalo voltou machucado. Não tínhamos ideia do que havia acontecido com você! Essa moça é que já causou confusão demais. Ingrid foi embora aos prantos, coitada.

— Chega, Guthrun!— Não chega não, ainda tenho muita coisa a dizer. — Guthrun desfiou um rosário

de lamúrias, reais e imaginárias.Haakon ficou tamborilando os dedos na perna enquanto a madrasta se queixava.

Em seguida ele clareou a garganta e falou devagar e pausadamente, como se falasse com uma criança teimosa ou que se recusasse a entender.

— Esta moça é minha concubina, Guthrun, e quero que você a trate bem. Quero que ela seja devidamente respeitada. Entendido?

Guthrun assentiu com a cabeça, em um gesto quase imperceptível.Haakon virou-se para Thrand e os dois começaram a falar sobre assuntos da

fazenda, como se Guthrun fosse alguém insignificante na vida doméstica.Guthrun empalideceu levemente, e Annis ouviu os murmúrios das moças atrás da

mulher mais velha. Tove, principalmente, tinha uma expressão bastante arrogante e presunçosa.

— Preciso parabenizá-la, Annis. — Guthrun deu um passo na direção dela, com um sorriso amarelo. — Parece que você proporciona ao meu enteado algo que as mulheres de Viken não conseguem proporcionar. Algo com um toque exótico, talvez. Tenho certeza de que nunca ocorreu a nenhuma de minhas criadas virar uma escrava fugitiva. Você está jogando alto, mas os homens são uns tolos.

Annis retraiu-se como se tivesse sido estapeada no rosto, mas manteve a cabeça erguida. Recusava-se a permitir que Guthrun percebesse como a atingira com aquelas palavras. Ela olhou para Haakon, esperando que ele desmentisse a madrasta, mas ele não escutara; estava distraído conversando com Thrand.

Ela apertou os dentes, com raiva. A última coisa que queria era brigar com Guthrun. Isso permitiria àquela megera ganhar. Seria muito melhor ignorá-la, fazer de conta que ela não era mais do que uma mosca incômoda.

— Eu gostaria de falar com os monges, Haakon — disse Annis, puxando a manga da túnica dele. — Quero que saibam que Aelfric não foi encontrado e que é bem provável que tenha morrido.

— Como quiser. — Haakon pôs uma mão em seu cotovelo. — Mas não há necessidade de você fazer isso ainda. Não há certeza de nada.

— Há necessidade, sim. Eu quero. Preciso. Eu escutei Thrand contando a você sobre os corvos que foram vistos.

Annis uniu as mãos para parar de tremer. Antes de mais nada, ela queria informar os monges sobre sua nova posição. Queria que soubessem por ela, e queria também deixar bem claro para eles que não estava envergonhada.

— Eu enfrentei uma matilha de lobos. Os monges não são nada, perto disso.— Está bem. Se você quer assim. Mas depois quero lhe mostrar seus novos

aposentos.Seus novos aposentos. Annis apertou os lábios. Não tinha pensado nisso. Em vez

de rumores e fofocas, todo mundo ficaria sabendo quando Haakon estivesse cansado de sua companhia. Cada pequena discussão seria dissecada. Poucas coisas permaneciam em segredo dentro do salão.

Ela perguntou-se o que os monges diriam. Será que a condenariam, como Aelfric, ou compreenderiam?

Annis ficou imóvel, esperando. O vento bateu em seus cabelos curtos, deixando-os espetados. Ela tinha de reconhecer que aquele estilo era bem mais prático em termos de refrescamento.

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Os monges foram trazidos. Assim como ela, todos tinham uma coleira no pescoço, mas não pareciam afetados por isso. Caminhavam para a frente, com passos firmes e de cabeça erguida.

— Você voltou — disse o monge mais velho.— Haakon Haroldson me salvou de uma matilha de lobos.— Que bom que você voltou. Nós rezamos para que você fosse protegida, assim

como continuamos a rezar por nosso irmão.— Não há notícias de Aelfric.Os monges curvaram a cabeça.— Ainda temos esperança de que nosso irmão retorne, mas foi ele quem escolheu

seu caminho. Ele se tornou um girovague, um perdido.— Haakon me fez sua concubina. — Annis esperou pelas palavras de acusação e

condenação, pelas exclamações abafadas e expressões de desprezo. Mas os monges apenas olharam para ela, consternados.

— Vamos rezar por você. — O monge estendeu a mão. — Irmã, é Deus quem deve julgá-la, não nós. Você tem poder. Use-o com sabedoria.

Annis assentiu em silêncio, sentindo a garganta apertada. Não esperara aquela reação. E, mais que isso, parecia que os monges estavam contando que ela tirasse vantagem de sua posição. Mas como? Ela não tinha o poder de mudar o destino deles.

Os monges foram conduzidos de volta ao trabalho.— Não posso ter gente ociosa aqui — disse Haakon, envolvendo a cintura deAnnis com um braço. — Eles tomaram um susto. Espero que trabalhem com

dedicação até o resgate chegar.Annis uniu as mãos. Esperara que os monges reagissem como Aelfric, mas não. O

monge mais velho chegara inclusive a sugerir que ela poderia beneficiá-los em sua nova posição.

— Mas é necessário que usem coleiras? — perguntou.— Eu já perdi um. — Um músculo se moveu no maxilar de Haakon. Esses homens

são valiosos para mim, e não tenho intenção de perder outro. Eu não pretendia pôr coleiras neles, mas Aelfric me forçou a isso.

— VOCÊ VAI dormir aqui, agora — disse Haakon, indicando o nicho no patamar elevado atrás da mesa principal. — Onde eu durmo.

Annis entrou e parou na soleira, sentindo as pernas pesadas. Tove a tinha proibido de entrar ali, mas agora aquele seria seu lar, até Haakon decidir ao contrário. Ela queria abominar aquilo tudo, queria achar o lugar horrendo, mas tinha de admitir que era charmoso e inesperadamente sofisticado.

Ao contrário do recinto onde ela dormira antes, junto com Ingrid e Tove, aquele aposento era espaçoso e suntuosamente mobiliado. Tapeçarias retratando lendas vikings decoravam as paredes, e havia uma cama esculpida no centro do quarto, com cobertas de pele e travesseiros. A primeira imagem que lhe ocorreu foi de Haakon deitado ali, nu, esperando por ela. Suas faces queimaram. Até seus pensamentos estavam ficando depravados. A antiga Annis, a que morava na Nortúmbria, jamais ousaria pensar algo assim. Ela tinha jurado para si mesma, no passado, que nunca seria como as amantes de Selwyn, mulheres oferecidas, cheias de sorrisos esquivos e modos sedutores, mas tudo indicava que havia uma parte dela que era assim, contra a sua mais ferrenha vontade.

Ao lado da cama, sobre um baú comprido e baixo, Annis viu o tabuleiro de tafl. Havia uma tina de água fumegante aos pés da cama, e até cortinas na entrada, para garantir a privacidade dos aposentos do jarl.

Privacidade. Até o ataque a Lindisfarne, Annis não se dera conta de como essa conveniência era preciosa. Só quando se perdia algo é que se dava valor.

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Ela inspirou o ar, admirando cada peça de mobília, cada objeto.— Gostou? — As mãos de Haakon estavam em suas costas, e ele parecia um

menino mostrando seu brinquedo predileto.— Sim, gostei muito! — Annis retribuiu o sorriso dele. Esperava que a vida não

fosse tão cruel a ponto de privá-la daquilo de repente. — Você tem até uma tina para tomar banho!

— Às vezes eu prefiro o banho de água ao banho a vapor.Haakon acendeu uma tocha e cerrou as cortinas. Annis ficou parada no meio do

quarto, incerta sobre como se comportar. Sabia que deveria fazer alguma coisa, mas sentia-se desajeitada e pouco à vontade.

Haakon remexeu no baú e pegou o crucifixo e uma corrente de prata.— Permita-me. — Ele colocou a corrente no pescoço de Annis, deixando o

pequeno crucifixo pousar entre os seios. — Acho que você gostaria de usar isto. Melhor do que deixar guardado.

Ela segurou o crucifixo entre os dedos, mal ousando respirar. Ele o tinha devolvido! Sem ela pedir.

— Obrigada — murmurou, emocionada. — Foi um presente de minha mãe.— Eu sabia que era importante para você. — O tom de voz terno de Haakon fez a

pele de Annis se arrepiar.Ela mergulhou os dedos na água quente e depois os ergueu, deixando a água

pingar de volta dentro da tina de madeira. Podia imaginar o que era esperado dela, mas ali seria bem diferente de quando estavam na cabana. Lá estavam somente os dois, sozinhos, mas ali todos sabiam que ela estava compartilhando a cama de Haakon.

Se ela conseguisse manter Haakon satisfeito e interessado, quem sabe pudesse persuadi-lo a beneficiar os monges. Mas, e se ela falhasse? Ela falhara com Selwyn. O interesse dele não durava mais do que alguns dias, de tempos em tempos.

— A viagem foi longa. — Haakon colocou hidromel em um cálice, sem desviar os olhos do rosto de Annis. — Você está empoeirada.

— Você também. — Ela passou a língua pelos lábios. Haakon parecia tenso, pronto para dar o bote. Ela sentia como se os dois estivessem envolvidos em uma espécie de jogo. O próximo movimento era seu, mas ela desconhecia as regras.

— Por isso a tina está cheia de água quente. Tove e as outras providenciaram isso.— Mas não cabem dois aí dentro.Haakon inclinou a cabeça para o lado.— Tem razão.— Vá você primeiro. — Annis esfregou as mãos úmidas no vestido. — Eu vou até a

cozinha. Deve ter alguma coisa lá para fazer.— Não. — Haakon livrou-se das roupas devagar, largando-as no chão.Annis prendeu a respiração à visão do corpo dele nu. Ele foi até a tina,

aparentemente alheio ao efeito que estava causando nela.— Suas obrigações agora são aqui. Comigo.— O... o que você quer dizer? — A boca de Annis ficou seca.Haakon espreguiçou-se.— Você pode lavar minhas costas. Os panos de linho estão ali.Ele entrou na tina e sentou-se, com os joelhos dobrados até o queixo. Annis não

moveu um músculo, permanecendo parada onde estava. A chama da tocha lançava reflexos dourados na pele dele.

— Annis? — chamou ele baixinho. — O que foi?— Nada. — Ela andou depressa até a tina e optou pela abordagem prática,

jogando água no corpo dele e lavando-o sem muitas delongas.Haakon segurou a mão dela.— Por que você está nervosa?

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— Não estou nervosa — mentiu ela.— Desde que você falou com os monges, estou sentindo uma mudança. O que

eles disseram?— Nada, é impressão sua. Eles reagiram bem, não me recriminaram, nem nada.

Parece até que acharam que teria um lado positivo. — Annis mergulhou um pano na água e o torceu. Em seguida concentrou-se em esfregar o peito, os braços e as costas de Haakon.

— É mesmo?— Sim, eles. estão contando com um tratamento melhor.Haakon puxou-a com força, e Annis perdeu o equilíbrio, caindo em cima dele, com

metade do corpo dentro da tina e metade fora.— Vai molhar meu vestido, Haakon!— Annis empurrou o peito dele, tentando se levantar, mas os lábios de ambos

estavam muito próximos, e ela parou, hipnotizada. Haakon segurou sua cabeça.— Aliás, você precisa trocar de roupa— murmurou ele, com os lábios encostados aos dela. — Não quero minha mulher

usando roupas rasgadas.— E o que você quer que eu use? — Annis ergueu o queixo. — Não sou uma

mulher viking.— Não, não é. — Haakon passou as mãos pelas costas dela, puxando-a para si.

Depois parou e estudou o rosto dela com um sorriso.— O que foi?— Estou olhando você, criando uma lembrança, valquíria. Quando formos

velhinhos, de cabelos brancos, quero conseguir fechar os olhos e ver você assim, como estou vendo agora.

A voz grave de Haakon banhava Annis, como mel derretido, inebriando-a.— Assim como? Meio seca e meio molhada? — Ela riu, mas seu coração começou

a bater mais forte.Haakon segurou um seio dela sobre o vestido.— Só um pouco molhada.— Haakon! Haakon! Navio à vista! — A voz de Thrand ressoou no salão, e em

seguida ouviu-se o sopro de um chifre.Haakon inclinou-se para a frente e Annis se segurou no dossel da cama para se

reerguer. Ele pegou uma toalha de linho e se enxugou depressa. Em seguida vestiu a calça e a túnica.

— Ah, minha querida, o dever me chama!

— THORKELL CONVOCOU o Storting — disse Vikar sem preâmbulos, assim que desembarcou.

Nos poucos dias em que se ausentara, as feições do outro jarl haviam se tornado abatidas, endurecidas. Haakon sabia que aquela notícia não era boa. Thorkell não convocaria uma assembleia simplesmente para comemorar o sucesso do felag.

— Eu imaginei que ele faria isso quando recebesse minha mensagem. — Haakon segurou o braço do amigo em cumprimento. Ele ouviria os detalhes depois,

quando Vikar estivesse descansado e contasse tudo. — Mas desde quando um jarl viking atua como mensageiro?

— Desde que Asa me pediu. Ela quer que você esteja lá antes da reunião. Disse que é melhor para você.

Haakon olhou para o fiorde.— Pelo menos ela ainda tem alguma consideração por mim. Faz muitos anos que

viajamos juntos da Dinamarca, eu para reencontrar minha família, e Asa para se casar.

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— Sim, ela nutre um grande afeto por você. — Vikar retribuiu o gesto de Haakon e pousou a mão no braço dele.

— Ela nunca esqueceu que você foi amigo dela quando ela não tinha mais ninguém a quem recorrer. E Thorkell tem apreço pelos conselhos dela.

— Mas por que Asa acha que eu devo ir para lá antes? Tenho afazeres aqui, e não quero parecer ansioso chegando antes da hora.

— Sigfrid navegou para o sul. Ele chegou um dia depois de mim.— Eu ouvi rumores a esse respeito. — Haakon deu de ombros. — Parece que o

ressentimento dele comigo é maior do que a vontade de garantir o dote de Hilde.— Foi depois que Sigfrid chegou que Thorkell convocou a assembleia. Antes disso,

ele parecia satisfeito com sua parte da compensação e sua explicação da briga. Ele conhece Bjorn. ele sabe, assim como todos sabem, do que ele é capaz.

— Foi ele quem me chamou? Ou foi Asa? — perguntou Haakon, sem emoção na voz. O que houvera entre ele e Asa acabara muitos anos antes, mas a amizade permanecera. Haakon estava a par das fofocas.

— Foi Thorkell. Ele queria enviar alguém que não fosse membro do felag, mas Asa insistiu para que eu viesse. Eu parti naquela mesma noite. E, graças a Odin, os ventos estavam a meu favor.

— Eu agradeço. — Haakon voltou a contemplar o fiorde onde as ondas quebravam. Naquela manhã, quando ele vira Thrand, a sensação de que tudo estava perfeito demais o incomodara.

— Quais guerreiros você vai levar? — A voz de Vikar soou baixa e ansiosa.— Está me perguntando quem eu considero ser leal?— Estou lhe pedindo que pense bem. É melhor escolher os mais discretos e

controlados, não os de pavio curto. Fiquei sabendo o que aconteceu com Thrand. Você não pode correr o risco de isso se repetir.

— Vou levar um número suficiente de homens apenas para vigiar meus aposentos. Ainda é temporada de invasões. Depois de receber uma visita de Sigfrid, não tenho desejo nenhum de passar por isso de novo.

Vikar retorceu os lábios.— De quanto tempo você precisa para preparar um navio?— Uma semana. Duas, no máximo. — Haakon pensou em Annis. — O que estava

acontecendo entre eles era muito recente ainda. Ele queria aproveitar cada instante que tivessem juntos.

— É tempo demais. — Vikar balançou a cabeça. — Já estão comentando em Kaupang que você não honra juramentos, que atacou Bjorn a sangue-frio. Mencionaram a discussão que vocês tiveram na véspera do ataque, e que você só pensa em fama e riqueza.

— Bjorn expressou a opinião dele, e eu discordei. Ele preferiu não me desafiar por eu ser o líder. O assunto terminou ali. — Haakon enrijeceu o maxilar. — Bjorn ficou louco. É o preço que alguns guerreiros têm de pagar.

— Bose e Sigfrid foram vistos juntos. Essa associação deixa Asa apavorada, e eu fico apreensivo também. Bose foi meu sogro, até eu me divorciar da filha dele. Sei do que aquele homem é capaz. Se alguma coisa acontecer com Thorkell, o filho de Asa ainda é muito novo para governar. Recebi essa incumbência, Haakon, de convencer você a ir. Asa insistiu muito nisso.

Haakon olhou para Vikar, assimilando as implicações daquilo tudo. Sigfrid estava determinado a destruí-lo.

Não honra juramentos... Bjorn atacara primeiro, mas uma acusação como aquela, se ficasse provada, poderia colocar sua propriedade inteira em risco. Um viking que não honrava seus juramentos não tinha status, não tinha nada.

— Vou partir imediatamente. Ao raiar do dia.

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Vikar desenhou uma linha na areia com o bico da bota.— Tem uma coisa que você precisa saber. Sigfrid falou de sua prisioneira para

Thorkell.Haakon sentiu um arrepio na nuca. Ele tinha planejado levar Annis, mas será que

não a estaria colocando em perigo fazendo isso? Talvez fosse melhor que ela ficasse. Seria mais seguro.

— Sim, foi bom saber disso.

Capítulo 14

— Você está sabendo que Haakon vai para a corte de Thorkell? No navio de Vikar? — Tove irrompeu dentro do quarto, com o avental e a touca ligeiramente entortados. — Eles vão partir assim que o vento mudar.

Annis terminou de prender os broches nas alças da sobreveste. O fino vestido de linho e a sobreveste bordada eram lindos, mas com aqueles trajes e os cabelos tosados ela não se reconhecia no pequeno espelho de Haakon.

— Eu imaginei que isso aconteceria. Ele é um jarl e tem deveres para com o rei. — Annis falava em tom de voz calmo, embora sentisse um vazio no peito. Haakon não tinha vindo lhe contar. Ela ouvira a voz dele no salão, falando com os homens, mas não se dignara a ir até o quarto e lhe contar o que estava acontecendo.

Já começara, do mesmo jeito que havia sido com Selwyn após a noite de núpcias. O pensamento de Haakon já estava na vida na corte. Ele partiria e, quando voltasse, será que se lembraria do que haviam vivido juntos?

— Você está certa, e eu a admiro por receber a notícia com dignidade. — Tove fez uma careta. — Se bem que não há escolha. Mas eu ficaria furiosa. Ele acabou de declarar você sua concubina e agora vai embora. — Tove balançou a cabeça.

— Talvez essa seja a diferença entre nós duas. — Annis endireitou os ombros e desviou o olhar do espelho para a outra mulher.

— Talvez.Annis queria que Tove saísse dali, mas a criada andava de um lado para outro no

quarto, abrindo frascos de essências e espiando dentro do baú.— Vamos lá, Tove. — Annis cruzou os braços. — O que você está querendo me

dizer?— Geralmente os jarls levam as esposas e concubinas quando vão para a corte —

disse Tove, piscando os olhos com expressão inocente.— E.? — encorajou Annis, começando a sentir a cabeça doer acima dos olhos.— Por que Haakon não leva você? Eu o escutei dizendo a Thrand que ia cuidar de

você e não ia deixar que Guthrun a atormentasse. Mas vai deixar você aqui. — Tove ergueu as sobrancelhas. — Eu gosto de você,

Annis. Tivemos nossas diferenças, mas você sabe que eu a respeito muito. Qualquer coisa que você me diga permanecerá confidencial.

— Acredito que ele tenha seus motivos. — Annis reuniu todo o seu autocontrole para manter a expressão neutra. Apesar da atitude solidária de Tove, se ela

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demonstrasse o menor indício de fraqueza, Tove colocaria as garras de fora e a história se espalharia pela cozinha com a mesma rapidez com que Fress e Kisa esvaziavam a vasilha de leite de manhã.

— É um mistério — continuou Tove, com ar pensativo. — Quero dizer, ele só declarou você formalmente sua concubina quando vocês voltaram da floresta. E temos de considerar a rainha de Thorkell, claro. Talvez Haakon não queira magoá-la. Eles já foram muito próximos, segundo os rumores que correm por aí.

— Eu tenho outras coisas para fazer, Tove. — Annis virou-se e fechou o baú.— Prometi a Haakon que faria um pouco de unguento. Ele quer ter uma quantidade

pronta, para o caso de precisar.— Eu só queria ajudar. Se eu fosse concubina de um jarl, faria questão de ir com

ele. As festas da corte são lendárias. Você deveria se impor, em vez de aceitar as regras calada. É o que eu faria. Faria com que comesse na minha mão.

— Mas você não é concubina de Haakon, e nunca será. — Annis encarou Tove. Lembrava-se do que Aelfric havia dito, que Thorkell poderia ser favorável à situação dela e dos monges. Por esse motivo, ela precisava ir. Principalmente pelos monges. Era possível que Carlos Magno tivesse um representante na corte de Thorkell, e ela pudesse enviar uma mensagem ao rei da Nortúmbria.

Tove enrubesceu e meneou a cabeça.— Guthrun diz que você está parecendo uma escrava e que ela está feliz porque

você não vai.— Foi ela que cortou meu cabelo — disse Annis, em um tom de voz mais brando.

Precisava de Tove como aliada. A mulher tinha um grau de ambição diferente do seu, mas ela bem sabia como aquela casa era governada. Precisava de amigos, não de inimigos, principalmente com Guthrun pronta para exercer seu poder. — Não existe amor entre mim e Haakon, mas ele me declarou sua concubina. Guthrun não vai mais poder mandar do jeito que tem feito, isso eu lhe garanto.

Tove riu.— Eu não tinha pensado sob esse aspecto. Talvez seja bom mesmo você ficar.

para contrabalançar Guthrun.Annis forçou-se a sorrir. Tinha de pensar no futuro, quando Haakon perdesse o

interesse por ela. Era impossível esquecer a quantidade de amantes que Selwyn tivera durante os cinco anos de casamento deles.

A ausência não contribuíra em nada para enternecer o coração dele. Por que com Haakon seria diferente?

Esse simples pensamento a fazia ter vontade de encolher-se e fechar os olhos para sempre. Mas ela havia jurado, em Lindisfarne, que não se deixaria abater nem tornar-se vulnerável. Sabia que sua felicidade dependia daquele homem. Queria que ele gostasse dela do mesmo jeito que estava começando a gostar dele, e iria lutar por isso.

— VOCÊ VAI partir amanhã. — Annis olhou para Haakon, que estava brincando com Floki.

— Exato. — Ele se levantou, mas não fez qualquer menção de abraçá-la. — Guthrun também vai ficar. Ela não gosta de viagens marítimas. Não precisa se preocupar com ela. Thrand ficará encarregado de tudo enquanto eu estiver fora. Ele tem ordens estritas de não permitir que a mãe dele faça qualquer afronta a você. Quero que você dê uma olhada nas ervas, veja se tem alguma coisa faltando e que será necessária. Não quero que falte unguento nesta casa.

— Quanto tempo você pretende ficar fora? — Annis forçou-se a manter as mãos ao lado do corpo. Sua vontade era lançar os braços ao redor do pescoço de Haakon e pedir

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que ele a levasse consigo, porque ela tinha necessidade de ficar perto dele. Mas ela ainda tinha um pouco de orgulho.

Haakon encolheu os ombros.— Vai depender do rei.— Então, por que não me leva com você? — perguntou ela, falando rápido. Tinha

de dizer as palavras antes que perdesse a coragem. Aquilo não fazia sentido. Antes de Vikar voltar, ele parecia incapaz de manter as mãos longe dela, e agora queria ir embora sozinho. Nem ao menos tivera a consideração de avisá-la primeiro.

Seu corpo oscilou. Ela se recusava a chorar, mas era impossível negar a dor.— Eu fui convocado. Tenho de ir imediatamente. Tem muita coisa acontecendo.

Foi por puro acaso e sorte que Vikar ficou sabendo da trama de Sigfrid. — Haakon estendeu os braços e puxou Annis para junto de seu corpo. Passou as mãos pelas costas dela e beijou-lhe a testa. — Vou sentir sua falta, mas você ficará mais segura aqui.

— Então você pensou em me levar? — Ela prendeu a respiração conforme o mundo que parecera tão sombrio de repente se enchia de cor e brilho.

— Thorkell mencionou seu nome. Ele queria saber a seu respeito e por que você era a única mulher prisioneira. — Ele afastou os fios curtos de cabelo da testa de Annis, em um gesto tão terno que uma onda de calor se espalhou dentro dela, mais quente que o fogo que ardia no centro do salão. — Tenho de ser cauteloso. Você entende, não?

— Cautela é não me deixar aqui enquanto você se expõe ao perigo. — Annis afastou-se e tentou raciocinar. Quando estava nos braços de Haakon toda a razão e lógica lhe fugiam.

— Eu não estarei correndo perigo. — Os olhos azuis dele brilharam. — Sou capaz de me defender de qualquer um, em uma luta justa.

— Então não há motivo para não me levar, se não há perigo. — Ela deu uma risadinha.

— Eu fui convocado e não é o desejo do meu coração deixar você aqui, mas será melhor. Os rumores correm. — Haakon passou a mão pelo cabelo. Ele explicou a Annis sobre o Storting, a assembleia de nobres de Thorkell que o ajudava a julgar os casos mais difíceis.

— Thorkell pediu que eu fosse? — Annis inclinou a cabeça para o lado. Não tinha considerado aquela possibilidade. Seu coração acelerou. — Nesse caso você precisa me levar.

— Não é assim tão simples. Se alguém descobrir a verdade sobre o que aconteceu naquele quarto do mosteiro, sua vida correrá perigo. A mim, Thorkell poderá perdoar, mas você não é uma viking.

Annis fechou os olhos. Podia ver com clareza em sua mente o quarto da casa de hóspedes e o homem-fera, desgrenhado e selvagem. Um arrepio a percorreu. Mesmo depois de todas as semanas que haviam se passado, as imagens e sons daquele dia estavam nítidos em seu cérebro.

— Você está tentando me proteger?— Sim — respondeu Haakon. — Eu contei a minha versão da história.Annis aproximou-se outra vez e pousou a mão sobre a dele.— Sei tomar conta de mim mesma, Haakon Haroldson. Minha impressão é de que,

se Thorkell sabe a meu respeito e eu não aparecer, as perguntas surgirão.Haakon retirou a mão.— Você tem razão quanto às perguntas. Mas aqui você não corre perigo. Thrand e

Guthrun, à maneira dela, tomarão conta de você até eu voltar. Não será por muito tempo. — Ele segurou o queixo de Annis com delicadeza. — Vamos, deixe-me ver esse rostinho sorrir. Para levar a lembrança no coração.

Os olhos dele pareceram ficar mais escuros, um azul tão intenso que Annis sentiu os joelhos enfraquecerem. Ela se forçou a desviar o olhar.

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— Haakon, eu quero ir. Quero ficar com você.— Por quê? — As mãos dele penderam ao lado do corpo e o sorriso desvaneceu.

— Por que, Annis, depois de tudo que eu lhe disse?Porque você vai. Porque tenho medo que sua paixão mingue se eu não estiver com

você. Porque vou sentir sua falta, ela queria sussurrar, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Proferi-las a colocaria em uma posição vulnerável demais diante dele.

Annis orgulhou-se de seu autocontrole. Cruzou os braços em volta da cintura e forçou-se a falar com tom de voz firme, tentando se concentrar no aspecto prático.

— Porque, se você não me apresentar à corte, Thorkell pode tomar isso como ofensa, se ele for como o meu rei, na Nortúmbria. Não quero ser a causa da sua ruína.

— É um risco que estou preparado para correr — disse Haakon, irredutível.Um suspiro quase inaudível escapou dos lábios de Annis, e ela curvou ligeiramente

a cabeça.O olhar dele se enterneceu.— O que eu mais quero é ter você ao meu lado, Annis, mas também quero que

esteja em segurança. Eu conheço a corte de Thorkell, aquilo é um ninho de cobras. E eu jurei proteger você.

— Eu sobrevivi à vida na corte de Nortúmbria. York pode ser um lugar perigoso. Ouso dizer que sou capaz de sobreviver à corte de Viken também. — Annis ergueu a mão e forçou-se a sorrir. Precisava correr aquele risco. — Eu quero ir. Por favor, me leve com você, Haakon.

— Você insiste em ir?— Sim. — Annis sabia que aquele era o momento em que deveria seduzir Haakon,

mas ele teria de concordar em levá-la por vontade própria. — Não irei desonrá-lo.— Quem lhe disse isso? — Uma ruga surgiu na testa de Haakon. — Eu nunca

disse nada sobre você me desonrar.— Meu cabelo está cortado. Estou usando uma coleira no pescoço. Guthrun diz

que pareço uma escrava e que não é apropriado um jarl ter uma escrava como concubina.

Os olhos de Haakon se estreitaram, e um músculo se contraiu em seu maxilar. Annis deu um passo para trás. Teria falado demais? Então ela ergueu o queixo. Não tinha do que se envergonhar. Sabia que, apesar de tudo, continuava sendo a filha do conde de Birdoswald.

Os dois se entreolharam, e então Haakon tirou um punhal do cinto.— Não se mexa. — Ele segurou a coleira e, com um movimento ágil, cortou-a,

libertando Annis.— Pronto. O cabelo voltará a crescer.Annis passou os dedos pela pele do pescoço.— Por que você fez isso?— Guthrun tem razão. Se você fosse com isso aqui no pescoço, seria considerada

uma desonra para mim e minha casa. Devo ser capaz de manter minha concubina ao meu lado sem ter de prendê-la a uma coleira — disse ele com a voz ligeiramente enrouquecida, contendo uma promessa velada que fez a pele de Annis se arrepiar. Ela sabia o que a prendia a Haakon, e não eram elos forjados em ferro, mas sim em algo bem mais sutil.

Ele abriu o baú e pegou uma gargantilha de prata incrustada com serpentes estilizadas.

— Entretanto, tem outros que precisam ver para crer. Para saber que você é minha. — Ele colocou a gargantilha no pescoço de Annis e a fechou. Ela sentiu o metal frio contra a pele, mas logo a sensação passou. Ela levou os dedos à gargantilha. Era mais pesada que a coleira, e, além disso, não deixava de ser uma espécie de coleira, um símbolo de seu cativeiro.

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— E, se você usar seu outro vestido, ninguém vai reparar no seu cabelo curto. Vão pensar que é um traje de uma comunidade bárbara. — Haakon sorriu. — Você não irá me desonrar.

Annis ficou imóvel. Ele iria levá-la! Ele queria que ela fosse! Annis cruzou as mãos junto ao queixo, com medo de ter entendido errado.

— Você está dizendo que eu vou também?— Já que você está tão determinada a conhecer a corte de Viken. — Haakon a

abraçou. — E você está certa, vou dormir mais tranquilo sabendo que você está lá comigo, em vez de tentando dar um jeito de escapar.

— Chega de escapar, para mim. — Annis cedeu ao sentimento e encostou o rosto no peito dele. Haakon afagou-lhe o cabelo. Depois, segurou-lhe o queixo e fitou-a nos olhos.

— Prometa que não vai interferir, Annis. Que vai guardar segredo sobre a morte de Bjorn, por maior que seja a provocação.

— Prometo. — Ela se pôs na ponta dos pés e beijou os lábios dele, fascinada.— Vou cobrar de você essa promessa— disse Haakon, afastando-se. — Partiremos assim que o navio estiver

abastecido.

— HAAKON HAROLDSON, venha me cumprimentar! — A voz profunda de Thorkell ressoou no salão, do canto onde ele estava sentado, recebendo petições. — Não esperava vê-lo tão cedo. O mensageiro partiu há dois ou três dias.

— Eu soube que Vossa Majestade convocou a assembleia do Storting.Haakon atravessou o salão apinhado de gente e começou a ajoelhar-se diante do

rei e da rainha. Ele observou atentamente o rosto de Thorkell, buscando detectar algum sinal de benevolência. Desde a última vez que tinham se visto, vários fios grisalhos haviam aparecido na barba loira de Thorkell. Haakon agradecia aos deuses por a viagem ter transcorrido com tranquilidade e por ter chegado antes do grupo principal de jarls.

Thorkell levantou-se do banco, deu um passo à frente e beijou Haakon no rosto, como um pai faria com um filho. Os músculos dos ombros de Haakon relaxaram um pouco. Talvez a situação não fosse tão ruim quanto Vikar previra. Vikar às vezes se deixava influenciar por suas negociações com o ex-sogro, Bose, que sempre eram desgastantes.

Atrás de Thorkell, Haakon avistou Sigfrid e Bose. Eles interromperam a conversa e olharam para ele, surpresos. Sigfrid ergueu as sobrancelhas e murmurou alguma coisa para Bose, que assentiu com a cabeça.

Haakon sentiu uma profunda satisfação. Ele tinha arruinado a trama deles. Chegara antes do que Sigfrid esperava. Haakon cumprimentou Asa com um aceno de cabeça, e ela retribuiu com um sorriso. Houvera um tempo em que Haakon a achava a mulher mais bonita do mundo, mas agora ele sabia que sua beleza interior era ainda maior.

— Ouvimos falar de suas aventuras. É bom saber que você veio em paz — continuou Thorkell, como se não tivesse conhecimento do diálogo que se travava atrás dele.

— Eu enviei mensageiros assim que voltei para Viken. — Haakon fitou os olhos azuis muito claros de Thorkell.

— Sim, claro, mas não é a mesma coisa. — O tom subitamente rabugento na voz de Thorkell surpreendeu Haakon. Ele e o rei haviam se despedido amigavelmente na última vez. Thorkell deveria entender que ele estivera em sua propriedade após a viagem, e que agora não viera acompanhado de seus guerreiros, portanto era óbvio que ele não tinha intenção alguma de usurpar o trono.

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Ele lançou um rápido olhar na direção de Asa, que meneou a cabeça quase imperceptivelmente, como em advertência para que ele se controlasse.

— Eu sempre espero ser convidado — respondeu Haakon, cauteloso. Ele olhou para Sigfrid, em seus trajes de gala e com uma expressão sombria no rosto. O que, exatamente, ele estava tramando? — Eu mandei Vikar e Ivar com os anéis de ouro. Muito mais apropriados ao meu rei do que à minha pessoa. Fiquei vários meses ausente de minha propriedade. Quantos jarls Vossa Majestade espera ver?

A risada de Thorkell fez Haakon lembrar-se do homem que ele havia conhecido.— Os anéis foram bastante apreciados, e agora eu convoco o Storting, para honrar

você e os demais membros do felag. Você é modesto demais, Haakon. Vikar e Ivar me contaram o que você fez. Temos muito a comemorar. Thor e Odin nos deram uma grande vitória.

Alguma coisa na expressão de Thorkell deixou Haakon alerta. Mesmo tendo ele chegado antes do previsto, seus inimigos já haviam arado bem o terreno, semeado dúvidas na cabeça de Thorkell. Será que o rei realmente achava que ele desonrava seus juramentos, depois de tudo o que haviam passado juntos?

— Venha, vamos falar de outros assuntos. — Thorkell gesticulou, expansivo. — Eu soube que Bjorn pereceu na invasão a Lindisfarne. Como isso aconteceu? Aqueles monges passam tempo demais rezando para ser bons lutadores.

Haakon forçou-se a não desviar o olhar para Annis, que estava logo atrás dele. Ele havia assumido a responsabilidade pela morte de Bjorn e não tinha intenção de expor Annis ao perigo, muito menos ali. Thorkell teria de acreditar em sua explicação. Ele conhecia Bjorn, sabia do que ele era capaz.

— Ele morreu durante uma briga comigo. Teve um surto de loucura e não me reconheceu. Atacou-me como se eu fosse o inimigo. Agora conto com a orientação de Vossa Majestade sobre a melhor maneira de recompensar a família dele.

— Vou dedicar toda a minha consideração ao assunto, mas fiquei sabendo também que vocês dois discutiram na véspera.

— É verdade, mas a discussão já tinha terminado quando chegamos a Lindisfarne.Annis observou Haakon. Ela ouvira a explicação natural dele sobre a morte de

Bjorn, mas um calafrio a percorreu. Até que ponto ele não deixaria escapar algum detalhe comprometedor? Fora ela quem desferira o golpe letal. Mas ali não era o lugar para explicar isso. A atmosfera de ameaça era quase palpável. Haakon tinha razão de estar apreensivo. Talvez fosse melhor que ela não tivesse ido, afinal. Mas, por outro lado, se ela tivesse ficado, ele agora estaria enfrentando os inimigos sozinho.

— Você trouxe sua prisioneira com você?Haakon levou a mão às costas de Annis, trazendo-a para a frente, e ela pôde

observar mais de perto o rei de Viken. Alto, magro, com cabelos loiros, mas com a pele um pouco macerada, com uma aparência não muito saudável. Annis notou um ligeiro tremor na mão dele, conforme ele gesticulava.

— Minha concubina.Thorkell ergueu uma sobrancelha.— Ela deve ser especial, porque não me lembro de alguma vez você ter tido

formalmente uma concubina.— Sim, Majestade, agora eu tenho. — Um músculo saltou no maxilar de Haakon.

— Ela satisfaz minhas necessidades no momento.— Hum. De fato. — Thorkell cofiou a barba.Annis lembrou-se da história envolvendo Haakon e a rainha. Seria verdade? Ela

lançou um olhar de soslaio para a mulher sentada ao lado de Thorkell. Sua cabeça estava coberta com um véu ricamente bordado, e ela usava joias de ouro no pescoço e nos dedos. O vestido brilhava. O semblante dela estava calmo, sereno, bonito. Annis ignorou a pompa exterior e analisou os olhos de Asa. determinados, porém cautelosos.

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Ela desviou o olhar e observou o movimento ao seu redor, conforme os cortesãos se reuniam em volta do rei.

A expressão do rosto de Sigfrid quando Haakon se distraiu e começou a falar com outra pessoa causou-lhe arrepios. O guerreiro sussurrou novamente alguma coisa para o homem de pé ao seu lado, um viking com feições desagradáveis, quase aterradoras.

Annis engoliu em seco, perguntando-se se deveria comentar com Haakon, preveni-lo de alguma forma, mas sua capacidade de raciocínio parecia lesada. Ela viu quando Thorkell fechou lentamente os olhos e baixou a cabeça, apenas para despertar segundos depois, sobressaltado, e olhar em volta. O homem que estava conversando com Sigfrid falou alguma coisa no ouvido de Thorkell, que assentiu com a cabeça.

— Precisamos recepcionar o próximo nobre! São tantos aqui presentes hoje. Homens que honram seus juramentos sagrados. — Thorkell gesticulou para alguém atrás de Haakon.

Não passaram despercebidos a Annis os murmúrios abafados que ecoaram no salão.

— O rei está cansado, Haakon Haroldson. A festa de ontem durou a noite toda. Ele foi se deitar tarde — disse a rainha.

— Não quero cansá-lo ainda mais. Conversaremos em uma outra hora.— Conversaremos antes da assembleia do Storting, e então sua lealdade será

decidida — ressoou a voz grossa e trêmula de Thorkell. — Pode ir agora e aguardar minha convocação.

Novamente um murmúrio abafado ecoou no recinto.Annis viu o sorriso de Sigfrid alargar-se enquanto Haakon ficava ali parado, com

expressão incrédula. Ele fora dispensado como um garoto desobediente, em vez de com a dignidade que merecia.

Haakon segurou-lhe o cotovelo e conduziu-a para fora do salão. Quando chegaram ao jardim, Annis respirou o ar puro. A atitude do rei não fazia sentido. a menos que.

— Seu rei está doente — disse ela, com uma súbita compreensão.— Não, ele só está cansado.— A pele dele está com uma cor estranha, e a testa dele está transpirando. Ele

deveria ser examinado e tratado.— O que você quer que eu faça, Annis? Ele me dispensou. Bose e Sigfrid têm

supremacia. Vou falar com Ivar e Vikar, mas não sou um rebelde. — Haakon enlaçou a cintura de Annis e afastou-se um pouco mais do salão. — Aqui não é a Nortúmbria, lembre-se disso.

— Não esqueço, nunca.

— MAS EU não entendo — insistiu Annis mais tarde, quando Haakon voltou da reunião, visivelmente abatido. — A vida do seu rei pode estar em perigo e você não faz nada?

Haakon esfregou os olhos com a ponta dos dedos.— Eu tenho de respeitar a vontade de Thorkell. Contrariá-lo seria o mesmo que

declarar oposição. Thorkell poderia me proclamar um proscrito.— Mesmo que você estivesse tentando salvar a vida dele?— Shh, tem alguém se aproximando — falou Haakon baixinho, e seu corpo inteiro

ficou tenso.Uma batida soou na porta e uma figura encapuzada entrou no quarto. A mulher

olhou em volta, e, quando viu que somente Haakon e Annis estavam no aposento, tirou o capuz, revelando o rosto jovem e bonito. Asa, a rainha de Thorkell. Ela foi até Annis e segurou a mão dela entre as suas.

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— Você é uma curandeira — disse sem preâmbulos, em um tom de voz baixo e melodioso.

— Eu entendo alguma coisa de remédios — admitiu Annis.— Ouvi dizer que é mais que apenas isso. — Uma pequena ruga surgiu na testa da

mulher. — Mas, enfim, eu preciso de ajuda, Haakon. Nossa curandeira foi para Trondeheim, em uma missão a pedido de Bose. Sua concubina é minha única esperança.

— Quando eu souber o que é esperado de Annis, eu decidirei. — Um ligeiro sorriso curvou os lábios dele, sem alcançar os olhos. Ele ofereceu a Asa um cálice de hidromel, que ela aceitou e delicadamente bebeu um gole. — Eu estava esperando você, Asa.

Annis apoiou as mãos na mesa e tentou controlar o sentimento de ciúme que a avassalou. Ver Haakon e aquela mulher juntos era algo que a perturbava muito mais do que ela imaginara ser possível.

— Não seria melhor eu decidir? — perguntou. — Afinal, foi a mim que Asa veio procurar.

Haakon segurou a mão dela.— Você prometeu, Annis.— Deixe que ela me ouça, Haakon, pela nossa longa amizade. Não vim interceder

por mim, mas pelo meu marido e meu filho. — Os olhos azuis de Asa pareciam assustados, e sua mão tremia. — Nunca vi Thorkell assim antes. Ele está piorando a cada dia, e não há nada que as videntes possam fazer. Por favor, me ajude! Senão vão me acusar e dizer que a responsabilidade é minha. Afinal, sou a rainha estrangeira. Você é minha única esperança.

Annis olhou rapidamente para Haakon e viu que ele estava tenso e contrariado.— Thorkell não quer nenhuma ajuda que venha da minha parte. Ele deixou isso

claro na nossa reunião.— Você sabe que ele não é assim. — Asa estendeu as mãos carregadas de joias.

— Passe por cima do seu orgulho, Haakon Haroldson.O medo e a apreensão eram evidentes na expressão de Asa.— Se ele realmente estiver doente. — começou Annis. Ela tinha certeza de já ter

visto aqueles sintomas antes e achava que conseguiria fazer algo para ajudar.Haakon ergueu a mão, interrompendo-a.— Antes que você fale, Annis, você precisa saber como é o meu povo. Não deixe

que a meiguice e as palavras doces de Asa a ceguem. Se Thorkell morrer sob os seus cuidados, sua vida não vai durar mais do que a chama de uma tocha.

Annis começou a andar pelo quarto, ignorando os dois pares de olhos que a seguiam. No fundo, ela sabia que poderia ajudar. Se Thorkell morresse, obviamente a culpa não seria sua, mas isso não fazia diferença, pois ela seria responsabilizada e nada convenceria os cortesãos do contrário. Sigfrid já manifestara sua oposição a Haakon; o ódio dele era evidente em seu rosto.

Era uma situação complicada.— Eu não posso ficar sentada de braços cruzados, sabendo que a saúde de um

homem está em grave risco — disse ela. — É contra a minha natureza. Não consigo.— Annis, quer fazer o favor de me escutar e acreditar em mim? Estou preocupado

com a sua segurança! — Haakon gritou, alterado. Annis viu Asa desviar o olhar, mas ela ergueu o queixo e o encarou.

— E eu estou interessada em salvar você.— Saiba que a recompensa será enorme se você tiver êxito — interveio Asa, com

seu tom de voz pausado. — Minha gratidão, bem como a de meu filho, será nada em comparação com a de meu marido.

— O favorecimento real é algo transitório — disse Haakon, com tanta intensidade na voz que Annis se perguntou se ele se referia à sua experiência na corte de Thorkell ou se estava falando da de Carlos Magno.

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— Eu nunca vacilei em meus sentimentos — retrucou Asa, com os ombros curvados e a expressão desconsolada.

Annis aproximou-se e colocou as mãos nos ombros dela. Sabia exatamente como Asa se sentia. Ela faria a mesma coisa por Haakon. Instintivamente, Annis sabia que, se Throkell morresse, a situação de Haakon se agravaria, não só para ele, mas também para os monges, para todos. Vira do que Bjorn era capaz e sabia que com o irmão dele não seria muito diferente. Talvez, até, pior. Mas ela precisava tentar.

— Milady, se me permitir apenas pegar minha capa, eu a acompanharei — disse ela, e Asa sorriu por entre as lágrimas.

Haakon segurou o braço de Annis, impedindo-a de se mover.— Annis, eu a proíbo. Você ainda é minha prisioneira. Deve-me obediência.Annis desvencilhou-se, e ele não insistiu, mas continuou a bloquear-lhe a

passagem. Quando Haakon ficava daquele jeito, era mais fácil brigar com ele. Annis sabia que, se ele lhe pedisse com gentileza, seria mais difícil recusar.

— Eu não vou fazer nada imprudente nem precipitado, Haakon. Só quero vê-lo e verificar o que é possível fazer. Eu já tinha comentado com você que alguma coisa me pareceu errada na aparência dele.

Annis gostaria que Haakon a abraçasse, queria o apoio e o encorajamento dele, mas ele simplesmente a fitou e depois olhou para Asa.

— Vamos falar a sós, Annis.Ela viu um músculo saltar no maxilar dele e reconheceu o olhar de advertência.

Mas nem Haakon a demoveria de seu intento.— Eu sei o que preciso fazer. É minha obrigação. Você mesmo percebeu que

Thorkell não estava bem. Não podemos ignorar isso, Haakon. É uma questão de solidariedade, de humanidade. Assim que ele estiver bem outra vez, com a saúde recuperada, ele terá mais condições de tomar uma decisão acertada. Provavelmente apoiará você em uma possível contenda com Sigfrid.

— Annis. — Haakon suspirou.— Eu salvei Thrand e salvei Floki, não salvei? Vou fazer o que estiver ao meu

alcance. Permita que eu ao menos o examine.Annis gostaria de pedir a Haakon que fosse junto com ela, mas isso seria pedir

demais. Naquela missão, ela teria de ir sozinha. Se Thorkell viesse a falecer, pelo menos a culpa seria só sua.

— Ela quer tentar, Haakon. Pela nossa amizade, deixe, por favor. Eu farei o que puder para protegê-la.

— Você não conhece esta moça, Asa. Protegê-la não é uma tarefa fácil, é um trabalho de sol a sol. — Haakon finalmente sorriu.

— Obrigada, Haakon. Vou tomar conta dela e trazê-la de volta sã e salva.Annis virou-se para ir, mas Haakon mais uma vez se colocou em seu caminho. Os

olhos azuis pareciam duas lagoas profundas e misteriosas.— Espere. Eu vou com você. Asa, volte para perto do seu marido. Nós iremos em

seguida. Vou contar com sua promessa de proteção.Asa entreabriu os lábios, como se fosse dizer alguma coisa. Olhou de Haakon para

Annis e então moveu a cabeça em assentimento.— Estarei no portão sul, esperando por vocês.

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Capítulo 15

Depois que Asa saiu, deixando apenas um rastro de perfume exótico para trás, Haakon encostou-se na porta. Tinha de fazer mais uma tentativa de impedir que Annis se expusesse àquele perigo.

— Você não precisa ir, você sabe. Esta luta não é sua. No devido tempo, o resgate será pago e você ficará livre para ir embora.

— Eu vou ver o seu rei. Dei a minha palavra. Asa está muito preocupada, desesperada a ponto de vir aqui pedir ajuda a alguém que ela nem conhece.

— Eu conheço Asa há muito tempo. Ela é uma mulher forte e determinada, que ama o marido, mas também é uma política astuta. Ela faz o jogo dela. Teme pela própria vida, não pela minha, e certamente não pela sua. Tudo o que ela faz é para benefício próprio.

— Há quanto tempo você a conhece?— Quando viajei para a corte de Carlos Magno, ela e seus cortesãos também

viajaram para a corte de Thorkell. Era uma jovem princesa dinamarquesa, enviada para aplacar os ânimos na corte do norte. — Haakon sorriu, relembrando aquela época, quando ele também era jovem e afoito, sempre disposto a brigar. Fora primeiro pela influência de Asa, e depois pela de Thorkell, que ele aprendera as duras lições da diplomacia e do tato. — Assim como você, ela é uma sobrevivente. Só que ela é implacável. muito mais implacável, Annis.

— Você a ama? — perguntou Annis gentilmente, quase sem pensar.As palavras ficaram pairando no ar entre eles. Ela queria dizer a Haakon que não

se importava, mas seria mentira. A resposta dele importava, e muito.— Ela era como uma estrela brilhante em uma noite escura. — Haakon entrelaçou

os dedos aos de Annis, e suas feições se suavizaram, o olhar se perdeu na distância. — Houve uma época em que invejei Thorkell pela escolha de sua noiva.

— E agora?Ela precisava saber. Seu coração quase parou de bater. Precisava saber se ele

tinha pelo menos algum afeto por ela. Sua alma clamava pela resposta.— Eu era muito jovem, e faz muito tempo. Foi mais um sonho de rapaz do que

qualquer outra coisa. — Haakon apertou a mão de Annis e caminhou até o fogo. — Ficamos amigos. Ambos queremos paz no reino.

Annis contemplou as brasas vermelhas. Um prenúncio de felicidade começou a crescer em seu íntimo. O sentimento dele por Asa era amizade. Não tinha importância que ele tivesse gostado dela no passado; isso fora vários anos antes de eles se conhecerem. O que importava era o que ele sentia agora. Asa e Haakon tinham vivido uma paixão, mas agora eram amigos. Annis deu-se conta, de repente, que a cada dia que passava sua vida na Nortúmbria ficava mais distante, quase um sonho.

— O que acontece se Thorkell morrer?— Quem sabe? — Haakon gesticulou com as mãos para o alto. — A política é igual

em todos os lugares do mundo. O que acontece quando um monarca poderoso morre, principalmente quando ele tem um filho pequeno? Não precisamos de uma vidente para responder a essa pergunta.

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Annis balançou a cabeça.— Não. Eu sei a resposta.— Eu também. Completamente previsível, mas bastante sangrento também. Meu

país não precisa disso. O povo já é suficientemente pobre. É por isso que saímos com os navios esperando que Njordr, o deus do mar, esteja de bom humor.

— Mas, se ele melhorar, será bom para você. Thorkell dispensou você e convocou a assembleia do Storting para decidir seu futuro — pressionou ela. Precisava saber a resposta, saber exatamente qual era o perigo que Haakon corria.

— Se ele morrer, é mais do que provável que eu me envolva em uma vingança de sangue. mas isso não me preocupa. Sou um guerreiro. Sou forte, e ainda vai demorar algum tempo para eu chegar aos portais de Valhalla. Mas não se coloque em perigo por minha causa.

Annis desviou o olhar. Ela sabia que se o fitasse nos olhos revelaria o que se passava em seu coração.

— Mas eu sou uma curandeira, Haakon. Eu tenho conhecimento e habilidade para curar alguns males.

O silêncio no quarto tornou-se quase insuportável. Por fim, Haakon suspirou e cruzou os braços.

— Você está mesmo decidida, não é?— Ele beijou a testa de Annis. — Eu achei que conseguiria dissuadi-la sem Asa por

perto.— Se eu ignorasse o que está acontecendo, não seria eu, Haakon.Ele estreitou os olhos.— Você tem razão. E eu estou descobrindo, cada vez mais, que gosto do seu jeito.Ele inclinou-se para a frente e os lábios de ambos se tocaram de leve. Annis

envolveu os braços no pescoço dele e segurou o tecido da túnica, tentando dizer com o corpo tudo o que seus lábios porventura não conseguissem dizer. Então ela se afastou e concentrou-se em respirar. Em seguida pegou a capa e amarrou-a com dedos trêmulos.

— Estou pronta para ir.— Está bem. Vamos. — Haakon levou a mão ao cabo da espada. — Você vai

precisar de proteção esta noite.

ANNIS ENXUGOU o suor da nuca quando tirou o capuz. Depois que eles voltaram para o salão nobre, Haakon foi diretamente para os aposentos da rainha, sem tirar a mão do cabo da espada, preparado para qualquer eventualidade.

— Está pronta, valquíria?— Mais do que nunca. — Annis sentiu uma ponta de conforto ao ouvir o apelido

que Haakon usava para ela. Ele acreditava nela e estava disposto a apoiá-la. Ela esperava que seu conhecimento salvasse a vida de Thorkell. — Eu prometo não fazer nada a menos que esteja plenamente convicta.

— Eu sei disso — volveu ele, sério.A notícia da enfermidade de Thorkell o abatera. Annis sabia que ele estava

preocupado com o que poderia acontecer se Thorkell morresse. O pensamento provocou um calafrio em sua espinha. Mas, enquanto ela apenas olhasse, examinasse, enquanto não realizasse nenhum procedimento, ninguém poderia acusá-la de matar o rei.

Ele pôs uma mão em seu ombro, e ela o fitou com um sorriso trêmulo.— Vamos lá. Fique perto de mim e da rainha. Fique com o capuz até entrarmos

nos aposentos do rei.Annis concordou, dividida entre a sensação de segurança que Haakon lhe

transmitia e o medo do que estava por vir.

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ASA ESTAVA esperando por eles em seus aposentos, com tochas acesas e rodeada por suas aias. Ela estendeu as mãos e Annis as segurou.

— Eu sabia que você viria!— Preciso ver Thorkell para decidir o que fazer. E se há algo que eu possa fazer.

Não posso prometer nada.— Eu sei disso. — Asa acenou com a cabeça. — Venha, você e seu segurança.

Vamos.Asa passou pelos guardas, silenciando-os com um mero olhar. Em poucos

minutos, os três estavam diante do rei acamado.O quarto estava abafado e rescendia a algo picante, que fez os olhos de Annis

arderem. Havia seis tochas acesas em volta da cama forrada de peles.Um pequeno grupo de videntes estava reunido a um canto do aposento,

murmurando uma espécie de prece enquanto rolavam contas nos dedos, os chapéus com chifres refletindo levemente a luz das chamas. O rei estava deitado na cama, com um aspecto bem pior do que horas antes, a pele esverdeada e a respiração ruidosa.

A cada respiração, ele parecia lutar contra o espectro da morte.— Onde estão os outros jarls? — Annis quis saber, surpresa por Sigfrid e seu

amigo assustador não estarem ali.— Eles estão esperando para ver o que vai acontecer — respondeu Haakon, com

expressão sombria. — Se o rei viver, tudo continuará como antes. Se não, a questão será quem irá controlar os homens. A grande maioria dos jarls ainda não chegou, e ninguém quer ser acusado de apressar a morte do rei.

Thorkell começou a engasgar e tossir. Seu corpo ficou rígido, os olhos reviraram e então, sem aviso, ele começou a se sacudir. Os espasmos duraram apenas alguns segundos, mas, para quem estava ali perto vendo, pareceu uma eternidade.

Asa deu um grito e correu para o marido. Ele ergueu a mão com esforço e tentou tocar o rosto dela, antes de deixar cair o braço. A rainha lançou um olhar angustiado para Annis.

Por favor, faça alguma coisa, ela implorou, apenas em um movimento de lábios, antes de virar-se novamente e enterrar o rosto no pescoço do moribundo, murmurando repetidamente o nome dele.

O coração de Annis se confrangeu. A reação de Asa era espontânea, não era encenação. Existia um afeto sincero ali. E ela conseguia entender a força do amor que levava Asa a pedir ajuda a uma estranha, uma potencial inimiga. Sabia que, se Haakon estivesse em uma situação semelhante, ela não hesitaria em ajoelhar-se e rezar por um milagre.

Uma das videntes se aproximou e chocalhou uma corrente de pequenos ossos diante do rosto. Annis tentou passar por ela, mas a vidente não deixou, murmurando cânticos e jogando gravetos malcheirosos no fogo. O forte odor dificultava a capacidade de raciocínio.

Asa começou a bater no peito e a chorar, junto com a vidente. Annis tentou se concentrar, mas todo aquele rumor perturbava seu cérebro, entorpecendo-o. Se ela fosse tomar alguma providência, precisaria de silêncio. Antes de qualquer coisa, precisava examinar o rei.

— Haakon — murmurou ela.Ele pareceu ler seu pensamento. Aproximou-se da cama e passou um braço sobre

os ombros de Asa. Ela soluçou alto, as lágrimas correndo em profusão de seus olhos. Com um último beijo na testa de Thorkell, ela deixou que Haakon a levasse até uma cadeira perto de onde as mulheres estavam reunidas.

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Haakon começou a dar ordens. As videntes se entreolharam, mas não se moveram. Ele começou a desembainhar a espada, puxando metade para fora.

Então as videntes correram para a porta, atropelando-se para sair do quarto.Asa acenou com a cabeça para Annis.— Ninguém mais vai perturbá-la.Annis atiçou o fogo, e o ar dentro do quarto começou a se renovar. Ela tentou se

concentrar, procurando por algum sinal, por menor que fosse, do que provocara aquele súbito ataque.

Foi até perto do rei e fitou-o com atenção. Uma camada de suor cobria a pele pálida. Agora que a fumaça se dispersara, o cheiro de vômito ficara mais evidente. Thorkell abriu os olhos e segurou sua mão.

Annis ajoelhou-se.— Tem uma luz dourada em volta de você — sussurrou ele. — De todos vocês.Annis ficou olhando para ele, pensativa. Tinha de descobrir o que estava

provocando aquilo. A resposta estava ali, em algum lugar de seu cérebro, como se quisesse vir à tona. Sua cabeça começou a latejar e o estômago a embrulhar. Ela forçou-se a focar a concentração em Thorkell.

Calma. Respire fundo.De repente, Thorkell levou as mãos ao abdômen e começou a gemer outra vez.— Está doendo... doendo...— Annis, você tem uma solução? — Haakon colocou a mão em sua cintura.— Ele parece muito pior do que estava à tarde. Parece que está morrendo.As mãos de Annis tremiam, e parecia que sua cabeça ia explodir de dor. Ela virou-

se e se afastou da cama, forçando-se a respirar fundo.— Está na ponta da minha língua. Estou me lembrando de alguém, de algo que

meu tio me contou. naquela última noite em Lindisfarne. — Annis olhou para Haakon e seus olhos se iluminaram. Sim, era isso!. Veneno.

— Cogumelos! Ou alguma outra erva venenosa, dedaleiras, talvez. Se for ingerida em pequenas quantidades, a vítima vai piorando aos poucos, até que a morte vem como um alívio, uma bênção. Alguém o envenenou.

— O que está dizendo, Annis? — Haakon franziu as sobrancelhas. — A única pessoa que conhece ervas é você.

— Então só pode ser cogumelos. A cura é a mesma.— Cogumelos? — Asa levantou-se. Todo o sofrimento e histeria haviam

desaparecido. Seus olhos cintilavam perigosamente. — Do que você está falando? Meu marido está morrendo e você vem falar em comida? Está me acusando de envenená-lo, é isso?!

— Thorkell comeu cogumelos, por acaso? — Annis pelejou para manter o tom de voz calmo. — É perfeitamente possível que ele tenha comido acidentalmente.

— Não é época de cogumelos — lembrou Haakon. — Eles crescem no outono, não no verão.

— Mas poderiam ser cogumelos secos.— Annis virou-se para Asa. — O que Thorkell comeu recentemente?

— Nada de especial. Ele tem estado sem apetite nos últimos dias. Está preocupado com as intenções de Haakon. Eu disse a ele que era bobagem, mas não adiantou. Eu fiz um pouco de cozido para ele hoje, e lhe dei na boca. Certamente, você não está sugerindo que. — Asa cobriu a boca com a mão, e lágrimas surgiram em seus olhos. — Isso é uma infâmia. Eu jamais faria mal ao meu marido, pai do meu filho!

— Nós acreditamos em você — disse Haakon, com firmeza.Asa olhou para ele com lábios trêmulos.— Annis não está acusando você. Não é, Annis?

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Ela balançou a cabeça. Não queria acreditar que fosse Asa, mas que era envenenamento, disso ela tinha certeza.

— Alguém teve acesso a esse cozido? Poderiam ter colocado alguma coisa dentro sem você ver?

Asa franziu a testa.— Não seria impossível, mas quem se atreveria a fazer isso? Quem saberia

dessas coisas venenosas? Só curandeiras é que entendem desse assunto, e a nossa não está aqui.

— Quando foi que Thorkell começou a ficar doente? — perguntou Annis.— Logo depois que Sigfrid chegou. Três dias depois que a curandeira viajou. —

Asa apertou os lábios. — Eles foram caçar e, quando voltaram, Thorkell se queixou de dor de estômago. Foi a primeira vez. Eu sei, porque até me lembro de ter sugerido a ele que não fosse à festa e repousasse. Mas claro que ele não me deu ouvidos.

— Temos de fazê-lo pôr para fora tudo o que está no estômago. Depois vou dar carvão vegetal moído para ele. Isso vai absorver qualquer resquício de veneno que ainda persista. Tem como me arrumar uma pena?

Haakon e Asa olharam para ela, perplexos.— Pena? Carvão vegetal? — questionou Haakon. — Tem certeza, Annis?— Se você quiser salvar a vida dele.— Vou providenciar — disse Asa, saindo apressada do quarto.— Eu curei Floki com fungo de madeira. — Annis passou a mão pelo cabelo. —

Posso salvar Thorkell também, mas preciso dessas coisas que pedi.Haakon fulminou-a com os olhos.— Annis, eu avisei. Se isto der errado, você será responsabilizada pelo assassinato

de Thorkell.— Se isto der errado, ele vai morrer. Bose e Sigfrid assumirão o poder. Sigfrid vai

declarar vingança a você e pedir o apoio dos outros jarls. A vingança será dirigida a todos de sua propriedade. Sigfrid e seu clã não vão me poupar só porque sou prisioneira. Eles só estão procurando um pretexto para a briga.

— Você tem certeza de que foram cogumelos envenenados? — perguntou Haakon baixinho.

Annis balançou a cabeça.— Não. Mas tenho certeza de que foi envenenamento. Não sei qual substância

utilizaram. Cogumelos me pareceram ser a opção mais provável.— Então você não sabe se foi acidental ou proposital.— Não — admitiu ela. Acusar alguém de deliberadamente envenenar o rei seria

acusar abertamente essa pessoa de traição. Ela não tinha provas, e Asa dissera que ela mesma havia dado a refeição ao marido. A preocupação de Asa não era fingimento. Ela não tinha motivo para envenenar o rei. — Não, não tenho provas, só sei que ele foi envenenado.

— Eu confio no seu julgamento, Annis. Você acertou com Thrand e acertou com Floki. Vou providenciar o carvão vegetal e montar guarda na porta do quarto de Thorkell até que ele se recupere.

As palavras de Haakon aqueceram o coração de Annis. Ela sabia que não trairia a confiança dele.

Asa voltou apressada para o quarto, trazendo uma longa pena branca nas mãos.— Não sei como uma coisa simples como essa pode ajudar. Você vai balançar na

frente dele e entoar um feitiço?— Não. — Annis balançou a cabeça. — Vou enfiar na garganta dele para fazê-lo

vomitar.

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Ela pegou a pena e foi para perto da cama. Sua boca estava seca. Os olhos de Thorkell estavam abertos, mas ela sabia que ele não a enxergava, pois continuava murmurando palavras e frases incoerentes. Ela rezou em silêncio e pôs a mão na massa.

DEPOIS DE fazer tudo o que podia, Annis recuou e enxugou o suor da testa. Precisara de uma boa dose de engenhosidade para fazê-lo engolir o carvão vegetal. Mas a respiração dele estava mais regular, e já não estava tão pálido.

— Como ele está? — Asa inclinou-se atrás de Annis para olhar.Apesar da sugestão de Haakon para que ela não ficasse no quarto, a mulher

insistira em ajudar Annis, providenciando bacias e toalhas.— Está dormindo. — Annis uniu as mãos. — Fiz tudo o que podia. A crise passou.

Agora é uma questão de tempo. É bom que ele durma algumas horas. Se ele passar desta noite, irá sobreviver.

— Meu marido é um guerreiro.— Sim — concordou Annis.Nesse momento, Thorkell abriu os olhos e fitou Asa.— É você, minha esposa. A luz que estava em sua volta sumiu. — A voz dele

continha um tom de cansaço, mas também denotava uma força interior.Asa deixou escapar uma exclamação de alegria e deitou o rosto no peito dele. Com

gentileza, Annis afastou a rainha da cama.— Deixe-o dormir. Ele vai ficar bem.A mão fria de Asa segurou a de Annis e a apertou.— Obrigada, Annis. Posso cuidar dele agora. Estamos seguros, nós dois.Uma súbita exaustão se abateu sobre Annis. Tudo o que ela queria era voltar para

os aposentos de Haakon e dormir. Mas receava deixar seu paciente. Olhou em volta, mas Haakon já tinha saído, sem se despedir. Ela suspirou. O que esperava, afinal? Haakon tinha outros problemas para resolver. Tinha compromissos.

— Está procurando Haakon? Você gosta dele, não é?Annis sentiu o estômago contrair. Por um momento pensou que fosse uma voz

interna falando, só depois percebendo que fora Asa. Levou a mão à testa e tentou pensar em uma resposta. Por um lado, gostaria de negar, mas por outro, não conseguia mentir.

Ela virou-se para Asa, surpresa.— É tão óbvio assim? Achei que eu disfarçasse melhor.— Para quem conhece os sinais. — Asa estendeu as mãos. — Venha cá, vamos

ser amigas. Você salvou a vida do meu marido. Nós dois estamos em dívida com você. Vamos conversar um pouco. Faz muito tempo que não tenho oportunidade de ser franca. Haakon não deve ter percebido. Os homens são meio cegos nesses assuntos.

Annis assentiu. Não sabia o que dizer. Se Asa tinha percebido, era apenas uma questão de tempo para Haakon perceber também. E então o relacionamento deles mudaria. Envolvimento não fazia parte do acordo.

— Será muito bom conversar com você.Annis retirou as mãos e sentou-se no banco ao lado da rainha, contemplando as

brasas.— Eu sei que você salvou meu marido porque temia pela vida de Haakon.— Eu o salvei porque não gosto de ver ninguém sofrer.— Mas salvou, mesmo sabendo que poderia custar a sua própria vida. Você

poderia não ter dito nada, ter ficado quieta. Eu acho, sabe, que nós duas somos muito parecidas.

Annis tinha dificuldade para enfrentar o olhar de Asa.Asa ficou em silêncio enquanto Annis andava de um lado para o outro no quarto,

limpando e arrumando tudo. O tempo inteiro, ela sentia que a rainha a observava.

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Desconcertava-a saber que seus sentimentos eram tão transparentes. Haakon ainda não percebera, mas quantas outras pessoas já teriam notado? Ela se orgulhava de sua capacidade de esconder as emoções, mas em poucas horas aquela mulher que nunca a tinha visto antes adivinhara tudo.

— Os jarls não podem se casar com prisioneiras — disse Asa, com tanta delicadeza na voz que as palavras chegaram aos ouvidos de Annis como o toque de um sino. — Eles são homens importantes e casam-se principalmente por motivos políticos.

As mãos de Annis tremiam quando ela colocou o cálice sobre a mesa.— Ninguém falou em casamento.Nem Haakon, nem eu.— Mas certamente você sabe que Haakon precisa casar. — Asa levantou-se com

um movimento suave e fluido e aproximou-se de Annis. — Thorkell vai insistir para que ele se case. E ele terá de fazer isso, já que é, no momento, o jarl mais rico do país. Você precisa reforçar isso para ele. Se ele sobreviver à assembleia do Storting, e eu tenho motivos para acreditar que ele vai sobreviver, ele precisa fazer o que Thorkell ordenar. para a própria segurança dele.

— Eu não tenho influência sobre Haakon, nem com quem ele vai se casar. — Annis forçou-se a falar com voz firme, mas seu estômago doía. Não tinha vontade de levar aquela conversa adiante. Queria correr e se esconder. E também queria gritar e revidar.

Ela cerrou os punhos, tentando se controlar. Como Asa se atrevia, mesmo sendo rainha, a lhe pedir que ajudasse Haakon a escolher uma esposa?

— Você acha que não? — Os olhos de Asa se estreitaram e sua voz tornou-se fria. Ela ergueu o queixo. — Você não vai conseguir segurá-lo para sempre.

— Eu sei — murmurou Annis contrafeita. — Você não está me dizendo nada que eu já não soubesse.

— Talvez até demore, mas Haakon não pode desafiar Thorkell. Você precisa entender isso. Ele precisa aceitar conselhos sensatos.

— Eu não acredito, com todo o respeito, que ele tenha a intenção de desobedecer ao rei, mas eu sou somente uma prisioneira.

Asa andou de um lado para outro, farfalhando a saia sobre os tornozelos. Depois parou e bateu com um dedo ao lado da boca.

— Você acha que o seu resgate vai chegar logo?Annis deu de ombros e fingiu indiferença. Aonde aquela conversa levaria? Será

que ela teria de confessar seus temores com relação a isso também?— Depende de quanto tempo vai demorar para a mensagem chegar a Nortúmbria.

Eu tenho terras no meu dote.— Então vai depender do que acontecer por lá. Se a pessoa encarregada do seu

dote vai mesmo enviar o dinheiro.Annis olhou para a rainha. Ela nunca dissera nada a Asa sobre o resgate. Como

ela adivinhara?— Você é bruxa?— Sou uma mulher experiente. Os caminhos das mulheres e da política são os

mesmos no mundo inteiro. — Asa inclinou-se para a frente. — Diga-me, o que você estava fazendo em Lindisfarne? Você não é freira.

— Eu fui visitar meu tio, o abade, e pedir conselhos sobre, um noivado que meu padrasto estava arranjando para mim.

— E o que ele lhe aconselhou?— A entrar para o convento — respondeu Annis sem hesitar.— Algo que você não tem intenção de fazer. — O riso de Asa ecoou no quarto.— Assim como não tem intenção de se casar com esse pretendente que seu

padrasto deseja.

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Annis balançou a cabeça.— Não tenho ideia do que vou fazer quando eu voltar para casa, se eu voltar algum

dia.— Mas você gostaria de voltar. — Asa segurou o queixo de Annis, forçando-a a

erguê-lo. — Não há nada para você aqui além de sofrimento. Acredite em mim. Eu conheço Haakon há muito tempo.

Annis assentiu, desolada, sentindo uma súbita saudade de sua casa. Seria bem pior ficar ali e ver o interesse de Haakon desvanecer. Ela jamais poderia ser uma rival para a mulher com quem ele se casasse. E conhecia bem a dor que isso causava. Mesmo ainda não conhecendo essa mulher, já sentia pena dela. Entraria no casamento cheia de expectativas e descobriria que o marido preferia a companhia de outras na cama.

— O que eu faço, Asa?— Eu vou pensar a respeito. — Asa colocou a mão na manga de Annis. — Esta

conversa permanecerá um segredo entre nós duas. Lembre-se, o rei e eu temos uma dívida com você.

Annis assentiu. Não desejava repetir aquela conversa para Haakon. Seria humilhante demais. Sabia que a intenção de Asa era preveni-la, mas, às vezes, as palavras mais bem-intencionadas eram as mais dolorosas.

— O PIOR já passou — disse Haakon, quando a primeira claridade da aurora surgiu no céu. — Asa está aliviada e grata por sua ajuda.

Annis virou-se de onde estava, contemplando o mar. Ela fora até ali depois da conversa com Asa, para refletir e decidir o que fazer a seguir. Asa prometera manter a conversa em segredo, mas até que ponto seus sentimentos não estavam evidentes para Haakon?

Como ela iria proteger o coração?— Sim. A cor dele está melhor, e a respiração se normalizou — disse ela,

mantendo o tom de voz neutro.— Mas você está exausta. Mal se aguenta em pé. — Haakon levou a mão à nuca

de Annis e a massageou. Ela queria recostar-se nele e extrair forças daquela energia que ele exalava. — Deixe a rainha e as aias tomarem conta de Thorkell e vamos voltar para o quarto.

— Para dormir? — Annis pestanejou.— Para dormir, com certeza. — Haakon observou as olheiras no rosto dela. Sabia

o que ela tinha feito por ele, e a que custo. — Depois que você estiver descansada eu irei vê-la.

Os lábios de Annis se curvaram em um sorriso melancólico, e Haakon franziu a testa. Esperara um pouco mais de entusiasmo.

— Tem alguma coisa errada, Annis?— Não, não. estou cansada, só isso. Meu cérebro está mais lento. Vai ser ótimo

poder dormir um pouco. — Ela afagou o rosto de Haakon. — Com ou sem você na cama.— Falaremos mais tarde.Haakon resistiu à tentação de segurar a mão dela em seu rosto, de não deixá-la se

afastar. Ela salvara a vida de Thorkell, pondo-se, ela própria, em perigo. A cada dia que passava, Haakon se tornava mais consciente da importância de Annis em sua vida. Ele a queria ao seu lado. para sempre. Esperava que, quando o resgate chegasse, ela repensasse e concordasse em ficar.

— Sim.Annis recostou a cabeça no ombro de Haakon. Quanto tempo ainda teria até que

ele se cansasse dela? Ou até que uma noiva apropriada aparecesse?

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— Você é um bom travesseiro — murmurou, sorrindo. — Prefiro ao que está na cama. Se você. estiver com vontade de fazer amor, saiba que estou também.

— Não está cansada demais para isso?— perguntou Haakon, rindo baixinho enquanto sentia o próprio corpo reagir à proximidade dela.

Annis balançou a cabeça. Ele a enlaçou pela cintura e conduziu-a para os aposentos que lhes haviam sido destinados. O fogo no canto do quarto tinha se reduzido a brasas, mas o ar ainda estava aquecido. Haakon hesitou por um momento, mas depois compreendeu que Annis precisava descansar.

Ela se recostou nas cobertas de pele e estendeu os braços para ele.— Haakon. — Sua voz soou sonolenta, e as pálpebras pesaram.Haakon aninhou-a em seus braços.— Durma bem, minha valquíria.

Capítulo 16

Annis dormiu o dia todo e emendou a noite com o dia seguinte, aconchegada na cama de Haakon. Lembrava-se vagamente de Haakon tirar suas roupas e de ter acordado em um dado momento e percebido que ele não estava no quarto. Virara para o outro lado na cama, inalando o cheiro dele impregnado nas cobertas, e voltara a adormecer. Quando abriu os olhos novamente, ele estava ao pé da cama, olhando para ela.

— Quer se vestir? — Ele lhe estendeu o vestido. — Já é de manhã.— Como está Thorkell? — Annis ergueu o corpo e apoiou-se nos cotovelos,

admirando as correntes de ouro e prata no pescoço de Haakon. Não conseguia imaginar um homem da Nortúmbria usando aqueles adereços, mas em Haakon ficavam bem.

— Está se recuperando, graças aos seus métodos. Ninguém jamais pensaria em usar carvão vegetal moído. — Haakon sorriu. — Ele já começou a dar ordens e a falar do dia em que vai voltar a lutar. Está difícil mantê-lo deitado.

— Posso ir vê-lo? — Annis tentou ignorar o coração acelerado. Imaginara que as palavras de Asa cairiam no esquecimento, mas elas continuavam ecoando em sua mente.Haakon precisa se casar... Precisa de uma esposa e filhos... Ele não pode se casar com uma prisioneira.

Seria essa uma das ordens de Thorkell? Ela entendia a necessidade política, mas, em seu íntimo, não conseguia abrir mão de Haakon. Rezava para que acontecesse um milagre e para que ela já não estivesse lá quando o casamento se realizasse. Ver Haakon com outra mulher era uma ideia insuportável.

— Foi para isso que vim chamá-la. Para que você veja o resultado do seu tratamento. Thorkell queria lhe agradecer ontem, mas eu disse a ele que você precisava descansar.

Annis levantou-se e começou a se vestir. Sua mão esbarrou na fina corrente de prata enquanto ajeitava o vestido, e a corrente arrebentou, deixando cair o crucifixo. Ela o pegou do chão e colocou-o sobre o baú ao lado da cama, junto com a corrente.

— Vou ter de deixá-lo aqui — disse ela. — Não quero perdê-lo.— Posso mandar a corrente para o prateiro.

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— Não tem pressa. Eu sei onde está. — Annis disse as palavras e surpreendeu-se ao perceber que o crucifixo deixara de ser um símbolo do que havia perdido. Ela agora podia separar-se dele, sabendo que estava seguro e que ela poderia reavê-lo a qualquer instante.

— Como quiser. — Haakon deu-lhe um beijo na testa.

— HAAKON, ANNIS. finalmente! — Asa saiu dos aposentos reais assim que eles chegaram ao salão. Seus cabelos estavam exoticamente penteados, e a maquiagem, perfeita, mas foi a vivacidade nos olhos dela que chamou a atenção de Annis. Ela estendeu as mãos para eles, e Haakon levou uma delas aos lábios. — Thorkell está acordado e quer falar com vocês dois. Achei que teria de mandar os guardas ir chamá-los.

— Não há necessidade disso — disse Haakon, tocando o cinto da espada.— Não, não. — Asa riu, divertida. Ela deu o braço a Haakon e começou a levá-lo

para o quarto, deixando que Annis os seguisse. — Você já está aqui, Haakon.— Mas ele está melhor, não está? — disse Annis, apertando o passo e entrando no

quarto. — Haakon deveria ter me acordado mais cedo para vir vê-lo.— Até uma curandeira precisa descansar — disse Haakon, discretamente

desvencilhando o braço do de Asa. — E é minha responsabilidade garantir que você se cuide.

Annis viu os olhos de Asa se estreitarem, mas logo em seguida um sorriso iluminou o rosto dela. Ela virou-se para Annis.

— Thorkell está se recuperando bem. Como você sugeriu, ele está se alimentando com cuidado, comendo apenas ovos quentes e pão de trigo.

— É bom saber disso.Thorkell estava recostado na cama, com uma pele sobre os ombros. A cor

retornara, e os olhos estavam brilhantes e vivazes.— Haakon Haroldson, creio que lhe devo meus agradecimentos — disse ele com

voz ressonante.Haakon inclinou a cabeça.— É minha concubina, Annis, que merece seus agradecimentos.O olhar de Thorkell transferiu-se para ela.— Minha esposa e rainha falou muito bem de você, Annis de Nortúmbria. Seu

conhecimento foi valioso para mim. Estamos gratos.— Fico feliz que meu conhecimento tenha sido útil. — Annis inclinou a cabeça,

sutilmente tentando identificar se havia alguma sequela do ataque.Asa inclinou-se e sussurrou algo no ouvido de Throkell. Ele ficou sério e acenou

com a cabeça.— Haakon escolheu bem sua concubina. Minha esposa me informou que você é de

linhagem nobre e que está esperando o pagamento de seu resgate.— É verdade.Annis viu Haakon ficar tenso e começou a achar difícil respirar. Havia um

significado oculto nas palavras de Thorkell. O que Asa dissera sobre ela não ser adequada para Haakon ainda a incomodava. Ela não era uma concubina qualquer, sem recursos e perspectivas na vida.

— Meu tio era o abade de Lindisfarne. Meu pai e meu falecido marido eram condes — disse ela. — O equivalente a jarls em seu reino, creio eu.

Thorkell assentiu.— Eu estava aqui pensando em qual poderia ser a minha recompensa para você.

Demorei para chegar a uma conclusão satisfatória, mas finalmente decidi. Você me devolveu minha vida. Eu lhe devolvo sua liberdade.

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— Minha liberdade? — Annis ergueu as sobrancelhas, tentando decifrar o significado daquelas palavras. A que tipo de liberdade ele se referia? Liberdade para quê? Ela não tinha meios de voltar para casa por si só.

— Você não é mais prisioneira — explicou Asa.Thorkell fez um sinal, e um dos guardas se aproximou para tirar a gargantilha do

pescoço de Annis. Ela se acostumara tanto a usá-la que nem a sentia mais. De repente, seu pescoço e seus ombros ficaram leves, porém nus e expostos. Todos os sinais externos de seu cativeiro tinham desaparecido.

A expressão de Haakon endureceu, e ele franziu as sobrancelhas. Annis percebeu que ele não estava a par das intenções de Thorkell.

— Não fique zangado, Haakon — disse o rei. — Você será recompensado. O tesouro está cheio, e podemos pagar o preço de uma prisioneira.

— Deveria ter falado comigo antes, Majestade.— E deixar que você a mantivesse confinada? — Thorkell balançou a cabeça. —

Tenho de pensar nesta moça. O que Asa desejaria se estivesse na mesma situação? É a coisa certa a fazer. Asa e eu conversamos a respeito. A moça vai voltar para a Nortúmbria, para a vida que tinha antes.

— Sorte de Vossa Majestade ser meu rei — retrucou Haakon, com uma mal disfarçada contrariedade na voz.

— E eu devo lembrá-lo de seu juramento de me obedecer.— Vossa Majestade me deixa pouca escolha. — Haakon curvou a cabeça, porém

seu tom de voz era frio. — Eu não desonro meus juramentos. Nunca quebrei uma promessa e não pretendo fazer isso agora.

— É bom ouvir isso.— O que. O que vai acontecer comigo? — Annis não se atreveu a olhar para

Haakon. Era melhor separar-se dele agora do que depois. A cada dia que passava ao lado dele, seu apego por ele crescia. Quando chegasse a hora de ele descartá-la, o que inevitavelmente aconteceria, seria muito mais doloroso. Mas, se ele desse um passo em sua direção, ou indicação de que a queria, ela se atiraria em seus braços.

— Você está sob a proteção da rainha — declarou Asa, com voz firme e segura.— Ficará com minhas aias, e, quando o próximo barco zarpar para o Sacro Império

Romano, você partirá, com dinheiro suficiente para pagar sua passagem de volta para a Nortúmbria.

Annis olhou para a rainha, incrédula. Sua vontade era gritar que não era aquilo que ela queria. Aquilo não era uma recompensa, era uma sentença.

— E os monges? — perguntou ela. — Eles foram capturados junto comigo.— O papa irá pagar o resgate deles no devido tempo — respondeu Thorkell. — O

representante de Carlos Magno já viajou para encarregar-se disso.— Parece que tudo já foi decidido por mim — disse Haakon, com o semblante

sombrio, muito diferente do homem carinhoso que Annis vira mais cedo.Um calafrio a percorreu. Haakon estava bravo com ela. Ela encontrara um meio de

escapar, em vez de ser ele a abandoná-la.— Qual é o problema, Annis? — indagou Asa. — Não quer ser livre outra vez?Annis olhou para Haakon. Se ele lhe desse o menor sinal, ela correria para ele.

Mas ele não se moveu. Ficou ali parado, sério e indiferente.Annis assentiu de leve com a cabeça. Tinha de ser pragmática. Aquilo não duraria

para sempre, de qualquer modo, por mais que fosse o desejo de seu coração. Pelo menos ela partiria com dignidade.

— É claro que eu quero ser livre. Voltar para minha casa é a coisa mais importante para mim.

Era mentira, mas era a única coisa que restava a Annis fazer. Melhor sofrer agora do que morrer aos poucos mais tarde. Todo o seu ser estava mergulhado na dor.

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Thorkell disse algo que ela não entendeu. Ele estendeu um anel e Annis viu Asa assentir com a cabeça, indicando que ela deveria dar um passo à frente e aceitá-lo.

— Se algum dia você precisar, saiba que este anel garante seu acesso a mim.Annis pegou o anel. Ela o guardaria como um tesouro, um lembrete de onde seu

coração sempre estaria.— É uma grande honra, Majestade.Thorkell gesticulou, dispensando as palavras de agradecimento, e Asa a

acompanhou para fora do quarto. Annis deu um último olhar para trás, mas Haakon estava de costas para ela.

— UM BARCO vai zarpar na próxima maré — anunciou Asa, entrando no quarto onde Annis passara a noite.

Annis virou-se da fenda por onde observava o movimento no pátio. Esperara que Haakon aparecesse e pedisse a ela para ficar. Mas ele não viera. Nem mesmo se preocupara em vir se despedir. Ela ouvira dizer que ele saíra e que ninguém sabia onde estava. Nada, apenas aquele último e terrível olhar. E agora a notícia de que o barco partiria em breve.

— Para onde vai o barco? — Annis tentou infundir entusiasmo à voz. Pouco tempo antes, a oferta de sair de Viken e voltar para a Nortúmbria a teria enchido de alegria.

— Bose está enviando uma missão para a corte de Carlos Magno. Falei com Bose e ele concordou que o capitão levasse você. Tenho uma bolsa com dinheiro e uma carta de apresentação para você. Já está tudo em ordem.

— Não entendo por que você está fazendo isso por mim.— Você salvou a vida do meu marido, e eu sei que, se eu fosse prisioneira, meu

maior desejo seria voltar à minha antiga vida.Voltar à antiga vida? Mas e se houvesse partes de sua nova vida que ela queria e

acalentava? Annis mordeu o lábio. Queria ter mais tempo.— Quando sai o próximo barco, depois desse?— Pode ser daqui a algumas semanas, talvez meses. Depende dos jarls e suas

necessidades. Não pense em ficar, Annis. Minha oferta é para agora. Não haverá uma segunda oportunidade.

Annis contemplou o anel de ouro em sua mão direita. Não podia passar semanas arriscando-se a cruzar com Haakon nos corredores. Ou a vê-lo com outra pessoa. Não, era melhor ir embora logo, antes que o tormento começasse de verdade. Era melhor recomeçar sua vida o quanto antes. Não havia desculpa para que ela ficasse. Precisava partir. Precisava começar a viver seu futuro.

— Sim, eu irei. Não tenho nada além de minhas roupas. — Annis lembrou-se do crucifixo, mas ela o deixara no quarto de Haakon. A ideia de ter de procurá-lo e pedir para pegar o crucifixo era demais para ela suportar. Paciência, teria de lidar com a perda do crucifixo.

O rosto de Asa ficou sério. Ela afastou os cabelos para trás com os dedos carregados de anéis.

— É melhor assim, Annis, acredite em mim. Em breve todo esse episódio será apenas uma lembrança distante para você.

Annis assentiu em silêncio.— Não quero me lembrar deste período de minha vida.Enquanto dizia as palavras, ela sabia que jamais esqueceria Haakon. Por toda a

sua vida se lembraria dele, e para sempre se perguntaria como teria sido. Mas agora isso não era relevante. Talvez fosse melhor fazer o que seu tio e seu padrasto queriam, casar-se com Eadgar. Nada mais importava. Dali por diante, ela apenas existiria.

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— Como Thorkell disse ontem, se algum dia você precisar de nossa ajuda, mande uma mensagem junto com o anel, e nós faremos o que for possível.

— Vou me lembrar disso. — Annis sabia que nunca faria tal coisa. Apenas guardaria o anel, o único elo que a conectava ao tempo que havia passado ao lado de Haakon.

— Vamos, então? — Asa colocou o capuz de sua capa e fez um sinal para as aias e os guardas. — Vamos acompanhá-la até o navio, para garantir que ficará em segurança e que será tratada de acordo.

A atmosfera no salão era de expectativa, quando o séquito o atravessou. Várias escravas estavam ocupadas arrumando as mesas e pendurando tapeçarias nas paredes.

— O Storting se reúne hoje — explicou Asa, ao perceber a expressão indagadora de Annis. — Depois das negociações, eles virão para cá para comemorar. Vai haver um banquete. Todos voltarão a ser amigos. Mas, por precaução apenas, Thorkell decretou que ninguém viesse armado.

— Isso é comum?— Meu marido é um homem prevenido, Annis. — Asa sorriu. — Ele sabe como são

os nobres de Viken, principalmente depois que seu monarca esteve doente. A menor das discussões pode se transformar em uma batalha sangrenta. Venha, vamos nos apressar. Bose avisou que o barco vai zarpar com a maré.

Annis olhou uma última vez para o salão. Onde Haakon se sentaria? Ao lado de Thorkell, ou na outra extremidade da mesa? Ela não achava que as diferenças dele com Sigfrid estivessem resolvidas. Mas então se forçou a desviar o pensamento. Os problemas de Haakon não lhe diziam mais respeito. Ela era uma mulher livre.

Durante todo o caminho para o cais, Annis ficou atenta para ver se avistava Haakon ou alguém de seu grupo. Queria dizer adeus, mesmo que de longe, mas ninguém apareceu. E seu orgulho não permitia que ela pedisse para vê-lo. Um suspiro escapou de seus lábios quando ela olhou para trás pela última vez.

— Lembre-se de que é para o seu bem, Annis. — Os lábios frios de Asa tocaram o rosto de Annis. — Um dia você se casará e terá filhos, e Haakon terá a esposa que Thorkell determinar. Alguém que esteja à altura do líder dos jarls.

— Diga a Haakon que. — Annis tentou forçar a voz através do nó em sua garganta. Engoliu em seco várias vezes, e o mundo tornou-se uma mancha enevoada. — Diga adeus a ele por mim.

— Eu direi. — Asa apertou a mão dela.— Você fez a coisa certa.— Eu não tive escolha, na verdade.Annis subiu na prancha de embarque, forçando-se a olhar para a frente, para as

velas quadriculadas vermelhas e brancas. Seus pés pareciam de chumbo. Ela cumprimentou o mal-humorado capitão e foi para a parte de trás do barco, onde não precisaria ver ninguém. Queria sentar-se e chorar.

Um par de pernas esticadas a fez tropeçar. Ela segurou-se na amurada do navio para não cair.

— Como vai, Annis? Que surpresa encontrar você aqui.O tom de ameaça nas palavras ditas em latim provocou um calafrio em Annis. Ela

forçou-se a não demonstrar nenhuma emoção e virou-se para a figura encostada na amurada.

— Aelfric. o que você está fazendo aqui.?

HAAKON OLHOU para o crucifixo de prata. Era tudo o que havia restado de Annis. Ele o encontrara sobre o baú, ao voltar para seus aposentos.

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O fato de ela tê-lo deixado ali o fazia pensar que talvez ele tivesse se enganado. que Annis não tivera a intenção de ser libertada daquela maneira.

Ele retorceu os lábios. Tinha imaginado um final bem diferente para aquele dia. Mas, à primeira chance que surgira, Annis não hesitara em agarrar a oportunidade de se ver livre. E o pior é que ele não podia condená-la por isso.

Não sabia com quem estava mais zangado, se com Annis por ter aceitado a oferta de liberdade sem olhar para trás, ou consigo mesmo por não ter lutado por ela.

Ele iria atrás dela e. Haakon segurou o crucifixo com força entre os dedos, sentindo-o espetar a palma da mão. Estaria preparado para revelar seu coração a uma mulher que queria partir? Uma mulher que não se importava com ele? Tudo o que ele sabia era que a vida seria vazia sem Annis. Tinha de haver uma maneira de.

— Haakon, o Storting já iniciou a sessão. — Vikar entrou no quarto para avisar. — Avaliei o clima e creio que o resultado será positivo para nós.

Sabemos que você não desonra seus juramentos, como alguns insinuaram. Mas alguns do felag se manifestaram. Eles deram o testemunho de que você e Bjorn não tinham se reconciliado completamente.

— Eu irei para lá daqui a pouco.Vikar fez uma pausa e esfregou a nuca, um pouco sem jeito.— Não é permitido portar armas. Haakon assentiu.— Eu já imaginava. É grande a possibilidade de os ânimos se exaltarem. Thorkell

sempre foi cauteloso. É graças a isso que ele se manteve no poder nos últimos dez anos.Vikar vacilou, começou a dizer alguma coisa e depois se calou.— Diga logo, homem! Que notícia pode ser tão escabrosa que você não se atreve

a falar? Somos amigos há tempo suficiente para dispensar cerimônias. O que foi?— É que. Sigfrid e Bose enviaram um navio mercante para Carlos Magno. Sua

concubina foi embora nele.Um enorme vazio abriu-se dentro de Haakon, uma profunda sensação de traição.

Annis nem mesmo se dera ao trabalho de despedir-se. Ele e tudo o que acontecera não tinham significado nada para ela. Não era possível. Ele se recusava a acreditar que ela tivesse fingido todo aquele tempo. Vikar devia estar equivocado.

— Quando foi isso?— Hoje de manhã. Eu acabei de saber, e achei que devia lhe contar. — Vikar

gesticulou com a mão. — Essa viagem é oportuna demais, eu achei. Desde quando Bose negocia com Carlos Magno? As transações dele são com o Ocidente, não com o Sul. Ele está tramando alguma coisa. Eu conheço meu sogro.

Haakon acenou com a cabeça. Vikar tinha razão. Alguma coisa não se encaixava. Aquela viagem era repentina demais. E ele não conseguia acreditar que Annis partisse sem se despedir.

Devia haver uma explicação, e ele iria descobrir. Ele não dera escolha a Annis, e estava na hora de fazer isso.

— Estou com o crucifixo dela.— Você vai ficar com ele? — Vikar arqueou uma sobrancelha. — É um objeto

insignificante e sem valor.Ele vale muito mais do que você imagina.Haakon reprimiu as palavras. Não precisava dar explicações; Vikar não entenderia.

Para Vikar, as mulheres eram para ser usadas e descartadas. Eram um interesse secundário. Em primeiro lugar vinha a luta.

— Eu vou devolvê-lo, Vikar. pessoalmente. — Haakon guardou o crucifixo em sua algibeira, junto com a barra de metal. — Nós não nos despedimos.

— E é tão importante assim dizer adeus?— Para mim, é.

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— E quando você pretende partir? Você não pode abandonar o felag. E, além disso, vai demorar para preparar um barco. Você só vai alcançá-la na corte de Carlos Magno. Não deixe que Sigfrid destrua sua reputação dessa maneira.

Haakon trincou os dentes. Vikar estava certo. Ele tinha deveres e obrigações. Não daria ensejo a Sigfrid para acusá-lo de desonrar seus juramentos. Na verdade, pelo que ele conhecia de Sigfrid e de sua mente deturpada, poderia ser exatamente o curso de ação que ele esperava que Haakon tomasse. Annis teria de esperar até que ele se desincumbisse de seus compromissos e pudesse dedicar a devida atenção a ela, com a certeza de que ela estava a salvo de represálias.

— Eu irei depois da assembleia do Storting — disse ele. — Antes tenho de resolver uma pendência com Sigfrid.

Capítulo 17

Annis olhou para Aelfric. O monge estava vestido com trajes vikings refinados. Parecia bem nutrido e asseado, mas seus olhos tinham uma expressão de superioridade.

— Você derramou algumas lágrimas pela minha morte, Annis?— Como você chegou aqui? — Ela levou a mão ao pescoço. — Nós pensamos que

você tivesse morrido.— Não precisa se preocupar. — A expressão de superioridade se acentuou. —

Estou bem vivo. O capitão sabe a meu respeito. Sigfrid pagou minha passagem.— Sigfrid? — Annis não disfarçou a perplexidade. O líder do clã Bjornson tinha

favorecido aquele prisioneiro foragido? Não fazia sentido! Ou fazia.?— O navio dele me achou depois que escapei daquele poço do inferno. Eu caí em

várias ravinas. Aquela bruxa Ingrid não sabe nada sobre o terreno. Depois que os marinheiros dele me resgataram, Sigfrid ficou em dúvida quanto ao que fazer comigo, e mais de uma vez senti que minha vida estava por um fio. Mas meu conhecimento sobre ervas provou ser de um valor inestimável para ele, e por isso ele me permitiu viver.

Annis olhava atônita para Aelfric. Aos poucos, a compreensão penetrou sua mente. Ele estava falando da misteriosa enfermidade do rei. Só podia ser. Estava certa a sua suspeita de que o envenenamento não havia sido acidental.

— Foram dedaleiras. Você colocou dedaleiras na comida de Thorkell. Eu reconheci os sintomas. E você jantou comigo e meu tio naquela noite.

— Deus colocou as ferramentas ao meu dispor. — Aelfric uniu as mãos e ergueu os olhos para o céu. — Eu queria punir os inimigos dele. Mesmo agora, seu amante será castigado. Pense nisso, Annis! Chore e arrependa-se, e você ainda terá salvação.

— Você enlouqueceu!Aelfric olhou para ela com uma ruga na testa.— Claro que Sigfrid ficou irritado com o fracasso em dar cabo do rei, mas com a

minha ajuda ele traçou um novo plano. Depois de hoje, ele obterá tudo o que pedir, e seu precioso Haakon será destruído.

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— O que você disse a ele?— Haakon desonra seus juramentos. Basta olhar nos olhos dele para saber que ele

não contou a verdade sobre a luta com Bjorn. Eu contei a verdade, que foi Haakon que atacou Bjorn. Depois disso, Sigfrid acredita em mim.

— Mas como você pode saber o que aconteceu? Você não estava lá. Quem estava era eu!

— Eu sei. Por que você acha que está aqui agora?Annis gelou, subitamente enxergando com toda a clareza o futuro. Haakon estava

prestes a perder tudo. Ela caíra direitinho na armadilha de Sigfrid.Agora, ela era a única pessoa que podia pôr um fim naquilo tudo. O rei teria de

acreditar nela. Ela tinha o anel real.Annis fechou os olhos, trêmula. Se dissesse a verdade sobre Bjorn, seria morta.

Ela o matara em legítima defesa, mas isso seria suficiente para absolvê-la?Por outro lado, se Haakon perdesse tudo, valeria a pena continuar vivendo,

sabendo que poderia ter evitado a ruína dele?Annis respirou fundo. Precisava pensar, mas não havia tempo. Tinha de levar

Aelfric para expor a trama toda. Sem ele, seria apenas a palavra de uma concubina tentando proteger o ex-amante.

Como ela iria conseguir, Santo Deus.?— Você é um tonto, Aelfric, por acreditar que o mundo seria um lugar melhor com

Sigfrid no comando. Você está promovendo mais ataques à Nortúmbria, não entende isso?

— Você é uma mulherzinha boba, Annis, e não sabe nada desses assuntos. Logo você estará em casa, sã e salva. Deveria estar de joelhos, me agradecendo por isso.

Annis pressionou os lábios. Os dois estavam sozinhos no convés. Aelfric não era muito maior que Ingrid. Se ela conseguira dominar Ingrid usando suas habilidades de defesa pessoal, conseguiria dominar Aelfric também.

Sem pensar duas vezes, ela pulou para a frente, derrubando-o no convés. Ele ergueu as mãos para defender-se, mas Annis aproveitou o momento para virá-lo de bruços. Plantou firmemente os joelhos nas costas dele, imobilizando-o. Em seguida segurou os braços dele e forçou-os para cima. Era hora de ter uma conversa franca.

— Isto é o que uma mulherzinha boba como eu pode fazer, Aelfric!— Solte-me! Você está me machucando! — A voz dele elevou-se para um

choramingo anasalado, de vítima. — Você sabe que não gosto de violência.— Seu monge idiota! Deus não gosta de covardes, sabia?! E é isso que você é!—

disse Annis no ouvido dele. — Agora você vai me escutar, seu tonto! Sigfrid não vai poupar sua vida. Seus dias estão contados. Você vai voltar comigo.

— Como assim, Sigfrid não vai me poupar? Ele prometeu! — O choramingo assumiu um tom esganiçado.

Annis sentiu a tentação de esganá-lo. Só mesmo ele para ser tão tolo e arrogante...— Você sabe demais, Aelfric, e representa perigo para ele — falou Annis,

exasperada.O tempo era precioso e estava escapando por seus dedos. Os gritos dos

marinheiros se tornaram mais altos. Em poucos minutos o navio zarparia, e ela perderia Haakon. para sempre.

— Quantas pessoas simplesmente desaparecem no mar e ninguém mais ouve falar delas? Você acha que pode confiar em um homem que tentou envenenar seu rei? Pense nisso e me diga quem é bobo aqui!

Aelfric ficou imóvel, parecendo considerar o que ela dissera.— Faz sentido isso que você está dizendo. O que você propõe?— Sair deste barco antes que ele saia do lugar. Este barco cheira a morte.— Posso ir junto. por favor?

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— Você é covarde, falso, ladrão e mentiroso, Aelfric. Quero deixar isso bem claro. Mas eu preciso de você. — Annis afrouxou levemente os dedos nos braços dele. — Você pode ir comigo e eu vou fazer o possível para protegê-lo. Faça como estou dizendo, agora, ou vai ser engolido por essas ondas geladas.

— Como você vai me proteger? — resmungou ele, com a voz fina. — Você é só uma mulher, mesmo que tenha conseguido me derrubar.

— Eu enfrentei uma alcateia de lobos e sobrevivi, Aelfric. Nada mais me assusta. — Annis sabia que era mentira. A ideia de perder Haakon a apavorava, mas ela não pensaria nisso agora. Tinha o poder de salvar Haakon. — Precisamos ir, já.

— Está bem, eu vou com você. A alternativa não me agrada. — Aelfric levantou-se com relutância, mas Annis segurou seu braço com firmeza, torcendo-os atrás das costas.

— O que você está fazendo?!— Marche! — Annis pressionou os joelhos nas costas dele e o empurrou para a

frente. — Ou saímos daqui agora, ou estamos perdidos.— Você não confia em mim.— Acertou! Agora fique quieto. se quiser sair vivo deste barco.Eles percorreram o convés até a prancha de embarque deserta. Annis olhou por

sobre o ombro, custando a acreditar naquela negligência dos marinheiros. Um deles enrolava uma corda, enquanto outros dois arrastavam um baú, nenhum deles olhando na direção da prancha. Aquele era o momento. Annis foi empurrando Aelfric para fora do navio, tão rápido que ela mesma quase caiu.

— Nós nos despedimos aqui — disse Aelfric, assim que pisaram no cais. — Pode me deixar ir agora, estou em segurança.

— Engano seu, rapaz, você vai comigo. De uma vez por todas, você vai assumir os danos que causou. — Annis apertou o braço dele e o empurrou em direção ao salão nobre.

À medida que se aproximavam, Aelfric tentava se desvencilhar, mas Annis o contrabalançou, provando ser uma adversária à altura.

— Por que estamos vindo para cá? Eu não concordei com isso! — Aelfric choramingou outra vez. — Por favor, Annis, tenha misericórdia. Eu não sou um homem violento!

— E eu nunca concordei que você fugisse deixando em risco todos nós! Alguma vez você pensou em seus amigos monges quando estava ajudando Sigfrid?

— Ah, isso eu posso explicar. — Aelfric parou de andar e olhou por sobre o ombro com um sorriso triunfante.

— Tarde demais para explicações — revidou Annis, empurrando-o com mais força. Seu corpo inteiro doía, mas ela não deu atenção. Tinha de prevenir Haakon e Thorkell.

Eles chegaram à entrada do salão e dois guardas bloquearam sua passagem. Annis ergueu a mão livre para mostrar o anel, que brilhava à luz do sol.

— Estou em uma missão para o rei. Este homem é um prisioneiro foragido. Leve-me à presença de Sua Majestade, agora.

Ela prendeu a respiração enquanto os dois guardas deliberavam.— Pode passar.Annis apressou o passo e entrou no salão, onde o Storting estava reunido.— Aí não! — alertou um dos guardas. Não é permitida a entrada de mulheres no

salão esta tarde.Annis tornou a mostrar o anel.— Thorkell prometeu me ajudar se eu precisasse. E eu preciso, e já. Não vai

querer que seu rei passe por mentiroso, vai?— Não, é que. o Storting está em sessão. Todos os nobres estão aí dentro.— Então, leve-me até lá para que eu possa consultar o rei.— Annis, pare! Você não pode entrar.

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Ela o beliscou e ele gritou.— Eu teria um imenso prazer em cortar sua garganta. Sua única esperança de

sobreviver é cair nas graças do rei.O guarda afastou-se novamente e consultou o companheiro. Mas eles falavam

baixo demais para Annis conseguir ouvir o que diziam.O suor começou a pingar de sua testa, fazendo os olhos arderem. Ela só esperava

que não fosse tarde demais.Annis tentou controlar a sensação de pânico que crescia dentro dela. Nunca tivera

o amor de Haakon, sabia disso, mas ainda poderia salvar a vida dele e a propriedade.— Não podemos levá-la lá dentro. Vamos levá-la até Bose, o conselheiro do rei.— Onde ele está? — perguntou Annis, tentando lembrar qual dos vikings era Bose.

Por alguma razão, duvidava que pudesse contar com a solidariedade do tal Bose.— No Storting. Você terá de esperar.— O que eu tenho a dizer tem a ver com a vida do rei! Quer ser considerado

responsável depois, se algo acontecer? — Annis revisou seu plano. Ela contaria aos nobres reunidos sobre a trama para matar Thorkell e depois contaria a verdade sobre a morte de Bjorn.

Os dois guardas se entreolharam, indecisos.— Leve-me à presença da rainha Asa, então.— Ela está sentada ao lado do rei.— Então me leve até lá! É um assunto urgente, de vida ou morte! Com essa sua

relutância, você está fazendo com que o rei descumpra a promessa que me fez.Os homens hesitaram por um momento e examinaram o anel novamente. Annis

prendeu a respiração.— Está bem, venha conosco — disse o primeiro. — Mas se estiver mentindo. sua

vida será penhorada.— Eu compreendo — disse Annis, concentrando-se em segurar Aelfric.O salão estava apinhado, com dezenas de homens que pareciam falar todos ao

mesmo tempo. Eles foram se afastando como o Mar Vermelho conforme os guardas passavam, conduzindo Annis e Aelfric. Pouco a pouco as vozes foram se calando, até que Annis e Aelfric se viram frente a frente com Thorkell, Asa e os demais. Haakon estava ali também, e seus olhos se arregalaram ao ver Annis. Ela apenas o olhou de soslaio, forçando-se a ignorar a presença dele e concentrando-se em Thorkell.

O rei teria de escutá-la, teria de compreender o perigo. Asa franziu a testa e apertou os lábios em uma linha fina.

— Este homem é um prisioneiro foragido, um dos monges de Lindisfarne. — Annis forçou a voz a soar firme. Murmúrios abafados ecoaram no salão. — Eu o encontrei no navio de Sigfrid. Sigfrid prometeu a ele uma viagem segura para a corte de Carlos Magno.

— Sigfrid? — Thorkell virou-se para o viking, cujo rosto empalideceu e depois ficou vermelho. Em seguida ele esbugalhou os olhos e crispou as mãos. Mas um momento depois se recompôs.

— Eu não sei do que essa mulher está falando. Como um foragido poderia entrar no meu navio? Ela é concubina de um notório mentiroso, que desonra seus juramentos!

— Deixe-me falar e então julgue minhas palavras pela verdade que elas contêm! — Annis levantou a mão, em um gesto de súplica. — Eu lhe peço, em nome deste anel que me foi dado por Vossa Majestade, que escute o que tenho a dizer e então julgue como lhe aprouver.

Thorkell inclinou-se para a frente, com os olhos brilhantes.— Continue. Estou interessado em ouvir.— Quando Vossa Majestade adoeceu, eu suspeitei que tivesse sido envenenado

por dedaleiras. Mas ninguém aqui tinha conhecimento sobre ervas. Sua curandeira teve de viajar em uma inesperada missão para o Norte.

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— Correto. Deixamos essas coisas a cargo das curandeiras, e não há nenhuma na corte no momento. O que aconteceu comigo foi um ato dos deuses, foi o que me confirmou minha vidente esta manhã.

— Este homem tinha o conhecimento sobre ervas! — Annis empurrou Aelfric para a frente com tanta força que ele se desequilibrou e caiu prostrado diante do rei.

— Como ele adquiriu esse conhecimento?— Ele é um monge e era membro da ordem de meu tio, o abade de Lindisfarne.

Meu tio, como toda a minha família, conhece bem as propriedades das ervas. Aelfric estava presente quando meu tio explicou como as dedaleiras podem ser usadas para induzir à melancolia.

— Interessante. — Thorkell cofiou a barba. — E com quem este monge compartilhou seu conhecimento sobre ervas? Não me lembro de vê-lo por aqui. Meus alimentos são muito bem guardados e protegidos, provados até. Ele andava pendurado nas vigas do teto?

Uma gargalhada coletiva explodiu no salão.— Acho que podemos deixar essa fantasia no lugar a que ela pertence. — interveio

o viking de cara medonha. — O próximo item de nossa pauta é a aplicação de uma indenização, por parte de Sigfrid, ao desonrador de juramentos, Haakon Haroldson.

Protestos de “Não, não, deixem-no ser julgado!” soaram dos bancos. O homem ergueu a mão, pedindo silêncio.

— O suposto desonrador de juramentos — emendou.O coração de Annis afundou. Os guardas já se aproximavam para retirá-la do

recinto. Ninguém acreditava nela. Ela lançou um olhar desesperado a Haakon, mas ele permanecia imóvel como uma estátua.

— Por que eles estão gritando “não”? Annis, eu fui louco de vir com você.— Diga a eles quem forçou você a dar veneno ao rei — disse Annis, puxando o

braço de Aelfric. — Diga agora, no idioma da Nortúmbria, ou tudo estará perdido!Aelfric desvencilhou-se das mãos dos guardas e adiantou-se até o rei.— Foi Sigfrid e seu mordomo-conselheiro, Bose, o mesmo homem que está agora

ao seu lado — vociferou Aelfric, em seu idioma. — Eles me obrigaram. Bose colocou as dedaleiras no cozido do rei depois que o provador experimentou e antes de lhe ser oferecido pela rainha.

Ele enfiou a mão na algibeira e tirou um ramalhete de folhas secas.— Veja, ainda tenho um restinho aqui!Thorkell ficou imóvel. Annis rezou em silêncio.— Esse homem é um demente! — disse Bose, mas seus olhos se moviam de

Thorkell para Aelfric, sem parar.— Vossa Majestade talvez se interesse em saber como este homem veio parar

aqui — disse Annis. Em poucas palavras, ela repetiu a história que Aelfric lhe contara.— Thorkell, isto é uma tentativa estapafúrdia de Haakon de reverter os

procedimentos! — rugiu Sigfrid. — Ele está usando a concubina para provocar confusão e semear dúvidas em sua mente. Quando é que eu deixei de ser, em algum momento, um leal servo de Vossa Majestade?

— Deixe Annis falar. — A expressão de Haakon estava séria e indecifrável. — Vossa Majestade sabe que não tive contato com ela desde que ela foi libertada. Não tenho poder algum sobre ela.

— Porque você salvou a minha vida, vou relevar esta interrupção, mas não levarei em consideração histórias disparatadas. — Thorkell deu uma tossidela. — Bose, com efeito. Ele envenenaria a própria mãe, antes de mim.

— Este homem foi resgatado por Sigfrid depois que fugiu da fazenda de Haakon. — Annis fez uma última tentativa. — Eu ia partir esta manhã, no navio de Sigfrid, e já tinha embarcado, quando o encontrei no convés. Alguém perguntou a Sigfrid e Bose o

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porquê da súbita necessidade de enviar um navio mercante para Carlos Magno? E por que a curandeira tão convenientemente se ausentou nos últimos dias?

— Um dos meus homens avistou uma embarcação parar na baía ao sul de minha propriedade — declarou Haakon calmamente. — Sigfrid, você foi para o sul, e não para o norte, depois que visitou minha casa por motivos nunca claramente explicados.

— O monge está mentindo! — Sigfrid avançou para Annis e Aelfric com os braços estendidos, o rosto distorcido pela fúria. — Eu nunca quis envenenar Thorkell, apenas controlá-lo! Exijo justiça para meu irmão!

— Lembre-se de seu juramento, Sigfrid! — trovejou Thorkell. — Não injuriar ninguém neste salão!

Exclamações abafadas soaram no recinto quando Sigfrid continuou a avançar.Pronto, pensou Annis. Aquele era o fim. Ela vivera até aquele momento, para ser

morta pelo irmão de Bjorn.— Você me ofereceu ouro se eu eliminasse seu rei! Tanto ouro quanto eu

conseguisse carregar! — Aelfric tentou correr para longe de Sigfrid, mas tropeçou e caiu de joelhos no chão.

Sigfrid o agarrou pelo pescoço e o torceu. O monge deixou escapar um som engasgado, pavoroso, e caiu no chão. Sigfrid virou-se para Annis. Sua expressão se modificara; as narinas inflaram, os olhos reviraram, e ele soltou um rosnado feroz. Estava acometido pela loucura do guerreiro.

Annis começou a correr, mas ele a agarrou. Com a outra mão, começou a apertar-lhe o pescoço. Annis tentou respirar e viu o mundo começar a escurecer. Tentou gritar, mas nenhum som saía de sua garganta.

— Isto é o que eu chamo de desonrar um juramento! — O punho de Haakon atingiu o rosto de Sigfrid, lançando-o em cima de Bose.

Annis inalou o ar, sentindo o braço de Haakon em sua cintura. Ela olhou para onde Sigfrid caíra desengonçadamente. Os olhos dele estavam esbugalhados, em uma expressão atônita. Então ele caiu para a frente, com um punhal enterrado nas costas.

A cor desapareceu do rosto de Bose.Ele apontou para a figura dobrada no chão.— Esse homem era um traidor. Um desonrador de juramentos. O rei tinha de ser

protegido.— Thorkell ordenou que todos entregassem suas armas. Como se explica que

você tivesse uma? — exigiu Haakon, com uma voz tão fria quanto o mar no inverno.— Foi uma precaução. Eu temia um ataque ao meu rei. — A voz de Bose morreu

em seus lábios quando ele viu a expressão de Thorkell.— Segurem-no! — Thorkell vociferou para os guardas. — Em nome de Odin, façam

alguma coisa certa hoje!— Bose é a única pessoa que teve acesso à sua refeição — disse Haakon, quando

o tumulto cessou.— Vai acreditar na palavra de um homem que atacou e matou um membro de seu

próprio felag a sangue-frio? Não vamos nos esquecer de por que estamos aqui hoje — retrucou Bose, em um tom de voz enfastiado, como se seus braços não estivessem seguros por dois guardas. — Haakon se irritava com os desafios de Bjorn e decidiu livrar-se dele com as próprias mãos. Ele desonra seus juramentos, e suas terras devem ser confiscadas!

— Haakon Haroldson não matou Bjorn Bjornson. fui eu que o matei — disse Annis, para surpresa e incredulidade de todos os presentes. — Eu estava lá e sei o que aconteceu. A vidente estava certa. Ele não morreu pela mão de um homem. Foi pela minha mão, com a minha faca.

— Annis!

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Hlq Históricos 153 - Coração bárbaro - Michelle Styles

Annis ignorou o protesto furioso de Haakon. Ficou ali, com a cabeça erguida, aliviada por finalmente contar a verdade sobre aquele dia terrível. Eles teriam de ouvi-la e entender de uma vez por todas que Haakon não havia desonrado nenhum juramento.

— Não estou mais sob sua proteção, Haakon Haroldson. Posso falar e contar a verdade.

— Estou intrigado. Esta história é tão esclarecedora quanto a anterior? — Thorkell murmurou alguma coisa para Asa, que deu de ombros. — Como foi que você o matou, jovem?

— Ele entrou no meu quarto, uma verdadeira besta enlouquecida. Achei que minha hora tinha chegado. Então Haakon apareceu. O monstro.

Bjorn atacou-o do nada, sem nenhuma provocação. Minha criada aproveitou a oportunidade para fugir, mas ela tropeçou em Haakon e ele caiu no chão, e o escudo voou para longe. — Devagar e com clareza, Annis relatou o que acontecera.

— Por que Haakon estava lutando contra Bjorn? — indagou Thorkell, quando ela terminou a narrativa.

— Para se defender. Bjorn foi o primeiro a empunhar a espada, desferiu o primeiro golpe.

— Para se defender? — Thorkell franziu a testa. — Muito me intriga que um guerreiro, mesmo um feroz como Bjorn, não reconhecesse um membro de seu próprio felag.

— Eu posso responder a isso — interveio Bose. — Permita-me falar, agora que sei a verdade sobre essa triste história.

— Se você puder lançar alguma luz, as coisas podem ficar mais fáceis para você.— Sigfrid me contou a história dele. Como todos aqui reunidos, eu também ouvi o

que a vidente disse. Não me pareceu certo. Por que Haakon atacaria? Ele me convenceu a ajudá-lo. Eu só queria que Vossa Majestade me ouvisse. Nunca foi minha intenção causar nenhum dano.

— O que foi que Sigfrid confidenciou a você?— Antes de o felag partir naquela viagem, Guthrun rogou uma praga em Haakon

por levar o único filho dela, e não é segredo para ninguém que Guthrun cobiçava as terras de Haakon.

— Continue.— Ontem à noite, Sigfrid me contou o resto da história. Guthrun procurou Bjorn

antes de eles partirem e pediu que ele matasse Haakon se uma batalha eclodisse. Bjorn mandou uma mensagem para o irmão, contando.

— Sigfrid viu a chance dele — interrompeu Haakon. — O motivo para a visita dele à minha propriedade, agora faz sentido. Ele pensava em se casar com Guthrun, assumir o controle da propriedade e matar Thrand se ele regressasse. Tudo o que eu tenho seria dele.

O silêncio no salão era opressivo, enquanto todos contemplavam o corpo de Sigfrid. Thorkell fez um sinal para os guardas e eles levaram Bose.

— Annis terá de pagar a compensação?A voz de Haakon retumbou nos ouvidos de Annis. Ela ergueu a cabeça e afastou-

se dele.— Como Bjorn foi o agressor, e eu tenho uma dívida com você que jamais poderei

pagar, eu a absolvo da necessidade de pagar a compensação para o clã Bjornson.— Acabou, Annis. — Haakon pôs a mão no ombro dela. — É hora de levar você

para casa.Casa, uma palavra que já tivera significado, mas um significado que havia mudado

para sempre.— Eu não vou voltar para a Nortúmbria, Haakon. — Annis fitou-o nos olhos. Tinha

de assumir o risco. Se havia aprendido uma lição naquele dia, era quão frágil e preciosa a

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vida era. Se Haakon a rejeitasse, ela saberia. Não seria mais uma questão de ficar se perguntando pelo resto da vida como poderia ter sido. — Minha vida não teria sentido lá. Eu apenas existiria.

— O que você está dizendo, Annis? — perguntou ele, em um sopro de voz.— Eu quero ficar aqui. como sua concubina. se você quiser.Os olhos de Haakon ficaram ainda mais azuis.— Como minha concubina, não.Annis olhou para ele, sentindo o coração pesado. Ele não se importava com ela.

Ela havia tentado e falhado. Acenou com a cabeça e sentiu as lágrimas formarem um nó em sua garganta. Pelo menos ela iria embora com o que sobrara de sua dignidade.

Haakon então segurou sua mão e levou-a ao peito.— Eu quero você como minha esposa.— Ele fez uma pausa. — Por favor, Annis,

diga que aceita casar-se comigo. Eu lhe dou essa escolha.— Sua... esposa? — A sensação que a invadiu era indescritível. Annis teve a

impressão de que se desse um impulso sairia voando. — Mas... mas...Ela tentou pensar em todos os motivos pelos quais ele talvez jamais lhe dissesse

aquelas palavras, mas nenhum lhe ocorreu. A única coisa em sua mente era a palavra “esposa”, ecoando repetidamente. Haakon a queria como esposa!

— Você tem alguma objeção? — Ele entrelaçou os dedos aos dela. — É a única maneira de eu garantir que você fique comigo para sempre, valquíria.

— Mas Asa disse que...Haakon a fez calar-se com um dedo em seus lábios.— Não importa o que as outras pessoas pensem ou digam. A única coisa que

importa é você e o que você sente. Você capturou meu coração desde aquele dia, em Lindisfarne. Quero compartilhar minha vida com você. Quero você ao meu lado todo o tempo, de dia e de noite.

— Sim! Sim, eu quero me casar com você! — Annis lançou os braços ao redor do pescoço dele e os lábios de ambos se encontraram.

Haakon enfiou a mão dentro da túnica.— Depois que a assembleia do Storting terminasse, eu pretendia procurar você.

para dar-lhe isto.Ele colocou o crucifixo nas mãos dela. Annis o olhou, enternecida.— Você ia me procurar? — Ela ainda achava difícil acreditar.— Tendo mantido meu coração tanto tempo fortemente protegido, foi uma surpresa

para mim quando ele foi roubado por uma valquíria.— Mas foi você quem roubou o meu coração. E eu compreendi que, onde o meu

coração estiver, lá encontrarei meu refúgio. — Annis levou a mão ao rosto de Haakon e traçou os contornos tão conhecidos.

— Vamos voltar juntos para casa, Haakon. Você e eu.

Epílogo

Dez meses depois

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— Recebi uma resposta de seu padrasto.Haakon entrou no quarto onde Annis estava deitada, com o bebê recém-nascido

nos braços. Floki ergueu a cabeça, mas continuou vigiando a porta do quarto.— Fale baixo para não acordar Harold. — Annis sorriu e olhou para o bebezinho

adormecido. — Foi difícil conseguir fazê-lo dormir.— Minha ama sempre dizia que eu era difícil de dormir. — Ele acariciou a

cabecinha do filho. — O mundo é um lugar novo para você, não é, rapazinho?— O que você ia dizer do meu padrasto?— Agora que os monges voltaram para a Nortúmbria, eles o desacreditaram na

frente do rei. Seu padrasto mandou uma carta de contrição.— Foi o melhor presente de casamento que você poderia ter me dado, libertá-los

sem esperar o pagamento do resgate e mandá-los de volta, e com proteção.— Demorou um pouco para eles fazerem a viagem por terra, da corte de Carlos

Magno.Annis sorriu.— Guthrun teria ficado furiosa se soubesse que você abriu mão de toda essa

quantia de dinheiro.Os dois ficaram em silêncio, relembrando a terrível notícia que receberam ao

regressar. Ao saber da morte de Sigfrid e da confissão de Bose, Guthrun sofrera um derrame fatídico e morrera. Bose aceitara ser mandado embora para sua propriedade.

— Ela foi uma boa mãe para Thrand — disse Haakon, baixinho. — Nunca lhe desejou mal, tenho certeza disso.

— Se Thorkell não tivesse insistido para ficarmos na corte, poderíamos ter dado a notícia pessoalmente. Talvez não tivesse sido um choque tão grande.

— Agora não adianta mais. O passado não volta. Só podemos seguir em frente.Annis mudou o bebê para o outro braço.— Estou contente que Thrand não tenha tido participação na trama. Haakon

apertou a mão dela.— Quer ouvir o que seu padrasto escreveu?Ele entregou a Annis a folha de pergaminho. Ela leu rapidamente as palavras.— Ele vendeu as terras do meu dote para Eadgar! E espera que seja suficiente

para pagar meu resgate, se eu quiser! Ele lamenta que tenha demorado tanto tempo para levantar os fundos, mas está difícil encontrar ouro na Nortúmbria depois do ataque a Lindisfarne.

Ela começou a rir. Seu padrasto tinha conseguido assegurar as terras para Eadgar, afinal.

— Não está aborrecida?Annis sorriu para o marido. Em outra ocasião, ela teria ficado furiosa, mas aquelas

terras não significam mais nada para ela.— Eu não poderia mais voltar para a Nortúmbria. Meu lugar é aqui, com você e

nosso filho, nossos filhos. Sempre vou me lembrar de lá com grande carinho, pois foi onde eu cresci. Mas foi aqui que eu conheci a verdadeira felicidade. Por que eu iria querer estar em um lugar onde o amor da minha vida não esteja?

— Obrigado, minha valquíria.— Sua valquíria domada.— Meu coração, mãe do meu filho. — Haakon passou o braço sobre os ombros

dela e os dois ficaram ali em silêncio, em paz, olhando para os movimentos da boquinha e dos bracinhos do bebê que haviam concebido.

Eram uma família, agora.

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Nota da autora

Em 8 de junho de 793 d.C., segundo as crônicas anglo-saxãs, o saque dos pagãos destruiu lamentavelmente a igreja de Deus em Lindisfarne, com rapina e matança. Quem exatamente eram esses pagãos e de que parte da atual Escandinávia eles vieram são informações que se perderam nas brumas. Historiadores modernos supõem que os invasores vieram de alguma parte do sul da Noruega, possivelmente fazendo escala nas ilhas Shetland, na Escócia. E, além da compreensível ira dos monges, não temos nenhuma fonte que explique o motivo da invasão. Por que aconteceu? E, o mais importante, foi planejada?

A invasão e suas consequências tradicionalmente marcam o início da Era Viking. A palavra viking se origina da região oeste da Noruega — um verbo que significa invadir, roubar ou saquear. Novamente, a opinião dos historiadores se divide, com relação à sua origem exata. Várias fontes assumem que pode se derivar do povo de Viken que habitou parte da Noruega, mas há controvérsias. Infelizmente, os registros escritos do povo viking são esparsos e consistem principalmente de runas.

Os vikings foram bastante romantizados, particularmente pelos escritores vitorianos, e muitas lendas, incluindo o uso de chifres nos elmos, simplesmente não são verdadeiras.

A maior parte das evidências provém dos Manuscritos Medievais Islandeses, principalmente das narrativas e poesias Eddas. Essas sagas foram baseadas em tradições orais que, em alguns casos, datam da Era Viking. As sagas são claramente histórias fictícias, mas, ao longo do tempo, elas capturaram a imaginação e inspiraram escritores e músicos.

A melhor e mais completa evidência dessa época, até agora, foi encontrada em Oseberg no século XIX. O barco de Oseberg revelou uma quantidade de objetos, incluindo caçambas, camas, um trenó, uma tapeçaria e uma carroça. O navio data da época da invasão de Lindisfarne e foi usado no final de sua vida útil como barcaça real. Teria sido realmente utilizado na invasão? Mais uma vez, só podemos especular a respeito. Especula-se também que ele tenha sido o jazigo da rainha Asa, uma das fundadoras da dinastia Yngling. Seja qual for a verdade, o navio e seu conteúdo, que estão expostos no Viking Ship Museum em Bigdoy, Oslo, Noruega, são impressionantes resquícios de uma era longínqua.

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Próximo Lançamento

TOQUE DE CORAGEMJOANNA FULFORD

As chamas do teto subiam a uns nove metros de altura rumo ao céu. O calor era tão intenso que os espectadores tiveram de se afastar mais para trás. Consternados, observavam sem poder fazer nada enquanto o castelo era consumido. As paredes chamejavam produzindo labaredas cor de laranja e escarlate, colorindo a noite. A madeira queimada gerava um cheiro acre que saía em nuvens escuras e espessas pela porta. Ninguém disse uma só palavra. Os únicos sons eram da madeira crepitando e o rugido do fogo.

Wulfgar estava imóvel, como se um encantamento o tivesse transformado em pedra, olhando o fogo destruir o lugar que um dia chamara de lar, uma pira flamejante daqueles que ele mais amava.

A luz das chamas foi se extinguindo, colorindo o rosto dele de vermelho realçando os olhos que lhe conferiam um aspecto terrível. Todos os pensamentos e ideias estavam enterrados e sobrepujados pelo pesar e pelo ódio, intensos demais para serem tolerados.

Os companheiros de espadas de Wulfgar estavam um pouco afastados das outras pessoas, em um silêncio sepulcral, observando a vasta escuridão remanescente.

O tempo tinha perdido todo o significado. Sem se preocupar com o cansaço, nem com o frio, Wulfgar permaneceu no mesmo lugar até que a luz do raiar do dia se infiltrou pelas árvores, iluminando as ruínas negras e fumegantes do que um dia fora seu lar.

Ele não percebeu o ruído dos cascos de um cavalo e o estalar da sela, quando o cavaleiro desmontou e postou-se ao seu lado. Só então percebeu a presença de outro homem como se estivesse voltando de um sonho longo e aos poucos fosse tomando consciência da realidade.

Os olhos azuis que se cruzaram pareciam ser da mesma pessoa. O rosto, vincado pelo tempo, também se assemelhava bastante ao de Wulfgar. No entanto, o cabelo do homem mais velho estava mais grisalho. Os dois tinham alturas iguais, a postura e o corpo forte e a mesma aura de poder. Permaneceram em silêncio por alguns minutos. Wulfgar foi o primeiro a desviar o olhar.

— Eu devia estar aqui — disse ele, meneando a cabeça.— Não teria feito diferença.— Falhei quando eles mais precisavam de mim.— Não havia como prever o que aconteceu.— Ela implorou para que eu não fosse, mas não dei atenção. Tentei me convencer

que partia por ela e pela criança. — A voz de Wulfgar falhou. — Foi o meu egoísmo que causou isso a eles.

— Você não poderia tê-los salvado, como não poderia ter feito nada por mais ninguém que morreu também.

— Eu poderia ter tentado.— Mas o resultado seria o mesmo. A epidemia não faz distinção, mata tanto os

nobres quando os mais humildes.— Isso também não ajuda.— Não, só o tempo ajuda.— Será?Wulfrum fez uma pausa.— O que você vai fazer agora?— Não sei.

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— Você poderia voltar para Ravenswood e ficar um tempo. — A frase foi dita de maneira casual, mas havia alguma coisa subliminar. — Sempre haverá um lugar para você.

— Meu lugar era aqui — respondeu Wulfgar — , mas não há retorno agora.O pai apertou os lábios e deixou o olhar se perder além das ruínas.— Então você vai se unir a Guthrum?— Guthrum está ficando velho e seu tempo de lutar já passou. Não acredito que

ele viva por muito tempo.— E então, o que pretende.— Não sei. Alguma outra coisa.— Não precisa decidir agora. Espere um pouco, pense bem.— Ah, como é mesmo que você dizia sempre? As decisões que tomamos nos

definem. — Wulfgar sorriu como se tivesse fazendo troça consigo mesmo. — Bem, minha decisão se transformou em cinzas e sou o culpado. — Virou-se para encarar o pai. — Se houver algum futuro para mim, não será aqui.

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