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1 Metrpole e memria: a origem das prticas de conservao
O panorama geral
A metrpole em sua formao configura um complexo quadro cultural
que aproxima e potencializa fenmenos significativos para a
definio das razes da problemtica moderna do restauro: a criao
da esttica como disciplina filosfica e especfica, a histria da arte
como histria do estilo, a difuso dos museus, o surgimento do
urbanismo e da arqueologia como disciplinas autnomas, a
iconoclastia dos sans culottes e a pronta reao das instituies
republicanas francesas, enfim, a crena no progresso cientfico, junto
valorizao romntica do passado.
Este artigo trata das relaes entre o ambiente cultural de formao
das metrpoles e o surgimento das primeiras teorias voltadas
preservao dos bens culturais. O interesse do estudo apresentar o
fenmeno metropolitano, com seus novos modos de convvio
sociocultural, como um dos elementos fundamentais a desencadear
o processo de reorganizao da memria que est implcito no
pensamento do restauro moderno.
O objetivo principal dessa abordagem recuperar e contextualizar a
origem da construo de idias que contribuem para constituir o
campo disciplinar do restauro, com base na compreenso de valores
e prticas elaborados a partir do final do sculo XVIII e durante o
XIX. Retomar esse momento histrico, detendo-se nas premissas
que se apresentam para a formulao do problema da conservao e
do restauro, propicia investigar tanto a semntica dos conceitos
elaborados, quanto a maneira como esses temas ecoam na
atualidade. No se trata aqui de esgotar o tema, uma vez que j foi
amplamente abordado em inmeras publicaes. Busca-se, isto sim,
sintetizar os aspectos essenciais desse contexto cultural,
aproximando as interpretaes do campo especfico do restauro
daquelas do campo mais geral da historiografia da arquitetura.
16
A idia de preservao aqui reconhecida como fruto da
modernidade, uma noo que nasce no mesmo momento em que o
movimento da arte moderna arrisca seus primeiros passos.
Memria e inveno, nesse contexto, so dados entrelaados
ainda que por vezes sejam considerados como opes incompatveis
entre si e a cidade matriz de transformao.
Como se sabe, as expresses do pensamento e as manifestaes
artsticas desse perodo histrico esto intimamente ligadas ao
quadro de transformaes profundas da ordem social, econmica e
poltica que remonta transio do feudalismo para o capitalismo.
Nesse panorama, o despotismo esclarecido e o iluminismo1 tm
grande relevncia: o primeiro por mudar a concepo do Estado, o
segundo por propiciar o desenvolvimento das correntes racionalistas
e empiristas que constituem a base terica das revolues poltica e
industrial.
Paris local onde habita a Razo2, onde se prepara a Enciclopdia
(1751-72) e a Revoluo, cidade do Homem Universal centro vital
desse quadro e continuar a s-lo na condio de capital das
vanguardas modernistas, no incio do sculo XX. A capital
indiscutivelmente figura como smbolo do sculo das Luzes que,
alis, rene condies privilegiadas tanto para a difuso do
conhecimento, como para a criao de uma nova conscincia
histrica. Trata-se de uma nova mentalidade que privilegia formas
dedutivas de conhecimento como meios adequados para a
compreenso da realidade, em detrimento da intuio, misticismo, f
ou revelao religiosa, o que concorre de forma definitiva para o
questionamento da tradio.
o que Marvin Perry3 identifica como afirmao da razo e da
liberdade, nascida no ambiente cosmopolita de Paris, capital do
Iluminismo, e que se difunde s principais cidades da Europa
ocidental e da Amrica do Norte. Assim explica o autor:
1 Conforme Franco Venturi em Utopia e riforma nellilluminismo, Turim: Einaudi,
1970, p.151. 2 Essa expresso comparece em AZEVEDO, Ricardo M. de. Metrpole e abstrao.
So Paulo: Perspectiva, 2006, p.10, referindo-se ao discurso de Cloots na Assemblia de Paris. 3 Em: Civilizao ocidental. Uma histria concisa. So Paulo: Martins Fontes, 1985,
p. 296.
17
Newton descobrira leis universais que explicavam os
fenmenos fsicos. Os philosophes ento indagavam: no
haveria tambm regras gerais que se aplicassem ao
comportamento humano e s instituies sociais? Seria
possvel criar uma cincia do homem que correspondesse
cincia da natureza de Newton? (...) Ao defenderem a
metodologia cientfica, os philosophes afirmaram o respeito
pela capacidade da mente e pela autonomia humana (...)
rejeitando a interveno do clero e da autoridade
principesca, ela (a mente) conta com a sua prpria
habilidade de pensar e confia nas evidncias de sua prpria
experincia.
Em tempos mais distantes predomina a prtica generalizada de se
dispor das obras do passado para adapt-las sem restries s
necessidades do presente. Contribui para esse comportamento
usual, a ausncia de uma demarcao mais evidente entre passado,
presente e futuro. [1] [2]
[1] O antigo teatro de Marcello transformado em Palazzo Orsini por Baldassare Peruzzi no sc. XVI.
[2] A igreja de San Lorenzo in Miranda, inserida no prtico remanescente de um antigo templo romano, projeto de Orazio Torriani, 1602. Fonte: DellOrto, 1982, p. 52 e 31.
18
Se at ento persistia uma noo de continuidade no transcurso do
tempo, o pensamento iluminista contribui efetivamente para
contrapor-se a essa condio. Ao negar a autoridade incontestvel
da tradio e buscar a aplicao do mtodo cientfico ao universo
humano, propicia uma ntida separao entre passado e presente.
justamente a manifestao de uma atitude crtica do homem frente
ao seu passado a configurar essa ntida separao.
Passado e presente: dilema entre diviso e conexo
Se, por um lado, a observao distanciada de sua vivncia permitiu
ao indivduo uma condio mais objetiva de anlise histrica, por
outro, a continuidade entre seu passado e o presente, antes
propiciada pela tradio, acaba por ser restabelecida de uma nova
forma. Por isso a necessidade de se instaurar outra espcie de ponte
entre o ontem e o devir, agora baseada no sentimento de que o
passado continuava a viver atravs da nostalgia4.
Sob essa perspectiva, o sentimento romntico de apego ao passado,
que concilia historicismo e nacionalismo e conduzir aos diversos
revivals estilsticos do sculo XIX corresponde a um meio de
preencher o hiato criado entre passado e presente.
caracterstica marcante dos tempos de mudanas no se encontrar
uma congruncia rigorosa de idias: em meio s significativas
transformaes tcnicas e sociais, observam-se tambm importantes
focos de resistncia s mudanas. Se h uma vertente racionalista
que tende a cultivar o mito do desenvolvimento linear do progresso,
mantendo sua ateno voltada a um futuro promissor para a
humanidade, h, por outro lado, uma corrente romntica mais
interessada em reatar os vnculos com o passado.
A produo cultural dos sculos XVIII e XIX, portanto, traz em seu
bojo essa oscilao entre o esprito racionalista, como expresso de
um conhecimento universal, e o esprito romntico, enquanto
manifestao de sentimentos nacionalistas e estmulos individuais.
4 Paul Philippot em artigo: Restauro: filosofia, criteri, linee guida. Em revista
Strumenti 17, 1998, p. 43.
19
A propsito de contraposio de idias, Giulio Carlo Argan5, ao tratar
das manifestaes artsticas que antecedem a produo moderna do
incio do sculo XX, refere-se a dois termos recorrentes: clssico e
romntico. Designam, segundo o autor, duas vises de mundo que
estabelecem entre si uma relao dialtica e esto presentes na
origem da cultura artstica moderna. O clssico, explica Argan, est
ligado arte do mundo antigo greco-romano, assim como cultura
humanstica do sculo XV e XVI; o romntico associado arte
crist da Idade Mdia, especialmente s manifestaes romnicas e
gticas.
Ao discorrer sobre essas diferentes concepes de arte, Argan
retoma Wilhelm Wrringer (1881-1965)6, segundo o qual cada uma
dessas vises est relacionada a uma condio cultural e geogrfica
que sintetiza a relao entre o homem e a natureza: a clssica
reporta ao mundo mediterrneo, onde essa relao clara e positiva;
enquanto a romntica alude ao mundo nrdico, onde a natureza
fora misteriosa e muitas vezes hostil.
Cada uma dessas posies vai ser investigada por outros autores,
sob pontos de vista diversos, a partir da criao do campo disciplinar
da esttica. Esse , sem dvida, o momento de teorizao da arte
sob a forma de uma filosofia da arte, a esttica, em substituio ao
vis tratadista que vigorou desde o Renascimento. Como observa
Argan7:
Teorizar (sobre) perodos histricos significa transp-los da
ordem dos fatos quela das idias ou dos modelos: de
fato a partir da metade do sculo XVIII que aos tratados ou
s preceptivas do Renascimento e do Barroco substitui-se, a
um mais elevado nvel teortico, uma filosofia da arte
(esttica).
O autor esclarece que inicialmente o tratado da arte atendia ao
pressuposto da arte universal, como norma a ser colocada em
prtica, um raciocnio pertinente ao pensamento clssico. Nos novos
5 Em: LArte moderna. Florena: Sansoni, 1988, p. 3.
6 Em obra intitulada Abstrao e Natureza.
7 Op. cit., p.3. (traduo da autora)
20
tempos em que a arte no mais considerada um meio de
conhecimento da realidade, nem tampouco um meio de
transcendncia religiosa, mas sim um modo de ser do esprito
humano, a investigao terica toma novos rumos. Enquanto a
noo de arte calcada no pensamento antigo pressupe o dualismo
entre o modelo e a imitao, recorrendo mimesis, a concepo
romntica invoca a poiesis, ou seja, o prprio fazer artstico, centrado
agora na intencionalidade do artista, na criao propriamente dita.
Aqui est, segundo Argan, a origem da autonomia da arte, prpria do
movimento moderno. Refere-se compreenso da arte como uma
experincia primria que no tem outra finalidade seno a prpria
criao.
Ao discorrer sobre o pensamento romntico, h autores, entre os
quais Azevedo, que fazem uso do plural romantismos a enfatizar
a ausncia de um programa coeso e unitrio para as vrias
manifestaes artsticas relacionadas a esse universo peculiar. De
todo modo, a historiografia da arte em geral destaca a predominncia
de um sentimento que se evidencia na confluncia de correntes que
renegam as preceptivas artsticas da tradio clssica, em favor de
uma valorizao da capacidade ilimitada do gnio.
O interesse pela memria
A memria e sua prtica interessam tanto aos romnticos quanto aos
racionalistas, se que podem ser identificados em posies
rigorosamente contrapostas. Para os romnticos, a memria motivo
de encantamento. Conforme explica Le Goff, o romantismo
reencontra, de um modo mais literrio que dogmtico, a seduo
pela memria8. Para exemplificar, recorre a Michelet que, na
traduo da obra de Vico, De antiquissima italorum sapientia (1710),
encontra a ligao entre memria e imaginao, memria e poesia.
Fantasia e inveno so atributos indissociveis da produo de
Giovanni Battista Piranesi (1720-78), figura de destaque no cenrio
cultural da poca. Clebre por suas gravuras, entre as quais as
Vedute di Roma (Vistas de Roma), vises panormicas das runas
8 LE GOFF J. Memria-Histria. Enciclopdia Einaudi. Vol. I Lisboa: Imprensa
Nacional Casa da Moeda, 1984, p. 37.
21
romanas, estimulou a imaginao dos seus contemporneos e
inspirou com suas reconstrues fantsticas os adeptos das
concepes neoclssicas e romnticas. Os seus Carceri dinvenzioni
(Projetos de prises imaginrias) [3] [4] prefiguram, segundo Scully9,
o fim do velho mundo humanista, centrado no homem, com seus
valores fixos o comeo da era das massas da histria moderna,
com seus ambientes enormes e continuidades precipitadas.
Imagens de espaos ameaadores, continuam a ser fonte de
inspirao de vrios autores do sculo XX, entre os quais o cineasta
Serge Eisenstein e o dramaturgo Peter Weiss 10.
Para os racionalistas, a memria importante instrumento de
conscientizao coletiva, no s de rememorao e comemorao,
mas tambm de reordenao e reedio de situaes e informaes
passadas. Nesse sentido, a funo da memria no
exclusivamente de celebrao, mas principalmente de releitura e
reinterpretao dos acontecimentos.
9 Em Arquitetura moderna. So Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 19.
10 Em THOENES, C. Et al. Teoria da arquitectura. Do renascimento at nossos dias.
Lisboa: Taschen, 2003, p. 164, comenta-se a respeito da evocao da obra de Piranesi presente em autores contemporneos.
[3] [4] Projetos de Prises Imaginrias, 1761, G. B. Piranesi. Fonte: Argan, 1988, p. 392.
22
Por essa razo na Frana, aps a Revoluo, so criados os
arquivos nacionais que renem os documentos da memria da
nao. Criam-se tambm instituies responsveis pela formao de
especialistas aptos a organizar e fazer funcionar esses arquivos. O
mesmo acontece com os museus, como se observa na anlise a
seguir.
Ganha assim importncia, no contexto das principais metrpoles, a
ao de historiadores, colecionadores, antiqurios, arquelogos,
alm de literatos, pintores e arquitetos que se dedicam
investigao, apreciao e conservao de obras de arte,
documentos e runas. So intelectuais estimulados pelo projeto de
democratizao do conhecimento que acompanha o iluminismo,
empenhados em atividades de diversa natureza, mas que contribuem
em conjunto para fortalecer a ligao entre memria e identidade e,
por extenso, a noo de preservao.
Memria e coletnea
Nessa condio de difuso do saber, ou dos saberes, com o
desenvolvimento de reas especficas do conhecimento, a
arqueologia afirma-se pouco a pouco como disciplina autnoma.
Cincia que, a partir das evidncias materiais criadas pelos homens,
investiga os costumes e culturas dos antepassados, a arqueologia se
estabelece como especializao do estudo da histria. Sua
consolidao requer a adoo de mtodos sistemticos de
levantamento e classificao, alm dos processos de coleta e
escavao.
O interesse pelos vestgios especficos da antigidade clssica se
intensifica aps os trabalhos de escavao da cidade de Paestum
(1746), na Magna Grcia, assim como das antigas cidades romanas:
Pompia (1748) e Herculano (1755). A descoberta desses stios
que permaneceram enterrados por muitos sculos alm de causar
grande comoo, foi um dos fatos decisivos para confirmar o sentido
de separao entre passado e presente. Mostrava-se evidente a
descontinuidade entre o momento do sepultamento e o da
descoberta: Paestum vinha desbravada; Pompia e Herculano
voltavam, literalmente, luz.
23
A propsito da arqueologia, convm destacar o papel do historiador e
arquelogo Johann Joachim Winckelmann (1717-68), por estabelecer
em sua obra Histria da arte na Antigidade (1764) as bases da
histria da arte como histria do estilo, e exercer forte influncia
sobre o desenvolvimento da arquitetura neoclssica11.
So, portanto, inmeros os fatores a mobilizar o interesse e a
institucionalizar a conservao material sistemtica dos bens
culturais. A reflexo sobre a arte, as descobertas arqueolgicas, a
criao dos arquivos e dos museus12 destinados ao grande pblico,
so os agentes mais significativos a interferir nesse processo.
O museu, importante instituio desse contexto cultural, como
observa Franoise Choay13, comea a aparecer na sua acepo
atual, durante o sculo XVIII, seja pela ampliao e transformao
dos espaos privados de coleo em espaos abertos visitao
pblica, seja pela transferncia de bens da Coroa e do Clero para a
nao, em um procedimento de expropriao comum na Frana ps-
revolucionria.
Memria, nomenclatura e significados
Museu e Encyclopdie tm em comum um propsito didtico. Nas
pginas de introduo do Dictionnaire raisonn des sciences, des
arts e des mtiers, conforme aponta Paolo Rossi, DAlembert enfatiza
a importncia de um trabalho continuamente iluminado pelo
conhecimento dos princpios tericos que lhe servem de base, e de
uma pesquisa terica capaz de ceder lugar a aplicaes prticas e
de se reconverter em obras (...). Observa-se que os enciclopedistas
quando se voltavam aos artesos da Frana, interrogando tcnicos
e operrios e, a seguir, tentando definir com exatido os termos,
mtodos e procedimentos prprios das vrias artes, para inseri-los
11
Paul Phillipot em artigo: Storia e attualit del restauro. Em: Strumenti 17, 1998, p.
101 12
Idem, p. 89. Museus criados no sc. XVIII: British Museum, Museo Pio Clementino em Roma e Louvre em Paris. 13
Em Alegoria do patrimnio. So Paulo: Estao Liberdade: UNESP, 2001,
especialmente nas pginas.62 e 97, a autora tece consideraes sobre a criao dos museus na Frana.
24
num corpus orgnico e sistemtico de conhecimento 14, buscavam
estabelecer um vnculo estreito entre teoria e prtica.
Confirmao dessa preocupao em promover os fatos da prtica,
relegados tradicionalmente a segundo plano, prossegue Rossi, o
prprio verbete Art da Encyclopdie, em que se critica a distino
tradicional entre artes liberais e artes mecnicas, por reforar o
preconceito de que a ateno aos objetos sensveis e materiais
constitui uma renncia dignidade do esprito humano.
Diretamente ligada ao tema deste estudo, a ampliao da
terminologia referente anlise histrica ocorre impulsionada
justamente pela influncia do esprito da Enciclopdia. Novos
significados so incorporados ao vocabulrio corrente: documento,
monumento, patrimnio, preservao, restauro. So vocbulos cujo
emprego freqente remete aos novos mtodos da memria coletiva e
do estudo da histria, um reflexo das preocupaes do homem de
manter contato vivo com as obras produzidas pela cultura do
passado.
Documento e monumento tm primazia entre os materiais da
memria coletiva e da histria15. O vocbulo latino documentum,
derivado de docere, ensinar, com o tempo adquire o sentido de
prova documental e, a partir do sculo XIX, o de testemunho
histrico. J o termo monumento, do latim monumentum, derivado
de monere, lembrar, rememorar, em origem indica aquilo que traz
lembrana acontecimentos, ritos, crenas. Logo, genericamente o
monumentum um cone do passado, enquanto obra representativa
construda para fins simblicos e no para atender a usos
especficos. Desde a antigidade romana, o monumento tende a
dividir-se em dois tipos: uma obra comemorativa ou um monumento
funerrio. Veyne16 ressalta a usual manipulao da memria coletiva
exercida pelos imperadores romanos e a conseqente reao do
senado contra a tirania imperial, ao criar um expediente que permite
cancelar o nome do imperador defunto dos documentos de arquivo e
das inscries monumentais, a damnatio memoriae. Ao poder da
14
Em Os filsofos e as mquinas.So Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 112. 15
A respeito da importncia e da variao de significados, consultar LE GOFF, op. cit., pp. 95-104. 16
Apud LE GOFF, op. cit., p. 37.
25
memria contrape-se a destruio da memria, mecanismo
empregado por diversas vezes, no sculo XX, em circunstncias
ligadas a regimes totalitrios. Com o transcurso do tempo, o
monumento no s consolida o sentido de obra grandiosa construda
com o objetivo de contribuir para a perpetuao memorialstica de
uma pessoa ou acontecimento relevante na histria de uma
comunidade, mas incorpora tambm uma conotao esttica.
O monumento histrico do sculo XIX, contemporneo nomeao
da Comisso dos Monumentos Histricos da Frana, em 1837, inclui
trs categorias de edifcios: os remanescentes da antigidade, os
edifcios religiosos medievais e alguns castelos. Trata-se de uma
classificao formulada para fins de inventrio e tutela de bens que
constituram alvos de ataques da populao contra os smbolos do
Ancien Rgime.
De incio, o monumento associado a um passado remoto, ao status
de raridade e suntuosidade, aos poucos vai adquirindo um sentido
mais abrangente, equiparvel conotao de outro vocbulo
tambm aplicado ao universo da conservao da memria:
patrimnio.
Etimologicamente o sentido do termo patrimnio17, proveniente do
latim patrimonium, corresponde ao conjunto de bens pertencente ao
pai, o pater. O significado consolida-se como conjunto de bens
transmitidos dos pais aos filhos por herana. Com o tempo, seu
emprego no se limita s estruturas familiares, mas passa a ser
aplicado s empresas e instituies pblicas. Entre os sculos XVIII
e XIX, o termo ganha uma nova compreenso: patrimnio histrico.
Assim explica Choay:
A expresso designa um bem destinado ao usufruto de
uma comunidade que se ampliou a dimenses planetrias,
constitudo pela acumulao contnua de uma diversidade
de objetos que se congregam por seu passado comum:
obras e obras-primas das belas-artes e das artes-aplicadas,
17
COLONNA, B. Dizionario etimologico della lingua italiana. Gnova: Newton & Compton, 1997, p. 283.
26
trabalhos e produtos de todos os saberes e savoir-faire dos
seres humanos.18
Considerado suporte da memria, fonte da histria dos homens,
portador de significado, o patrimnio - para se constituir como tal -
pressupe o reconhecimento de valor, a adoo de critrios de
seleo, e, implicitamente, a importncia da conservao. Sob esse
aspecto, s a preservao possibilitar o usufruto do legado recebido
do passado e a sua conseqente transmisso s geraes futuras.
Memria, preservao e restauro
Pode-se afirmar que antes da revoluo, na Frana, a idia de
conservao nasce a partir da viso crtica da histria. No perodo
sucessivo, entre 1790 e 1820, no entanto, a preservao passa a ser
uma ao necessria e imprescindvel para evitar o cancelamento do
passado. Trata-se de impedir a destruio provocada pela onda de
vandalismo por parte da populao perigosa, a turba19, que atinge os
monumentos considerados smbolos do antigo regime e de suas
classes dominantes: o clero e a nobreza.
Processos histricos emblemticos, a Revoluo Francesa e a
Revoluo Industrial, da mesma forma que apontam para o futuro,
para transformaes de ordem prtica e conceitual, reconstroem o
vnculo com o passado.
Na Inglaterra, dois aspectos contribuem especialmente para
despertar o interesse pela conservao: a indignao provocada pela
lembrana do vandalismo religioso da Reforma; a reao s rpidas
e radicais transformaes causadas pela revoluo industrial, seja na
forma de produo artstica, seja no ambiente urbano.
Frana, Inglaterra e Itlia, no por acaso, so palco dos primeiros
debates e aes voltadas preservao do patrimnio cultural. As
condutas so diferenciadas pela prpria condio de cada pas:
Frana e Inglaterra envolvidas com os respectivos processos
18
CHOAY, op. cit., p. 11. 19
Expresso corrente com que se designa a multido exaltada na poca da Revoluo. Cf. AZEVEDO, op. cit., p.7.
27
histricos revolucionrios e a Itlia diretamente relacionada
afirmao da arqueologia.
As teorias formuladas pelos pioneiros o francs Eugne Viollet-le-
Duc e o ingls John Ruskin apesar de assumirem posies
antagnicas, tm uma origem comum: a correlao com o esprito
nostlgico dominante no perodo. A posio dos italianos, por sua
vez, reflete a conduta sistemtica que acompanha os trabalhos j
mencionados de escavao arqueolgica.
Viollet-le-Duc (1814-1879), historiador, terico e restaurador, atua
num momento em que a ao do Estado francs faz-se necessria
para impedir a continuidade da escalada de vandalismo que se
desenvolve aps a Revoluo Francesa.
Aps integrar uma comisso que elaborou um levantamento
criterioso das edificaes de interesse patrimonial e das condies
de conservao, passou a participar das primeiras iniciativas de
restaurao, entre as quais, as catedrais de Paris, Chartres e
Amiens. Estabeleceu ento uma conduta de interveno, aps
dedicar-se atentamente ao estudo das tcnicas construtivas,
especialmente das catedrais gticas. [5] [6]
Ao propor a recuperao dos edifcios, reporta-se ao conceito de
estilo, entendido como uma realidade histrico-formal unitria e
coerente circunscrita no tempo e bem definida nas suas
caractersticas fsicas. O estilo seria uma expresso direta de uma
poca, de um momento histrico, o que autorizaria a hiptese da
reconstruo de partes no mais existentes. Com base nesse
conceito, a posio de Viollet-le-Duc, que se torna conhecida como
restauro estilstico, autoriza a restabelecer o estado primitivo
unitrio do edifcio. Em outras palavras, legitima as livres
experincias de reconstruo e de livre composio em nome da
exaltao de uma hipottica unidade estilstica.
No Dictionnaire raisonn de larchitecture franaise du XI au XVI
sicle (editado entre 1854 e 1868), de Viollet-le-Duc, assim diz o
verbete restaurao20: restaurar um edifcio no mant-lo, repar-
20
O verbete foi traduzido para o portugus por Beatriz M. Khl e publicado em 2000, na coleo Artes&Ofcios da editora Ateli Editorial, que tm reunido relevantes
28
lo ou refaz-lo, restabelec-lo em um estado completo que pode
no ter existido nunca em um dado momento. 21
Giovanni Carbonara22 comenta que a postura de Viollet-le-Duc
parece mudar com a continuidade de suas aes. Passa de uma
interveno mais cautelosa, de carter conservativo, para uma
atuao mais livre e radical de recomposio e reconstruo. Como
se fosse possvel inferir a ocorrncia de uma maior liberdade de
ao, a partir da prtica mais intensa.
contribuies de autores estrangeiros, importantes alicerces das teorias da conservao. 21
Em KHL, B. M. Apresentao e traduo.Restaurao. E. E. Viollet-le-Duc. Cotia: Ateli Editorial, 2000, p. 17. 22
Arquiteto e terico italiano, autor de vrias publicaes sobre o tema da conservao, atualmente diretor da Scuola di Specializzazione per lo Studio ed il Restauro dei Monumenti da Universidade La Sapienza de Roma. A afirmao comparece em Avvicinamento al restauro. Teoria, storia, monumenti,1997, p. 141.
[5] A catedral ideal de Viollet-le-Duc.
[6] Corte do coro da Catedral de Beauvais. Desenho de Viollet-le-Duc interessado em investigar as razes do desmoronamento em 1284. Fonte: Thoenes et. al., 2003, p. 347 e 348.
29
Enquanto, na Frana, Viollet-le-Duc defendia o restauro estilstico,
Ruskin (1819-1900), figura notvel da Inglaterra vitoriana, posiciona-
se contra aquela conduta. Sustenta o absoluto e religioso respeito ao
monumento, traduzido por uma admirao contemplativa, como
nica forma possvel de reverncia aos objetos dos antepassados
advindos ao presente.
Voltado para uma posio que concilia a experincia esttica e
moral, Ruskin23 concebe a exigncia de preservao da produo
humana a partir de uma viso bastante abrangente que coincide com
a idia de abnegao por amor da posteridade e que, ao mesmo
tempo, renega a ao de restauro:
Nem o pblico, nem aqueles a quem confiada a tutela dos
monumentos pbicos compreendem o verdadeiro significado
da palavra restauro. Essa significa a mais total destruio a
que um edifcio possa submeter-se: uma destruio que ao
final no permanece nem mesmo um resto autntico a ser
recolhido, uma destruio acompanhada da falsa descrio
da coisa que destrumos (falso entendido aqui como
pardia). No enganemos a ns mesmos em uma questo
to importante; impossvel em arquitetura restaurar, como
impossvel ressuscitar os mortos, por mais grandes e
belos que tenham sido. 24
Tal concepo deriva da atitude literria que confere ao passado e s
obras antigas, um valor exclusivo frente ao presente. Ao reconhecer
a singularidade e a autenticidade (hinc et nunc) como valores
fundamentais da preexistncia de carter monumental, Ruskin
desautoriza no apenas a reconstruo nos moldes do restauro
estilstico, mas toda e qualquer interveno do homem. [7]
Na Itlia, por outro lado, as descobertas dos stios arqueolgicos
anteriormente mencionados foram decisivas para o incio de uma
atuao prtica criteriosa de conservao, reconstituio e
consolidao dos componentes redescobertos. O trabalho
23
Em ensaio intitulado The seven Lampsof architecture (As sete lmpadas da arquitetura) de 1849. As referncias aqui mencionadas foram extradas da publicao italiana da obra de Ruskin, Le sette lampade dellarchitettura. Milo: Jaca
Book, 1997 (traduo da autora). 24
Idem, p. 226.
30
desenvolvido contribui para a conduta sistemtica de inventrio,
coleo e classificao das peas. Alm disso, realiza-se a
anastilose e a recomposio das partes originais, desde que se
diferenciem os elementos preexistentes das partes de recomposio.
Esse procedimento, chamado restauro arqueolgico, tem como
principais protagonistas Raffaele Stern e Giuseppe Valadier. [8] [9]
Na transio do sculo XIX para o XX, Camillo Boito25 (1835-1914)
pe fim aporia criada pelas posies de Viollet-le-Duc e Ruskin, ao
colher contribuies de cada um deles, para compor uma sntese
mais equilibrada.
25
Arquiteto, crtico, professor e restaurador italiano. Formulou em linhas gerais o conceito de restauro cientfico posteriormente aprofundado por Gustavo Giovannoni. A esse respeito, consultar a obra Os restauradores. Conferncia feita na Exposio de Turim de 1884. Trad. Beatriz M. Khl. Cotia: Ateli Editorial, 2002.
[7] Colunatas do claustro Catedral de Ferrara. Um dos quatorze desenhos presentes no livro As sete lmpadas da arquitetura (4 Ed. Londres, 1894), elaborados por Ruskin para ilustrar a
riqueza formal da arquitetura por ele admirada. Fonte: Thoenes, et. al., 2003, p. 469.
31
A partir de Ruskin, considera o reconhecimento e respeito
autenticidade e materialidade de que feita a obra, o que implica
em dois procedimentos fundamentais: a diferenciao das partes
recuperadas em relao s partes originais e a preservao dos
acrscimos estratificados ao longo do tempo.
Em relao posio de Viollet-le-Duc, ope-se reconstruo de
partes desaparecidas com base no conceito de estilo, por defender a
singularidade de cada obra; por outro lado, acolhe sua conduta de
valorizar o presente frente ao passado, legitimando o restauro, em
oposio postura anti-intervencionista de Ruskin.
Uma concepo moderna de restauro
Uma oposio de idias de natureza diferente daquela observada
entre Viollet-le-Duc e Ruskin pode ser identificada ao analisarem-se
as posturas de dois urbanistas do sculo XIX: Camillo Sitte e
George-Eugne Haussmann.
[8] Arco de Tito no Frum Romano em gravura de Piranesi que ilustra a condio precedente ao restauro. Fonte: Carbonara, 1997, ilustrao n. 36.
[9] Foto do Arco de Tito na configurao aps os trabalhos de recomposio realizados por Valadier (1818-34). Um exemplo de diferenciao de materiais e formas simplificadas adotados nas extremidades, em comparao com os elementos originais situados na parte central. Fonte:
DellOrto, 1982, p. 30
32
Essas posies delineiam um primeiro confronto entre as duas
vises contrastantes que iro reermergir no contexto de consolidao
do movimento moderno, a partir da dcada de 1930: de um lado, a
observao atenta do patrimnio arquitetnico construdo no
passado, associada apreciao esttica da paisagem urbana; de
outro, a necessidade de modernizao urbana e, portanto, a
exigncia de transformao das cidades antigas, pr-industriais.
O arquiteto e urbanista austraco Camillo Sitte (1843-1903) reflete
uma viso culturalista ao criticar a rigidez e simetria dos projetos
urbansticos contemporneos e destacar as qualidades das cidades
antigas. No outro extremo, Georges-Eugne Haussmann (1809-91),
responsvel pelas propostas de remodelao do centro antigo de
Paris, expressa o ideal de renovao do cenrio urbano.
O concomitante surgimento do urbanismo, como disciplina
autnoma, fortalece a convico de que necessrio elaborar um
novo modelo de cidade mais eficiente e mais saudvel, segundo
parmetros daquele momento histrico: um novo desenho e uma
nova escala com condies satisfatrias de circulao do trfego das
mercadorias, do transporte pblico de massa e, ao mesmo tempo, a
proposio de uma cidade dotada de equipamentos coletivos e de
infra-estrutura adequada aos novos padres sanitrios.
Como se sabe, Georges-Eugne Haussmann conhecido como um
dos mais emblemticos e polmicos protagonistas dessa tendncia
de renovao das cidades. Prefeito do Departamento do Senna em
Paris, entre 1853 e 1870, encarregado por Napoleo III de
implantar as diretrizes de urbanismo fixadas por Henrique IV e
desenvolvidas por Lus XIV, atravs do chamado Plano dos
Artistas, criado em 1797.26
Os principais elementos desse plano urbanstico so os boulevards
amplos e retilneos que confluem para os round-points estelares.
Dois aspectos principais orientam esse redesenho da malha urbana
parisiense. Primeiramente aqueles ligados ordem pblica, ou seja,
impedir a formao de barricadas, alm de conter as revoltas
26
PEVSNER et. al. Dizionario di architettura. Turim: Einaudi, 1992, p. 306.
33
populares27. Em segundo lugar os de natureza tcnica, ditados pelas
necessidades de melhorar as condies de higiene principalmente
quanto iluminao natural e ventilao dos edifcios e de
circulao do trfego nas reas centrais. [10] [11]
A postura de Haussmann pontua, portanto, um vis tecnicista e
higienista que determina a destruio do tecido urbano histrico, para
dar lugar nova configurao espacial definida pelos largos e longos
boulevards, ladeados por corpos de construo de gabarito
homogneo e fisionomia uniforme. Cria-se ento um conjunto
construdo unitrio, ao qual se relaciona, em posio de destaque, o
monumento (ou edifcio de carter monumental) que desponta na
perspectiva regular.
27
As revoltas mencionadas referem-se aos eventos ligados Revoluo Francesa, s rebelies da populao exaltada, a turba, que assaltava as ruas e criava as barricadas, ou seja, obstculos para a ao da polcia.
[10] Planta do traado e desapropriaes para a abertura da avenida diante da pera de Paris, definida pelo plano de Haussmann,
1876.
[11] Foto da avenida j realizada. Fonte: Gamarra (2008), em www.bifurcaciones.007.Gamarra.htm. Acesso em 03/10/08.
http://www.bifurcaciones.007.gamarra.htm/
34
As rotatrias de circulao do origem a pontos focais de conjuno
de vrias vias em disposio radial que favorecem a condio de
isolamento e de destaque do monumento situado na ilha central.
As gravuras do artista Charles Meyron retratam Paris nas vsperas
das demolies promovidas por Haussmann. Essas imagens foram
admiradas por Baudelaire28 pelo cunho de documentao que
contm e pela capacidade de representar o carter fugaz daqueles
tempos de modernidade.
Walter Benjamin29 diz a respeito dessa produo que, ao realizar
esses registros, o artista transforma casas comuns em monumentos.
Observa-se aqui no s a compreenso de que indiscutivelmente as
transformaes comportam significativos cancelamentos, mas,
sobretudo, a percepo do poder de evocao do passado contido
na arquitetura do cotidiano. [12] [13]
Camillo Sitte colabora para concretizar a compreenso da cidade
como conjunto orgnico detentor de um forte carter artstico,
impossvel de ser reduzido a episdios isolados. Diretor da Escola de
Salisburg e posteriormente da de Viena, obtm notoriedade com a
obra Der Stdtebau nach seinen knstlerischen grundstzen (A
reforma urbana para sua valorizao artstica), 1889, um ensaio
sobre a imagem e o desenho urbanos. Com a ajuda de vrios
diagramas, o autor analisa espaos urbanos abertos e destaca os
efeitos positivos e atraentes obtidos pela irregularidade dos tecidos
urbanos. Sitte observa a riqueza da composio mais livre e irregular
dos traados das cidades histricas. Reconhece, portanto, na cidade
antiga, a dignidade de objeto histrico que de um lado inspira
reverncia, e de outro instiga a investigao. Da a valorizao da
sua obra pelos tericos da preservao e restauro, pois passa a ser
referncia importante e uma das bases para a elaborao do
conceito de patrimnio que se amplia do edifcio ao territrio urbano.
28
Apud GAMARRA, G. "Benjamn y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, 2008. 29
Idem. Esse texto cita Benjamin ao discorrer sobre a relao entre o plano urbanstico de Haussmann e os mecanismos de controle ligados represso das revoltas populares. Sua obra inaugura uma rica abordagem sobre Paris do sculo XIX e a cultura cosmopolita das metrpoles, sobre os instrumentos de controle e os comportamentos de desvio s regras estabelecidas.
35
Colocar lado a lado as vises de Sitte e Haussmann permite
identificar claramente os dois posicionamentos antagnicos contidos
em suas propostas: um procedimento de anlise e reconhecimento
favorvel valorizao de uma memria materializada nas formas e
propores das cidades pr-industriais; uma conduta de valorizao
de um novo modelo esttico para a cidade ps-industrial, apoiado no
tecnicismo e higienismo que concorrem, sobretudo, para a eficiente
circulao do trfego e a afirmao de novas normas sanitrias.
Cabe aqui destacar que a posio de Sitte, como aponta Franoise
Choay, reflete a plena conscincia de que essas cidades do passado
esto fadadas ao desaparecimento, e de conseqncia ao
esquecimento, se no houver uma ao deliberada de resgate
cultural.
[12] Le Petit Pont, Charles Meyron, 1854.
[13] Le Pont Neuf, Charles Meyron, 1854. Fonte: GAMARRA, Garikoitz. "Benjamn y Paris: de las ciudades a las barricadas ". Em bifurcaciones [online]. n. 7, 2008.
. Acesso 03/10/08.
36
Haussmann, conforme relata Choay, refuta as crticas recebidas por
ter destrudo a velha Paris e desafia seus opositores a apontar um
nico monumento antigo digno de interesse, ou edifcio de valor
artstico, que tenha sido destrudo em sua administrao. Afirma, em
favor de sua ao, ter demolido exclusivamente, em nome da sade
pblica e do progresso, construes degradadas, ruelas insalubres.
Relembra a autora:
O prprio Victor Hugo, poeta da Paris medieval, que
escarneceu cruelmente dos largos espaos
haussmannianos e da monotonia das novas avenidas da
capital, nunca critica em seus artigos ou em suas
intervenes na Comisso dos Monumentos Histricos a
transformao geral da malha das velhas cidades (...) ele
limita-se, se for o caso, a propor algum desvio das vias
projetadas, a fim de poupar no a continuidade do conjunto
urbano, mas de um monumento (...) 30
A partir de Sitte, pode se desenvolver outra compreenso de
patrimnio que incorpora o espao urbano, superando a seleo
exclusiva dos edifcios de carter monumental de reconhecido valor
artstico, para considerar a prpria morfologia da cidade, o conjunto
construdo, suas relaes espaciais, seu gabarito, sua fisionomia,
seu traado.
Uma concepo moderna de restauro
Sabe-se que em tempos remotos os homens intervieram em obras
construdas pelos seus antecessores para adapt-las vida e aos
usos do seu tempo. Era o presente que contava e no a
preexistncia, raros foram os casos em que as intervenes se
voltavam conservao de edifcios de pocas precedentes. Os
sculos XV e XVI trouxeram algumas mudanas, dado o interesse e
respeito pela cultura antiga, no entanto, as aes de conservao
ainda eram parciais e espordicas. [14] [15]
30
CHOAY, op. cit. p. 176.
37
O restauro arquitetnico afirma-se, de fato, como uma concepo
moderna que consiste em um modo novo de considerar e de intervir
sobre os bens do passado.
O austraco Alois Riegl (1858-1905) representa, no incio do sculo
XX, uma original contribuio para a reconduo das primeiras
iniciativas na formulao do conceito de restauro. Uma posio que
se sobrepe reviso de Camillo Boito e que assinala, no momento
em que nasce a arte moderna, a transitoriedade dos critrios de
valorao de um objeto material. Diz no haver o valor perene da
obra de arte em si, ao contrrio, declara existir, isto sim, um valor
relativo, um valor contemporneo, de natureza subjetiva conferido
pelo observador moderno.
[14] Interior. Alteraes nas decoraes dos muros internos foram realizadas por Vanvitelli, em 1749.
[15] Planta com destaque para os recintos do tepidario das Termas de Diocleciano, transformados na igreja de Santa Maria degli Angeli (1561-68), aps interveno sutil de Michelangelo. Fonte:
Boner, 2002, p.72 e p.74.
38
Historiador e crtico de arte de formao jurdica encarregado de
elaborar uma reforma tcnica e poltico-administrativa de
salvaguarda dos edifcios histricos. Sua experincia pessoal na
institucionalizao da histria da arte como disciplina autnoma, em
relao histria geral, o credencia para ocupar-se dessa tarefa.
Estabelece como prioridade a definio de uma nova competncia, a
tutela dos monumentos, com base em um valor do antigo, fundado
em uma percepo intuitiva, prpria da cultura de massa.
Como destaca Sandro Scarrocchia31, Riegl distingue diferentes
atribuies de valores calcadas em apreenses psicolgicas,
sensoriais. Com isso quer sinalizar que o cidado da metrpole,
apesar de ignorar o conhecimento aprofundado dos especialistas,
no deixa de manifestar ateno e interesse pelos artefatos
produzidos pelo homem em outros tempos.
Entre as categorias de valor definidas esto: valor de antiguidade,
valor de historicidade, e valor de novidade (resultante da
Kunstwollen, vontade artstica32). Vale ressaltar que, na viso de
Riegl, essas atribuies de valor no dizem respeito to somente ao
indivduo singular, nem exclusivamente aos meios eruditos, mas sim
a uma coletividade, e relaciona-se diretamente com a fruio da
produo artstica, em um contexto de cultura de massa.
O valor de antiguidade refere-se, portanto, a uma satisfao
psicolgica emanada por uma identificao de qualidade dos
edifcios mais antigos, associada capacidade de sobreviver ao
do tempo e eroso da histria. Desse modo, indica uma nova
apreenso, ditada no apenas pela observao da forma, do estilo
do passado, mas especialmente por uma apreciao da aparncia
consumada da produo humana.
O valor de historicidade ou valor histrico consiste no fato de
representar um estgio particular do desenvolvimento criativo da
atividade humana.
31
Em artigo intitulado Lautonomia della conservazione in forma di colloquio con Alois Riegl na revista Casabella n.584, p.29-33. 32
Tambm traduzido por volio da arte em nota de esclarecimento sobre o conceito em Khl, 2008, p.64.
39
Ao valor de antigidade contrape-se o valor de novidade,
decorrente de uma nova sensibilidade do sculo XX, o Kunstwollen,
vontade artstica, que se estabelece em contraposio s noes de
desenvolvimento linear da produo artstica calcada na sucesso ou
evoluo de estilos.
Importante destacar que Riegl realiza uma rigorosa anlise das
razes da conservao, embora no chegue a criar uma nova
normativa para as aes prticas. Sua importncia deve-se
essencialmente ao fato de acenar complexidade do tema e sugerir
inmeras possibilidades de interveno, de pertinncia relativa, mas
devidamente amparadas por critrios de valores.
Conforme assinala Renato Bonelli33 em uma anlise retrospectiva:
o princpio fundamental do restauro, mantido
constantemente nas bases das doutrinas que se sucederam
no curso do sculo XIX, aquele de restituir a obra
arquitetnica ao seu mundo historicamente determinado,
recolocando-a idealmente no ambiente onde surgiu e
considerando as relaes com a cultura e o gosto do seu
tempo; e contemporaneamente aquele de operar sobre essa
(obra) para torn-la viva e atual, qual parte vlida e
integrante do mundo moderno.
Esto implcitos nessa reflexo dois aspectos essenciais: o primeiro
o entendimento de que a atribuio de valor artstico se estabelece
a partir da compreenso das relaes entre a obra e a cultura do seu
tempo; o segundo a conscincia de que o restauro uma ao do
presente, condicionada pela interpretao e releitura da prpria obra
a ser submetida a essa interveno.
A aproximao entre metrpole e memria permite, em sntese,
identificar uma associao entre as transformaes do mundo
moderno e a necessidade de se conservar, ordenar, rever e atualizar
experincias passadas e conhecimentos adquiridos.
33
Renato Bonelli, arquiteto e terico italiano que, junto com Roberto Pane e Agnoldomenico Pica, desenvolve nos anos 1940-50 o conceito de restauro crtico, superando o enfoque positivista do chamado restauro cientfico. Em verbete restauro architettonico da Enciclopedia Universale dellArte, v. XI, 1983, p. 344.
(Traduo da autora). Essa vertente analisada no captulo referente atuao de Lina Bo Bardi.
40
A ativao da memria, implcita nos movimentos preservacionistas,
nestes tempos de transformaes e de acelerao da Histria, diante
da perspectiva da perda, do esquecimento, configura-se como uma
necessidade premente de reconstruo da prpria identidade do
indivduo no seio da nascente sociedade de massa.
A idia de patrimnio desponta como elemento de cultura associado
ao seu contexto de produo, atravs do qual o homem afirma sua
identidade, articula a noo de si mesmo, e, ao mesmo tempo,
organiza sua prtica social e a representao de sua linguagem
simblica. O tema do patrimnio construdo envolve, portanto, uma
conscincia coletiva de apropriao do passado pelo presente e,
necessariamente, a perspectiva de transmisso ao futuro, garantida
pela idia de preservao.