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I A corrida de Antiloco No plano do voca bulirio, mitis designa, como substantivo comum, LIma forma particular de inteligencia, uma prudencia avisada; como nome proprio, uma divindade feminina, filha de Oceano. A deusa Metis, personagem que se poderia crer muito insignificance, parece confinada nos papeis de comparsa. Primeira esposa de Zeus, tao logo se eneontra gravida de Arena, e engolida pelo marido. Relegando-a nas profundezas de seu ventre, 0 rei dos deuses poe fim brutalmente a sua carreira mitologica. Todavia, nas teogonias atribuidas a Orfeu, Metis frgura no ptimeiro plano e apareee, na origem do mundo, como uma grande divindade primordial. No que diz respeito ao substantivo comum, 0 filalogo alemio Wi- lamowirz3 parecia ter fixado sua sorre quando anotava J na margem de uma de suas obras, que ap6s uma fortuna em Sllm3 total mente reduzida a peia homerica, metis tinha sobtevivido apenas na qualidade de simples re- miniscencia poetica. Fai Henri Jeanmaire que reabriu 0 debate e retomou a pesquisa com mais rigor. De seu estudo sobre La naissanc, d'Athena et la royaute magiqu, de Zells 4 , pode- se reter dupla conclusao. Em primeiro lugar, a capaeidade inteligente que metis designa se excrce sobre os pianos mais diversos, ma s semprc code 0 accnrD e posto sabre a eficacia pdtica, a pro, cura do exiro em urn domfnio da a<;:io: multiplas habilidades uteis it vida, domfnio do arresio em seu offcio, habilidades magicas, uso de frltros e de ervas, asrucias de guerra, enganos, fingimenros, descmbarac;:os de rodos os generos. Em segundo lugar, 0 terma metis se encontra associado a roda LIma 3 U. von Wilamowit'1;, Die des Odysseus, Neue homerischl! Untersuchungen, Berlin, 1927, p. 1 90, n.1. 4 H. Jcanmaire, "La naissance d'Athena er la royaute magique de Zeus", Revue archeologique. 1956,juil sepr., p.12-39. A corrida de Amfloeo I 17 IIII

Métis As Astucias Da Inteligencia

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Corrida de Antíloco

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  • I

    A corrida de Antiloco

    No plano do vocabulirio, mitis designa, como substantivo comum, LIma forma particular de inteligencia, uma prudencia avisada; como nome proprio, uma divindade feminina, filha de Oceano. A deusa Metis, personagem que se poderia crer muito insignificance, parece confinada nos papeis de comparsa. Primeira esposa de Zeus, tao logo se eneontra gravida de Arena, e engolida pelo marido. Relegando-a nas profundezas de seu ventre, 0 rei dos deuses poe fim brutalmente a sua carreira mitologica. Todavia, nas teogonias atribuidas a Orfeu, Metis frgura no ptimeiro plano e apareee, na origem do mundo, como uma grande divindade primordial.

    No que diz respeito ao substantivo comum, 0 filalogo alemio Wi-lamowirz3 parecia ter fixado sua sorre quando anotavaJ na margem de uma de suas obras, que ap6s uma fortuna em Sllm3 total mente reduzida a epo~ peia homerica, metis tinha sobtevivido apenas na qualidade de simples re-miniscencia poetica. Fai Henri Jeanmaire que reabriu 0 debate e retomou a pesquisa com mais rigor. De seu estudo sobre La naissanc, d'Athena et la royaute magiqu, de Zells4, pode-se reter dupla conclusao. Em primeiro lugar, a capaeidade inteligente que metis designa se excrce sobre os pianos mais diversos, mas semprc code 0 accnrD e posto sabre a eficacia pdtica, a pro, cura do exiro em urn domfnio da a

  • serie de palavras cujo conjunto forma urn campo semantico muito vasto, bern delimitado e estruturado5

    Na longa hist6ria da metis - ela se estende sobre mais de dez secuios ate Opiano -come~aremos interrogando nossa primeira testemunha: Homero.

    o texto de Homero mais apropriado para revelar a natureza da mctis esra no canto XXIII da Iliada, no episodio dos Jogos. Tudo esd pronto para a corrida de carros. 0 velho Nesror, modelo do sabio, do conselheiro experto em metis', di a seu [ilho Antiloco suas recomenda,oes' . 0 garoro e ainda bern jovem, mas Zeus e Posidon ensinaram-Ihe "todas as maneiras de lidar com os eavalos"8. Por azar, seus cavalos nao sao muito d-pidoSi seus eoneorrentes sao mais worecidos. 0 jovem parece dirigir-se para uma denota. Como poderia veneer sellS adversarios que dispoem de eavalos mais dpidos, enquanto ele eonduz animais menos d.pidos9~ E nesse eontexto que entra em questao a nultis. Desfavoreeido pdos cavalos, Antiloco, como verdadeiro filho de seu pai lO, rem no sell bolso mais trunfos de metis que podem imaginar sells coneorrentes. "Cabe a ri, meu filho, di::dhe, Nestor, por na cabel'" uma main panto{en (mul-tipla) para nao deixar eseapar 0 premio". Segue, entao, 0 trecho que canta os louvores it metis: "E pela metis mais do que pela for,a que vale 0 lenhador. E pela

    5 Sed. suficienre assinalar alguns dos termos mais importances que enconrramos associados a metis: d610s e meti5 (Od., iii, 119123); doMmrti5 (II. I, 540; Od., i, 300; iii, 198); poljl1lctis e doUr rekhur (H. H. Hermes, 76; Od . iv, 455); ankylometcs, doUe rekhne. phrazrsrhai, krjpfeill, Mkhos, dolos (He, ., leDg., 160-175): pharmaka lIIetioellto (Od., iv, 227); mitin hyphainein (II" VI!, 324: Od" iv, 678); mitis c kirdc (11., X, 223-225: XXIII, 322; 515; Od. xiii, 299 c 303); polymeris e kcrdaleophroll (/I" IV, 339,349); ollkylomitis c haimjloi mekhanai (He,,, Twg., 546-547: Esq., Prom., 206). 6 Primeiro dos medontcs, dos "regentes", Nesror da sempre os melhores consclhos (cf. IL., X I V, 107: ameinolla metin): "precedendo codos os oorros, e1e comec;a a urdir os fios de seu projeto", l'yphaincin merir! (II.,VII, 324). Nos versos 118~129 do canto iii da Odi55eia, 0 dogio de Ulisses, cuja mdi5 C inigualave1, conduz Nesror a insistir sobre a comunidade de inteligencia avisada que fundamenta sua simpatia reciproca. , fl., XXlJ[. 306 sq. 8 II., XX III, 307308: hipposjnas". plm/O{c/5. 9 Em 310311. :l oposiq50 c claramente marcada entre "mais 1emos" (bardistoi) e "mai~ rapidos" (aphartrpoi). Em 322, 0 adjetivo "mcnos bOilS" (hessonas) que qualiflca hfppous chama urn corres. pondence ~mclhores" (krtssonas), que nio esca explicito. 10 Ami/oeo 050 C desprovido de metis, 0 verso 305 insiste nisso: seu pai se aproxima dele e, para seu bern, aconselha~o, apesat" de e1e ser ja rao sabio (noronl;). Tris outras passagens fazcm a1us50 a sell carater avisado (440; pep1JY5thai; 586:pqmymenos; 683: n60/l). Alhures, seu cocheiro se chama Noe,llon (612) .

    IS I As astucias da imeligencia

    metis que sobre 0 mar cor de vinho 0 piloto conduz 0 navio a despeito do vento. E pela metis que 0 cocheiro supera seu concorrente"tl. No caso de Andloco, sua mitis de cocheiro sugere-Ihe llma manobra mais ou menos fraudulenta que Ihe vai pernlitir mudar uma situa~ao desfavoravel e triunfar sobre 0 mais forte que ele - 0 que Nestor exprime nestes tcrmos: "Quem conhece as vantagens (kerde), mesmo se conduz cavalos mediocres, vence12". Em que consistenl as vanragens de Antiloco! Seguindo os conselhos do pai, 0 jovem aproveita-se de urn brusco estreitamento da pisra, desbarrancada pelas aguas de uma tem~ pesrade, para empurrar seu carro obliquamente diante do de Menelau, com 0 risco de provocar uma colisao. A manobra surpreende 0 adversario que deve segurar os cavalos; aproveitando seu descontrole, Antiloco ganha a dianteira necessaria para disranciar-se nas ultimas cavalgadas13

    L Por banal que 0 episodio possa pareeer ele poe, todavia, it luz certas

    caracteristicas essenciais da metis. E, de inicio. a oposi~ao entre 0 emprego da for~a e 0 recurso a metis. Em_ toda situa~ao de confronro ou de com-peti~ao - estejamos nos nas garras de um homem, lim animal ou uma forc;:a natural - 0 sucesso pode ser obtido pOl' duas vias. Ou por uma superioridade de "forc;:a" no dominio onde a Iuta se desenrola, 0 mais forte vencendoi ou pela utilizac;:ao de procedinlenros de uma outra ordem, cujo efeito e precisamente falsear os resultados da prova e faze l" triunfar aquele que, com certeza, era considerado derrotado (inferior). 0 exira que a mhis proporciona! reveste-se assim, de uma significac;:ao ambigua: conforme 0 contexto ele poded suscitar reac;:6es contrarias. Ora se vera ai 0 produto de un"la fraude, a regra do jogo nao tendo sido respeitada. Ora ele provocari tanto mais admira~ao quanro red. surpreendido mais, 0 mais fraco tendo, contra roda a expectativa, en-contrado em si recursos suficientes para por 0 mais forte a sua merce. Por cerros aspectos, a metis ol"ienta-se para a lado da astllcia desleal, da mentira

    II Como H . Jeanmaire, art. cit., p. 22, c l~a t radU/;ao nos seguimos aqui, preferimos nio traduzir met;5. 12 II., XXIII, 322, heS50lUlS, lit, "menos bons". II Esta manobra _ nos poderiamos dizer csta mckham! - e urn tipo de ~rabo de peixe" (cf, as observac;oes de P. Charmaine e Goobe, Homero, Wada, XXIII, Paris, J964, versos 419A24) .

    A con"ida de Anti/oca I I9

  • perfida~ da traic;:ao, armas desprezlveis das mulheres e dos covardes14 Mas, por outros, eia aparece mais preciosa que a fO[l;:a; ela e de certa fornla a arm a absoluta, a lmica que tern poder de asseguralj em toda circunsrancia e quais~ quer que sejam as condit;6es da luta, a viroria e a dominac;:ao do outro. Tao forte seja, com efeito, urn homcm ou urn deus, vem sempre urn momento em que ele cncontra urn mais forte que de: 56 a superioridade em mitis confere a uma supremacia este duplo carater de permanencia e de universalidade que faz dela verdadeirarnente urn poder soberano. Se Zeus e rei dos deuses, se de vencc em poder todas as outras divindades, mesmo unidas contra ele, e pOI-que de e par excdencia um deus que rem me.tis1S Os mitos gregos que nan-am a conquista do poder pda Cronida e a instituis:aa de unl reino defi, nitivamente assegurado sublinham que a vit6ria no combate pela saberania devia sel' obtida naa pela fors:a, mas por uma astucia l6, gras:as a mitis. Kratos e Bfe, Dominas:ao e Forc;:a brutal nao enquadram 0 trono de Zeus - como os servos para sempre presos a seus passos - senao a medida que 0 poder do Olimpio ultrapasse a simples forp e escape das vicissitudes do rempo. Zeus nao se contentou em unir~se a Metis em primeiro casamento; engolindo~a, de se fez inteiramente metis. Sabia precaw;:ao: depois de ter concebido Atena, Metis teria gerado, se Zeus nao rivesse irnpedido 0 golpe, urn filho mais forte que seu pai e que, por sua vez, te-lo-ia destronado, como de mesmo derru-bara 0 seu. Mas doravante ja nao hi metis possivel fora de Zeus e contra ele. Nenhllma astllcia se trama no universo sem antes passar por seu espfrito. A dma,ao pela qual se desdobra a for,a do deus soberano ji nao comporta probabilidade. Nada que possa surpreende-Io, enganar sua vigilancia, con-rrariar seus designios. Alertado pela mdis, que Ihe e interior, de rudo que se prepara para de de bom e de mau, Zeus ja nao conhece, enrre 0 projero e a realizac;:ao, esta disrancia por onde surgem, na vida dos outros deuses e das criaturas 1110rtals, as armadilhas do imprevisro.

    14 Cf. as "

  • lTlllmente os her6is homericos, a um impulso sub ito. Ao contririo, sua mitis soube pacientemente esperar que se produz;isse a ocasiio esperada. Mesmo quando eIa procede de um impulso brusco, a obra da metis situa~se nos an' tipodas da irnpulsividade. A mctis e ripida, pronta como a ocasiao que ela deve apreender no voo, sem deixa~la passaro Mas ela nio e nada menos que leve, [epte: munida do peso da experiencia adquirida, da .0 um pensamento denso, espesso, apertado -pykinf'; em vez de flutuar Ii e ci ao sabor das circunstincias, ela ancora profundamente 0 espirito no pr~jeto que eIa ma, quinoll antes, gra
  • do passado e precisamenre 0 dom que, para a infelicidade dos aqueus, falta a seu rei. Tornado pda c6lera, Agamemnon "nao e capaz de ver, aproximando o futuro do passado, como os aqueus poderiol perro de suas naus, combater sem danos28", Os troianos nao sao mais favorecidos. Na assembleia

    J Polidamas

    pode, em sua prudencia29, prodigalizi-Ios com sibios conselhos, implorar-Ihes que examinem as caisas sob rodos os aspectos, prever diante deles "0 que vai acontecer". Ninguem 0 OUVCi de permanece 0 unico capaz "de ver junto o futuro e 0 passado30". Todos os troianos adoram a opiniao de Heitor que os chama para fazer a batalha fora dos muros. Opiniao fatal; esquecido do passado, cego do futuro, 0 grande Heitor, tomado pela raiva e pelo combate, e apenas uma cabe~a leve, inteiramente entregue as vicissitudes do acontc-cimento. Desnorteados por sua paixao, sell campo de visao esrreito, as dais rcis, enl urn e ourro campo, conduzem-se como adolescentes irrefletidos. Eles sao semdhantes a essas mulheres de que fala Safo que: "de alma versatil na sua leveza s6 pensam no presente"3J. De resto, mesmo no homem de idade madura e de born senso, 0 horizonte temporal permanece limitado: 0 futuro, para as mortais, e opaco como a noire. Oferecendo-se para partir em patrulha noturna nas lin has adversas, Diomedes pergul1ra ao companheiro: "Quando dais homens caminham juntos, se nao e urn, eo ourro, em seu lugar, que ve a vantagem (kerdo,) para pegar. Sozinho, pode-se ver tambem, mas a vista e mais curta e a mitis mais leve32". E necessaria ser velho, com toda a experien-cia de urn Nestor, au dotado de uma mitis extraordinaria como Ulisses, para que se scja capaz - segundo a f6rmula que Tuddides aplica ao [.1(0 politico de Temisrocles - "de se fazer relativamente ao futuro a mais justa ideia sabre as perspectivas mais extensas e preyer da melhor forma as vantagens e as in-conveniencias dissimuladas no invisiveP3".

    Ainda e preciso acrescentar que esta excepcional promethcia ou pr6noia - esta pre-visao no senrido pr6prio - nao acontece nunca entre os humanos

    " II., l, 343. 29 I/., XVIII, 249: pcpnymblOs.

    ~ 11., XVIII, 250. )1 Safo, fro 16, Loebd~P.1ge, Poet. Lcsb.Fr. 32 I/" X, 224-226: brdssoll t noos, lepte de tc metis (226.) n Tuc. I, 138, 3.

    24 I As astdcias da inteligencia

    scm 0 seu contrario. Prometeu, aquele que reflete antes, tern urn irmao ge-nl.eo, seu duplo e seu cootrario, Epimeteu, aquele que compreende depois34 Prometeu poe a serviyo dos homens, a quem ele fornece, com 0 fogo, todos os artificios de que necessitam, uma inteligencia que pretende brincar de astucia com Zeus e enganaAo. Mas a mitis do Tita termina par voltar-se contra e1e; e1e caj na armadilha que anna. Prometeu e Epimeteu formam duas faces de uma personagem unica como a prometheia no homem nao e senao a outro aspecro de sua ignodncia radical do futuro.

    3. Hi, enfim, urn ultimo tra~o que Homero empresta i metis. Ela nao e

    una, nem unida, mas multipla e diversa. Nestor qualifica-a panto;e". Ulisses e 0 her6i polymeti, como e polytropos e po/ymekhanos; de e experto em astueias variadas (panto;ou, dolou, )36, po/ymekhano, no sentido em que jamais Ihe faltam expedientes, parDi, para livrar-se de todo tipo de embara,o, aporia. Instruido par Atena e Hefesro, divinidades da metis, 0 artisra possui da mesma forma urna tekhne panto;e", urna arte de diversidade, urn saber fazer tudo. 0 polymeti, tern igualmente 0 nome de poikilometis", de aiolometis". 0 termo poik;lo, de-signa 0 desenho colorido de um tecido", a cintila,io de uma arma'!, a pelo manchado de um filhote de cervo", 0 dorso brilhante da serpente constelado de pinceladas sombtias". Esta mistura de cores, este emaranhado de formas produz um efeito de brilho, de ondula,ao, um jogo de reflexos, que 0 grego

    34 Prometeu e poikilos, aiolometis (infra, n. 36, 37, 48), enquamo Epimeteu e hamartinoos (Hes. Teog., 511). Nos TrablJlhos, 8586, Epimeteu e caracteriz.1do pda incapacid.1de de refletir, de phrazcsthni, que e urn dos verbos da metis. " 11., xxm, 314.

    ~ II., III, 202. 37 Od., vi, 234. 38 Poikilometes Oll poikilometis e 0 epitem de Ulisses (II., XI, 482; Od., iii, 163; XIII, 293), de Zeus (H.H. Apolo, 322), de Hermes (HH. Hennes, 155). Poikiloboulos e Ulna varianre: este Cpl. l rero qualifica Prometeu (Hcs., T(og., 521). Ulisses (Ant. Plan., IV, 3005), Hermes (Orf Hin, 28, 3 Quandt). 39 Afrodite c aiolometis (Esq., Slipl .. 1037). 40 1/., VI, 289 e 294; Arencu, 48 b. .. II., X, 75. " Tr. gr.fr. 419 Adesp. N2. _3 Pind., Pit., 4, 249.

    A corrida de Antfloco I 25

    I I' ~I

  • percebe como a vibrayao incessante da luz. Nesse sentido a poikilos, a colorido, esd. proximo do ai61os, que designa a movimento dpido44 Assim, a superficie rnutante do figado, ora fasta, ora nefasta4S, e nomeada poikilos como a felicidade, incollstallte e m6vel46, conlO a divindade que, SelTI fim, vira e revira, de um lado, depois de outro, as destinos dos homens47 Platio associa 0 poikilos ao que nao permanece jamais semelhante a si mesmo, oudepotc taHt6n48 , da mesma forma que em outros textos de a opoe ao que e simples, haplous".

    o colorido e a ondulayao pertencem rao intimamente a natureza da ,"etis que a epiteto poikilos, aplicado a urn individuo, basta para designa-lo como urn espiriro astucioso, um esperto ferci! em invenc;oes (poikiI6boulos) , em arti-manhas de todo tipo. Hesiodo chama Prometeu poikilos ao mesmo tempo em que aiolometi?'. Esopo observa, em uma fibula, que, se a pantera tern a pelagem matizada, a raposa e poikilos de espirito". AristOfanes, n'Os Cavaleiros, previne urn dos protagonistas contra urn adversario especialmente perigoso: "0 homem e poikilos, artificioso: ele enconrra muito facilmente expedientes para livrar-se das dificuldades (ek t6n amekhdnon porous eumekhanos porizein)"".

    Como dissemos, ai6los e urn rermo vizinho de poikilos. E. Benveniste ligou-o a raiz de ai6n (sanscrito ayu): de inkio, forya de vida que se reali:z:a na existencia humana, depois, continuidade de vida, dura~iio de vida, periodo de tempo". Segundo a analise lingiiistica, a significa~iio fundamental de ai6105 e: r.ipida, n16vel, muranre. L. Parmentier sustenrou que ai6ios tinha na epopeia 0

    ~1 As afinidlldes de ai6/05 e de poikilos sao muito c1ar:nnente marcadas pelos esc6lios home-ficas e pdos lexicografos; cf. H.J. Mette, S.Y. ai610s nO Lexicon des friihgricchischen Epos, (1955), p. 329. 4S Esq., Prom., 495. 16 Arisrorclcs, ft. Nic., t 10, HOD a 34.

    ~1 Eur . Helena, 711-712. 48 Plat., Rep., 568 d.

    ~9 Pbt.,Tecwo, 146 d. so Hes.,Teog., 511 c Esq., Prom., 310. Sl Esopo" Fdb .. 37 e 119. 52 Arist6f., Caval. 758-759. 53 E. Benveniste, "Expression indo-europeene de l' erernite", Bull. Ste Linguistique 38, 1937, p. 107 sq. Outras etimologias foram proposras. Para E. Fraenkel, Gnomon, 22, 1950, p. 239, ai610s seria uma forma intensiva de , *(F)aiFolos. *ucl: waizcn, drehen, wenden. Atcstado nas tabuinhas micenicas de Cnossos, aia/os dell Lugar a inumeras pesquisas: M. Lejeune, "Noms propres de boeufs a Cnossos", Rev. ft. Gr., 76, 1963, p.6~7; P. Chantraine, "Nores d'erymologie grecque", Rev. Philo/., 37, 1963, p, 15; H , Miihlenstcin, "Le nom des deux Ajax", Studi mrunei ed egeo-anatolici, II, Roma, 1967, p. 44-52.

    26 I As astucias da inleligencia

    sentido de calor ida (versicolor), marcado de cores que se destacam umas sobre as outras54 Mas, se e exato que ai6los aplicado, pOl' exernplo, ao cavalo de Aquiles, urn baio con1 manchas brancas55 no pe, designa a cor de seu pelo, resta apenas que, para os lexicografos e os escoliastas que 0 glosaram56s4, 0 rermo evoca de infcio a imagem de urn movimento em turbilhao, de uma mudanc;a inccssanre. A palavra designa, entre os objetos, escudos que giram cintilando5755 ; entre as aninlais, vermes58, moscardos59, vespas, um enxame de abelhas fiO, todos os animais cuja massa pululanre e inquiera nao fica nunca em rcpouso; entre os homens, aqueles Cl~O espirito astuto sabc se viral' em rados os scntidos. Pindaro chama Ulisses "aiolos", trapaceiro ondulante6l Aiolometi5, aiol6boulos respondem a poikilo,"ctis, pokiloboulos. Aquele, cuja .stucia 0 torna apto a fazer tudo (pa-rlourgos), que se mosrra bastante astuto para descobrir a cada armadilha sua saida (euporos), e, diz-nos Eusracio, urn Eolo (Aiolos), UIll Poikilos62.

    Por que a mitis apatece assim multipla (pantoie), colorida (poikilc), ondu-lante (ai6Ie) I Porque ela tem como campo de aplica~iio 0 mUlldo do move!, do multiplo, do ambiguo. Ela trata das realidades fluidas que niio cessam nunca de se modificar e que rdmem nelas, a cada momento, aspectos contrarios, foryas opostas. Para apreender 0 kair6s fugaz, a metis devia tornar .... se mais ra.~ pida do que cle. Para dorninar uma situac;ao mutante e em contraste, ela deve rornar-se mais flexivel, mais ondulanre, mais polimorfica que 0 escoamento do tempo: ela precisa scm cessar adaptar ... se a sucessao dos acontecimentos, dobrar-sc ao imprevisto das cirCllnsrancias para melhor rea.lizar 0 projeto que cla. concebeu; :lSSinl 0 piloto usa da astttcia com 0 vento para levar, a despeito dele, 0 navio a bom porto. Para 0 grego, so 0 mesmo age sobre 0 mesmo. A vitoria sobre uma rcalidade ondulante, cl~as me[anlorfoses continuas a tornam

    54 L. Parmenrier, Rev. Bdge de Philologre et d' Histoirc, 1, 1922, p. 417 sq. S5 Id., ibid., p. 420: a prop6sito de Xamo, que c urn cavaLo de manchas brancas nos pes (JI., X[X.404).

    ~ Cf. H. J. Mette, s.v. ai6los, Lex. Fr. Epos, (1955), p. 329. ,., Il., V, 295. " iI., XXII, 509. 59 Od., xxii, 296-301. Esrc ai6los oistros i, na ocorrencia, Arena, filha de Metis. 1 '" II., XII, 167. 61 Pind., N~m., V III, 25. 62 Eust" p. 1645, 3 sq. Sobrc as rela

  • quase inapreenslvel, s6 pode ser obtida pOl' urn acrescimo de mobilidade, uma for~a ainda maior de transforrna~ao.

    Um rra

  • des, como 0 mau navegador pclas ondas e peIo vento, 0 carro vagando aqui e la, a vontade dos cavalos, de um lado a outro da pista69 Mudando-se em seu contdrio para enganar Menelau, a astucia prudente de Antiloco interpreta a loucura. 0 jovem, calculando seu golpe e conduzindo reto seus cavalos sobre a linha escolhida, simula a irref1exao e a impotencia, como finge nao ouvir Menelau gritando-lhe para romar cuidado, has auk aianti eik6s70 Estes tra~os do comporramenro de AmHoeo ganham relevo quando eles sao aproximados da condut. de Ulisses, 0 parymetis, a astucia feita homem. Vejamos 0 mais suti!' 0 mais perigoso orador da Grecia propondo-se, dianre dos troianos reunidos em assemb!eia, a urdir a trama brilhante de seu discurso: de fica /;\, desajeitadamenre plantado, os olhos fixos na terra, sem levantar a cabe~a; de segura 0 cerro im6vel, como se ele nao soubesse usaAoi acredirar~se~ia vcr urn homem rllstico paralisado em seu enfado, Oll mesmo urn homem que perdeu seu espirito (dphrona). 0 mestre em trapa~as, 0 magico das palavras, no mo-mento de tomar a palavra finge ser incapa~ de abrir a boca, por nao conhecer os rudimentos da arte oratoria (aidrei phati eaik6s)'l. Tal e a duplicidade de uma metis que, apresentando-se semprc de forma distinta do que e, aparenta~se a essas realidades mentirosas, essas potencias de engano que Homero designa peIo termo d61os: 0 cavalo de Tr6ia72, 0 leito de amor de liames magicos73, a isca para a pesca74, todos sao armadilhas que dissimulam, sob exteriores seguros e seduwres, a artimanha que dentro de si tllesmos escondem.

    69 Aphradcos, v. 427, C rC[ol1lado pelos adjctivos parioros e afs{phroll (603). 0 primeiro designa 0 cavalo ripido e, POt metifora, 0 cscouvado; scm dllvida, uma alusao ;\ corr ida mais vaga, menos Finne desse cavalo (como sllgetem P. Chantraine e H. Gaube em sllas noras ao VCtso 603). Pari-oros remere a imagcm do carro que avan\a em zig-zag (320: he/{ssrtai rntha kat entha). 0 cpirero c ranto mais saboraso que, nos consclhos a AntHoco, Nestor nii.o tin],:! deixado de fixar de am-emao os pontos de refereneia que lhe deviam permitit manter a dirc~ao: Il.,XXl!I, 323 (rcf11!t1); 326 (scma ... ariphrades). Cf. 358 (scnune de tcrmat:Akhilleus). m II . XXIII, 430. " I/., III, 205,224. 72 Od., vii i, 494. 7} Od., viii, 276 sq. 74 Od., xii, 252.

    30 I As asuicias da inleiigencia

    II

    A raposa e 0 palvo

    o episodio de Antaoeo permitiu-nos desenhar, a partir da epopeia homerica, as grandes linhas do campo semantico da metis e os tra~os essen~ ciais dessa forma particular de inteligencia. Prudencia avisada, a mitis permite a Andloco, no curso dos jogos, tomar a dianteira, na corrida de carros, dos concorrentes que disp6em de carruagens tnais dpidas, enquanto ele mesmo conduzia cavalos menos rapidos: a asrucia, d6ios, as vantagens, kerde, e a habi-hdade de apreender a ocasiio, kairos, dao ao mais fraco os meios de triunfar sobre mais forre, ao menor de ganhar do maior. Ao longo da prova, Anti, loco condu~ sem falha, olho fixo sobre aqude que 0 precede, dakelAei: para mudar as posi~6es, a mctis deve preyer 0 imprevisivel. Comprometida com 0 devir, confrontada com situa~6es ambigllas e ineditas, cujo fim esd sempre suspenso, a inteligen.cia astuciosa assegura sua captura dos seres e das coisas apenas porque ela e capa~ de prever, alem do presenre imediato, uma fatia mais ou nlenos espessa do futuro. Vigilante, sempre atenta, a metis aparece tambem mwtipla, pantoie, eolorida, paikilc, ondulante, aiole: todas as qualidades que acusam 0 polimorfismo e a polivalcncia de uma intehgencia que deve, para

    tornar~se inapreen.sivel e para dominar realidades fluidas e moveis, mostrar~se sempre mais ondulante e mais polim6rfica do que estas ultimas. Intdigencia astuciosa, a mitis posslli, enfim, a asrucia mais rara: a "duplicidade" da armadi~ lha que aparenta sempre ao outro mantenho aquilo que nio e, e que dissimula sua realidade assassina sob aparencias seguras.

    Este primeiro modelo de metis cujos tr.,os estao inscritos na Iliada e na Odisseia vamos confrond.~lo com aqueIe que nos imp6e nossa segunda tes~ temunha: as obras ligadas ao nome de Opiano.

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