Upload
lyanh
View
223
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
1
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
ANTONIO CARLOS FERREIRA
MESTRE, NO TE IMPORTA QUE PEREAMOS? ANSIEDADE E MEDO: UM ESTUDO EXEGTICO-PSICOLGICO
DE MARCOS 4,35-41
MESTRADO EM TEOLOGIA
So Paulo
2016
2
PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP
ANTONIO CARLOS FERREIRA
MESTRE, NO TE IMPORTA QUE PEREAMOS? ANSIEDADE E MEDO: UM ESTUDO EXEGTICO-PSICOLGICO
DE MARCOS 4,35-41
MESTRADO EM TEOLOGIA
Dissertao apresentada Banca
Examinadora da Pontifcia Universidade
Catlica de So Paulo como exigncia
parcial para obteno do ttulo de
MESTRE em Teologia Sistemtica, com
concentrao bblica, sob a orientao do
Prof. Dr. Pe. Boris Agustn Nef Ulloa.
So Paulo
2016
3
FOLHA DE APROVAO DA BANCA EXAMINADORA
ANTONIO CARLOS FERREIRA
MESTRE, NO TE IMPORTA QUE PEREAMOS? ANSIEDADE E MEDO: UM ESTUDO EXEGTICO-PSICOLGICO
DE MARCOS 4,35-41
Esta dissertao foi julgada adequada para a obteno do grau de MESTRE EM
BBLIA e aprovada na sua forma final pelo Programa de Ps-Graduao em Teologia.
_________________________________________________
Prof. Dr. Matthias Grenzer, PUC-SP - PGRT
COORDENADOR DO PGRT
_________________________________________________
Prof. Dr. Boris Agustn Nef Ulloa, PUC-SP - PGRT
Orientador
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________
Prof. Dr. Boris Agustn Nef Ulloa, PUC-SP - PGRT
_________________________________________________
Prof. Dr. Kuniharu Iwashita, PUC-SP - PGRT
_________________________________________________
Prof. Dr. Elias Santos do Paraizo Junior, Studium Theologicum (PUL) / PUC-GO -
PGRCR
COORDENADOR DO PGRT: Prof. Dr. Matthias Grenzer, PUC-SP PGRT
CONCEITO: ___________.
So Paulo, 24 de fevereiro de 2016.
DEDICATRIA
Aos meus pais, (pai in memorian) que com esforo e
dedicao me ensinaram os primeiros passos na f,
como tambm o carter e as prioridades na vida.
Aos meus amigos e irmos de Congregao,
que me so caros por seu testemunho de entrega e
fidelidade.
A todos que fazem parte de minha vida,
so poemas e canes que tornam a vida alegre e
sadia.
5
AGRADECIMENTO
A Deus, Senhor da vida e da criao.
Ao Professor Dr. Boris Agustn Nef Ulloa, meu
orientador por sua dedicao, competncia e
pacincia.
Aos Professores que incansavelmente se dedicam ao
ensino com a finalidade de aprofundar o
relacionamento com Deus e o compromisso com a
histria.
To igual agradecimento ao Governo Provincial dos
Missionrios Claretianos do Brasil por possibilitar e
incentivar o estudo da Bblia.
s bibliotecrias que com seus prstimos favorecem o
estudo.
Aos familiares, colegas de comunidade, faculdade e a
todos que colaboraram direta ou indiretamente na
elaborao deste trabalho.
Gratssimo,
6
EPTETO
Barco de Papel
Quem sabe por tantos barcos
navegarem a minha infncia
herdei essa enorme nsia
por navios, terras e mares.
Nesse mar dos meus pesares
meu porto uma ilha perdida
e assim naveguei na vida
passageiro do horizonte.
Hoje pergunto a mim mesmo
se no remei sempre a esmo
a bordo do meu batel
com meu sonho de criana
navegando a esperana
num barquinho de papel.
Manoel de Andrade
leo sobre tela, pintura. Christ in the Storm on the Sea of Galilee, Pintado por Ludolf Backhuysen, 1695, Amsterdan, Holanda. Tamanho 58,4 X 72,4
cm. Depsito em Indianapolis Museum of Art. https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f7/Backhuysen%2C_Ludolf_-
_Christ_in_the_Storm_on_the_Sea_of_Galilee_-_1695.jpg
7
ABREVIAES * nmero de repeties de um vocbulo
+ mais
= traduzido em portugus
: dois pontos
(...) reticncias = marcam a suspenso da frase
a. ano
acus. acusativo
A.D. ano domini (ano do Senhor)
AT Antigo Testamento
ARA BBLIA SAGRADA. Joo Ferreira de Almeida. Edio Revista Atualizada
BJ Bblia de Jerusalm
BP Bblia do Peregrino
c. comum
cf. confira, contraste
CT crtica textual
dat. dativo
Dr. doutor
ed. Edio
e.g. exempli gratia = por, em virtude de, graas ao exemplo
et al. e outros poucos manuscritos
Ex xodo
f. feminino
gen. genitivo
Gn Gnesis
gr. grego
Hb Hebreus
(i).... 1; 2...
ibid. mesma obra
id. mesmo autor
Id fonte da energia psquica (libido). Uma das trs estruturas da trade do
aparelho psquico
Iob/ Job J
Jd epstola de So Judas
Jn Jonas
2 e 3Jo segunda e terceira epstola de So Joo
Is Isaas
Lc Lucas
liv. livro
loc.cit. locum citatum (acima)
lat. latim
LXX verso dos setenta ou Septuaginta
m. masculino
Mc Marcos
Mt Mateus
masc. masculino
8
n. neutro
No./ n. nmero
NT Novo Testamento
nom. nominativo
op.cit. obra j citada anteriormente
org. organizador, organizao
p. pgina
pc pauci: poucos manuscritos
2Pd segunda epstola de So Pedro
pess. Pessoal
pl. plural
pm por muitos
pp. pginas
pron. Pronome
2Re Segundo Reis
Rm Romanos
s. seguinte
s. substantivo
Sal/Sl salmo
sg. singular
ss. seguintes
sic assim, desse modo, desta forma
subst. substantivo
TEB Bblia Traduo Ecumnica Brasileira
trad. Traduo, tradutor
v. versculo ou verso
v. volume
vol. volume
vv. versculos ou versos
voc. vocativo
viii
9
SUMRIO p.
Dedicatria...............................................................................................................iv
Agradecimento ..........................................................................................................v
Epteto .....................................................................................................................vi
Abreviaes ............................................................................................................vii
Resumo .....................................................................................................................xi
Abstract ..................................................................................................................xii
ndice de Ilustraes ..............................................................................................xiii
ndice de Tabelas e Quadros...................................................................................xiv
INTRODUO................................................................................................................... 16
CAPTULO I
O TEXTO E SUA ANLISE............................................................................................ 21
1. STATUS QUAESTIONIS............................................................................................... 21
1.1 A obra marcana.......................................................................................................... 21
1.2 A percope e o transfundo bblico.............................................................................. 26
2. ANLISE DA ESTRUTURA LITERRIA................................................................... 28
2.1 Crtica textual............................................................................................................. 32
2.2 Delimitao................................................................................................................ 43
2.3 Segmentao, traduo e comparao entre as tradues......................................... 44
2.4 Estrutura..................................................................................................................... 50
3. ANLISE LINGUSTICO-SINTTICA....................................................................... 52
3.1 Os verbos................................................................................................................... 52
3.1 Os substantivos.......................................................................................................... 54
4. ANLISE SEMNTICA................................................................................................ 55
5. ANLISE PRAGMTICA............................................................................................. 68
CAPTULO II
A INTERFACE PSICOLGICA.................................................................................... 75
1. A INTERPRETAO BBLICA E A ABORDAGEM PELAS CINCIAS
HUMANAS: PSICOLOGIA........................................................................................... 75
2. A ABORDAGEM PSICOLGICO-CRTICA DA BBLIA.......................................... 83
3. A ABORDAGEM PSICOLGICO-PROFUNDA E A NARRATIVA......................... 86
4. ABORDAGEM PSICOLGICA DO MEDO.................................................................94
5. A NARRATIVA E SEU EFEITO TERAPUTICO.................................................... 100
CAPTULO III
A NARRATIVA E SUA RELEVNCIA PSICO-TEOLGICA............................... 104
1. A RELEVNCIA HERMENUTICO-TEOLGICA DA NARRATIVA................. 104
1.1 O mar como eixo hermenutico.............................................................................. 107
1.2 Sentido teolgico..................................................................................................... 114
2. A RELEVNCIA HERMENUTICO-PSICOLGICA............................................. 117
3. PARA ALM DO MEDO: PERSEVERAR ENTRE SENTIMENTOS
10
OPOSTOS..................................................................................................................... 121
4. F E MEDO.................................................................................................................. 123
5. ATUALIZAO DA MENSAGEM........................................................................... 126
CONCLUSO.................................................................................................................. 132
ANEXOS.......................................................................................................................... 137
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS............................................................................. 139
11
RESUMO
Esta tese busca realizar uma leitura da narrativa em Marcos 4,35-41. Postula centrar-se no
carter dos personagens querendo entender o comportamento dos mesmos diante da
situao de perigo na tempestade no mar expressa na inquirio dirigida a Jesus: Mestre,
no te importa que pereamos? Diante de um perigo, as emoes sobressalentes no
humano so medo, ansiedade e desespero. Por isso, o estudo exegtico ser realizado em
dilogo com a psicologia, cincia que estuda o comportamento humano e os processos
mentais. Tendo como base os pressupostos tericos de estudo da Bblia, enquanto
literatura, este trabalho realiza anlise exegtica da narrativa bblica em Marcos. Rene em
torno da narrativa de milagre todas as questes relativas ao tema que se encontram em
manuais e comentrios bblicos com suas multivises. Realiza ao parentica coeva do
texto em dilogo com as cincias do comportamento humano visando atualizao e
aplicao na vida hodierna. Deste modo, a exegese do texto em questo, lana luz sobre a
historicidade, a validade da percope e atualizao para a vida hodierna com corte
psicolgico. Aplicou-se ao estudo em questo o mtodo histrico-crtico em detrimento ao
estruturalista e ao fundamentalista.
Palavras-Chave
1. Evangelho de Marcos 4,35-41. 2. Tempestade (Evangelhos). 3. Exegese bblica.
4. Histria cultural. 5. Cincias do comportamento.
12
ABSTRACT
The purpose of this thesis is to perform a narrative reading of Mark 4.35-41, focusing on
the character of the individuals in order to understand their behavior when facing a
dangerous situation in the storm at sea they ask Jesus, Master, do you not care that we
are perishing? When facing danger, the prevalent emotions are fear, despair and anxiety.
Therefore, the exegetical study will be conducted using psychology, a science that studies
human behavior and mental processes. Based on the theoretical principles of Bible study
as literature, the goal of the present study is to perform an exegetical analysis of the
biblical narrative in Mark. The miracle description includes all issues related found in
manuals and biblical commentaries with their multivisions. It also includes a parenetic,
coeval analysis of the text based on the sciences of human behavior aimed at updating and
application in modern life. Therefore, the text exegesis sheds light on the history, the
validity of the pericope and update for modern life based on psychology. It applies to the
study in question the historical-critical method over the structuralist and fundamentalist.
Keywords
1. Gospel according to Mark 4.35-41. 2. Storm (Gospels). 3. Biblical exegesis
4.Cultural history. 5. Behavioral sciences.
13
NDICE DE ILUSTRAES
FIGURA 1 ...........................................................................................................................06
leo sobre tela, pintura. Christ in the Storm on the Sea of Galilee. Pintado por
Ludolf Backhuysen, 1695, Amsterdan, Holanda. Tamanho 58,4 X 72,4 cm.
Depsito em Indianapolis Museum of Art.
FIGURA 2 ...........................................................................................................................15
leo sobre tela, pintura. The Storm on the Sea of Galilee. Artista Rembrandt. Data
1633. Tamanho 160 cm X 128 cm.
FIGURA 3 ...........................................................................................................................20
Pintura leo. Jesus Stilling the tempest. Artista James Tissot (1836 1902).
Depositado no Brooklyn Museum.
FIGURA 4 ...........................................................................................................................74
Christ in the Storm on the Sea of Galilee - Girogio Di Chirico, Italian, 1914.
.
FIGURA 5 .........................................................................................................................103
Stilling the Storm. By Ted Henninger.
FIGURA 6 ...........................................................................................................................131
Storm on the Sea of Galilee. Icon card. Catholicchurcsupply.com.
14
NDICE DE TABELAS E QUADROS
QUADRO no 01 .............................................................................................................52
Verbos e versculos no Evangelho Segundo Marcos.
QUADRO no 02 .............................................................................................................52
Verbos no presente do Indicativo Ativo do Evangelho Segundo Marcos.
QUADRO no 03 .............................................................................................................54
Substantivos e versculos no Evangelho Segundo Marcos.
15
INTRODUO
leo sobre tela, pintura. The Storm on the Sea of Galilee. Artista Rembrandt. Data 1633. Tamanho 160 cm X 128 cm. https://en.wikipedia.org/wiki/File:Rembrandt_Christ_in_the_Storm_
on_the_Lake_of_Galilee.jpg
16
INTRODUO
Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina.
(Cora Coralina)
Esta dissertao de mestrado tem como objetivo realizar uma anlise hermenutico-
exegtica da narrativa de Marcos 4,35-41. O foco da pesquisa aplicar, a partir da anlise
narrativa, uma abordagem exegtico-psicolgica, que se expressa por meio da trade,
narrador-texto-leitor.
A exegese bblica a essncia da relao com o texto e sua interpretao. Esta
aproximao gera reflexes sobre a mensagem e o seu significado pessoal, social e
eclesial.
A teologia uma cincia chamada ao dilogo com as outras cincias. Neste
trabalho, a psicologia a cincia eleita para ocupar o papel de interlocutor frente exegese.
Associada ao estudo crtico-textual (interno e externo) da percope, em causa, esta
proporcionar uma viso aplicvel ao mundo interior, subjetivo, psicolgico, segundo a
temtica que trata do inconsciente. Respeitando-se, de pronto, as fronteiras de cada campo
epistemolgico. A caracterizao dos personagens, no captulo derradeiro, possibilitar
aprofundar-se sobre o psiquismo humano, ou seja, as caractersticas psquicas ou mentais
de uma pessoa ou grupo. O ser humano uma realidade unitria: bio-psico-scio-
espiritual.
A dissertao est dividida em trs captulos.
(i) No primeiro captulo realiza-se uma aproximao ao texto e os passos bsicos da
metodologia em vista da exegese da percope, em questo, comumente intitulada A
Tempestade Acalmada.
No labor interpretativo-exegtico, no h como fugir de fazer referncia
metodologia central legitimada na academia. Mesmo que este trabalho alvitre articular para
o captulo terceiro (e ltimo), uma abordagem de anlise na interconexo exegtico-
psicolgica, atendendo a uma especificidade de um tpico delimitado. Deste modo, passa-
se a valer aluses literatura especializada especialmente, catlica romana, que usa a
metodologia dominante de forma a estabelecer qual ser sua contribuio.
17
Para nortear o estudo desta narrativa de milagre, faz-se necessrio o emprego do
mtodo histrico-crtico, usado pela maioria dos exegetas bblicos no trato deste gnero
textual, assim proposta desde o ttulo: Mestre, no te importa que pereamos? Ansiedade
e Medo: um estudo Exegtico-Psicolgico de Marcos 4,35-41.
O estudo, entretanto, leva em considerao o fato de que os textos do Novo
Testamento constituem resultado de um longo segmento de reelaborao e transmisso oral
e escrita, como consenso na exegese contempornea.
A inteno aprofundar a anlise como o narrador situa os personagens mediante e,
tambm, como as palavras so tecidas no texto. Perceber o sitz im lebem (= lugar vivencial
ou situao geratriz de dado escrito). O estudo do lugar vivencial tem em vista determinar
em quais situaes e qual a finalidade, os ditos e as histrias sobre Jesus foram
transmitidos, de maneira a adquirir os predicados dos diversos gneros presentes nos textos
bblicos.
O ttulo est em concordncia com a resposta de Jesus ao questionamento dos
ansiosos e desesperados discpulos: Mestre, no te importa que pereamos?. A resposta
coloca em questo a inverso realizada entre f e medo, acentuando desproporcionalmente
o medo.
As perguntas de Jesus, inquirindo sobre a covardia e a falta de f, constituem ao
mesmo tempo caminho para a maturao da f e desenvolvimento psicolgico de
integrao pessoal.
(ii) O captulo segundo discorre sobre a interface psicolgica. A interface, segundo
o dicionrio, constitui o dispositivo atravs do qual efetuam os escambos de informaes
entre dois sistemas, no caso o bblico e o psicolgico.
Os estudos de psicologia abrem caminho para uma compreenso pluridimensional
da Sagrada Escritura. No substituem, mas enriquecem a exegese bblica. So pesquisas
complementares, pois buscam a compreenso do simblico que forma a conscincia
humana. Atravs delas, os textos da Bblia podem ser percebidos como experincias de
vida e comportamento. Ainda, sob prisma psicolgico, nos ajudam a compreender a
linguagem humana da revelao, ao elucidar o caminho espiritual, percorrido pela pessoa.
Trata-se do percurso existencial da (= gr. psych, originalmente: respirao, sopro),
advindo do verbo (= eu respiro) em seu processo de individuao.
18
A profundidade interior, em geral, est envolta pelos esquemas inconscientes, ou
seja, pelos esquemas estruturam os dados da percepo do real e conduzem o foco de
ateno da pessoa. Trata-se, especificamente, da maneira como as pessoas percebem, se
interagem e representam as informaes fornecidas pela realidade.
O ramo da psicologia profunda, aqui complementar, visa orientar a anlise. uma
linha de abordagem que oferece espao para a dimenso religiosa. Tambm far-se-o
presentes dados do pensamento de Carl Gustav Jung.
Alicerado na anlise exegtica da narrativa bblica em Marcos, segundo o mtodo
histrico-crtico do primeiro captulo, neste, far-se- uso dos pressupostos auxiliares da
psicologia, enquanto cincia, para integrar a anlise da percope.
Na narrativa da tempestade acalmada, o autor, ciente e com um olhar epifnico,
expe os sentimentos dos personagens em sua ansiedade, desespero e medo. A interface
psicolgica ajuda a compreender a linguagem humana da revelao ao elucidar o caminho
espiritual percorrido pela pessoa. Um percurso existencial da em seu processo de
individuao.
Realiza-se uma abordagem psicolgica do medo e, por fim, a apresentao do efeito
teraputico da percope.
(iii) No terceiro captulo, desenvolve-se a narrativa e sua relevncia. Tem como
inteno finalizar com uma anlise exegtico-psicolgica do texto advm dos subsdios
ansiedade e medo dos discpulos diante da situao de perigo e da expressa indiferena
de Jesus: no te importa que pereamos pereamos?
O ser humano, constitudo em sua vivncia, ativa uma gama de sentimentos,
anseios e afetividade caracterstica evidente ao Adam (heb. ). As emoes afetam a
vida, pensamentos, aes, decises da pessoa.
Desenvolve reflexo como resposta s situaes presentes na vida de muitas
pessoas que se apresentam para orientao pessoal. Praticamente, a totalidade dos seres-
humanos exibe certa dubiedade quando estas afirmam acreditar em Deus e ao mesmo
tempo dizem que o sentem ou o percebem um tanto distante. Isso se d seja pela
necessidade de imediata soluo da tempestuosa situao ou pela aparente demora da
resposta divina.
19
Tanto aos primeiros seguidores quanto aos de hoje, a f em Jesus capacita viver em
meio s intempries existenciais. Junto a ele nenhuma ao violenta ou opressora subsiste
para sempre porque ele mais forte.
O caminho de motivao para o discipulado seguir para alm do medo: perseverar
entre sentimentos opostos. Assim se atualiza a mensagem da narrativa, e consubstancia sua
exegese primitiva.
Optou-se, tambm, por outras decorrncias metodolgicas preliminares como:
opo por resumos breves, eleio por proposies sucintas, o que ajuda a envolver um
nmero maior de questes que exigem a ateno, assim como desviar-se do impulso de dar
respostas definitivas que se limitam sempre a um determinado ponto de vista. Tambm a
lida com fontes textuais, iconogrficas, literrias.
No foram desprezados os elementos da rica iconografia crist, que mediam rastros
advindos da interpretao hermenutica. Esto inseridas imagens nas pginas
intercapitulares relativas a esta percope. Por fim, a concluso e as referncias
bibliogrficas.
20
CAPTULO I
O TEXTO E SUA ANLISE
Pintura leo. Jesus Stilling the tempest. Artista James Tissot (1836 1902). Depositado no Brooklyn Museum http://www.wikiart.org/en/james-tissot/jesus-stilling-the-tempest-je-sus-calmant-la-tempe-
te#supersized-artistPaintings-333381
empest-je-sus-calmant-la-tempe-te#supersized-artistPaintings-333381
21
CAPTULO I
O TEXTO E SUA ANLISE
Pesquisar uma atividade prpria do ser humano, investigar
a realidade, conhecer o passado, projetar o futuro.
(Lohn, 2011)
1. STATUS QUAESTIONIS
Termo literrio-acadmico qustionis status (ou status qustionis), aqui
definido como o estado da investigao, do questionamento, para se referir de uma
forma de eptome (ou projeto):
(i) dos resultados acumulados at ento;
(ii) ideao ou imaginao do consenso acadmico (julgamento coletivo, posio ou
opinio da comunidade cientfica em certo campo especfico de estudo, que
implica um acordo geral, embora no necessariamente em unanimidade; d-se por
uma mnima quantidade de leituras, fichamentos, esboos escritos prvios. etc.).
(iii) reas remanescentes, lacunas a ser desenvolvidas em um determinado mote
temtico (para onde deve dirigir-se, via de regra, a pesquisa do discente).
Tendo-se assim, em mente, nos voltamos, de imediato, situao da obra
segundo Marcos.
1.1 A obra marcana
Constitui em tarefa rdua diferenciar tradio e redao, no Evangelho segundo
Marcos1, uma vez que no se tem acesso s possveis fontes anteriores
2. Sua obra uma
1 Neste trabalho a referncia ao evangelho ser segundo a denominao em grego to
(= Evangelho segundo Marcos). 2 Segundo WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento Manual de Metodologia. 3 ed. So Paulo:
Sinodal Paulus, 2002, p. 113: os critrios atravs dos quais se pretende distinguir fontes orais e fontes
escritas so ainda por demais inseguros para que se possa atingir um grau de probabilidade confivel.
22
narrativa e deve ser lida como tal, ou seja, como uma srie de narrativas que enfatizam
os atos e palavras de Jesus3.
Dentre os quatro evangelhos cannicos, o mais antigo tambm o mais curto e
prope ajudar o discpulo a avanar progressivamente no conhecimento da misteriosa
pessoa e identidade de Jesus4. Flvio Josefo, historiador judeu, em sua obra
Antiguidade Judaica, menciona o nome de Jesus e o sucedido com ele5.
A elaborao e a organizao final da obra revela e sublinha o interesse
teolgico do autor. Neste sentido, Kmmel6 postula que foi Marcos propriamente que,
segundo seu interesse teolgico, estabeleceu o itinerrio e atividade de Jesus na Galileia.
A estrutura final do Evangelho , portanto, segundo determinados cenrios geogrficos.
E a forma literria aponta em uma direo principal que a identidade de Jesus.
O relato marcano projetado de forma a levar, a quem entra em contato com o
texto, a interagir atraindo-o questo central: Quem este, afinal?7. E na resposta, o
leitor-discpulo convidado a identificar-se com aquele que o personagem principal
da histria Jesus e a seguir seus passos. Buscando comprometer o leitor, a narrativa
enfatiza nem tanto ideias ou conceitos e sim a conduta8.
3 Segundo ARENS, Eduardo. Los evangelios ayer y hoy: una introduccin hermenutica. Lima: Paulinas,
CEP, 2006, p. 287: O Evangelho segundo Marcos uma narrativa, e deve ser lida assim. Isso significa
que reconhecemos que o autor asume um papel especial em sua obra e seus destinatrios devem asumir
tambm o seu, um como emisor da mensagem atravs do texto e outros como receptores do mesmo. 4 CIRIGNANO, Giulio; MONTUSCHI, Ferdinando. Marco un Vangelo di paura e di gioia. Esegesi e
psicologia di sentimenti contrapposti. Bologna: Dehoniane, 2000, p. 10. 5 Explana JOSEFO, Flvio. Histria dos Hebreus. Rio de Janeiro: CPAD, 2000, p. 418: Nesse mesmo
tempo apareceu Jesus, que era um homem sbio, se todavia devemos consider-lo simplesmente como um
homem, tanto suas obras eram admirveis. Ele ensinava os que tinham prazer em ser instrudos na
verdade e foi seguido no somente por muitos judeus, mas mesmo por muitos gentios. Ele era o Cristo.
Os mais ilustres da nossa nao acusaram-no perante Pilatos e ele f-lo crucificar. Os que o haviam
amado durante a vida no o abandonaram depois da morte. Ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no
terceiro dia, como os santos profetas o tinham predito e que ele faria muitos outros milagres. dele que
os cristos, que vemos ainda hoje tiraram seu nome. 6 KMMEL, Werner Georg. Introduo ao Novo Testamento. 2. ed. [trad. Joo Paixo e Isabel Fontes
Leal Ferreira]. So Paulo: Paulus, 1982, p. 102-103. 7 Conforme FERREIRA, Joel Antonio. Um livro escrito no meio das tenses. Apocalptica no Evangelho
de Marcos e uma lembrana do Milton. Estudos Bblicos. Textos bblicos, frutos de experincias
transformadoras e a memria de Milton Schwantes. vol. 29, n.114, Abr/Jun 2012. Petrpolis: Vozes, p.
40: Na 1 Parte (1,4-8,26), a comunidade marcana colocou, sempre, a questo quem era Jesus? Era
preciso ver Jesus, diante de tanta tragdia. O vento e o mar o obedeciam (4,41); tinha poderes sobre o mal
(5,1-20); curava e perdoava os pecados (2,1-12); limpava os leprosos (1,40-45); ressuscitava os mortos
(5,21-43). Quem era este que interpretava, com tanta liberdade e autoridade, a Palavra de Deus? Quanto
mais Jesus revelava seu poder, tanto mais provocava a oposio e incompreenso dos que o rodeavam. 8 Segundo ARENS. Los evangelios... 2006, op.cit., p. 287: O fato de que Marcos apresenta o evangelho
em forma de narrativa (em vez de una epstola, por exemplo) por s mesmo revelador: a forma literria
23
Ao abordar as questes do seguimento, o autor no d uma resposta terica e sim
apresenta uma pessoa: Jesus, o Filho do Homem9, crucificado-ressuscitado
10. Dentro
desta perspectiva, o discipulado do Reino11
ser tambm marcado por essa dimenso.
Nisto se realiza a experincia pedaggica do discpulo associando-se ao destino mestre
em sua paixo, morte e ressurreio12
.
Deve-se notar que, do incio ao fim do relato, emerge a pergunta sobre quem
Jesus. Este questionamento gera medo e temor tanto nos discpulos, como tambm em
outras pessoas: 1,27; 2,7; 4,41; 6,2-3.14-15; 8,27-29; 8,27-29; 14,61; 15,213
.
natural para convidar a identificar-se com o heri da trama (Jesus Cristo) e reafirmar a opo de seguir
seus passos. A narrativa, que enfatiza o comportamento, e no ideias, conceitos ou doutrinas como tal,
envolve, compromete o leitor. 9 Segundo MATERA, Frank J. Cristologia narrativa do Novo Testamento. Petrpolis: Vozes, 2003, p. 49:
Filho do Homem o termo mais enigmtico do evangelho, mas central cristologia de Marcos. No
um ttulo confessional como so o de Messias e Filho de Deus, pois ningum se dirige a Jesus ou o
confessa como Filho do Homem. 10
Para THEISSEN, Gerd. O Movimento de Jesus: Histria social de uma revoluo de valores. So
Paulo: Loyola, 2008, p. 129-130: Desde a cruz e a ressurreio, Jesus ocupava a posio central no
mundo simblico do primeiro cristianismo. Todas as expectativas de papis com que o Jesus terreno era
cercado obtiveram uma nova definio luz de cruz e ressurreio. (...) A expresso Filho do Homem
combina os dois elementos: afirmaes de sublimidade e de humildade. Contm tanto o vnculo com o
mundo divino (que se expressa principalmente no ttulo Filho de Deus) como o sofrimento e a
humilhao na terra (que paradoxalmente so atribudos ao Messias). J por isso representa o ttulo
mais importante. 11
Salienta CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histrico: a Vida de um Campons Judeu do
Mediterrneo. [trad. Andr Cardoso]. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p. 320-324: que o a caracterstica
mais marcante do termo Reino empregado por Jesus a variedade de forma que assume ao longo dos
textos. As expresses Reino, Reino de Deus e reino dos Cus, por exemplo... Se existe alguma forma
precisa da expresso Reino que tenha sido utilizada pelo prprio Jesus, ela provavelmente seria reino
de Deus. Mas a que contexto os ouvintes de Jesus teriam associado essa expresso? O que achariam que
ele queria dizer com estas palavras? H, em termos gerais, dois contextos possveis: o reino de Deus
apocalptico e o sapiencial... Este Reino eterno apocalptico, mas no no sentido de que trar a
destruio da terra e a ascenso dos eleitos aos cus; ao invs disso, criar um novo paraso sobre a terra,
onde o Messias governar tanto os judeus, quantos os gentios, com poder transcendental e espiritual [o
carter sapiencial]. 12
Salienta AZEVEDO, Walmor Oliveira de. Comunidade e misso no Evangelho de Marcos. So Paulo,
Loyola 2002, p. 190-191: Nele se processa, de modo especial, a experincia pedaggica do discipulado.
O discipulado vir apresentado como experincia de associao ao destino do mestre em sua paixo,
morte e ressurreio como processo de redeno de muitos. Nesse contexto, ao discipulado ser oferecida
a oportunidade da atitude e do comportamento corretos diante do desafio de envolver-se no mesmo
destino redentor e libertador de seu mestre. Assim, esta seo introduz o destino de sofrimento do Filho
do Homem, as condies para o discipulado e para a existncia da comunidade crist. 13
Essa situao dupla de medo inicialmente seguido de temor est presente na Bblia. Na passagem do
mar dos juncos se narra que os israelitas ficaram com grande medo quando viram os egpcios ao seu
encalo e o perigo se estes os alcanassem (Ex 14,10). Superado o perigo e feita a travessia, vendo o
poder do Senhor manifestado atravs de Moiss, o texto diz que o povo temeu o Senhor (Ex 14,31). No
livro de Jonas, apresentado diante da tempestade e o perigo do navio naufragar, os marinheiros tiveram
medo (Jn 1,5). Ao saberem que a causa estava em Jonas que fugira do Senhor, foram tomados por um
grande temor (Jn 1,10). Aps terem lanado Jonas ao mar e o mar cessa seu furor, o texto apresenta que
24
O interrogante sobre a identidade de Jesus, na sua primeira manifestao
pblica, declara que todos foram tomados de admirao e perguntavam a si mesmos:
; ,
| (= Que isto? Um novo ensinamento com autoridade! At
mesmo aos espritos impuros d ordens, e eles lhe obedecem, 1,27)14
. O
questionamento sobre quem este, exposto na concluso desta narrativa, quando os
discpulos se voltam um para o outro e perguntam:
; (= E ficaram com grande medo e diziam uns aos outros: Quem este, afinal,
pois at o vento e o mar obedecem a ele?, 4,41).
No captulo sexto de Marcos, a pessoa do Mestre segue gerando interrogaes.
Agora so seus prprios concidados de Nazar que se perguntam: ;
, ;
(= De onde lhe vem tudo isto? E que sabedoria esta que lhe foi dada? E como se
fazem tais milagres15
por suas mos?, 6,2). Ainda, no mesmo captulo, o rei Herodes
quem apresenta inquietao sobre a pessoa de Jesus (6,14-16). Os discpulos, mais uma
vez, no barco sob a tempestade, durante uma travessia noturna, confundem-no com um
fantasma e gritam:
, (= E vendo-o caminhar sobre o mar, julgaram que
fosse um fantasma e gritaram, 6,49). De fato, havia muitas indagas acerca dele e estas
desassossegavam os que permaneciam ao seu entorno16.
At aqui, os questionamentos so respondidos nas narrativas das aes
realizadas por Jesus e nas reaes de diversos personagens frente a elas. Note-se, que na
metade do captulo oitavo, j a caminho de Jerusalm, o prprio Jesus que apresenta a
os homens foram tomados por um grande temor para com o Senhor. um temor reverencial, pois
oferecem sacrifcios e oraes ao Senhor (Jn 1,15-16). 14
Os textos bblicos mencionados doravante, seno estiver mencionada a verso entenda-se advindos
da: BBLIA. Bblia de Jerusalm. So Paulo: Paulinas, 1985. 15
Segundo SCHIAVO, Luigi; SILVA, Valmor da. Hipteses interpretativas dos milagres em Marcos.
in: Revista de Interpretao Bblica Latino-Americana / Ribla, Petrpolis, v. 64, 2009/3, p. 78: milagres
e exorcismos so no mundo judaico sinais do tempo messinico. 16
Segundo MOSCONI, Luis. Evangelho de Jesus Cristo Segundo Marcos. Para cristos e crists do
novo milnio. So Paulo, Loyola 2009, p. 68: Essas e outras perguntas a respeito de Jesus circulavam
entre o povo, nas casas dos pobres, nas aldeias, sinagogas, estradas e at nos palcios (6,14). Realmente, a
pessoa de Jesus atraa, questionava, empolgava. Sua fama logo se espalhou por toda a Galileia (1,28)
(sic). Multides queriam v-lo e toc-lo (1,45; 2,13; 3,20; 4,1; 5,21.30-31; 6,31; 10,21). Jesus tornou-se a
pessoa mais falada e mais comentada por toda a Galileia (sic).
25
indaga sobre sua identidade. Esta expressa para elucidar a situao crtica na qual se
encontram os discpulos e tir-los do ofuscamento que dificulta reconhecer o mestre e
disp-los ao seguimento17
. Faz um retiro com eles e se revela como (= Meschiah,
gr. transcrio de , = , lat. Christ), diferente daquele que pensavam.
Um na linha do servo sofredor (8,27-33)18
. Seu questionamento inicialmente se faz
de maneira geral: ; (= Quem dizem os homens que
eu sou?, 8,27) e, em seguida, com uma pergunta direta aos discpulos:
; (= E vs, quem dizeis que eu sou?, 8,29a). Pedro apresenta uma
importante declarao: . (= Tu s o Cristo, 8,29b). Essa declarao
oferece a possibilidade de desenvolver qual seria o tipo de messianismo assumido pelo
Nazareno. Esta parte constitui o corao de todo o Evangelho, como afirmam Cirignano
e Montuschi19
. neste contexto que so narrados os trs anncios sobre a paixo (8,31-
33; 9,30-32; 10,32-34). Com isso, ao definir a identidade de Jesus indica-se, tambm, a
do seu seguidor. O estar com ele a caminho encontra sua concluso com sua entrada
em Jerusalm, cidade na qual acontecer a fase final de seu ministrio (11,1-13,37).
A sesso que compreende (14,14-16,8) constitui o pice do Evangelho. Nesta, o
Messias condenado morte de cruz, aclamado pelo centurio:
. (= Verdadeiramente este homem era filho de Deus!, 15,39).
Esta declarao conclui e confirma o proclamado no incio pelo autor:
[ ]. (= Princpio do Evangelho de Jesus Cristo,
[Filho de Deus], 1,1).
17
id. ibid., p. 18. 18
Segundo BORN, Adrianus van den. Dicionrio Enciclopdico da Bblia. Petrpolis: Vozes, 1985, p.
1422: tal passagem refere-se a Isaas quando narra sobre o servo sofredor (52,13-53,12). Este trecho
constitui o quarto cntico e fala-se nos sofrimentos terrveis, inditos, do s. [servo sofredor] cinco vezes
afirmado que ele sofreu por outros (muitos), foi condenado morte e a sua vida foi interrompida, mas
Deus ajuda-o e recompensa os seus sofrimentos pelos outros justificando muitos. 19
Segundo CIRIGNANO; MONTUSCHI. Marco un... 2000, op.cit., p. 12: o epicentro do anncio
cristo e, contextualmente, as coordenadas essenciais da sequela.
26
1.2 A percope e o transfundo bblico
Sobre a percope e sua unidade h quem afirme a existncia de uma fonte pr-
marcana. Esta fonte seria composta pelo ciclo de milagres presente nos captulos 4-820.
Encontram-se presentes elementos simblicos na elaborao da histria21
. O
hagigrafo tem uma inteno maior. Sejam os discpulos quanto os membros da futura
comunidade marcana ouviram, em tantas ocasies, as referncias bblicas que
descrevem a histria de Jonas, com a qual seu texto tem semelhanas22
.
Gnilka salienta que o relato embasado pelo transfundo bblico e no nos
modelos do mundo greco-romano23. A histria de Jonas serve como substrato para a
narrativa marcana. Em Jn 1,4, narra-se que uma grande ventania e tempestade ameaam
naufragar o navio onde est Jonas
Mas Iahweh lanou sobre o mar um vento violento, e houve no mar uma =)
grande tempestade, e o navio estava a ponto de naufragar).
20
Explana CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histrico... 1994, op.cit., p. 349-350: Cada seqncia
(sic) comea com um milagre no mar, seguido de trs curas (sendo que uma delas sempre ligada a um
exorcismo), e se encerra com um milagre que envolve alimentos. Trata-se de uma teoria bastante
convincente, ainda mais se pensarmos no primeiro e ltimo milagre de cada grupo dentro da tradio de
Moiss, e nos milagres intermedirios numa ligao com Elias e Eliseu. H, no entanto, um grande
problema. bem mais provvel que a dupla seqncia (sic) de milagres em Marcos 4,35-8 seja fruto de
uma repetio deliberada e tardia: o milagre de Marcos 6,33-44, do complexo Po e Peixe [1/2], teria sido
repetido em 8,1-10 e o milagre de Marcos 6,45-52, de 128 Andando sobre a gua [1/2], teria sido
repetido em Marcos 4,35-4 (sic). O estilo de Marcos, no nvel da palavra e da frase, caracteriza-se pela
formao de pares (Neirynck 1970; 1982, 83-142). No nvel composicional e teolgico, essas duas
passagens e os dois milagres com alimentos levam ao auge a incapacidade dos apstolos compreenderem
as palavras de Jesus (8,14-21) e, na verdade, dobram a sua culpa. 21
Segundo GALIZZI, Mario. Evangelio segn Marcos: comentario exegtico-espiritual. Madrid: San
Pablo, 2007, p. 104: Lendo Marcos impossvel no recordar o profeta Jonas que dormia no fundo do
navio durante uma furiosa tempestade. Somente quanto o despertaram e o jogaram ao mar, voltou a calma
e todos ficaram salvos. Acaso no nos veio a salvao porque Jesus morreu e foi colocado abaixo da
terra? 22
Para GNILKA, Joachim. El Evangelio segn San Marcos. v. 1. Salamanca: Sgueme, 1986, p. 226: A
percope tem pontos de contato e semelhana com o relato de Jonas: surge uma tempestade; Jonas dorme
no interior do barco. Os marinheiros o despertam pedindo que ore a seu Deus, para que Deus nos salve e
no pereamos (LXX Jn 1,6). E acontece a calma, ainda que isto resulte depois que Jonas foi jogado ao
mar. 23
id. ibid. p. 228: Em relao ao tema, se reconhece na apresentao o poder de Jav sobre as
inundaes das guas, sobre a tormenta e sobre o mar, repetidamente descrito e celebrado no antigo
testamento e de maneira especial no salmos. Junto a isso predomina a ideia de que Deus resgata da
situao difcil: E gritaram ao Senhor na sua aflio: ele os livrou de suas angstias (Sl 107,28s) e
tambm a ideia da luta de Jav com os poderes caticos: T dividiste o mar com o teu poder, quebraste
as cabeas dos monstros das guas (Sl 74,13s).
27
Nesta, Jonas dorme tranquilamente enquanto os marinheiros, desesperadamente,
tentam sem resultado, controlar o navio. Os nautas o interpelam e, ento, tomam
conhecimento de que o mesmo o responsvel pelo sucedido porque foge de seu Deus.
Para acabar com o perigo, jogam-no nas guas, e o mar cessa seu furor. Diante disso,
eles so possudos de um grande medo:
,Os homens foram tomados por um grande temor para com Iahweh =)
ofereceram um sacrifcio a Iahweh e fizeram votos, Jn 1,16). No final da narrativa em
Marcos, os discpulos de Jesus tambm experimentam um autntico
(4,41).
Por essa tempestade, quem seria o responsvel? No barco, os tripulantes
encontram no profeta a motivao para a situao difcil que vivenciavam. (Jn 1,11-15).
Na percope em estudo, Jesus a porta-de-escape do problema e no sua causa.
No navio, Jonas dorme para silenciar sua conscincia, porquanto est em fuga da
misso que lhe foi confiada junto aos ninivitas para anunciar-lhes o perdo de Deus (Jn
2,1.6-7). Jesus, ao contrrio, obediente. Dorme, tranquilamente, mesmo quando as
foras do mal esto a ameaar. Ele, com a fora de sua palavra, coloca ordem na
situao catica.
O Sl 107 tambm serve como transfundo bblico para a narrativa. Na concepo
mtica israelita, somente Deus possui a prerrogativa de dominar as foras da natureza e
sua fria (cf. Sl 65,7; 89,9; 93,3-4; 107,23-30). O mar e as guas representam o caos
onde o domnio reinante o do mal que ameaa a criao divina. O salmista reza que
aqueles que desciam em navio pelos mares, com a tempestade presente, clamam ao
Senhor em sua aflio e este, com a sua palavra de fora e poder, transformou a
tempestade em leve brisa e as ondas emudeceram (Sl 107,29). O homem, por si s,
nada pode fazer sobre as potncias malficas do mar. A vitria ao nica e exclusiva
de Deus24
.
24
Segundo GALIZZI. Evangelio segn... 2007, op.cit., p. 103-104: A vitria sobre as foras malficas
do mar no est em poder do homem; somente de Deus, o nico que reduz a tempestade em suave brisa
e acalma as ondas (cf. Sl 107,29). Jesus, que se volta contra a fria do vento e ordena ao mar servindo-se
das mesmas palabras usadas para dominar ao demonio, se revela como nico Salvador, o nico que pode
salvar o homem de todas as foras malficas. diferena de Moiss, que levantou o basto e estendeu a
mo para obedecer a Deus e dividiu as guas (Ex 14,16.26), e diferena de Eliseu, que dividiu as guas
invocando ao Senhor, Deus de Elias, (2Rs 2,14). Jesus age por iniciativa prpria: com sua prpria fora
domina o mar e salva.
28
Na narrativa marcana, os discpulos clamam e, sob a palavra-ordem de Jesus, a
dramtica situao desarticulada de suas foras malficas-destrutivas.
O relato, ao ter o transfundo bblico como determinante, possibilita ao autor
conjugar a palavra de Deus e a realidade da ao de Jesus. As suas aes so
cumprimento das Escrituras. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, o senhorio de
Deus se manifesta real, atuante e eficaz25
.
Com o transfundo, pode-se entender a realidade atual e, com isso, a narrativa
pode ser enquadrada na categoria de narrativas sobre aes e palavras de mensageiros
de Deus26.
Assim, ao fazer memria do episdio, a comunidade crist primitiva faz uma
releitura da histria fundante de Israel, em especial, das personagens profticas de
Moiss e de Elias e outros27
. Esta memria sustenta o caminhar do discipulado.
2. ANLISE DA ESTRUTURA LITERRIA
Em um primeiro momento, no estudo bblico se realiza um contato e dilogo
com o texto. Este suscita questionamentos, dvidas e a necessidade de compreenso da
mensagem nele encerrada.
A modulao da histria elaborada de maneira que tudo que relatado ganha
colorido e vivacidade28
.
O tipo narrativo pode ser considerado como gnero literrio de
epidixis/demonstratio, uma vez que exposto de forma que no final, as pessoas
25
Afirma BERGER, Klaus. As Formas literrias do Novo Testamento. So Paulo: Loyola, 1998, p. 345:
A imitao dos milagres vtero-testamentrios por parte de Jesus na verdade significa: a palavra de Deus
e a realidade da ao de Jesus so encaixadas. A palavra de Deus produtiva, e para narrativas isso vale
em sentido duplo: no decorrer dos acontecimentos a palavra da Escritura se cumpre e a palavra de Jesus
faz com que aconteam milagres: o acontecimento se d como que por uma ordem. Nos dois casos, o
senhorio de Deus se manifesta na fora produtiva de sua palavra. Ou: a totalidade da Escritura (o Antigo
Testamento) compreendida como um imperativo a ser cumprido. Tudo na Escritura impele para o
cumprimento. 26
id. ibid., p. 279. 27
VAAGE, Leif Juster Einar. Que o leitor tenha cuidado! O evangelho de Marcos e os cristianismos
originrios da Sria-Palestina. in: Revista de Interpretao Bblica Latino-Americana. Petrpolis: v. 1,
n. 29, 1988, p. 21. 28
Segundo ALTER, Robert. A arte da narrativa bblica. [trad. Vera Pereira]. So Paulo: Companhia das
Letras, 2007, p. 15: finalmente modulado a cada momento, quase sempre determinante na escolha exata
de palavras e detalhes, no ritmo da narrao, nos pequenos movimentos do dilogo e em toda uma teia de
relaes que se ramificam pelo texto.
29
envolvidas reagem com assombro, admirao ou perguntas. O fato encarado de
maneira objetiva pelo autor, e subjetiva, pelas testemunhas. Nisto, o gnero literrio
enfatizado em sua estrutura como elemento constitutivo, estabelecendo a relao com
o leitor29
. Da a importncia de estudar o texto como unidade literariamente ordenada e
finalizada30
.
Na anlise de (4,35-41), nota-se que o seu contexto aquele do ensinamento
Jesus. A passagem da tempestade precedida pelas parbolas do Reino e seguida pelo
relato da expulso de demnio na Decpole dos pagos, no captulo cinco31
. Conquanto
no faa parte das duas subunidades, faz elo entre ambas, apresentando temas de uma e
de outra, pois, frente ao ensino de Jesus realizado por meio de parbolas, muitos
permanecem sem compreender (4,11-12). A boa notcia torna-se o mistrio do Reino
cujo entendimento dado a alguns os discpulos (4,10)32
. Mesmo assim, estes tm
grande dificuldade em compreender o mestre e sua instruo.
No Evangelho segundo Marcos, Jesus, em suas atividades, aparece vrias vezes
fazendo a travessia do mar da Galileia ou lago de Genesar (Mc 4,35; 5,1.21; 6,45;
29
Salienta BERGER. As Formas literrias...1998, op.cit., p. 281: Neste gnero literrio inclumos todos
os textos em que um acontecimento narrado de tal maneira que no fim as testemunhas (oculares ou
auriculares) reagem com admirao, espanto ou perguntas. O autor reflete duas maneiras de encarar o
fato: a sua, isto , a maneira objetiva, e a subjetiva, a recepo do acontecido pelas testemunhas do
momento. A ltima importante para os leitores abordados pelo autor, pois a reao das testemunhas
representa de antemo a dos leitores e convida-os a se identificar com ela (ou a se definir, no caso de uma
reao negativa ou duvidosa). (...) Desse modo, pelo conceito de demonstratio, conseguimos introduzir no
gnero literrio, como elemento constitutivo, tambm a relao da narrativa com o leitor. Narra-se o
ponto de vista do leitor, que no , por exemplo, o da hagiografia, a qual s visa a glorificao do heri.
Tpica deste gnero literrio , como reao, a pergunta: Quem este...?, ou a reao: Tu s + ttulo.
Assim fica estabelecida, particularmente, a relao deste gnero com a biografia. 30
WEGNER. Exegese do...2002, op.cit., p. 84. 31
Em BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos I. So Paulo:
Edies Loyola, 1990, p. 469, temos que: Com efeito, que l seguidamente as conexes redacionais dos
quatro milagres relatados por Marcos aps as parbolas, 4,35-53, tem a impresso de que o conjunto dos
acontecimentos se desenvolve no prazo de 24 horas: na tarde daquele mesmo dia Jesus atravessava o lago
com os discpulos, 4,35-36; durante a noite realiza-se o milagre no lago, 4,37-41; ao chegar na outra
margem h o encontro com o endemoninhado e sua libertao, 5,1-20; em seguida Jesus atravessa de
novo o lago, onde reencontra a multido e acolhe o convite de Jairo, que lhe roga salve a sua filhinha,
5,21-14; enquanto est a caminho e cura uma mulher que sofre de hemorragia, 5,25-34. Este amontoar-se
de fatos estrepitosos num tempo abreviado, enquanto Jesus est num movimento contnuo de uma
margem para a outra do lago, acompanhado pelos discpulos, evidencia a tenso espiritual desta coleo
de milagres. 32
Salienta FREYNE, Sean. A Galilia, Jesus e os Evangelhos: enfoques literrios e investigaes
histricas. So Paulo: Loyola, 1996, p. 223: Como mestre, Jesus representado nos evangelhos como
operando um sistema de dois patamares, com pblicos diferentes para ocasies e cenrios diferentes, e
com dois estilos diferentes um para as multides, e outro para um pequeno grupo de companheiros-
discpulos.
30
8,13). Isso caracteriza ao redacional, uma interferncia do redator ao reunir e unificar
os relatos primitivos33
.
O ensinamento evanglico sobre: (= Reino de Deus) ocorre
beira mar (4,1). A realidade do Reino iminente e, ao mesmo tempo, um devir, a se
concretizar, a ser vivido, experimentado com um forte acento de esperana.
Com Jesus chega o Reino. Este coincide com sua pessoa. Tanto suas palavras
como seu agir o tornam presente. O seu incio de modo humilde e desconcertante e
passa por um desenvolvimento (4,30-32). Por outro lado, esse princpio novidade
absoluta, sendo tempo de salvao34
.
Aps o anncio do Reino, Jesus convida os discpulos a partirem para a outra
margem. Na travessia acontece a tempestade e o milagre. Deve-se salientar que a viso
de milagre do homem bblico difere muito do homem atual. Na Bblia, a natureza no
vista como sistema de lei. As aes eram sempre atribudas a Deus. No existe distino
entre natural e sobrenatural, ou seja, o milagre no interpretado como ruptura da
ordem da natureza35.
Os relatos de milagres enfatizam o poder extraordinrio e salvfico de Jesus.
Poder que restaura a dignidade do ser humano, libertando-o do medo. Este seu agir
deixa as pessoas perplexas e confusas ao mesmo tempo. Por isso, a necessidade da f36.
33
SILVA, Cssio Murilo Dias da. Metodologia de exegese bblica. So Paulo: Paulinas, 2003, p. 179. 34
LATOURELLE, Ren. Jesus existiu? Histria e Hermenutica. Aparecida: Santurio, 1989, p. 91. 35
Para AGUIRRE, Rafael (org.). Os milagres de Jesus, perspectivas metodolgicas plurais. So Paulo:
Loyola, 2009, p. 14-15: verdade que para o criador do relato original e para seus ouvintes primeiros, o
milagre era um acontecimento no qual Deus atuava de forma especial para manifestar ou impor seu
propsito. Em um mundo onde sequer se suspeitava a existncia de uma lei natural que governava a
realidade, o milagre, um acontecimento real sempre maravilhoso, no podia ser visto como ruptura da
ordem da natureza; podia ser reconhecida ou negada sua presena em algum acontecimento concreto, mas
no se duvidava de sua possibilidade. 36
Enfatiza BARBAGLIO; FABRIS; MAGGIONI. Os Evangelhos... 1990, op.cit., p. 481: 1. Nos
milagres se revela o poder extraordinrio de Jesus, o poder salvfico que restaura o homem na sua
dignidade ou o liberta de seu medo. Um poder escondido, misterioso, que no pode ser confundido com
outras foras mundanas; mas, ao mesmo tempo, um poder que irrompe no mundo e no pode ficar
escondido. 2. Os gestos de Jesus, que suscitam justamente assombro e admirao, e que deixam perplexas
e confundidas as testemunhas, so ambguos ou ao menos podem ser mal entendidos enquanto no so
colocados e orientados para a plena manifestao de Jesus: a morte e ressurreio. luz da Pscoa,
tambm os milagres se tornam evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Em outras palavras, a Marcos
interessam os milagres no por serem eventos extraordinrios, mas porque Jesus extraordinrio,
excepcional, importante. E Jesus tal, porque morreu e ressuscitou. De outro lado, os milagres acontecem
no caminho que leva morte e ressurreio, e antecipam, como sinais provisrios, mas decisivos, o poder
que se manifesta na ressurreio. Ento se compreende a insistncia de Marcos sobre a f de quem
curado, ou melhor, salvo. Mesmo se a tradio pr-marcana conservou e transmitiu estes relatos para
31
O milagre acontece sobre o elemento natureza mar. O cenrio onde tudo se
desenrola constitui a situao prototpica semntica. Tem-se o episdio de uma histria
cujo arqutipo inicia com uma indicao temporal e de localizao. Uma viagem de
barco com uma tempestade na mesma paisagem, relacionada com o abismo catico do
incio da criao37
. O destino alcanado quando chega a outra margem, regio dos
gerasenos.
Constitui-se o mar como sntese simblica das aes dos opositores figurados
nos espritos do mal que tencionam impedir a presena e avano do Reino de Deus38
. O
ambiente traduz as dificuldades para a realizao da misso junto aos pagos devido
mentalidade presente ainda entre os discpulos de Jesus39
.
A histria se desenvolve em volta daqueles que constituem os personagens
centrais: Jesus e os discpulos. A percope breve e, nesta, o nome de Jesus no aparece
nenhuma vez expressamente nomeado. Quando se faz, utiliza-se o pronome pessoal
(= a ele, pron. pess. dat. masc. sg.), ou com o uso do substantivo (=
mestre, subst. voc. masc. sg.). Os pronomes, sobretudo pessoais, so comumente
utilizados pelo autor.
O adjetivo (= grande) aparece trs vezes na percope: v. 37:
(= grande tempestade); v. 39, (= calma grande); v. 41,
(= medo grande). Esta trplice presena reala ainda mais os elementos
da narrativa de milagre.
Relevantes so as vrias perguntas presentes. A primeira no v. 38:
; (= Mestre, no te importa que pereamos?). No v. 40, aparece a
inculcar a f-confiana no poder salvfico de Jesus, na atual perspectiva do evangelho de Marcos trata-se
da f que se dirige a Jesus, sua pessoa. 37
Explana LON-DUFOUR, Xavier. Diccionario del Nuevo Testamento. Madrid: Ediciones Cristiandad,
1977, p. 296: o lugar onde habitam os poderes demonacos e onde se esto os mortos: um dia ser
destrudo. Assim como Deus, tambm Jesus domina suas violentas ondas (...). 38
Segundo GALLARDO, Carlos Bravo. Jesus homem em conflito: o relato de Marcos na Amrica
Latina. So Paulo: Paulinas, 1997, p. 133: O mar sntese simblica das ameaas que o relato nos narra,
e que no provm do mar, mas dos opositores concretos: os demnios (1,24-34), os escribas (2,7.16;
3,22), os fariseus (2,18.24; 3,2.46), seus familiares (3,21.31), o povo (3,9; 4,11). Toda esta oposio
nasce, em ltima instncia, de sua prtica pelo Reino e da oposio de duas concepes sobre Deus e o
acesso a ele. 39
Argumentam MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Marcos, Texto e Comentrio. So Paulo:
Paulus, 1998, p. 134-135: No tempo de Mc, o grande obstculo para a misso entre os pagos era a
mentalidade do judasmo, conservada pelo grupo de discpulos (israelitas). O sentimento de superioridade
dos judeus, que ofendia os outros povos, suscitava da parte destes uma reao violenta que punha em
perigo a existncia do grupo missionrio.
32
dupla pergunta de Jesus: ; ; (= Por que sois covardes?
Ainda no tendes f?). Por fim, no v. 41, fechando o relato:
; (= Quem este, afinal, pois at o vento e o
mar obedecem a ele?). Tudo contribui para dar um sentido de unidade narrativa.
O texto faz meno a outros barcos . (= e havia
outros barcos com ele, v. 36). Sobre os mesmos nenhuma informao mais dada, se
soobraram ou no. A anlise literria considera que se trata de algo que estava em
fontes anteriores e que o autor conservou40
. Pode ser que, na tradio oral, estes outros
barcos desempenhassem algo significativo, uma vez que no faria sentido introduzi-los
sem que estes cumprissem alguma atribuio na narrativa.
2.1 Crtica textual
A crtica textual se traduz em um trabalho ecdtico-filolgico41
que leva em
considerao a interdisciplinaridade. Tem como objetivo a reconstruo, quanto
possvel, do provvel texto original.
Um texto sempre um evento de comunicao42
e est inserido em amplo
contexto43
. Este traz consigo as circunstncias em que a mensagem produzida: lugar,
tempo, situao econmica, poltica e religiosa. A anlise critico-exegtica de
fundamental importncia para a interpretao e compreenso do mesmo. A (=
exegese) possibilita redescobrir o passado bblico e torn-lo compreensvel, hoje.
Literalmente, significa tirar de dentro, uma aclarao ou interpretao crtica de dado
40
MEIER, John Paul. Um Judeu Marginal - Repensando o Jesus Histrico. v.2, livro. 1. Rio de Janeiro:
Imago, 1996, p. 491. 41
Segundo PARAIZO Jr., Elias. O Pedro Ulterior: Uma discusso axiolgica a partir da traduo do
apcrifo Atos de Pedro. [Tese de doutoramento; Estudos da Traduo; subreas: grego, latim e copta].
Florianpolis; Belo Horizonte: Universidade Federal de Santa Catarina; Universidade Federal de Minas
Gerais, 2014, p. 577: Em filologia, crtica textual ou ecdtica (do grego , kdotos = dito). A
ecdtica trata de restituir, atravs das minuciosas regras de hermenutica e exegese, a forma mais prxima
do que seria a redao inicial de um texto, a fim de estabelecer a sua edio contempornea definitiva.
Devido ao seu enfoco no desenvolvimento histrico (anlise diacrnica), a filologia passa a ser usada
como uma terminologia que contrasta com a lingustica. 42
EGGER. Wilhelm. Metodologia do Novo Testamento: introduo aos mtodos lingusticos e histrico-
crticos. So Paulo: Loyola,. 2005, p. 29-36. 43
Cf. JOUVE, Vicent. A leitura. [trad. Brigitte Hervot]. So Paulo: UNESP, 2002, p. 25: , precisamente,
o carter diferido da comunicao literria, de certa forma, faz a riqueza dos textos. Recebido fora de seu
contexto de origem, o texto teolgico (ou qualquer outro) se abre para uma pluralidade de interpretaes:
cada estudioso (ou simples leitor) traz consigo sua experincia, sua cultura e os valores de sua poca.
33
escrito, muito especialmente, o religioso.
Visa auxiliar na compreenso dos escritos bblicos, apesar da distncia de tempo
e espao e das diferenas culturais. Neste particular, compete-lhe reunir o maior nmero
possvel de informaes sobre as particularidades culturais, scio-polticas e religiosas
necessrias compreenso dos textos44
.
Os originais dos Evangelhos desapareceram e o que se dispe, atualmente, so
cpias45
. Nestas, os copistas podiam mudar o texto acidental e, at mesmo,
intencionalmente46
.
Manuscritos apresentam, por vezes, diferentes ortografias para um mesmo texto.
Assim sendo, a ecdtica avalia qual dos textos est mais prximo ao original. Para isso,
caminha em duas direes: a crtica externa e a crtica interna. A externa considera e
avalia a quantidade de testemunhas que apoiam a variante, sua datao e abrangncia
geogrfica e ainda, o tipo de texto47
.
A crtica interna realiza minuciosa e criteriosa anlise verificando como ocorre o
uso de palavras, a articulao das ideias e a teologia. Para isso, d-se preferncia
leitura mais difcil, como prefervel a mais fcil. A anlise do aparato crtico tem como
objetivo verificar as variantes48
dos diversos manuscritos e, assim, presumir o texto
mais prximo do original49
.
Neste trabalho, o texto grego, com aparato crtico, utilizado para a anlise da
percope e anlise das variantes o de NESTLE-ALAND. Novum Testamentum
Graece, 27. ed. Stuttgart, 2001. As variantes seguem abaixo50
.
44
WEGNER. Exegese do... 2002, op.cit., p. 12. 45
Para SCHNELLE, Udo. Introduo exegese do Novo Testamento. So Paulo: Loyola, 2004, p. 29:
isto pelo fato de no existirem mais os originais () dos escritos do NT. Para se tentar chegar
ao texto mais provvel do original parte-se da tradio posterior dos textos em manuscritos, citaes nos
autores do primeiro cristianismo, bem como em tradues. 46
EGGER. Metodologia... 2005, op.cit., p. 45. 47
WEGNER. Exegese do... 2002, op.cit., p. 47. 48
id. ibid., p. 341: Leituras alternativas apresentadas por certos manuscritos, que diferem da leitura
aceita como original em determinadas passagens bblicas. 49
Salienta o documento da PONTIFCIA COMISSO BBLICA. A Interpretao da Bblia na Igreja.
So Paulo: Paulinas, 1994, p. 41-42: A crtica textual, praticada h muito mais tempo, abre a srie das
operaes cientficas. Baseando-se no testemunho dos mais antigos e melhores manuscritos, assim como
dos papiros, das tradues antigas e da patrstica, ela procura, segundo regras determinadas, estabelecer
um texto bblico que seja to prximo quanto possvel do texto original. 50
Serve de referncia a crtica textual realizada por SILVA, Cssio Murilo Dias da. Metodologia... 2003,
op cit., p. 59-64.
34
4,36: ,
.
1) variante - (= despedem a multido e...)
Documento Variaes no texto
P45
vid, D, W, , f13
,
pc, it
, .
A variante atestada pelos manuscritos: P45
vid, sc. III; Cdices51
de Bezae (D),
sc. V; Washingtoniano (W), sc. V; Korideto (), sc. IX; famlia f13
que contempla
13, 69, 124, 174, 230, 346, 543, 788, 826, 828, 983, 1689, 1709, sc. XI-XIII;
minsculos: 28; sc. XI; 565, sc. IX; 700, sc. XI; 2542, sc. XII; pc52
e a maioria dos
manuscritos latinos antigos (it).
2) (= tendo-a despedido)
Documento Variaes no texto
Cdice Alexandrino , .
atestada pelo Cdice Alexandrino (A), sc. V.
Apreciao: na lio 1 a variante no aparece em nenhum manuscrito anterior ao
sculo V. Pelos critrios da lectio brevior e lectio difficilio53
, a variante considerada
fracamente atestada.
51
O termo deriva do latim cdex. Inicialmente designava uma tabula (de argila ou madeira) que era
coberta de cera. Nesta se escrevia os textos com um ponteiro de ferro denominado stillus. As tbulas eram
usadas com fins jurdicos, da o nome cdigo fazendo referncia a um sistema de leis. PAROSCHI,
Wilson. Crtica Textual do Novo Testamento. So Paulo: Vida Nova, 1993, p. 30-31. 52
pc = pauci: poucos manuscritos que diferem do texto majoritrio. NESTLE-ALAND. Nuovo
Testamento Greco-Italiano. 27 edio. Roma: Societ Biblica Britannica & Forestiera, 1996, p. 14. 53
Segundo EHRMAN, Bart D. O que Jesus disse? O que Jesus no disse? Rio de Janeiro: Prestgio,
2005, p. 121: Proclivi scriptioni praestat ardua a leitura mais difcil prefervel mais fcil. A lgica
por trs dela a seguinte: quando os copistas mudam seus textos esto tentando aperfeio-los. Se vem
(sic) algo que consideram erro, eles o corrigem; se vem (sic) dois relatos da mesma narrativa contados
de modo diferente, eles os harmonizam, se encontram um texto em aberto confronto com suas prprias
opinies teolgicas, eles o alteram. Em qualquer hiptese, para saber o que o texto mais antigo (ou at
mesmo o texto original), preferncia deve ser dada no verso que corrigiu o erro, harmonizou o relato
ou o aperfeioou teologicamente, mas justamente ao oposto disso, verso que mais dura de explicar.
Em todos os casos, a verso mais difcil deve receber preferncia.
35
A lio 2 est no neutro. Fica difcil saber a quem se refere este termo,
pois estando no neutro no pode ser aplicado a Jesus. O texto resta incongruente.
Pelas regras interna e externa, a verso que aparece no aparato de Nestle-Aland:
(e deixando a multido) preferida, pois considerada a mais
original.
Ainda no (4,36) aparecem outras variantes:
1) (= entretanto, outros barcos estavam com ele)
Documento Variaes no texto
A, C, D e outros .
A variante atestada pelos manuscritos Cdice Alexandrino (A), sc. V; Cdice
Efhraemi Rescriptus (C), sc. V; Cdice Bezae (D), sc. V, que tem uma lio
particular: (muitos barcos estavam); e a maioria dos manuscritos no
grego koin.
Esta mesma variante aparece com outras internamente pouco atestadas. No lugar
de aparece apoiada pelos manuscritos: Cdice Regius (L), sc. VII
e por muitos manuscritos minsculos (pm54
) + (muitos): Cdice Bezae (D), sc.
V; minsculo 33, sc. IX; (: Cdice Bezae (D), sc. V), : Cdice
Alexandrino (A), sc. V; Cdice Ephraemi Rescriptus (C2)55
, sc. V; Cdice Bezae (D),
sc. V; Cdice Regius (L), sc. VIII; famlia f13
(sc. XI-XIII) que contempla 13, 69,
124, 174, 230, 346, 543, 788, 826, 828, 983, 1689, 1709, etc.; minsculos: 28, sc. XI;
565, sc. IX; 700, sc. XI; 2542, sc. XII; M, sc. IX56
; manuscrito syh
(verso siraca
filoxeniana-harcleana).
2) (= muitos outros estavam com ele)
Documento Variaes no texto
Cdice W
54
pm = (por muitos) usado quando o texto majoritrio se divide em duas ou mais variantes com igual
atestao; NESTLE-ALAND. Nuovo Testamento Greco-Italiano. 27 edio. Roma: Societ Bblica
Britannica & Forestiera, 1996, p. 14. 55
C2 indica leitura de segundo corretor, pois h diferentes corretores de manuscritos.
56 M = indica que o texto atestado pela maioria dos manuscritos, incluso o texto koin bizantino.
36
.
A variante atestada pelos manuscritos: Cdice Washingtoniano(W)57
, sc. V.
3) (= os outros barcos que estavam com ele)
Documento Variaes no texto
, f1, 28, 700, 565
.
A variante atestada pelos manuscritos: Cdice Korideto (), sc. IX;
minsculo famliaf1
que contempla: 1, 118, 131, 209, 1582, sc. XII e XV; manuscritos:
28, sc. XI; 700, sc. XI; 565, sc. IX.
4) (= outros barcos estavam com ele)
Documento Texto da edio crtica
,B, C, Sangallensis ,579, 892, pc, vg.
.
O texto da edio crtica constitui o texto lectio difficilior58
, e sustentado pelos
manuscritos: Cdice Sinatico (59(, sc. IV; Cdice Vaticano (B)60, sc. IV; Cdice
Ephraemi Rescriptus (C), sc. VI; Cdice Sangallensis, sc. IX. Trata-se de um texto
mais tardio; manuscritos: 579, sc. XIII; 892, sc. IX; 2427, sc. XIV; pc; vg (Vulgata
Hieronymi, sc. IV, V).
Apreciao: do ponto de vista da evidncia externa, as variantes 1 e 4 constam
em documentos mais antigos enquanto as 2 e 3 so fracamente atestadas, pois constam
em textos mais tardios e nenhum deles apoiado pelos maisculos e B. A variante da
57
Cdice Washingtoniano, manuscrito que contm os quatro Evangelhos. BITTENCOURT, Benedito
Pedro. O Novo Testamento: Cnon-lugar-texto. So Paulo: ASTE, 1965, p. 113. 58
O texto mais difcil deve ser preferido ao mais fcil. 59
tambm conhecido como Manuscrito Aleph (primeira letra do alfabeto hebraico). Trata-se de um
dos mais importantes manuscritos gregos do sculo IV e o nico cdice que contm o Novo Testamento
inteiro. O texto bblico justaposto em quatro colunas por pgina. O tipo de texto idntico ao do Cdice
Vaticano. Encontra-se no Museu Britnico de Londres. 60
o mais antigo cdice de pergaminho e nele est quase toda a Bblia. ZIMMERMANN, Heinrich. Los
mtodos histrico-crtico en el Nuevo Testamento. Madrid: BAC, 1969, p. 46-47.
37
lio 2 pode ter sido ocasionada por uma leitura equivocada que transformou
(outros barcos) em (muitos outros).
Embora a variante 1 conste em documentos antigos, o critrio interno da lectio
brevior depe a favor do texto da lio 4: (outros barcos
estavam com ele), apresentado na edio crtica.
4,38: .
, ;
1) (= estava ele)
Documento Variaes no texto
,A, D, W, , f1, f13 ,33, M, sy
h . , ;
A variante atestada pelos manuscritos: Cdice Alexandrino (A), sc. V; Cdice
de Bezae (D)61
, scs. V-VI; Cdice Washingtoniano (W), sc. V; Cdice Korideto (),
sc. IX; minsculo famliaf1
que contempla: 1, 118, 131, 209, 1582, sc. XII e XV;
famlia f13
que contempla 13, 69, 124, 174, 230, 346, 543, 788, 826, 828, 983, 1689,
1709, sc. XI-XIII; manuscrito 33, sc. IX62
; atestado pela maioria dos textos e
manuscritos (M), sc. IX; manuscrito minsculo syh (verso siraca heracleana)63.
2) (= ele estava)
Documento Texto da edio crtica
,B, C, L, , 579 ,892, 2211, 2427, l, pc.
. , ;
61
Cdice bilngue: grego e latim. Contm grande parte dos Evangelhos e dos Atos dos Apstolos;
ZIMMERMANN. Los mtodos histrico-crticos 1969, op.cit., p. 60. 62
Representante do tipo Alexandrino de texto, este manuscrito contm todo o Novo testamento,
excetuando o livro do Apocalipse. 63
Texto revisado por Toms de Heraclia. So presentes cinco verses siracas do Novo Testamento:
Velha Verso Siraca, Peshita, Filoxnia, Heracleana e Palestinense. BITTENCOURT. O Novo
Testamento... 1965, op.cit., p. 124.
38
Texto da edio crtica. A variante atestada pelos manuscritos: Cdice
Sinatico (64(, sc. IV; Cdice Vaticano (B), sc. IV; Cdice Efrn reescrito (C), sc.
V; Cdice Regius (L)65
, sc. VIII; Cdice 66
, sc. IX; Os manuscritos minsculos: 579,
892, 2211, 2427; lecionrio (l)67
; poucos manuscritos que diferem do texto majoritrio
(pc).
Apreciao: a diferena est to somente na ordem das palavras. Pelas regras
interna e externa, a verso 2 preferida, pois considerada a mais original, uma vez que
consta em manuscritos mais antigos.
Outra variante no (4,38) refere-se a (= despertam-no e...).
1) (= despertando-o)
Documento Variaes no texto
f13
, D, W, , pc, it . , ;
A variante atestada pelos manuscritos: famlia f13
que contempla 13, 69, 124,
174, 230, 346, 543, 788, 826, 828, 983, 1689, 1709, sc. XI-XIII; Cdice de Bezae (D),
sc. V ou VI; Cdice Washingtoniano (W), sc. V; Cdice Korideto (Q)68, sc. IX;
poucos manuscritos que diferem do texto majoritrio (pc); manuscritos latinos antigos
(it).
2) (= despertam-no e...)
Documento Variaes no texto
A, B, C, L, 0167vid
,
f1, 33, M
. , ;
64
Cdice que contm todo o Novo Testamento e parte do Antigo Testamento. ZIMMERMANN. Los
mtodos histrico-crticos 1969, op.cit., p. 51-52. 65
Este cdice possui quase completo os quatro Evangelhos. BITTENCOURT. O Novo Testamento...
1965, op.cit., p. 111. 66
O Cdice Sangalense, bilnge. id. ibid., p. 114. 67
Lecionrios com texto dos evangelhos segundo a ordem de leitura da Igreja bizantina. 68
Cdice Korideto escrito em grego com uncial roteiro em duas colunas por pgina.
39
A variante atestada pelos manuscritos: Cdice Alexandrino (A)69
, sc. V;
Cdice Vaticano (B), sc. IV; Efrn reescrito (C)70
, sc. V; Cdice Regius (L), sc.
VIII; manuscrito 0167vid
; famlia dos minsculos f1 que contempla: 1, 118, 131, 209,
1582, sc. XII e XV; manuscrito 33, sc. IX; maioria dos textos e manuscritos (M), sc.
IX.
3) (= despertam-no e...)
Documento Texto da edio crtica
NESTLE-ALAND
B, C, , 2427e outros , . , ;
O texto sustentado pelos manuscritos: Cdice Sinatico (), sc. IV; Cdice
Vaticano (B), sc. IV); Cdice Efrn reescrito (C), sc. V; Cdice , sc. IX;
manuscrito minsculo 2427, sc. XIV e outros.
Apreciao: as variantes das lies 1 e 2 podem ser explicadas pelo fato da
busca de maior harmonizao textual por parte do escriba.
A evidncia interna assegura que o escrito mais curto como tambm o mais
difcil deve ser o mais original e trata-se da leitura que possibilita sustentar a origem das
variantes. A evidncia externa sustenta que a variante que aparece no texto crtico
sustentada por manuscritos mais antigos. Assim, tanto pela evidncia interna quanto
externa, o texto 3 tido como o mais fiel.
4,40: ; ;
As variantes que aparecem no aparato crtico esto relacionadas a ;
(= Sois covardes? Ainda no...).
1) ; (= Sois covardes assim? Como no...)
69
Este cdice contm o Antigo Testamento e grande parte do Novo Testamento. KRGER, Ren;
CROATTO, Jos Severino. Mtodos exegticos. Buenos Aires: Publicaciones EDUCAB/ISEDET, 1993,
p. 46. 70
Trata-se de um palimpsesto, cdice raspado e reescrito. O nome provm do telogo Efrn, o Srio.
Contm parte do Antigo Testamento e boa parte do Novo Testamento.
40
Documento Variaes no texto
A, C, 33, M, sy(p).h ;
A variante sustentada pelos manuscritos: Cdice Alexandrino (A), sc. V;
Cdice Efrn reescrito (C), sc. V; manuscrito minsculo 33, sc. IX; atestado pela
maioria dos textos e manuscritos (M), sc. IX; Cdice Siraco (syph)71, ano 507/508.
2) (= Sois covardes assim?)
Documento Variaes no texto
W ; ;
A variante presente no Cdice Washingtoniano (W), sc. V.
3) (= Assim sois covardes? Ainda no...)
Documento Variaes no texto
p45vid
, f1, f
13, 28, 565,
700, 892, 2542, pc e
outros.
Com alterao na ordem das palavras, a variante atestada pelos manuscritos
p45vid
, sc. III; minsculos das famlias f1, que contempla: 1, 118, 131, 209, 1582, sc.
XII e XV; f13
, com: 13, 69, 124, 174, 230, 346, 543, 788, 826, 828, 983, 1689, 1709,
sc. XI-XIII; manuscrito 28, sc. XI; 565, sc. IX; 700, sc. XI; 892, sc. IX; 2542, sc.
XIII e poucos manuscritos que divergem do texto majoritrio (pc).
4) (= Sois covardes? Ainda no...)
Documento Texto da edio crtica
,B, L, , ,565 ,579, 700, 892, 2427,
pc, lat, co.
O texto atestado por: Cdice Sinatico (), sc. IV; Cdice Vaticano, (B), sc.
IV; Cdice Regius (L), sc. VIII; Cdice Claromontanus (), sc. IX; Cdice Korideto 71
syph
= (Philoxeniana). Trata-se de uma primeira traduo siraca monofisita da Bblia pelo bispo
filosseno de Mabbug entre os anos 507/508. O texto foi perdido. Conservam-se alguns manuscritos das
epstolas catlicas: 2Pd; 2 e 3Jo; Jd.
41
(Q), sc. IX; minsculos: 565, sc. IX; 579, com pequenas divergncias, sc. XIII; 700,
sc. XI; 892, sc. IX; 2427, sc. XIV; poucos manuscritos que divergem do texto
majoritrio (pc); Vulgata e parte das verses do antigo latim (lat); manuscritos da
verso copta (cop).
Apreciao: verifica-se que, provavelmente, nas lies 1 e 2 trata-se de um erro
de escrita a alterao de para . A leitura de (= como no) parece ter
surgido de uma busca para amenizar o reproche de Jesus aos discpulos como tambm
(= assim).
As crticas externa e interna depem a favor da lio 4, pois a mesma
sustentada por manuscritos mais antigos e em maior nmero.
4.41:
;
1) (= a ele obedece)
Documento Variaes no texto
l, , C, , f1, f13, 28, 2542, pc e outros.
;
A variante sustentada pelos manuscritos: Cdice Sinatico (), sc. IV; Cdice
Efrn reescrito (C), sc. V; Cdice Claromontanus (), sc. IX; minsculos das
famlias: f1, com: 1, 118, 131, 209, 1582, sc. XII e XV; f
13, contempla: 13, 69, 124,
174, 230, 346, 543, 788, 826, 828, 983, 1689, 1709, sc. XI-XIII; manuscrito 28, sc.
XI; 2542, sc. XIII e poucos manuscritos que divergem do texto majoritrio (pc).
2) (= obedecem)
Documento Variaes no texto
D, ff2
42
Variante sustentada pelos manuscritos: Cdice de Bezae (D), sc. V; minsculos
da famlia ff2 (dos Evangelhos - sculo V).
3) (= obedecem a ele)
Documento Variaes no texto
A, W, (Q), 33, M
A variante sustentada por: Cdice Alexandrino (A), sc. V; Cdice
Washingtoniano (W), sc. V; Cdice Korideto (), sc. IX; minsculos 33; manuscritos
(M), sc. IX.
4) (= obedece a ele)
Documento Texto da edio crtica
B,C, L, 892, 2427 , /|;
O texto sustentado pelos manuscritos: Cdice Sinatico (), em segunda
correo, sc. VII; Cdice Vaticano, (B), sc. IV; Cdice Efrn reescrito (C), sc. V;
Cdice Regius (L), sc. VIII; manuscritos minsculos 892, 2427.
Pela crtica externa constata-se que as trs primeiras variantes aparecem em
manuscritos mais recentes, por isso, devem ser descartadas. E, aplicando o princpio de
lectio difficilior, o plural impessoal que aparece em substituio ao
singular , uma correo de algum redator para ajustar o texto forma
caracterstica de Marcos escrever72
.
As crticas interna e a externa depem a favor da lio 4, o texto da edio
crtica. Esta consta em manuscritos mais antigos.
72
SILVA, Cssio. Metodologia de... 2003, op.cit., p. 64.
43
2.2 Delimitao
Toda anlise comea com a identificao dos limites do texto: inicial e final. So
questes relacionadas com a delimitao. Um texto apresenta, em geral, uma unidade
lingustica, com sentido. Sendo unificado, tem sustentao prpria73
.
A delimitao da percope em questo (4,35-41) de fcil identificao. O
cenrio de viagem balizado pelos locais de partida e de destino. Esto presentes alguns
elementos que estruturam a narrativa:
Os discpulos e Jesus no barco. Jesus dorme;
A tempestade surge;
Os discpulos ficam com medo;
Os discpulos buscam acordar Jesus;
Jesus repreende a tempestade;
Jesus repreende os discpulos.
Note-se que 4,34 encerra a seo das parbolas sendo empregado, neste, o estilo
de discurso.
Em 4,35 aparece novo incio assinalado, com mudana de estilo, tornando-se,
agora, uma narrativa com:
Dupla indicao temporal:
(= naquele dia);
(= quando se fez tarde).
Mudana espacial na qual aparece a nova ao de Jesus com sua palavra
imperativa:
(= atravessemos para a outra margem). Isto
permite delinear o incio da percope no (4,35).
Enquanto 4,41 encerra a percope com dois elementos tpicos de relatos de
milagre:
Medo dos discpulos: (= e ficaram com grande
medo);
73
WEREN, Wim. Mtodos de Exgesis de los Evangelios. Estella: Verbo Divino, 2003, p. 29.
44
O questionamento dos discpulos:
; (= Quem este, afinal, pois at o vento e o mar
obedecem a ele?). De fato, Jesus revela ter poder sobre as foras caticas da
natureza e isso provoca muito medo nos assistentes74
.
No captulo cinco, ao concluir a travessia, surge um novo espao, a regio dos
gerasenos (5,1) como tambm novo personagem: um homem possudo por um esprito
impuro (5,2). Isso corrobora na delimitao da percope Mc 4,35-41.
2.3 Segmentao, traduo e comparao entre as tradues
Segmentar quer dizer decompor o texto a fim de avaliar os elementos que o
estruturam. Permite adentrar no contedo do narrado para esquadrinhar suas ideias
principais e alcanar, assim, seu melhor sentido.
Uma vez realizada a aproximao ao texto, segue-se o ato tradutrio. Alguns
elementos estruturam uma traduo: o tradutor tem como objetivo primeiro o reproduzir
a mensagem em vernculo, ou seja, na lngua do leitor-receptor. Preocupa-se que aquilo
que reproduzido seja mais no nvel da equivalncia ad sensu (= pelo sentido) que no
nvel da identidade original ad uerbum (palavra-a-palavra). Contrariamente, a
(= Eusebius Sophronius Hieronymus), que defendia
que traduzia Marcus Tullius Cicero, ad sensu devido a um dos preceitos levantado por
[prprio] Cicero o do intrprete: verbum pro verbo, mantendo-as adnumerare
(numericamente equivalentes), na obra cicereana Libellus de optimo genere oratorum,
de 46 a.C. De tal modo, Hieronymus, traduzia a Escritura uerbum pro uerbo afirmando
que as palavras encerravam mistrio em si75
. Assim, temos que a equivalncia est
atrelada ao texto originrio. Neste sentido, o significado do texto tem primazia em
74
CORREIA JUNIOR, Joo Luiz. O poder de Deus em Jesus: um estudo de duas narrativas de milagres
em Mc 5,21-43. So Paulo: Paulinas, 2000, p. 43. 75
PARAIZO Jr., Elias. O Mistrio Apcrifo de Acta Johannis: conceitos literrio-operatrios,
reorganizao das memrias, aparato crtico e traduo comentada. [Tese de Ps-doutoramento;
Cincias da Religio; subreas: grego, latim e siraco]. Goinia: Pontifcia Universidade Catlica de
Gois, 2015, p. 36-37.
45
relao ao estilo76
. Hodiernamente, a prxis tradutolgica tem-se centrado na Teoria da
Pragmtica77
, de maneira especial, nas teorias de Ernst-August Gutt78
.
O tradutor, obedecendo ao princpio da correspondncia formal, reescreve o
texto observando as caractersticas originais de estilo, mtrica e gramtica. Neste caso, a
forma constitui o primeiro componente de traduo79
.
A tarefa tradutria transpor, transformar. Um texto traduzvel rene, em si,
lngua e revelao, literalidade e liberdade80.
Passando percope, esta fica assim segmentada:
35 a) E diz a eles,
b) naquele dia,
c)