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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA DANÇA: MODOS DE ESTAR PRINCÍPIOS ORGANIZATIVOS EM DANÇA CONTEMPORÂNEA Thembi Rosa Leste Salvador 2010

Mestrado Thembi Rosa

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RESUMOEsta pesquisa tem como tema de investigação a composição coreográfica em dança. Especificamente, busca aquilo que discerne a dança coreografada, arquitetada na lógica dos encadeamentos dos passos de dança e movimentos determinados previamente, daquela configurada por princípios organizativos. A proposição dessa distinção emergiu dos estudos das práticas de coreógrafos que trabalham a partir de princípios organizativos. Nestes modos compositivos, os coreógrafos, em vez de lidarem com a composição através do encadeamento de passos regrados e com todos os fatores de movimentos determinados, eles se preocupam com a delimitação de parâmetros que continuamente irão desencadear padrões de movimentos instanciados em cada trabalho. Essa especificidade parece ser uma das condições proeminentes para a instauração da dança contemporânea. Os trabalhos de coreógrafos e dançarinos da dança pós-moderna americana, produzida nas décadas de 60 e 70, inauguraram estes novos pressupostos para entendimentos em dança. As produções bibliográficas desse período e das décadas seguintes, bem como os modos de composição coreográfica reconhecidos atualmente, indicam esse modo de se estar na dança.A lógica compositiva em dança contemporânea coaduna com novas teorias e questionamentos sobre corpo, cognição e linguagem que vem se estabelecendo em pesquisas trans disciplinares. Neste viés, pressupostos da Biologia do Conhecer , formulada pelos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, foram inter-relacionados ao domínio da dança, em especial, a hipótese daorganização autopoiética dos seres vivos, a noção deorganização eestrutura e o entrelaçamento entre linguagem, cognição e emoção. Afinada com essa linha de pesquisa, a Teoria Corpomídia, proposta pelas autoras Helena Katz e Christine Greinner, tem sido responsável pela instauração de um campo de estudos teóricos da dança no Brasil. O foco de investigação dessa dissertação, a especificidade de se olhar para a composição coreográfica, adramaturgia do movimento, e o entendimento da dança pelas suas contínuas relações são, em boa parte, ressonância desses encontros. Além disso, aTeoria Cognitiva da Metáfora, um dos referenciais teóricos de pesquisas em dança no Brasil, é aqui suscitada por instanciar as discussões dos modelos conceituais sobre linguagem, podendo, assim, perturbar mitos remanescentes na área da dança. O entendimento da metáfora como constituída pelas nossas relações corporais imbricadas aos processos cognitivos e o questionamento das noções de representação, da existência de uma linguagem independente das nossas ações cotidianas, incitam a proposição de instrumentos de análise para pesquisas futuras que possam estar alinhados àquelas produzidas nessa área da lingüística cognitiva. A partir dessas abordagens teóricas, o propósito foi dinamizar ainda mais os fluxos entre teoria e prática, burilar as noções sobre corpo, cognição e linguagem e reconhecer a importância das nossas conversações para tudo aquilo que fazemos, inclusive, dançar.

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE DANA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DANA

    DANA: MODOS DE ESTAR

    PRINCPIOS ORGANIZATIVOS EM DANA CONTEMPORNEA

    Thembi Rosa Leste

    Salvador 2010

  • Thembi Rosa Leste

    DANA: MODOS DE ESTAR

    PRINCPIOS ORGANIZATIVOS EM DANA CONTEMPORNEA

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Dana, Faculdade de Dana, Universidade Federal da Bahia como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Dana. Orientadora: Profa. Dra. Fabiana Dultra Britto Co-orientadora: Profa. Dra. Cristina Magro

    Salvador

    2010

  • Thembi Rosa Leste

    DANA: MODOS DE ESTAR

    PRINCPIOS ORGANIZATIVOS EM DANA CONTEMPORNEA

    Dissertao de mestrado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Dana, Faculdade de Dana, Universidade Federal da Bahia como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Dana.

    ________________________________________________ Profa. Dra. Fabiana Dultra Britto (Orientadora) UFBA

    ________________________________________________ Profa. Dra. Cristina Magro (Co-orientadora) UFMG

    ________________________________________________ Profa. Dra. Maria Helena Franco de Arajo Bastos

    ________________________________________________ Profa. Dra. Lenira Peral Rengel

    Salvador, 03 de Maro de 2010

  • AGRADECIMENTOS

    Aos meus queridos e amados: Tomezinho e Canarinho. Pela fora de sempre da minha me: Nely Rosa. Por conviver com grandes amigas: Marg; Chris; Eva; L; Lcia; Renata; Dora; Papoula; Mnica; Pela ajuda super especializada da minha me acadmica: Cristina Magro. Fabiana Britto: por orientar essa pesquisa e instigar outras tantas; Lenira Rengel e Helena Bastos pela delicadeza e sugestes na qualificao. Ao FID, Adriana Banana e Helena Katz. FAPESB pelo suporte financeiro para realizar essa pesquisa. Ao carinho: da Dulce Aquino, dos professores com os quais estudei nas disciplinas do Mestrado na Escola de Dana da UFBA e dos danarinos do Grupo de Dana Contempornea, GDC. Aos colegas de mestrado, em especial, Sandrinha e Eline. Aos bons encontros que durante essa temporada de mestranda colaboraram enormemente para essa pesquisa: Oficina Material para Coluna com Steve Paxton no Estdio Nova Dana em SP (2007). Multipla Dana em Florianpolis (2007); Bienal de Dana do Cera (2007); Festival Internacional de Danca de Recife (2008); ENARTCI (2008). Temporada SESC- Paulista (2007; 2008); Temporada SESC-Consolao (2009) Encontro Internacional de Coregrafos em Pirenpolis (2009): Giovane Aguiar; Dudude Herrmann; Tica Lemos; Marta Soares; Marg Assis; Paola Rettore; Luciana Lara; Luis Garay; Luiz Carlos Garrocho; Wenderson Godoy; Valria Lehmann; Sylvia Fernandes; Susana Saru. Residncia Yvonne Rainer (2009) SP Oficina Angel Vianna FUNARTE (2009) BH FID - ZAT 6 (2009) BH: Emmanuelle Huynh; Fanny de Chaille; Kerem Gelebek; Gustavo Schettino; Cristian Duarte; Thelma Bonavita; Ana Lana; Ester Frana; Gabriela Christfaro; Sandro Amaral; Raul Corra; Lvia Rangel; Marg Assis; Violeta Penna Ao Grupo de Pesquisadores do Programa Rumos Dana Ita Cultural e a orientao de Christine Greinner. Ao Rodrigo Pederneiras; Alejandro Ahmed; Paula Canado; Jacqueline Gimenes; O Grivo; Rivane; Bellini; Cao; Beatriz; Tonha; Biel; AP; Cladia; Magda; plat produes ... Aos amigos de sempre.

  • H um primeiro passo sine qua non: Dedicao. Isto o que

    significa a tcnica da dana. Digamos, disciplina ou auto-renncia.

    H lies que a gente recebe no para rejeit-las, mas para utiliz-

    las a fim de introduzir uma ao anrquica.

    John Cage, 1985.

    Os amigos no condividem algo (um nascimento, uma lei, um lugar,

    um gosto): eles so com-divididos pela experincia da amizade. A

    amizade a condiviso que precede toda diviso, porque aquilo que

    h para repartir o prprio fato de existir, a prpria vida. essa

    partilha sem objeto, esse com-sentir originrio que constitui a

    poltica.

    Giorgio Agamben, 2008.

  • RESUMO

    Esta pesquisa tem como tema de investigao a composio coreogrfica em dana.

    Especificamente, busca aquilo que discerne a dana coreografada, arquitetada na lgica dos

    encadeamentos dos passos de dana e movimentos determinados previamente, daquela

    configurada por princpios organizativos.

    A proposio dessa distino emergiu dos estudos das prticas de coregrafos que trabalham a

    partir de princpios organizativos. Nestes modos compositivos, os coregrafos, em vez de

    lidarem com a composio atravs do encadeamento de passos regrados e com todos os

    fatores de movimentos determinados, eles se preocupam com a delimitao de parmetros que

    continuamente iro desencadear padres de movimentos instanciados em cada trabalho. Essa

    especificidade parece ser uma das condies proeminentes para a instaurao da dana

    contempornea. Os trabalhos de coregrafos e danarinos da dana ps-moderna americana,

    produzida nas dcadas de 60 e 70, inauguraram estes novos pressupostos para entendimentos

    em dana. As produes bibliogrficas desse perodo e das dcadas seguintes, bem como os

    modos de composio coreogrfica reconhecidos atualmente, indicam esse modo de se estar

    na dana.

    A lgica compositiva em dana contempornea coaduna com novas teorias e questionamentos

    sobre corpo, cognio e linguagem que vem se estabelecendo em pesquisas trans

    disciplinares. Neste vis, pressupostos da Biologia do Conhecer, formulada pelos cientistas

    chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, foram inter-relacionados ao domnio da

    dana, em especial, a hiptese da organizao autopoitica dos seres vivos, a noo de

    organizao e estrutura e o entrelaamento entre linguagem, cognio e emoo. Afinada

    com essa linha de pesquisa, a Teoria Corpomdia, proposta pelas autoras Helena Katz e

    Christine Greinner, tem sido responsvel pela instaurao de um campo de estudos tericos da

    dana no Brasil. O foco de investigao dessa dissertao, a especificidade de se olhar para a

    composio coreogrfica, a dramaturgia do movimento, e o entendimento da dana pelas suas

    contnuas relaes so, em boa parte, ressonncia desses encontros.

    Alm disso, a Teoria Cognitiva da Metfora, um dos referenciais tericos de pesquisas em

    dana no Brasil, aqui suscitada por instanciar as discusses dos modelos conceituais sobre

    linguagem, podendo, assim, perturbar mitos remanescentes na rea da dana. O entendimento

    da metfora como constituda pelas nossas relaes corporais imbricadas aos processos

  • cognitivos e o questionamento das noes de representao, da existncia de uma linguagem

    independente das nossas aes cotidianas, incitam a proposio de instrumentos de anlise

    para pesquisas futuras que possam estar alinhados quelas produzidas nessa rea da

    lingstica cognitiva.

    A partir dessas abordagens tericas, o propsito foi dinamizar ainda mais os fluxos entre

    teoria e prtica, burilar as noes sobre corpo, cognio e linguagem e reconhecer a

    importncia das nossas conversaes para tudo aquilo que fazemos, inclusive, danar.

    Palavras chaves: dana contempornea; coreografia; cognio; autopoiese

  • ABSTRACT

    This research aims at investigating the choreographic composition in dance. In specific terms,

    it focuses on what distinguishes the choreographic dance architected through a logical

    chaining of dance steps and previously determined movements from the one configured by

    principles of organization.

    The proposition of such a distinction has emerged from the studies of choreographic practices

    based on principles of organization. Instead of dealing with composing through ruled steps

    and factors of determined movements, the choreographers work is concerned with the

    delimitation of parameters that will continuously trigger movement patterns configured in

    each work. This specificity seems to be one of the most prominent features for the

    instauration of contemporary dance. The works of choreographers and performers of post-

    modern American dance, produced in the sixties and seventies, inaugurated these new

    presumptions for understood dance. The bibliographical production starting from these

    periods to nowadays acknowledged ways of choreographic composition indicate this way of

    being in the dance.

    The logic of contemporary dance composition is linked to new theories and inquiries related

    to the body, cognition and language which have been paving their way in trans disciplinary

    research. Within such bias, concepts from the Biology of Cognition, proposed by the Chilean

    scientists Humberto Maturana and Francisco Varela, have been interrelated to the dance

    domain, namely, the hypotheses of autopoietic system, the notions of organization and

    structure and the correlations between language, cognition and emotion. Another explanatory

    field, the Corpomdia Theory, proposed by Helena Katz and Christine Greinner, has also been

    a reference to the instauration of theoretical studies on dance in Brazil. The focus of this

    research - the specificity to look at choreographic composition, the movement dramaturgy,

    and the understanding of dance related to the conditions of relationships- reflect, in great part,

    the concepts originated from that field. Furthermore, the Cognitive Theory of Metaphor, one

    of the theories applied to the Brazilian dance research, is presented here to instantiate

    discussions related to the conceptual models about language which can disturb reminiscent

    myths from dance field. Understanding metaphor as being constituted by our body

    relationships and our cognitive process, and questioning the notion of representation, the

    existence of a language independent from our daily actions have enabled us to propose

  • instruments of analysis for future research aligned with that one produced in cognitive

    linguistics.

    Supported by these theoretical approaches, the purpose of this study is to make the flows

    between practical and theoretical studies on dance more dynamic, to refine the notions about

    body, cognition and language, and finally, to recognize the importance of our conversations

    for everything we do, including dancing.

    Key-words: contemporary dance; choreography; cognition; autopoiesis

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ................................................................................................................................... 12

    1.1 O CONTEXTO DA PERGUNTA ............................................................................................................................... 12

    1.2 OBJETIFICANDO O OBJETO ................................................................................................................................. 15

    1.3 A ESTRUTURA DA DISSERTAO ......................................................................................................................... 18

    2 MODOS COMPOSITIVOS: DOS PASSOS REGRADOS S IMPREVISIBILIDADES

    COREOGRFICAS ............................................................................................................................... 20

    2.1 PRINCPIOS ORGANIZATIVOS .............................................................................................................................. 20

    2.2 COREOGRAFIA... IMPROVISAO... ..................................................................................................................... 23

    2.3 PASSOS DE DANA... PRINCPIOS ORGANIZATIVOS .................................................................................................. 29

    2.4 PASSOS DE DANA E VOCABULRIO ..................................................................................................................... 34

    3 DANA COMO MODOS DE ORGANIZAO ................................................................................. 37

    3.1 DANA CONTEMPORNEA COMO ORGANIZAO E NO COMO LISTA DE PROPRIEDADES................................................. 37

    3.2 ORGANIZAO E ESTRUTURA ............................................................................................................................. 43

    3.3 DANAR COMO UM FLUIR DE COORDENAES DE COORDENAES DE AES (LINGUAJAR) ............................................. 47

    4 EXPERINCIAS COREOGRFICAS ................................................................................................ 53

    4.1 SITUANDO O CONFLUIR COMO UMA EXPERINCIA DE LINGUAJAR ............................................................................... 53

    4.2 NOES DE PRINCPIOS ORGANIZATIVOS NA DANA PS-MODERNA AMERICANA

    YVONNE RAINER JUDSON DANCE THEATRE MERCE CUNNINGHAM CONTATO IMPROVISAO .............................................. 58

    5 TEORIA COGNITIVA DA METFORA ............................................................................................. 72

    5.1 METFORAS CONSTITUTIVAS PARA DRAMATURGIAS DE MOVIMENTO ......................................................................... 72

    6 ONTOLOGIAS TRANSCENDENTES E ONTOLOGIAS CONSTITUTIVAS ..................................... 79

    7 CONCLUSES .................................................................................................................................. 82

    REFERNCIAS ..................................................................................................................................... 84

  • 12

    1 INTRODUO

    1.1 O contexto da pergunta

    As diferenas entre os passos de dana e os princpios organizativos, termos

    utilizados em processos de criao em dana contempornea como sendo inequvocos e

    distintos, merecem reflexo e descrio adequadas. Afinal, essas referncias so constitutivas

    dos modos compositivos envolvidos na organizao dos processos produtivos e das

    configuraes coreogrficas.

    Essa afirmao faz eco aos esforos reflexivos que rompem barreiras entre reas, e que

    hoje so correntes no contexto dos estudos de dana. Ela reala a importncia da postura

    reflexiva na dana, para benefcio mesmo da relao produtiva entre teoria e prtica, e aponta,

    de incio, o principal lugar de contribuio deste estudo. Mesmo frequentes, se comparado a

    outras reas de conhecimento, ainda so recentes e dispersos o levantamento, a identificao

    das terminologias recorrentes nas prticas artsticas e acadmicas e a reflexo sobre elas. Os

    estudos costumam ser isolados e nem sempre conseguem manter a regularidade e

    sistematizao necessrias para que as ideias decorrentes possam ser difundidas e possam

    produzir outras discusses nesta rea. Desse modo, a inteno aqui levantar, identificar e

    exercitar descries sobre composio coreogrfica, participando de um mbito de

    conversaes relevantes para a rea, e com isto, se possvel, contribuir para que ela se torne

    ainda mais dinmica.

    Todo passo, para ser um passo de dana, emerge a partir de um princpio de

    organizao de movimento? Se isto assim, quando um princpio de organizao de

    movimento se transforma em um passo de dana? Afinal, qual a distino entre os

    procedimentos nomeados por estes dois termos? possvel delimit-los de modo inequvoco?

    So suficientes listas de propriedades de um e de outro para apreender sua especificidade?

    Quando saberemos que essas listagens estaro completas? Podem ser considerados como

    sendo dois modos de organizao distintos no sistema dana? Seria o princpio organizativo

    uma pista potente para distinguirmos a dana contempornea da dana regida por sistemas

    programticos? Na dana clssica e moderna, a composio constituda por contedos

  • 13

    programticos. As relaes entre os elementos de composio, ou seja, os movimentos, a

    msica, o cenrio, o figurino, dentre outros, so estabelecidos previamente, ou seja, estas

    relaes foram estabilizadas e com isso antecedem os processos de criao como se fossem

    necessrios para que a dana pudesse acontecer. Com os princpios organizativos, levanta-se

    aqui a possibilidade de se dizer que, na dana contempornea, as relaes entre os seus

    diversos elementos vo se estabelecendo no prprio processo de criao, segundo princpios

    organizativos, e no a priori.

    Essas so as questes centrais da pesquisa que fundamenta esta dissertao. O objetivo

    da reflexo no estabelecer categorias rgidas e impermeveis, mas buscar distines

    relevantes e produtivas que possam alimentar os diferentes processos de criao em dana, e

    colaborar para o modo atual de se fazer descries da dana contempornea brasileira.

    Apesar de relacionar muitas dessas questes dana ps-moderna americana, esta

    discusso se refere prioritariamente a trabalhos coreogrficos realizados no Brasil, e isto

    decorre de duas questes de igual relevncia. Uma delas de ordem epistemolgica: grande

    parte dos subsdios de observao e experimentao desta pesquisa vem da minha prpria

    experincia de ter feito uma poro substancial da minha formao em nosso pas, de ter

    trabalhado com coregrafos distintos, e de, tanto como danarina quanto como criadora, ter

    experimentado diferentes modos de composio, da coreografia pr-determinada s estruturas

    de improvisao. A outra questo, mais abrangente no contexto em que este trabalho se

    insere, a necessidade de cada vez mais relacionarmos nossas produes artsticas e

    acadmicas no Brasil. Trata-se de buscar um vocabulrio adequado e consensual para faz-lo,

    de trazer essas questes conscincia, de alimentar as discusses internas, e colaborar para o

    refinamento do modo de falar sobre o que fazemos, e ao mesmo tempo prepararmos terreno

    para as conversaes com a dana feita em outros pases, com seus criadores e danarinos.

    Ainda hoje persistem nos estudos da dana mitos a partir dos quais se especifica o que

    seja ou no dana, o que pode ou no acontecer em um evento chamado dana. Estes servem

    apenas para valorizar o que histrica e classicamente se tem feito nesta rea, e desqualificar

    produes que no atendam a uma lista de pr-requisitos previstos em sua arquitetura.

    Quando me refiro a mitos, estou considerando a definio de Magro (1999, p. 29):

  • 14

    estruturas narrativas persistentes e difusas, difceis de serem questionadas em todas as suas implicaes, que no podemos demonstrar como sendo falsas, uma vez que no so fundadas em proposies demonstrveis, mas que podemos argumentar serem desnecessrias, prejudiciais ou obscurecedoras daquilo que se pretende entender. 1

    Em alguns dos mitos cultivados em nossa rea ignora-se, por exemplo, a variabilidade

    de estruturas coreogrficas decorrentes de modos de organizao que no esto baseados em

    um encadeamento particular de passos de dana, ou de um proverbial danar conforme a

    msica. Nessas, a pausa, a imobilidade poder estar relacionada aos princpios organizativos

    da composio coreogrfica e nem por isso deixar de ser considerada dana. Muitas vezes,

    esse tipo de dramaturgia gera uma configurao que questiona determinismos sedimentados,

    provocando estranheza para os olhos das pessoas desacostumados a esse tipo de estrutura.

    No que tange discusso sobre passos de dana e princpios organizativos, tema

    problematizado nesse trabalho, possvel situar e dimensionar a questo no cenrio atual da

    dana. So diversas obras coreogrficas que colocam em discusso a noo de dana como

    sendo um fluxo contnuo de movimentos. Segundo Lepecki (2006) 2 a noo ontolgica da

    dana como sendo imbricada e isomrfica ao movimento que faz com que muitas danas

    distanciadas dessa noo sejam acusadas de traio. Com esta premissa embasada por uma

    filosofia que entende o corpo no como um container, uma entidade fechada, mas sim, um

    sistema dinmico, Lepecki analisa o trabalho de coregrafos europeus e americanos, dentre

    eles: Xavier Le Roy, Jerome Bel, Juan Domingues, Vera Mantero, La Ribot, Trisha Brown e

    os artistas visuais, Bruce Nauman e William Pope.

    Quando uma configurao em dana desconsiderada por no seguir essa noo

    ontolgica da dana como isomrfica ao movimento, a vontade de uma verdade consensual

    universalmente vlida que prevalece, enquanto epistemologia de fundo na rea. Todavia,

    prescindir de encadeamentos de passos de dana ou deixar de estabelecer critrios de anlise

    para se relacionar com estes estacionar-se em uma oposio que desconsidera a diversidade

    das possveis estruturas em dana contempornea. Portanto, apegar-se a um ou outro

    paradigma sem refletir, e manter separados os dualismos que advogam por uma dana

    racional/ conceitual/ abstrata versus uma dana emocional/ figurativa / expressiva, redunda

    1 MAGRO, Cristina. Linguajando o linguajar da Biologia a Linguagem. Tese (Doutorado em Lingustica). 287 f. 1999. Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 1999.

    2 LEPECKI, Andr. Exhausting Dance. Performance and the politics of movement. New York: Routledge, 2006.

  • 15

    apenas em rtulos que no abarcam a complexidade que envolve o fazer dana. Indo alm, e

    retomando a temtica das discusses que se tem produzido na rea, preciso dizer que aquilo

    que hoje se aceita sobre cognio fica tambm reduzido e simplificado desse modo.

    Muitas vezes esses conflitos conceituais no so sequer reconhecidos, pois tampouco

    se faz ateno para distines que podem se mostrar relevantes e construtivas. Com isso, ao

    invs das diferenas colaborarem para ampliar as conversas na rea, elas acabam por impedir

    o prosseguimento daquilo que fazemos como humanos, ou seja, a conservao de um modo

    particular de viver e o entrelaamento do emocional e do racional, que aparece expresso em

    nossa habilidade de resolver nossas diferenas emocionais e racionais conversando.3

    O cientista chileno Humberto Maturana (1997) considera central, para a compreenso

    do humano, entender a participao da linguagem e das emoes no que, na vida cotidiana,

    conotamos com a palavra conversar. Ele explica que a palavra conversar vem da unio de

    duas razes latinas: cum, que quer dizer com, e versare que quer dizer dar voltas com o

    outro. Este artigo se refere ao que ocorre no dar voltas juntos dos que conversam, e o que

    acontece a, com as emoes, linguagem e a razo.

    Ao darmos voltas juntos nesse conversar sobre composio coreogrfica, sobre dana,

    estamos nos referindo aos passos de dana e aos princpios organizativos, mas tambm s

    emoes, linguagem e razo, que esto envolvidas neste fazer. E ao darmos voltas com a

    Biologia do Conhecer, poderemos explicitar melhor esses fenmenos, tendo em vista nossas

    experincias que so sempre relativas s voltas que damos com os outros.

    1.2 Objetificando o objeto

    A produo terica em dana no Brasil ainda descompassada em relao

    diversidade da produo artstica, so poucas as reflexes que colaboram para sistematizar os

    modos compositivos em dana brasileira. E estes merecem serem vistos luz de teorias que

    3 MATURANA, Humberto. Ontologia do Conversar. In: Ontologia da Realidade. MAGRO, Cristina, VAZ,

    Nelson (Org.) Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1997. (p.166-180)

  • 16

    explicitem as noes de corporalidade, cognio, linguagem, de uma ontologia capaz de

    especificar os seres vivos em interao com os outros e com o meio. Nesta direo, diversas

    pesquisas em dana tm se afinado com um amplo campo de saber que inclui a filosofia,

    biologia, antropologia, neurocincias, lingstica, astrofsica, dentre outras. Desses

    entrelaamentos foi proposta a Teoria Corpomdia4 juntamente a todo um campo de estudos

    tericos em dana que vem se estabelecendo no Brasil.

    Nesta pesquisa ser principalmente com a noo de organizao e estrutura formulada

    pela Biologia do Conhecer que iremos nos perguntar se possvel entender a dana

    contempornea no que tange a sua organizao e no apenas no agrupamento dos seus

    elementos constitutivos. Pois o modo pelo qual a dana contempornea tende a ser definida,

    atravs de uma lista de itens que devem ser cumpridos, tais como, fragmentao,

    interdependncia, relaes no hierarquizadas, desvinculo de narrativas, abolio de corpos

    idealizados, dentre outros, no consegue abarcar o seu modo de funcionamento, as relaes

    que continuamente se estabelecem, e estas sim, so responsveis por especificar quilo que

    garante a autonomia do sistema. Seguir essa lista ou qualquer outra de itens estabelecer

    rtulos, programas pr-determinados e limitar o que de mais instigante foi proposto por

    coregrafos de dana contempornea - o reconhecimento em cada configurao de dana

    contempornea dos princpios organizativos que a esto gerando.

    Distinguir a dana contempornea no como uma lista de componentes, mas pelo seu

    modo de se articular, de ser um pensamento do corpo, uma das premissas de Helena Katz5

    desenvolvido em sua tese de doutorado em Comunicao e Semitica pela PUC-SP em 1994.

    De l para c, diversas pesquisas em dana tem sido produzidas com o pressuposto de que a

    dana se mostra como um campo privilegiado para se estudar os fenmenos da comunicao,

    cognio e evoluo. Neste contexto, a Biologia do Conhecer possibilita um rigor para a

    explicao dos seres vivos, logo do ser vivo que dana, conhece e est inserido em tudo

    aquilo que observa e descreve.

    4 GREINER, Christine; KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomdia. In: O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. So Paulo: Anablume, 2005. 5 KATZ, Helena. Um, dois, trs. A dana o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005.

  • 17

    Embora nesta pesquisa o enfoque principal no seja a anlise de obras coreogrficas,

    temos o intuito de colaborar para a gerao de mecanismos explicativos que possam facilitar o

    relacionamento com a diversidade dos modos compositivos em dana contempornea. Estes

    esto alinhados com as abordagens de coregrafos e danarinos que iniciaram suas pesquisas

    em dana nas dcadas de 60 e 70. A relevante bibliografia produzida sobre o assunto naquele

    perodo e nos dias de hoje, abordam os dados contextuais e os parmetros compositivos nos

    quais tais prticas artsticas foram urdidas. As partituras (scores), os dispositivos

    coreogrficos, as tarefas, o corpo pedestre, o Contato Improvisao, a tcnica de Cunningham,

    e outros, foram procedimentos que romperam com a lgica compositiva estabelecida pelo

    encadeamento de passos de dana e movimentos memorizados previamente. E ao romperem

    com esse parmetro, to sedimentado, na histria da dana, inauguraram questionamentos

    sobre quais seriam ento as propriedades capazes de fazer com que as configuraes

    propostas fossem reconhecidas como dana. Reconhecer as singularidades desses modos

    compositivos e ao mesmo tempo experimentar uma abordagem terica congruente a esses

    procedimentos poder fertilizar as interrelaes entre prtica e teoria em dana.

    Sendo assim, nessa pesquisa trataremos de:

    Identificar parmetros para se relacionar com a composio coreogrfica em

    configuraes de dana contempornea;

    Explicitar a distino entre dois modos compositivos em dana, a dana coreografada

    e a dana que se estabelece por princpios organizativos;

    Adotar as noes de organizao e estrutura, tal como proposta pela Biologia do

    Conhecer. E com este procedimento abordar a organizao da dana contempornea

    em substituio s tradicionais listas de componentes que buscam classificar a dana e

    que, dificilmente, ficam completas de modo a abarcar a diversidade desse sistema.

    Entender a dana como um sistema dinmico no qual as relaes que se estabelecem

    so aquelas que podem especific-la e garantir sua autonomia;

    Demonstrar que a dana tambm se insere em um fluir entrelaado entre emoo e

    linguagem que se estabelece ao longo de uma histria recursiva de interaes entre

    seus participantes em um meio;

    Explicitar os princpios organizativos como um modo peculiar de composio em

    dana contempornea reunindo uma srie de procedimentos coreogrficos dentre

  • 18

    aqueles que emergem de uma prtica e no de programas definidos e de junes de

    passos de dana determinados previamente. Tais modos so caractersticos das

    estratgias compositivas articuladas em tarefas, partituras coreogrficas (scores),

    regras ou dispositivos coreogrficos, Contato Improvisao e dos mtodos

    coreogrficos de Merce Cunningham.

    1.3 A estrutura da dissertao

    Esta dissertao composta por sete partes, incluindo a Introduo e a Concluso. Na

    Introduo apresentada a questo dessa pesquisa que se refere aos modos de composio

    coreogrfica em dana contempornea, ao contexto que essa pergunta participa e a introduo

    aos referenciais tericos.

    No segundo captulo, a composio coreogrfica especificada com a proposta dos

    princpios organizativos, tema a ser tratado ao longo da dissertao.

    No terceiro captulo, a noo de organizao e estrutura, tal como proposta na

    Biologia do Conhecer, apresentada como uma opo de distinguirmos os modos de

    composio em dana contempornea em termos de sua organizao, das relaes entre seus

    elementos. Tambm a noo do linguajar, ser trazida neste captulo por ser norteadora da

    importncia do papel do observador em tudo quilo que faz e distingue, estando imbricado

    nas suas histrias recursivas de interaes entrelaadas entre linguagem, emoo e cognio.

    No quarto captulo, as experincias coreogrficas so situadas visando demonstrar

    exemplos que corroboram com a noo da distino entre os modos compositivos em dana

    contempornea. A primeira delas se refere ao solo Confluir, experincia coreogrfica da qual

    participei em que a distino entre a composio regida por passos de dana e por princpios

    organizativos se instaurou como um problema relevante a ser pesquisado. Em seguida, so

    demonstrados exemplos compositivos de coregrafos da dana ps-moderna americana que

    explodiram as fronteiras entre as reas artsticas e propuseram questionamentos referentes a

    isomorfia entre dana e encadeamentos de passos de dana. Nesta poca foram inaugurados

    novos modos compositivos em dana especialmente atrelados aos processos de criao e, a

  • 19

    partir dessas experimentaes instauram-se as noes de princpios organizativos. Uma

    organizao peculiar em dana contempornea que a distingue dos modos compositivos

    embasados em programas apriorsticos.

    No quinto captulo, a Teoria Cognitiva da Metfora trazida baila como uma

    maneira de abordar o problema dos modelos conceituais sobre linguagem. Visto que estes se

    espraiam nas conversaes, modelos de comunicao e explicaes que ainda imperam em

    muitos domnios da dana. A noo da metfora como constituda pelas nossas experincias

    corporais, bem como, seus modelos de anlise tem se mostrado um vasto campo de pesquisa.

    Quando relacionadas ao domnio da dana, facilita o reconhecimento das metforas que do

    continuidade a mitos remanescentes nessa rea.

    No sexto captulo, a explicao do Domnio das Ontologias Constitutivas proposta por

    Humberto Maturana demonstra como essa proposio se diferencia da noo predominante da

    cincia baseada no Domnio das Ontolologias Transcendentes. Para entender dana

    contempornea, nos termos em que vem sendo proposta por uma viso sistmica, como um

    sistema dinmico em acoplamento estrutural com o meio e com os outros, o entendimento do

    Domnio das Ontologias Constitutivas uma condio. Refletir sobre o Diagrama Ontolgico

    facilita reconhecer e substituir a hegemonia de uma realidade de dana pelos multiversos em

    que se baseiam as danas contemporneas. Isto implica em assumir uma disponibilidade para

    lidar com o reconhecimento dos princpios organizativos envolvidos no fazer dana

    contempornea, abdicando assim da expectativa de uma nica noo de dana como vlida.

    A Concluso se insere em uma continuidade do Diagrama das Ontologias

    Constitutivas, pois nele o modelo de conhecimento est atrelado importncia de se fazer

    perguntas, ao papel do observador naquilo que observa e descreve e a existncia dos diversos

    domnios de realidades.

  • 20

    2 MODOS COMPOSITIVOS: DOS PASSOS REGRADOS S

    IMPREVISIBILIDADES COREOGRFICAS

    2.1 Princpios organizativos

    A expresso princpios organizativos refere-se s relaes entre elementos

    distinguveis na composio em dana, que emergem a partir dos processos de criao que so

    feitos sem lanar mo de conjuntos programticos previamente definidos. Nosso interesse est

    em contribuir para a discusso sobre as caractersticas da dana contempornea, que tem

    desafiado a rea. A pesquisadora e orientadora dessa pesquisa. Fabiana Britto (2008, p. 15)6

    esclarece que:

    No estando, como esteve o bal, comprometida com um conjunto fixo de passos conjugados segundo um padro estvel de dominncia associativa; nem sendo, como foi a dana moderna, um campo de referenciao metafrica, a dana contempornea expressa uma lgica relacional no hierrquica entre corpo e mundo.

    Trs observaes importantes esto presentes nessa afirmao. Em primeiro lugar, ela

    aponta que a dana contempornea dispensa o conjunto fixo de passos; em segundo, afasta o

    compromisso do sentido que emana da dana; por ltimo, prope que uma lgica alternativa

    seja adotada para se pensar a dana contempornea, no hierrquica. No caso da composio

    da dana contempornea, adotando-se reflexes originrias do pensamento sistmico atual,

    entende-se que a estrutura no prvia aos processos de criao e que isto sequer necessrio

    para que a dana ocorra. Os princpios organizativos e eventuais partituras so compreendidos

    como resultados e no o pr-requisito da observao atenta de algum que se faz

    familiarizado com esses processos de composio.

    Tanto a observao de Britto acima, que prope uma reflexo a partir de uma lgica

    relacional no hierrquica entre corpo e mundo, quanto a observao de que regras no

    6 BRITTO, Fabiana. Temporalidade em dana: parmetros para uma histria contempornea. Belo

    Horizonte: FID Editorial, 2008.

  • 21

    preexistem os eventos, delineiam uma abordagem que tem afinidade com o pensamento

    sistmico, com a epistemologia experimental de Humberto Maturana, com teorias em outras

    reas do conhecimento como a lingustica e a biologia, e com as teorias da complexidade.

    Como prope o socilogo Edgar Morin (2008, p. 206)7, a complexidade no s pensar o

    uno e o mltiplo conjuntamente; tambm pensar conjuntamente o incerto e o certo, o lgico

    e o contraditrio, e a incluso do observador na observao.

    Os princpios organizativos em composies de dana podem se referir tanto dana

    coreografada quanto dana improvisada. No se trata, portanto, de estabelecer uma distino

    rgida entre uma da outra, at porque, nos atuais debates sobre o assunto, tem-se considerado

    que a diferena entre elas pode ser vista como sendo de graus de estabilidade. isso o que

    expressa Steve Paxton (1999), coregrafo americano criador do Contato-Improvisao, em

    entrevista revista Ballet International: Eu no vejo nem contradies nem similaridades

    entre as formas fixas de dana e a improvisao inicial. uma gama de possibilidades, como

    um espectro de cores.

    Seguindo esse raciocnio, sugerimos identificar e descrever lgicas compositivas

    embasadas em princpios organizativos, sob a forma de conjuntos de parmetros e condies

    que do sustentao s relaes entre os movimentos. Nessa lgica compositiva, os

    danarinos lidam com padres de movimentos no processo de composio em que esto

    sendo realizados.

    Uma composio baseada em princpios organizativos difere daquela resultante de

    uma configurao em que todos os movimentos e suas relaes com o peso, tempo, espao e

    fluxo foram estabelecidos previamente com rigor. Isto no quer dizer que uma maneira de

    lidar com a composio em dana seja mais ou menos sofisticada que a outra. Elas apenas so

    distintas. A complexidade de cada um desses sistemas depende de tantos outros fatores que

    impossvel serem descritos em termos dos seus elementos constitutivos. Precisam ser vistos

    como tecidos juntos e descritos por um observador inserido em uma histria recursiva de

    interaes no contexto particular em que eles ocorrem.

    7 MORIN, Edgar. Cincia com Conscincia. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

  • 22

    As danas produzidas nas dcadas de 60 e 70, em consonncia com outras reas

    artsticas tais como a msica e as artes plsticas, inauguram novas possibilidades para a

    expanso e a complexidade do sistema dana. Refletir sobre essas mudanas radicais, os

    modos de relacionamento que as propiciaram e, principalmente, olhar para essas lgicas de

    composio coreogrfica, o que deve explicitar a composio baseada em princpios

    organizativos. Ao invs de adotar modelos apriorsticos e consensuais no que tange

    composio em dana, seus participantes vm continuamente instaurando novos nexos de

    sentidos, que demandam por redescries.

    Desse modo, a composio da dana contempornea, que aqui est sendo tomada

    como uma composio por princpios organizativos, tem se instaurado por estabelecer

    relaes entre os elementos da dana em outros parmetros que no se guiam apenas pelos

    encadeamentos de passos de dana que pautaram a lgica da composio coreogrfica em

    dana durante sculos.

    Distinguir esses dois modos de composio no o mesmo que dizer que as

    composies regidas por princpios organizativos sejam desprovidas de encadeamentos de

    passos de dana, eles podem at ser um dos elementos constitutivos dessas composies,

    porm perdem sua centralidade e no encerram uma finalidade. Ser o engajamento dos

    coregrafos e danarinos aos princpios organizativos que far com que as estruturas

    coreogrficas estabelecidas por estes modos continuem sendo geridas pelos parmetros

    estabelecidos e permaneam se modificando. Embora modificar-se seja uma condio de

    todos os sistemas, neste tipo de composio que isto exacerbado. Estas proposies em

    dana demonstram que a identidade dos sistemas se faz justamente pelas contnuas

    modificaes provocadas pelas suas interaes com os outros e o meio. Uma perturbao

    causada no sistema ir gerar um rearranjo no sistema como um todo, e essa uma das

    caractersticas ressaltadas nas composies coreogrficas baseadas em princpios

    organizativos.

    Este procedimento diferente daqueles adotados em uma coreografia composta por

    passos pr-fixados, em que h uma predisposio para se manter uma regularidade to

    prxima quanto possvel a uma formatao original, ainda que isto seja impossvel. Pois,

    como explica Britto (2008), repetir um padro neuromuscular gerar contnuas modificaes,

    seja na dana clssica ou no Contato Improvisao, e o corpo, implicado que est na

  • 23

    irreversibilidade, s estabiliza padres de acionamento cognitivo-motor se repete e, quanto

    mais repete, mais oportunidade de variao ele cria.

    Afirmamos anteriormente que os princpios organizativos em dana contempornea

    comearam a ser instaurados em experimentos das dcadas de 60 e 70, em contextos nos

    quais os participantes estabelecerem novas associaes para lgicas organizativas em dana.

    Portanto, relevante apontar distines entre as discusses sobre coreografia e improvisao

    para que possamos refletir um pouco mais sobre os princpios organizativos e os parmetros

    sobre os quais foram se efetivando como um modo distinto de composio.

    2.2 Coreografia... Improvisao...

    Burt (2006, p. 14)8, lembra que Brown (1978) distingue uma qualidade de

    performance na improvisao que no aparece na dana memorizada, por ela ser conhecida

    anteriormente. Enfatiza que, se um danarino est improvisando em uma estrutura, seus

    sentidos esto altamente ativos; usa sua inteligncia, pensamentos, tudo trabalha de uma s

    vez para encontrar a melhor soluo para uma dada questo que se coloca para ele, estando

    sob a presso de uma audincia de observadores.

    A coreografia e a improvisao podem ser compreendidas como tendo graus de

    estabilidade distintos. A especificidade de cada configurao e at mesmo a diversidade de

    nomeaes propostas nas ltimas dcadas demonstra as variaes de estruturas de dana

    contempornea: instalao coreogrfica, interveno urbana, working in process, ao, teatro-

    fsico, dana-teatro, telemtica, dentre outras. Justamente essa condio de no se ater a

    definies de categorias que antecedam concepo artstica uma das caractersticas

    instigantes da dana contempornea.

    Nas nossas interaes recursivas somos corresponsveis pelo contexto que criamos.

    Nesse modo de entender que estamos aqui desenhando com apoio do pensamento sistmico e

    8 BURT, Ramsay. Judson Dance Theater. Performative Traces. New York: Routledge, 2006. BROWN (1978

    apud BURT, 2006, p.14)

  • 24

    complexo, no h recepo passiva, de tal modo que, os danarinos, a audincia, so todos

    participantes dos nexos de sentidos que se estabelecem em correlaes com as obras. Nesta

    direo, os adeptos a improvisao vieram a romper com um dualismo e uma hierarquia at

    ento vigorante na dana moderna repudiando a noo cartesiana da mente como um fantasma

    na mquina. A prpria prtica da improvisao pode ser vista como uma demonstrao de que

    a inteligncia no puramente intelectual ou uma faculdade mental, mas uma relao do

    continuum corpo-mente, conforme argumenta Burt (2008, p. 15).

    Se comparada coreografia, a improvisao aberta ao acaso, enquanto a coreografia

    no o . Sua lgica compositiva se d nas contnuas modificaes entre o corpo, o meio e os

    outros e sua estrutura se d a ver pelas relaes que se instauram a cada instante. J na

    coreografia, os relacionamentos entre os elementos so, em geral, fixos e determinados. Os

    encadeamentos dos passos de dana so definidos previamente e memorizados. Todavia,

    tambm na coreografia, tal como vemos nas ltimas dcadas, o grau de liberdade para

    modificaes em cada apresentao varivel e, em muitos casos, sua composio est

    baseada na definio de princpios organizativos. Este um trao que, se olharmos com

    ateno, se sobressai em diversas configuraes de dana contempornea. Os princpios

    organizativos podem ser considerados como uma proposta instigante para compreendermos o

    modo de funcionamento da dana contempornea, prescindindo das listas de componentes

    que jamais sero preenchidas satisfatoriamente. Portanto, o foco aqui a organizao da

    dana contempornea.

    Para se compreender a noo de organizao, recorremos a Maturana (1997, p. 57)9

    Distingo dois aspectos das unidades compostas, e afirmo que todos ns fazemos isso. Um deles tem a ver com a organizao da unidade composta, que se refere as relaes entre os componentes que fazem com que a unidade seja o que voc afirma que ela . Por exemplo, uma cadeira uma unidade composta. As relaes entre as partes que constituem uma cadeira so a organizao. Se eu serrar a cadeira em pedaos, vocs diriam que ainda temos uma cadeira? No, vocs no diriam isso. Vocs diriam: Por que voc desorganizou minha cadeira?. Eu destru a cadeira desorganizando-a. As relaes entre os componentes, ento aquilo que faz da cadeira uma cadeira constituem sua organizao. Uma unidade uma unidade composta de algum tipo apenas enquanto sua organizao for invariante.

    9 MATURANA, Humberto. Tudo dito por um observador. In: MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (Org.). A Ontologia da Realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997. p. 53-66.

  • 25

    A organizao da unidade composta faz referncia s relaes entre os componentes,

    a um tipo de relao entre as partes que nos permite reconhecer uma unidade composta. Caso

    essa organizao se modifique, a coisa muda. Distinguirmos os diversos tipos de danas por

    uma organizao, pelas relaes que se estabelecem entre os componentes nos permite

    identificar aquilo que invariante na sua organizao. E ainda possibilita identificar quando

    muda a organizao e, assim, a unidade composta muda de classe. A tcnica clssica tem uma

    organizao que se difere de Merce Cunningham que se difere do Contato Improvisao.

    Propomos ento, identificarmos na dana contempornea uma organizao que se estabelece

    pelas relaes entre seus componentes baseada na continuidade em gerar princpios

    organizativos. Ao longo do trabalho sero especificados atravs de exemplos distintos de

    composies coreogrficas em dana contempornea e, no momento, continuaremos a

    delinear as linhas nas quais a improvisao tem se configurado.

    As improvisaes em dana podem ser utilizadas tanto para gerar materiais

    coreogrficos, como tambm para constituir a prpria configurao de dana. A leitura da tese

    de Martins (2002) 10, alm de colaborar para distinguir a dana coreografada da improvisao,

    ajuda a compreender como a dana pode ser considerada como um sistema de acordo com os

    parmetros da Teoria Geral dos Sistemas. interessante observar que anlises de diferentes

    autores apontam na mesma direo, de se tomar o pensamento sistmico e seus fundamentos

    para refletir sobre a dana contempornea. O pensamento sistmico contemporneo tem suas

    origens na Teoria Geral de Sistemas, mas so duas abordagens distintas. Enquanto a Teoria

    Geral de Sistemas tem como referncia o mundo da fsica, o pensamento sistmico encontra

    seus modelos de funcionamento nos seres vivos. Essa nica distino tem profundas

    consequncias nas teorias.

    Existem espetculos de dana que mantm a organizao de uma improvisao, e

    tambm as Jam Sessions, eventos abertos aos praticantes de Contato Improvisao (CI). Esta

    tcnica proposta pelo coregrafo americano Steve Paxton, na dcada de 70, rapidamente

    disseminou-se para outros continentes. Steve Paxton reconhecido por ter iniciado e

    desenvolvido os princpios do CI. Em Magnesium, performance realizada no Oberlin College

    10 MARTINS, Cleide. Improvisao Dana Cognio. Os processos de comunicao no corpo. Tese

    (Doutorado em Comunicao e Semitica). 2002. 129 f. Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, 2002.

  • 26

    em 1972, Paxton trabalhou com uma classe de onze homens a partir de uma estrutura de

    improvisao derivada de um solo que ele j havia feito. Este trabalho foi gravado e seu DVD

    disponibilizado pelo site da revista Contact Quartly, tambm disponibiliza vrios outros

    vdeos e livros sobre o assunto.

    A organizao do CI difere da organizao da coreografia, principalmente por no

    obedecer a um planejamento prvio baseado nos encadeamentos de passos de dana

    estabelecidos e memorizados anteriormente. Ser o engajamento com determinados

    parmetros que iro instaurar seus princpios organizativos. uma dana realizada

    prioritariamente em dupla que se configura pelo toque, pela relao com o outro, com o peso,

    com a fora da gravidade e a conscincia da percepo das sensaes corporais no instante. O

    CI tem vnculos com as artes marciais, em especial, com o aikid, com o esporte e com as

    danas sociais. Alguns coregrafos tm dedicado pesquisas com o CI trabalhando a insero

    de pessoas com necessidades especiais na dana. Visto que no h um corpo idealizado para

    essa tcnica, para um cadeirante, por exemplo, a cadeira tal como no seu cotidiano tomada

    como uma extenso do seu corpo. O danarino americano Alito Alessi uma das referncias

    no assunto.

    Considerando que a base do CI pressupe a permanncia de determinados princpios

    organizativos, mas no a execuo de passos pr-determinados, qualquer pessoa, disposta a se

    mover e relacionar com o outro nos parmetros estabelecidos, poder pratic-la. Apesar da

    inexistncia de um corpo idealizado para a realizao dessa tcnica, recorrente a

    especializao de danarinos que atuam com essa prtica. As interaes estabelecidas ao

    longo de histrias recursivas de Jam Sessions so como os dilogos que mantemos ao longo

    da continuidade das nossas histrias de interaes. o que podemos observar em jams entre

    improvisadores que por muito tempo mantiveram suas interaes, um exemplo, so as

    improvisaes de Steve Paxton e Nancy Smith, umas das primeiras e principais difusoras do

    CI que constituiu junto com Paxton os princpios organizativos j citados envolvidos na

    organizao dessa tcnica.

    A recursividade nas interaes com essa tcnica tende a gerar movimentos

    espetaculares, todavia no so pontos de chegada apriorsticos, mas sim, decorrncia da

    recursividade das relaes com os outros e com os parmetros citados. As interaes com

    seus princpios organizativos que emergem como resultantes dos encontros resultam em uma

  • 27

    confiana, e na velocidade de se tomar as decises a partir das relaes que acontecem no

    instante. Trata-se de uma formao especifica e diferenciada da dana coreografada.

    O fato que, na dana ps-moderna, a noo de repetio, que at mesmo no bal j

    vinha sendo questionada11, ganha uma dimenso provida de experimentaes sem

    precedentes. Tanto que o padro restrito de danarino profissional se modifica e agrega

    profissionais de diversas outras reas e com habilidades peculiares desvinculadas das tcnicas

    de dana clssica ou moderna. Um corpo no treinado em dana tem outras habilidades

    interessantes de serem investigadas na construo de dramaturgias de dana, e,

    concomitantemente, a dana passa a estabelecer relaes altamente profcuas de mtuas

    modificaes com a msica, artes plsticas, cinema. Vale ressaltar que essas interaes se

    diferenciam dos movimentos precedentes por no serem hierarquizados, e, ao serem geradas

    novas funes entre estes relacionamentos, limites rgidos de outrora so extrapolados. O

    cronograma ou o contedo programtico a ser seguido para a criao de um espetculo j no

    serve mais como modelo e assim, cada nova configurao demanda pela criao de seus

    prprios modelos.

    O pensamento Cage-Cunningham um dos principais referenciais desse novo

    paradigma, as propostas de fragmentao, da interdependncia entre os elementos

    compositivos, a abolio da narrativa, foram vastamente experienciados pelos danarinos da

    sua companhia. Muitos deles estavam tambm juntos a outros criadores construindo pequenas

    peas coreogrficas ou trabalhos de uma noite inteira, experimentando diversas alternativas

    compositivas desvinculando-se da dana moderna e da hierarquia das funes, tal como,

    coregrafo e danarino. Muitas propostas foram elaboradas no prprio estdio do coregrafo

    Merce Cunningham, nas oficinas do msico Robert Dunn e nas subsequentes mostras de

    dana na Judson Church. Importantes coregrafos desse perodo, tais como, Simone Forti,

    Yvonne Rainer, Trisha Brown e o artista minimalista Robert Morris tambm haviam

    participado juntos de contextos de improvisao nas famosas oficinas de Anna Halprin em

    So Francisco.

    As propostas exploradas no Judson Dance Theater se referem ao uso de aes, tarefas,

    a no especializao de danarinos em eventos, um tnus mais baixo, a utilizao de

    11 MONTEIRO, Mariana. Noverre: Cartas sobre dana. So Paulo: EDUSP, 1998.

  • 28

    partituras coreogrficas (scores), enfim, uma srie de procedimentos que desafiaram noes

    do que at ento era considerado dana. Foi neste contexto, ao escrever um ensaio sobre a

    pea Parts of Some Sextets (1964), que Rainer (2006, p. 263264) publicou o famoso NO

    Manifest12:

    NO ao espetculo no ao virtuosismo no as transformaes e magia e ao uso de truques no ao glamour e transcendncia da imagem da star no ao herico no ao anti-heroco no as imagerias desgastadas no ao envolvimento do performer ou do espectador no ao estilo no aos modos afetados no a seduo do espectador pelos estratagemas do performer no a excentricidade no ao mover-se ou ser movido. (traduo minha)

    Em sua biografia, Rainer (2006, p. 264) procura contextualizar esse infame

    manifesto, como ela diz, e que a persegue desde a primeira vez em que fora publicado.

    Rainer explica que no o escreveu com a inteno de prescrio, como muitas vezes

    utilizado por outros danarinos, mas que tinha a ver com aquela poca e com as intenes

    dos manifestos: limpar o ar de uma cultura particular em um momento histrico.

    Pode-se at pensar que a instaurao destes novos parmetros estivesse determinando,

    ou propondo novos manuais programticos para elaborao de uma dana ps-moderna,

    todavia, seus processos de criao e configuraes eram to diversificados e imbricados com

    outras vises de mundo, que tal assertiva seria banalizar a importncia deste legado. Aqueles

    que ainda hoje, lidam de maneira normativa com esses preceitos correm o risco de tomar a

    forma sem elaborar a frmula. E rapidamente se denunciam por atuarem em programas que

    so justamente contrrios aos questionamentos e configuraes radicais em que se

    formulavam muitas das proposies em dana dos anos 60 e 70.

    Principalmente, a partir desses pressupostos, a noo de dana como sendo sinnimo

    de um fluxo contnuo de movimentos, formatado apenas por coreografias pr-determinadas

    passou a no comportar mais aquilo que envolve a organizao da dana, os modos de

    relacionamentos entre seus componentes. E, cada vez mais, a indeterminao, o acaso, as

    proposies que emergem a partir dos processos de criao passam a modular as contnuas

    12 RAINER, Yvonne. Feelings are facts: a life. Cambridge; London: MIT Press, 2006.

    No original: NO to spectacle no to virtuosity no to transformations and magic and make-believe no to the glamour and transcendence of the star image no to the heroic no to the anti-heroic no to trash imagery no to involvement of performer or spectator no to style no to camp no to seduction of spectator by the wiles of the performer no to eccentricity no to moving or being moved.

  • 29

    mudanas no danar. A dana contempornea tecida sob parmetros que questiona antigos

    dualismos, adere aos princpios da incerteza como conduta e insiste em ser um projeto

    contnuo alterado diariamente, ttulo do projeto de Rainer com o grupo Grand Union.

    2.3 Passos de dana... Princpios organizativos

    Buscar uma distino entre os passos de dana e os princpios organizativos admitir

    que, apesar da multiplicidade dos modos compositivos em dana, seja possvel diferenciar o

    prevalecimento de um destes dois modos nas configuraes de dana. Os passos de dana

    surgem a partir de determinados parmetros de coordenaes que o iro configurar enquanto

    tal, mas logo tornam essas coordenaes fixas e determinadas. Em sua longa histria

    evolutiva, os passos de dana se estabeleceram prioritariamente de forma normativa,

    mimtica, sendo que o reflexo no espelho tem servido de guia e ncora para que os danarinos

    modulem as posturas e posies certas. H uma busca por uma forma idealizada ditada por

    modelos estabelecidos em cada poca e contexto, apesar de que dessas seja sempre difcil

    escapar. Basear-se em um modelo mimtico e normativo, um dos traos que distancia o

    modo de composio por passos de dana dos princpios organizativos, pois o segundo, se

    instauram pelo rompimento com modelos sedimentados e pela possibilidade em se estabelecer

    novas conexes que possam gerar outros modelos prontos a entrarem novamente em crise. O

    astrofsico Jorge Albuquerque Vieira (2006)13 analisa os estados de crise como sendo tpicos

    dos processos de inveno, tanto na arte quanto na cincia. De fato, seja na dana que se faz

    por passos de dana memorizados ou por princpios organizativos, em cada instante

    coreogrfico, os sistemas esto envolvidos em uma contnua histria de mudanas estruturais

    provocadas pelos relacionamentos que no cessam de se estabelecer.

    O corpo em crise, o corpo paradoxal, o corpo crtico, o corpo sem rgos14, so

    expresses que aparecem em autores diferentes, e que definitivamente questionaram o corpo

    13 VIEIRA, Jorge Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte. So Paulo: Edies Leo, 2006. 14 Corpo sem orgos proposto por Antonin Artaud em seu ensaio radiofnico: Para acabar com o julgamento

    de Deus. O filsofo Gilles Deleuze em Mil Plats 3, tem um ensaio dedicado ao Corpo Sem rgos, CSO. Corpo Paradoxal uma definio do filsofo portugus Jos Gil proposta no livro: Movimento Total; Corpo Crtico utilizado pela pesquisadora de dana francesa LOUPPE (2007) e Corpo em Crise uma terminologia do But, desenvolvida por GREINER (2005).

  • 30

    ordenado, hierarquizado e idealizado que serviu por tanto tempo como referncia para o corpo

    na dana.

    Na composio coreogrfica arquitetada na lgica dos encadeamentos de passos

    determinados, um movimento imprevisto, uma queda, por exemplo, ser tomada como um

    erro. Ainda que esta queda possa ser adotada como um movimento na coreografia, como o fez

    o coregrafo George Balanchine, a partir do momento em que ela passa a ser sempre realizada

    da mesma maneira, deixar de ser algo imprevisvel e passar a cumprir a funo de um passo

    de dana. Isto da ordem das composies coreogrficas arquitetadas pela lgica dos passos

    de dana estabelecidos em que prevalecem as resultantes fixas. Neste tipo de coreografia,

    embasada na composio por passos de dana, todos os fatores do movimento so bem

    delineados e ser a execuo deles de acordo com parmetros bem estabelecidos, um

    propsito principal. Manter uma ordem estipulada tentando restringir a desordem dos sistemas

    dinmicos. Nestas configuraes importa um resultado fixo e determinado e, provavelmente,

    em um novo processo coreogrfico, o coregrafo ir se utilizar daqueles movimentos j

    definidos anteriormente.

    Estabelecer em cada acontecimento - ensaio ou apresentao - um tipo de relao

    neuro-sensrio-motora que no esteja completamente mapeada uma das caractersticas

    instigantes de se trabalhar com a composio por princpios organizativos. Isto possibilita a

    busca por novas solues a determinadas questes colocadas ao corpo em uma situao na

    qual a contingncia ser sempre ressaltada como um dos fatores de acordo entre corpo e

    ambiente no instante danado.

    A improvisao, por se ater com modos relacionais no estabelecidos previamente,

    explicita o fenmeno da emergncia. Conforme diz Britto (2008, p. 106):

    Improvisao Trata-se da vertente de composio artstica que melhor explicita a ocorrncia dos fenmenos de auto-organizao e da emergncia na dana, uma vez que seu princpio bsico da organizao do material coreogrfico e / ou corporal em tempo real exacerba o carter contingencial contido em todas as escalas de estabilidade de um padro (de dana ou outro). A improvisao permite observar a emergncia de novas configuraes a partir de condies j contidas no sistema como possibilidade.

  • 31

    No caso de uma coreografia ou das improvisaes, constitudas por princpios

    organizativos, as estruturas coreogrficas sero relativas operacionalizao dos princpios

    organizativos que engendram os mecanismos para que uma lgica organizativa do movimento

    possa se estabelecer. Nestes casos, a idia da dana como sendo o sinnimo de uma

    organizao baseada exclusivamente no encadeamento de passos e movimentos pr-

    determinados, naufraga. Apesar deste pressuposto ainda prevalecer em muitos contextos de

    dana, inclusive dos estudos tericos, tal como apontam os autores Copeland e Cohen (1983,

    p. 370) na introduo do Captulo V do livro, What is dance?

    Para os materialistas e Anderson (como Nelson Goodman) plenamente adepto aos materialistas, a dana um conjunto de passos especficos, e estes passos so a essncia da dana15. (traduo minha)

    Esta noo sobre uma essncia da dana vinculada a um conjunto de passos de dana

    ainda impera em diversas redes de conversaes sobre dana. Ir contra essa mar, no

    afirmar que a coreografia determinada seja desprovida de uma lgica organizativa, pois, a

    depender da sua complexidade, h um padro neuromuscular extremamente refinado que

    apenas se desenvolve por uma prtica constante de imerso neste sistema. A diferena mais

    singular entre estes dois modos compositivos se refere principalmente ao seguinte aspecto:

    1 Quando os coregrafos lidam com o encadeamento de passos determinados

    h uma continuidade em se especializar em um mesmo tipo de padro de

    relacionamentos entre os movimentos e todos os elementos se arquitetam em

    uma resultante definida previamente;

    2 Quando os coregrafos desenvolvem princpios organizativos a lgica que

    engendra a organizao coreogrfica se sobressai quela de uma nica

    resultante definida previamente. Ainda que dessa lgica possa fazer parte um

    encadeamento de movimentos estabelecidos anteriormente, eles no sero

    adotados com um propsito principal. Sero uma dentre outras variantes que

    possibilita estabelecer relacionamentos contingentes entre os elementos.

    15 COPELAND, Roger e COHEN, Marshall (ed). What is dance? Oxford, New York, Toronto, Melbourne:

    Oxford University Press, 1983. No original: For the materialist and Anderson (like Nelson Goodman) is plainly sympathetic to the materialist, a dance is an assemblage of specific steps, and these steps are the essence of dance.

  • 32

    Para distinguir essas lgicas compositivas em configuraes de dana, entendidas

    como sendo um sistema complexo, impossvel separar seus traos em termos dicotmicos.

    Apesar da coreografia, em geral, vinculada quilo que fixo, determinado, e a improvisao

    ao indeterminado, ao acaso, so as gradaes de estabilidade entre os relacionamentos

    estabelecidos moduladores das taxas de ordem e desordem nestes sistemas. Disso decorre que,

    a restrio ou liberdade com a qual os coregrafos lidam variada em cada sistema de dana,

    pode ir desde um sistema aberto, altamente dissipativo no qual seja difcil identificar os

    princpios organizativos, at um sistema menos aberto cuja estrutura se aproxime a de uma

    coreografia estabelecida previamente. A coreografia constituda por princpios organizativos

    no , em geral, to aberta ao acaso como a improvisao. Mas por outro lado, se distingue

    daquelas coreografias em que todos os movimentos e suas relaes com o peso, tempo,

    espao, dinmica, foram previamente determinados.

    Ser a manuteno dos princpios organizativos que ir sobrepor-se a lgica dos

    encadeamentos dos passos estabelecidos anteriormente. Faz parte da sua dinmica

    organizativa se constituir pelas contnuas modificaes ao invs de se basear na fixao de

    uma estrutura rgida.

    O ideal tangvel, no mais o corpo idealizado da bailarina que flutua com leveza,

    como fora no bal romntico, nem o corpo metafrico dos horrores da guerra, resultante de

    configuraes da dana moderna. A exploso da dana nos anos 60 esteve principalmente

    relacionada ao questionamento do corpo, da visibilidade, dos padres e programas

    estabelecidos, e, acima de tudo, da interconexo sem precedentes entre as reas artsticas.

    Interessa o corpo no tempo presente, percepo dos fluidos, rgos, pensamentos, os

    processos e procedimentos de criao que conscientemente rompem com estruturas

    estabelecidas. So nestas circunstncias que as danas embasadas por princpios organizativos

    vm se instaurando. Ao romper com a espetacularizao, propor danas com pessoas no

    treinadas em dana, trazer os movimentos cotidianos para o contexto da dana, inaugura-se

    um campo novo nessa rea. No se trata da morte da dana, tal como fora decretado nas artes

    de vanguarda, mas sim, um novo comeo.

    Ao analisar o Judson Dance Theater, o filsofo Noel Carroll se refere a Yvonne Rainer, Steve Paxton, David Gordon, Simone Forti e outros, como tendo demonstrado que qualquer coisa poderia se tornar dana, no importa com o que se parea...Eles momentaneamente ampliaram uma gama de possibilidades para a

  • 33

    dana contempornea. Inauguraram um novo mundo na dana: no um fim da dana, mas provavelmente, um novo comeo 16

    Insistncia ou persistncia em distinguir

    (nem que seja para depois misturar de novo um pouco diferente)

    Princpios organizativos - a forma importa menos do que os parmetros que guiam

    uma determinada lgica organizativa em uma configurao coreogrfica.

    Princpios organizativos se coconstituem recursivamente nas mltiplas inter-relaes;

    reduzida a relevncia dos encadeamentos de movimentos memorizados anteriormente para

    ressaltar as lgicas de inter-relaes das quais iro emergir os padres de movimentos que

    tiveram apenas seus parmetros pr-definidos e no suas formataes finais. Aqui, est

    prevista a autonomia do danarino e dos sistemas coreogrficos.

    x

    As Formas determinadas / Passos de dana so configuraes que ganharam mais

    estabilidade.

    Interessa ressaltar sua continuidade, promover o reconhecimento de uma mesma

    forma, frmula.

    Tambm os passos de dana emergem de princpios organizativos de movimentos,

    todavia resultam em configuraes estabilizadas e prontas para serem utilizadas em diferentes

    circunstncias.

    H um apagamento dos parmetros que geraram a forma e importa mais ressaltar a sua

    semelhana do que as diferenas advindas com princpios organizativos que poderiam

    desencadear outras possveis configuraes.

    Na composio regida por passos de dana h um modelo de relaes rigidamente

    determinado anteriormente que dever ser seguido, enquanto, nos princpios organizativos os

    padres de movimentos emergem como decorrncia de parmetros estabelecidos e no como

    um nico resultado de encadeamentos de movimentos memorizados previamente. Por isto,

    nesse sistema coreogrfico regido por princpios organizativos as resultantes instauradas em

    16 CARROL, 2003 apud. BURT, 2006, p. 187.

  • 34

    cada instante constituiro dramaturgias de movimentos que ainda no estavam completamente

    estabelecidas anteriormente.

    Isto no quer dizer que a configurao de dana estipulada nessa ordem ir gerar em

    cada ensaio ou apresentao algo completamente novo e inusitado. Ser na recursividade das

    pequenas mudanas em sua histria evolutiva que este tipo de organizao ir produzir outros

    princpios organizativos estabilizando a identidade de cada sistema coreogrfico. Estas

    mudanas podero ser apenas quelas permitidas pela histria do sistema em interaes com o

    meio e os outros. De outro modo, o sistema se desintegraria.

    2.4 Passos de dana e vocabulrio

    Coreologia uma espcie de gramtica e sintaxe da linguagem do movimento que trata no s das formas externas do movimento, mas tambm do seu contedo mental e emocional. 17

    As analogias entre dana e linguagem so to recorrentes que j se naturalizaram.

    Falamos em: frases coreogrficas, frases de movimento, acento, linguagem coreogrfica,

    vocabulrio de movimentos, falar com a dana, linguagem no verbal e muitas outras. A

    prpria etimologia da palavra coreografia se refere escrita da dana, cunhada em 1589, por

    Thoinot Arbeau como orchesographie18. Em 1700, Raoul-Auger Feuillet introduziu o

    sinnimo coreografia, ttulo do seu clssico tratado de dana Chorgraphie ou Lart dcrire

    la danse par caracteres, figures et signes desmonstratifs. Assim, o termo surgiu com a

    finalidade de descrever, de criar uma escrita para a dana anloga ao sistema musical. No

    entanto, as notaes em dana no se tornaram to difundidas como na msica. O termo

    coreografia passou a ser usado de forma mais geral, referindo-se ao fazer dana, a

    composio, ou a criao de dana.

    Segundo Mariana Monteiro (1998, p. 133)19, autora do livro Noverre: cartas sobre

    dana, a notao de Feuillet, encomendada pelo Rei Sol, Lus XIV,

    17RENGEL, Lenira. Dicionrio Laban. So Paulo: Anablume, 2005. LABAN apud RENGEL, 2005, p.35. 18Para a discusso do assunto, ver LEPECKI, 2006. 19 MONTEIRO, Mariana. Noverre: Cartas sobre dana. So Paulo: EDUSP, 1998.

  • 35

    [...] dava conta dos passos, dos deslocamentos no espao, das direes e da diviso rtmica. [...] O mestre de bal tinha a sua disposio palavras e sintaxe adequadas s coisas representadas.

    Ser Noverre que meio sculo depois, com a sada da dana da corte e sua crescente

    profissionalizao e ocupao dos teatros, que questionar a eficincia da dana ser feita em

    forma de uma partitura escrita. Com o bal de ao, a coreografia deveria ser composta no

    teatro, onde a multiplicidade, as coisas novas deveriam se ligar, nestes termos Noverre dizia e

    considerava que o sistema de Feuillet no servia para abarcar as nuanas da pantomima.

    Segundo Monteiro (1998), a dana acadmica prescrevia um conjunto de posies e

    caminhos a serem percorridos pelos braos, em estreita consonncia com os passos. Noverre

    desarticula essas prescries, simplifica os passos para ganhar em expresso dos gestos, mas,

    ao mesmo tempo, prev um sistema capaz de representar as emoes com os movimentos.

    [...] os passos, colocados com esprito e com arte, faam eco ao e aos movimentos da alma do bailarino. Exijo que numa expresso viva jamais se usem passos lentos; que numa cena grave no se utilizem os leves; [...] enfim, gostaria que tudo parasse nos instantes de desespero e de opresso; nesses casos, apenas a fisionomia deve retratar; os olhos que devem falar; at mesmo os braos devem permanecer imveis, e o bailarino, nessa espcie de cena, torna-se excelente exatamente quando no dana. (NOVERRE, 1760, apud MONTEIRO, 1998, p. 136)

    interessante notar que o questionamento aos passos de dana prescritos no uma

    exclusividade da modernidade, todavia as proposies alternativas aos modelos estabelecidos

    so sempre situadas historicamente. Isto no querer deflacionar a importncia dos preceitos

    rompidos com a dana moderna e contempornea, mas sim, situar a relevncia em se ater com

    as relaes estabelecidas em cada contexto.

    Muitos pesquisadores de dana consideram Noverre uma espcie de fundador da

    dana moderna ou o primeiro dramaturgista da dana, como Van Kerkhove (1997) e Hercoles

    (2005). A pesquisadora de dana Katharine Gilbert (1970) cita um extrato das cartas de

    Noverre que fazem parte da bibliografia de Laban (1879-1958), fundador da importante e

    mais difundida sistematizao do movimento Gilbert (1970) analisa a maneira que a dana

    moderna se aproxima em aspectos gerais ao Renascimento na Itlia, ao enfatizar o

    humanismo e o retorno a natureza, caractersticas comuns a Laban, Mary Wigmann e Isadora

    Duncan. Assim, o rompimento com uma sintaxe de movimentos pr-estabelecidos pelo bal

  • 36

    acadmico e o sujeito tornando-se objeto daquilo que ele produz so algumas das

    caractersticas da dana que vem sendo experimentada de modo contnuo e diverso na histria

    da dana. Tambm as analogias entre dana e gnero literrio e dana e linguagem verbal,

    bem como, as dicotomias entre forma e significado tem mesmo razes histricas. Mas,

    atualmente, por todas as descries e pesquisas que temos sobre o funcionamento do corpo j

    sabemos que razo e emoo no se processam separadamente.

    Portanto, tambm conceituar de modo estanque fundamentos rgidos para os passos de

    dana e para a construo de vocabulrios correr o risco de estabelecer categorias que

    reduzam a complexidade desses fazeres. necessrio olhar e descrever de maneira

    contingente e situada casos especficos e reconhecer ao longo de vrias configuraes como

    se estabiliza esse modo de organizao e em que elas se diferem dos princpios organizativos.

  • 37

    3 DANA COMO MODOS DE ORGANIZAO

    3.1 Dana contempornea como organizao e no como lista de propriedades

    Ns no paramos de viver, ento no paramos de danar. Penso na dana como uma constante transformao da prpria vida. 20 (Traduo minha. CUNNINGHAM, 1985 apud PRESTON, DUNLOP, 1995, p. 5)

    Diferente das outras artes, na dana, produto (objeto esttico) e autor (corpo) ocupam o mesmo espao-tempo, embora um seja resultante da ao do outro, quando a dana danada pelo corpo, ambos constituem-se numa mesma materialidade a dana. Ao contrrio da naturalidade que isto sugere a dana no se d a entender sem exerccio intelectual. (BRITTO, 2008, p. 26-27)

    Trabalhar com a noo de que o corpo est em constante acoplamento estrutural como

    o meio e com os outros, e, portanto, modificando e sendo modificado, abdicar da noo de

    que o corpo representa ou expressa um dentro sem fronteiras. Com a noo de acoplamento

    estrutural, Maturana (2007, p. 64) especifica que o meio no instru as mudanas no

    organismo, pois estes so uma rede fechada de relaes moleculares. A adaptao uma

    coerncia estrutural das histrias de interao entre o organismo e o meio. O mesmo ocorre

    entre organismos. Se existe coerncia na histria de interaes, eles se adaptam mutuamente.

    O corpo em uma histria recursiva de interaes entrelaadas entre emoo e

    linguajar e, essa dana que o corpo faz, modifica sua dinmica estrutural. E o corpo-ambiente,

    por sua vez, modifica constantemente as resultantes da dana danada, por isto, por mais que

    se queira que uma configurao de dana seja a mesma, ainda assim, ela ser sempre

    diferente.

    Para falar de dana e, logo, do corpo que faz dana, com a devida complexidade

    desses sistemas, precisamos identificar com quais noes de corpo, cognio, linguagem,

    cultura estamos imbricados. Justamente nesta direo, os pesquisadores de dana tem se

    esforado e nessa aproximao que essa pesquisa tambm se insere.

    20 CUNNINGHAM (1985). PRESTON-DUNLOP, Valery. Dance Words. Switzerland: Harwood academic publishers, 1995. No original: You dont stop living, so you dont stop dancing. I think of dance as a constant transformation of life itself. (p. 5)

  • 38

    Os cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela iniciaram na dcada de

    60, uma importante pesquisa sobre as bases biolgicas da compreenso humana, subttulo do

    clssico livro A rvore do conhecimento, publicado em 1987. Para distinguir os seres vivos de

    maneira radicalmente diferente das listas de propriedades que nunca parecem completas,

    propuseram a organizao autopoitica. Na teoria da autopoiese, identificaram uma

    organizao peculiar dos sistemas vivos, que consiste em uma inseparabilidade entre o ser e o

    fazer em uma unidade autopoitica. Apesar de todos os sistemas terem uma organizao, na

    organizao autopoitica que os seres vivos se especificam e geram a si prprios. Para

    responder a questo sobre qual a organizao define o vivo como classe, Maturana e Varela

    (2007, p.52) explicam que, os seres vivos se caracterizam por literalmente produzirem de

    modo contnuo a si prprio. isto que esto especificando quando chamam a organizao

    que os define de organizao autopoitica. Com essa distino explicam o modo de

    funcionamento dos seres vivos. Isto diferente das descries morfolgicas, ou de critrios

    que definam o vivo, tais como: capacidade de locomoo; aquele que se reproduz, ou a soma

    de um ou mais desses critrios, sempre passveis de incompletudes e de no abarcarem tudo o

    que vivo.

    Com a organizao autopoitica dos seres vivos, os autores destacam que os seres

    vivos so unidades autnomas, capazes de especificar sua prpria legalidade, aquilo que lhes

    prprio. Maturana e Varela (2007, p.55) ressalvam que, os seres vivos no so os nicos

    entes autnomos, mas trata-se de uma das propriedades mais imediatas dos seres vivos. Com

    a organizao autopoitica esse grande mistrio da autonomia se torna fio condutor, pois

    nela que ao mesmo tempo, nos realizamos e nos especificamos.

    Poderamos tomar essa premissa para pensar em uma organizao tpica que possa

    distinguir a dana como uma unidade composta?

    A distino entre uma unidade simples e composta a seguinte: na primeira,

    suficiente especificarmos as propriedades; na segunda, tem a ver com a organizao da

    unidade composta, que se refere s relaes entre os componentes que fazem com que a

    unidade seja o que voc afirma que ela . (MATURANA, 1997, p. 57)

  • 39

    Para tanto, no ser suficiente descrevermos uma lista de componentes da dana, pois

    teremos que especificar as relaes entre os componentes implicados nessa organizao

    dana. Supomos aqui, que essa organizao esteja relacionada organizao autopoitica,

    visto que a materialidade da dana se realiza no ser vivo com uma autonomia que especifica

    aquilo que lhe prprio.

    Desse modo, possvel propor uma dinmica que explique o modo de funcionamento

    da dana e no apenas os seus componentes. Ressalta-se, sobretudo, que as configuraes de

    dana se estabelecem por uma longa histria recursiva de interaes, realizada em

    coordenaes de coordenaes consensuais de condutas, ou seja, na linguagem.

    Para Maturana (1997, p.65) quando temos organismos que, atravs de uma histria de

    interaes continuam interagindo uns com os outros, ns temos um domnio lingustico.

    Nesta perspectiva, a linguagem no est no crebro ou no sistema nervoso, mas no domnio

    das coerncias mtuas. Ora, fazemos dana, ainda que seja um solo, interagindo uns com os

    outros e nos especificando mutuamente, selecionando os caminhos das nossas modificaes

    estruturais. Segundo a Biologia do Conhecer crucial entendermos que os seres vivos so

    determinados estruturalmente, e suas mudanas so congruentes com o ambiente em que

    vivem, conservando sua organizao. Maturana (1997, p. 60) afirma que:

    Os sistemas vivos, se so para ser explicveis, precisam ser tratados como sistemas determinados estruturalmente, definidos por certas organizaes. [...] As interaes que eles atravessam apenas desencadearo mudanas neles, e no especificaro o que acontecer com eles. Esse um ponto muito srio, um ponto que no deve ser compreendido de forma superficial. O que estou dizendo que nada pode acontecer a um sistema determinado estruturalmente que no esteja determinado pelo prprio sistema.

    Isto quer dizer que apenas sero aceitas pelo sistema as perturbaes admitidas pelos

    prprios sistemas. Neste caso, as interaes: danarino coregrafo; aluno professor, no

    ir instruir, ou especificar o que vai ocorrer no sistema, elas apenas podero desencadear

    mudanas congruentes com a histria de interaes de cada um deles em um meio que

    continuamente se modifica. nesta situao que Maturana (1997, p.53-66) utiliza o termo

    conduta adequada, sempre considerada sob o ponto de vista de um observador que faz uma

    pergunta.

  • 40

    Ento, tomo a conduta adequada como uma expresso de conhecimento. Por conseguinte, se meu problema a prpria cognio ou conhecimento, e se reconheo que h conhecimento vendo a conduta adequada, ento meu problema ser identificar a conduta adequada ou mostrar como surge a conduta adequada.

    Uma explicao considerada vlida quando satisfaz nossa curiosidade e Maturana

    demonstra que como um cientista, um bilogo, a explicao sobre cognio que ir

    considerar, ter que ser uma explicao cientfica. Mas, aponta que, comumente as pessoas

    pensam em explicaes cientificas como predio, e que a seu ver, este um dos aspectos,

    mas no o principal. Pois, no existe explicao cientfica sem a proposta de um mecanismo

    que gere o fenmeno a ser explicado e, por sua vez, outro fenmeno no mesmo domnio do

    fenmeno que explicado. Em suma, ao perguntar sob quais circunstncias ns

    reconhecemos que h cognio? Maturana, alm de explicar o mecanismo pelo qual a conduta

    adequada gerada, constri uma identidade entre a cognio e o viver, o modo pelo qual ela

    esta implicada no domnio em que se observam as coerncias estruturais relacionadas s

    histrias de interaes dos organismos.

    Retomar a distino de uma possvel organizao da dana, considerando que cada

    sistema dana seja tambm uma rede fechada de relaes entre os seus elementos, implica em

    considerar como cada sistema se modifica estruturalmente mantendo sua organizao em um

    meio que tambm se modifica. Isto implica em olhar para a composio coreogrfica como

    um sistema capaz de especificar-se a si prprio. A hiptese da organizao autopoitica dos

    seres vivos, logo dos seres vivos que danam, produz reverberaes que fortalecem a ateno

    as relaes implicadas em constituir uma organizao dana e no apenas nos elementos que

    a configuram. Podemos at suscitar a hiptese de que, um sistema de dana que mantm ao

    longo do tempo uma recursividade de relaes, tenha tambm como caracterstica, quilo que

    identifica os seres vivos de acordo com a organizao autopoitica, produzirem de modo

    contnuo a si prprio.

    interessante notar que at mesmo metforas recorrentes que utilizamos em

    composio coreogrfica estejam relacionadas quelas exemplificadas na Biologia do

    Conhecer, que explica o metabolismo celular de modo a exemplificar a organizao

    autopoitica (MATURANA; VARELA, 2007, p. 59). Definimos clulas coreogrficas como

    partes em uma coreografia, so limites de transformao que se relacionam com o todo e elas

  • 41

    tal como na arquitetura celular se constituem como uma unidade separada que no se

    desintegram nem se esparramam na sopa molecular, ou na coreografia como um todo.

    Estas unidades, clulas coreogrficas, podem tanto ser constitudas pelo

    encadeamento de passos de dana pr-estabelecidos, quanto por princpios organizativos,

    ambos tero a funo de constituir unidades e limitar uma rede de transformaes,

    possibilitando identificar o funcionamento de certa unidade coreogrfica.

    Considerando a diversidade de estruturas de dana contempornea que conhecemos e,

    ainda podemos encontrar no mundo, difcil definir um modo de funcionamento sem o perigo

    de acabar tropeando em um universalismo, ou em definies genricas. Maturana e Varela

    (2007, p. 50) indicam que distinguir, reconhecer um modo de organizao algo que fazemos

    o tempo todo, um ato cognitivo bsico. Comparam a diferena entre a facilidade em

    classificarmos cadeiras pelas relaes entre as suas partes, e que o mesmo no acontece, por

    exemplo, para a classe das boas aes. Pois disso depende compartilharmos uma quantidade

    imensa de bens culturais. O mesmo parece ocorrer no caso de distinguir uma classe para

    dana contempornea. Todavia, isto no impede que faamos as distines, mas sinaliza que

    elas so decorrentes dos relacionamentos com as diversas estruturas coreogrficas com as

    quais lidamos.

    Desta maneira, no exerccio em estabelecer um mecanismo de funcionamento e no

    uma lista de ingredientes, que os princpios organizativos cumprem a funo de gerar uma

    dana e, ao mesmo tempo, manter a dinmica daquilo que continuamente lhe prpria. O

    princpio organizativo na composio coreogrfica aquilo que pode produzir e especificar

    um limite para que um acontecimento de dana seja realizado. Ao nos depararmos com as

    mais diversas estruturas de dana, conseguimos reconhecer que tem algo em comum nessas

    estruturas e assim distinguimos uma classe com uma organizao que nomeamos dana. Isto

    s poder dizer alguma coisa de mais especfica na medida em que os relacionamentos vo

    sendo estabelecidos de modo contnuo, pois, reconhecer os princpios organizativos de cada

    configurao de dana com a qual estejamos lidando, uma distino contingente e situada

    historicamente. Conhecer a especificidade da dana fazer, estar continuamente em contato

    com uma gama enorme de possveis danas, tais como aquelas experincias especficas dos

    esquims que so capazes de distinguir diferentes tonalidades de branco. Ou ento, algo que

    parece banal para ns que vivemos no hemisfrio sul, identificarmos diferentes tonalidades de

  • 42

    verde, ou sabermos com preciso o que uma pulga ou um carrapato. So aes que

    efetivamos como lgicas incorporadas, decorrentes do nosso experienciar em uma cultura. De

    outro modo, o navio pode passar pelo oceano sem que possamos v-lo, se desconhecido, no

    nomeado, no se configura como uma unidade distinta na paisagem.

    Exatamente isto acontece com aquelas experincias em dana que no so sequer

    vistas ou consideradas como tal por uma maioria, pois, frente a um entendimento de que

    dana so encadeamentos de passos de dana que obedecem a uma msica, ou algo para mero

    entretenimento, devendo seguir um padro com critrios definidos a priori, tudo o que no se

    encaixa nessas expectativas, inexiste. Isto se refere no apenas a um tipo de relacionamento

    que os observadores estabelecem com a dana, mas sim, com o mundo. Por isto, os

    rompimentos efetivados na dana nas dcadas de 60 e 70, so to marcantes por promoverem

    outras opes epistemolgicas no domnio da dana, e, ainda longe de serem tomados como

    consensuais, continuam estigmatizados como no dana em muitos ambientes. As

    proposies em dana de ento, tambm estavam contextualizadas em verdadeiras viradas

    paradigmticas nas cincias, filosofia, psicanlise, artes plsticas e outras reas, isto no

    passava despercebido aos coregrafos que refletiam e produziam dana neste instigante

    contexto. Inclusive abandonando a dana pela sua extrema limitao em ser um sistema dual

    constitudo por um fazedor e um observador, por sempre manter o narcisismo, no se

    desvencilhando de ser pessoal, de ser sempre sobre algum.21

    Foi neste perodo, em meados da dcada de 60, que Franciso Varela tornou-se aluno

    de Maturana e, em seguida, tambm como professor na Universidade do Chile escreveram o

    primeiro livro, De maquinas y seres vivos: Uma Teoria de La Organizacin Biolgica

    (MATURANA; VARELA, 1972). Aps o exlio, em decorrncia do regime militar,

    retornaram ao Chile, na dca