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As novas vertentes de Messiaen 12 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 8 a 14 de setembro de 2008 Fotos: Reprodução/Divulgação CARMO GALLO NETTO [email protected] resgate do caminho percorrido pelo conhe- cimento e pela arte é fundamental para en- tender seu desenvolvi- mento e vislumbrar no- vos horizontes. Principalmente, quan- do realizado através de seus maiores. Foi o que moveu Adriana Lopes da Cunha Moreira ao propor uma associ- ação de técnicas de análise musical de- senvolvidas durante os séculos XX e XXI aos conceitos teóricos utilizados pelo compositor francês Olivier Mes- siaen (1908-1992) nos dois volumes do livro Technique de mon langage musi- cal e nos três primeiros volumes do Traité de Rythme, de Couleur et d’Ornithologie, publicações de 1944 e 1994, respectivamente. Além de am- pliar a vertente teórica do compositor, o trabalho contribui para o aumento da reduzida bibliografia em língua portu- guesa sobre análise musical. A análise musical, esclarece Adria- na, é uma vertente teórica do estudo que procura explicar como se dá o fun- cionamento de composições, útil para que estudiosos possam entender o de- senvolvimento da arte musical e para que compositores aprendam o que já foi produzido e possam desenvolver trabalhos que signifiquem um passo à frente no seu tempo. Ela permite tam- bém que os intérpretes trabalhem as peças de uma forma embasada e não arbitrária. Além da compreensão, a análise musical busca explicar para estudantes de música, intérpretes e compositores como uma determinada peça opera, como se desenvolve, como seus elementos musicais interagem, onde o compositor encontrou o mate- rial utilizado e como o trabalhou. Ela confessa que a escolha do tema da tese, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Música da Uni- camp, teve influência do compositor brasileiro Almeida Prado, por quem declara profunda admiração, mestre e amigo, e ex-aluno de Messiaen no Con- servatório de Paris, onde o compositor foi professor de composição e análise musical. Adriana diz que, embora a música do compositor francês seja oci- dental, pois este estudou profundamen- te Beethoven, Mozart, Bach e técnicas de composição muito próximas deles, dedicou-se intensamente à compreen- são das rítmicas grega e indiana, o que o levou a uma música diferente de qual- quer outra. Sua profunda religiosidade mística revela-se no seu encantamen- to por vitrais de igrejas e suas cores que se transformaram em composições. Mostrou-se igualmente fascinado pela natureza. Rítmicas não ocidentais, re- ligiosidade e fascínio pela natureza, pelas montanhas e particularmente pelo canto dos pássaros levaram-no a desen- volver uma linguagem muito particu- lar na literatura musical, que não se assemelha à de outros grupos de com- positores. Desde a infância, quando começou a compor, tendo escrito o Prélude nº1 aos doze anos, se pôs à procura consciente de uma linguagem única, automaticamente atribuída a ele por quem ouve suas composições. Adriana considera que o resgate de Messiaen é importante porque teve grande influência no século XX como compositor e professor de grandes au- tores como Pierre Boulez, Pierre Henry, Jean Barraqué, Karlheinz Stockhausen, Iannis Xenakis, Yvonne Loriod, Almeida Prado e Tristan Murail. Estudá-lo leva ao resgate de significativas influências que deixou em certas vertentes percorridas pela música de composição. Ela afirma que na música do século XX o estudo de determinados compositores como Beethoven, Mozart, Bach é fundamen- tal para entender certas vertentes mu- sicais, e entre eles situa Messiaen, Debussy, Stravinsky, Cage, Varèse, Berio e Penderecki. Acha seu estudo fundamental para a compreensão dos procedimentos composicionais de outros composito- res representativos. Diz que no século XX têm-se compositores que caminha- ram em paralelo e deram origem a di- versas tendências contíguas. Estudá-los permite melhor degustação dos cami- nhos percorridos pela música. Adriana se propôs na tese, orienta- da pela professora Maria Lucia Pascoal e co-orientada pelo professor Mauricy Matin, inter-relacionar técnicas de aná- lise musical desenvolvidas durante os séculos XX e XXI e associá-las aos conceitos proferidos por Olivier Mes- siaen; ampliar o referencial teórico do compositor e contribuir para a biblio- grafia sobre análise musical em língua portuguesa; bem como analisar cinco de suas peças para piano, contextuali- zando-as. Conclui o trabalho traçando vertentes tanto em relação às técnicas de análise utilizadas, como em relação à obra de Messiaen como um todo. A autora considera ainda que a pos- tura aberta do compositor perante os acontecimentos artísticos levou-o a descobertas diárias, sobretudo autodes- cobertas, em que toda a experiência vivida pode tornar-se música. Diz ainda que Messiaen, ao criar uma linguagem própria, baseou-a em uma amálgama de materiais que pare- ciam díspares – em um misticismo re- ligioso católico, na natureza, na pes- quisa sobre o canto dos pássaros, na pesquisa da rítmica grega e indiana e numa visão psicológica das cores que lhe sugeriam sons e música. Traduziu esses elementos extramusicais em no- tas musicais, compondo com base nis- so. Adriana entende que esse diferen- cial norteia a compreensão desse com- positor. Técnicas Adriana lembra que a música do século XX é de audição mais comple- xa. Existem técnicas que ajudam o ana- lista a explicar como a peça opera, fun- ciona e é construída. Entre essas técni- cas, a que mais costuma utilizar é a te- oria dos conjuntos de sons, que pode ser aplicada à grande parte da música instrumental produzida nessa época. Mas existem também técnicas especí- ficas para análise da rítmica, da textu- ra, do contorno melódico – que mos- tram como esses parâmetros musicais interagem entre si. Ela associou essas técnicas mais generalizantes às de Messiaen, pois as deles só podem ser utilizadas em suas composições. Ao fazê-lo, constata, abre-se a possibilida- de de se aprofundar na forma como ele pensava e trabalhava sua obra. Essa foi a idéia central que norteou o trabalho. O público conhecedor das técnicas do século XX, que aprendeu analisando obras de Beethoven, Mozart, Bach, Villa- Lobos, Almeida Prado, pode, a partir desse conhecimento, compreender a maneira como Messiaen trabalhava. Um fato sucedido na vida de Messiaen e que seus biógrafos não es- clarecem, conta Adriana, está ligado ao Brasil. Como o compositor tinha a idéia de publicar um segundo Catalogue d’oiseaux utilizando sons de pássaros de outros países que não a França, ini- ciativa de Almeida Prado levou o rei- tor da Unicamp da época, professor Aristodemo Pinotti, a acertar sua vin- da ao Brasil. Enquanto pesquisasse o canto dos pássaros brasileiros, lecio- naria composição musical e sua espo- sa, Yvonne Loriod, piano no curso de música da Unicamp. Acertaram-se com antecedência calendário, ornitólogo que o acompanharia e patrocínio. Mas quando a vinda do compositor se avi- zinhava, houve cancelamento do patro- cínio. Messiaen, que já anunciara a re- alização do projeto, assumiu outros tra- balhos e não voltou mais ao assunto. Com sua morte, seus biógrafos ficaram sem saber por que o projeto não foi concretizado. O assunto só voltou à baila com a participação de Almeida Prado no exame de qualificação de Adriana. O Adriana Lopes da Cunha Moreira, autora da tese: pesquisa amplia referências bibliográficas Foto: Antoninho Perri O compositor francês Olivier Messiaen Messiaen Na seqüência, algumas das fontes de inspiração de Olivier Messiaen: interior da Catedral de St-Etienne, em Bourges; vitrais da Sainte-Chapelle, em Paris; o pássaro Rouge gorge (pisco de peito ruivo); vista do Mont Blanc a partir de Chamonix, nos Alpes franceses; e fachada da Église de la Sainte Trinité, em Paris, onde o compositor trabalhou como organista, entre 1931 e 1992 As novas vertentes de

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As novas vertentes de

Messiaen

12 JORNAL DA UNICAMP Campinas, 8 a 14 de setembro de 2008

Fotos: Reprodução/Divulgação

CARMO GALLO NETTO

[email protected]

resgate do caminhopercorrido pelo conhe-cimento e pela arte éfundamental para en-tender seu desenvolvi-mento e vislumbrar no-

vos horizontes. Principalmente, quan-do realizado através de seus maiores.Foi o que moveu Adriana Lopes daCunha Moreira ao propor uma associ-ação de técnicas de análise musical de-senvolvidas durante os séculos XX eXXI aos conceitos teóricos utilizadospelo compositor francês Olivier Mes-siaen (1908-1992) nos dois volumes dolivro Technique de mon langage musi-cal e nos três primeiros volumes doTraité de Rythme, de Couleur etd’Ornithologie, publicações de 1944 e1994, respectivamente. Além de am-pliar a vertente teórica do compositor,o trabalho contribui para o aumento dareduzida bibliografia em língua portu-guesa sobre análise musical.

A análise musical, esclarece Adria-na, é uma vertente teórica do estudoque procura explicar como se dá o fun-cionamento de composições, útil paraque estudiosos possam entender o de-senvolvimento da arte musical e paraque compositores aprendam o que jáfoi produzido e possam desenvolvertrabalhos que signifiquem um passo àfrente no seu tempo. Ela permite tam-bém que os intérpretes trabalhem aspeças de uma forma embasada e nãoarbitrária. Além da compreensão, aanálise musical busca explicar paraestudantes de música, intérpretes ecompositores como uma determinadapeça opera, como se desenvolve, comoseus elementos musicais interagem,onde o compositor encontrou o mate-rial utilizado e como o trabalhou.

Ela confessa que a escolha do temada tese, apresentada ao Programa dePós-Graduação em Música da Uni-camp, teve influência do compositorbrasileiro Almeida Prado, por quemdeclara profunda admiração, mestre eamigo, e ex-aluno de Messiaen no Con-servatório de Paris, onde o compositorfoi professor de composição e análise

musical. Adriana diz que, embora amúsica do compositor francês seja oci-dental, pois este estudou profundamen-te Beethoven, Mozart, Bach e técnicasde composição muito próximas deles,dedicou-se intensamente à compreen-são das rítmicas grega e indiana, o queo levou a uma música diferente de qual-quer outra. Sua profunda religiosidademística revela-se no seu encantamen-to por vitrais de igrejas e suas coresque se transformaram em composições.Mostrou-se igualmente fascinado pelanatureza. Rítmicas não ocidentais, re-ligiosidade e fascínio pela natureza,pelas montanhas e particularmente pelocanto dos pássaros levaram-no a desen-volver uma linguagem muito particu-lar na literatura musical, que não seassemelha à de outros grupos de com-positores. Desde a infância, quandocomeçou a compor, tendo escrito oPrélude nº1 aos doze anos, se pôs àprocura consciente de uma linguagemúnica, automaticamente atribuída a elepor quem ouve suas composições.

Adriana considera que o resgate deMessiaen é importante porque tevegrande influência no século XX comocompositor e professor de grandes au-

tores como Pierre Boulez, PierreHenry, Jean Barraqué, KarlheinzStockhausen, Iannis Xenakis, YvonneLoriod, Almeida Prado e TristanMurail. Estudá-lo leva ao resgate designificativas influências que deixouem certas vertentes percorridas pelamúsica de composição. Ela afirma quena música do século XX o estudo dedeterminados compositores comoBeethoven, Mozart, Bach é fundamen-tal para entender certas vertentes mu-sicais, e entre eles situa Messiaen,Debussy, Stravinsky, Cage, Varèse,Berio e Penderecki.

Acha seu estudo fundamental paraa compreensão dos procedimentoscomposicionais de outros composito-res representativos. Diz que no séculoXX têm-se compositores que caminha-ram em paralelo e deram origem a di-versas tendências contíguas. Estudá-lospermite melhor degustação dos cami-nhos percorridos pela música.

Adriana se propôs na tese, orienta-da pela professora Maria Lucia Pascoale co-orientada pelo professor MauricyMatin, inter-relacionar técnicas de aná-lise musical desenvolvidas durante osséculos XX e XXI e associá-las aos

conceitos proferidos por Olivier Mes-siaen; ampliar o referencial teórico docompositor e contribuir para a biblio-grafia sobre análise musical em línguaportuguesa; bem como analisar cincode suas peças para piano, contextuali-zando-as. Conclui o trabalho traçandovertentes tanto em relação às técnicasde análise utilizadas, como em relaçãoà obra de Messiaen como um todo.

A autora considera ainda que a pos-tura aberta do compositor perante osacontecimentos artísticos levou-o adescobertas diárias, sobretudo autodes-cobertas, em que toda a experiênciavivida pode tornar-se música.

Diz ainda que Messiaen, ao criaruma linguagem própria, baseou-a emuma amálgama de materiais que pare-ciam díspares – em um misticismo re-ligioso católico, na natureza, na pes-quisa sobre o canto dos pássaros, napesquisa da rítmica grega e indiana enuma visão psicológica das cores quelhe sugeriam sons e música. Traduziuesses elementos extramusicais em no-tas musicais, compondo com base nis-so. Adriana entende que esse diferen-cial norteia a compreensão desse com-positor.

TécnicasAdriana lembra que a música do

século XX é de audição mais comple-xa. Existem técnicas que ajudam o ana-lista a explicar como a peça opera, fun-ciona e é construída. Entre essas técni-cas, a que mais costuma utilizar é a te-oria dos conjuntos de sons, que podeser aplicada à grande parte da músicainstrumental produzida nessa época.Mas existem também técnicas especí-ficas para análise da rítmica, da textu-ra, do contorno melódico – que mos-tram como esses parâmetros musicaisinteragem entre si. Ela associou essastécnicas mais generalizantes às deMessiaen, pois as deles só podem serutilizadas em suas composições. Aofazê-lo, constata, abre-se a possibilida-de de se aprofundar na forma como elepensava e trabalhava sua obra. Essa foia idéia central que norteou o trabalho.O público conhecedor das técnicas doséculo XX, que aprendeu analisandoobras de Beethoven, Mozart, Bach, Villa-Lobos, Almeida Prado, pode, a partirdesse conhecimento, compreender amaneira como Messiaen trabalhava.

Um fato sucedido na vida deMessiaen e que seus biógrafos não es-clarecem, conta Adriana, está ligado aoBrasil. Como o compositor tinha a idéiade publicar um segundo Catalogued’oiseaux utilizando sons de pássarosde outros países que não a França, ini-ciativa de Almeida Prado levou o rei-tor da Unicamp da época, professorAristodemo Pinotti, a acertar sua vin-da ao Brasil. Enquanto pesquisasse ocanto dos pássaros brasileiros, lecio-naria composição musical e sua espo-sa, Yvonne Loriod, piano no curso demúsica da Unicamp. Acertaram-se comantecedência calendário, ornitólogoque o acompanharia e patrocínio. Masquando a vinda do compositor se avi-zinhava, houve cancelamento do patro-cínio. Messiaen, que já anunciara a re-alização do projeto, assumiu outros tra-balhos e não voltou mais ao assunto.Com sua morte, seus biógrafos ficaramsem saber por que o projeto não foiconcretizado. O assunto só voltou àbaila com a participação de AlmeidaPrado no exame de qualificação deAdriana.

O AdrianaLopesda CunhaMoreira,autorada tese:pesquisaampliareferênciasbibliográficas

Foto: Antoninho Perri

OcompositorfrancêsOlivierMessiaenMessiaen

Na seqüência, algumas das fontes de inspiração de Olivier Messiaen: interior da Catedral de St-Etienne, em Bourges; vitrais da Sainte-Chapelle, em Paris; o pássaro Rouge gorge (pisco depeito ruivo); vista do Mont Blanc a partir de Chamonix, nos Alpes franceses; e fachada da Église de la Sainte Trinité, em Paris, onde o compositor trabalhou como organista, entre 1931 e 1992

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