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Murilo Duarte Costa Correcirca
MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO
UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON
Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Direito
Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Direito
Satildeo Paulo
2013
Murilo Duarte Costa Correcirca
MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO
UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON
Tese apresentada como requisito parcial agrave
obtenccedilatildeo do grau de Doutor no Programa de
Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito aacuterea de Filosofia
e Teoria Geral do Direito da Faculdade de
Direito do Setor de Ciecircncias Juriacutedicas da
Universidade de Satildeo Paulo sob orientaccedilatildeo
do Prof Dr Guilherme Assis de Almeida
Universidade de Satildeo Paulo Faculdade de Direito
Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Direito
Satildeo Paulo
2013
MEMOacuteRIA E JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO
UM ESTUDO Agrave LUZ DA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON
por
MURILO DUARTE COSTA CORREcircA
Tese aprovada como requisito parcial para obtenccedilatildeo do grau de Doutor em Filosofia e Teoria
Geral do Direito no Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito da Faculdade de Direito da
Universidade de Satildeo Paulo pela comissatildeo formada pelos seguintes professores
Orientador Prof Dr Guilherme Assis de Almeida
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP
Membro Profordf Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito USP
Membro Profordf Associada Deisy de Freitas Lima Ventura
Instituto de Relaccedilotildees Internacionais USP
Membro Prof Titular Joseacute Antocircnio Peres Gediel
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Direito UFPR
Membro Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia
Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia PUC-PR
Satildeo Paulo _______ de ________________ de 2013
para Maria
devoraccedilotildees para outros devires
4
AGRADECIMENTOS
A experiecircncia da escrita eacute uma espeacutecie de atletismo que cria um pedaccedilo de concreto
ao mesmo tempo em que interroga os limites das forccedilas imaginativas e conceituais em
relaccedilatildeo a ele Essa pequena passagem que se tentou produzir dos ldquoafetos da ordemrdquo para
ldquouma outra ordem dos afetosrdquo teria sido ndash senatildeo impossiacutevel ndash por certo vatilde sem os
encontros intensivos que a experiecircncia de escrevecirc-la proporcionou Essas pequenas
devoraccedilotildees de Bergson teriam sido muito menos saborosas sem a presenccedila doce de minha
amada Maria Fernanda Battaglin Loureiro a quem dedico cada uma dessas ndash por vezes
longas hermeacuteticas e com sorte voluntariosamente joycianas ndash linhas Agrave sua companhia
amaacutevel e inquieta dedico tambeacutem tantas outras ndash todas as outras ndash porque natildeo se escreve
se natildeo for para penetrar o amor com a alma e a alma com o amor
Agrave minha famiacutelia (Mirian Camile) e agrave famiacutelia de Maria (Ceacutelia Wilson Otaacutevia
Joatildeo) agradeccedilo por toda amabilidade e aconchego de sempre pelas conversas de almoccedilos
de domingo Estar com vocecircs eacute sempre domingo
Ao orientador deste trabalho Prof Dr Guilherme Assis de Almeida agradeccedilo pela
orientaccedilatildeo mas sobretudo pela inspiraccedilatildeo que representa raro professor digno de
admiraccedilatildeo por aliar erudiccedilatildeo criativa sensibilidade teoacuterica e preocupaccedilatildeo concreta com a
efetividade dos direitos humanos ndash marca indeleacutevel de sua orientaccedilatildeo da qual este trabalho
natildeo poderia pretender ser mais do que um singelo legado
Ao Professor Associado Eduardo Carlos Bianca Bittar agradeccedilo por ter me
apresentado ao Prof Guilherme mas tambeacutem pela atenccedilatildeo que sempre dispensou a minhas
duacutevidas e inquietaccedilotildees teoacuterias tambeacutem por toda a Teoria e Criacutetica dos Direitos Humanos
que aprendi consigo ndash aprendizado indispensaacutevel agrave formulaccedilatildeo dos problemas que se
seguem
Agrave Professora Associada Elza da Cunha Pereira Boiteux agradeccedilo pelas aulas pelo
apoio e pelo incentivo nesses anos de doutorado Sobretudo pelo exemplo de simplicidade
sensibilidade e saber
Aos Professores Associados Samuel Barbosa e Deisy Ventura agradeccedilo por todas
as sugestotildees e por todo o auxiacutelio que na etapa de qualificaccedilatildeo deste trabalho foram
determinantes para o seu aperfeiccediloamento
Agrave Professora Associada do Departamento de Antropologia Social da Universidade
de Satildeo Paulo Fernanda Arecircas Peixoto agradeccedilo pela gentil acolhida por todas as
5
discussotildees francas sobre o sentido dos quadros socias da memoacuteria a partir de Halbwachs e
Bergson e por tudo o que pude aprender junto a suas aulas e aos colegas da poacutes-graduaccedilatildeo
em Antropologia em As Artes da Memoacuteria Algumas questotildees que a professora Fernanda
nos franqueou satildeo ao menos incidentalmente retomadas aqui
Agrave Professora Maria Adriana Camargo Capello da Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia da
UFPR renovo minha gratidatildeo por ter me conduzido aos fabulosos textos de Bergson em
2009 Ainda que insensivelmente ela e o amigo Marcelo Barbosa satildeo tambeacutem credores
desses aprofundamentos na filosofia bergsoniana da diferenccedila
Ao Prof Dr Eladio Constantino Pablo Craia do Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em
Filosofia da PUC-PR pela amizade simples e leve pelos cafeacutes e pela conversa infinita e
para sempre inacabada sobre a Filosofia Francesa Contemporacircnea suas consequecircncias
ontoloacutegicas e poliacuteticas Sobretudo por sua atenciosa e sempre enriquecedora
disponsibilidade em ler alguns dos originais
Ao Prof Titular da Faculdade de Direito da UFPR Joseacute Antonio Peres Gediel
meus agradecimentos e minha admiraccedilatildeo por ter sido um dos mais eruditos professores de
meus tempos de graduaccedilatildeo por ainda hoje servir-me de exemplo de que o rigoroso e
radical questionamento do Direito se faz com um peacute dentro dele e com outros dois fora
Tambeacutem por aceitar com generosidade minhas participaccedilotildees sempre descontiacutenuas em seu
grupo de pesquisas sobre o corpo
Aos amigos Abili Laacutezaro Castro de Lima Alexandre Morais da Rosa Benedito
Costa Bruno Cava Cleverson Leite Bastos Christina Miranda Ribas Cristiano Knapp
Deisy Ventura Eduardo Sterzi Felipe Augusto Vicario de Carli Gabriel Merheb Petrus
Gilson Bonato Giuseppe Cocco Guilherme Roman Borges Gustavo Chaves Heloiacutesa
Fernandes Cacircmara Idelber Avelar Joseacute Roberto Vieira Laurent de Sutter Leonardo
DrsquoAacutevila de Oliveira Maria de Faacutetima S Tecchio Miguel Gualano de Godoy Paacutedua
Fernandes Ricardo Prestes Pazello e Verocircnica Stigger agradeccedilo pelas amizade e pelas
oportunidades formais e informais de discussatildeo de alguns desses estudos e ideias Aos
alunos orientandos e professores da Faculdade de Direito da Universidade Estadual de
Ponta Grossa agradeccedilo pela presenccedila geradora de ideias alegres e inconstantes Estas
paacuteginas tambeacutem satildeo dedicadas a vocecircs
6
O tempo insiste porque existe
um tempo que haacute de vir
Vinicius de Moraes
7
RESUMO
O presente estudo tem por objeto investigar a gecircnese dos potenciais
transformativos geralmente atribuiacutedos agrave memoacuteria pelos modernos teoacutericos da Justiccedila de
Transiccedilatildeo A partir de sua relaccedilatildeo geneacutetica com o Direito Internacional dos Direitos
Humanos elucidaram-se os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo demonstrando-se tanto a centralidade da memoacuteria na efetuaccedilatildeo das praacuteticas
transicionais como uma constante atribuiccedilatildeo de potenciais transformativos agrave memoacuteria
Uma vez diagnosticada a lacunaridae dessa relaccedilatildeo ndash jamais explicada em sua dinacircmica
proacutepria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash formulou-se a hipoacutetese de que um
conceito ontoloacutegico dinacircmico e metaindividual de memoacuteria tal como registrado pela
filosofia de Henri Bergson poderia abranger os heterogecircneos conceitos de memoacuteria dos
teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo com a vantagem analiacutetica de permitir integrar a lacuna
teoacuterica encontrada explicando-se como se podem atribuir potenciais transicionais agrave
memoacuteria Para tanto foi necessaacuterio demonstrar que a filosofia bergsoniana da duraccedilatildeo
instaura um viacutenculo entre ontologia e poliacutetica duraccedilatildeo real memoacuteria e variaccedilatildeo das formas
de vida Em seguida buscamos derivar dessa ontologia poliacutetica bergsoniana as
consequecircncias subjetivas morais e institucionais correlatas a dois grandes referenciais que
Bergson e a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo possuem em comum a democracia e os direitos
humanos Dessa forma pretendeu-se estabelecer um problema ainda natildeo investigado no
acircmbito da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer-lhe uma soluccedilatildeo original agrave luz de sua
interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson seu conceito de memoacuteria e suas
implicaccedilotildees poliacuteticas
Palavras-chave Memoacuteria Justiccedila de Transiccedilatildeo Henri Bergson
8
ABSTRACT
The present essay aims to investigate the genesis of transformative potencies
generally assigned to memory by modern Transitional Justicersquos theorists Starting on its
genetic relationship with International Human Rights Law this essay have clarified the
patterns of memory in Transitional Justice proving the central role played by memory in
the field of transitional practices as well as it has demonstrated the constant assignment of
transformative potencies to memory Once established these patterns this study diagnosed
a theoretical gap on connecting memory and transition on Transitional Justice theory
Therefore according to our hypothesis an ontological dynamic and meta-individual
concept of memory as registered on Bergsonrsquos philosophy would comprehend
Transitional Justicersquos heterogenic notions of memory and could go far beyond them By
this mean we were able to fulfill the theoretical gap encountered in order to clarify how is
possible to assign transitional potencies to memory Thus this study demonstrates that
Bergsonrsquos durational philosophy promotes a connection between ontology and politics
real duration memory and variation of ways of life Afterwards we derivated from that
bergsonian political ontology subjective moral and institutional consequences related to
democracy and human rights ndash referrals that Bergson and Transitional Justicersquos theorists
have in common We have tried to establish a problem not yet investigated by Transitional
Justice Theory and offer a original solution to it since Henri Bergsonrsquos philosophy his
concept of memory and its political implications
Key-words Memory Transitional Justice Henri Bergson
9
SUMAacuteRIO
RESUMO 7
ABSTRACT 8
INTRODUCcedilAtildeO 11
PRIMEIRA PARTE
O ATUAL MEMOacuteRIA E TRANSICcedilAtildeO NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE
TRANSICcedilAtildeO 15
CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO E O
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS 16
CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO SEIO DAS
TRANSICcedilOtildeES 30
sect 1 Direito instituiccedilotildees e transiccedilatildeo 30
sect 2 O que um passado tem de insuportaacutevel notas sobre a continuidade do passado no
presente a partir do caso brasileiro 37
CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA DE
TRANSICcedilAtildeO 46
sect 1 Memoacuteria verdade e Direito Internacional dos Direitos Humanos 49
sect 2 Os contornos do conceito de memoacuteria no campo transicional 53
sect 3 A centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativos 64
SEGUNDA PARTE
O VIRTUAL A IDEIA DE MEMOacuteRIA NA FILOSOFIA DE HENRI BERGSON 84
CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER DO
PASSADO 85
sect 1 Bergsonismo muacuteltiplas entradas 88
sect 2 Duraccedilatildeo o sentido e a realidade do tempo 97
sect 3 Do ser presente ao ser do passado 110
CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO 126
sect 1 O problema do reconhecimento o ceacuterebro e as duas memoacuterias 127
sect 2 Coexistecircncias a consistecircncia virtual da memoacuteria 141
sect 3 O ser do passado como fundamento do tempomemoacuteria repeticcedilatildeo e devir 157
TERCEIRA PARTE
LINHAS DE ATUALIZACcedilAtildeO BERGSON O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO 168
CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E
DIREITOS HUMANOS 169
sect 1 O fechado o social e o vital 172
sect 2 Abrir o fechado ruptura e devir 198
10
sect 3 Perseverar no abertotransiccedilatildeo democracia e direitos humanos 214
sect 4 Retornar ao concretomemoacuteria e justiccedila de transiccedilatildeo 251
CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 268
REFEREcircNCIAS 275
11
INTRODUCcedilAtildeO
ldquoSua narrativa afirma que o inesqueciacutevel existerdquo A frase de Krikor Beledian
evocada em um dos textos de Lembrar escrever esquecer (GAGNEBIN 2006 p 47)
consiste na nota fundamental que percorre todas essas paacuteginas por ressonacircncia ou
incandescecircncia Ela eacute seu princiacutepio de impureza e contaminaccedilatildeo No entanto ela eacute lida a
partir de uma forma de exerciacutecio quase patoloacutegico do pensamento eacute dizer ela eacute lida
literalmente levada ao limite de sua proacutepria expressatildeo ao limiar do que Beledian talvez
jamais quisera dizer ao enunciaacute-la
Assim afirmar que o inesqueciacutevel existe torna-se natildeo uma tarefa essencial poliacutetica
e eacutetica sem gloacuteria do historiador que luta contra a repeticcedilatildeo do horror Ela eacute isso mas eacute
mais que isso A afirmaccedilatildeo de que o inesqueciacutevel existe eacute aqui assumida como um iacutendice
de positividade instaurador de um limiar significante a partir do qual jaacute natildeo parece mais tatildeo
absurdo afirmar a realidade ou o ser da memoacuteria Ela eacute o inesqueciacutevel ndash mas tambeacutem a
obscura espectral e ativa presenccedila do imemorial
As paacuteginas que se seguem consistem pois em uma maacutequina de produzir essa
afirmaccedilatildeo ldquoo inesqueciacutevel existerdquo Jaacute natildeo se trata de algo que desejando-o natildeo queremos
esquecer mas de um apelo agrave compreensatildeo da memoacuteria como uma regiatildeo do existente do
real Isso implica recusar toda estrateacutegia de reduccedilatildeo do conceito de memoacuteria a seus
aspectos de lembranccedila individual ou psicoloacutegica de representaccedilatildeo coletivamente
partilhada fundadora de identidades de grupo ou de forma vazia e ontologicamente
negativa de representificaccedilatildeo de algo ausente O passado nesse caso seria apenas o que
natildeo eacute mais o futuro o que natildeo eacute ainda
Nesse sentido as formulaccedilotildees modernas e contemporacircneas da Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo1 satildeo mobilizadas como campo teoacuterico e problemaacutetico concreto a partir do qual
essa recusa eacute colocada em jogo Contemplando praacuteticas institucionais e simboacutelicas a serem
efetuadas em momentos de fluxo poliacutetico (justiccedila reparaccedilatildeo reformas purgas etc) eacute nos
quadros da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo que a memoacuteria aparece continuamente como
elemento chave para sua efetuaccedilatildeo Portanto eacute no seio da Justiccedila de Transiccedilatildeo que as
interrogaccedilotildees sobre uma memoacuteria despida de qualquer realidade podem adquirir contornos
metafiacutesicos mas tambeacutem poliacuteticos relacionados agrave constituiccedilatildeo de novas formas de vida
1 Paul Van Zyl (2009a p 32) define brevemente Justiccedila de Transiccedilatildeo como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da
paz sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos direitos
humanosrdquo
12
A dimensatildeo poliacutetica da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constitui ainda
uma constante Comumente satildeo atribuiacutedos potenciais transformativos agrave memoacuteria de forma
que a veremos aparecer como uma espeacutecie de condiccedilatildeo (positiva ou negativa) sempre
ligada agrave efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees reais O que permanece lacunar e sem explicaccedilatildeo ndash lacuna
que devemos demonstrar em detalhe ndash consiste justamente no aparente automatismo dessa
atribuiccedilatildeo No entanto como atribuir a um conceito individual os potenciais de produzir
mutaccedilotildees poliacuteticas de grande escala Como emprestar potenciais transformativos e
dinacircmicos a um conceito coletivo mas representativo e estaacutetico Como a contumaz faceta
ontoloacutegica negativa pela qual se pensa a memoacuteria ndash como conceito sem realidade proacutepria ndash
poderia engendrar as positividades que uma transiccedilatildeo real exige e nas quais ganha corpo
concreto Ao se fazer da memoacuteria uma espeacutecie de deus ex machina das transiccedilotildees reais
todas essas questotildees permaneceriam sem explicaccedilatildeo
Essa lacuna eacute progressivamente identificada e estabelecida a partir de uma
correlaccedilatildeo geneacutetica entre a moderna Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos Em seus quadros definimos estruturalmente as
formas e praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo aprofundando-as progressivamente a fim de
esclarecer o sentido do binocircmio memoacuteria-verdade Ele nos forneceria a chave de
interrogaccedilotildees metaestruturais pelas quais poderemos estabelecer os contornos analiacuteticos do
conceito de memoacuteria tal como ele eacute heterogeneamente engendrado pelos teoacutericos da
Justiccedila de Transiccedilatildeo
Realizado esse percurso ao qual dedicamos a primeira parte deste trabalho
resultaria necessaacuterio interrogar de que maneira se poderia integrar a lacuna encontrada
pois natildeo conseguir explicar a origem dos potenciais transformativos da memoacuteria implica
expocirc-la ao risco poliacutetico de denegaacute-la impunemente ou de soldaacute-la acriticamente agraves
narrativas oficiais Ao mesmo tempo a lacuna uma vez estabelecida teria deixado exposto
e aberto o fundamento infundado dos potencias transicionais continuamente atribuiacutedos agrave
memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
Poreacutem intuiccedilotildees preacute-conceituais e natildeo hegemocircnicas no campo teoacuterico da Justiccedila de
Transiccedilatildeo ofereceriam tendecircncias cujos devires poderiacuteamos amarrar integrando a um novo
e mais compreensivo conceito natildeo apenas as heterogecircneas camadas de memoacuteria elaboradas
pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo mas tambeacutem oferecer uma contribuiccedilatildeo a este
campo teoacuterico e juriacutedico a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson
Poreacutem por que Bergson Eacute preciso explicar como o bergsonismo nos auxilia a
ldquoamarrar deviresrdquo conceituais que se insinuam a partir do proacuteprio marco teoacuterico da Justiccedila
13
de Transiccedilatildeo Ao longo do terceiro capiacutetulo registramos a apariccedilatildeo de duas noccedilotildees preacute-
conceituais de memoacuteria entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo A primeira
reconceptualizava a memoacuteria como memoacuteria dinacircmica instaacutevel flexiacutevel a partir das
recentes descobertas das neurociecircncias sobre as funccedilotildees evolutivas e adaptativas da
memoacuteria (BARSALOU BAXTER 2007 p 04 PHELPS 2012 p 07 e NAGEL
SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) A segunda conceituava a memoacuteria
independentemente dos referenciais da lembranccedila individual Cada uma dessas tendecircncias
de efetuaccedilatildeo do conceito precisaria cruzar-se com a outra a fim de produzir uma memoacuteria
ao mesmo tempo dinacircmica e emancipada dos referenciais meramente individuais No
entanto ateacute o presente a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo conseguiu apreendecirc-la nesse
sentido Os autores que compreendem o sentido dinacircmico da memoacuteria ndash por influecircncia do
campo experimental das neurociecircncias ndash estabelecem o conceito a partir do campo das
memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Os que engendram um conceito de memoacuteria que visa
a superar o campo individual ndash ainda que a qualifiquem vagamente como um ldquoprocessordquo
jamais detalhado ndash natildeo escapam ao fixismo e agrave loacutegica da representaccedilatildeo Aleacutem disso restara
em aberto determinar de que maneira se podem atribuir potenciais transformativos agrave
memoacuteria isto eacute o que justifica que ela apareccedila constantemente como elemento chave agrave
efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees
Eacute no sentido de esclarecer esses dois problemas que mobilizamos a filosofia de
Henri Bergson (1) engendrar um conceito de memoacuteria mais compreensivo ao mesmo
tempo dinacircmico e emancipado de um referencial forccedilosamente individual promovendo
uma interlocuccedilatildeo interdisciplinar com sua filosofia a partir de problemas estabelecidos na
Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (2) a partir do estabelecimento desse conceito ndash que
adquire em Bergson tonalidades ontoloacutegicas ndash trata-se de apresentar uma colaboraccedilatildeo
original para elucidar a gecircnese dos potenciais transformativos atribuiacutedos agrave memoacuteria nesse
campo teoacuterico afastando os riscos poliacuteticos inerentes agrave lacunaridade Esses objetivos
baseiam-se na hipoacutetese de que eacute necessaacuterio rearticular o conceito de memoacuteria na teoria da
Justiccedila de Transiccedilatildeo de um ponto de vista ontoloacutegico e ainda assim dinacircmico e natildeo
meramente individual ou psicoloacutegico a fim de explicar a relaccedilatildeo sempre solicitada mas
elidida entre memoacuteria e transiccedilatildeo
Por isso seraacute necessaacuterio reconstituir as linhas gerais da argumentaccedilatildeo de Bergson
sobre a memoacuteria compreendendo-a como uma ldquoregiatildeo do existenterdquo Essa memoacuteria ndash
dando consistecircncia agrave afirmaccedilatildeo de que ldquoo inesqueciacutevel existerdquo ndash seraacute qualificada como o
virtual um dos registros que juntamente com o atual consistem nas duas metades que
14
compotildeem uma mesma estrutura do real para Bergson Enquanto o atual apareceraacute soldado
ao espaccedilo e agrave inteligecircncia ndash embora continuamente variaacutevel em funccedilatildeo do tempo ndash o
virtual designa a duraccedilatildeo real potecircncia de variaccedilatildeo das formas inorgacircnicas orgacircnicas e
poliacuteticas Desse ponto de vista esclarecer de que forma a memoacuteria pode consistir em
fundamento do tempo eacute muito mais do que um exerciacutecio abstrato e metafiacutesico estabelececirc-
lo implica jaacute compreender em profundidade a partir do ser ndash que para dizecirc-lo em uma
palavra em Bergson confunde-se com o devir ndash a centralidade da memoacuteria como
elemento chave nas estrateacutegias genuinamente poliacuteticas para fender as camadas soacutelidas do
atual ou do presente Como natildeo seria esta precisamente a questatildeo uacuteltima de toda a Justiccedila
de Transiccedilatildeo ldquocomo reabrir o fechadordquo Como responder a ela evocando uma memoacuteria
fixa e representativa ou meramente dinacircmica e individual ndash ainda que conserve uma
natureza profundamente emocional (ELSTER 2003 p 11)
Toda a longa demonstraccedilatildeo que tem por objeto a filosofia bergsoniana articulada a
partir das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo em seus diversos niacuteveis de atualizaccedilatildeo (do
ontoloacutegico ao poliacutetico) envolve as diversas e heterogecircneas camadas de memoacuteria a partir de
um solo comum e imanente uma ontologia da memoacuteria capaz de explicar mesmo o ato
aparentemente mais individual ndash seja ele o ato de reminiscecircncia do vivido seja ele o ato de
liberdade que como veremos manteacutem uma relaccedilatildeo essencial com a memoacuteria no
bergsonismo
Nas linhas que se seguem a esta breve introduccedilatildeo seraacute preciso avaliar tambeacutem
como Bergson mobiliza seu conceito ontoloacutegico e potente de memoacuteria ndash que se confunde
com as virtualidades que produzem atualizaccedilotildees e variaccedilotildees contiacutenuas no Todo do real ndash a
fim de construir um viacutenculo agraves nossas vistas indissoluacutevel entre sua ontologia da memoacuteria
e a dimensatildeo da poliacutetica Como extensatildeo desse mesmo gesto seraacute preciso verificar de que
modo Bergson poderia auxiliar a lanccedilar luzes sobre os arcanos dos potenciais
transformativos da memoacuteria do ponto de vista da mutaccedilatildeo institucional e poliacutetica concreta
Nesse limiar envolvem-se os conceitos de aberto e transiccedilatildeo entrevistos a partir da
intuiccedilatildeo miacutestica e da emoccedilatildeo criadora como motores profundos das transiccedilotildees poliacuteticas
mas tambeacutem da constituiccedilatildeo de instituiccedilotildees democraacuteticas derivadas do apelo universal que
proveacutem dos Direitos Humanos capazes de nos permitir reabrir o fechado combater o
fechamento e perseverar no aberto (Terceira Parte)
15
PRIMEIRA PARTE
O atual memoacuteria e transiccedilatildeo na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
16
CAPIacuteTULO 1 ndash A GEcircNESE DA TEORIA DA JUSTICcedilA DE TRANSICcedilAtildeO
E O DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
A literatura claacutessica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao registrar a longa histoacuteria
das experiecircncias juriacutedicas transicionais natildeo raro a faz remontar a periacuteodos arcaicos que se
confundem com as primeiras emergecircncias de uma forma democraacutetica de governo no
Ocidente Jon Elster (2006 p 17) o confirma ao assinalar que ldquoLa justicia transicional
democraacutetica es casi tan antigua como la democracia mismardquo
No entanto evitaremos recuar tatildeo intensamente Interessa-nos por ora avaliar
como o conceito de memoacuteria constroacutei-se como o epicentro da Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo bem como analisar sua heterogecircnea composiccedilatildeo nos estritos limites do marco
da produccedilatildeo teoacuterica que se seguiu ao fenocircmeno da internacionalizaccedilatildeo dos direitos
humanos trata-se portanto para o momento de esclarecer que elegemos como ponto focal
de nossa investigaccedilatildeo sobre o conceito de memoacuteria sua elaboraccedilatildeo na moderna Teoria da
Justiccedila de Transiccedilatildeo uma vez que desejamos avaliar a gecircnese reciacuteproca entre o processo
histoacuterico de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos e a emergecircncia de uma doutrina
moderna da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo erigida sobre fundamentos transnacionais
privilegiadamente ao longo da primeira metade do Seacuteculo XX Com isso pretendemos
demonstrar a impossibilidade de se compreender a moderna formulaccedilatildeo da Justiccedila de
Transiccedilatildeo dissociada dos processos que conduziram agrave adoccedilatildeo de mecanismos
internacionais de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo dos direitos humanos especialmente no contexto
histoacuterico-poliacutetico e mundial que se seguiu agraves consequecircncias imprevistas que decorreram
das duas grandes guerras mundiais
O dia 4 de agosto de 1914 assinala o advento da I Guerra Mundial como o evento
explosivo que dilacerara a cena e a comunidade poliacutetica dos paiacuteses europeus Em um
cenaacuterio de inflaccedilatildeo destruiccedilatildeo da classe de pequenos proprietaacuterios e desemprego radical
assiste-se agrave paulatina migraccedilatildeo de compactos grupos humanos que natildeo eram bem-vistos ou
bem-vindos em lugar algum do continente Europeu Deixando seus Estados de origem
esses indiviacuteduos tornavam-se apaacutetridas inassimilaacuteveis e uma vez que perdiam seus
direitos seriam de agora em diante vistos por toda parte como ldquoo refugo da terrardquo
(ARENDT 2009 p 300) ndash expressatildeo que o jornal oficial das SS utilizava para qualificar
os judeus desnacionalizados em massa pelo III Reich entre os quais a proacutepria Arendt em
1933 apoacutes passar por um breve periacuteodo de encarceramento
17
No crepuacutesculo da Primeira Guerra Mundial assiste-se do ponto de vista
macropoliacutetico agrave raacutepida degradaccedilatildeo das estruturas despoacuteticas imperiais europeias Com ela
todas as nacionalidades efervescentes que se encontravam sob o manto imperial satildeo
violentamente liberadas das estruturas nacionais unitaacuterias que as submetiam e voltam-se
umas contra as outras eslovacos contra tchecos croatas contra seacutervios ucranianos contra
poloneses
Nesse cenaacuterio poliacutetico intensamente degradado os dois segmentos humanos que
mais sofreratildeo as consequecircncias dessa realidade dilacerante seratildeo os apaacutetridas e as minorias
que segundo Arendt (2009 p 302) ldquohaviam perdido aqueles direitos que ateacute entatildeo eram
tidos e ateacute definidos como inalienaacuteveis (Direitos do Homem)rdquo dado que jaacute natildeo dispunham
de governos nacionais proacuteprios que os representassem e protegessem ademais
encontravam-se forccedilados a viver sob as leis de exceccedilatildeo dos Tratados das Minorias que
praticamente todos os governos dos Estados sucessoacuterios haviam assinado sob protesto e
natildeo reconheciam como lei
As etnias minoritaacuterias e sem Estado logo veriam a precaacuteria condiccedilatildeo de cidadania
na qual se encontravam ser rapidamente assimilada agrave dos apaacutetridas Entre os anos de 1915
e 1935 mesmo naccedilotildees tradicionalmente reconhecidas pela defesa e proteccedilatildeo dos direitos
humanos ndash como Franccedila Beacutelgica Itaacutelia Aacuteustria e mais tarde Alemanha ndash editaram leis
que permitiram a desnaturalizaccedilatildeo e a desnacionalizaccedilatildeo massiva de cidadatildeos culminando
na lei de Nuremberg que distinguiria em 1935 entre cidadatildeos alematildees de pleno direito e
cidadatildeos sem quaisquer direitos poliacuteticos (AGAMBEN 1996 p 22)
De posse desse poderoso instrumento juriacutedico-poliacutetico que logo se converteria em
instrumento das poliacuteticas totalitaacuterias que faziam sua escalada global a situaccedilatildeo das
minorias e dos apaacutetridas ndash outrora excepcional ndash generaliza-se velozmente a tal ponto que
em certo momento diversos paiacuteses europeus possuiacuteam a capacidade juriacutedica de utilizaacute-lo
para se desfazerem de massas populacionais inteiras
Diante da incapacidade constitucional dos Estados europeus de protegerem os
Direitos Humanos daqueles que haviam perdido com a sua nacionalidade seus direitos de
cidadania a escala de valores dos paiacuteses totalitaacuterios passa a impor-se por toda a parte
Arendt registra que judeus ciganos e trotskistas eram recebidos como ldquoo refugo da terrardquo2
2 Eacute tambeacutem Arendt (2009 p 302) quem destaca a relaccedilatildeo entre os meios teacutecnico-juriacutedicos que tornavam a
desnacionalizaccedilatildeo de cidadatildeos indesejaacuteveis uma capacidade de diversos Estados europeus no periacuteodo do poacutes-
Primeira Guerra e a difusatildeo do antissemitismo a desnacionalizaccedilatildeo teria sido segundo Arendt o mais eficaz
instrumento de propagaccedilatildeo de valores antijudaicos ldquoO jornal oficial da SS o Schwartze Korps disse
explicitamente em 1938 que se o mundo ainda natildeo estava convencido de que os judeus eram o refugo da
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aonde quer que fossem Mais do que uma tentativa alematilde de livrar-se dos judeus sua
perseguiccedilatildeo tinha o propoacutesito de espalhar o antissemitismo como um valor pelos paiacuteses
europeus democraacuteticos Esse tipo de propaganda segundo Arendt teria sido especialmente
eficaz porque sua retoacuterica intriacutenseca anulava a tese jusnaturalista iluminista e redentora
que advogava a existecircncia de direitos humanos inalienaacuteveis ao mesmo tempo em que
revelava a hipocrisia e a covardia dos paiacuteses democraacuteticos em relaccedilatildeo agrave proteccedilatildeo dos
direitos humanos
Segundo Arendt a desintegraccedilatildeo interna dos Estados-Naccedilatildeo observou-se a partir da
Primeira Guerra Mundial uma vez que os Tratados de Paz impostos aos Estados
sucessoacuterios geravam tensatildeo tanto entre as ldquominorias nacionaisrdquo quanto no acircmbito dos
novos Estados As minorias acreditavam-se injusticcediladas pela arbitrariedade dos Tratados
de Paz que contemplavam apenas a alguns povos com Estados enquanto sujeitavam os
demais agrave servidatildeo e agrave falta de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica os Estados receacutem-criados por sua
vez viam os Tratados das Minorias como prova de discriminaccedilatildeo pois somente os Estados
sucessoacuterios restavam-lhes subordinados
Concebidos como um mecanismo de assimilaccedilatildeo das minorias agraves estruturas
sistemaacuteticas dos Estados-Naccedilatildeo a proteccedilatildeo dos Minority Treaties apenas alcanccedilava as
nacionalidades com certa densidade demograacutefica natildeo sendo aplicaacutevel a todas as minorias
ndash as quais foram deixadas sem governo proacuteprio e completamente agrave margem do direito No
entanto os povos contemplados com Estados ainda que politicamente majoritaacuterios
padeciam de certa fraqueza numeacuterica e cultural diante da vultosa diversidade das minorias
nem os Tratados das Minorias tampouco a Liga das Naccedilotildees puderam contudo evitar que
as minorias nacionais fossem assimiladas mais ou menos agrave forccedila agraves estruturas dos Estados
sucessoacuterios
Ignorando completamente a Liga das Naccedilotildees e buscando solucionar de forma
autocircnoma o seu problema de autodeterminaccedilatildeo poliacutetica ndash inencontraacutevel no seio dos
Estados sucessoacuterios ndash as minorias organizam-se ao redor do Congresso dos Grupos
Nacionais Organizados nos Estados Europeus Uma vez que todas as nacionalidades
aderiram ao Congresso terminaram por superar em nuacutemero os povos estatais ainda o
Congresso dos Grupos Nacionais representava uma forma de organizaccedilatildeo que ultrapassava
os tratados da Liga das Naccedilotildees na medida em que estes ignoravam o caraacuteter interestatal
terra iria convencer-se tatildeo logo transformados em mendigos sem identificaccedilatildeo sem nacionalidade sem
dinheiro e sem passaporte esses judeus comeccedilassem a atormentaacute-los em suas fronteirasrdquo (Idem ibidem loc
cit)
19
das nacionalidades minoritaacuterias Isso colocava em xeque o princiacutepio territorial em que se
encontrava baseada a Liga ao mesmo tempo em que apressando sua superaccedilatildeo
antecipava o que viria a ser uma importante caracteriacutestica na gecircnese do Direito
Internacional dos Direitos Humanos no periacuteodo do Poacutes-Segunda Guerra Mundial a
superaccedilatildeo do princiacutepio territorial fiador do poder domeacutestico dos Estados-Naccedilatildeo gerador
da necessidade de deslocar a base normativa dos Direitos Humanos em direccedilatildeo a uma
fundamentaccedilatildeo que jaacute natildeo permanecesse confinada agraves estruturas meramente domeacutesticas ou
nacionais
Disseminados por todos os Estados sucessoacuterios alematildees e judeus dominaram
politicamente o Congresso deflagrando uma relaccedilatildeo colaborativa harmoniosa e suficiente
para manter a agremiaccedilatildeo coesa Em 1933 no entanto com a ascensatildeo de Hitler ao poder
na Alemanha a delegaccedilatildeo judaica exige uma moccedilatildeo congressual de protesto contra o
tratamento dispensado aos judeus pelo governo do III Reich Ao passo em que os alematildees
nacionalmente minoritaacuterios anunciam sua solidariedade agrave Alemanha nazista e conseguem o
apoio da maioria das naccedilotildees minoritaacuterias o antissemitismo floresce em todos os Estados
sucessoacuterios tendo por consequecircncia o abandono do Congresso dos Grupos Nacionais pela
delegaccedilatildeo judaica (ARENDT 2009 p 308)
A importacircncia dos Tratados das Minorias consistiu em terem sido os primeiros
documentos legais que reconheceram a existecircncia das minorias agrave margem do ordenamento
juriacutedico-poliacutetico como instituiccedilatildeo permanente necessitando de uma garantia adicional de
seus direitos Isso significou que se tornava expliacutecito o que ateacute entatildeo o sistema dos
Estados-Naccedilatildeo pregava apenas obscuramente por meio de suas praacuteticas ndash que apenas os
nacionais poderiam ser cidadatildeos efetivos que a lei de um paiacutes natildeo poderia ser responsaacutevel
por pessoas que de alguma forma resistiam agrave assimilaccedilatildeo Dessa forma o Estado passava
de instrumento da lei em instrumento da Naccedilatildeo muito antes de Hitler ter proclamado que
ldquoa lei eacute aquilo que eacute bom para o povo alematildeordquo ndash o desfecho previsiacutevel segundo Arendt
(2009 p 309) das estruturas de Estados-Naccedilatildeo que a forma constitucional de governo
travestiu por longo tempo em impeacuterio da lei
Os Tratados das Minorias visavam a assegurar aos povos nacionais ldquosem Estadordquo
uma garantia adicional de seus direitos ao passo em que estes de jure integravam o corpo
poliacutetico de determinado Estado As Naccedilotildees europeias tradicionais natildeo foram obrigadas a
aderir a eles na medida em que suas estruturas constitucionais jaacute se supunham edificadas
sobre a ideologia da proteccedilatildeo dos direitos do homem distintamente do que acontecia agraves
recentes naccedilotildees sucessoacuterias das quais se exigia proteccedilatildeo adicional agraves minorias
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Por longo tempo considerado apenas uma anomalia legal desprovida de
importacircncia o apaacutetrida recebeu atenccedilatildeo muito tardia quando sua posiccedilatildeo legal foi tambeacutem
aplicada aos refugiados expulsos de seus paiacuteses e desnacionalizados pelos vitoriosos nas
revoluccedilotildees Na eacutepoca que precedeu a Segunda Guerra a desnacionalizaccedilatildeo em massa
constituiacutea um fenocircmeno novo e imprevisto pressupunha uma estrutura estatal que ou era
totalitaacuteria ou jaacute demonstrava completa incapacidade de tolerar oposiccedilatildeo tanto que em
Origens do Totalistarismo Arendt (2009 p 312) sente-se tentada a ldquomedir o grau de
infecccedilatildeo totalitaacuteria de um governo pelo grau em que usa o soberano direito de
desnacionalizaccedilatildeo []rdquo
Com a insidiosa multiplicaccedilatildeo do nuacutemero de apaacutetridas o direito de asilo ndash ateacute
entatildeo siacutembolo dos direitos do homem (ALMEIDA 2001 p 85-96) ndash eacute abolido praacutetica e
tacitamente No mesmo sentido a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem nunca fora
incorporada agrave legislaccedilatildeo interna de nenhum Estado-Naccedilatildeo ateacute este momento Os refugiados
tornam-se um problema pois ao mesmo tempo em que os Estados natildeo conseguiam
desvencilhar-se deles tambeacutem natildeo desejavam tornaacute-los cidadatildeos Constatava-se o
esgotamento das alternativas tradicionais como a repatriaccedilatildeo ou a naturalizaccedilatildeo As
pessoas sem Estado por sua vez insistiam em suas nacionalidades e resistiam agrave
assimilaccedilatildeo por quaisquer outras naccedilotildees
Fracassadas as tentativas de repatriaccedilotildees e naturalizaccedilotildees os apaacutetridas
encontravam-se gravados com uma espeacutecie de condiccedilatildeo de indeportabilidade que logo se
tornaria regra nos campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio (ARENDT 2009 p 317) Um
homem sem Estado era uma anormalidade um fenocircmeno imprevisto que natildeo gozava de
qualquer posiccedilatildeo apropriada na estrutura da lei em geral Ficava pois agrave mercecirc da poliacutecia
que natildeo hesitava em perpetrar ilegalidades para diminuir o nuacutemero de indeacutesirables em seu
paiacutes expulsando-os contrabandeando-os para paiacuteses vizinhos ndash e estes natildeo hesitavam em
retribuir o gesto do mesmo modo Eclodiam conflitos entre poliacutecias transfronteiriccedilas
cresciam as sentenccedilas de prisotildees de apaacutetridas falhavam todas as tentativas internacionais
de estabelecer alguma condiccedilatildeo de legalidade para as massas de povos sem Estado Assim
os campos de internamento tornavam-se o uacutenico substitutivo de uma paacutetria e
generalizavam-se progressivamente como soluccedilatildeo para displaced people
Os mecanismos de naturalizaccedilatildeo falharam a priori frente agrave virtual demanda de
naturalizaccedilatildeo em massa ndash mas sua ineficaacutecia deveu-se tambeacutem agrave circunstacircncia de que os
povos sem Estado tampouco viam grande vantagem na naturalizaccedilatildeo ndash jaacute que os
naturalizados eram frequentemente ameaccedilados com a desnacionalizaccedilatildeo e com a
21
consequente privaccedilatildeo de direitos O apaacutetrida sem direito de residir ou trabalhar era
obrigado a viver constantemente fora da lei embora por sua condiccedilatildeo estivesse sujeito ao
encarceramento sem ter jamais cometido um crime ldquoUma vez que ele constituiacutea a
anomalia natildeo-prevista na lei geral era melhor que se convertesse na anomalia que ela
previa o criminosordquo afirma Arendt (2009 p 319)3 Ao passo em que campos de
concentraccedilatildeo satildeo progressivamente criados em praticamente todos os paiacuteses o mundo
europeu civilizado e livre passa a articular-se com o plexo de valores e a legislaccedilatildeo dos
paiacuteses totalitaacuterios por meio das poliacutecias nacionais que se implantariam em prol da
Seguranccedila Nacional
O que o cenaacuterio europeu do entreguerras colocava em xeque era precisamente a
categoacuterica pretensatildeo expressa na Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo do fim
do seacuteculo XVIII que a um soacute tempo erigia o homem agrave condiccedilatildeo de fonte e objetivo dos
Direitos do Homem aos quais emprestava as qualidades de direitos inalienaacuteveis
irredutiacuteveis recebidos por nascimento e indedutiacuteveis de outros direitos ou de outra
autoridade diversa da natureza humana Tais direitos eram constantemente invocados para
garantir certas prerrogativas dos sujeitos em face do arbiacutetrio dos Estados soberanos sendo
tal soberania proclamada em nome de um conceito abstrato de Homem4 impossiacutevel de ser
apreendido senatildeo diluiacutedo no conceito deveras geral de povo o qual teria direito a um
autogoverno soberano Nesse ponto Hannah Arendt identifica o paradoxo jaacute enunciado na
declaraccedilatildeo de direitos referida a um homem abstrato destacado de todo contexto social ou
comunitaacuterio que compunha o povo de um Estado-Naccedilatildeo associando-se a proteccedilatildeo dos
direitos humanos agrave soberania nacional
Giorgio Agamben (1996 p 24) renova a criacutetica arendtiana ao identificar o que
reputa ser a real funccedilatildeo biopoliacutetica da Declaraccedilatildeo de Direitos de 1789 inscrever a vida nua
natural na ordem juriacutedico-poliacutetica do Estado-Naccedilatildeo5 Agamben diagnostica a ambiguidade
3 Arendt (2009 p 320) diagnostica que ldquoA melhor forma de determinar se uma pessoa foi expulsa do acircmbito
da lei eacute perguntar se para ela seria melhor cometer um crime Se um pequeno furto pode melhorar a sua
posiccedilatildeo legal pelo menos temporariamente podemos estar certos de que foi destituiacuteda dos direitos humanos
Pois o crime passa a ser entatildeo a melhor forma de certa igualdade humana mesmo que ela seja reconhecida
como exceccedilatildeo agrave norma O fato ndash importante ndash eacute que a lei prevecirc essa exceccedilatildeordquo 4 Abstraccedilatildeo constitutiva do conceito moderno de homem ou de natureza humana jaacute denunciada e natildeo sem
ironia por espiacuteritos poliacuteticos tatildeo heterogecircneos como os de Edmund Burke (1820) em seu ldquoReflections on the
Revolution in Francerdquo e Karl Marx (2010) em ldquoSobre a questatildeo judaicardquo Sobre o primeiro conferir ainda
(ARENDT 2009 p 333-336) e para um breve comentaacuterio sobre o segundo ver tambeacutem (DOUZINAS
2000 p 371) 5 ldquoQuella nuda vita (la creatura umana) che nellrsquoAncien Reacutegime apparteneva a Dio e nel mondo classico
era chiaramente distinta (come zoeacute) dalla vita politica (bios) entra ora in primo piano nella cura dello Stato e
diventa per cosigrave dire il suo fondamento terreno Stato-nazione significa Stato che fa della nativitagrave della
nascita (cioegrave della nuda vita umana) il fondamento della propria sovranitagraverdquo (AGAMBEN 1996 p 24)
22
expressa pelo tiacutetulo da Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo em
que natildeo fica claro se ldquoHomemrdquo e ldquoCidadatildeordquo nomeiam duas realidades distintas ou se ao
reveacutes formam uma diacuteade na qual o primeiro termo (ldquoHomemrdquo) eacute apenas o conteuacutedo do
segundo (ldquoCidadatildeordquo)
O liame entre princiacutepios de natividade e da soberania restaria claro na medida em
que a aquisiccedilatildeo dos direitos humanos por nascimento (art 1ordm) aparece condicionada agrave
formaccedilatildeo de uma associaccedilatildeo poliacutetica soberana (arts 2ordm e 3ordm) capaz de garantir sua eficaacutecia
por meio do emprego da forccedila puacuteblica (art 12) instituiacuteda em benefiacutecio de todos6 A raiz
etimoloacutegica latina comum a natio e nascere confirmaria ainda uma vez e de um ponto de
vista genealoacutegico o fenocircmeno do nascimento como a fundamentaccedilatildeo uacuteltima dos Estados-
Naccedilatildeo O que Arendt enxergava como a diluiccedilatildeo da condiccedilatildeo humana concreta na
antropologia filosoacutefica universal e abstrata do iluminismo moderno e em sua reduccedilatildeo
poliacutetica ao conceito de povo constituiria mais profundamente segundo Agamben a
fundamentaccedilatildeo da soberania nacional moderna erigida sobre o que Arendt chamava ldquovida
nua naturalrdquo
Condicionou-se a visatildeo da humanidade como uma famiacutelia de naccedilotildees de forma que
o povo e natildeo o homem representava a imagem do homo cujos direitos eram garantidos
pela Declaraccedilatildeo identificando direitos do homem e direitos dos povos no sistema europeu
de Estados-Naccedilatildeo Com o aparecimento crescente de pessoas e povos cujos direitos natildeo
eram salvaguardados por essa sistemaacutetica os Direitos do Homem ndash supostamente
inalienaacuteveis ndash mostravam-se inexequiacuteveis sempre que surgiam pessoas que natildeo eram
cidadatildes de qualquer Estado soberano (ARENDT 2009 p 327)
A perda da proteccedilatildeo do governo significava a um soacute tempo a perda da condiccedilatildeo de
legalidade em seu paiacutes ndash e em qualquer outro paiacutes Trata-se da degradaccedilatildeo uacuteltima do direito
a ter direitos que decorre natildeo da perda do direito agrave vida agrave liberdade ou agrave propriedade mas
do fato de existirem sujeitos que natildeo pertenciam a qualquer comunidade que se
encontravam em um limiar de absoluta indiferenccedila juriacutedica A lei tornava-se um
mecanismo de produccedilatildeo de indiferenccedila legal incapaz de imaginaacute-los sequer como sujeitos
6 Os dispositivos referidos integram a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo de 1789
In verbis Artigo I ldquoLes hommes naissent et demeurent libres et eacutegaux en droits Les distinctions sociales ne
peuvent ecirctre fondeacutees que sur lrsquoutiliteacute communerdquo artigo II ldquoLe but de toute association politique est la
conservation des droits naturels et imprescriptibles de lrsquohomme Ces droits sont la liberteacute la proprieacuteteacute la
sucircreteacute et la reacutesistance agrave lrsquooppressionrdquo artigo III ldquoLe principe de toute Souveraineteacute reacuteside essentiellement
dans la Nation Nul corps nul individu ne peut exercer drsquoautoriteacute qui nrsquoen eacutemane expresseacutementrdquo artigo XII
ldquoLa garantie des droits de lrsquoHomme et du Citoyen neacutecessite une force publique cette force est donc institueacutee
pour lrsquoavantage de tous et non pour lrsquoutiliteacute particuliegravere de ceux auxquels elle est confieacuteerdquo Disponiacutevel em
lthttpwwwassemblee-nationalefrhistoiredudh1789aspgt Acesso em 11 maio 2013
23
sem espessura O que tornava todos os residentes dos campos intrinsecamente mataacuteveis foi
a criaccedilatildeo preteacuterita de uma condiccedilatildeo de completa privaccedilatildeo de direitos que se manifestava
segundo Arendt (2009 p 330) ldquona privaccedilatildeo de um lugar no mundo que torne a opiniatildeo
significativa e a accedilatildeo eficazrdquo7
O paradoxo praacutetico dos direitos humanos na modernidade encontra-se logo
enunciado quando os direitos do homem deveriam socorrer aquele que perdeu todo o
status poliacutetico e qualquer outra qualidade ndash exceto a de ser unicamente humano ndash a
estrutura juriacutedico-poliacutetica dos Estados-Naccedilatildeo europeus determinava que os direitos
humanos jaacute natildeo poderiam mais vir em seu socorro Precisamente essa lacuna ndash horizonte
natildeo de anomia mas de um direito que quedava absolutamente indiferente em relaccedilatildeo agrave
proteccedilatildeo e tutela da figura humana em seu estado puro e sem qualidades ndash constituiraacute uma
das forccedilas motrizes da gecircnese reciacuteproca da refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos e da
emergecircncia de praacuteticas de Justiccedila de Transiccedilatildeo Esse contexto relaciona-se com as praacuteticas
adotadas nos julgamentos de Nuremberg e Toacutequio de modo que as raiacutezes mais profundas
do processo moderno de internacionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam aos marcos
histoacutericos e teoacutericos que determinaram a constituiccedilatildeo do proacuteprio Direito Internacional dos
Direitos Humanos (FUTAMURA 2008 p 30-51)
A situaccedilatildeo histoacuterica paradoxal que atravessou o entreguerras e atingiu o fim da
primeira metade do seacuteculo XX apoia-se na cesura ndash ainda natildeo completamente desaparecida
da realidade dos Estados-Naccedilatildeo ndash entre homem e cidadatildeo No interior dessa cesura Arendt
e Agamben viram tornar-se aparente o terriacutevel contraste entre o idealismo iluminista
fundador dos Direitos Humanos inalienaacuteveis ndash contido nas declaraccedilotildees liberal-burguesas e
na filosofia moral kantiana na qual estas se inspiraram ndash e a existecircncia de seres humanos
sem direito algum que ao serem privados do direito a ter direitos (ARENDT 2009 p
330) tornavam-se o refugo da terra e no plano de suas concretas existecircncias colocavam
em xeque a validade e a universalidade dos direitos inerentes a uma descarnada condiccedilatildeo
humana
O diagnoacutestico de Arendt estabelecido sobre a desarticulaccedilatildeo entre a vida nua
natural de homens desprovidos de toda condiccedilatildeo de legalidade e sua condiccedilatildeo de
cidadania soacute permitia compreender certa natureza humana e metafiacutesica como o elemento
evanescente do cidadatildeo nacional ndash este sim uacutenica condiccedilatildeo do laccedilo juriacutedico-poliacutetico capaz
7 De acordo com Arendt (2009 p 330) ldquoSoacute conseguimos perceber a existecircncia de um direito a ter direitos (e
isto significa viver em uma estrutura onde se eacute julgado pelas accedilotildees e opiniotildees) e de um direito de pertencer a
algum tipo de comunidade organizada quando surgiram milhotildees de pessoas que haviam perdido esses
direitos e natildeo podiam recuperaacute-los devido agrave nova situaccedilatildeo poliacutetica globalrdquo
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de assegurar a algueacutem o direito a ter direitos no contexto europeu do entreguerras Foi
precisamente essa desarticulaccedilatildeo entre homem e cidadatildeo que tornou juridicamente
possiacutevel ou ao menos indiferente a praacutetica de descartabilidade de seres humanos nos
campos de concentraccedilatildeo e extermiacutenio
Diante disso a reaccedilatildeo de uma miacutetica ldquoconsciecircncia universalrdquo teria orquestrado no
poacutes-Segunda Guerra a refundamentaccedilatildeo dos direitos humanos sob uma base normativa
internacional dotando-os progressivamente de instrumentos de controle de monitoramento
e de mecanismos de promoccedilatildeo e proteccedilatildeo visando a solucionar o paradoxo diagnosticado
por Arendt por intermeacutedio da superaccedilatildeo do modelo westfaliano de normas de muacutetua
abstenccedilatildeo na dinacircmica relacional dos Estados-Naccedilatildeo (LAFER 2008 p 297) Eis o que
designa no periacuteodo do poacutes-1945 uma nova fase dos Direitos Humanos que compreende a
institucionalizaccedilatildeo da comunidade internacional e a criaccedilatildeo de novos documentos
internacionais ndash especialmente a partir do advento fundacional da Declaraccedilatildeo Universal
dos Direitos Humanos (ALMEIDA 2001 p 13-14)8 ndash mas tambeacutem desenvolve um
periacuteodo de crescente positivaccedilatildeo internacional ampliado com a ediccedilatildeo dos Pactos
Internacionais de Direitos Civis e Poliacuteticos e de Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais
em 1966
Dezenas de documentos internacionais contemplando mecanismos de efetivaccedilatildeo e
proteccedilatildeo internacional dos Direitos Humanos seguem-se a 1966 consagrando-se na
Conferecircncia de Teeratilde de 1968 (art 13) a interdependecircncia e a indivisibilidade entre
Direitos Civis e Poliacuteticos e Direitos Econocircmicos Sociais e Culturais conquistada apoacutes
longas e difiacuteceis negociaccedilotildees multilaterais (DOUZINAS 2007 p 15) Do ponto de vista
da construccedilatildeo de um regime juriacutedico universal para os Direitos Humanos seu apogeu teria
sido a criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como mecanismo supraestatal e permanente
de tomada e prestaccedilatildeo de contas (AMBOS 2009 p 67-86)
A fim de compreender esse percurso histoacuterico Ruti Teitel (2003 p 70-71)
descreve a evoluccedilatildeo das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash e a consequente formulaccedilatildeo
teoacuterica de que essas praacuteticas passaratildeo a depender ndash a partir de trecircs recortes histoacutericos9
Embora reconheccedila que as origens da moderna Justiccedila de Transiccedilatildeo remontam agrave Primeira
Guerra Mundial eacute apenas apoacutes a Segunda que ela se torna excepcional e atravessa um
processo de intensa internacionalizaccedilatildeo Uma segunda fase posterior ao fim da Guerra
8 Ver ainda nesse sentido (LAFER 2008 p 298) e ( PIOVESAN 2012 p 175)
9 Argumento genealoacutegico que poucos anos mais tarde reapareceraacute resumido em (TEITEL 2005 p 839-
840)
25
Fria emerge de forma associada agraves vagas democraacuteticas europeias que tecircm iniacutecio no ano de
1989 e que persistem ateacute o final do seacuteculo XX Uma terceira e uacuteltima fase relaciona-se
com as condiccedilotildees contemporacircneas de persistecircncia de conflitos que desenham as fundaccedilotildees
de um direito normalizado de violecircncia Em seu acircmbito Teitel afirma que a Justiccedila de
Transiccedilatildeo que dali emerge jaacute natildeo se filia pura e simplesmente ao internacionalismo ou agrave
construccedilatildeo dos Estados nacionais como resultou das duas primeiras fases mas parece
mover-se da exceccedilatildeo em direccedilatildeo agrave norma a fim de tornar-se o paradigma de todo o rule of
law
Se nos ativermos agrave descriccedilatildeo que Ruti Teitel realiza da primeira fase notaremos
que o julgamento de Nuremberg lanccedila luzes sobre a gecircnese conjunta de uma moderna
Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o fenocircmeno de internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos
no poacutes-Segunda Guerra Dessa perspectiva Nuremberg teria representado o triunfo da
Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos (TEITEL
2003 p 70) ao mesmo tempo em que testemunhava o surgimento de um novo tipo de
ordem normativa poacutes-guerra ndash o que caracterizou por excelecircncia o turning point no
acircmbito do Direito Internacional (DOUZINAS 2007 p 21-22)
O julgamento de Nuremberg teria constituiacutedo um evento sem precedentes na
histoacuteria do Ocidente capaz de unir as duas pontas de uma longa histoacuteria dos combates
poliacuteticos em defesa dos Direitos Humanos de um lado a tradiccedilatildeo da duradoura histoacuteria do
universalismo humanista europeu ndash sumariada na reabilitaccedilatildeo do argumento jusnaturalista
no quadro legal internacional dos direitos humanos ndash e de outro a criaccedilatildeo de novas
categorias como a de crimes contra a humanidade agraves quais se chegava pelo
reconhecimento da forccedila vinculante do costume internacional dos paiacuteses cosidetti
civilizados orientados por princiacutepios universalmente reconhecidos pela Humanidade ndash
argumento costumeiro que foi capaz de suplantar os argumentos situacionistas dos
defensores dos agentes nazistas baseados no princiacutepio da ilegitimidade de tribunais de
exceccedilatildeo na impossibilidade de justiccedila retroativa no argumento poliacutetico do justiciamento
dos perdedores ou no demasiadamente juriacutedico argumento do estrito cumprimento do
dever legal e da adesatildeo das condutas dos agentes violadores de direitos humanos aos
princiacutepios e agraves formas de uma legalidade entatildeo vigentes no Estado alematildeo do III Reich
Ao criminalizarem as violaccedilotildees cometidas pelos Estados nos quadros de um
esquema universal de direitos os julgamentos do poacutes-Segunda Guerra forjaram natildeo apenas
um precedente excepcional mas tambeacutem constituiacuteram o legado formador da base dos
modernos direitos humanos (TEITEL 2000) Como reaccedilatildeo criacutetica agraves falhas dos
26
julgamentos nacionais predominantes no poacutes-Primeira Guerra ndash insuficientes para evitar a
carnificina que teria lugar algumas deacutecadas mais tarde ndash os tribunais de Nuremberg e
Toacutequio deslocaram os padrotildees nacionais canocircnicos em proveito de uma concepccedilatildeo
internacional de justiccedila
Esse deslocamento teve como consequecircncia a extensatildeo dos efeitos de
accountability (prestaccedilatildeo de contas) na direccedilatildeo da responsabilizaccedilatildeo criminal internacional
do Estado e de seus agentes envolvidos na perpetraccedilatildeo de crimes contra a humanidade
alcanccedilando servidores dos mais altos escalotildees do III Reich (TEITEL 2003 p 73) No
entanto esta viragem da Justiccedila de Transiccedilatildeo de fundamentaccedilatildeo nacional em direccedilatildeo a uma
ancoragem internacional natildeo permaneceu imune agraves criacuteticas de que Nuremberg seria uma
justificativa para a intervenccedilatildeo dos Aliados na Guerra ou agraves criacuteticas de que a justiccedila levada
a efeito por esse julgamento natildeo passaria de uma resposta legal internacional dirigida pela
lei do conflito
Especialmente sensiacutevel apoacutes a polarizaccedilatildeo poliacutetica decorrente do contexto da
Guerra Fria seu legado desenvolveu-se de modo que a forccedila de seu precedente contribuiu
com o incremento do Direito Internacional dos Direitos Humanos favorecendo a adoccedilatildeo
da Convenccedilatildeo para a Prevenccedilatildeo e Repressatildeo do Crime de Genociacutedio bem como para a
criaccedilatildeo do Tribunal Penal Internacional como uma de suas mais recentes consequecircncias
de modo que o periacuteodo do poacutes-guerra teria sido ldquoo apogeu da crenccedila do direito como um
instrumento de modernizaccedilatildeo do Estadordquo (TEITEL 2003 p 74)
As transiccedilotildees poliacuteticas que se verificam a partir dos anos 1980 nos paiacuteses do Cone
Sul entatildeo governados por juntas militares que se estabeleceram a partir de golpes de
Estado gerados no seio da polarizaccedilatildeo entre capitalistas e comunistas teriam sido algumas
das ondas concecircntricas desencadeadas pelo colapso da antiga Uniatildeo Sovieacutetica
O que prova o caraacuteter paradigmaacutetico do modelo de Justiccedila de Transiccedilatildeo de
Nuremberg segundo Ruti Teitel (2003 p 75) eacute que os paiacuteses do Cone Sul teriam
questionado em suas transiccedilotildees poliacuteticas em que medida se poderia aderir agravequele modelo
sendo duvidoso o ecircxito de transiccedilotildees baseadas em julgamentos internacionais optando-se
quando muito por deixaacute-los ao encargo domeacutestico Assim a modernizaccedilatildeo e a adoccedilatildeo de
uma forma de Estado de Direito (rule of law) teriam sido equacionadas com a instituiccedilatildeo
de tribunais e a promoccedilatildeo de julgamentos a fim de possibilitar as transiccedilotildees poliacuteticas e a
consequente legitimaccedilatildeo dos regimes sucessores
Apesar disso Teitel (2003 p 76) natildeo deixa de observar que ainda que os
julgamentos tenham sido majoritariamente domeacutesticos nas transiccedilotildees poacutes-Guerra Fria o
27
direito internacional natildeo deixou de desempenhar um papel construtivo fundado no
profundo e paradigmaacutetico horizonte de sentido instaurado por Nuremberg que definiu o
rule of law em termos universalizantes aplicado agora a contextos locais marcados por
uma ineacutedita tensatildeo entre responsabilizaccedilatildeo e anistia entre justiccedila e reconciliaccedilatildeo O
criteacuterio de justo passa a depender mais da singularidade do contexto poliacutetico transicional
que dos valores ideais do modelo de rule of law adotado tendo por consequecircncia a
emergecircncia de uma seacuterie de concepccedilotildees de justiccedila imperfeitas e parciais
Nos anos 1980 as praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e sua correspondente teoria
assumem uma postura questionadora em face do modelo de Nuremberg de modo que as
formas adotadas pelas transiccedilotildees singulares passam a ser intensamente condicionadas pelo
contexto poliacutetico singular ao qual se aplicam (TEITEL 2003 p 78) Os dilemas entre
justiccedila e verdade responsabilidade e reconciliaccedilatildeo seratildeo construiacutedos no corpo das
experiecircncias mais centradas em concepccedilotildees restaurativas e comunitaacuterias testemunhando
uma interaccedilatildeo complexa entre dimensotildees do universal do global e do local apesar de
revelarem uma abordagem mais limitada decorrente dessas tensotildees e da revivescecircncia dos
problemas da legitimidade e da soberania governamental domeacutestica (TEITEL 2003 p
89)
Ruti Teitel (2003 p 73) reconhece que a polarizaccedilatildeo macropoliacutetica gerada pela
Guerra Fria implicou a impossibilidade de universalizar o modelo da Justiccedila de Transiccedilatildeo
construiacutedo no poacutes-Segunda Guerra No entanto Teitel limita-se a afirmar que o modelo do
poacutes-guerra europeu possuiacutea um propoacutesito liberal acentuado e que o internacionalismo
contemporacircneo teria sido profundamente transformado pelos uacuteltimos desenvolvimentos da
globalizaccedilatildeo ndash particularidade que iria ao encontro do que descreve como a terceira fase
genealoacutegica em que diante de um contexto de fragmentaccedilatildeo e persistecircncia dos conflitos a
Justiccedila de Transiccedilatildeo deixaria de ser exceccedilatildeo e passaria a constituir a regra instauradora de
um novo paradigma do rule of law (TEITEL 2005 p 840) Nesse sentido a jurisprudecircncia
internacional atestaria a expansatildeo e a normalizaccedilatildeo do discurso humanitaacuterio de modo que
as fontes de legitimidade disponiacuteveis implicariam um continuum entre o local e o
transnacional
Recentemente o jurista grego Costas Douzinas (2007 p 29) demonstrou como a
retoacuterica dos direitos humanos pocircde ser generalizada e entregue a um uso paradoxal
especialmente a partir dos anos quarenta do seacuteculo XX No seio das batalhas ideoloacutegicas
que pautaram os anos de Guerra Fria os direitos humanos encontrar-se-iam subordinados
agraves prioridades poliacuteticas anticomunistas dos paiacuteses de capitalismo desenvolvido as quais
28
teriam terminado por submeter qualquer potencial emancipatoacuterio encerrado pelos
universais do Ocidente
A partir de 1989 o triunfo aparentemente definitivo dos valores humanitaacuterios natildeo
teria impedido uma recaptura constante da retoacuterica dos direitos humanos no interior do
eufemiacutestico vocabulaacuterio beacutelico das intervenccedilotildees humanitaacuterias lideradas pelos Estados
Unidos da Ameacuterica tampouco teria impedido o desenvolvimento da poliacutetica estadunidense
de ativo envolvimento em questotildees domeacutesticas segundo Douzinas
No interior do mesmo bloco histoacuterico Antonio Negri e Michael Hardt descrevem o
direito de intervenccedilatildeo baseado em uma moralidade que se representa como universal no
coraccedilatildeo do que nomearam ldquoprocesso de constituiccedilatildeo do Impeacuteriordquo anexando uma ciecircncia
poliacutetica fundada no bellum justum como um de seus nefastos poreacutem eficazes instrumentos
operatoacuterios
A nova ordem global natildeo se caracterizaria tanto pela hegemonia de um Estado
mas antes pela difusatildeo generalizada em escala total de uma loacutegica de
governamentalidade imanente flexiacutevel e modulaacutevel capaz de operar como dispositivo de
biopoder em um contexto transnacional coalescente com um permanente estado de
emergecircncia e exceccedilatildeo No interior dessa loacutegica a retoacuterica dos direitos humanos seria a
exemplo do que afirma Costas Douzinas capturada sob a forma do apelo a valores
essenciais de justiccedila de modo que ldquoo direito de poliacutecia eacute legitimado por valores
universaisrdquo (NEGRI HARDT 2006 p 36)
Tanto a genealogia proposta por Teitel como as criacuteticas de Negri Hardt e
Douzinas auxiliam a compreender que se de um lado internacionalizaccedilatildeo dos direitos
humanos e das formas de Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo dois fenocircmenos coalescentes de outro
seu desenvolvimento histoacuterico-poliacutetico eacute essencialmente ambiacuteguo e natildeo implica um
progresso linear unidimensional redentor ou triunfante Costas Douzinas (2007 p 32-33)
parece apreendecirc-lo apropriadamente ao afirmar que os direitos humanos tornam-se a um soacute
tempo maiores e menores Maiores ao passo em que se tornam imprescindiacuteveis e sua
retoacuterica admite os mais variados usos estrateacutegicos menores ao passo em que nos paiacuteses
objeto de ldquointervenccedilotildees humanitaacuteriasrdquo ndash como Afeganistatildeo e Iraque por exemplo ndash o uso
paradoxal de sua retoacuterica impotildee um modelo empobrecido de democracia que eacute tornado
mais importante que a efetiva proteccedilatildeo aos direitos humanos
Essa loacutegica de submissatildeo dos direitos humanos a usos estrateacutegicos nos campos
poliacutetico e econocircmico teria em larga medida determinado o processo continental de
esmagamento das fraacutegeis democracias nacionais latino-americanas desencadeado a partir
29
do golpe de Estado de 1964 no Brasil alastrando-se sistemicamente nos anos seguintes
por diversos paiacuteses da Ameacuterica Latina como Meacutexico (1968) Chile e Uruguai (1973) e
Argentina (1976)
As praacuteticas desenvolvimentistas dos anos cinquenta e sessenta natildeo apenas natildeo seratildeo
desmontadas como seratildeo adaptadas ao discurso nacionalista testemunhando a faceta
conservadora do crescimento econocircmico que ora assumindo a alternativa da antecipaccedilatildeo
neoliberal ndash visiacutevel no modelo argentino ndash ora tornando o Estado o elemento central de
intervenccedilatildeo poliacutetico-econocircmica na construccedilatildeo de alianccedilas com o capital multinacional ndash
mas conservando a proteccedilatildeo do mercado interno como nos modelos brasileiro e mexicano
ndash acabaraacute por conduzir os paiacuteses latino-americanos ao endividamento externo sem que o
crescimento econocircmico tivesse significado outra coisa que natildeo o aprofundamento da
pobreza (NEGRI COCCO 2005 p 104-107)
ldquoA funccedilatildeo das ditadurasrdquo segundo Idelber Avelar (2003 p 262-263) ldquofoi a
instalaccedilatildeo da etapa poacutes-moderna do capitalrdquo em seu sentido jamesoniano em que o capital
transnacional torna-se global e parece colonizar a totalidade do horizonte epocal tornando
problemaacutetica a proacutepria compreensatildeo do presente Na foacutermula do escritor uruguaio Eduardo
Galeano que Avelar recorda para caracterizar a funccedilatildeo histoacuterica das ditaduras ldquotorturou-se
o povo para que os preccedilos pudessem ser livresrdquo
Apesar de contraindicar qualquer messianismo ou triunfalismo intriacutensecos agrave
afirmaccedilatildeo histoacuterica dos direitos humanos a verificaccedilatildeo desses paradoxos e duplos em
nenhum momento advogaraacute a descartabilidade dos direitos humanos Pelo contraacuterio seu
caraacuteter antimessiacircnico designa antes a singularidade das lutas por direitos como um
terreno imanente de combate de reivindicaccedilatildeo e de produccedilatildeo de direitos Douzinas
reconhece nesse sentido que os direitos humanos constituem ainda certo resiacuteduo
transcendental afinal natildeo haacute hoje nenhuma outra linguagem agrave disposiccedilatildeo dos pobres dos
oprimidos e dos torturados senatildeo a da reivindicaccedilatildeo de direitos
Afirmar como Douzinas (2007 p 33) ldquoHuman rights have only paradoxes to
offerrdquo natildeo testemunha nenhum niilismo poliacutetico ou vazio programaacutetico fundamentais
Maiores e menores ao mesmo tempo os direitos humanos constituem o terreno a todo
instante em disputa ainda que nos faccedilam experimentar a mesma estranheza que
experimentava a Alice de Lewis Caroll que se sente crescer e diminuir os direitos
humanos constituem um infinito jogo de paradoxos e de duplos
30
CAPIacuteTULO 2 ndash DIREITO-ENTRE O JURIacuteDICO E AS INSTITUICcedilOtildeES NO
SEIO DAS TRANSICcedilOtildeES
sect 1 DIREITO INSTITUICcedilOtildeES E TRANSICcedilAtildeO
Afirmou-se que o duplo e o paradoxo parecem ser as figuras constitutivas de todo o
pensamento sobre os direitos humanos mas natildeo seria menos vaacutelido dizer o mesmo sobre a
Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Um consenso teoacuterico que atravessa pela quase totalidade de
sua bibliografia recente eacute aquele segundo o qual a Justiccedila de Transiccedilatildeo deixa-se penetrar e
constituir por seacuteries de duplos implicando ao mesmo tempo continuidade e
descontinuidade (TEITEL 2000 p 30) um olhar para o passado e para o futuro (TEITEL
2000 p 113 TEITEL 2010 p 36) estabilidade e instabilidade poliacutetico-institucionais Eacute
no seio dessas continuidades-rupturas influenciadas pelos singulares arranjos de forccedilas
que rejeitando ecleticamente as perspectivas realistas e idealistas Teitel (2000 p 06)
afirma que ldquothe conception of justice in periods of political change is extraordinary and
constructivist It is alternately constituted by and constitutive of the transitionrdquo
Tentando superaacute-la Teitel interpreta a dicotomia entre realistas e idealistas no
terreno da Justiccedila de Transiccedilatildeo como o efeito de superfiacutecie de uma antinomia mais
profunda verificada entre poliacutetica e direito Enquanto os idealistas apostariam na
autonomia do direito e em seu papel determinante sobre a poliacutetica teoacutericos realistas
compreenderiam o direito nos periacuteodos poacutes-conflituais como uma determinaccedilatildeo decorrente
dos arranjos do campo de forccedilas poliacuteticas Ambas as perspectivas no entanto teriam
fracassado em descrever o papel constitutivo que o direito assume em sociedades que
atravessam periacuteodos de radical transformaccedilatildeo poliacutetica Embora haja sensiacuteveis constriccedilotildees
provenientes de seus quadros legais natildeo haacute uma simples e transcendente hegemonia de
regras universais de direitos humanos tampouco uma pura determinaccedilatildeo das instituiccedilotildees e
do direito pela poliacutetica
Se Teitel opta por descrever o papel construtivista que o direito desempenha nos
contextos de transiccedilatildeo eacute com o intuito de assinalar que as instituiccedilotildees satildeo ao mesmo tempo
objeto e causa de transformaccedilotildees operadas no seio de uma singular e contingente dinacircmica
transicional Natildeo haveria portanto modelo universal de accountability capaz de descrever
as razotildees suficientes para converter um Estado autoritaacuterio e violento em Estado
democraacutetico e de Direito
31
O direito eacute constitutivo das instituiccedilotildees ao passo em que medeia a preservaccedilatildeo de
certo niacutevel de continuidade formal e em que incorpora ao mesmo tempo uma genuiacutena
instacircncia de descontinuidade transformativa (TEITEL 2000 p 220 GREADY 2011 p
151) Sua funccedilatildeo eacute a de cesura e a de margem sua qualidade liminar trata-se de um
direito que estaacute entre dois regimes mais proacuteximo de um poder constituinte que no entanto
uma vez despojado de seus caracteres mais claacutessicos natildeo eacute onipotente tampouco
incondicionado uma vez que se estrutura sobre os quadros legais transnacionais dos
Direitos Humanos da Justiccedila de Transiccedilatildeo e das variaccedilotildees que se verificam nos arranjos de
poder locais
O relevante papel desempenhado pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos
nesse aspecto deriva de sua capacidade de mediar com sucesso correntes teoacutericas
derivadas do juspositivismo e do jusnaturalismo superando a relaccedilatildeo convencional entre
direito e poliacutetica ou como quisera Paul Gready (2011 p 10) balanceando-os Embora seja
possiacutevel agrave transiccedilatildeo operar uma alteraccedilatildeo da regra de reconhecimento Teitel afirma que eacute
mais comum haver uma reinterpretaccedilatildeo racionalizadora das bases normativas existentes
testemunhando uma forma especial de continuidade-ruptura
Como resultado do processo de internacionalizaccedilatildeo dos Direitos Humanos
afetaram-se igualmente os quadros da doutrina e das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo10
Consequentemente a Justiccedila de Transiccedilatildeo enriquece-se passando a compreender a
participaccedilatildeo de diversos niacuteveis que concorrem para sua produccedilatildeo institucional como
instituiccedilotildees supranacionais Estados-Naccedilatildeo organismos e indiviacuteduos (ELSTER 2006 p
114)
As instituiccedilotildees supranacionais compreendem os Tribunais Internacionais aiacute
incluiacutedas as Cortes Internacionais de Direitos Humanos que sem representar sucessores ou
vencedores atuam em nome da proacutepria comunidade internacional A paulatina criaccedilatildeo de
oacutergatildeos e mecanismos de controle internacionais com abrangecircncia universal como o
Tribunal Penal Internacional ou regional como os Tribunais Europeus a Corte
Interamericana de Direitos Humanos a Comissatildeo Interamericana de Direitos Humanos
etc determinaram no uacuteltimo dececircnio significativos influxos da internacionalizaccedilatildeo dos
Direitos Humanos sobre o quadro legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo (ZYL 2009a p 32-33)
Segundo Paul Van Zyl (2009a p 33) esse horizonte de compreensatildeo e influecircncia
implica a vinculaccedilatildeo dos Estados a normas internacionais claras que determinam
10
Cf supra Capiacutetulo 1 ldquoA gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos
Humanosrdquo
32
proibiccedilotildees universais especialmente com a ratificaccedilatildeo de mais de cem paiacuteses da criaccedilatildeo do
Tribunal Penal Internacional No que concerne agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo mais
especificamente no ano 2000 o Secretaacuterio Geral da ONU apresentou relatoacuterio no qual se
consagrava com precedecircncia o foco das Naccedilotildees Unidas sobre as questotildees da justiccedila
transicional
Kai Ambos (2009 p 29-30) compreende o proacuteprio desenvolvimento do regime
legal da Justiccedila de Transiccedilatildeo nos quadros do Direito Internacional dos Direitos Humanos
na medida em que esse regime normativo estrutura-se em correlaccedilatildeo com a revisatildeo e sua
reafirmaccedilatildeo histoacuterica a partir de 1948 em convenccedilotildees que tinham por objeto o Genociacutedio
as Convenccedilotildees de Genebra ndash para melhoria da sorte dos exeacutercitos em campanha (I) para
melhoria da sorte dos feridos enfermos e naacuteufragos das forccedilas armadas no mar (II)
relativa ao tratamento de prisioneiros de guerra (III) e agrave proteccedilatildeo de civis em tempos de
guerra (IV) ndash em 1949 mas tambeacutem em conexatildeo com a Convenccedilatildeo Internacional contra a
Tortura e outros Tratamentos e Penas Crueacuteis Desumanos e Degradantes aprovada pela
Assembleia Geral da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas em de 10 de dezembro de 1984
Em segundo plano do ponto de vista regional observa-se o fortalecimento dos
regimes democraacuteticos na Ameacuterica Latina Aacutesia e Aacutefrica com a intensificaccedilatildeo do
surgimento e da participaccedilatildeo de organizaccedilotildees da sociedade civil no combate a graves
violaccedilotildees de direitos humanos Por essa razatildeo Javier Ciurlizza (2009a p 25) constata a
especial influecircncia do sistema interamericano de proteccedilatildeo e promoccedilatildeo de direitos humanos
sobre a escala internacional da definiccedilatildeo dos quadros normativos da Justiccedila de Transiccedilatildeo
reconhecendo que ldquoo sistema interamericano de direitos humanos desenvolveu ampla
jurisprudecircncia relacionada agraves obrigaccedilotildees internacionais dos Estadosrdquo
Kai Ambos (2009 p 34-36) de seu turno cita extensa jurisprudecircncia de casos da
Corte Interamericana de Direitos Humanos a fim de obter o perfil normativo internacional
da Justiccedila de Transiccedilatildeo envolvendo entre os conteuacutedos de seu conceito de justiccedila o dever
dos Estados de punir graves violaccedilotildees de direitos humanos ndash especialmente os objetos de
proteccedilatildeo dos diplomas internacionais citados ndash efetivar o direito agrave verdade das viacutetimas
isto eacute ldquoo esclarecimento de fatos ilegais e as responsabilidades correspondentesrdquo
compreendendo natildeo apenas o ldquodireito coletivo que assegura agrave sociedade o acesso agrave
informaccedilatildeo essencial ao funcionamento de sistemas democraacuteticosrdquo mas tambeacutem ldquoo direito
privado dos familiares das viacutetimas que adquire uma forma compensatoacuteria especialmente
nos casos em que leis de anistia foram adotadasrdquo (AMBOS 2009 p 34-35)
33
Ainda enovelam-se aos direitos das viacutetimas tutelados pela quadratura internacional
da Justiccedila de Transiccedilatildeo o direito agrave justiccedila ndash consubstanciado em formas de ldquoproteccedilatildeo
judicial tanto pelo acesso ao sistema legal do Estado violador (o qual de acordo com os
direitos humanos tem a obrigaccedilatildeo de investigar processar e sancionar o responsaacutevel) ou
pela via de um foacuterum puacuteblico alternativo no qual viacutetimas podem confrontar e desafiar os
violadoresrdquo (AMBOS 2009 p 36) ndash e o direito agrave reparaccedilatildeo que compreende indenizaccedilatildeo
integral compensaccedilatildeo reabilitaccedilatildeo fornecimento de garantias de natildeo repeticcedilatildeo e outros
mecanismos reparatoacuterios como o reconhecimento do estatuto de viacutetima e o
restabelecimento de seus direitos (AMBOS 2009 p 37-39)
Ao lado disso Kai Ambos descreve alternativas admissiacuteveis agrave persecuccedilatildeo criminal
dos responsaacuteveis por graves violaccedilotildees ao Direito Internacional dos Direitos Humanos que
compreendem Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo (AMBOS 2009 p 40-47)
saneamentos e purgaccedilotildees administrativas que visem a excluir a manutenccedilatildeo de agentes
responsaacuteveis por violaccedilotildees de direitos humanos em cargos e funccedilotildees vinculados ao aparato
burocraacutetico do Estado bem como a impedir seu retorno ainda Ambos inclui reformas
institucionais a fim de remover os dispositivos autoritaacuterios que guarneccedilam as instituiccedilotildees
em transiccedilatildeo processos de desarmamento desmobilizaccedilatildeo e reintegraccedilatildeo social e o uso de
formas tradicionais e locais geralmente natildeo-ocidentais de justiccedila e reconciliaccedilatildeo
(AMBOS 2009 p 48)
Na esteira de Ambos Paul Van Zyl (2009a p 34-39) por sua vez sumaria cinco
elementos que estruturam a Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila (atento a suas funccedilotildees penais mas
tambeacutem simboacutelicas e afetivas) busca da verdade reparaccedilatildeo agraves viacutetimas reformas
institucionais e reconciliaccedilatildeo
Uma recente criacutetica endereccedilada agrave hegemonia teoacuterica das dimensotildees ndash sem duacutevida
relevantes ndash da justiccedila legal e da prestaccedilatildeo de contas pelos Estados violadores encontrou
na proposiccedilatildeo de ampliaccedilatildeo do conteuacutedo cognitivo engendrado na disciplina internacional
da Justiccedila de Transiccedilatildeo uma interessante alternativa analiacutetica Baseando-se em uma
abordagem sincreacutetica que pretende reconciliar justiccedilas restaurativa e distributiva Wendy
Lambourne (2009 p 37-47) propotildee uma Justiccedila Transformativa vocacionada a religar
passado e futuro de maneira duradoura por meio de mecanismos e processos localmente
relevantes capazes de promover prestaccedilatildeo de contas verdade e memoacuteria justiccedila
socioeconocircmica e justiccedila poliacutetica integrando-se a um processo compreensivo de
construccedilatildeo da paz
34
David Bloomfield (2005 p 45-46) e Luc Huyse (2005 p 164-165) tambeacutem
indicam a centralidade da interferecircncia da disciplina normativa internacional e de
organismos da comunidade internacional nos processos de reconciliaccedilatildeo Bloomfield
compreende que a comunidade internacional pode colaborar com a construccedilatildeo de
processos de reconciliaccedilatildeo apoacutes eventos conflitivos como fonte potencial de informaccedilotildees
experiecircncia e educaccedilatildeo mas tambeacutem com o lento poreacutem inexoraacutevel processo de
desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos capaz de sustentar a
forma de uma ordem juriacutedica internacional
Huyse evidencia que organismos internacionais podem intervir como aparatos
auxiliares da transiccedilatildeo em contextos poacutes-conflituais especialmente pelo uso de relatoacuterios
dentre outros mecanismos de monitoramento internacionais A Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees
Unidas organismos internacionais natildeo-governamentais como o International Centre of
Transitional Justice (ICTJ) o Centre for the Study of Violence and Reconciliation (CSVR)
o African Transitional Justice Research Network (ATJRN) e o Transitional Justice
Institute (TJI) podem colaborar com a operacionalidade teoacuterica ou teacutecnica dos processos de
transiccedilatildeo em seus contextos singulares (BRITO 2009a p 56-57)
Ainda sob o ponto de vista das interaccedilotildees entre o Direito Internacional dos Direitos
Humanos e seus principais organismos eacute possiacutevel entrever a amplitude da tese de Ruti
Teitel sobre a constitutividade do direito de transiccedilatildeo Sendo um direito-entre regimes
para aleacutem do princiacutepio territorialista de juridicidade dos Estados-Naccedilatildeo (SANTOS 2009
p 474-476) o direito transicional permite posicionar o papel das instituiccedilotildees na
consecuccedilatildeo da transiccedilatildeo
As instituiccedilotildees devem tornar-se objeto de uma mutaccedilatildeo profunda que compreende
reformas institucionais purgas e responsabilizaccedilatildeo de agentes que cometeram graves
violaccedilotildees de direitos humanos bem como sua consequente remoccedilatildeo de cargos puacuteblicos
adotando-se programas de depuraccedilatildeo e saneamento administrativo (ZYL 2009a p 38
ELSTER 2006 p 113) Tal mutaccedilatildeo constituiria uma resposta agrave persistecircncia de estruturas
e praacuteticas burocraacuteticas autoritaacuterias o que exige que as instituiccedilotildees tambeacutem sejam
requisitadas como mediadoras da concretizaccedilatildeo das demais tarefas da Justiccedila de Transiccedilatildeo
que como o proacuteprio Zyl (2009a p 54) adverte torna necessaacuterio engendrar um amplo
processo de consulta local uma vez que se estaacute a operar no terreno da singularidade
histoacuterica e cultural ndash ainda que se reconheccedilam certas vinculaccedilotildees normativas como
universais
35
Se Paul Van Zyl estiver correto ao descrever a justiccedila a verdade a reparaccedilatildeo a
reconciliaccedilatildeo e as reformas institucionais como estruturas mais gerais mas nem por isso
ideais da Justiccedila de Transiccedilatildeo as uacuteltimas aparecem como um campo privilegiado de
disputas poliacuteticas uma vez que constituem natildeo apenas o objeto de uma transformaccedilatildeo
mas principalmente satildeo exigidas como as instacircncias por meios das quais dever-se-aacute
operar uma tal transformaccedilatildeo transicional
Isso denota a centralidade dos aparelhos de Estado encarregados da identificaccedilatildeo
processamento e responsabilizaccedilatildeo de agentes puacuteblicos que cometeram graves violaccedilotildees de
direitos humanos da institucionalizaccedilatildeo de Comissotildees de Verdade e Reconciliaccedilatildeo e de
poliacuteticas reparatoacuterias destinadas aos perseguidos poliacuteticos e resistentes de um periacuteodo de
exceccedilatildeo As instituiccedilotildees incorporam a um soacute tempo uma instacircncia produzida e produtora
de justiccedila responsabilizaccedilatildeo inclusatildeo poliacutetica bem como de uma narrativa sobre o
passado Mesmo porque esses satildeo propoacutesitos da Justiccedila de Transiccedilatildeo justiccedila inclusatildeo
poliacutetica reconciliaccedilatildeo e paz nunca podem ser admitidas como a priori histoacuterico de
contextos poacutes-conflituais pois natildeo defluem de tais contextos naturalmente mas como
resultados de um esforccedilo comum de criaccedilatildeo de direitos e de modificaccedilotildees institucionais
Registram-se ainda organismos natildeo-estatais que tambeacutem concorrem em algum
niacutevel para a concretizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como as organizaccedilotildees sociais partidos
poliacuteticos Igrejas empresas entidades sindicais etc ndash natildeo raras vezes tornados alvos
poliacuteticos do regime autoritaacuterio precedente e de seus aparatos de perseguiccedilatildeo e censura Por
sua vez a justiccedila privada assume a forma dos justiciamentos individuais e suas execuccedilotildees
extralegais podendo tomar a forma da humilhaccedilatildeo deliberada e puacuteblica ldquoEn America
Latinardquo recorda Elster (2006 p 119) ldquolos oficiales amnistiados que son conocidos por
haber participado en torturas o desapariciones han sidos condenados a un ostracismo social
de caraacutecter informalrdquo Um exemplar contemporacircneo embora constitua uma forma
geralmente natildeo-violenta e portadora de um acentuado caraacuteter poliacutetico de execraccedilatildeo
puacuteblica satildeo as praacuteticas de escrachos inventados na Argentina (BRITO GONZAacuteLEZ-
ENRIacuteQUEZ e AGUILAR 2001 p 157) e recentemente incorporadas como ldquoesculachosrdquo
pelos jovens ativistas poliacuteticos do Levante Popular da Juventude no Brasil Nesse caso a
importacircncia das accedilotildees legais ndash partam de instituiccedilotildees nacionais ou supranacionais ndash
segundo Elster deriva de uma necessidade de antecipar-se agrave vinganccedila privada ou de
bloquear sua emergecircncia
Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 28) natildeo cessam de destacar que o caso brasileiro eacute
paradigmaacutetico uma vez que suas praacuteticas transicionais estatalistas desafiam a autoridade
36
da base normativa internacional dos Direitos Humanos Nesse particular a decisatildeo da
Corte de San Joseacute da Costa Rica impocircs uma seacuterie de obrigaccedilotildees ao Estado brasileiro em
razatildeo do Caso Araguaia sem que ateacute o presente se tenha dado integral cumprimento a ela
Nesse sentido Abratildeo Payne e Torelly (2011 p 24) afirmaram que ldquo[]o caso brasileiro
constitui-se um desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individual
sugerindo que a insurgecircncia dessa norma natildeo mudou necessariamente o comportamento
dos Estadosrdquo donde o cariz paradigmaacutetico da experiecircncia anistiadora brasileira que ao
mesmo tempo em que desafia demonstra tambeacutem do ponto de vista praacutetico o viacutenculo
geneacutetico que as doutrinas da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos Direitos
Humanos entretecircm
Ao mesmo tempo em que as instituiccedilotildees encerram uma possibilidade dinacircmica de
alteraccedilatildeo estrutural loacutegica e semacircntica da qual constituem um dos cernes privilegiados o
direito de transiccedilatildeo como um direito entre tambeacutem deve compreendecirc-las como campo no
qual podem persistir ndash e natildeo raro reproduzirem-se ndash formas autoritaacuterias de imaginaccedilatildeo
poliacutetico-social
Se como quisera Clifford Geertz (1983 p 232) o direito constitui um modo de
imaginaccedilatildeo social que ldquovem acompanhado de um conjunto de atitudes praacuteticas sobre o
gerenciamento de disputas que essa proacutepria forma de ver o mundo impotildee aos que a ela se
apegamrdquo (Idem ibidem p 173) eacute no seio das transiccedilotildees poliacuteticas e dos cenaacuterios poacutes-
conflituais ndash em que direito e instituiccedilotildees interpenetram-se reciacuteproca e constitutivamente ndash
que se pode verificar de que modo o direito constitui produto de hibridizaccedilotildees culturais
Nesses contextos o direito e as instituiccedilotildees assumem posiccedilotildees aparentemente paradoxais
porque se encontram no ponto de contato intenso em que se produz essa mesticcedilagem e
com mais razatildeo porque seus elementos de continuidade e de ruptura podem indeterminar-
se temporariamente (TEITEL 2000 p 17-18) Eis o que revelaria o caraacuteter intimamente
liminar de todas as transiccedilotildees bem como das estruturas juriacutedicas e conceituais que as
secundam
Vistos sob a perspectiva da continuidade o direito e as instituiccedilotildees podem tanto
estar ao lado da construccedilatildeo de uma desejaacutevel estabilidade poliacutetico-institucional como
engendrar uma negativa reproduccedilatildeo de determinado imaginaacuterio social poliacutetico e cultural
autoritaacuterio Eacute sempre possiacutevel imaginar os desenhos institucionais existentes e o plexo
normativo e praacutetico que lhes serve de suporte pendularem e indeterminarem-se entre os
polos da manutenccedilatildeo de certo equiliacutebrio institucional necessaacuterio ndash que suporta graus
variaacuteveis conforme a singularidade do jogo a que estatildeo lanccediladas as dinacircmicas de poder ndash e
37
a conservaccedilatildeo de uma forma de imaginaccedilatildeo social capaz de perpetuar legados
antidemocraacuteticos
sect 2 O QUE UM PASSADO TEM DE INSUPORTAacuteVEL NOTAS SOBRE A
CONTINUIDADE DO PASSADO NO PRESENTE A PARTIR DO CASO BRASILEIRO
Consideremos mais de perto as razotildees concretas pelas quais Paulo Abratildeo e Marcelo
Torelly (2011 p 24) diagnosticaram que a questatildeo da anistia e da responsabilizaccedilatildeo no
Brasil adquiriram uma dimensatildeo paradigmaacutetica na medida em que o caso brasileiro
constitui ldquoum desafio potencial agrave norma global da responsabilizaccedilatildeo individualrdquo Em
sentido anaacutelogo recuperemos brevemente os dilemas que envolvem a transiccedilatildeo brasileira
para colocar agrave prova a realidade praacutetica e poliacutetica da paradoxal continuidade do passado no
presente ndash de que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limita-se como viacuteamos a tratar
abstratamente e apesar de prever aberturas para elementos concretos provenientes dos
singulares arranjos de poder
Em seu interior pode-se constatar sem dificuldades a atualidade da pergunta
proposta por Vladimir Safatle e Edson Teles (2010) ndash ldquoO que resta da ditadurardquo ndash e do
grito efectista e ao mesmo tempo parresiasta do psicanalista Tales AbrsquoSaber que
respondera agrave questatildeo afirmando que da ditadura restava tudo exceto a ditadura ou do
gesto de Paulo Eduardo Arantes (2010 p 205) que natildeo hesitou em afirmar 1964 como ldquoo
ano que natildeo terminourdquo Essas foram algumas das uacuteltimas vagas genealoacutegicas
desencadeadas pelo projeto ldquoDesarquivando a Ditadurardquo de Ceciacutelia MacDowell Santos
Edson Teles e Janaiacutena de Almeida Teles (2009 p 13-14) que se fundava na cartografia do
legado autoritaacuterio e na contribuiccedilatildeo criacutetica agrave constituiccedilatildeo da memoacuteria e da justiccedila no Brasil
contemporacircneo Esses gestos verdadeiramente muito proacuteximos daquele arendtiano que se
perguntava sobre ldquoo que estamos fazendo de noacutes mesmosrdquo (ARENDT 2010 p 06)
permite entrever a dupla pertenccedila das instituiccedilotildees ao passado e ao futuro no interior de uma
interrogaccedilatildeo que natildeo pode ocupar outro limiar senatildeo o da mais absoluta atualidade
Toda pesquisa genealoacutegica natildeo implica fazer do presente e dos instrumentos
democraacuteticos que passam a exigir consolidaccedilatildeo especialmente apoacutes 1988 tabula rasa do
passado de modo a lanccedilar o presente e o passado a uma completa indiferenccedila Tais
cartografias da memoacuteria assumem a tarefa de tornar visiacuteveis as formas presentes por meio
das quais um legado antidemocraacutetico emerge reproduz-se e se dissimula cotidianamente
38
A presenccedila de um legado autoritaacuterio sem a sua representaccedilatildeo ndash senatildeo factiacutecia e natildeo raro
violenta ndash constitui o iacutendice de incompletude do processo de transiccedilatildeo democraacutetica
atestado entre noacutes jaacute haacute alguns dececircnios (PINHEIRO 2002 p 240-242 ABRAtildeO e
TORELLY 2011 p 241)
Evitando toda negatividade da incompletude Glenda Mezzaroba (2003 p 10)
prefere compreender a anistia brasileira como um processo poliacutetico de longa duraccedilatildeo que
iniciado em 1979 natildeo cessou de ser redefinido e ampliado desde entatildeo Se tomarmos
como Mezzaroba a transiccedilatildeo como uma tarefa positiva torna-se preciso estabelecer
algumas linhas gerais de accedilatildeo em que a dinacircmica da mutaccedilatildeo institucional no Brasil
contemporacircneo deve estar implicada sem prescindir de um olhar retrospectivo capaz de
identificar algumas manifestaccedilotildees de espectro autoritaacuterio
Comparando o Brasil de antes e de depois da transiccedilatildeo Kathryn Sikkink e Carrie
Booth Walling (2007 p 437) observam que ldquo() Brazil experienced a greater decline in
its human rights practices than any other transitional country in the regionrdquo Sua anaacutelise
sugere que a experiecircncia brasileira possa ser considerada exemplar de que a transiccedilatildeo
democraacutetica eacute causa necessaacuteria mas natildeo suficiente de uma melhora nas praacuteticas estatais e
sociais relacionadas a direitos humanos
Aleacutem de enfatizar a denegaccedilatildeo dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade o Informe 2010
da Anistia Internacional (2010 p 113-116) apontou que apesar da ediccedilatildeo de um novo
Plano Nacional de Direitos Humanos datado de 2009 e da realizaccedilatildeo de algumas reformas
limitadas na aacuterea de seguranccedila puacuteblica o policiamento ostensivo continuava a empregar
forccedila excessiva a praticar execuccedilotildees extrajudiciais e a tortura mantendo-se impunes seus
perpetradores De acordo com dados do Informe o Estado do Rio de Janeiro por exemplo
registrou mais de dez mil mortes violentas entre os anos de 1998 e 2009 por suposta
resistecircncia policial Entre os anos de 2010 e 2013 tambeacutem se relatou a atuaccedilatildeo contiacutenua de
grupos parapoliciais e de extermiacutenio no Brasil (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p
115 2011 p 112 2012 p 110-111 e 2013 p 52-53)
Uma constante nos informes anuais produzidos pela Anistia Internacional nos
uacuteltimos anos (2010-2013) eacute o relato do envolvimento de diversos agentes de execuccedilatildeo da
lei com o crime organizado e grupos de extermiacutenio Por mais de uma vez os representantes
da Anistia Internacional consignaram que o sistema prisional brasileiro caracterizava-se
pelo uso constante da tortura bem como verificou condiccedilotildees crueacuteis desumanas e
degradantes na maior parte dos estabelecimentos de internamento provisoacuterios e
39
permanentes visitados (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115 2011 p 114 2012
p 111 e 2013 p 53)
Agrave conclusatildeo semelhante chegou o Relatoacuterio sobre a visita ao Brasil do Subcomitecirc
de Prevenccedilatildeo da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Crueacuteis Desumanos ou
Degradantes da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas publicado em Fevereiro de 2012 Tendo
visitado instituiccedilotildees para pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de liberdade ndash como instituiccedilotildees
policiais de detenccedilatildeo provisoacuteria instituiccedilotildees prisionais instituiccedilotildees para Crianccedilas e
Adolescentes bem como centros de tratamento meacutedico para dependentes quiacutemicos ndash nos
Estados de Satildeo Paulo Rio de Janeiro e Espiacuterito Santo verificou-se que muitas das
recomendaccedilotildees feitas ao Estado Brasileiro em 2012 eram objeto de reiteraccedilatildeo pela
Subcomissatildeo Isto eacute a visita do oacutergatildeo desvelou a omissatildeo sistemaacutetica do Estado em
relaccedilatildeo agrave tutela de direitos humanos e fundamentais de pessoas em situaccedilatildeo de privaccedilatildeo de
liberdade
Ainda no campo das relaccedilotildees entre Estado e cidadatildeo ndash com ecircnfase no tratamento
governamental dispensado a grupos vulneraacuteveis politicamente minoritaacuterios e socialmente
marginalizados ndash os Informes editados entre 2010 e 2013 pela Anistia Internacional
reportaram contiacutenuas ameaccedilas e violaccedilotildees de direitos de povos indiacutegenas trabalhadores
sem terras e pequenas comunidades rurais assim como ativistas sociais e defensores de
direitos humanos relataram ameaccedilas ataques e acusaccedilotildees politicamente motivados11
Demais direitos sociais como o direito agrave moradia direitos sexuais e reprodutivos direitos
das mulheres etc foram consistente objeto de preocupaccedilatildeo nos Informes do periacuteodo que
relataram ainda a ameaccedila que obras do Programa de Aceleraccedilatildeo do Crescimento
representavam a direitos de comunidades locais
Projetos de construccedilatildeo de represas de estradas e de portos foram natildeo raro levados
a cabo por meio de remoccedilotildees forccediladas de comunidades locais (ANISTIA
INTERNACIONAL 2010 p 116 ainda 2013 p 54) Exemplar a esse respeito o caso da
comunidade ldquoAldeia Maracanatilderdquo indiacutegenas ocupavam desde 2006 o preacutedio histoacuterico do
Museu do Iacutendio localizado no entorno do Estaacutedio do Maracanatilde na cidade do Rio de
Janeiro e foram removidos apoacutes deferimento de pedido de reintegraccedilatildeo de posse pelo
Batalhatildeo de Operaccedilotildees Especiais e pelo Batalhatildeo de Choque da Poliacutetica Militar do Estado
do Rio de Janeiro a fim de viabilizar a realizaccedilatildeo de obras para a Copa do Mundo de 2014
11
Cf a esse respeito (ANISTIA INTERNACIONAL 2010 p 115-117) (Idem 2011 p 114-116) (Idem
2012 p 111-113) e (Idem 2013 p 53-55) Todos os documentos citados estatildeo disponiacuteveis em liacutengua
portuguesa em lthttpwwwamnestyorggt Acesso em 31mai2013
40
ou ainda o caso da construccedilatildeo da Usina de Belo Monte cujos canteiros foram ocupados
por povos indiacutegenas de diversas etnias a fim de impedir a construccedilatildeo da Hidreleacutetrica sem
consulta preacutevia aos povos alocados na regiatildeo Trata-se de casos emblemaacuteticos de uma
tensatildeo crescente entre projetos governamentais de crescimento econocircmico e suas
consequecircncias imediatamente humanas e ambientais no Brasil contemporacircneo
Em atenccedilatildeo ao fato de que o Brasil eacute um dos uacutenicos paiacuteses do mundo a contar com
um aparato policial militarmente estruturado um Grupo de Trabalho no acircmbito do Exame
Perioacutedico Universal vinculado ao Conselho de Direitos Humanos da Organizaccedilatildeo das
Naccedilotildees Unidas recomendou ao governo brasileiro a desmilitarizaccedilatildeo de sua poliacutecia
ostensiva (EFE 2012) Jorge Zaverucha (2010 p 56) retraccedilou as origens do exerciacutecio do
policiamento ostensivo da Poliacutecia Militar ndash que permaneceu com seus efetivos
aquartelados ateacute 1969 quando no aacutepice da repressatildeo poliacutetica passaram a ser o principal
fiador da ordem puacuteblica Zaverucha natildeo deixou de notar ainda que a Constituiccedilatildeo da
Repuacuteblica de 1988 nada fizera contra a consolidaccedilatildeo da militarizaccedilatildeo da aacuterea de seguranccedila
ao contraacuterio reproduziu no artigo 142 redaccedilatildeo que torna as Forccedilas Armadas ldquogarantidoras
da lei e da ordemrdquo12
Natildeo apenas a estrutura policial militarizada mas tambeacutem o atual desenho
institucional das Forccedilas Armadas constituem-se de espectros agrave sombra dos quais eacute
possiacutevel compreender a genealogia profunda da violecircncia sistecircmica relatada nos Informes
da Anistia Internacional ndash problemas admitidos e encampados como objetivos do terceiro
Plano Nacional de Direitos Humanos (BRASIL 2009 p 23) Apesar disso ainda que
registrada a criaccedilatildeo e a atuaccedilatildeo da Comissatildeo Nacional da Verdade nos Informe de 2012 e
2013 o acompanhamento do tema pela Anistia Internacional entre os anos de 2010 e 2013
resultou em constataccedilotildees sucessivas de atraso do Estado brasileiro no contexto regional em
relaccedilatildeo ao combate a uma cultura de impunidade por violaccedilotildees do passado (ANISTIA
INTERNACIONAL 2010 p 114 2011 p 116 2012 p 109-110 2013 p 52)13
12
Zaverucha (2010 p 58) imagina duas hipoacuteteses a fim de demonstrar de que maneira o artigo 142
reinscreve uma forma da exceccedilatildeo na Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 ldquoO artigo 137 da Constituiccedilatildeo de
1988 refere‑se agrave situaccedilatildeo de Estado de siacutetio tiacutepico caso em que lei e ordem estatildeo em perigo De acordo com
o referido artigo o presidente necessita de autorizaccedilatildeo do Congresso para declarar o Estado de siacutetio Vamos
supor que o Congresso natildeo creia que a lei e a ordem estatildeo ameaccediladas entatildeo o presidente natildeo poderaacute pedir a
intervenccedilatildeo militar Contudo o presidente ante pressatildeo militar pode circundar o Congresso invocando o
artigo 142 e a partir dele solicitar que os militares restabeleccedilam a lei e a ordemrdquo 13
O Informe 2013 expressou preocupaccedilatildeo com os efeitos da Lei de Anistia brasileira como obstaacuteculos agrave
responsabilizaccedilatildeo de violadores de direitos humanos consignando que a posiccedilatildeo do Estado brasileiro instala-
se na contramatildeo da decisatildeo do caso Gomes Lund e outros vs Brasil (Guerrilha do Araguaia) ldquo[]persistiram
os temores sobre a capacidade do Brasil enfrentar a impunidade por crimes contra a humanidade enquanto a
41
Durante a ditadura militar a repressatildeo a tortura e o assassinato sistemaacutetico de
opositores constituiratildeo ao longo de algumas deacutecadas os paradigmas de exerciacutecio do
controle social e da repressatildeo estatais contra as insurreiccedilotildees da luta armada revolucionaacuteria
no campo poliacutetico (NEGRI COCCO 2005 p 103) Aparelho repressivo que apoacutes a
transiccedilatildeo ao regime democraacutetico natildeo seraacute desmontado natildeo sofreraacute purgas tampouco seraacute
reestruturado no Brasil Pelo contraacuterio em pleno funcionamento ndash como demonstram os
dados extraiacutedos dos relatoacuterios em mateacuteria de direitos humanos ndash o aparato de violecircncia
legal permanece atrelado a algumas estruturas herdadas do regime precedente o que
poderia explicar ao menos em parte a escalada da violecircncia discursivamente naturalizada
como ldquoendecircmicardquo no Brasil e no restante do continente latino-americano apoacutes o periacuteodo
ditatorial (PINHEIRO 2002 p 240) Especificamente essas formas institucionais de
violecircncia encontram-se estruturadas sobre o rapport Estado-cidadatildeo que se desenvolve em
culturas poliacuteticas autoritaacuterias marcadas pelo desrespeito aos direitos humanos e pela
reproduccedilatildeo constante da loacutegica da impunidade
Antony W Pereira natildeo deixou de assinalar ldquoa sobrevivecircncia do funcionamento das
instituiccedilotildees juriacutedicas estatais anteriores dentro do quadro normativo ditatorialrdquo
(PINHEIRO 2010 p 09) Durante a ditadura militar brasileira registrou-se um alto grau
de colaboraccedilatildeo entre juristas e magistrados de todos os niacuteveis funcionais chegando mesmo
a uma espeacutecie de consenso civil-militar no seio das elites burocraacuteticas que forneciam os
contornos institucionais do sistema de justiccedila militar (PEREIRA 2010 p 41) Eis o que
explicaria segundo Pereira o pequeno nuacutemero de cassaccedilotildees de magistrados no periacuteodo de
exceccedilatildeo a ausecircncia de purgaccedilotildees quando do processo de redemocratizaccedilatildeo brasileira e a
manutenccedilatildeo hegemocircnica de um sistema de legalidade autoritaacuteria ainda hoje reproduzido e
segundo Paulo Seacutergio Pinheiro (2010 p 12-13) experimentado pelos pobres e pelos
ldquosocialmente marginalizados aos quais o acesso agrave justiccedila resolve-se no acesso agrave sua faceta
repressivardquo
Fundindo-se elites militares e judiciaacuterias teria sido possiacutevel constituir um sistema
juriacutedico hiacutebrido de justiccedila militar o que acarretou uma intensa judicializaccedilatildeo da repressatildeo
e ao mesmo tempo preservou um alto grau de consenso sobre uma suposta benevolecircncia
das instituiccedilotildees militares e judiciaacuterias Os baixos graus de violecircncia letal teriam colaborado
para a legitimaccedilatildeo de um poder por meio do direito (2010 p 283) permitindo a
Lei da Anistia de 1979 estiver em vigor Em 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou
que a Lei da Anistia brasileira natildeo tinha validade juriacutedicardquo (ANISTIA INTERNACIONAL 2013 p 52)
42
manutenccedilatildeo do consenso e a desnecessidade de substituir a legitimidade institucional pela
violecircncia
A sobrevivecircncia de legados autoritaacuterios que atravessaram certo bloco histoacuterico dos
paiacuteses do Cone Sul teria resistido agraves transiccedilotildees institucionais natildeo houve por exemplo
expurgos no Poder Judiciaacuterio brasileiro A transiccedilatildeo conservadora brasileira visou antes a
restabelecer o status quo ante de modo que ateacute o presente militares e membros do Poder
Judiciaacuterio continuam a ser vistos como grupos ldquoaltamente isolados e privilegiadosrdquo nos
cenaacuterios poliacutetico e institucional (PEREIRA 2010 p 243) Os consensos fortemente
arraigados nessas instituiccedilotildees embaraccedilam a possibilidade de reformas baseando-se na
ficccedilatildeo denunciada por Antony W Pereira de que os tribunais militares agiam secundum
legem
Para aleacutem dos limites do paradigmaacutetico caso brasileiro do ponto de vista das
instituiccedilotildees ndash e no sentido dos quadros normativos incorporados pelo Direito Internacional
dos Direitos Humanos ndash Paul Van Zyl (2009a p 40-48) delineou alternativas para a
construccedilatildeo da paz em cenaacuterios poacutes-conflituais (1) proceder agrave identificaccedilatildeo das instituiccedilotildees
que devem sofrer reforma ou ser abolidas (2) assegurar reformas dos mandatos a
capacitaccedilatildeo e a dotaccedilatildeo de pessoal bem como as operaccedilotildees das instituiccedilotildees especiacuteficas a
fim de garantir sua operacionalidade e a proteccedilatildeo dos direitos humanos (3) sanear o
aparelho estatal por meio da remoccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por corrupccedilatildeo ou violaccedilatildeo
de direitos humanos tais como ldquomeios de comunicaccedilatildeo as prisotildees as instituiccedilotildees
prestadoras de serviccedilos de sauacutede e as instituiccedilotildees judiciaisrdquo (ZYL 2009a p 41)
fomentando o debate sobre sua funccedilatildeo na promoccedilatildeo dos direitos humanos (4) purga dos
violadores ocupantes de cargos poliacuteticos (5) reforma do serviccedilo de seguranccedila puacuteblica (6)
as instituiccedilotildees podem instrumentalizar que se evite a dominaccedilatildeo de um grupo homogecircneo
baseado em caracteres identitaacuterios eacutetnicos linguiacutesticos ou religiosos (7) Mediar o
desarmamento a desmobilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo e sua reintegraccedilatildeo social (8) Restaurar o
Estado de Direito confrontando a cultura da impunidade ndash pois segundo Zyl (2009a p
40) ainda que a responsabilizaccedilatildeo possa ser diferida a fim de permitir a transiccedilatildeo para um
regime democraacutetico de governo ela natildeo pode ser adiada eternamente (9) Restaurar a
confianccedila nas instituiccedilotildees do Estado e promover a consolidaccedilatildeo democraacutetica
Reconhecendo que ldquoassim como a tortura diversas praacuteticas e estruturas
permanecem como elementos-chave da cena nacionalrdquo o terceiro Plano Nacional de
Direitos Humanos de 2009 prevecirc entre suas diretrizes a supressatildeo ldquode normas
remanescentes de periacuteodos de exceccedilatildeo que afrontem compromissos internacionais e os
43
preceitos de Direitos Humanosrdquo (BRASIL 2009 p 25) Entre esses diplomas normativos
estariam as ainda vigentes Lei Federal n 71701983 (Lei de Seguranccedila Nacional) e a Lei
Federal n 66831979 (Lei de Anistia) ndash especificamente no ponto em que anistia os
agentes da repressatildeo poliacutetica mesmo que o apoie a decisatildeo do Supremo Tribunal Federal
na Accedilatildeo de Descumprimento de Preceito Fundamental n 153 de abril de 2010 No acircmbito
do Direito Penal Militar e das normas relativas a seu processo os coacutedigos penais e
processuais penais militares bem como a Lei de Organizaccedilatildeo da Justiccedila Militar remontam
ao periacuteodo autoritaacuterio (MEZAROBBA 2003 p 09) e atualmente mantecircm vigente nas
instituiccedilotildees de caserna uma ideologia juriacutedico-poliacutetica incompatiacutevel com o sistema
constitucional contemporacircneo
Embora se preveja ldquoa revisatildeo de propostas legislativas envolvendo retrocessos na
garantia dos Direitos Humanos em geral e do direito agrave memoacuteria e agrave verdaderdquo
independentemente de lapso temporal a revogaccedilatildeo de leis de periacuteodos autoritaacuterios fica em
princiacutepio limitada ao periacuteodo compreendido entre 1964-1985 A medida natildeo abrangeria
portanto o Decreto-Lei n 46571942 da lavra de Getuacutelio Vargas que tambeacutem fruto de
um periacuteodo poliacutetico autoritaacuterio ainda regra temas importantes em relaccedilatildeo agrave aplicaccedilatildeo e agrave
interpretaccedilatildeo do direito brasileiro Entre eles a vigecircncia das leis ndash ponto em que foi
relativamente derrogado pela Lei Complementar n 9598 ndash a aplicaccedilatildeo do direito e o
raciociacutenio juriacutedico nas decisotildees judiciais ndash ponto em que o Decreto restringe o uso de
recursos hermenecircuticos simples agrave existecircncia de lacuna no ordenamento ndash e as normas
referentes ao Direito Internacional Privado Em aceno contraacuterio agrave sua abrogaccedilatildeo o antigo
Decreto-Lei recepcionado pela Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica de 1988 como lei em sentido
formal foi recentemente rebatizado de ldquoLei de Introduccedilatildeo agraves Normas do Direito
Brasileirordquo pela Lei Federal n 123672010
O terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) tambeacutem previu o
incremento do reconhecimento do status constitucional de instrumentos internacionais de
Direitos Humanos recomendando-se ratificar o segundo protocolo facultativo do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Poliacuteticos visando agrave aboliccedilatildeo da pena de morte (1989) a
Convenccedilatildeo sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a
Humanidade (1968) adaptando o ordenamento juriacutedico interno pela promulgaccedilatildeo de lei
expressa fixando a imprescritibilidade dos delitos bem como a Convenccedilatildeo Internacional
para a Proteccedilatildeo de Todas as Pessoas contra os Desaparecimentos Forccedilados (2006)
Por fim denota-se especial atenccedilatildeo para com o monitoramento da tramitaccedilatildeo de
processos judiciais que envolvam graves violaccedilotildees de direitos humanos praticados no
44
periacuteodo entre 18 e setembro de 1946 e a data da promulgaccedilatildeo da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica
de 1988
O que o terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-III) consolida
natildeo deixa de constituir um importante passo em direccedilatildeo ao desmonte de alguns aparatos
autoritaacuterios no entanto eacute sensiacutevel que permaneccedila demasiadamente atreladpo ao desmonte
de dispositivos normativos do que aos burocraacutetico-administrativos locus de inscriccedilatildeo
privilegiado da praacutexis juriacutedica ndash ainda que estejam contempladas ratificaccedilotildees a alguns
protocolos que implicam adesatildeo a mecanismos de monitoramento e controle internacional
de Direitos Humanos
Entre o que postula Zyl (2009a p 40-48) como praacuteticas de consecuccedilatildeo da paz em
tempos poacutes-conflituais demonstrando a centralidade de reformas reestruturaccedilotildees e purgas
administrativas e as medidas oferecidas pelo mais recente plano de direitos humanos
verifica-se um fetiche pela dimensatildeo da normatividade que apesar de relevante acaba por
manter intocadas as estruturas administrativas lato sensu e judiciaacuterias que poderiam
continuar a interpretar algumas leis da mais recente ditadura segundo a loacutegica juriacutedica
preconizada pelos horizontes hermenecircuticos decretados pelo Estado Novo
Sob o ponto de vista especiacutefico do desmonte dos aparatos administrativos e
judiciais do regime preacutevio o PNDH-III ndash superestimado e abominado por advogados como
Ives Gandra Martins como uma deliberada tentativa de golpe de Estado ndash natildeo passa de um
instrumento de manutenccedilatildeo do status quo ao passo em que embora programe a ratificaccedilatildeo
de relevantes normativas de Direito Internacional dos Direitos Humanos em nada altera no
regime estrutural das instituiccedilotildees burocraacuteticas que relativamente agrave efetividade daquelas
normas e das tutelas por elas exigidas continuaratildeo a ser as responsaacuteveis por implementaacute-
las
Contudo o trabalho de identificaccedilatildeo e cartografia dos pontos institucionais notaacuteveis
que devem ser objeto de reformas purgas e reestruturaccedilotildees natildeo pode ser levado a cabo sem
um trabalho da memoacuteria natildeo raro coextensivo com a funccedilatildeo diagnoacutestica desempenhada
pelas Comissotildees de Verdade (CARRILO 2009b p 39) Segundo Zyl (2009a p 36-37) as
Comissotildees auxiliariam a dar iacutempeto agraves transformaccedilotildees institucionais permitindo o
conhecimento e o rompimento com praacuteticas do passado bem como identificando em seu
relatoacuterio final as instituiccedilotildees e oacutergatildeos perpetradores de graves violaccedilotildees dos direitos
humanos de modo a viabilizar mais consistentes medidas de reparaccedilatildeo material e
simboacutelica assim como as reformas institucionais e medidas legais administrativas e
institucionais suficientes para evitar a reemergecircncia dos crimes do passado
45
Nesse sentido a memoacuteria e a verdade ndash processos que tomamos como equivalentes
porque natildeo os dissociamos de uma imediata produccedilatildeo de transiccedilatildeo ndash insinuam-se como os
pressupostos da justiccedila sob suas muacuteltiplas formas e das reformas institucionais o que
permite entrever que no seio do direito de transiccedilatildeo pode-se identificar uma interface
entre memoacuteria e justiccedila mas tambeacutem entre memoacuteria e instituiccedilotildees em transiccedilatildeo Eacute o que
atesta o Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado da Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para os
Direitos Humanos (sect 4) ao reconhecer que ldquoarquivos e arquivistas desempenham um papel
central para reforccedilar os direitos humanosrdquo14
No mesmo sentido o Segundo Relatoacuterio
Nacional do Estado Brasileiro apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do
Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas de 2012 (sect 123) revelou compreender
ldquoque o trabalho de resgatar o passado eacute imprescindiacutevel para a superaccedilatildeo de violecircncias e
impunidades histoacutericas []rdquo15
Mesmo as poliacuteticas de arquivos ndash considerados tanto em suas dimensotildees pessoais
como oficiais ndash estatildeo necessariamente implicadas nessa zona de muacutetuo contaacutegio entre
memoacuteria e justiccedila na medida em que o testemunho seja colocado a serviccedilo das instituiccedilotildees
e da construccedilatildeo puacuteblica e democraacutetica da verdade No interior dessa dimensatildeo liminar que
eacute o direito de transiccedilatildeo ndash direito constitutivo ou direito entre ndash revela-se o sentido da
afirmativa de Ceciacutelia MacDowell dos Santos (2009 p 472) para quem ldquoO testemunho e a
memoacuteria estatildeo comumente a serviccedilo das instituiccedilotildees do direito na busca da verdade e da
justiccedila Mas a justiccedila tambeacutem estaacute ao serviccedilo da memoacuteriardquo Progressivamente ela deixaria
entrever a centralidade do conceito de memoacuteria da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
14
ANNUAL REPORT OF THE UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR HUMAN RIGHTS
Right to the truth report of the Office of the High Commissioner for Human Rights (2009) Disponiacutevel em
lthttpwww2ohchrorgenglishbodieshrcouncildocs12sessionA-HRC-12-19pdfgt Consultado em 13
mai 2013 15
ORGANIZACcedilAO DAS NACcedilOtildeES UNIDAS Segundo Relatoacuterio Nacional do Estado Brasileiro
apresentado no mecanismo de revisatildeo perioacutedica universal do Conselho de Direitos Humanos das Naccedilotildees
Unidas (2012) Disponiacutevel em lthttpwwwsedhgovbrcooperacaorevisao-periodica-
universalRelatorio20Nacional_RPU_Brasil_port_VERSaO_FINALpdfgt Consultado em 13 mai 2013
46
CAPIacuteTULO 3 ndash O CONCEITO DE MEMOacuteRIA NA TEORIA DA JUSTICcedilA
DE TRANSICcedilAtildeO
Em cenaacuterios poacutes-conflituais a construccedilatildeo da memoacuteria das violaccedilotildees de direitos
humanos constitui o centro de gravidade da institucionalizaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo
Paul Van Zyl (2009a p 32) define-a brevemente como ldquoo esforccedilo para a construccedilatildeo da paz
sustentaacutevel apoacutes um periacuteodo de conflito violecircncia em massa ou violaccedilatildeo sistemaacutetica dos
direitos humanosrdquo
No entanto eacute preciso notar que todos os mecanismos de reconstruccedilatildeo da paz por
meio da Justiccedila de Transiccedilatildeo estatildeo em maior ou menor grau sujeitos agrave singularidade
histoacuterica da realidade faacutetica poacutes-conflitual sobre a qual opera Kai Ambos (2009 p 21-22)
adverte que o acircmbito de aplicaccedilatildeo da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se limita aos quadros
histoacutericos poacutes-conflituais ou aos momentos de rupturas de regimes poliacuteticos mas
compreende igualmente ldquoprocessos de paz sem conflito eou de democracia formalrdquo
Embora sofram o inegaacutevel influxo da singularidade histoacuterica agrave qual se aplicam tais
instrumentos natildeo podem permanecer completamente submetidos agraves necessidades
domeacutesticas Ao contraacuterio do simples e acriacutetico implante de uma modelagem (ZYL 2009a
p 54) sua crescente interpenetraccedilatildeo com o Direito Internacional dos Direitos Humanos na
uacuteltima deacutecada (ZYL 2009a p 32-33) e com quadros legais transnacionais (AMBOS
2009 p 19-20) implica a definiccedilatildeo de um regime juriacutedico miacutenimo compreensivo e
flexiacutevel capaz de adaptar-se agrave singularidade das situaccedilotildees histoacutericas agraves quais se aplica
deixando-se reciprocamente fecundar por ela
Por essa razatildeo Paul Van Zyl (2009a p 48) afirma ser ldquoindispensaacutevel que as
estrateacutegias da justiccedila transicional partam de um extenso processo de consulta local e que
estejam fundamentadas nas condiccedilotildees domeacutesticasrdquo na medida em que a Justiccedila de
Transiccedilatildeo aparece como um universal flexiacutevel a operar sobre uma singularidade histoacuterica e
sociopoliacutetica Eis o que teria tornado possiacutevel superar ao menos relativamente a
polarizaccedilatildeo entre uma concepccedilatildeo de justiccedila universalista e as necessidades derivadas das
singularidades concretas derivadas de momentos de fluxo poliacutetico (TORELLY 2012 p
107)
Trata-se de um processo dinacircmico que se desenvolve por prolongamentos e
singularizaccedilotildees construiacutedos em relaccedilatildeo a outros ldquoprocessos e mecanismos associados com
os quais uma sociedade busca terminar com o legado de um passado de abusos de larga
47
escala a fim de assegurar a prestaccedilatildeo de contas servir agrave justiccedila e atingir a reconciliaccedilatildeordquo
(AMBOS 2009 p 21) Esses processos por sua vez recebem normatizaccedilatildeo internacional
bem como se beneficiam dos suportes financeiro e teacutecnico de organismos internacionais
com experiecircncia em viabilizar e assistir processos de transiccedilatildeo poliacutetico-institucional16
Dessa contaminaccedilatildeo reciacuteproca entre as circunstacircncias faacuteticas domeacutesticas ndash
resultantes de condiccedilotildees transicionais locais histoacutericas e singularizantes ndash e da pretensatildeo agrave
universalidade de que dispotildee o Direito Internacional dos Direitos Humanos aplicaacutevel
como quadro legal transnacional pode-se depreender a muacutetua gecircnese dos processos de
internacionalizaccedilatildeo dos direitos humanos e da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
No corpus normativo mas tambeacutem praacutetico do direito de transiccedilatildeo a reciacuteproca
contaminaccedilatildeo entre memoacuteria justiccedila e mutaccedilotildees institucionais terminaria por fazer da
memoacuteria o sustentaacuteculo da verdade e da justiccedila Natildeo haacute praacutetica de verdade ou exerciacutecio de
direito de conhecer o passado de violaccedilotildees de direitos humanos que natildeo parta de um apelo
positivo ou negativo agrave reminiscecircncia da mesma forma as instituiccedilotildees encarregadas da
efetuaccedilatildeo desse direito-entre que se define como Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo operam senatildeo
com fundamento em certa memoacuteria que pode ser representada no interior do processo ou
produzida como vimos como resultado do proacuteprio processo
Essa dupla implicaccedilatildeo entre memoacuteria-verdade e instituiccedilotildees revela a importacircncia
praacutetica de traccedilar os limites conceituais da ideia de memoacuteria com a qual se trabalha no seio
da Justiccedila de Transiccedilatildeo Ao mesmo tempo torna-se desejaacutevel compreender em que medida
as instituiccedilotildees satildeo produtoras de memoacuteria ao mesmo tempo em que a memoacuteria parece
poder servir de ponto de apoio para operar as transformaccedilotildees institucionais e reformas que
caracterizam o vieacutes pragmaacutetico e poliacutetico mais sensiacutevel de toda transiccedilatildeo
Ao interrogar a memoacuteria como conceito-chave das transiccedilotildees poliacuteticas eacute comum
que dois argumentos atravessem a bibliografia tradicional sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo satildeo
eles as referecircncias ao passado como chave compreensiva do presente e do futuro das
instituiccedilotildees poliacuteticas juriacutedicas e sociais e aquele que postula a interpenetraccedilatildeo necessaacuteria
entre memoacuteria e subjetividade De seus pontos de vista natildeo se trataria de aceder pura e
simplesmente agrave histoacuteria real tal como o puro acontecimento do passado mas tambeacutem de
procurar de que maneira as pessoas percebem e deixam-se influenciar por aquilo que
aconteceu no passado
16
Segundo o Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos
Humanos na temaacutetica das Comissotildees de Verdade (OHCHR HRPUB061 p 33-36) Disponiacutevel em lt
httpwwwohchrorgDocumentsPublicationsRuleoflawTruthCommissionsenpdfgt Consultado em 13 mai
2013
48
Eis o que David Bloomfield (2005 p 40) compreendera como a ldquodimensatildeo
mitoloacutegica do passadordquo Portanto ao lado de uma histoacuteria objetiva factual baseada na
realidade haveria sempre um magma confuso de percepccedilotildees subjetivas crenccedilas
mitologias e interpretaccedilotildees da histoacuteria ldquowhich may or may not reflect actual events but will
significantly shape peoplersquos readiness or room for manoeuvre in the presentrdquo
(BLOOMFIELD 2005 p 40)
Dessa forma a mitologia do passado poderia posicionar-se no mesmo grau de
importacircncia que as exigecircncias de precisatildeo histoacuterica afinal compreender o passado
dependeria em alguma medida de compreender a maneira segundo a qual as pessoas o
interpretam As crenccedilas individuais e socialmente partilhadas sobre o passado tornariam
mais ou menos factiacutevel a possibilidade de realizar um processo de conciliaccedilatildeo e
Bloomfield parece aferi-la segundo a distacircncia entre a histoacuteria objetiva e a mitologia
popular criada ao seu redor
Paul Gready (2011 p 93) e Alexandra Barahona de Brito (2009 p 115) tambeacutem
enfatizam o passado como peccedila compreensiva central agraves praacuteticas transicionais Brito afirma
uma estreita correlaccedilatildeo entre passado e processo de democratizaccedilatildeo ao passo em que este
depende de um processo complexo que envolve a constituiccedilatildeo de efetiva cidadania a qual
soacute seria conquistada por meio da eliminaccedilatildeo dos legados autoritaacuterios que a precedem e
foram consolidados pelos governos militares Isso significa concentrar sobre a reforma
institucional o olhar para o futuro de modo que o trabalho da memoacuteria e da justiccedila
transcendam as poliacuteticas ndash sem duacutevida imprescindiacuteveis ndash relacionadas agrave prestaccedilatildeo de
contas sobre o passado
A memoacuteria opera sobretudo na contracorrente da resiliecircncia das estruturas sociais
(PAIGE 2011 p 11) do passado no presente Natildeo por acaso Franccedilois Ost (1999 p 88-
94) considera o direito e logicamente as instituiccedilotildees que com ele se relacionam o
escrivatildeo e o guarda da memoacuteria social afianccedilando sua comunhatildeo e continuidade De
acordo com Ost o direito apresenta-se a um soacute tempo como o conjunto de comandos
especiais ndash conceito proveniente das claacutessicas definiccedilotildees positivo-analiacuteticas que
confundem direito e suas funccedilotildees de gestatildeo ndash bem como o grande corpus inscritor de uma
memoacuteria que possui funccedilatildeo instituinte
Se Franccedilois Ost pudera afirmaacute-lo isso se deve ao fato de a memoacuteria encontrar-se
duplamente implicada do ponto de vista das instituiccedilotildees Como elemento de produccedilatildeo
espera-se que a memoacuteria poliacutetica das violaccedilotildees dos direitos humanos inscrita em arquivos e
documentos constitua o fundamento e a justificativa para reformas saneamentos
49
administrativos purgas aboliccedilotildees de instituiccedilotildees e reestruturaccedilotildees democraacuteticas capazes
de sustentar a emergecircncia de um regime qualitativamente democraacutetico como elemento
produzido pode-se dizer que tambeacutem a Justiccedila de Transiccedilatildeo produz memoacuterias e as
inscreve em arquivos ao processar julgar produzir narrativas oficiais fixar os signos da
verdade histoacuterica de um passado de violaccedilotildees
No interior desse quadro eacute preciso definir o lugar da memoacuteria na Justiccedila de
Transiccedilatildeo a partir de trecircs dimensotildees que se interpenetram e confluem para definir o sentido
da memoacuteria no campo transicional segundo as doutrinas transicionais contemporacircneas (1)
a inscriccedilatildeo normativa da memoacuteria no acircmbito do Direito Internacional dos Direitos
Humanos e sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade (2) As diversas camadas conceituais pelas
quais a memoacuteria deixou-se apanhar do ponto de vista conceitual no campo teoacuterico da
Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash o que visa a definir o lugar da memoacuteria como elemento-chave de
compreensatildeo do campo transicional de modo a permitir uma iluminaccedilatildeo reciacuteproca (3) os
limites praacuteticos teacutecnicos e institucionais pelos quais a memoacuteria se torna um objeto de
investimento teoacuterico que como veremos deixam transparecer a existecircncia do
reconhecimento mais ou menos imediato de uma relaccedilatildeo essencial entre memoacuteria e
transiccedilatildeo ndash relaccedilatildeo esta jamais explicitada como tal e todavia sempre mais ou menos
aparente dedutiacutevel ou no limite suposta pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo
Apenas a articulaccedilatildeo da anaacutelise dessas trecircs dimensotildees permitiraacute compreender o
lugar conceitual e a um soacute tempo praacutetico da memoacuteria em relaccedilatildeo ao campo transicional
bem como a concepccedilatildeo de temporalidade que estaacute envolvida nessas apreensotildees do conceito
de memoacuteria pela Justiccedila de Transiccedilatildeo definindo assim o traccedilado de seus limites
conceituais internos
sect 1 MEMOacuteRIA VERDADE E
DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Natildeo raro os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade emergem em definiccedilotildees que os tomam
pela mesma acepccedilatildeo Joseacute Carlos Moreira da Silva Filho (2011 p 282) por exemplo
definiu-o recentemente relacionando-o agrave ldquonecessaacuteria apuraccedilatildeo dos fatos ocorridos em
periacuteodos repressivos e autoritaacuterios especialmente em ditaduras e totalitarismos
demarcando a necessidade de um amplo acesso aos documentos puacuteblicos O apelo agrave
memoacuteria indica aleacutem disso a necessidade de que o Estado empreenda poliacuteticas de
memoacuteria para reforccedilar a ideia da natildeo repeticcedilatildeordquo Tambeacutem testemunhando uma
50
proximidade entre memoacuteria e verdade Marcelo Torelly (2012 p 271) admite que ldquoa ideia
de lsquodireito agrave memoacuteriarsquo conecta-se agrave de lsquodireito agrave verdadersquo como forma de afirmar o direto
da sociedade mas tambeacutem das viacutetimas de tambeacutem construiacuterem discursos com pretensatildeo
de verdade e apresentarem esses discursos ao Estado como meio de disputa democraacutetica da
versatildeo oficial do passadordquo
A aparente confusatildeo poreacutem natildeo implica que seja impossiacutevel discernir do ponto de
vista semacircntico ou normativo ambos os direitos Sinteticamente ldquoSe o direito agrave verdade
refere-se ao acesso e ao conhecimento de informaccedilotildees [] o direito agrave memoacuteria objetiva
no plano coletivo a inserccedilatildeo ou reinserccedilatildeo de determinadas narrativas no seio socialrdquo
(TORELLY 2012 p 271) Apesar de propor essa distinccedilatildeo segundo a qual a verdade
comporta uma dimensatildeo objetiva do conhecimento da verdade dos fatos enquanto a
memoacuteria entreteacutem-se na dimensatildeo subjetiva da pluralizaccedilatildeo de narrativas sociais ainda
assim seria possiacutevel devido agrave sua proximidade falar em um ldquobinocircmio verdade-memoacuteriardquo
com papeis solidaacuterios (TORELLY 2012 p 271) Promova-se ou natildeo uma distinccedilatildeo entre
as ideias-forccedila de memoacuteria e verdade ambas natildeo deixam seja qual for o caso de serem
correlatas tampouco cessam de ser invocadas como condiccedilotildees-chave na produccedilatildeo das
alteraccedilotildees praacuteticas inerentes agraves transiccedilotildees poliacuteticas Eis precisamente o que Torelly (2012
p 281) afirma ao aludir ao caraacuteter transformador da constituiccedilatildeo de uma memoacuteria social
das violaccedilotildees de direitos humanos vinculando-a ao advento de um futuro de natildeo repeticcedilatildeo
ldquoA consolidaccedilatildeo de uma memoacuteria social criacutetica em relaccedilatildeo ao passado passa a funcionar
como combustiacutevel para a defesa de uma cultura democraacutetica sustentando e legitimando as
reformas poliacuteticas e juriacutedicas que permitem o ressurgimento nacional em uma nova
configuraccedilatildeo poliacutetica []rdquo17
Trata-se de uma definiccedilatildeo que enfoca a funccedilatildeo poliacutetica do direito agrave memoacuteria e agrave
verdade sintetizando-os ao conhecimento da verdade histoacuterico-factual e agrave vedaccedilatildeo ndash
normativa e eacutetico-social ndash da repeticcedilatildeo de um passado de violaccedilotildees de direitos humanos
que seria afianccedilado por poliacuteticas da memoacuteria O conceito estrutura-se portanto sobre uma
articulaccedilatildeo agrave primeira vista inaparente ndash mas necessaacuteria ndash entre passado e futuro de
inspiraccedilatildeo possivelmente adorniana segundo a qual o conhecimento do passado de
17
Sobre o tema Torelly (2012 p 281) afirma ainda ldquoAo lembrar e reparar por meio de mecanismos de
Justiccedila de Transiccedilatildeo o Estado sinaliza uma autocriacutetica quanto ao abuso perpetrado e consolida uma narrativa
(mesmo que tardia) de igualdade perante a lei oferecendo tratamento juriacutedico equacircnime aos cidadatildeos e
reincorporando o legado autoritaacuterio agraves categorias de justiccedila que o proacuteprio autoritarismo afastou Esse
processo sinaliza de modo consciente para um futuro de natildeo repeticcedilatildeo e ainda permite aos mais jovens que
se socializem em uma cultura conscientemente esclarecida do passado e da importacircncia democraacutetica
incorporando os valores construiacutedos na democracia como caracteres culturais permanentes do sistema
simboacutelico da sociedade []rdquo
51
violaccedilotildees de direitos humanos de algum modo asseguraria sua natildeo repeticcedilatildeo no futuro
Parece certo que entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a aposta seja feita no valor
cognitivo criacutetico e coletivo do esclarecimento sobre a verdade do passado e da produccedilatildeo
de narrativas sociais plurais sobre ele Todavia de um lado reduz-se memoacuteria e verdade a
sua faceta reminiscente cognitivo-pragmaacutetica e de representaccedilatildeo partilhada de outro
extrai-se do proacuteprio fato dessa partilha fomentada ou pelo menos garantida pelas
instituiccedilotildees em transiccedilatildeo um enigmaacutetico potencial transformador que jamais encontra
explicaccedilatildeo adequada na bibliografia dedicada agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo
Na dimensatildeo normativa mais ampla preconizada pelo Direito Internacional dos
Direitos Humanos David Bloomfield (2005 p 40) reconhece que o passado eacute composto
por muitas camadas a fim de indicar o substrato cultural mais profundo que lastreia a
compreensatildeo que o direito agrave memoacuteria e agrave verdade poderiam incrementar ldquoThe past has
many layers This fact needs to be acknowledged before addressing the past through a
reconciliation process Many violent conflicts and wars are not simply the outcome of one
particular set of recent circumstances which led to violencerdquo
Segundo Bloomfield a compreensatildeo dessas vaacuterias camadas do passado apela agrave
problemaacutetica questatildeo sobre o quanto longe se deveria ir no passado para realizar uma
reconciliaccedilatildeo Contudo a profundidade do enraizamento histoacuterico-geneacutetico dessa base
cultural autoritaacuteria cuja emergecircncia e visibilidade os direitos agrave memoacuteria e agrave verdade
deveriam afianccedilar natildeo deve ser o uacutenico horizonte de delimitaccedilatildeo de tais direitos
O direito agrave memoacuteria como direito cultural ao qual correspondem deveres de caraacuteter
transgeracional eacute o tecido natildeo raro inaparente sobre o qual se coloca em jogo toda e
qualquer praacutetica juriacutedico-poliacutetica de Justiccedila de Transiccedilatildeo Mesmo as transiccedilotildees
incompletas inacabadas e interrompidas mantecircm com o potencial transicional da
memoacuteria uma relaccedilatildeo inequiacutevoca ainda que seja para separaacute-lo do seio das praacuteticas
poliacuteticas decretando o esquecimento ou sobrecodificando suas emergecircncias no seio social
ou coletivo18
Da perspectiva do Direito Internacional dos Direitos Humanos a produccedilatildeo da
memoacuteria implicada nas operaccedilotildees de transiccedilatildeo poliacutetica eacute o cerne no qual se articulam as
18
Nesse sentido em La meacutemoire lrsquohistoire lrsquooubli Paul Ricœur destacou a relaccedilatildeo dialeacutetica entre memoacuteria
e esquecimento como se as categorias estivessem entregues a uma espeacutecie de jogo entre anverso e verso
ldquoDrsquoune part les notations sur lrsquooubli constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la
meacutemoire se souvenir crsquoest pour un grand part ne pas oublier Drsquoautre part les manifestations individuelles
de lrsquooubli sont inextrincablement troublantes de lrsquooubli mecircleacutees agrave ses formes collectives au point que les
expeacuteriences les plus maleacutefiques de lrsquooubli telle la hantise ne deacuteploient leurs effets les plus maleacutefiqus qursquoagrave
lrsquoeacutechelle des meacutemoires collectives[]rdquo (RICŒUR 2000 p 574-575)
52
dimensotildees dos Direitos Civis e Poliacuteticos bem como dos Direitos Econocircmicos Sociais e
Culturais no contexto das transiccedilotildees Nesse aspecto Javier Ciurlizza (2009a p 27)
estabelece que a memoacuteria ldquonatildeo eacute um exerciacutecio individual no qual algueacutem diz o que sabe
mas sim um processo cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre
a identidade nacionalrdquo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) em sentido anaacutelogo
tambeacutem reconhece agrave memoacuteria a qualidade de locus privilegiado de interaccedilatildeo entre direitos
assegurando como nuacutecleo significativo do Direito Internacional dos Direitos Humanos
sua indivisibilidade e interdependecircncia
Relatoacuterio Anual do Alto Comissariado para Direitos Humanos das Naccedilotildees Unidas
procedendo a um estudo analiacutetico sobre direitos humanos e Justiccedila de Transiccedilatildeo reiterou
expressamente o potencial dos mecanismos transicionais para incorporar direitos de
natureza econocircmica social e cultural tornando sua investigaccedilatildeo extensatildeo da atividade das
Comissotildees de Verdade (OHCHRA-HRC1218 2009 sectsect 3 59 e 60) confirmando a visatildeo
doutrinaacuteria segundo a qual ao permitir equilibrar poliacutetica e direito a Justiccedila de Transiccedilatildeo
teria sido capaz de dissolver recentemente ndash e talvez ateacute mesmo definitivamente ndash a tensatildeo
entre justiccedila e paz a fim de afirmaacute-las como condicionantes reciacuteprocas19
Ruti Teitel (2000 p 271-218) por sua vez assegura que a dimensatildeo veritativa que
as investigaccedilotildees histoacutericas transicionais engendram ldquoreveal that the relevant truths are
those that are implicated in a particular statersquos legacy or injustice There are not universal
essential or metatruthsrdquo Ainda que memoacuteria verdade e justiccedila revelem-se imperativos de
aspiraccedilotildees mais ou menos universais trata-se sempre de universais cujo conteuacutedo se
esmaece caso lhes seja subtraiacutedo o solo de singularidades ao qual pertencem ou a aacuterea de
jogo e de arranjos poliacuteticos que os designam
Uma vez verificado o protagonismo dos quadros normativos internacionais dos
direitos humanos reconhece-se que a responsabilizaccedilatildeo judicial soacute pode lastrear-se na
produccedilatildeo da memoacuteria e no desvelamento da verdade Do ponto de vista do acesso agrave justiccedila
e agrave reparaccedilatildeo por meio das decisotildees judiciaacuterias eacute que resta demonstrado de que modo o
direito agrave memoacuteria e agrave verdade exercem concretamente uma capacidade integrativa de
direitos ao menos sob a perspectiva da existecircncia de uma norma global de
responsabilizaccedilatildeo que ldquonatildeo depende da adesatildeo de pessoas ou paiacutesesrdquo (MALLINDER
19
Cf nesse particular os paraacutegrafos indicados acima no Relatoacuterio Anual do Escritoacuterio do Alto Comissariado
nas Naccedilotildees Unidas para os Direitos Humanos ldquoAnalytical study on human rigghts and transitional justicerdquo
(OHCHR A-HRC 1218 2009) Disponiacutevel em lthttpwwwunrolorgfiles96696_A-HRC-12-18_Epdfgt
Consultado em 13 mai 2013
53
2011 p 502) Isto significa admitir como fizera Deisy Ventura (2011 p 327-335) que o
costume internacional natildeo deixa de ser uma fonte do Direito Penal Internacional
Embora certo poacutelemos constitua o diapasatildeo quanto agrave validade juriacutedica de anistias
negociadas que visem agrave conciliaccedilatildeo ndash essencialmente vinculadas a uma soluccedilatildeo de exceccedilatildeo
ndash as anistias em branco que acobertem graves violaccedilotildees de direitos humanos
protagonizadas por agentes de Estado por exemplo padecem de um rechaccedilo de caraacuteter
praticamente universal entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo (PENSKY 2011 p 99-
100)
Como resultado da historicidade das lutas pelo reconhecimento normativo e pela
implementaccedilatildeo dos direitos humanos a conclusatildeo a que chega Christine Bell (2009 p
106) eacute a de que se natildeo eacute possiacutevel saber exatamente quais os limites das anistias eacute no
miacutenimo possiacutevel afirmar que a proibiccedilatildeo das anistias em branco estaria contemplada no
novo campo da Justiccedila de Transiccedilatildeo como resultado imediato de sua internacionalizaccedilatildeo
Na medida em que os direitos agrave verdade e agrave memoacuteria encontram-se no cerne nos
processos judiciais que visam agrave responsabilizaccedilatildeo dos agentes violadores de direitos
humanos pode-se notar a centralidade dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade na quadratura
normativa internacional Nesse contexto a produccedilatildeo de memoacuterias institucionais no campo
da responsabilizaccedilatildeo penal internacional ou nos julgamentos transicionais domeacutesticos satildeo
informados pela norma global de responsabilizaccedilatildeo do Direito Internacional dos Direitos
Humanos cuja integridade eacute salvaguardada precisamente pela concreccedilatildeo pragmaacutetica e
judiciaacuteria dos direitos agrave memoacuteria e agrave verdade
sect 2 OS CONTORNOS DO CONCEITO DE MEMOacuteRIA
NO CAMPO TRANSICIONAL
Se foi possiacutevel compreender qual o lugar ocupado pela memoacuteria no seio do Direito
Internacional dos Direitos Humanos bem como sua relaccedilatildeo com o direito agrave verdade seria
preciso delimitar o conceito de memoacuteria sobre o qual os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo
apoiam suas doutrinas a fim de que se possa verificar ainda uma vez sua reciacuteproca
constitutividade
Com efeito natildeo haacute um senso comum teoacuterico a respeito do conceito de memoacuteria
assim como os horizontes conceituais das praacuteticas da Justiccedila de Transiccedilatildeo padecem de uma
relativa imprecisatildeo categoacuterica e como quisera Paul Gready (2011 p 02) implicam natildeo
54
raro certo vaacutecuo analiacutetico indiciaacuterio da ldquogenerally under-theorized nature of much work on
transitional justicerdquo Idecircntico vaacutecuo conceitual relativo agrave ideia de memoacuteria e aos processos
de memorializaccedilatildeo eacute reconhecido por Judy Barsalou e Victoria Baxter com fundamento
nas praacuteticas concretas das Comissotildees de Verdade20
Apesar da heterogeneidade conceitual de que a ideia de memoacuteria se reveste no
campo transicional eacute possiacutevel estabelecer lineamentos comuns que por reduccedilotildees
sucessivas permitiriam uma progressiva aproximaccedilatildeo e elaboraccedilatildeo de um canevaacutes teoacuterico
comum em que se funda a aparente multiplicidade dos conceitos de memoacuteria envolvidos
pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acerca do qual as instituiccedilotildees desempenham uma
funccedilatildeo ora de registro ora de produccedilatildeo
Nesse sentido podem-se estabelecer dois limites que resultam das apropriaccedilotildees
conceituais da memoacuteria realizadas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo (1) o limite
segundo o qual o conceito de memoacuteria eacute compreendido como representaccedilatildeo coletiva
tendendo agrave formar identidade de grupo ou nacional Por vezes apareceraacute como um
processo cultural que poreacutem natildeo eacute jamais explicitado do ponto de vista de sua dinacircmica
interna (2) o limite em que a memoacuteria eacute apreendida como resultado expressivo de uma
ontologia negativa como representaccedilatildeo ou como representificaccedilatildeo do ausente por meio
dos testemunhos individuais o que implica que a memoacuteria seja tratada ora como um
fenocircmeno despido de fundamento no real ora limitada agrave sua caracteriacutestica psicoloacutegica e
reminiscente Trata-se de demonstrar brevemente como se podem deduzir essas balizas
analiacuteticas para definir os contornos do conceito de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo
Da perspectiva desse primeiro limite analiacutetico o conceito de memoacuteria aparece ora
como objeto social ora como processo cultural em cuja constituiccedilatildeo encontra-se envolvida
certa comunidade poliacutetica Em comum os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo insistiratildeo sobre
a prevalecircncia do caraacuteter social e poliacutetico da memoacuteria e da constituiccedilatildeo de subjetividades ou
identidades que ela proporciona Assim Javier Ciurlizza (2009a p 27) afasta a
identificaccedilatildeo vulgar entre memoacuteria e lembranccedila individual considerando-a ldquoum processo
20
ldquoTo date truth commissions have not articulated in much detail what memorialization means how it
should be connected to other transitional justice processes who should take charge and other specific points
of consideration By not taking into greater account the role of memorialization and the educational processes
that should accompany it truth commissions are losing an important opportunity to extend their impactrdquo
(BARSALOU BAXTER 2007 p 10)
55
cultural educativo e poliacutetico de estabelecimento de consensos sobre a identidade
nacionalrdquo
Nesse aspecto a constituiccedilatildeo da memoacuteria confunde-se com a produccedilatildeo de uma
memoacuteria coletiva da qual segundo Peter R Baehr (2007 p 16) as Comissotildees da Verdade
estariam encarregadas no intento de contribuir para ldquoa moral revival and provide the basis
for national unityrdquo
Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) compreende a memoacuteria como uma
representaccedilatildeo social compartilhada que manteacutem uma relaccedilatildeo com as instituiccedilotildees ao passo
em que essa representaccedilatildeo possa ser forjada a partir das narrativas oficiais produzidas em
um registro de verossimilhanccedila e na medida em que sua efetuaccedilatildeo demanda poliacuteticas
puacuteblicas Segundo Carrillo (2009b p 32) o objeto das transiccedilotildees poliacuteticas eacute a proacutepria
cultura que constitui uma dimensatildeo da arquitetura sociopoliacutetica da construccedilatildeo da
democracia integrando o processo poliacutetico
Desde a perspectiva de Carrillo o que estaria em questatildeo nas Comissotildees da
Verdade por exemplo seria a produccedilatildeo de sentido concretizada em um objeto cultural
uma narrativa textual ou natildeo que se avizinha de um objeto complexo e polieacutedrico capaz
de estabelecer a verdade a partir de muacuteltiplas perspectivas sem recorrer ao relativismo
Trata-se de praacutetica que segundo Carrillo (2009b p 40) estabelece-se sobre certas
tecnologias da verdade bem como sobre a base testemunhal que se confunde com as
viacutetimas e os sobreviventes
A narrativa instrumento teacutecnico que se origina das instituiccedilotildees faz-se integrar agrave
memoacuteria como um objeto social normalmente guiado por valores eacutetico-poliacuteticos como a
democracia e os direitos humanos bem como pela correccedilatildeo do registro histoacuterico da
violecircncia Uma vez que tal instrumento teacutecnico desfrute ldquo[]de certa legitimidade
simboacutelica que a converte em socialmente vaacutelidardquo eacute possiacutevel constituir no corpo de um
objeto ldquoao mesmo tempo textual e socialrdquo uma memoacuteria (CARRILLO 2009b p 41)
A representaccedilatildeo social a que se reduz a memoacuteria nesse caso natildeo se limita agrave
partilha de ldquoenunciados com pretensotildees de verdade sobre o passado violento ou
repressivordquo mas constitui segundo Feacutelix Reaacutetegui Carrillo (2009b p 42) aleacutem de ldquouma
fonte de criacutetica e deslegitimaccedilatildeo de certas praacuteticas sociais precedentesrdquo ldquocerta forma de
encarar a luta poliacutetica certos haacutebitos e retoacutericas que determinam a relaccedilatildeo entre as diversas
classes sociais e os conglomerados eacutetnicos da naccedilatildeo ndash e naturalmente uma demanda de
transformaccedilatildeo de tais praacuteticasrdquo Trata-se nesse sentido de uma memoacuteria com caraacuteter
poliacutetico Poliacuteticas puacuteblicas de memoacuteria destinam-se portanto a uma mobilizaccedilatildeo de
56
recursos simboacutelicos que tendem a modificar a ordem significante de coisas repercutindo
sobre outras dimensotildees da organizaccedilatildeo social
Assim Carrillo articula ao redor da memoacuteria compreendida como partilha de uma
representaccedilatildeo social ou como um objeto social as narrativas oficiais provenientes da
atuaccedilatildeo das instituiccedilotildees que refletem a verdade e a memoacuteria de um passado de violaccedilotildees de
direitos agrave axiologia democraacutetica e humanista bem como agrave organizaccedilatildeo poliacutetica das lutas
em prol da transformaccedilatildeo de praacuteticas violadoras
Em sentido anaacutelogo Alexandra Barahona de Brito (2009a p 72) entrevecirc ao menos
duas possibilidades de compreender as poliacuteticas da memoacuteria no seio da Justiccedila de
Transiccedilatildeo ldquoDe forma restrita consiste de poliacuteticas para a verdade e para a justiccedila
(memoacuteria oficial ou puacuteblica) vista mais amplamente eacute sobre como a sociedade interpreta
e apropria o passado em uma tentativa de moldar o seu futuro (memoacuteria social)rdquo
Elizabeth Jelin (2011 p 188-189) por sua vez considera a memoacuteria um processo
eminentemente subjetivo de construccedilatildeo de significaccedilatildeo do passado no ato presente da
recordaccedilatildeo ancorada nas experiecircncias e na ordem do simboacutelico Entretanto afirma Jelin
(2011 p 189) ldquoThere is a dynamic link between individual subjectivities societal or
collective belongingrdquo de modo que o passado e seus significados satildeo incorporados a partir
de vaacuterios produtos culturais que se tornam seus veiacuteculos
De seu turno Teitel adverte que no periacuteodo poacutes-Guerra Fria a Justiccedila de Transiccedilatildeo
incorpora muito de seu discurso normativo vindo de campos de saber externos ao direito
eacutetica medicina teologia etc concebendo interpenetraccedilotildees tambeacutem entre moral e
psicologia de forma a ampliar a ideia de anistia no sentido objetivo da reconciliaccedilatildeo
Poreacutem isso teria acarretado a conversatildeo do paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo em
algo como ldquouma religiatildeo secularizada sem leirdquo Teitel (2003 p 82) o afirmara na medida
em que diagnostica que o advento deste fenocircmeno baseia-se na corrupccedilatildeo da autoridade
poliacutetica e legal promovida por um deslocamento em direccedilatildeo agrave autoridade moral e religiosa
que prometera a partir de uma linguagem universalizante ldquothe aims of forgiveness and the
possibility of political redemptionrdquo Isso deriva de uma confusatildeo entre as esferas do
privado que envolve a eacutetica e do puacuteblico que envolve o poliacutetico possibilitando que o
discurso moral-religioso introduzisse uma fundamentaccedilatildeo moral na Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash
o que Teitel natildeo hesita em interpretar como resultado do contributo de uma teologia
poliacutetica que aposta no potencial emancipador da histoacuteria
Segundo Teitel (2000 p 69-70) a fundamentaccedilatildeo e inspiraccedilatildeo que revestiu a
justiccedila histoacuterica de um caraacuteter messiacircnico encontraria raiacutezes na modernidade iluminista
57
em uma aposta ao mesmo tempo kantiana e marxista na capacidade redentora da histoacuteria e
da verdade que assume a redenccedilatildeo como teleologia e supotildee que verdade e histoacuteria satildeo uma
e mesma coisa
No entanto as teorias contemporacircneas da histoacuteria desafiaram essa visatildeo
reconhecendo a partir de seu giro interpretativo que natildeo haacute uma liccedilatildeo uniacutevoca a extrair do
passado mas o reconhecimento do grau segundo o qual a compreensatildeo histoacuterica eacute
dependente das contingecircncias poliacuteticas e sociais
Embora o canevaacutes da memoacuteria coletiva seja constitutiva de um corpo social ndash e
Teitel assume que as verdades transicionais satildeo construiacutedas por processos de produccedilatildeo da
memoacuteria coletiva ndash a autora lembra que Friedrich Wilhelm Nietzsche e Michel Foucault
exploraram os problemas epistecircmicos que a poliacutetica implica especialmente a iacutentima
relaccedilatildeo entre imposiccedilotildees do poder e conhecimento Por isso interrogar a histoacuteria em
contextos de transiccedilatildeo impotildee um desafio em virtude da natureza poliacutetica da histoacuteria que
natildeo raro resta exposta pelas respostas dadas agrave transiccedilatildeo
A memoacuteria coletiva correlata de determinada identidade social eacute criada no interior
de certos quadros por meio de siacutembolos e rituais no contexto de transiccedilatildeo os quadros
costumeiros de partilha social (poliacuteticos religiosos e sociais) encontram-se estilhaccedilados ou
ao menos ameaccedilados Assim Teitel sublinha a importacircncia e a central constitutividade do
direito em relaccedilatildeo agrave memoacuteria social ao afirmar que ldquoit is law its framework and processes
that in great part shape collective memory In transitions the pivotal role in shaping social
memory is played by the lawrdquo (TEITEL 2000 p 71)
Apesar de sua criacutetica da teleologia redentora da histoacuteria no acircmbito do conceito de
memoacuteria Teitel natildeo supera o referencial conceitual representativo presente nos trabalhos
sobre Justiccedila de Transiccedilatildeo Em verdade termina por definir a memoacuteria no campo
transicional como memoacuteria coletiva isto eacute como um processo de reconstruccedilatildeo da
representaccedilatildeo do passado agrave luz do presente21
Se as histoacuterias de transiccedilatildeo possuem sua
proacutepria narrativa por outro lado vinculam-se a uma mais duradoura histoacuteria do Estado
implicando a um soacute tempo marcas de continuidade e descontinuidade ndash e seu equiliacutebrio
constitui a delicada dinacircmica a ser regulada pela produccedilatildeo da histoacuteria transicional
O mesmo acontece com a verdade definida como um consenso socialmente
partilhado ao passo em que a histoacuteria transicional seja gerada a partir das formas e praacuteticas
21
ldquoCollective memory is a process of reconstructing the representation of the past in the light of the presentrdquo
(TEITEL 2000 p 70)
58
legais dadas no interior de certo sistema de maneira a lanccedilar luzes sobre as instituiccedilotildees
franqueando mudanccedilas poliacuteticas
As narrativas histoacutericas de transiccedilatildeo satildeo produzidas por intermeacutedio de diversos
meios legais como julgamentos que formam precedentes com a gecircnese de corpos
burocraacuteticos para esse gecircnero de propoacutesitos a instalaccedilatildeo de comissotildees de verdade ou a
construccedilatildeo de histoacuterias oficiais Outras formas de prestaccedilatildeo de contas no campo histoacuterico
devem-se a iniciativas privadas de jornalistas historiadores e demais profissionais ligados
a este campo de saberes
Os julgamentos constituem a archē na construccedilatildeo das histoacuterias de transiccedilatildeo uma
vez que satildeo formas duradouras de produccedilatildeo da memoacuteria coletiva embora antes
constituam modos de processar fatos controversos estabelecer a verdade e no campo da
justiccedila criminal responsabilizar com base na verificaccedilatildeo de culpa ainda que sua
importacircncia como criteacuterio de verdade possa ser cultural e historicamente variaacutevel
Por meio dos julgamentos a busca pela verdade histoacuterica encontra-se implicada nos
quadros da prestaccedilatildeo de contas e da busca pela justiccedila Em algum niacutevel o uso de
julgamentos para interrogar a histoacuteria vai ao encontro da ēpistēme geralmente aceita por
nossos sistemas de justiccedila criminal Assim verdade e justiccedila satildeo segundo Teitel (2000 p
72-73) produzidas conjuntamente e desempenham importante papel no sentido de
deslegitimar o regime precedente estabelecendo a legitimidade do regime que o sucedeu
Esses poreacutem constituem os limites do conceito de memoacuteria tal como este
geralmente emerge entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Se de um lado reconhecem a
dimensatildeo puacuteblica da produccedilatildeo da memoacuteria e da verdade como representaccedilatildeo simboacutelica
apontando para seu caraacuteter coletivo social e poliacutetico parecem apontar ainda que
timidamente um potencial intrinsecamente transformador e redentor da memoacuteria que
sempre se define por uma relaccedilatildeo do passado recuperado no presente com alguma
dimensatildeo do futuro os imperativos de natildeo repeticcedilatildeo a criaccedilatildeo de uma identidade nacional
a construccedilatildeo da pertenccedila social ou a ldquotentativa de moldar o futurordquo por meio de certa
memoacuteria social
Que o conceito de memoacuteria mobilizado pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo se
restrinja a uma apreensatildeo meramente individual da memoacuteria ele estaacute ainda baseado no
testemunho individual e na formaccedilatildeo puacuteblica de uma memoacuteria que se reduz ora agrave faceta da
representaccedilatildeo coletiva ora ao seu registro na dimensatildeo cultural da reminiscecircncia
Apesar de Teitel (2003 p 87) afirmar o contraacuterio e sustentar que a Justiccedila de
Transiccedilatildeo implicaria uma abordagem natildeo-linear do tempo a concepccedilatildeo transicional
59
meramente representativa da memoacuteria erige-se poreacutem sobre uma apreensatildeo da
temporalidade que a limita a uma linearidade unidimensional em que passado e futuro satildeo
rearticulados no presente sem que jamais se explique de que modo puderam se tornar
copresentes Segundo a representaccedilatildeo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo fizera do
tempo passado e futuro natildeo possuem realidade proacutepria pelo contraacuterio constituem duas
dimensotildees negativas o primeiro porque jaacute natildeo eacute mais o segundo porque natildeo eacute ainda ndash
embora seja constantemente assumido pelas teorias e por elas evocado como horizonte de
efetuaccedilatildeo natildeo raro redentor Nesse contexto a transiccedilatildeo eacute apresentada geralmente como
um processo capaz de produzir a passagem de um termo a outro mas sua dinacircmica jamais
eacute explicada a natildeo ser sob a metaacutefora obscura e paradoxal das ldquocontinuidades-rupturasrdquo A
representaccedilatildeo unidimensional e linear da temporalidade deduz-se do modo
desontologizado e negativo como o passado e o futuro satildeo representados pelas
apropriaccedilotildees dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo em meio ao magma confuso e
demasiadamente real das singularidades presentes que exigem por vezes sua proacutepria
recusa e destituiccedilatildeo
Nesse passo algo da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser considerada condiccedilatildeo
para a transformaccedilatildeo do real ndash das subjetividades aos viacutenculos sociais dos viacutenculos
poliacuteticos agraves estruturas institucionais ndash resta incompreendido ou pelo menos elidido do
discurso vagamente redentor que se observa com recorrecircncia nas obras de teoacutericos da
Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso deriva de eles terem procurado assentar os processos de
transformaccedilatildeo institucional em um conceito de memoacuteria reduzido a uma representaccedilatildeo
social ou cultural ignorando-a em sua realidade imanente negativizando-a como uma
regiatildeo do existente degradando sua ontologia particular e reduzindo a complexa relaccedilatildeo
entre memoacuteria e transiccedilatildeo a deus ex machina das transformaccedilotildees sociais e poliacuteticas
exigidas em periacuteodos poacutes-conflituais22
Da progressiva definiccedilatildeo do campo teoacuterico ocupado pelo conceito de memoacuteria na
Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo resultou a verificaccedilatildeo de que a memoacuteria eacute geralmente
compreendida como um elemento-chave para viabilizar a transiccedilatildeo reconhece-se
portanto a correlaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo e todavia essa relaccedilatildeo eacute sempre obscura
ou pressuposta da mesma forma que a consistecircncia desse passado redentor jamais se
encontra definida em seus proacuteprios termos e enquanto tal Ao mesmo tempo em que ele
22
Cf nesse sentido os uacuteltimos segmentos da presente seccedilatildeo bem como a seccedilatildeo posterior (Capiacutetulo 3 sect 3)
ldquoA centralidade da memoacuteria e seus potenciais transformativosrdquo para acompanhar em maior detalhe a
demonstraccedilatildeo dessas asserccedilotildees
60
natildeo deve ser reduzido agrave reminiscecircncia individual parece consistir em algo que soacute pode ser
contado ou narrado na medida em que carrega conteuacutedos culturais e potenciais
transformativos eacute algo que natildeo dispensa as figuras encarnadas das testemunhas e dos
sobreviventes ndash sujeitos concretos capazes de transformar a experiecircncia real em
representaccedilatildeo simboacutelica apta a forjar o solo comum de uma nova cultura desejosamente
democraacutetica mas tambeacutem o fundamento identitaacuterio social nacional ou eacutetnico
(BARSALOU BAXTER 2007 p 01)
O perigo imanente a essa concepccedilatildeo de memoacuteria ndash que reduz a memoacuteria agravequilo que
os grupos sociais nacionais ou eacutetnicos decalcam dos significantes poliacuteticos institucionais e
estatais ou das representaccedilotildees infraestruturais correntes ndash eacute poliacutetico De um lado arrisca-
se fixar a memoacuteria agrave unidade monoliacutetica contra a qual Priscilla B Hayner (2011 p 84) se
acautela ndash embora ela confesse acreditar ser possiacutevel fixar verdades factuais
inquestionaacuteveis de outro eacute sempre possiacutevel render-se ao discurso redentor e pouco criacutetico
da memoacuteria e da verdade o perigoso momento em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
pode converter-se em chancela juriacutedica da reconciliaccedilatildeo a qualquer preccedilo e da extorsatildeo do
perdatildeo das quais entre outros nos previne Ruti Teitel (2003 p 81)
Fernando Catroga apresenta um excursus que visa a compreender as relaccedilotildees entre
memoacuteria e histoacuteria como gestos de uma representificaccedilatildeo do ausente ndash enfatizando ainda
mais a emergecircncia do conceito de memoacuteria sob o fundo de uma ontologia negativa Eis o
que definiria um segundo limite analiacutetico a fim de compreender os contornos do conceito
de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
Umbilicalmente ligada agrave histoacuteria a memoacuteria apareceraacute do lado da morte e do
negativo (CATROGA 2009b p 75) desde que se compreenda a histoacuteria como um duplo
narrativo do gesto do sepultamento de um evento e da simulaccedilatildeo ritual de sua presenccedila A
histoacuteria edifica memoacuterias ao passo em que articula visiacutevel e invisiacutevel o que eacute e o que jaacute
natildeo eacute mais no seio das praacuteticas simboacutelicas dando como no cemiteacuterio um lugar ao
cadaacutever descarnado da memoacuteria Trata-se de negociar e esconder a corrupccedilatildeo do corpo e
do ser por meio da representaccedilatildeo ou do signo funeraacuterio
A exemplo de Catroga Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 45) compreende o canto
mnemocircnico do poeta homeacuterico como o exemplar de uma luta por manter viva a memoacuteria
de um morto que jaacute natildeo sabe que tuacutemulo e signo se revezam no trabalho da memoacuteria que
todavia reconhece a supremacia do poder da morte do apagamento dos traccedilos que afinal
natildeo podem durar eternamente e testemunha a dupla pertenccedila etimoloacutegica de signo e pedra
61
mortuaacuteria ou tuacutemulo agrave raiz grega sēma Desse modo atesta o nexo entre memoacuteria morte
e trabalho do luto ndash elogio poeacutetico que como quisera Catroga (2009b p 69) representifica
o jaacute ausente dissimulando sua corrupccedilatildeo e necrose
A historiografia no entanto natildeo dispensa completamente o sujeito como suporte
mnemocircnico privilegiado tal como ele aparece entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo na
condiccedilatildeo de superstes na corporificaccedilatildeo da testemunha a condiccedilatildeo existencial vulgar
coexiste com a encarnaccedilatildeo circunstancial de ser um sobrevivente
Eacutemile Benveniste (1969 p 273) demonstrara que o sentido etimoloacutegico de
superstes traduccedilatildeo do grego mārtyros implica dois significados que designam o
sobrevivente mas tambeacutem aquele que testemunha apesar disso identificava ainda que
outra raiz etimoloacutegica latina testis oriunda do direito romano designava aquele que se
colocava como terceiro encarregado de assistir a um ato ritual a ser praticado entre duas
outras pessoas
Atento a essas distinccedilotildees Giorgio Agamben (2008 p 27) afirma que a testemunha
natildeo pode ser o testis mas o superstes Ela nunca comparece como tribunal do juiacutezo ou da
histoacuteria apesar do que sustenta Fernando Catroga (2009b p 74) sobre uma pulsatildeo de
imparcialidade historiograacutefica do superstes que anunciaria uma dimensatildeo da verdade A
verdade segundo Agamben a analisa ao longo da literatura testemunhal sobre Auschwitz
atestaria a lacunaridade proacutepria de todo testemunho aquela entre a verdade e a experiecircncia
do intestemunhaacutevel O testemunho segundo Agamben (2008 p 43) ldquovale essencialmente
por aquilo que nele falta conteacutem no seu centro algo intestemunhaacutevel que destitui a
autoridade dos sobreviventesrdquo como se fazecirc-lo fosse testemunhar sobretudo em nome da
impossibilidade de testemunhar
Sob a forccedila do gesto de sepultamento ou o da sobrevivecircncia do testemunho fixada
em seu suporte o sujeito-testemunho ndash ldquouacutenico capaz de vivificarrdquo a memoacuteria ndash Fernando
Catroga (2009b p 74-75) afirma uma dupla implicaccedilatildeo entre histoacuteria e memoacuteria A
histoacuteria seria fonte da memoacuteria coletiva mas a memoacuteria afianccedilaria a verdade da
interpretaccedilatildeo histoacuterica e de suas mediaccedilotildees criacutetico-racionais
No momento em que se reconhece uma dimensatildeo produtiva da memoacuteria ndash a
produccedilatildeo de signos ndash encontra-se o limite do discurso historiograacutefico sobre a memoacuteria
Natildeo se trata de negar que a histoacuteria com efeito seja uma instacircncia de produccedilatildeo simboacutelica
de memoacuteria Entretanto a histoacuteria se relaciona com a memoacuteria investindo-a a partir do
negativo ora de sua relaccedilatildeo com a morte cujo assombro torna a histoacuteria incapaz de ouvir o
canto de vida e a potente insistecircncia dos vivos na positividade da memoacuteria ndash que satildeo os
62
objetos engendrados por todo trabalho de luto ora de sua relaccedilatildeo com a sem duacutevida
importante mas reduzida compreensatildeo do conceito de memoacuteria pela via exclusivamente
simboacutelica
A histoacuteria constitui uma forma de produccedilatildeo da memoacuteria que natildeo pode dispensar o
sujeito a consciecircncia e a razatildeo e ignora ou encobre que o nuacutecleo de todo o signo natildeo
aponta para estelas ou pedras mortuaacuterias mas para uma irrepresentaacutevel posiccedilatildeo de desejo
(DELEUZE GUATTARI 2010 p 158) Nesse aspecto apesar da mediaccedilatildeo criacutetica que o
saber histoacuterico pode constituir em face da produccedilatildeo oficial das narrativas a histoacuteria aponta
pela criacutetica mesma a operaccedilatildeo de sobrecodificaccedilatildeo dos signos a que a memoacuteria estaacute sujeita
quando da produccedilatildeo de uma histoacuteria oficial pelas narrativas de Estado
Por essa razatildeo Jeanne Marie Gagnebin (2006 p 47) erigiu agrave condiccedilatildeo de tarefa
essencial do historiador contemporacircneo a funccedilatildeo genuinamente poliacutetica de assegurar a natildeo
repeticcedilatildeo ao transmitir o inenarraacutevel manter viva a memoacuteria dos sem-nome e de afirmar
que o inesqueciacutevel existe Eis a tarefa que no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
pretendemos conduzir ao limite de seu horizonte conceitual ndash afirmar que ldquoo inesqueciacutevel
existerdquo e fazecirc-lo contra a ordem de toda ontologia negativa23
Dentre os conceitos de memoacuteria elaborados no campo teoacuterico transicional a
memoacuteria natildeo deixou de ser compreendida como representaccedilatildeo tampouco de ser reduzida
ou evocada em correlaccedilatildeo com alguma dimensatildeo do negativo Ela natildeo cessa de ser
invocada como o conhecimento e a produccedilatildeo de arquivos pelas instituiccedilotildees como memoacuteria
coletiva ou partilha consensual de uma representaccedilatildeo social como objeto da cultura e de
poliacuteticas puacuteblicas vocacionadas a alterar estruturas poliacuteticas institucionais e
administrativas como narrativa como fiador da verdade dos signos histoacutericos como
testemunho histoacuteria oficial ou como representaccedilatildeo de um objeto ausente Por essa razatildeo
ao investigar as relaccedilotildees entre memoacuteria histoacuteria e esquecimento Ricœur (2000 p 69) soacute
pocircde afirmar duas dimensotildees de abordagem desse objeto ldquomemoacuteriardquo a cognitiva e a
pragmaacutetica
Na medida em que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo limitada por esses contornos
representativos e negativos do conceito de memoacuteria como representificaccedilatildeo do ausente
seja incapaz de apresentar uma soluccedilatildeo para o enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e
transiccedilatildeo isso talvez seja indiciaacuterio de que o enigma natildeo possa ser esclarecido nesse
23
As partes II e III do presente trabalho destinam-se a desenvolver essa tarefa que Gagnebin afirma ser
essencialmente poliacutetica a partir de uma interlocuccedilatildeo com a filosofia de Henri Bergson
63
terreno Ainda que se atribua ao potencial criacutetico da memoacuteria social e conscientemente
construiacuteda a respeito da importacircncia da democracia e das violaccedilotildees de direitos que tiveram
lugar no passado (TORELLY 2012 p 281-282 TEITEL 2000 p 91-92) a funccedilatildeo de
constituir um elemento fundamental e necessaacuterio agrave construccedilatildeo da factibilidade das
transiccedilotildees este ainda consiste em um avanccedilo respeitaacutevel embora demasiadamente lacunar
com relaccedilatildeo ao ponto nodal da presente investigaccedilatildeo Restaria explicar uma questatildeo
simples mas profundamente problemaacutetica como a criacutetica social consciente poderia forjar
o desejo ndash tarefa aacuterdua e talvez metafiacutesica Eacute possiacutevel que os arcanos da Teoria da
Justiccedila de Transiccedilatildeo soacute admitam receber uma luz ndash malgrado indireta ndash ao passo em que
nos reportemos a horizontes conceituais mais ampliados Eacute provaacutevel ainda que toda a
lacunaridade a respeito da dinacircmica pela qual a memoacuteria pode ser entrevista como
condiccedilatildeo necessaacuteria agrave transiccedilatildeo deva ser atribuiacuteda aos termos e ao campo de sentido em
que o problema da relaccedilatildeo memoacuteria-transiccedilatildeo pode ser interrogado Eis o que tornaria
plausiacutevel desertar o quadro conceitual da Justiccedila de Transiccedilatildeo em proveito da construccedilatildeo
de um campo de sentido conceitualmente mais generoso em que natildeo verifiquemos a
priori um desinvestimento ontoloacutegico estrutural da ideia de memoacuteria na Teoria da Justiccedila
de Transiccedilatildeo jamais compreendida como uma regiatildeo do existente ou a partir de uma
ontologia que natildeo seja sempre e jaacute negativa
Nos quadros conceituais tradicionais ndash representativos e negativos como se
demonstrou ndash o significado da memoacuteria jamais estaraacute suficientemente infenso a assumir
indistintamente a faceta humanista da Justiccedila de Transiccedilatildeo como a negacionista dos
contramovimentos pode assumir o cariz da histoacuteria oficial a versatildeo dos algozes ou o rosto
da narrativa das viacutetimas Isso se deve ao fato de que no momento em que a proteccedilatildeo aos
direitos humanos de agentes de Estado violadores de direitos humanos eacute invocada como
argumento para sustentar a impossibilidade de persecuccedilotildees e responsabilizaccedilotildees criminais
(SABADELL DIMOULIS 2011 p 79-102) ou quando uma miacutetica anistia bilateral
construiacuteda por uma estrateacutegia controlada pelo Executivo (ABRAtildeO 2011 p 123-124) eacute
invocada sob o argumento do garantismo penal que natildeo se pergunta sobre a carecircncia de
autoridade internacional ou juriacutedica das autoanistias esses conceitos arriscam
indeterminarem-se ao infinito
Agenciando dispositivos micropoliacuteticos e macropoliacuteticos em torno de estrateacutegias de
sobrecodificaccedilatildeo da memoacuteria social as instituiccedilotildees imprimem sentidos proacuteprios no campo
de uma memoacuteria social politicamente em disputa Se por um lado natildeo haacute memoacuteria
exclusivamente institucional as instituiccedilotildees sociais e estatais investem de longa data o
64
campo da memoacuteria coletiva ocupando-se da governamentalidade de afetos livres
soldando-os agrave festa ao luto erigindo monumentos preservando documentos interditando
o acesso a eles ou abandonando-os ao esquecimento (LE GOFF 1990 p 426)
Essa eacute a dinacircmica que do ponto de vista das instituiccedilotildees e das poliacuteticas da
memoacuteria estaacute implicada na produccedilatildeo de simboacutelico no contexto das transiccedilotildees Embora isso
represente ainda a reduccedilatildeo da memoacuteria a uma ontologia negativa pois a submete a um
conceito de memoacuteria que se natildeo eacute exclusivamente psicoloacutegico ndash individual ou coletivo
decirc-se no niacutevel do consciente ou do subconsciente ndash dele depende pois concorre para a sua
reduccedilatildeo agrave representaccedilatildeo e ao simboacutelico eacute preciso verificar mais precisamente se e de que
maneira essas apropriaccedilotildees normativas conceituais praacuteticas e institucionais da ideia de
memoacuteria pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo implicam relacionar uma memoacuteria
cristalizada ndash em maior ou menor grau indiferente aos dinamismos da memoacuteria ndash e o
advento da transiccedilatildeo da qual a memoacuteria constitui um dos principais nuacutecleos causais
sect 3 A CENTRALIDADE DA MEMOacuteRIA
E SEUS POTENCIAIS TRANSFORMATIVOS
Na medida em que se definiram dois campos de sentido referenciais em correlaccedilatildeo
com os quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo engendra um conceito de memoacuteria ndash ora
decalcado de seu proacuteprio referencial epistecircmico ora apropriando-se de um campo
significante que lhe eacute externo (Capiacutetulo 3 sect 2 supra) ndash definiram-se coextensivamente
os limites teoacutericos do conceito De acordo com tais contornos a memoacuteria soacute pode aparecer
no campo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ao preccedilo de ali ser capturada ora como
memoacuteria psicoloacutegica individual (testemunho) ora como memoacuteria psicoloacutegica social
(narrativas sociais e culturais) ora como substrato necessaacuterio agrave construccedilatildeo de identidades
nacionais e eacutetnicas dos grupos perseguidos (ponto de vista poliacutetico-institucional) e
finalmente como a representificaccedilatildeo individual ou socialmente partilhada de elementos
ausentes a partir de um registro simboacutelico historiograacutefico e negativo na medida em que
apreende o passado como natildeo-ser com a consistecircncia proacutepria de representaccedilatildeo ou
representificaccedilatildeo de um objeto ausente (RICŒUR 2000 p II)
No entanto ainda que se tenha demonstrado os limites conceituais internos e
externos por meio dos quais a memoacuteria se torna um objeto de investimento no campo
teoacuterico da Justiccedila de Transiccedilatildeo conviria estender seus contornos um pouco aleacutem no
65
intuito de alcanccedilar o ponto de em que o conceito eacute apreendido pelas instituiccedilotildees em
transiccedilatildeo e se torna objeto de uma reapropriaccedilatildeo no campo teoacuterico Em outras palavras eacute
preciso verificar com que conceito de memoacuteria as instituiccedilotildees em transiccedilatildeo operam a fim
de aquilatar se nesse novo e aparentemente concreto horizonte de aparecimento o
conceito de memoacuteria poderia desligar-se mais facilmente das feiccedilotildees representativas e
negativas ndash embora pretensamente coletivas sociais ou culturais ndash que constituiacuteram seus
contornos teoacutericos ateacute aqui
Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo alguns reconheceram a impossibilidade
de fixar o conceito de memoacuteria e mais especificamente os processos de memorializaccedilatildeo
sob a insiacutegnia de uma forma determinada e fechada Nesse sentido poder-se-aacute falar natildeo
apenas de uma variedade de forma que a memoacuteria pode assumir nos contextos poacutes-
conflituais (BARSALOU BAXTER 2007 p 04) como referir-se a certa mutabilidade
interna aos proacuteprios conteuacutedos da memoacuteria Nesse caso as memoacuterias seriam maleaacuteveis
(PHELPS 2012 p 07) e flexiacuteveis na medida em que as neurociecircncias compreenderam seu
papel evolutivo nas funccedilotildees adaptativas (cf CAMPOS SANTOS e XAVIER 1997)24
Por essa razatildeo recentemente alguns autores que aproximaram a Teoria da Justiccedila
de Transiccedilatildeo de um diaacutelogo produtivo com as ciecircncias do ceacuterebro passaram a defender ndash
lastreados em fundamentaccedilotildees neurocientiacuteficas ndash a impossibilidade de tratar-se
adequadamente da memoacuteria representando-a como um elemento estaacutetico (BARSALOU
BAXTER 2007 p 12 e p 16) No limite chegaratildeo a advogar a existecircncia de certa
instabilidade constitutiva da memoacuteria (NAGEL SINOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) na
medida em que o proacuteprio processo de evocaccedilatildeo e repeticcedilatildeo de memoacuterias conscientes jaacute
implicaria sua alteraccedilatildeo dinacircmica25
bem como ao passo em que a memoacuteria eacute ressignificada
durante os heterogecircneos processos de transmissatildeo intergeracional26
Isto poreacutem como
demonstrado por Nadel e Sinott-Armstrong (2012 p 05) natildeo se confunde com a
concepccedilatildeo dominante de memoacuteria no seio do campo teoacuterico transicional nem mesmo com
24
CAMPOS Alexandre de SANTOS Andreacutea M G dos XAVIER Gilberto F A Consciecircncia Como Fruto
da Evoluccedilatildeo e do Funcionamento do Sistema Nervoso Psicologia USP Satildeo Paulo v 8 n 2 1997
Disponiacutevel em lthttpwwwscielobrscielophpscript=sci_arttextamppid=S0103-
65641997000200010amplng=enampnrm=isogt Acesso em 20 mai 2013 25
ldquo[] memories once created are not fixed entities The public conception of course is that memories are
permanent imprints that might fade but are otherwise stable We know that is not the case apparently stable
memories can be altered when they are reactivated That is memory is fundamentally malleable [] when
memories are replayed [] this process of reactivating and replaying a memory inalterably changes it going
forwardrdquo (NADEL e SINNOTT-ARMSTRONG 2012 p 05) Em adiccedilatildeo Elizabeth A Phelps (2012 p 07)
reconhece que ldquo[] memories can be quite malleable for reasons that are likely adaptive in everyday life
[]our highly vivid and detailed memories for emotional events may not be as accurate as they seemrdquo 26
ldquoBecause memory is not static and lsquoreceivedrsquo memory is reinterpreted from one generation to another[]rdquo
(BARSALOU BAXTER 2007 p 16)
66
sua apreensatildeo praacutetica e institucional que em comum partem do pressuposto de que as
memoacuterias seriam constituiacutedas de maneira estaacutetica como se fossem ldquo stable and permanent
imprintsrdquo
A exemplo de Nadel e Sinnott-Armstrong ao reconhecerem ainda uma vez certos
dinamismos da memoacuteria Judy Barsalou e Victoria Baxter identificaram com precisatildeo
alguns limites sob os quais o conceito de memoacuteria mas tambeacutem os processos de
memorializaccedilatildeo tornaram-se objetos de investimento pela Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo27
Segundo as autoras na medida em que os processos de memorializaccedilatildeo
comportam diversas formas encampam objetivos comemorativos honoriacuteficos satisfativos
ou reparatoacuterios terminam por servir de pano de fundo factual que uma vez reinterpretado
sob nova luz seria capaz de subsidiar a satisfaccedilatildeo de necessidades sociais e poliacuteticas
diversas que vatildeo desde a reintegraccedilatildeo dos ldquosubversivosrdquo e resistentes poliacuteticos agrave nova
ordem ateacute a possibilidade de consolidaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica ou nacional
Dessa maneira resta claro que no interior de sua apreensatildeo conceitual a memoacuteria
pode ser capturada no campo teoacuterico transicional a partir de um amplo espectro de
definiccedilatildeo compreendendo tanto as formas de uma memoacuteria individual e psicoloacutegica como
atingir em outro extremo o niacutevel das memoacuterias sociais e poliacuteticas (representaccedilotildees
coletivas) objeto de contestaccedilotildees e de disputas pelo controle hegemocircnico da verdade
Nesse sentido os horizontes de aparecimento da memoacuteria no campo transicional satildeo
relativamente heterogecircneos pois a memoacuteria tanto eacute apreendida como um mecanismo de
subjetivaccedilatildeo microloacutegico erigindo-se pela e a partir da subjetividade individual de
testemunhas e sobreviventes como pode definir-se como aparato macropoliacutetico
potencialmente constitutivo de identidades sociais eacutetnicas e nacionais
Os textos de Barsalou e Baxter como os de Nadel e Sinnott-Armstrong terminam
por legar-nos uma perspectiva relativamente ambiacutegua no que diz respeito ao conceito de
memoacuteria no campo transicional ao mesmo tempo em que se reconhece do ponto de vista
puacuteblico pragmaacutetico e institucional a limitaccedilatildeo de um conceito estaacutetico de memoacuteria ndash
ainda que em toda a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tal conceito seja enunciado
27
ldquo[] memorialization takes a variety of forms serving as an umbrella concept encompassing a range of
processes to remember and commemorate Memorialization as a process satisfies the desire to honor those
who suffered or died during conflict and becomes a means of examining the past In this process the past can
be reinterpreted to address a wide range of political or social needs ndash recasting lsquosubversivesrsquo as martyrs or
innocent victims for instance or consolidating a new national identity such as the transformation of South
Africa from apartheid state to lsquoRainbow Nationrsquo Memorialization thus represents a powerful arena of
contested memory and offers the possibility of aiding the formation of new national community and ethnic
identitiesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 04)
67
obscuramente como um ldquoprocessordquo jamais esclarecido ou que aspire ao registro das
memoacuterias coletivas ndash o reconhecimento dos dinamismos da memoacuteria a partir das
contribuiccedilotildees da neurociecircncia parece nos reconduzir a uma concepccedilatildeo de memoacuteria
individual pessoal cuja sede arquiviacutestica seria o ceacuterebro humano
Mesmo que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo comece a reconhecer com timidez a
natureza constitutivamente dinacircmica da memoacuteria isso implica que toda concepccedilatildeo de
memoacuteria coletiva ou social precise voltar a lastrear-se nas memoacuterias subjetivas e
individuais ndash e isso em um momento em que a memoacuteria passa a ser compreendida
hegemonicamente pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo como vimos como um processo
cultural como memoacuteria social ou coletiva que segundo Maurice Halbwachs teria sido
capaz de emancipar-se dos referenciais tradicionalmente individuais da memoacuteria28
Tudo
se passa como se quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditava ter chegado ao porto
da memoacuteria coletiva emancipada das lembranccedilas individuais ela eacute novamente lanccedilada ao
alto-mar das memoacuterias individuais e psicoloacutegicas Mesmo com esse movimento pendular
jamais desertamos o amplo espectro teoacuterico jaacute traccedilado por Paul Ricœur (2000 p 69)
segundo o qual a memoacuteria eacute apreendida ora de seu ponto de vista cognitivo ora de seu
ponto de vista pragmaacutetico
Desse uacuteltimo ponto de vista ndash vale dizer da perspectiva das instituiccedilotildees e da
pragmaacutetica transicional ndash Louis Bickford teria sugerido a existecircncia de dois paradigmas
sobrepostos para confrontar o passado (BARSALOU BAXTER 2007 p 10) O primeiro
deles chamado de paradigma da Justiccedila de Transiccedilatildeo estaria francamente relacionado agraves
responsabilidades legais do Estado e da comunidade internacional em promover o Estado
de Direito exigindo-se praacuteticas narrativas sobre a verdade do passado (truth-telling)
persecuccedilatildeo e responsabilizaccedilatildeo criminal dos agentes violadores promoccedilatildeo de reparaccedilatildeo agraves
28
Maurice Halbwachs insurgiu-se contra o haacutebito de pensar a memoacuteria como um fenocircmeno exclusivamente
pessoal individual psicoloacutegico e interno afirmando que ldquoOn nrsquoest pas encore habitueacute agrave parler de la meacutemoire
drsquoun groupe mecircme par meacutetaphorerdquo (HALBWACHS 1997 p 97) Eis o que o leva a afirmar que as
lembranccedilas se agrupariam natildeo apenas ao redor de centros pessoais mas seriam igualmente distribuiacutedas no
registro coletivo Maurice Halbwachs sustentou que os quadros sociais da memoacuteria excedem os da histoacuteria
de forma tal que de um lado os quadros sociais da memoacuteria satildeo como ldquocourants de penseacutee et drsquoexpeacuterience
ougrave nous retrouvons notre passeacute que parce qursquoil en a eacuteteacute traverseacuterdquo ldquocourant de penseacutee continurdquo de outro a
memoacuteria coletiva natildeo se reduz agrave memoacuteria histoacuterica por natildeo se encontrar integralmente vertida nela
(HALBWACHS 1997 p 113 e p 131) Todo o projeto de Halbwachs definia-se no sentido de pensar uma
memoacuteria coletiva como memoacuteria concreta de grupos Nesse sentido recusava-se o pressuposto habitual de
que a memoacuteria coletiva pudesse estar baseada unicamente nas memoacuterias individuais Na contramatildeo do
haacutebito Halbwachs concebia a memoacuteria individual como um epifenocircmeno da memoacuteria coletiva subordinando
aquela agrave esta ldquoTout rappel drsquoune seacuterie de souvenirs qui se rapportent au monde exteacuterieur srsquoexplique donc par
les lois de la perception collectiverdquo (HALBWACHS 1997 p 87) ldquo[]chaque meacutemoire individuelle est un
point de vue sur la meacutemoire collective[]rdquo (HALBWACHS 1997 p 94) Assim a memoacuteria coletiva
passaria a ser compreendida como o campo de sentido e o horizonte privilegiado de aparecimento das
memoacuterias individuais
68
viacutetimas e garantias de natildeo repeticcedilatildeo mediadas por reformas institucionais que as
afianccedilassem O segundo paradigma da memoacuteria identifica-se com a promoccedilatildeo de uma
cultura democraacutetica parcialmente amparada na criaccedilatildeo de uma mentalidade de ldquonunca
maisrdquo (never again mentality)
Ambos os paradigmas promovem a interlocuccedilatildeo entre dimensotildees diferentes do
passado ndash a institucional responsabilizadora e reformista por um lado e a cultural e
identitaacuteria por outro Tal interlocuccedilatildeo todavia natildeo consegue arrostar a memoacuteria senatildeo
como algo que deve derivar forccedilosamente de um elemento material nesses termos a
memoacuteria se descola da documentaccedilatildeo dos arquivos testemunhos evidecircncias forenses ou
constitui a mateacuteria indoacutecil de que o presente deve se apropriar para forjar uma cultura
democraacutetica futura Tudo se passa como se a promessa redimisse o passado mas natildeo sem
antes retornar uma uacuteltima vez sobre o irrepetiacutevel que esse passado encerra
Como consequecircncia desse amplo espectro conceitual que tem origem na memoacuteria
individual e encontra seu limite na memoacuteria institucional e na promessa coletiva Judy
Barsalou e Victoria Baxter definem memorializaccedilatildeo como ldquo[]a process that satisfies the
desire to honor those who suffered or died during conflict and as a means to examine the
past and address contemporary issuesrdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01) Sua relaccedilatildeo
com a dimensatildeo da promessa estendida na direccedilatildeo de um tempo futuro e de um potencial
transformador da memoacuteria logo se clarifica ldquoIt [memorialization] can either promote
social recovery after violent conflicts ends or crystallize a sense of victimization injustice
discrimination and the desire for revengerdquo (BARSALOU BAXTER 2007 p 01)
Eis o que testemunha uma pluralidade de apreensotildees possiacuteveis no seio das quais
buscamos encontrar e definir limites e contornos conceituais a fim de compreender a
questatildeo que como veremos sempre emerge em toda argumentaccedilatildeo sobre a memoacuteria mas
jamais satildeo objeto de uma maior atenccedilatildeo pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Trata-se do
enigma da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo cujos arcanos podem ser colocados em
questatildeo a partir de duas interrogaccedilotildees simples (1) por que a memoacuteria ndash compreendida a
partir de seu amplo espectro categoacuterico na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ndash aparece com
uma constante centralidade no acircmbito das transiccedilotildees poliacuteticas e (2) se a memoacuteria
individual ou coletiva psicoloacutegica ou cultural narrativa ou simboacutelica aponta para um
conceito representativo e negativo consistente na representificaccedilatildeo de uma realidade
ausente no seio de processos individuais ou culturais de reminiscecircncia como ela pode ser
considerada uma condiccedilatildeo ndash se natildeo suficiente pelo menos necessaacuteria ndash agrave efetuaccedilatildeo de toda
e qualquer transiccedilatildeo
69
Com efeito essas duas questotildees se entrecruzam no ponto em que as memoacuterias
redentoras exercem funccedilotildees simboacutelicas individuais e coletivas capazes de tornar factiacuteveis
as transiccedilotildees Na medida em que demonstramos que no seio da Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo apesar do caraacuteter heterogecircneo do conceito de memoacuteria trata-se de um conceito
de amplo espectro e central isto eacute o campo teoacuterico transicional utiliza-se dele de maneira
variaacutevel mas sua emergecircncia eacute nesse mesmo campo uma constante Por outro lado
tambeacutem demonstramos que a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo constantemente decalca da
memoacuteria certas funccedilotildees transicionais pragmaacuteticas sem memoacuteria natildeo pode haver
consolidaccedilatildeo da justiccedila ndash para isso eacute preciso formar um corpus mnecircmico judiciaacuterio
institucional ndash nem das reparaccedilotildees ndash eacute preciso dar nomes agraves viacutetimas encontrar e identificar
corpos de desaparecidos reintegrar perseguidos poliacuteticos ndash tampouco reformas pois eacute
preciso determinar os responsaacuteveis atribuir as violaccedilotildees do passado a algueacutem purgar os
diretamente envolvidos e os coniventes (TEITEL 2000 p 90) Enfim natildeo eacute possiacutevel
efetuar nenhuma das dimensotildees reconhecidas pela Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ou pelo
Direito Internacional dos Direitos Humanos como inerentes aos processos de transiccedilatildeo
democraacutetica sem apelar a uma memoacuteria do passado Nem mesmo os compromissos
futuros de natildeo repeticcedilatildeo e de produccedilatildeo de uma cultura social institucional e juriacutedica mais
democraacutetica seriam possiacuteveis sem compreender a consistecircncia intoleraacutevel do que se nos
tornou defeso repetir
Poreacutem nesse momento afirmaacute-lo eacute apenas a tentaccedilatildeo de uma intuiccedilatildeo vaga e
confusa Resta investigar se no horizonte de sentido da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
surge ou natildeo uma explicaccedilatildeo sobre o potencial transformativo atribuiacutedo agrave memoacuteria ou se
pelo contraacuterio cairemos uma vez mais no espaccedilo lacunar e negativo no qual tais
doutrinas como vimos capturaram a ideia de memoacuteria
Partindo de dois pressupostos jaacute demonstrados ndash o reconhecimento contiacutenuo do
conceito de memoacuteria como elemento-chave para efetuar as transiccedilotildees democraacuteticas por
um lado e a atribuiccedilatildeo constante mas segundo gradaccedilotildees variaacuteveis de clareza de um
potencial transformativo inerente agrave memoacuteria ndash verifiquemos se e de que forma a Teoria da
Justiccedila de Transiccedilatildeo busca explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo ou o que
tomamos por equivalente a atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria de potenciais transformativos Assim
como os dois pressupostos que referimos e demonstramos acima constituem constantes dos
70
discursos dos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo algo semelhante se verifica no plano da
relaccedilatildeo ndash sempre pelo menos subreptiacutecia ndash entre eles
Ao defenderem a importacircncia dos processos de memorializaccedilatildeo como um
importante instrumento no quadro das iniciativas transicionais Barsalou e Baxter (2007 p
02) relacionam memorializaccedilatildeo e transiccedilatildeo a ponto de afirmarem que a incapacidade em
lidar com memoriais ldquo[]can imperil transitional justice efforts and peacebuildingrdquo Sob o
ponto de vista da criaccedilatildeo de memoriais e espaccedilos da memoacuteria as autoras atribuem agrave
memoacuteria natildeo apenas uma dimensatildeo constitutiva central das iniciativas transicionais mas
denotam ainda a relaccedilatildeo entre memoacuteria e esforccedilos pela construccedilatildeo da paz
Louis Bickford reafirma os processos de memoralizaccedilatildeo puacuteblica como um elemento
central para a efetuaccedilatildeo das demais dimensotildees inerentes agrave Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo apenas
a memoacuteria constitui o terreno primaacuterio a fim de lidar com um passado traumaacutetico como a
memoacuteria aparece claramente dotada em circunstacircncias concretas ndash como a das Comissotildees
de Verdade ndash de um reconhecido potencial transformativo29
De alguma maneira ndash a cujo
detalhamento Bickford todavia natildeo desce os memoriais puacuteblicos teriam a capacidade
praacutetica de construir ldquobroader cultures of democracy over the long term by generating
conversations among differing communities or engaging new generations in the lessons of
the pastrdquo (BICKFORD et all 2007 p 02) bem como a memorializaccedilatildeo exerceria um
papel central na formaccedilatildeo da formaccedilatildeo da vida ciacutevica e poliacutetica30
Todavia haacute autores a exemplo de A J McAdams que consideram a memoacuteria
essencial agrave transiccedilatildeo mas do ponto de vista de sua negatividade Eacute certo que ldquo[]one
should be always circumspect about arguments that too readily dismiss calls for justice and
accountability by appealing to an all-encompassing lsquopolitical realismrsquordquo (McADAMS
1997 p xiv) poreacutem admite que em certas circunstacircncias se for necessaacuterio agrave construccedilatildeo
da reconciliaccedilatildeo nacional seria responsaacutevel silenciar sobre um legado de abusos de
direitos humanos ldquo[]that is to forget and if possible to forgive the past offenses in the
interest of national reconciliationrdquo (McADAMS 1997 p xiv) Com efeito se nos dermos
conta como quisera Paul Ricœur (2000 p 574-575) de que ldquo[]les notations sur lrsquooubli
29
ldquoIn vastly different contexts communities see public memorialization as central to justice reconciliation
truth-telling reparation and coming to grips with the past []Thus they have become a primary terrain on
which diverse constituencies address the enormous and challenging complexities of a traumatic past
Recognizing the power and potential of memorialization NGOs victimsrsquo groups and truth commissions
from Peru to Sierra Leone have advocated for memorialization as a key component of reform and transitional
justicerdquo (BICKFORD et all 2007 p 01) Disponiacutevel em lt httpictjorgsitesdefaultfilesICTJ-Global-
Memorialization-Democracy-2007-English_0pdfgt Acesso em 20 mai 2013 30
ldquo[] for better or worse memorialization plays a central role in the direction and shape of civic life and
politicsrdquo (BICKFORD et all 2007 p 04)
71
constituent en grande partie un simple envers de celles portant sur la meacutemoire rdquo veremos
que a memoacuteria ndash desta feita elidida e anulada ndash constitui ainda que a partir de sua
negatividade um aspecto essencial agrave factibilidade das transiccedilotildees Prova disso eacute que no
mesmo livro organizado por McAdams Juan Meacutendez critica duramente as poliacuteticas de
esquecimento e perdatildeo irrestritos como ldquoalternativas tentadorasrdquo para viabilizar
reconciliaccedilotildees na medida em que considera a busca por justiccedila retrospectiva ldquoan urgent
task of democratizationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 01)31
Desse modo ainda que de um ponto
de vista negativo a memoacuteria aparece sempre ligada a certa capacidade transformativa que
no texto de McAdams assume a faceta reduzida da realpolitik reconciliadora
De seu turno Juan Meacutendez erige como tarefa fundamental das transiccedilotildees poliacuteticas o
acerto de contas com o passado mesmo porque a accountability decorreria da proacutepria
natureza da transiccedilatildeo32
mas tambeacutem da democracia ldquoThe publicrsquos right to know is a
fundamental tenet of democracy and it should not be sacrificed to the supposedly higher
interest of reconciliationrdquo (MENDEacuteZ 1997 p 08)
Em sentido anaacutelogo Posner e Vemeule (2003 p 05) definem as praacuteticas
transicionais intimamente ligadas agrave memoacuteria Segundo eles esta seria a definiccedilatildeo mais
corrente de Justiccedila de Transiccedilatildeo ldquoIn the literature writers generally understand transitional
justice as backward lookingrdquo Ela implicaria uma seacuterie de praacuteticas compensatoacuterias das
viacutetimas de responsabilizaccedilatildeo por violaccedilotildees de direitos humanos e de revelaccedilatildeo da verdade
sobre o passado No entanto seu pequeno artigo testemunha ao mesmo tempo a relaccedilatildeo
da justiccedila de transiccedilatildeo e de suas praacuteticas compreensivas agrave luz desse passado tambeacutem em
ldquoforward looking termsrdquo Entreter-se com um passado de violaccedilotildees tornaria possiacutevel
recuperar tradiccedilotildees e instituiccedilotildees perdidas promover purgas de agentes responsaacuteveis
realizar reformas sinalizar compromissos com uma ordem poliacutetico-juriacutedica mais
democraacutetica e estabelecer precedentes constitucionais capazes de impedir que liacutederes
futuros repitam os abusos do regime anterior
Tambeacutem Ruti Teitel considera o conhecimento do passado como algo essencial agrave
transiccedilatildeo ndash e natildeo apenas de um ponto de vista pragmaacutetico e instrumental como Posner e
31
ldquo[] the pursuit of retrospective justice is an urgent task of democratization as it highlights the
fundamental character of the new order to be established an order based on the rule of law and on respect for
the dignity and worth of each human person [] In this context the temptation is great to equate
reconciliation with a forgive-and-forget policyrdquo (MEacuteNDEZ 1997 p 01) 32
ldquoThe primary task is to recognize that there is a past to be reckoned with The nature of the transition to
democracy itself means that there is unfinished business with respect to how we put distance between the
challenges of the present and the traumas of the recent past (MEacuteNDEZ 1997 p 03) e completa ldquo[] by
definition any transitional situation will include limits on what can be done about the past []rdquo (MEacuteNDEZ
1997 p 04)
72
Vermeule Teitel (2000 p 69) reconhece que comumente entre os analistas poliacuteticos
contemporacircneos assimilar um passado de violaccedilotildees eacute considerado necessaacuterio para
restaurar o coletivo em periacuteodos de radical cacircmbio poliacutetico33
Desse ponto de vista em
relaccedilatildeo ao qual Teitel (2000 p 116) exprimiraacute discordacircncia o passado desempenharia
uma funccedilatildeo poliacutetica fundacional da nova ordem Ao mesmo tempo sua posiccedilatildeo empresta
ao conhecimento sobre a verdade passada um papel crucial na promoccedilatildeo da transiccedilatildeo
poliacutetica na direccedilatildeo da democracia Tanto que Teitel (2000 p 110) afirma ldquoA societyrsquos
confrontation with its past is deemed necessary to its transition to democracyrdquo e ainda o
reitera claramente em outra oportunidade atribuindo agrave memoacuteria social um potencial
poliacutetico transformativo sui generis ldquoSocietal self-knowledge is not an end in itself but
rather the predicate for the potential of prospective change in human behavior and
consequent liberalizing transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115)
Ao tratar da Justiccedila Histoacuterica poreacutem torna-se ainda mais visiacutevel a questatildeo lacunar
que nos competia demonstrar Se por um lado Teitel expressa sua discordacircncia em relaccedilatildeo
agraves anaacutelises poliacuteticas correntes ndash segundo as quais as pesquisas histoacutericas do passado teriam
natureza fundacional ndash por outro lado reitera que tais pesquisas desempenham funccedilatildeo
transicional ldquo[] the role of historical inquiry is not foundational but transitional History
is ever present in the life of the state but in political flux it helps to construct
transformationrdquo (TEITEL 2000 p 115) De algum modo obscuro e preacute-simboacutelico admite-
se que ldquothe transitional narratives advance construction of the contemporary political
orderrdquo (TEITEL 2000 p 116) sem no entanto jamais lanccedilar luzes sobre o que torna
possiacutevel fazer com que o passado efetivamente passe e de uma vez por todas
Uma possiacutevel resposta a essa questatildeo que surge na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
com tonalidades vagas poderia residir nos usos pragmaacuteticos da memoacuteria capazes de
conectar como quisera Teitel (2000 p 90) a justiccedila histoacuterica a outras dimensotildees da
Justiccedila de Transiccedilatildeo como as reparaccedilotildees reformas institucionais ou alteraccedilatildeo da cultura
autoritaacuteria preacutevia Ainda assim por mais que a memoacuteria seja constantemente invocada
como fiadora de um futuro democraacutetico como esteio criacutetico das violaccedilotildees dos regimes
poliacuteticos anteriores ao acercar-se da memoacuteria como um elemento meramente instrumental
a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo revela apenas uma inexplicaacutevel autoposiccedilatildeo analiacutetica tudo
se passa como se a memoacuteria retirasse sua forccedila e justificativa da transiccedilatildeo e esta por sua
vez as retirasse da memoacuteria Em outras palavras os pragmatismos da memoacuteria limitam-se
33
ldquoThe claim is that establishing the ldquotruthrdquo about the statersquos past wrongs like successor constitutions or
trials can serve to lay the foundation of the new political order []rdquo (TEITEL 2000 p 69)
73
a revelar como as instituiccedilotildees tornam a memoacuteria uma mateacuteria da accedilatildeo transicional mas
natildeo logram explicar os mecanismos que levam a passar da memoacuteria agrave accedilatildeo poliacutetica
transicional ndash quando a questatildeo mais fundamental sobre seu potencial transformativo eacute
esta e natildeo a do rapport pragmaacutetico e instrumental que decorre da primeira
Desse modo ao requalificar a verdade do passado como ldquoworkable past for a
changed futurerdquo Teitel (2000 p 91) apreende a memoacuteria exclusivamente como mateacuteria da
accedilatildeo poliacutetica subtraindo-lhe momentaneamente o potencial transformador interno que ateacute
agora lhe era atribuiacutedo Dando-se conta disso a certa altura Teitel (2000 p 111)
pergunta-se ldquoIs it the truth that brings on liberalizing political change or the political
change that enables restoration of democratic government and the truth-tellingrdquo
concluindo de uma perspectiva empiacuterica que ldquoFor the move out of dictatorship did not
await the truth indeed the movement to free elections and a more democratic political
system generally precedes processes of truth productionrdquo
Contudo Teitel (2000 p 111) reconhece na mesma passagem e ainda uma vez a
importacircncia da memoacuteria como sede de um potencial transformativo ldquorevealing the
possibility of future choice is what distinguishes the liberal transition In the transitional
accounts lie the kernels of a liberal future foretoldrdquo Teitel observa que mesmo as
narrativas institucionais frutos da atuaccedilatildeo de agentes responsaacuteveis por alguma das diversas
formas de efetuaccedilatildeo da justiccedila histoacuterica apresentam geralmente um caraacuteter progressivo e
romacircntico Natildeo raro enunciam o conhecimento do passado como um ldquomagical switchrdquo no
sentido de um futuro democraacutetico redimido pela reemergecircncia de uma memoacuteria oculta e
reprimida
In the stories told in the reports it is the revealed truth that helps bring on the switch from
the tragic past to the promise of a hopeful future How does this occur The story told is of
a catastrophe which is somehow turned around An awful fate is averted as in dramatic
narrative by the introduction of a magical switch Transitional justice operates as such a
device through the introduction of persons with special access to privileged knowledge
such as judges in trials commissioners experts and witnesses Mechanisms of liberation
and correction enable the shift in the societal story to move away from catastrophe to
redemptive future The move to a more liberal society is enabled by a reckoning with the
past transitional narratives are generally progressive and romantic (TEITEL 2000 p
111)
A questatildeo que Teitel se propotildee nesse excerto ldquoHow does it occurrdquo natildeo atinge o
fundo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo pois se pergunta sobre as passagens entre o
passado traacutegico e a esperanccedilosa promessa de um futuro redentor sob o ponto de vista dos
usos pragmaacuteticos da memoacuteria compreendida como verdade uacutetil sobre o passado e
74
mobilizada em torno de objetivos poliacuteticos predefinidos Apenas nesse sentido e no plano
estritamente simboacutelico dos relatoacuterios ndash objetos de sua reflexatildeo nesse ponto ndash eacute que se pode
atribuir agrave justiccedila de transiccedilatildeo o funcionamento como o ldquomagical switchrdquo que as narrativas
demasiado romacircnticas e progressivas introduzem Poreacutem como natildeo seria paradoxal
afirmar a um soacute tempo34
que ldquoa transiccedilatildeo natildeo espera pela verdaderdquo e que ldquomover-se em
direccedilatildeo a uma sociedade mais liberalrdquo isto eacute efetuar a transiccedilatildeo ldquotorna-se possiacutevel por um
acerto de contas com o passadordquo
Que do ponto de vista praacutetico os mecanismos transicionais confundam-se com o
ldquomagical switchrdquo que permite evitar um futuro de horror e repeticcedilatildeo nada esclarece nem
sobre como a transiccedilatildeo pode avanccedilar sem conhecimento declarado do passado tampouco
sobre como a memoacuteria pode ser um locus de potenciais transformativos Uma vez mais
conveacutem observar que Teitel trabalha com um conceito pragmaacutetico e simboacutelico de
memoacuteria compreendida como verdade uacutetil agrave justiccedila histoacuterica e agraves operaccedilotildees praacuteticas dos
mecanismos transicionais Poreacutem Teitel ou qualquer outro autor da Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo jamais se coloca a questatildeo simples sobre o fundamento do potencial
transformador da memoacuteria ou se nos atrelarmos por um instante agrave primeira afirmaccedilatildeo de
Teitel ndash segundo a qual geralmente a transiccedilatildeo natildeo espera pela verdade do passado ndash
jamais encontraremos a questatildeo simples mas crucial sobre as causas profundas que
conduzem a essa transiccedilatildeo que natildeo espera pelo advento da verdade nem se elas
comportariam alguma relaccedilatildeo com a memoacuteria em outro registro que natildeo o pragmaacutetico ou o
simboacutelico Ainda que se possa interpretar as transiccedilotildees como processos poliacuteticos de longa
duraccedilatildeo de tal forma que a transiccedilatildeo poliacutetica ocorra previamente ao acerto de contas com o
passado ainda resta em aberto a questatildeo sobre as causas geneacuteticas dos eventos
transicionais e qual sua potencial relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash relaccedilatildeo sempre pressuposta
uma vez que no limite os processos de memorializaccedilatildeo integraratildeo os proacuteprios objetivos
transicionais
Em outro campo analiacutetico teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo tampouco conseguiratildeo
explicar essa questatildeo lacunar a partir da relaccedilatildeo entre memoacuteria e afetos ou emoccedilotildees Natildeo
por outra razatildeo a partir do conceito de memoacuteria traumaacutetica Magdalena Zolkos tambeacutem
enfatiza a relaccedilatildeo entre as memoacuterias do trauma e seu potencial poliacutetico transformativo35
na
34
E conveacutem observar que Teitel (2000 p 111) o faz ao longo da mesma passagem textual 35
ldquoThe concept of traumatic memory suggests that witness testimonies are not simply incorporated within the
transitional reconciliatory machine but are pottentially transformative (and sometimes subversive) of it
75
medida em que ldquoaddressing historical injustice and suffering are the very heart of many
transitional justice projectsrdquo (ZOLKOS 2012 p 19) Todavia o viacutenculo entre memoacuteria
afetos e transiccedilatildeo eacute exprimido e sempre jaacute elidido Tanto que Zolkos (2012 p 19)
qualifica como ldquoaporeacuteticordquo o desejo de fazer justiccedila ao passado reputando-o como o
horizonte-limite do sentido do poliacutetico nas transiccedilotildees36
Tambeacutem recentemente Elizabeth Phelps (2012 p 07) natildeo apenas defendeu um
conceito dinacircmico de memoacuteria lastreado nas pesquisas neurocientiacuteficas que atestaram a sua
maleabilidade como funccedilatildeo de seu caraacuteter adaptativo ao longo da evoluccedilatildeo mas
preocupou-se com o impacto dos afetos na memoacuteria do ponto de vista da praacutetica judiciaacuteria
Aliaacutes eacute em funccedilatildeo da utilidade das memoacuterias na experiecircncia dos tribunais que Phelps
pudera contestar o caraacuteter fixista habitualmente atribuiacutedo agrave memoacuteria na Ciecircncia do Direito
Sua pesquisa parte do pressuposto de que os eventos que se tornam importantes para o
sistema judiciaacuterio satildeo em geral traumaacuteticos envolvendo situaccedilotildees profundamente
emocionais (PHELPS 2012 p 07) Nesse contexto vigem dois sensos comuns teoacutericos
que Phelps desafia o primeiro consiste em reputar que as memoacuterias satildeo dados assimilados
e fixos o segundo consiste em acreditar que as memoacuterias aparentemente mais viacutevidas e
detalhadas ndash geralmente emocionalmente mais intensas ndash satildeo mais precisas que as
demais37
Poreacutem com base em experiecircncias que envolveram a memoacuteria do 11 de setembro
de 2001 bem como em memoacuterias comuns e menos expressivas concluiu-se que perdemos
os detalhes tanto das memoacuterias cotidianas como das relacionadas a eventos
extraordinaacuterios as uacuteltimas nos parecem mais viacutevidas porque satildeo mais importantes
subjetivamente natildeo porque sejam mais detalhadas plenas ou confiaacuteveis Eis porque
quando se trata de memoacuterias sobre eventos puacuteblicos e traumaacuteticos percebe-se um impacto
da afetividade sobre elas
Com efeito a conclusatildeo de Phelps possui um interesse praacutetico quando nos
defrontamos com a questatildeo da acuraacutecia das memoacuterias narradas perante comissotildees ou
tribunais que servem de mateacuteria para a accedilatildeo poliacutetica e institucional nos periacuteodo de fluxo
poliacutetico Nesse sentido e como aliaacutes jaacute se pode verificar outrora de sua pesquisa resulta
uma conclusatildeo indiciaacuteria de que a memoacuteria poderia ser pensada mais em funccedilatildeo de
insofar as they orient political institutions to questions of discontinuous memory irreparable harm and
irreversible temporalityrdquo (ZOLKOS 2012 p 01) 36
ldquoThe aporetic desire to lsquodo justice for the pastrsquo marks the limits of the political in transitional justice []rdquo
(ZOLKOS 2012 p 19) 37
ldquoThe substantial literature on flashbulb memories indicates that memories for some details of shocking and
consequential events may not be as accurate as we think they arerdquo (PHELPS 2012 p 09)
76
coordenadas dinacircmicas que de elementos de fixidez38
No entanto Phelps natildeo chega a
elaborar um conceito autocircnomo e dinacircmico de memoacuteria
Entre os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Jon Elster foi um dos mais importantes a
dedicar um estudo ao problema das emoccedilotildees e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria e a transiccedilatildeo
Contudo encontraremos mais uma vez uma definiccedilatildeo lacunar limitada por imperativos
pragmaacuteticos Apoacutes definir a transiccedilatildeo em relaccedilatildeo a um acerto de contas com o passado39
um dos primeiros gestos teoacutericos de Memory and Transitional Justice consiste em
apresentar o sentido em que se pode apreender a memoacuteria como ldquocarregada de emoccedilotildeesrdquo e
natildeo como um conhecimento abstrato do passado ldquo[memory] differs from mere abstract
knowledge of a past event in that to remember an event one must have been present when
and close to where it took placerdquo (ELSTER 2003 p 04)40
Do ponto de vista da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo encontramos nessa definiccedilatildeo
algo semelhante ao que resulta das pesquisas de Phelps natildeo uma memoacuteria dinamizada
pelas emoccedilotildees mas uma reelaboraccedilatildeo do conceito de memoacuteria a partir do referencial
individual e consciente Elster se recusa metodologicamente a apelar a conceitos como o
de ldquomemoacuteria coletivardquo41
Todavia Elster toca o epicentro do problema que move a
presente pesquisa ndash a gecircnese da transiccedilatildeo e sua relaccedilatildeo com a memoacuteria ndash mas de modo
restrito agraves memoacuterias psicoloacutegicas individuais
I have focused on memory as an explanatory factor in transitional justice To serve as an
explanans the concept must be reasonably clear I have used it consistently in the sense of
conscious individual-level recollections of earlier events that the individual either directly
witnessed as an observer or learned about when they happened and close to where they
happened (ELSTER 2003 p 11)
Segundo Elster seria muito difiacutecil construir uma relaccedilatildeo entre memoacuteria e emoccedilatildeo
sem apelar agrave experiecircncia pessoal do indiviacuteduo como correlato necessaacuterio dessa relaccedilatildeo42
A
tese de Elster eacute a de que os processos transicionais satildeo moldados em profundidade pelas
emoccedilotildees dos indiviacuteduos envolvidos tais processos emergem na medida em que as
38
ldquoIf the purpose of memory is to incorporate lessons learned from past experience to promote adaptative
responding in the future then the flexible and dynamic nature of memory makes senserdquo (PHELPS 2012 p
20-21) 39
ldquoTransitional justice is the legal and administrative process carried out after a political transition for the
purpose of addressing the wrongdoings of the previous regimerdquo (ELSTER 2003 p 01) 40
Por essa razatildeo Elster (2003 p 04) escreveraacute ldquoIt seems plausible that abstract knowledge of a past event is
even less motivating than a faded memoryrdquo 41
ldquoIt is tempting to appeal to ideas such as lsquothe construction of collective memoryrsquo but it is a temptation I
believe we should resist Once we leave the terra firma of conscious individual memory the scope for
arbitrary and artificial constructions is endlessrdquo (ELSTER 2003 p 08-09) 42
ldquoMy main reason for focusing on the personal experience of the individual is the link between memory and
emotionrdquo (ELSTER 2003 p 11)
77
memoacuterias satildeo viacutevidas presentes e carregadas de emoccedilatildeo e desaparecem na medida em que
esmaecem43
podendo permanecer inibidas por longas duraccedilotildees sem que por isso deixem
de ser eficazes44
Com efeito sua recusa a propoacutesito de uma concepccedilatildeo mais abrangente de
memoacuteria deriva de uma opccedilatildeo metodoloacutegica ldquoA broader notion of memory makes it more
difficult to link memory with emotion or at least with lsquopersonal emotionsrsquordquo (ELSTER
2003 p 12)
A opccedilatildeo metodoloacutegica de Elster ainda que legiacutetima tem por efeito transformar o
conceito de memoacuteria em um quadro de inteligibilidade ao mesmo tempo desloca a
questatildeo da gecircnese das transiccedilotildees da memoacuteria para sua relaccedilatildeo com as emoccedilotildees mas sem
analisar sua dinacircmica de maneira direta e especiacutefica
Assim como Elizabeth Phelps estabelece o caraacuteter dinacircmico da memoacuteria mas natildeo
restabelece os direitos desse dinamismo formulando um novo conceito Jon Elster indica
uma saiacuteda para explicar a relaccedilatildeo geneacutetica constantemente intuiacuteda ndash mas sempre lacunar ndash
entre memoacuteria e transiccedilatildeo mas natildeo a aprofunda No ainda hoje inexplorado ponto de
convergecircncia entre um possiacutevel conceito dinacircmico de memoacuteria por um lado e sua relaccedilatildeo
com as emoccedilotildees e afetos por outro eacute que se poderaacute analisar o problema da gecircnese das
transiccedilotildees e sua relaccedilatildeo necessaacuteria com a memoacuteria
Uma vez demonstrados os modos segundo os quais o conceito de memoacuteria eacute
apreendido pelos teoacutericos da Justiccedila e Transiccedilatildeo e antes de passar ao epicentro da
argumentaccedilatildeo conveacutem enunciar os elementos que constituem o centro do argumento
problemaacutetico da presente pesquisa Em linhas gerais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
construiu internamente conceitos tendentes agrave estabilidade compreendidos como processos
culturais balizados por objetivos poliacuteticos e pragmaacuteticos lastreados na experiecircncia
empiacuterica das transiccedilotildees poliacuteticas
Sua ēpistēme compreensiva aberta agrave colaboraccedilatildeo de outras ciecircncias conduziu a um
conceito de memoacuteria heterogecircneo e abrangente compreendendo desde determinaccedilotildees de
uma memoacuteria-lembranccedila ndash individual psicoloacutegica e carregada de emoccedilotildees ndash como a
memoacuteria de Jon Elster passando por um conceito estaacutevel e representativo de memoacuteria
43
ldquoI believe that processes of transitional justice are deeply shaped by the emotions of the individuals
involved be they wrongdoers beneficiaries of wrongdoings victims resisters accusers or neutrals These
emotions arise in direct confrontation among the individuals concerned and tend to fade as the memories
faderdquo (ELSTER 2003 p 11) 44
ldquo[]we have also seen several cases in which memories of injustice prove to be remarkably durable Life
in exile and strong social norms may sustain memories or emotions that would otherwise have been subject
to spontaneous decayrdquo (ELSTER 2003 p 11)
78
coletiva como a de Ruti Teitel chegando a uma memoacuteria apreendida do ponto de vista
pragmaacutetico de suas relaccedilotildees para a efetuaccedilatildeo dos mecanismos transicionais Recentemente
poreacutem ndash sem que no atual estado das pesquisas se tenha constituiacutedo um conceito
autocircnomo ndash o aporte experimental das neurociecircncias permitiu que alguns autores
revelassem a natureza dinacircmica e a maleabilidade constitutivas das memoacuterias ndash aiacute incluiacutedas
as memoacuterias traumaacuteticas ndash mas de um ponto de vista limitado agraves memoacuterias uacuteteis ao campo
das praacuteticas judiciaacuterias concretas Por outro lado ao trabalharmos com o referencial das
ciecircncias histoacutericas pudemos verificar a utilizaccedilatildeo da ideia de memoacuteria na Justiccedila de
Transiccedilatildeo em um sentido estritamente representificador de um objeto ausente baseado em
uma ontologia negativa Isto eacute a memoacuteria a partir de sua dimensatildeo simboacutelica representa
ou torna uma vez mais presente algo da ordem do natildeo-ser assim define-se
paradoxalmente a relaccedilatildeo do passado que ldquofoi e natildeo eacute maisrdquo com as exigecircncias eacuteticas de
natildeo repeticcedilatildeo pertencentes a um futuro sem espessura e sem realidade pois concebido
como o que natildeo eacute ainda Eis o que definiria os marcos da temporalidade na Teoria da
Justiccedila de Transiccedilatildeo uma temporalidade da representaccedilatildeo do natildeo-ser unidimensional que
confunde ndash como quisera Deleuze (1966 p 49) em Le Bergsonisme ndash ser e ser presente e
anula tanto a realidade do devir quanto do ser do passado
Assim quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo concebe um conceito de memoacuteria
emancipado das lembranccedilas individuais ndash memoacuteria coletiva ndash esbarra por um lado na
reduccedilatildeo da memoacuteria agrave memoacuteria de grupo e por outro em um conceito de memoacuteria
definido por sua estabilidade consciecircncia e declaratividade forjadas no seio das produccedilotildees
simboacutelicas e narrativas sociais e institucionais que lhe servem de suportes Recentemente
quando a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo tangencia o caraacuteter dinacircmico de memoacuteria ndash
defina-se ele a partir das memoacuterias traumaacuteticas carregadas de emoccedilotildees e afetos ou da
compreensatildeo empiacuterica das funccedilotildees evolutivas e adaptativas da memoacuteria ndash esbarra-se no
suporte psicoloacutegico individual do qual a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo acreditara ter se
emancipado
Se o conceito de memoacuteria eacute heterogecircneo de modo mais ou menos expliacutecito poreacutem
todos os teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo admitem que a memoacuteria constitui um elemento-
chave para a efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees Com efeito isso pode ser deduzido tanto entre os
que erigem a memoacuteria agrave condiccedilatildeo messiacircnica de redentora do passado quanto os que
pressupotildeem que os mecanismos transicionais praacuteticos encontrem-se apoiados sobre certa
dimensatildeo da verdade e de sua relaccedilatildeo iacutentima com o passado Tambeacutem os autores que
compreendem a memoacuteria como um motor geneacutetico das transiccedilotildees ou aqueles que a
79
consideram um oacutebice potencial agrave reconciliaccedilatildeo e reconstruccedilatildeo coletivas terminam por
afirmar diretamente ou natildeo a memoacuteria como elemento-chave das transiccedilotildees ndash nem que
pela via dos imperativos de sua inibiccedilatildeo e proscriccedilatildeo puacuteblicas
Todavia nenhuma dessas apreensotildees que caracterizam a memoacuteria como o direito
que abre ldquoa brecha da qual nasceraacute a accedilatildeo poliacuteticardquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 55)
enfatizando um potencial transformador intriacutenseco da memoacuteria conseguira explicar
adequadamente a origem e a dinacircmica desse potencial transformativo que redundaria na
efetuaccedilatildeo das transiccedilotildees A questatildeo da gecircnese e da dinacircmica das transiccedilotildees e de sua
relaccedilatildeo com a memoacuteria eacute senatildeo relegada a outros campos de interrogaccedilatildeo epistemoloacutegica
simplesmente elidida
Teitel natildeo deixa de observar que a construccedilatildeo da memoacuteria ndash ora interpretada em
sentido representativo simboacutelico e social ndash ainda desempenha um papel central na criacutetica
ao regime predecessor e na reconstruccedilatildeo democraacutetica de culturas ateacute entatildeo submetidas a
referenciais autoritaacuterios Dessa forma a memoacuteria jamais deixa de ser uma etapa
constitutiva da Justiccedila de Transiccedilatildeo Tanto que mesmo autores como Paulo Abratildeo e Tarso
Genro (2012 p 56) chegam a erigir o direito agrave memoacuteria a ldquocondiccedilatildeo imprescindiacutevel agrave
manutenccedilatildeo do tecido social caso contraacuterio a sociedade repetiraacute obsessivamente o uso
arbitraacuterio da violecircncia []rdquo ou ainda colocam os mecanismos da Justiccedila de Transiccedilatildeo a
serviccedilo da consolidaccedilatildeo da memoacuteria ldquoPara o atingimento desses objetivos de promoccedilatildeo da
memoacuteria um instrumento privilegiado [] satildeo as poliacuteticas denominadas de Justiccedila de
Transiccedilatildeordquo (ABRAtildeO GENRO 2012 p 57)
Seja como for em qualquer acircmbito sempre se atribui um potencial transformativo
agrave memoacuteria embora ele possa manifestar-se como vimos em registros heterogecircneos ndash o
que decorre da proacutepria pluralidade segundo a qual o conceito de memoacuteria eacute apreendido
pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Esses registros variam em funccedilatildeo da dimensatildeo
conceitual da memoacuteria com a qual se trabalha Agrave memoacuteria poliacutetica correspondem
potenciais transformativos do proacuteprio regime poliacutetico-institucional agrave memoacuteria social e
coletiva atribuem-se potenciais transformadores dos substratos culturais e sociais
autoritaacuterios preacutevios agrave memoacuteria individual e agraves narrativas das testemunhas e sobreviventes
o potencial pragmaacutetico de sustentar por meio da memoacuteria a operaccedilatildeo dos mecanismos
transicionais mais comuns como reformas purgas reparaccedilotildees responsabilizaccedilotildees penais
construccedilatildeo de memoriais etc
Observou-se que toda a literatura da Justiccedila de Transiccedilatildeo reputa inexcediacutevel o nexo
entre memoacuteria ndash ora compreendida na totalidade das camadas antes descritas abrangendo a
80
verdade o direito de conhecer o passado etc ndash e a produccedilatildeo real de uma mudanccedila na
dinacircmica das instituiccedilotildees e nas formas de vida em sociedade mediadas pelo direito Poreacutem
esse nexo jamais eacute exposto Ele padeceria ateacute mesmo de um vaacutecuo conceitual que
abrangeria a definiccedilatildeo conceitual de memoacuteria (BARSALOU e BAXTER 2007 p 02)
Reconhece-se que em geral certa relaccedilatildeo de corpos sociais em transiccedilatildeo com a
memoacuteria da violaccedilatildeo preteacuterita de direitos e prerrogativas democraacuteticas e de cidadania seria
necessaacuteria ndash no limite do ponto de vista educativo e cultural ndash agrave garantia da natildeo repeticcedilatildeo
Eis o que faz a memoacuteria sob o ponto de vista do Direito Internacional dos Direitos
Humanos ser comumente transcrita ora como um direito cultural como um direito que
promove uma cultura democraacutetica de remoccedilatildeo de formas de viver pensar sentir e
experimentar o real gestadas por culturas autoritaacuterias ou violentas Se por um lado haacute
quem diga que a memoacuteria espaccedilos e lugares de memoacuteria museus e memoriais natildeo satildeo
suficientes para promover um cultural shift todavia satildeo condiccedilotildees necessaacuterias a ele Natildeo
raro os processos de memorializaccedilatildeo satildeo descritos como catalisadores do engajamento
ciacutevico (BICKFORD et all 2007 p 07)
Todavia como a memoacuteria pode engendrar esse potencial transformativo ou
transicional eacute o que jamais eacute explicado Ao apontaacute-lo natildeo se trata de recusar realidade a
nenhum desses registros mas de oferecer uma visatildeo integradora dessas camadas de
memoacuteria tanto entre si como entre elas e seus potenciais de accedilatildeo segundo muacuteltiplos
registros de inscriccedilatildeo Se contudo deixarmos sem resposta a questatildeo ldquocomo a memoacuteria
pode ser admitida como causa geneacutetica de transiccedilotildeesrdquo ndash o que equivale a perguntar ldquoem
que consiste esse potencial transicional geralmente atribuiacutedo agrave memoacuteriardquo ndash torna-se
impossiacutevel aperfeiccediloar uma visatildeo integrativa do problema proposto
Uma via capaz de fazecirc-lo deriva da proacutepria Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e dos
limites conceituais que descrevemos Trata-se de recuperar os pontos que a Teoria da
Justiccedila de Transiccedilatildeo intui mas deixa permanecerem intocados por um lado uma
concepccedilatildeo dinacircmica da memoacuteria ndash que no presente momento consideramos ser natildeo mais
que uma intuiccedilatildeo preacute-conceitual na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo por outro lado um
conceito de memoacuteria emancipado de seus registros habituais Esse uacuteltimo aspecto implica
recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a alguns de seus registros mais largamente
utilizados pelos teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo Isso natildeo significa negar a realidade da
memoacuteria a qualquer desses registros mas recusar as operaccedilotildees de reduccedilatildeo do conceito a
determinados registros Com efeito natildeo se nega que a memoacuteria comporte vaacuterias camadas
81
eacute precisamente isso que revela ser inadequado reduzi-la a apenas uma ou algumas delas
Natildeo bastasse a lacuna identificada a respeito dos potenciais transformativos
comumente atribuiacutedos agrave memoacuteria na literatura transicional tambeacutem a natureza plural que a
ideia de memoacuteria comporta justifica um esforccedilo de reconceptualizaccedilatildeo da memoacuteria a fim
de integrar em uma visada uacutenica esses muacuteltiplos registros
Para tanto Henri Bergson torna-se um aliado conceitual imprescindiacutevel Natildeo
apenas por trabalhar com uma concepccedilatildeo ontoloacutegica e compreensiva de memoacuteria ndash na
contramatildeo das operaccedilotildees de reduccedilatildeo da memoacuteria a figuras sem espessura da representaccedilatildeo
e do simboacutelico ndash mas porque a intuiccedilatildeo eacute apresentada em La Penseacutee et le Mouvant como
um meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia capaz de integrar o conhecimento da ciecircncia ao da
metafiacutesica a mateacuteria ao espiacuterito (BERGSON 2001 p 1424216)45
A escolha desse marco
teoacuterico justifica-se sob trecircs pontos de vista que seratildeo demonstrados ao longo dos proacuteximos
capiacutetulos
(1) a intuiccedilatildeo metafiacutesica constitui uma visatildeo potencialmente integradora da
realidade heterogecircnea que encontramos a respeito do conceito de memoacuteria na
Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo Nesse sentido a precisatildeo metoacutedica que ela implica
deve tornar-se objeto de verificaccedilatildeo
2) baseando-se no meacutetodo da intuiccedilatildeo a filosofia bergsoniana permite
introduzir natildeo apenas no conceito de memoacuteria mas tambeacutem no epicentro de suas
relaccedilotildees com a efetuaccedilatildeo da transiccedilatildeo coordenadas temporais e dinacircmicas em
relaccedilatildeo agraves quais a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo ateacute hoje formulou apenas
intuiccedilotildees vagas e preacute-conceituais dirigidas a aplicaccedilotildees pragmaacuteticas sem cuidar da
natureza imanente a esses dinamismos
(3) Na contracorrente de toda operaccedilatildeo de reduccedilatildeo da memoacuteria a uma de
suas manifestaccedilotildees superficiais encontradas nas definiccedilotildees das doutrinas
transicionais (memoacuteria-lembranccedila memoacuteria coletiva memoacuteria-siacutembolo memoacuteria-
representaccedilatildeo ou memoacuteria-consciente) Bergson conceituaraacute a memoacuteria
45
ldquoLa science et la meacutetaphysique se rejoignent donc dans lrsquointuitionrdquo (BERGSON 2001 p 1424216) NB
nas citaccedilotildees das obras de Bergson utilizaremos preferencialmente a Eacutedition du Centenaire compilada por
Andreacute Robinet com introduccedilatildeo de Henri Gouhier publicada originalmente em 1959 e reeditada pela sexta
vez em 2001 Assim as numeraccedilotildees de paacutegina obedecem agrave sequecircncia da Ediccedilatildeo do Centenaacuterio de modo que
a primeira numeraccedilatildeo corresponde agrave da paginaccedilatildeo das Œuvres a segunda precedida do sinal ldquordquo indica a
paginaccedilatildeo das publicaccedilotildees originais que Robinet fez constar no corpo das obras completas de Bergson
Trata-se de uma sistemaacutetica de referecircncia corrente entre os comentadores de Bergson de tal forma que a fim
de facilitar a conferecircncia das citaccedilotildees tambeacutem a adotamos
82
obedecendo a referenciais ontoloacutegicos compreensivos No bergsonismo a memoacuteria
jamais seraacute transcrita a partir da negatividade e do natildeo-ser como se fosse a mera
representaccedilatildeo de um objeto ausente Ao contraacuterio ela seraacute continuamente definida
como uma regiatildeo do ser ou do existente a partir de coordenadas dinacircmicas e
temporais e constituiraacute no limite ndash como demonstraremos oportunamente ndash o
fundamento do proacuteprio tempo (duraccedilatildeo real)
Bergson natildeo cessou de sublinhar a impotecircncia das formas meramente pragmaacuteticas
da inteligecircncia para compreender a realidade profunda da transiccedilatildeo ldquoDe la transition il
[lrsquoentendement] deacutetourne son regardrdquo (BERGSON 2001 p 1256-12575-6) Dados os
referenciais ontoloacutegicos a partir dos quais satildeo colocadas as questotildees do movimento e da
mudanccedila deveratildeo aparecer como problemas coextensivos agrave compreensatildeo das transiccedilotildees
poliacuteticas na medida em que Bergson compreende as formas de vida bioloacutegicas e tambeacutem
poliacuteticas indistintamente como derivados ontoloacutegicos Isso significa que todas as formas
podem variar em funccedilatildeo da duraccedilatildeo de tal modo que as coordenadas duracionais a partir
das quais se poderaacute pensar memoacuteria e transiccedilatildeo apontam para o caraacuteter diferencial
constitutivo do real que como demonstramos apenas tiacutemida e recentemente assaltou os
teoacutericos da Justiccedila de Transiccedilatildeo que rapidamente retornaram agrave terra firma das memoacuterias
individuais psicoloacutegicas e conscientes ou insistiram na fixidez de noccedilotildees representativas e
negativas do conceito
Trata-se pois de tentar amarrar um devir que se insinua no interior das proacuteprias
doutrinas transicionais erigir um conceito de memoacuteria que natildeo admita reduccedilatildeo a
coordenadas individuais sociais ou nacionais ndash evitando do ponto de vista eacutetico-poliacutetico o
que Bergson chamou de ldquotendecircncia ao fechamentordquo ndash ao mesmo tempo em que a memoacuteria
possa com razatildeo apresentar-se em seu caraacuteter dinacircmico segundo coordenadas
duracionais como condiccedilatildeo ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica das transiccedilotildees Recusando
toda operaccedilatildeo redutora da memoacuteria trata-se de superar a partir de uma interlocuccedilatildeo com a
filosofia de Henri Bergson o conceito meramente cognitivo uacutetil ou pragmaacutetico de
memoacuteria sem deixar de integraacute-lo como uma das dimensotildees desse novo conceito de
memoacuteria
Dessa forma objetiva-se contribuir para suprimir a lacuna explicativa encontrada
na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e oferecer uma fundamentaccedilatildeo possiacutevel sobre a funccedilatildeo
transicional da memoacuteria e seu potencial transformativo ndash empiacuterica e vagamente decalcados
pelos teoacutericos das praacuteticas transicionais concretas Nessa medida seraacute possiacutevel
83
reconceptualizar a memoacuteria a partir de um ponto de vista inexplorado pela tradiccedilatildeo das
doutrinas transicionais utilizando os referenciais da ontologia bergsoniana e desentocar
de sua intimidade estranha agrave pragmaacutetica da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo um conceito
integrador das diversas camadas da memoacuteria de tal forma que se possa compreender de
que modo a memoacuteria pode ser obscuramente erigida no corpo dessa vasta e recente teoria
agrave condiccedilatildeo de uma causa profunda das accedilotildees poliacuteticas transicionais
84
SEGUNDA PARTE
O virtual a ideia de memoacuteria na filosofia de Henri Bergson
85
CAPIacuteTULO 4 ndash UM SALTO NO VIRTUAL DO SER PRESENTE AO SER
DO PASSADO
Como apresentar em poucos mas decisivos traccedilos um filoacutesofo ldquoqui eacutevolue et
change dans le tempsrdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 01) cuja filosofia resumida em
apenas quatro obras (GOUHIER In BERGSON 2001 vii) parece ser infinita
Sobretudo como fazecirc-lo sem abandonar as questotildees que elaboradas no corpo dos
capiacutetulos precedentes sugerem os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo que terminam por
mobilizar a integral que percorre o campo especulativo do bergsonismo
Comecemos pelos traccedilos impessoais Henri Bergson nasce em 1859 em Paris no
seio de uma famiacutelia judia Frequenta a escola normal em 1881 e ensina em Clermont-
Ferrand de 1883 a 1888 No ano seguinte com trinta anos de idade sustenta duas teses
sua tese complementar sobre Aristoacuteteles e escreve o Essai sur les donneacutes immediates de
la conscience que lhe renderia vinte e nove anos mais tarde o precircmio Nobel de
Literatura Em 1900 Bergson foi nomeado ao Collegravege de France ocupando a cadeira de
filosofia grega em substituiccedilatildeo a Charles Leacutevecircque
Dentre as sete obras de facto seus quatro livros de jure46
publicados ao longo de
mais de quatro deacutecadas satildeo permeados por uma constante atividade de escritura de que satildeo
testemunha seus escritos cursos e correspondecircncias Todo esse material que vem sendo
intensamente recuperado e tornado puacuteblico nas uacuteltimas deacutecadas natildeo apenas serve para
colmatar determinadas passagens entre suas obras maiores mas datildeo notiacutecia das
articulaccedilotildees entre a radical invenccedilatildeo de conceitos a criacutetica de problemas claacutessicos da
metafiacutesica e sua atuaccedilatildeo como ator poliacutetico e interlocutor privilegiado de seus
contemporacircneos
Esta talvez seja a faceta bergsoniana menos familiar aos leitores brasileiros mas
tambeacutem aos juristas que natildeo raro utilizaram a inspiraccedilatildeo bergsoniana como elementos
46
Os quarto livros de direito de Bergson ndash que ele mesmo considerava ldquosuas obras completasrdquo ndash tanto que
satildeo reunidas por Andreacute Robinet na Eacutedition du Centenaire em comemoraccedilatildeo ao seu nascimento em 1959 ndash
satildeo Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889) Matiegravere et Meacutemoire (1896) LrsquoEacutevolution
Creacuteatrice (1907) e Les Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) outras obras que consistem na
reuniatildeo de escritos e de conferecircncias satildeo publicadas em 1919 (LrsquoEacutenergie Spirituelle) e 1934 (La Penseacutee et le
Mouvant) Ainda seria o caso de registrar a publicaccedilatildeo de Dureacutee et Simultaneiteacute em 1922 livro em que
Bergson controverte em alguns pontos com a Teoria da Relatividade de Einstein e que se encontra
reproduzido em Meacutelanges de 1972 Aleacutem dos diversos cursos outros escritos de Bergson podem ser
encontrados na recente ediccedilatildeo de Eacutecrits Philosophiques apresentada por Freacutedeacuteric Worms e publicada em
2011 como prolongamento das ediccedilotildees criacuteticas de suas obras retomadas pela Presses Universitaires de
France (PUF) a partir de 2008 Registre-se ainda o interessante trabalho de recoleccedilatildeo de ineacuteditos cursos e
aulas levado a efeito pelos sucessivos volumes dos Annales Bergsoniennes publicados a partir de 2002
tambeacutem pela PUF
86
motores de sua Filosofia ou Teoria do Direito No Brasil seria o caso de registrar alguns
exemplares da importante penetraccedilatildeo de Bergson na leitura de fenocircmenos estudados no
acircmbito das Ciecircncias Humanas e Sociais mas tambeacutem no campo da Ciecircncia Juriacutedica No
primeiro caso a tese seminal de Ecleia Bosi (2010) publicada sob o tiacutetulo Memoacuteria e
sociedade lembranccedilas de velhos em que Matiegravere et Meacutemoire eacute resgatada junto aos
escritos de um dos mais ilustres alunos e polecircmicos leitores de Bergson ndash Maurice
Halbwachs Mais recentemente Ecleia ainda publicou O tempo vivo da memoacuteria livro de
ensaios sobre psicologia social em que retoma temas de sua tese relacionados a Bergson e
Halbwachs como a substacircncia social da memoacuteria e a sobrevivecircncia ou a persistecircncia da
memoacuteria (BOSI 2003 p 13-48)
No acircmbito juriacutedico seria impossiacutevel natildeo lembrar as inspiraccedilotildees bergsonianas que
apreendidas desde pontos de vista muito proacuteprios penetram a anaacutelise de importantes
filoacutesofos do direito brasileiros No campo juriacutedico os mais destacados precursores da
filosofia de Bergson no Brasil foram Miguel Reale e Goffredo Telles Juacutenior dois
importantes professores da Faculdade do Largo de Satildeo Francisco Segundo Reale (2010 p
80) Bergson teria sido ldquoum dos maiores filoacutesofos se natildeo o maior filoacutesofo da Franccedila na
primeira metade do Seacuteculo XXrdquo A filosofia bergsoniana eacute intensamente recuperada pela
filosofia do direito de Reale a fim de auxiliar a compreender as distinccedilotildees de meacutetodo na
Filosofia e na Ciecircncia momento em que Bergson eacute lembrado tambeacutem por seu meacutetodo
intuitivo (REALE 2010 p 140) Por sua vez o autor da ceacutelebre Carta as Brasileiros47
escrevera tambeacutem Direito Quacircntico ensaio sobre o fundamento da ordem juriacutedica
(TELLES JUacuteNIOR 2006a) obra claramente inspirada na cosmologia bergsoniana e em
sua metodologia de diaacutelogo permanente e aberto com as ciecircncias naturais Mesmo no
acircmbito de sua Teoria do Direito Goffredo Telles Juacutenior natildeo cessou de evocar algumas
soluccedilotildees bergsonianas pontuais para problemas da histoacuteria da metafiacutesica ocidental que
poderiam servir ao estudo do Direito eacute o caso da ilusatildeo sobre a existecircncia da desordem
(TELLES JUacuteNIOR 2006b p 06-07) por exemplo
Fora do Brasil Alexandre Lefebvre escreveu duas recentes obras de Filosofia do
Direito que se dedicam a apreendecirc-la no interior da obra de Bergson Seu primeiro livro
The Image of the Law Spinoza Bergson Deleuze publicado em 2008 e Human rights as
a way od life on Bergsonrsquos Political Philosophy de 2013 Nesse mais recente texto natildeo
apenas Bergson aparece como a figura central da interrogaccedilatildeo de Lefebvre como sua
47
Em agosto de 1977 Goffredo Telles Juacutenior lecirc sua Carta aos Brasileiros no paacutetio interno da Faculdade de
Direito em que manifestava seu repuacutedio agrave ditadura militar e conclamava agrave defesa da Democracia
87
filosofia poliacutetica permitiria compreender a relaccedilatildeo entre direitos humanos e a ascese
bergsoniana no contexto de sua filosofia poliacutetica48
Segundo Lefebvre Bergson teria
renovado a forma de compreender os direitos humanos ndash natildeo mais como instrumentos para
proteger seres humanos de abusos mas ldquoas a medium for personal transformationrdquo
(LEFEBVRE 2013 Preface)
Toda a novidade que a leitura de Lefebvre sobre Bergson representa poreacutem natildeo
nos aproveita senatildeo na medida em que auxilia no conjunto de outros comentadores a
elucidar alguns conceitos isso porque a perspectiva de sua obra permanece atrelada ao
espectro da filosofia poliacutetica de Bergson mas natildeo indaga sua mais profunda relaccedilatildeo com a
ontologia na qual buscamos avanccedilar De toda maneirao belo e original livro de Lefebvre
vem ao encontro de uma preocupaccedilatildeo que se intensifica cada vez mais entre os
comentadores estrangeiros de Bergson ndash a maior atenccedilatildeo agrave faceta poliacutetica da filosofia
begsoniana as renovadas leituras e articulaccedilotildees de Deux Sources de la Morale et de la
Religion com suas demais obras a preocupaccedilatildeo em atualizar um Bergson ldquopoliacuteticordquo
Exemplares igualmente recentes disso satildeo os textos que compotildeem o quinto volume
dos Annales Bergsoniennes intitulado ldquoBergson et la politiquerdquo cujo prefaacutecio assinado
por Vincent Peillon considera que os novos estudos sobre o Bergson poliacutetico assinalariam
ldquoun profond bouleversement dans les eacutetudes philosophiques en Francerdquo (PEILLON 2012
p09) Haacute pois todo interesse em recuperar mais que um Bergson poliacutetico a ontologia
duracional de que as transiccedilotildees poliacuteticas natildeo satildeo senatildeo atualizaccedilotildees de niacutevel
Para aleacutem de um Bergson filoacutesofo poliacutetico haacute um Bergson poliacutetico que testemunha
sua iacutentima relaccedilatildeo com a proacutepria gecircnese do Direito Internacional dos Direitos Humanos
Durante certo periacuteodo Bergson trabalhou lado a lado com Woodrow Wilson para
estabelecer a Liga das Naccedilotildees e mais tarde fora indicado para a presidecircncia da Comissatildeo
Internacional para Cooperaccedilatildeo Intelectual da Liga (LEFEBVRE 2013 Preface e
SOULEZ WORMS 2002 p 141-170) Ainda Bergson teria sido uma influecircncia confessa
de John Humphrey o principal responsaacutevel pela redaccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Universal dos
Direitos Humanos de 1948 (LEFEBVRE 2013 Preface)
Com efeito toda a escritura de Les Deux Sources transpira a atmosfera de
pressentimento de uma cataacutestrofe que viria a ser a Segunda Guerra Mundial mas ainda
assim eacute um profundo libelo de feacute no aberto Se por um lado Bergson compreendia os
48
ldquoI have interpreted Bergsonrsquos political philosophy in this vein To my mind the great power of Two
Sources lies in its insistence that in the end none of the problems of politics ndash which include huge ones such
as war and fascism as well as everyday ones such as prejudice and exclusion ndash will be resolved without an
attendant transformation in the relationship one has to oneselfrdquo (LEFEBVRE 2013 Preface)
88
direitos humanos como ldquothe best-placed institution to realize the social moral political
and religious ideal that he will call the lsquoopen societyrsquordquo (LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A
dialogue on war) por outro sabia que nos contextos de guerra as sociedades fecham-se
sobre si tentando reconciliar hipocritamente os direitos humanos com a realidade da
guerra Nesses casos ldquowhile war does not eliminate rights due to all human beings nor
show then to be imaginary it does suspend their application for the time being Duties
toward humanity are [] affirmed in principle but temporarily denied in factrdquo
(LEFEBVRE 2013 Chap 1 ndash A dialogue on war) A fim de compreender o que significa
uma sociedade aberta ou como passar do fechado ao aberto ndash problema que como
veremos sendo essencial agrave filosofia poliacutetica de Bergson confunde-se com aquele que se
propotildee toda transiccedilatildeo poliacutetica ndash precisamos antes entrar de alguma maneira e de uma
vez por todas no Bergsonismo Apenas assim e a esse preccedilo poderemos estimar as
colaboraccedilotildees que uma ontologia da memoacuteria poderia conferir agrave integraccedilatildeo dos
heterogecircneos conceitos de memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo bem como para a
iluminaccedilatildeo ontoloacutegica mas tambeacutem praacutetica e poliacutetica da constante atribuiccedilatildeo agrave memoacuteria
de potenciais transicionais
sect 1 BERGSONISMO MUacuteLTIPLAS ENTRADAS
Henri Bergson natildeo cessou de dizer que todos os problemas metafiacutesicos da histoacuteria
da filosofia do Ocidente foram colocados muito mais em funccedilatildeo do espaccedilo do que em
funccedilatildeo do tempo (BERGSON 2001 p 1260-126109-11)49
Essa simples afirmaccedilatildeo eacute
capaz de provocar uma completa subversatildeo de toda a histoacuteria da filosofia ocidental
implicando perguntar de iniacutecio por seu sentido senatildeo por suas consequecircncias imediatas
as quais devem ser pouco a pouco desdobradas e conduzidas aos limites de seu horizonte
conceitual
49
Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 03) filoacutesofo e pianista francecircs de ascendecircncia russa bem o percebe e logo
o transcreve em uma metaacutefora musical ou meloacutedica ldquoUne meacutelodie joueacutee agrave lrsquoenvers en commenccedilant par la
derniegravere note et en remontan drsquoaval en amont ne serait qursquoune innommable cacophonie [] Lrsquoordre
temporel nrsquoest pas un accident de la sonate mais son essence elle-mecircme [] La premiegravere condition exigeacutee
pour comprendre le bergsonisme drsquoHenri Bergson est de ne pas le penser agrave rebousse-temps Le bergsonisme
veut ecirctre penseacute dans le sens mecircme de la futurition crsquoest-agrave-dire agrave lrsquoendroitrdquo Natildeo casualmente Deleuze (1966
p 22) reconhece que uma das dimensotildees mais importantes do meacutetodo bergsoniano da intuiccedilatildeo consistiraacute em
colocar os problemas e solucionaacute-los mais em funccedilatildeo do tempo que do espaccedilo Eacute nesse sentido que Bergson
em Matiegravere et Meacutemoire pudera afirmar que ldquoles questions relatives au sujet et agrave lrsquoobjet agrave leur distinction et
agrave leur union doivent se poser en fonction du temps plutocirct que de lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 21874)
89
Afinal se sabemos que Bergson eacute geralmente considerado o filoacutesofo da duraccedilatildeo da
vida ou da criaccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 01) seria preciso procurar pelo significado
profundo ao qual responde o convite bergsoniano continuamente reiterado de pensar sub
specie durationis ndash convite que natildeo raras vezes rendeu agrave sua filosofia a alcunha de
pensamento antiintelectualista50
Como veremos mais adiante isto teria sido fruto de uma
incompreensatildeo que se encontra hoje amplamente demonstrada na literatura criacutetica que
acompanha a obra de Bergson desde meados dos anos cinquenta do seacuteculo XX
especialmente em Franccedila
A esta questatildeo a do sentido do tempo como horizonte da filosofia bergsoniana
viria acrescer-se ainda um problema anterior o da assunccedilatildeo de sua realidade o que
significa dizer que o tempo existe e mais ainda de que forma compreender que a
temporalidade possa constituir o sentido da mais antiga pergunta da histoacuteria da filosofia ndash
aquela sobre o ser Eis o que implica uma maneira bergsoniana sui generis de ler as
funccedilotildees ocultas e talvez praacuteticas e poliacuteticas da histoacuteria da metafiacutesica que nos propomos a
perscrutar No interior dessa dinacircmica que constitui a proacutepria realidade do tempo seria
preciso desvelar pacientemente no interior da obra de Bergson aquilo que constituiu o fio
condutor do presente trabalho compreender o sentido a um soacute tempo imanente e temporal
dos conceitos de memoacuteria e de transiccedilatildeo e sobretudo da relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo
no bergsonismo Retornaremos a ele incessantemente
Muacuteltiplas poderiam ser as entradas para reconstruir o sentido da pesquisa
bergsoniana sobre os temas da memoacuteria e da transiccedilatildeo como tambeacutem para elucidar o
significado profundo de pensar natildeo apenas a realidade da duraccedilatildeo mas a realidade em
duraccedilatildeo51
Seria plausiacutevel por exemplo ensaiar a via metoacutedica da criacutetica gnosioloacutegica tal
como eacute a escolha de Gilles Deleuze (1966 p 01-28) em seu Le Bergsonisme mas tambeacutem
a de Franklin Leopoldo e Silva (1994 p 29-116) em seu Bergson ndash intuiccedilatildeo e meacutetodo
50
ldquoNous avons insisteacute sur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuition Toutefois ce nrsquoest pas ainsi
qursquoelle est passeacute agrave la posteriteacute Agrave beaucoup elle a plutocirct sembleacute nrsquoecirctre que lsquosentimentsrsquo lsquoinspirationrsquo ou
sympathie confuserdquo (HUDE In FAGOT-LARGEAULT WORMS 2009 p 197) Cf ainda (DELEUZE
1966 p 01) 51
ldquoIl y a pourtant un sens fondamental penser intuitivement est penser en dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p
127530) No mesmo sentido Cf (RIQUIER 2009 p 187) e (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 86) que afirma
ldquoA intuiccedilatildeo [] sendo um lsquopensar em duraccedilatildeorsquo se oferece a gecircnese efetiva do sentido e a transiccedilatildeo de um
extremo a outrordquo Trata-se portanto de perspectivar outro ponto de vista a gecircnese e natildeo a estrutura o se
fazendo e natildeo o jaacute feito o processo de produccedilatildeo natildeo o produto em que ele culmina e natildeo eacute possiacutevel fazecirc-lo
sem considerar ldquoa temporalidade da apariccedilatildeo da essecircnciardquo como ldquoum dado constitutivo da proacutepria essecircnciardquo
(PRADO JUacuteNIOR 1989 loc cit) Cf ainda a defesa de Camille de Belloy (2002 p 138) faz da primazia
da questatildeo metoacutedica em Bergson
90
filosoacutefico que dedica agrave questatildeo do meacutetodo toda a primeira parte de seu livro intitulada
ldquoIntuiccedilatildeo e meacutetodo filosoacuteficordquo Evidentemente esta forma de exposiccedilatildeo comporta a
vantagem de construir progressivamente os conceitos da filosofia bergsoniana tomando
singularmente a intuiccedilatildeo por meacutetodo metafiacutesico Ao mesmo tempo se verificarmos que a
formulaccedilatildeo mais precisa da intuiccedilatildeo como meacutetodo filosoacutefico remonta ao iniacutecio de 190052
ndash
e eacute possiacutevel dizecirc-lo a despeito mesmo das criacuteticas que Camille Riquier (2009 p 134)
recentemente expocircs sobre a possibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo propriamente
dito ndash assumir inicialmente esse ponto de vista metoacutedico e a criacutetica gnosioloacutegica que o
acompanha poderia implicar brindar-se de antematildeo com aquilo que se deveria engendrar
isto eacute corre-se o risco de tomar como estrutura dada a priori aquilo que a proacutepria obra de
Bergson desenvolve pouco a pouco como a costura procedimental indissociaacutevel da proacutepria
experiecircncia filosoacutefica concreta53
a saber a intuiccedilatildeo
Se Deleuze e Leopoldo e Silva assumem o risco de uma interpretaccedilatildeo retrospectiva
e iniciam por ela natildeo eacute senatildeo tendo em vista necessidades particulares de exposiccedilatildeo em
suas obras e com o constante cuidado de natildeo nutrir sobre a intuiccedilatildeo nenhuma visatildeo de
estrutura mas apreendecirc-la na dinacircmica propriamente duracional de sua gecircnese Deleuze
natildeo sem certa ironia buscava pela via da intuiccedilatildeo infirmar as teses daqueles que
criticaram a filosofia bergsoniana como um vago intuicionismo Com efeito desde o iniacutecio
percebe-se uma necessidade enfaacutetica de afirmar que ldquoLrsquointuition est la meacutethode du
bergsonismerdquo (DELEUZE 1966 p 01) e que ela natildeo se confunde com qualquer
sentimento inspiraccedilatildeo ou simpatia confusos aparentados a uma metafiacutesica
antiintelectualista preacute-kantiana De outro lado pode-se perceber que em seu Le
Bergsonisme trata-se de tornar evidente o liame entre o meacutetodo metafiacutesico da intuiccedilatildeo
proacuteprio agrave filosofia bergsoniana seu monismo virtual e uma ontologia composta por dois
registros de realidade o atual e o virtual Natildeo casualmente Le Bergsonisme eacute o texto de
Deleuze capaz de iluminar a interpretaccedilatildeo de alguns de seus uacuteltimos e mais complexos
textos autorais como Lrsquoactuel et le virtuel (DELEUZE PARNET 2010 p 177-185) e
52
Tanto que Introduction agrave la Meacutetaphysique seraacute publicada apenas em 1903 na Revue de meacutetaphysique et de
morale e apareceraacute reformulada em 1934 no uacuteltimo livro de fato de Bergson La penseacutee et le mouvant Cf
nesse sentido a nota de Bergson quando da republicaccedilatildeo de seu texto (BERGSON 2001 p 1392-1393177-
178) 53
Significativamente a frase com que Vladimir Jankeacuteleacutevitch (2008 p 05) abre o primeiro capiacutetulo de seu
Bergson afirma ldquoLe bergsonisme est une des ces rares philosophies dans lesquelles la theacuteorie de la recherche
se confond avec la recherche elle-mecircme excluant cette espegravece de deacutedoublement reacuteflexif qui engendre les
gnoseacuteologies les propeacutedeutiques et les meacutethodesrdquo evidenciando a imanecircncia do meacutetodo agrave experiecircncia
filosoacutefica no seio da qual este constantemente se desdobra
91
Lrsquoimmanence une vie (DELEUZE 2003 p 359-363) ambos de inspiraccedilatildeo
reveladoramente bergsoniana
Por certo ao escrever Le Bergsonisme Deleuze poderia ter acreditado na
conveniecircncia de afirmar sempre que possiacutevel que a intuiccedilatildeo bergsoniana natildeo conduz a
nenhuma simpatia vaga ou forma gnosioloacutegica preacute-kantiana senatildeo que com suas regras
muito estritas a intuiccedilatildeo constitui ldquoune meacutethode eacutelaboreacutee et mecircme une des meacutethodes les
plus eacutelaboreacutees de la philosophierdquo (DELEUZE 1966 p 01) conclusatildeo que decorreria
imediatamente de uma profunda exigecircncia de precisatildeo filosoacutefica presente nos escritos de
Bergson dedicados agrave intuiccedilatildeo e constantemente reivindicada por ele54
De seu turno e polemizando com Deleuze Camille Riquier afirma a dissociaccedilatildeo de
direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo com base no ldquoDiscours aux eacutetudiants de Madridrdquo de
primeiro de maio de 1916 em que Bergson descreve a intuiccedilatildeo como um penoso esforccedilo
por meio do qual rompemos com as ideias preconcebidas e os haacutebitos intelectuais a fim de
recolocar-nos simpaticamente no interior da realidade55
Contudo verifica-se que em sua
criacutetica ao tratamento da intuiccedilatildeo como meacutetodo Riquier (2009 p 134) embora dirija-se
objetivamente contra o primeiro capiacutetulo de Le Bergsonisme natildeo menciona a exigecircncia de
precisatildeo interna agrave intuiccedilatildeo postergando sua anaacutelise para uma centena de paacuteginas adiante
(RIQUIER 2009 p 247) Desse modo apesar de encontrar uma deduccedilatildeo exegeacutetica
bastante plausiacutevel a distinccedilatildeo de direito entre intuiccedilatildeo e meacutetodo proposta por Riquier natildeo
afasta por si outras leituras que apresentam a vantagem de serem concebidas a partir das
articulaccedilotildees reais da experiecircncia filosoacutefica bergsoniana como quisera tambeacutem Bento
Prado Juacutenior que ndash antes mesmo de Deleuze ndash natildeo deixou de explicitar que ldquoA reflexatildeo
bergsoniana sobre o meacutetodo eacute governada pelo ideal da precisatildeordquo (PRADO JUacuteNIOR 1989
p 27)
A exemplo do que parece ocorrer com Le Bergsonisme mas de modo
intrinsecamente singular Franklin Leopoldo e Silva inicia seu Bergson pela exposiccedilatildeo da
54
Essa exigecircncia expressa no poacutertico da primeira parte da Introduccedilatildeo especialmente escrita para La Penseacutee
et le Mouvant exprime um dos diapasotildees que percorrem toda a obra de Bergson ldquoCe qui a le plus manqueacute agrave
la philosophie crsquoest la preacutecision Les systeacutemes philosophiques ne sont pas tailleacutes agrave la mesure de la reacutealite ougrave
nous vivonsrdquo (BERGSON 2001 p 125301) Bastaria lembrar por exemplo como o fazem Deleuze (1966
p 30-31) e Worms (2011 p 53) que se Essai sur les donneacutes immediates de la conscience dirige-se contra as
ilusotildees e falsos-problemas que envolvem a liberdade Bergson natildeo consegue chegar a eles senatildeo criticando as
traduccedilotildees simboacutelicas representativas e espacializantes dos estados de espiacuterito qualitativos contiacutenuos e
heterogecircneos pela psicologia de seu tempo 55
ldquoLa meacutethode philosophique tel que je me la repreacutesente comprend deux deacutemarches successives de lrsquoesprit
Le second de ces deux moments la deacutemarche finale crsquoest ce que jrsquoappelle intuition ndash un effort tregraves dificille et
tregraves penible par lequel on rompt avec les ideacutees preacuteconccedilues et les habitudes intelectuelles toutes faites pour se
replacer sympathiquement agrave lrsquointeacuterieur de la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 1972 p 1197)
92
extensa polecircmica da filosofia bergsoniana em relaccedilatildeo a toda a filosofia metoacutedica que a
precedeu a fim de explicitar o que constitui a exigecircncia singular de sua obra as relaccedilotildees
entre intuiccedilatildeo e discurso filosoacutefico Estas se encontram desde o primeiro momento
erigidas segundo a exigecircncia da adequaccedilatildeo entre meacutetodo filosoacutefico e a realidade agrave qual se
aplica inscrevendo-a tambeacutem ela na perspectiva da precisatildeo Configurada ldquopela aderecircncia
do conceito ao objetordquo (LEOPOLDO E SILVA 1994 p 34) a precisatildeo teria se tornado a
partir de Bergson o criteacuterio da adequaccedilatildeo do conhecimento ao real denunciando uma
apreensatildeo deformante e intrinsecamente simboacutelica da realidade derivada como veremos
das formas especiacuteficas da proacutepria inteligecircncia humana
Se Riquier deseja deduzir a impossibilidade de tratar a intuiccedilatildeo como meacutetodo a
partir de uma deduccedilatildeo que poderiacuteamos chamar de exegeacutetica seria natildeo menos necessaacuterio
considerar por exemplo o fato de que o Avant-propos de La Penseacutee et le Mouvant
apresenta a referida coleccedilatildeo de ensaios e conferecircncias como centradas sobre o problema da
pesquisa em filosofia Aqueles textos segundo Bergson (2001 p 1251) ldquoportent
principalement sur la meacutethode que nous croyons devoir racommander au philosophe
Remonter agrave lrsquoorigine de cette meacutethode deacutefinir la direction qursquoelle imprime agrave la recherche
tel est plus particuliegraverement lrsquoobjet des deux essais composant lrsquointroductionrdquo La Penseacutee
et le Mouvant representa portanto o resultado de uma seacuterie de esforccedilos pontuais de
Bergson a fim de remontar agrave genealogia do meacutetodo que se deve recomendar ao filoacutesofo
Se disso natildeo eacute possiacutevel concluir resolutamente que a intuiccedilatildeo constitui o meacutetodo
filosoacutefico por excelecircncia tampouco autoriza a afirmar rigorosamente uma dissociaccedilatildeo de
direito entre meacutetodo e intuiccedilatildeo de tal forma que pudesse haver para Bergson intuiccedilatildeo
sem inteligecircncia A longue camaraderie com os fenocircmenos de superfiacutecie verificados ao
longo de todo bergsonismo56
o extenso e profiacutecuo diaacutelogo de todos os livros de Bergson
com as ciecircncias de seu tempo ndash psicologia matemaacutetica medicina biologia sociologia
antropologia ndash ou mesmo o cabal objetivo de afirmar na contracorrente da gnosiologia
kantiana a possibilidade de um enriquecimento reciacuteproco entre ciecircncia e filosofia na
direccedilatildeo do real e do absoluto (BERGSON 2001 p 663-664199-200) natildeo seriam
suficientes para indicar uma compenetraccedilatildeo entre meacutetodo e intuiccedilatildeo como um dos
principais horizontes de sentido da filosofia bergsoniana
56
ldquoCar on nrsquoobtient pas de la reacutealiteacute une intuition crsquoest-agrave-dire une sympathie spirituelle avec ce qui elle a de
plus inteacuterieur si lrsquoon nrsquoa pas gagneacute sa confiance par une longue camaraderie avec ses manifestations
superficiellesrdquo (BERGSON 2001 p 1432226)
93
Com efeito se Riquier tem razatildeo em afirmar a dissociaccedilatildeo de jure entre intuiccedilatildeo e
meacutetodo de tal modo que o proacuteprio Bergson identificaria a ocorrecircncia de meacutetodos sem
intuiccedilatildeo e intuiccedilotildees despidas de meacutetodo por outro lado estes natildeo seriam senatildeo os
desenvolvimentos de duas tendecircncias inscritas na inteligecircncia que deveriam ser
reunificadas no campo concreto da experiecircncia57
Ainda aqui valeria o ldquomeacutetodordquo
bergsoniano de divisatildeo a fim de seguir as articulaccedilotildees do real segundo o qual os mistos
que satildeo dados com a experiecircncia podem ser divididos em multiplicidades que diferem por
natureza ndash multiplicidades quantitativas homogecircneas e descontiacutenuas que correspondem ao
espaccedilo e multiplicidades qualitativas heterogecircneas e contiacutenuas agraves quais corresponde a
duraccedilatildeo (DELEUZE 1966 p 31)
Considerando-se ou natildeo a intuiccedilatildeo como o meacutetodo filosoacutefico por excelecircncia e
embora a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo soacute possa ser definitivamente esclarecida com
a descriccedilatildeo da gecircnese da inteligecircncia no seio da vida a criacutetica a um suposto
antiintelectualismo bergsoniano pode ser afastada imediatamente senatildeo pela afirmaccedilatildeo da
intuiccedilatildeo como meacutetodo como enfaticamente quiseram Prado Juacutenior Deleuze Hude e
outros ao menos pela verificaccedilatildeo de que a dissociaccedilatildeo entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia natildeo
apenas contraria o sentido global da deacutemarche da obra bergsoniana como antes e
sobretudo contrafaz afirmaccedilotildees muito contundentes como aquela em que Bergson
preconiza que sendo mais que ideia eacute por meio de ideias que a intuiccedilatildeo termina por
comunicar-se isto eacute ldquoLrsquointuition ne se communiquera drsquoailleurs que par lrsquointelligencerdquo
(BERGSON 2001 p 128542) ou aquela em que afirma uma cooperaccedilatildeo entre intelecto e
intuiccedilatildeo ambas reunidas sob o selo da precisatildeo ldquo[] intuitive ou intelectuelle la
connaissance sera marqueacutee au sceau de la preacutecisionrdquo (BERGSON 2001 p 132086)58
De tudo quanto vimos apreendamos trecircs notas originais do bergsonismo que
serviratildeo a compreender o acircnimo que deve orientar as primeiras aproximaccedilotildees de nossa
questatildeo original 1) pensar para Bergson eacute mais do que pensar a duraccedilatildeo como objeto da
57
ldquoPour tout reacutesumer nous volouns une diffeacuterence de meacutethode nous nrsquoadmettons pas une diffeacuterence de
valeur entre la meacutetaphysique et la sciencerdquo (BERGSON 2001 p 128542-43) E ainda ldquoCrsquoest dire que
science et meacutetaphysique diffeacutereront drsquoobjet et de meacutethode mais qursquoelles communieront dans lrsquoexpeacuteriencerdquo
(BERGSON 2001 p 128745) 58
Atestando uma vez mais a relaccedilatildeo entre inteligecircncia e intuiccedilatildeo Freacutedeacuteric Worms recomenda que evitemos
em enxergar na intuiccedilatildeo uma regressatildeo instintiva e afirma ldquoa intuiccedilatildeo natildeo supera a humanidade senatildeo no
sentido revelado pela inteligecircnciardquo (WORMS 2011 p 271) Ainda Petr Tuma (In FAGOT-LARGEAULT
WORMS 2009 p 374) explicita a relaccedilatildeo de complementaridade entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia suposta pela
interpretaccedilatildeo de Worms ldquoLrsquointelligence comme faculteacute principale de lrsquohomme se trouve completeacutee par son
jeu avec lrsquointuitionrdquo Finalmente conveacutem assinalar que tambeacutem Henri Hude (In FAGOT-LARGEAULT
WORMS 2009 p 197) natildeo cessou de insistir ldquosur le caractegravere meacutethodique et rationnel de lrsquointuitionrdquo A
orientaccedilatildeo genuinamente antropoloacutegica do trabalho de intuiccedilatildeo em Bergson no entanto eacute um tema de que
natildeo podemos nos ocupar por ora sob pena de estender inconvenientemente esta pequena digressatildeo
94
filosofia mas eacute pensar em duraccedilatildeo o que significa seguir as articulaccedilotildees moventes do real
privilegiar a visatildeo da gecircnese e natildeo a da estrutura dada por natildeo se sabe bem por qual deus
ex machina 2) evitemos o antigo e incoerente haacutebito de procurar pelo antiintelectualismo
no seio daquilo que Bergson designou como ldquoesforccedilo de intuiccedilatildeordquo59
nosso breve desvio
pocircde atestar o liame necessaacuterio entre intuiccedilatildeo e inteligecircncia se por inteligecircncia
compreendermos a exemplo de Bergson ldquoa maneira humana de pensarrdquo60
3) Finalmente
compreendemos que a intuiccedilatildeo constitui uma das muacuteltiplas entradas possiacuteveis agrave filosofia de
Bergson sendo preciso nesse caminho descartar todo raciociacutenio estrutural e retrospectivo
em relaccedilatildeo a esse conceito Se o conhecimento de qualquer realidade exige como quisera o
proacuteprio Bergson uma longa camaradagem com suas manifestaccedilotildees superficiais natildeo se
poderaacute esperar ver na intuiccedilatildeo o fiat da obra bergsoniana uma vez que natildeo eacute por ela que
Bergson comeccedila e porque ela se constitui em um desenvolvimento em tudo coextensivo agrave
experiecircncia concreta
Encerremos esse longo parecircntese sobre a questatildeo da intuiccedilatildeo em Bergson a fim de
retomar nossa questatildeo primeira a das muacuteltiplas entradas para compreender o sentido e a
realidade do tempo em Bergson Aleacutem da intuiccedilatildeo uma segunda possibilidade seria a
esboccedilada por Freacutedeacuteric Worms em Bergson ou os dois sentidos da vida ou como
propusera antes dele Vladimir Jankeacuteleacutevitch com seu Henri Bergson Ela consistiria em
remontar as articulaccedilotildees do bergsonismo a partir do progresso interno de seu
desenvolvimento partindo do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience (1889)
passando por Matiegravere et meacutemoire (1896) e LacuteEacutevolution Creacuteatrice (1907) ateacute chegar a Les
Deux Sources de la Morale et de la Religion (1932) Trata-se de uma das ordenaccedilotildees mais
didaacuteticas de Bergson na medida em que o trabalho passa a ser ndash como Jankeacuteleacutevitch e
Worms aliaacutes executam magistralmente ndash proceder agraves cesuras encadear pontos de
continuidade e religar elementos de ruptura entre as quatro principais obras de Bergson
Apesar de os esforccedilos desses ceacutelebres leitores de Bergson convencerem pela uniatildeo
de beleza e inspiraccedilatildeo da continuidade do bergsonismo retrilhar sistematicamente seus
caminhos implica assumir o risco de criar indevidamente no leitor a impressatildeo ndash na qual eacute
preciso evidenciar nenhum desses notaacuteveis inteacuterpretes jamais incorre ndash de um teacutelos
previamente estabelecido pela filosofia bergsoniana Se assim fosse o que explicaria por
exemplo o quarto de seacuteculo que separa a publicaccedilatildeo de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice e a de Les
59
A fim de encerrar tais acusaccedilotildees deixemos com Bergson (2001 p 132895) a uacuteltima palavra ldquoNous ne
dirons rien de celui qui voudrait que notre lsquointuitionrsquo fucirct instinct ou sentiment Pas une ligne de ce que nous
avons eacutecrit ne se precircte agrave une telle interpreacutetationrdquo 60
ldquoQursquoest-ce en effet que lrsquointelligence La maniegravere humaine de penserrdquo (BERGSON 2001 p 131984)
95
Deux Sources (GOUHIER 1989 p 87) Se com efeito eacute impossiacutevel deixar de verificar
que Bergson sempre se move de um problema concreto a outro ndash a liberdade a relaccedilatildeo
entre corpo e espiacuterito a gecircnese criadora da vida e de suas formas especiacuteficas a miacutestica e o
aberto ndash e que cada livro terminado engendra jaacute as virtualidades de um problema que eacute
preciso colocar sempre em funccedilatildeo da duraccedilatildeo natildeo haacute meta na filosofia bergsoniana senatildeo
certa direccedilatildeo inespeciacutefica que se resume agrave tentativa de oferecer uma resposta agraves trecircs
grandes e simples questotildees que o senso comum frequentemente se coloca ldquoQuem somos
noacutesrdquo ldquoDe onde noacutes viemosrdquo ldquoPara onde noacutes vamosrdquo (RIQUIER 2009 p 476)
A fim de evitar os riscos da interpretaccedilatildeo retrospectiva bem como os da exposiccedilatildeo
linear gostaria de propor alternativamente uma terceira entrada apenas por supocirc-la mais
adequada aos desenvolvimentos do problema que buscamos enfrentar a partir de Bergson
apresentar os conceitos de memoacuteria e transiccedilatildeo no corpo da filosofia bergsoniana a fim de
explicar a relaccedilatildeo entre memoacuteria e transformaccedilatildeo social ndash lacuna encontrada na primeira
parte no seio heterogecircneo da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
Eis porque a questatildeo do sentido e da realidade do tempo devem ser colocadas de
um ponto de vista que natildeo inicia pela exposiccedilatildeo da intuiccedilatildeo filosoacutefica tampouco pela
exposiccedilatildeo sistemaacutetica do desenvolvimento da obra de Bergson Eacute preciso que nos
coloquemos no campo de sentido conceitual de imediato instaurando-o correlativa e
contemporaneamente ao desenvolvimento dos conceitos que o povoam
Antes disso no entanto eacute preciso uma palavra sobre o sentido desse movimento
que nos autoriza colocar-nos subitamente no interior do campo problemaacutetico que se deseja
constituir Escrevesse sobre o canevaacutes das experiecircncias psicoloacutegicas forjasse um campo
transcendental das experiecircncias concretas ou recortasse problemas antropoloacutegicos acerca
dos destinos da espeacutecie humana sobre o fundo do eacutelan vital natildeo raras vezes e ateacute mesmo
constantemente Bergson empresta agrave intuiccedilatildeo a imagem dos saltos toda a sua obra eacute
percorrida por essas imagens haacute saltos na duraccedilatildeo qualitativa no passado na origem da
vida na justiccedila absoluta no aberto etc
Sempre que nos vemos envolvidos por diferenccedilas de natureza ndash entre
multiplicidades quantitativa e qualitativa espaccedilo e tempo mateacuteria e espiacuterito ou entre
fechado e aberto por exemplo ndash retorna a imagem dos saltos que preenchem
positivamente as dificuldades de passar de um registro ontoloacutegico a outro em um momento
em que natildeo se pode ainda passar de um termo a outro por contiguidades Geralmente
trata-se dos momentos em que Bergson deseja desfazer-se de falsos-problemas ou
96
constituir os seus pela intuiccedilatildeo mais adequados que se valem de um contato imediato com
a experiecircncia concreta acerca do qual se mobiliza o esforccedilo de intuiccedilatildeo61
O que apareceraacute ao fundo de cada um deles eacute o salto problemaacutetico e ainda assim
sempre repetido do atual em direccedilatildeo ao virtual sem sair da mesma realidade agrave qual ambos
os registros pertencem ndash campo transcendental ao qual nenhuma realidade pode escapar
pois define a condiccedilatildeo de toda experiecircncia concreta Eacute sobre um salto como esses de uma
diferenccedila de natureza a outra de um registro de realidade a outro que devemos nos
concentrar a fim de realizar a travessia do atual em direccedilatildeo ao virtual sob o aspecto da
duraccedilatildeo Trata-se de interrogar o sentido e a realidade do tempo em Bergson
Para tanto o movimento conceitual que realizaremos mobiliza dois niacuteveis de
realidade solidaacuterios e no entanto qualitativamente distintos o psicoloacutegico e o ontoloacutegico
tal como aparecem a partir do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience e de
Matiegravere et Meacutemoire Falamos de uma duraccedilatildeo tomada em uma diferenccedila de vibraccedilatildeo
psicoloacutegica compreendida como duraccedilatildeo interior experiecircncia mais imediata do fluxo
temporal e ontoloacutegica registro de realidade mais proacuteximo da mateacuteria Seu muacutetuo
cruzamento tornaraacute possiacutevel efetuar a passagem do ser presente ao ser do passado ndash eis a
transiccedilatildeo que por ora se trata de engendrar e que permite aceder natildeo apenas agrave duraccedilatildeo
sentida em profundidade como fruto de uma experiecircncia psicoloacutegica ndash verdadeiro fato
fundamental (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) ndash mas igualmente ao ser presente e ao ser
do passado como iacutendices de um desdobramento ontoloacutegico duacuteplice da duraccedilatildeo o atual e o
virtual
Em relaccedilatildeo agraves alternativas que haacute pouco revisitamos em suas linhas gerais esta
apresenta a vantagem de natildeo incorrer nos riscos de interpretaccedilatildeo retrospectiva e de
continuidade linear que aquelas poderiam sugerir ao leitor tornando mais complexo o
acompanhamento da demonstraccedilatildeo do sentido e da realidade do tempo em Bergson Ainda
esta alternativa permitiraacute acompanhar o desdobramento a um soacute tempo complexo e
contiacutenuo da realidade do virtual bem como seus desdobramentos que de um ponto de
vista inicialmente psicoloacutegico progressivamente se articularaacute com a ontologia da duraccedilatildeo
concedendo-nos a chave de todos os desdobramentos ulteriores em campos muito
heterogecircneos como os terrenos da subjetivaccedilatildeo ou da experiecircncia social
61
Nesse aspecto vecirc-se que a imagem do salto eacute uma figura de acesso agravequilo que a experiecircncia concreta pode
oferecer agrave intuiccedilatildeo Todavia este primeiro salto define apenas o acesso agrave experiecircncia naquilo que ela possui
de concreto e portanto de misto por ora indiviso Uma vez cindido torna-se ainda uma vez possiacutevel saltar de
um termo-limite a outro de uma diferenccedila de natureza a outra Por essa razatildeo Henri Hude (2009 p 182)
afirma que ldquoLrsquoobjet de lrsquointuition crsquoest drsquoabord lrsquoimmediat Lrsquoimmediat est le mode de connaissance qui se
rapporte sans inteacutermediare agrave son objetrdquo
97
sect 2 DURACcedilAtildeO O SENTIDO E A REALIDADE DO TEMPO
Encontramo-nos pois no segmento psicoloacutegico da obra de Bergson que ensaia
tambeacutem e jaacute sua deserccedilatildeo ampliativa em direccedilatildeo agrave ontologia e eacute precisamente esta
articulaccedilatildeo ou esta continuidade entre o psicoloacutegico e o ontoloacutegico que se torna
momentaneamente o epicentro conceitual necessaacuterio para explicar o sentido e a realidade
do tempo como a passagem do ser presente ao ser do passado no bergsonismo Afinal se
por ora utilizamos o termo ontoloacutegico para designar as realidades aproximadas da mateacuteria
excluindo aparentemente o psiacutequico eacute apenas por uma razatildeo de comodidade precaacuteria que
deve deformar-se paulatinamente no sentido de seu contraacuterio A construccedilatildeo progressiva do
conceito de duraccedilatildeo e a procura pelo sentido e pela realidade do tempo tendem a provocar
como veremos duas aberturas nessas mesmas estruturas discursivas a primeira no
ontoloacutegico torna o psiacutequico e o mental uma realidade a segunda no psicoloacutegico torna-o o
seio privilegiado da experiecircncia da duraccedilatildeo assegurando sua realidade e seu sentido
Trata-se portanto de abrir o campo ontoloacutegico pelo campo psicoloacutegico e como
consequecircncia da comunicaccedilatildeo entre ambos afirmar a realidade da duraccedilatildeo em niacuteveis ou
registros diferentes que compotildeem uma soacute realidade ontoloacutegica
O texto introdutoacuterio do Essai sur les donneacutes immediates de la conscience apresenta
o problema da liberdade como comum aos campos da psicologia e da metafiacutesica Sua
origem profunda se deve ao fato de que ldquoNous nous exprimons neacutecessairement par des
mots et nous pensons le plus souvent dans lrsquoespacerdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Se a
linguagem corresponde agrave expressatildeo de ideias de acordo com necessidades praacuteticas comuns
agrave accedilatildeo na vida quotidiana como na ciecircncia de algum modo suas traduccedilotildees introduzem
ldquoentre nos ideacutees les mecircmes distinctions nettes et preacutecises la mecircme discontinuiteacute qursquoentre
les objets materieacutelsrdquo (BERGSON 2001 p 03VII) Eis o que nos leva a tomar os siacutembolos
meramente representativos por coisas Trata-se nesse caso natildeo mais que de uma
assimilaccedilatildeo uacutetil que no entanto eacute capaz de engendrar em filosofia problemas
aparentemente insuperaacuteveis que uma vez que tenham sido recolocados poderiam ateacute
mesmo desvanecer por completo segundo Bergson adverte ndash natildeo sem certa audaacutecia
especulativa
Por essa razatildeo os dois primeiros capiacutetulos do Essai concentram-se precisamente
sobre a criacutetica das noccedilotildees de quantidades intensivas e de multiplicidades numeacutericas Eacute
preciso compreender que natildeo se trata de uma criacutetica a conceitos puros mas agrave sua
aplicaccedilatildeo pelas ciecircncias psicoloacutegicas a um campo de experiecircncias irredutiacutevel agrave
98
representaccedilatildeo espacial incutida nesses conceitos Logo se nota portanto que a criacutetica de
Bergson desenrola-se no sentido da irredutibilidade de experiecircncias duracionais a
traduccedilotildees que natildeo apreendem senatildeo um rastro espacializado de uma mudanccedila real e
absoluta Nesse sentido o problema da liberdade indicaraacute que toda polecircmica metafiacutesica e
psicoloacutegica acerca de sua existecircncia entre deterministas e seus adversaacuterios teria origem em
uma operaccedilatildeo de fundo ldquoune confusion preacutealable de la dureacutee avec lrsquoeacutetendue de la
succession avec la simultaneiteacute de la qualiteacute avec la quantiteacute []rdquo(BERGSON 2001 p
03VII)62
Em suma uma insistente confusatildeo entre realidades que comportam diferenccedilas
de natureza de que deriva uma certa maneira de pocircr o problema cuja denuacutencia o ensaio
bergsoniano assumiraacute (WORMS 2011 p 37)
O que estaacute em jogo na introduccedilatildeo dessa diferenccedila ainda imprecisa entre duraccedilatildeo e
espaccedilo eacute precisamente a natureza da duraccedilatildeo Supomos por ora a fim de acompanhar
Bergson que a assimilaccedilatildeo da duraccedilatildeo pelo espaccedilo seja deformante e desnaturante assim
como a traduccedilatildeo de uma sucessatildeo em simultaneidades ou de qualidades em quantidades
Tratar-se-ia pois de conceitos irredutiacuteveis cuja irredutibilidade ainda falta explicar Para
fazecirc-lo deixemos de lado a questatildeo da realidade do espaccedilo e nos concentremos nos
problemas que nos sugerem o desenvolvimento da realidade da duraccedilatildeo
O campo experimental de Bergson satildeo os estados psicoloacutegicos e de consciecircncia
propriamente humanos Eles seratildeo desenvolvidos inicialmente a partir da ideia de
sensaccedilatildeo em primeiro lugar no sentido de identificar e separar as tendecircncias duracionais e
natildeo-duracionais no seio da experiecircncia interior e concreta que nos assinala ldquole fait de
lsquodurerrsquordquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07) Se as sensaccedilotildees de esforccedilo e movimento podem
ser naturalmente associadas agrave superfiacutecie a que se aplicam ou agrave trajetoacuteria sobre a qual se
deslocam o mesmo natildeo ocorre quando experimentamos outros estados de alma como ldquoles
joies et les tristesses profondes les passions reacutefleacutechies les eacutemotions estheacutetiquesrdquo
(BERGSON 2001 p 0906) Esses estados parecem bastar a si mesmos excluindo toda
possibilidade de traduccedilatildeo espacial63
parecem ademais emergir subitamente de certa
profundidade da consciecircncia exprimindo dinamicamente uma modificaccedilatildeo da ldquonuance de
62
Bento Prado Juacutenior natildeo apenas lembra que a criacutetica do Essai bergsoniano dirige-se tanto agrave ciecircncia quanto
ao senso comum ao distribuiacuterem fatos psicoloacutegicos em um espaccedilo imaginaacuterio instaurado por coordenadas de
grandeza intensiva mas tambeacutem que colocar em jogo o conceito de grandeza intensiva potildee em xeque ldquoa
possibilidade da constituiccedilatildeo da psicologia como ciecircnciardquo a qual estaacute fundada nessa categoria De todo
modo buscando demonstrar a vacuidade do problema da liberdade Bergson buscaria ldquoinfundar deterministas
e espiritualistasrdquo demonstrando ldquoa raiz comum dessas metafiacutesicasrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 73-74) 63
ldquoCrsquoest que plus on descend dans les profondeurs de la conscience moins on a le droit de traiter les faits
psychologiques comme des choses qui se juxtaposentrdquo (BERGSON 2001 p 1006-07) isto eacute menos
direitos tem uma representaccedilatildeo espacial sobre a coloraccedilatildeo afetiva em profundidade
99
mille perceptions ou souvenirsrdquo penetrados agora de uma nova imagem No entanto toda
descida agrave profundidade obscura da consciecircncia dos desejos e sonhos que a penetram ndash e
que como veremos penetram-se indefinidamente nela ndash repugna agrave consciecircncia reflexa
orientada para a utilidade e para a vida e portanto amante do claro e do distinto
envolvidos pelos horizontes da representaccedilatildeo
Toda afecccedilatildeo tomada em profundidade implica mais uma mudanccedila de qualidade
que de grandeza Um desejo que pacientemente se acumula o futuro prenhe de uma
infinidade de possiacuteveis mais fecundos que o proacuteprio futuro que designa toda a prazerosa
intensidade de nutrir esperanccedila sentimentos profundos de alegria e tristeza sentimentos
esteacuteticos que inspiram certa simpatia fiacutesica de movimentos alheios como a graccedila
assinalariam um progresso qualitativo que no entanto interpretamos como mudanccedila de
grandeza em razatildeo de uma inadequaccedilatildeo entre nossa linguagem e ldquoas sutilezas da anaacutelise
psicoloacutegicardquo (BERGSON 2001 p 1310)
A sensaccedilatildeo esteacutetica talvez constitua um dos mais claros exemplares sobre como
Bergson compreende a natureza qualitativa dos estados psicoloacutegicos Segundo ele o que
constitui o objetivo da arte Natildeo comunicar uma sensaccedilatildeo mas introduzir-nos em uma
emoccedilatildeo64
Para isso eacute necessaacuterio adormecer as resistecircncias de nossa personalidade
docilizar nosso estado de acircnimo a fim de que simpatizemos com o sentimento expresso O
ritmo seja o compreendido pela muacutesica pela poesia pelas artes plaacutesticas ou pela
arquitetura suspende nossas faculdades a fim de envolvecirc-las por completo em uma densa
neacutevoa de emoccedilotildees que natildeo se resumem agravequela sugerida pela obra mas a integra com
milhares de sensaccedilotildees sentimentos e ideias que a atravessam formando assim um estado
uacutenico e inexplicaacutevel tatildeo singular que talvez fosse preciso ldquorevivre la vie de celui qui
lrsquoeacuteprouve [lrsquoeacutemotion] pour lrsquoembrasser dans sa complexe originaliteacuterdquo (BERGSON 2001
p 1513)65
64
Em Puissances du Temps David Lapoujade pergunta-se pela relaccedilatildeo entre o conceito de duraccedilatildeo em
Bergson e o fato de que sua experiecircncia aparece desde seus primeiros escritos ligada agrave sensaccedilatildeo da
passagem do tempo ldquopour saisir la dureacutee [] il faut la sentir srsquoeacutecouler en nousrdquo (LAPOUJADE 2010 p
08) Trata-se poreacutem de compreender o que significar sentir Eacute certo que ao passar o tempo provoca
emoccedilotildees que se confundiriam para Lapoujade com os proacuteprios dados imediatos da consciecircncia Contudo
para compreender o significado profundamente bergsoniano de sentir seria preciso inverter a polaridade
comum entre causa e efeito jaacute natildeo seria o tempo que ao passar provoca emoccedilatildeo eacute a duraccedilatildeo mesma que
em noacutes eacute emoccedilatildeo segundo a foacutermula de Lapoujade Isso indicaria que a emoccedilatildeo ndash ideia que reapareceraacute
incessantemente na obra tardia de Bergson seguida do predicado criadora ndash constitui um dos aspectos
fundamentais da experiecircncia da duraccedilatildeo Isso eacute o que torna a sensaccedilatildeo esteacutetica um exemplar privilegiado para
a compreensatildeo do duracional cuja realidade esboccedila-se jaacute interna e imediatamente 65
A expressatildeo entre colchetes natildeo consta do original
100
A qualidade de singularidade intensiva da emoccedilatildeo esteacutetica produz assim a queda
das barreiras que tempo e espaccedilo interpunham entre a consciecircncia do artista e a do amante
de arte essa ressonacircncia entre consciecircncias ndash como vimos mais que a comunicaccedilatildeo de
uma emoccedilatildeo implica a introduccedilatildeo no solo afetivo de uma emoccedilatildeo enriquecida em diversos
niacuteveis de profundidade pelo eu que a experimenta ndash produz segundo Bergson mudanccedilas
em noacutes ldquoLes intensiteacutes successives du sentiment estheacutethique correspondent donc agrave des
changements drsquoeacutetat survenus en nous et le degreacutes de profondeur au plus ou moins grand
nombre de faits psychiques eacuteleacutementaires que nous deacutemecirclons confusement dans lrsquoeacutemotion
fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p 1614)
Bergson reconhece no entanto a raridade desses estados de alma profundos
Torna-se necessaacuterio evitar que sua criacutetica da inadequaccedilatildeo do conceito de quantidades
intensivas traduziacuteveis sempre em diferenccedilas de graus seja compreendida como um tour de
force que toma o excepcional pelo regular Por isso Bergson deve retornar agraves sensaccedilotildees
que nos parecem mais imediatamente espaciais eacute o caso da sensaccedilatildeo de esforccedilo
Com efeito o esforccedilo muscular parece-nos sempre comportar diferenccedilas
quantitativas Representamos esforccedilos musculares mais fracos e mais fortes que implicam
menor ou maior volume de accedilatildeo Se comprimiacutessemos a sensaccedilatildeo de esforccedilo o maacuteximo
possiacutevel concluiriacuteamos facilmente pela existecircncia de um estado puramente psiacutequico que
natildeo ocupa espaccedilo e contudo importa grandeza
Em que consiste nossa percepccedilatildeo de sua intensidade Como se pode afirmar que
experimentamos uma sensaccedilatildeo de crescimento do esforccedilo Natildeo nos afastemos da
experiecircncia Bergson sugere que fechemos o punho o mais forte que pudermos ou
comprimamos constantemente um dos laacutebios contra o outro observando-nos ao longo do
tempo perceberiacuteamos um aumento de superfiacutecie e de esforccedilo quando em verdade trata-se
objetivamente de uma pressatildeo constante e igual exercida sobre a mesma regiatildeo Nossa
consciecircncia todavia perceberia aiacute um crescimento de esforccedilo muscular em razatildeo de uma
mudanccedila qualitativa ocorrida em alguma das percepccedilotildees perifeacutericas (BERGSON 2001 p
2119) Ora sendo qualitativa a modificaccedilatildeo de intensidade de um esforccedilo superficial eacute
forccediloso conduzir sua causa a um sentimento profundo da alma confusamente
percepcionado em superfiacutecie
Investigando estados psicoloacutegicos intermediaacuterios entre sentimentos profundos e
esforccedilos superficiais como a atenccedilatildeo geralmente acompanhada de movimentos (contraccedilatildeo
do frontal elevaccedilatildeo do sobrolho abertura da boca etc) eacute possiacutevel identificar tambeacutem
entre eles uma impressatildeo de aumento de um ldquoesforccedilo imaterialrdquo por manter-se
101
concentrado Com efeito mesmo aiacute o esforccedilo de atenccedilatildeo eacute reconduzido a uma tensatildeo da
alma devendo-se a variaccedilatildeo de intensidade percepcionada agrave tensatildeo muscular que a
acompanha O mesmo ocorre com o que Bergson chama de emoccedilotildees violentas desejo
agudo coacutelera amor apaixonado oacutedio violento que se fazem natildeo raro acompanhar por
sintomas fisioloacutegicos de furor variaccedilotildees qualitativas misturam-se a tensotildees musculares
perifeacutericas e uma variaccedilatildeo de tensatildeo espiritual pode ser logo transcrita em termos de
coordenadas quantitativas e espaciais
Isso tudo importaria reduzir essas sensaccedilotildees superficiais que podem ser transcritas
em termos de grandezas agrave orientaccedilatildeo de movimentos concomitantes que a consciecircncia
mede pelo nuacutemero e extensatildeo ldquodas superfiacutecies interessadasrdquo Bastaria eliminar todo traccedilo
de abalo orgacircnico a fim de que restasse apenas uma emoccedilatildeo agrave qual eacute impossiacutevel atribuir
grandeza de intensidade Seria preciso pois distinguir com precisatildeo entre abalos orgacircnicos
e sentimentos profundos agitaccedilatildeo superficial e perturbaccedilotildees em profundidade
Se Bergson contesta o conceito de intensidade quantitativa eacute visando a comprovar o
fundo qualitativo em profundidade de toda manifestaccedilatildeo superficial A irredutibilidade
entre intenso e extenso entre a qualidade e a quantidade indica desde logo que haacute entre
eles uma diferenccedila natildeo apenas de grau mas de natureza Essa diferenccedila de natureza
impede que a traduccedilatildeo do qualitativo pelo mensuraacutevel seja adequada e mais aleacutem que se
passe do qualitativo ao quantitativo por aproximaccedilotildees ndash sejam elas ampliaccedilotildees ou reduccedilotildees
ndash sucessivas A noccedilatildeo de intensidade implicaria nesse sentido um misto designando ao
mesmo tempo uma apreciaccedilatildeo da grandeza da causa por certa qualidade superficial do
efeito ndash o que corresponderia ao extenso e ao quantitativo bem como ldquola multipliciteacute plus
ou moins consideacuterable de faits psychiques simples que nous devinons ou sein de lrsquoeacutetat
fondamentalrdquo (BERGSON 2001 p 5054) o que designaria natildeo mais uma percepccedilatildeo
clara e distinta ou superficial mas profunda confusa e obscura
A intensidade afigura-se pois um misto bifronte que se compotildee de dados extensos
quantitativos superficiais ou o que eacute dizer o mesmo espaciais e em seu anverso eacute
composto de uma multiplicidade de fatos psiacutequicos simples tomados em sua continuidade
obscura e confusa que Bergson compraz-se em chamar de ldquolrsquoimage drsquoune multipliciteacute
internerdquo Eis o ponto de junccedilatildeo entre estados de consciecircncia meramente representativos e
estados de consciecircncia que se bastam considerados em profundidade O proacuteximo passo
seraacute dissociar representaccedilatildeo e esta multiplicidade interna considerada agora natildeo em
estados separados mas em si mesmos a fim de depurar a duraccedilatildeo de todas as suas
102
representaccedilotildees espaciais e dessa forma liberaacute-la das ilusotildees de que a inteligecircncia a cercou
desde a filosofia dos eleatas
Ateacute agora apreendemos estados psicoloacutegicos como sensaccedilotildees cujas qualidades
desprendem-se de um fundo obscuro e confuso e que chegando agrave superfiacutecie de nosso eu
satildeo apreendidos como estados separados distintos tal como a inteligecircncia os percebe
como dados imediatos de uma consciecircncia Diferentemente dos sentimentos profundos as
sensaccedilotildees apreendidas na superfiacutecie e logo transcritas em quantidades intensivas
variaccedilotildees de grandeza e diferenccedilas de grau oferecem-nos com efeito uma multiplicidade
mas ela nos concederaacute a duraccedilatildeo Tudo indica que natildeo Se a intensidade misto bifronte
prenhe tanto de quantidades intensivas quanto de fatos psiacutequicos simples correspondentes a
multiplicidades internas aponta desde logo para uma divisatildeo entre o espacial e o externo e
o duracional e o interno eacute na duraccedilatildeo dos estados simples interiores e profundos que
devemos buscar a ideia de duraccedilatildeo
Afinal como vimos eacute em profundidade que se constituem tanto os sentimentos
profundos que parecem bastar-se a si mesmos quanto aqueles mais superficiais sempre
em vias de converter-se em extensatildeo segundo os modos simboacutelicos de uma consciecircncia
que os experimenta em profundidade e realiza sua siacutentese por intermeacutedio da inteligecircncia
Em que consiste o que seus dados imediatos ofereceram agrave anaacutelise ateacute o presente De um
lado sua sede estabelecida em profundidade que implica uma mudanccedila de caraacuteter
qualitativo de outro sua siacutentese superficial que se nos representa uma mudanccedila de
qualidade como uma multiplicidade descontiacutenua povoada por estados descontiacutenuos
organizados no espaccedilo que experimentariacuteamos um apoacutes o outro e que variariam segundo
diferenccedilas de grau ou de quantidade
Jaacute se pode notar que o novo problema de Bergson consiste natildeo em mostrar que a
duraccedilatildeo implica multiplicidade ndash afinal o espaccedilo tambeacutem a implica ndash mas caso se trate de
assinalar uma diferenccedila de natureza entre duraccedilatildeo e espaccedilo eacute preciso compreender a que
tipo de multiplicidades correspondem os conceitos de duraccedilatildeo e extensatildeo Toda a questatildeo
da duraccedilatildeo converte-se em uma exigecircncia de apreender as caracteriacutesticas daquilo que
constitui seu tipo proacuteprio de multiplicidade
Se assim for o que explica o fato de que Bergson inicia o segundo capiacutetulo do
Essai pela definiccedilatildeo de nuacutemero Em La Penseacutee et le Mouvant Bergson afirmava que a
origem de seu encantamento com a ideia de tempo remontava ao fato de perceber que nas
103
matemaacuteticas o tempo natildeo desempenhava qualquer papel66
O trabalho de depuraccedilatildeo da
duraccedilatildeo de todo referencial e determinaccedilatildeo espaciais deve comeccedilar assinalando o tipo de
multiplicidade que concorre para um modo da realidade em que a duraccedilatildeo em princiacutepio
natildeo pode constituir causa Isso implica determinar com precisatildeo que tipo de multiplicidade
corresponde agraves coordenadas espaciais para depois definir a multiplicidade que
corresponde agrave duraccedilatildeo como limites de nossa experiecircncia (WORMS 2011 p 41) A
anaacutelise do conceito de nuacutemero eacute aquela que permitiraacute distinguir duas multiplicidades
Bergson (2001 p 5156) define o nuacutemero como ldquoune collection drsquouniteacutesrdquo ou como
ldquola synthegravese de lrsquoun et du multiplerdquo Trata-se de uma coleccedilatildeo de unidades supostas
idecircnticas entre si o que implicaria a ldquointuiccedilatildeo simples de uma multiplicidade de partes e de
unidadesrdquo assemelhadas umas agraves outras No entanto esta unidade eacute sinteacutetica operada pela
consciecircncia uma vez que as partes natildeo se confundem ou natildeo haveria multiplicidade O
que garante que a multiplicidade possa subsistir entre unidades que supomos iguais e cuja
siacutentese mental oferece-nos uma unidade pragmaticamente simples A circunstacircncia de que
se as unidades satildeo absolutamente semelhantes umas agraves outras ao menos diferem entre si
em funccedilatildeo do espaccedilo O que assegura que a siacutentese dessa multiplicidade de unidades
similares entregue-nos um nuacutemero Alguma forma de retenccedilatildeo das unidades sucessivas
sua representaccedilatildeo simultacircnea em um espaccedilo ideal e homogecircneo que acompanha a siacutentese
da multiplicidade numeacuterica em unidade (BERGSON 2001 p 57-5853) Como observa
Bento Prado Juacutenior (1989 p 94) ldquoA enumeraccedilatildeo implica retenccedilatildeo e a retenccedilatildeo por sua
vez implica a siacutentese de instantes sucessivosrdquo no mesmo sentido Freacutedeacuteric Worms (2011
p 47) afirma que ldquoantes de adicionar eacute preciso conservarrdquo o que implica de um lado que
a repeticcedilatildeo nua das unidades natildeo seja jamais suficiente para formar um nuacutemero cuja
siacutentese estaacute a exigir a representaccedilatildeo simultacircnea e distinta da multiplicidade
Dessa maneira um espaccedilo ideal de justaposiccedilatildeo surge como coordenada essencial agrave
operaccedilatildeo de siacutentese numeacuterica eacute impossiacutevel apreender o todo pela mera repeticcedilatildeo ndash sem
nenhuma conservaccedilatildeo ndash de suas unidades ou partes integrantes Se de seu turno a adiccedilatildeo
parece ser uma experiecircncia eminentemente temporal se no-la representamos como uma
soma sucessiva Bergson afirmaraacute que se pode perceber exclusivamente no tempo uma
sucessatildeo mas jamais uma adiccedilatildeo uma sucessatildeo que culminasse em uma soma67
A
66
ldquoNous fucircmes tregraves frappeacute en effet de voir comment le temps reacuteel qui joue le premier rocircle dans toute
philosophie de lrsquoeacutevolution eacutechappe aux matheacutematiquesrdquo (BERGSON 2001 p 125402) 67
ldquoCertes il est possible drsquoapercevoir dans le temps et dans le temps seulement une succession pure et
simple mais non pas une addition crsquoest-agrave-dire une succession qui aboutisse agrave une sommerdquo (BERGSON
2001 p 5458-59) ademais Bergson (2001 p 5459) conclui que ldquo[]toute ideacutee claire du nombre implique
104
intervenccedilatildeo de uma representaccedilatildeo espacial eacute condiccedilatildeo do nuacutemero como eacute do simples ato
de contar
Se por um lado o nuacutemero supotildee a extensatildeo por outro supotildee a descontinuidade
Retornemos por um momento agrave definiccedilatildeo do nuacutemero como siacutentese do uno e do muacuteltiplo
ou como coleccedilatildeo de unidades Ao nos representarmos um nuacutemero acedemos agrave intuiccedilatildeo de
uma totalidade simples no entanto quando nos representamos o nuacutemero como um todo
formado de partes ndash as unidades que compotildeem o nuacutemero ndash notaremos que a unidade
conteacutem uma multiplicidade Portanto a unidade do espiacuterito que reuacutene as partes em um todo
depende do caraacuteter essencialmente divisiacutevel de suas partes isto eacute de uma multiplicidade
de base Essa multiplicidade de base compotildee-se de unidades que supomos idecircnticas e que
satildeo por sua vez divisiacuteveis ao infinito uma vez que sua representaccedilatildeo como totalidade
decorre tal como o nuacutemero que designa o conjunto que ela integra de um ato do espiacuterito
natildeo de uma ldquounidade definitivardquo
Eacute nesse ponto que Bergson comprova ainda uma vez a solidariedade entre o
conceito de nuacutemero sua propriedade de multiplicidade descontiacutenua e divisiacutevel e a
extensatildeo ldquoOr par cela mecircme que lrsquoon admet la possibiliteacute de diviser lrsquouniteacute en autant de
parties que lrsquoon voudra on la tient pour lrsquoeacutetenduerdquo (BERGSON 2001 p 5661)68
A
indivisibilidade das unidades que compotildeem o nuacutemero por serem extensas eacute sempre
precaacuteria provisoacuteria e resultante de um ato sinteacutetico do espiacuterito da mesma forma um
nuacutemero entendido como siacutentese de uma multiplicidade em certa unidade gozaraacute tambeacutem
ele de uma simplicidade exclusivamente provisoacuteria O nuacutemero portanto supotildee o espaccedilo
que eacute definido por Bergson (2001 p 6470) como a concepccedilatildeo de um meio vazio
homogecircneo Ao afirmar que o espaccedilo eacute a concepccedilatildeo de um meio vazio e homogecircneo
Bergson remete sua origem ndash e por extensatildeo a das representaccedilotildees que dele nascem ndash agrave
estrutura subjetiva
Esboccedilada a noccedilatildeo de nuacutemero eacute preciso servir-se dela para opor duas espeacutecies de
multiplicidade Quando ouvimos o som de passos agrave porta ou o badalo de sinos podemos
nos representar essa sensaccedilatildeo espacialmente dissociando-os uns dos outros ndash caso em que
por exemplo contamos os passos ou os toques ndash ou recolhemos a impressatildeo qualitativa e
indivisa que o nuacutemero exerce em noacutes Dessa maneira jaacute natildeo dissociamos em partes mas
nossa consciecircncia o recolhe como uma totalidade indivisa ldquoune multipliciteacute confuse de
une vision dans lrsquoespacerdquo atestando a relaccedilatildeo de pressuposiccedilatildeo necessaacuteria entre o nuacutemero e a concepccedilatildeo de
um espaccedilo ideal vocacionado agrave retenccedilatildeo por meio da justaposiccedilatildeo 68
Ou ainda ao afirmar que ldquo[] lrsquoespace est la matiegravere avec laquelle lrsquoesprit construit le nombre le milieu
ougrave lrsquoesprit la placerdquo (BERGSON 2001 p 5763)
105
sensations et de sentiments que lrsquoanalyse seule distinguerdquo (BERGSON 2001 p 5965)
Eis o que permite compreender por intermeacutedio do conceito de nuacutemero que haacute duas
espeacutecies de multiplicidade a dos objetos materiais que formam imediatamente nuacutemero e
a dos fatos de consciecircncia que por constituiacuterem uma multiplicidade natildeo numeacuterica soacute
podem traduzir-se em nuacutemero agraves custas da mediccedilatildeo simboacutelica que faz intervir o espaccedilo69
Como se caracteriza essa multiplicidade natildeo numeacuterica atribuiacuteda aos fatos da
consciecircncia Em primeiro lugar ao contraacuterio da multiplicidade numeacuterica ela se define
pela simplicidade e pela indivisibilidade constituiacuteda pela adiccedilatildeo sucessiva de elementos
em segundo lugar por sua natureza qualitativa e heterogecircnea como tal os sucessivos
acreacutescimos de elementos natildeo tornam essa multiplicidade maior mas provocam mudanccedilas
integrais de natureza no todo (WORMS 2011 p 52)
Eacute a partir dessa multiplicidade natildeo numeacuterica qualitativa simples indivisiacutevel e
heterogecircnea ndash depurada de toda mediaccedilatildeo simboacutelica que implicaria representar o tempo
como um espaccedilo vazio e homogecircneo onde vecircm ter lugar sucessivos estados de consciecircncia
ndash que se poderaacute remontar agrave duraccedilatildeo por uma entrada genuinamente psicoloacutegica e asceacutetica
Por isso Bergson (2001 p 6167) sugere ldquoNous allons donc demander agrave la conscience de
srsquoisoler du monde exteacuterieur et par un vigoreux effort drsquoabstraction de redevenir elle-
mecircmerdquo
Toda a anaacutelise do conceito de nuacutemero teria nos levado ao menos a colocar sob
suspeita a analogia entre multiplicidades numeacutericas e natildeo numeacutericas Isso se deve a termos
compreendido que as multiplicidades natildeo numeacutericas ao admitirem uma transcriccedilatildeo
simboacutelica pressupotildeem a mediaccedilatildeo simboacutelica do espaccedilo ndash condiccedilatildeo de possibilidade da
retenccedilatildeo por justaposiccedilatildeo e simultaneidade A fim de natildeo desertar o campo da experiecircncia
imaginemos um conjunto de corpos materiais Deles podemos dizer que se diferenciam
entre si em face de serem exteriores uns aos outros ocuparem posiccedilotildees diversas entre si no
espaccedilo afinal satildeo mutuamente impenetraacuteveis A fim de que possamos imaginaacute-los o
espaccedilo interveacutem imediatamente pois eles ocupam um certo fundo homogecircneo no seio do
69
Nesse ponto ndash que passamos a aprofundar em seguida concentrando-nos sobre o significado de
multiplicidade natildeo numeacuterica ndash Gilles Deleuze (1966 p 30-31) sintetiza as caracteriacutesticas da distinccedilatildeo entre
multiplicidades numeacuterica e natildeo numeacuterica ldquoLrsquoimportant crsquoest que la deacutecomposition du mixte nous reacutevegravele
deux types de lsquomultipliciteacutersquo Lrsquoune est representeacutee par lrsquoespace (ou plutocirct si nous tenons compte de toutes les
nuances par le meacutelange impur du temps homogegravene) crsquoest une multipliciteacute drsquoexterioriteacute de simultaneiteacute de
juxtaposition drsquoordre de diffeacuterenciation quantitative de diffeacuterence de degreacute une multipliciteacute numeacuterique
discontinue et actuelle Lrsquoautre se preacutesente dans la dureacutee pure crsquoest une multipliciteacute interne de succession
de fusion drsquoorganisation drsquoheacuteteacuterogeacuteneacuteiteacute de discrimination qualitative ou de diffeacuterence de nature une
multipliciteacute virtuelle et continue irreductible au nombrerdquo Por certo Deleuze introduz jaacute aqui as noccedilotildees de
atual e virtual das quais nos ocuparemos apenas mais adiante
106
qual se distinguem Poderemos aplicar a mesma loacutegica a estados de consciecircncia Imaginaacute-
los como corpos impenetraacuteveis uns aos outros destacando-se de um fundo temporal no
qual sucederiam Segundo Bergson fazecirc-lo suporia conceber o tempo como um meio
indefinido e homogecircneo isto eacute como ldquole fantocircme de lrsquoespace obseacutedant la conscience
reacutefleacutechierdquo (BERGSON 2001 p 6774)
Esta seria uma ideia demasiadamente superficial da duraccedilatildeo que no entanto
permite a Bergson enunciar desde logo ainda hipoteticamente duas concepccedilotildees possiacuteveis
de duraccedilatildeo a pura e a impura A primeira define-se como ldquola forme que prend la
succession de nos eacutetats de conscience quand notre moi se laisse vivre quand il srsquoabstient
drsquoeacutetablir une seacuteparation entre lrsquoeacutetat preacutesent et les eacutetats anteacuterieursrdquo (BERGSON 2001 p
6774-75) isto eacute ela se define pela experiecircncia concreta da duraccedilatildeo ndash o profundo sentir
escoar do tempo mas tambeacutem pela continuidade indivisiacutevel entre o que nos representamos
como estados psiacutequicos Que nosso eu se deixe viver ndash para perseguir a foacutermula
bergsoniana agrave la lettre ndash isso implica uma suspensatildeo da representaccedilatildeo o esforccedilo vigoroso
solicitado por uma consciecircncia que se torna ldquoela mesmardquo pura interioridade na
contracorrente da inteligecircncia analiacutetica enfim esforccedilo vigoroso em eximir-se de justapor
partes como quem apreende uma melodia como um todo contiacutenuo natildeo como um
acumulado de notas e tempos
Uma frase musical equivale agrave duraccedilatildeo da consciecircncia na medida em que pode ser
apreendida como um todo contiacutenuo se partes haacute penetraram-se fundiram-se no sentido do
todo ndash sentido qualitativo que seria alterado em sua natureza natildeo soacute em caso de adiccedilatildeo ou
subtraccedilatildeo de uma das partes mas em todo caso de anaacutelise compreendida como clara
distinccedilatildeo entre partes A inadequaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e a sucessatildeo duracional de
estados psiacutequicos origina-se segundo Bergson em uma certa obsessatildeo pela inteligecircncia Eacute
possiacutevel que adoeccedilamos de representaccedilatildeo projetando toda duraccedilatildeo no espaccedilo converte-se
a sucessatildeo em simultaneidade ao contraacuterio de apreender o movimento real e profundo do
durar Como o fundo antropoloacutegico de Les Deux Sources sugeriraacute adiante a doenccedila de que
sofre o homem eacute segundo Lapoujade (2010 p 89) ldquosa normaliteacute mecircme Ce dont il
souffre crsquoest de son intelligence et des lsquorepreacutesentations du reacuteelrsquo qursquoelle impose agrave son
attentionrdquo
A duraccedilatildeo para Bergson pode assumir a imagem de uma frase musical apreendida
em sua integralidade ndash o que supotildee a conservaccedilatildeo e portanto certo niacutevel de memoacuteria deste
todo ndash retenccedilatildeo que jaacute natildeo eacute aprisionada pela representaccedilatildeo espacial como justaposiccedilatildeo ou
simultaneidade como ocorria agraves multiplicidades numeacutericas mas como sucessatildeo pura
107
percebida pela consciecircncia Ele natildeo cessaraacute de retornar a essa imagem musical da duraccedilatildeo
que tatildeo bem se harmoniza em um todo de sentido que acompanha o desenvolvimento de
uma linha meloacutedica em continuidade e heterogeneidade E porque uma melodia natildeo
poderia ser apreendida por uma representaccedilatildeo espacial Porque se em uma partitura
podemos inscrever os signos que nos remetem a certas notas e tempos que compotildeem
como partes no espaccedilo o desenvolvimento de uma linha meloacutedica esta natildeo passaraacute da
projeccedilatildeo espacializada e desnaturada dessa linha que soacute pode efetuar-se na duraccedilatildeo
Mesmo os ritmos as intensidades puras de uma muacutesica soacute podem ser apreendidos pela
experiecircncia simpaacutetica o que significariam nas partituras mesmas as infinitas variaccedilotildees de
allegro ndash como molto allegro allegro vivace allegro moderato allegro pesante ou allegro
maestoso Sabemos que entre eles se passam variaccedilotildees qualitativas mas somos incapazes
de compreender um andamento por meios simboacutelicos por mais vivamente que eles nos
possam sugeri-lo A partitura pode ser o mapa de uma canccedilatildeo mas natildeo pode ser mais que
seu mapa o fluxo duracional contiacutenuo que a efetuaccedilatildeo de uma linha meloacutedica requer para
constituir por muacutetua penetraccedilatildeo um todo de sentido eacute-lhe irredutiacutevel Haveria mais
profundamente que um Bergson matemaacutetico um Bergson muacutesico como uma intuitiva
variaccedilatildeo um Bergson chansonnier
Isso permite definir natildeo apenas a distinccedilatildeo entre duraccedilatildeo concreta (sucessatildeo sem
exterioridade) e tempo homogecircneo sobredeterminado por sua representaccedilatildeo no espaccedilo
(exterioridade sem sucessatildeo) mas chegar ao impasse do movimento o ponto culminante
da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre a realidade e o sentido da duraccedilatildeo Aplicando a ele o
procedimento de divisatildeo do misto eacute possiacutevel notar que a experiecircncia da mobilidade
integra-se por uma componente espacial ndash cada uma das posiccedilotildees sucessivas que um moacutevel
ocupa no espaccedilo ndash e outra duracional ldquola sensation absolument indivisible de mouvement
ou de mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7583) como a que experimentamos ao percebermos
subitamente uma estrela cadente Assim o movimento eacute um misto composto de espaccedilo
percorrido e ato de percorrer sucessivas posiccedilotildees
Os sofismas da escola de Eleia teriam surgido precisamente da confusatildeo das duas
componentes o que leva Zenatildeo a recompor os passos de Aquiles com os da tartaruga
embaralhar as escalas de movimentos simples e indivisiacuteveis desdobrando-os
matematicamente no espaccedilo instituindo desse modo um dos mais antigos paradoxos da
histoacuteria da filosofia A matemaacutetica ou qualquer outra forma de representaccedilatildeo por
simultaneidades por apreender o movimento exclusivamente por paradas imaginaacuterias ndash
afinal o moacutevel natildeo se deteacutem realmente em cada ponto do espaccedilo em que percorre mas
108
passa sem jamais parar ndash deixa de apreender o essencial do movimento para rebatecirc-lo
sobre uma simultaneidade de instantes igualmente imaginaacuterios que natildeo acidentalmente
possuem todas as caracteriacutesticas dos corpos materiais satildeo mutuamente impenetraacuteveis e
ocupam lugares diferentes no espaccedilo o que implica uma apreensatildeo simultacircnea desdobrada
no espaccedilo e natildeo sucessiva como totalidade indivisiacutevel Trata-se pois de uma
multiplicidade com exterioridade reciacuteproca e sem sucessatildeo tal como ocorreria com coisas
no espaccedilo Se Zenatildeo pode supor paradas imaginaacuterias de um moacutevel que passa sem jamais se
deter de fato em instante ou lugar algum eacute devido agrave espacializaccedilatildeo e agrave loacutegica de
simultaneidades implicada no proacuteprio ato de anaacutelise do ato do movimento que resulta em
desnaturar a mobilidade em trajetoacuteria descrita e o ato do movimento como ocorrido em
uma representaccedilatildeo espacial do tempo ora tatildeo vazio e homogecircneo quanto o espaccedilo
Natildeo nos enganemos esse tempo vazio homogecircneo e sem qualidades natildeo eacute apenas
o tempo de Zenatildeo mas tambeacutem a ciecircncia natildeo pode passar-se de um tempo que se limita a
contar simultaneidades como contamos a passagem do tempo segundo a mediccedilatildeo espacial
do deslocamento dos ponteiros de um reloacutegio70
Por essa razatildeo toda a mecacircnica precisa
erigir-se sobre um sistema referencial que para definir o tempo exige a simultaneidade de
intervalos de tempo iguais tanto no movimento uniforme quanto no movimento variado
Como distinguir movimento e duraccedilatildeo de suas simbolizaccedilotildees O que permite
distinguir por exemplo o movimento da linha que o moacutevel que o executa descreve no
espaccedilo Tanto a duraccedilatildeo quanto o movimento apresentam-se agrave nossa consciecircncia como
progressos sempre em vias de formaccedilatildeo pois movimento e duraccedilatildeo satildeo siacutenteses mentais
natildeo coisas natildeo eacute possiacutevel assimilar a duraccedilatildeo ndash multiplicidade heterogecircnea indistinta e
dessemelhante para com o nuacutemero ndash ao espaccedilo que comporta apenas multiplicidades
distintas (BERGSON 2001 p 8089) de maneira tal que a duraccedilatildeo implica multiplicidade
sem quantidade que soacute conteacutem o nuacutemero em potecircncia
Essa multiplicidade existe vive e dura como pura sucessatildeo sem exterioridade de
partes organizando-se penetrando-se formando uma continuidade indivisa que se
enriquece e muda agrave medida em que a experiecircncia se acumula na profundidade do eu
podendo a todo momento refratar-se no ponto em que nosso eu toca o mundo exterior de
forma superficial ela se modifica e desnatura ao traduzir-se em linguagem71
Enfim a vida
70
ldquo[] la science nrsquoopegravere sur le temps et le mouvement qursquoagrave la condition drsquoen eacuteliminer drsquoabord lrsquoeacutelement
essentiel et qualitatif ndash du temps la dureacutee et du mouvement la mobiliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 7786) 71
ldquo[] toute sensation se modifie en se reacutepeacutetant et [] si elle ne me paraicirct pas changer du jour au lendemain
crsquoest parce que je lrsquoaperccedilois maintenant agrave travers lrsquoobjet qui en est cause agrave travers le mot qui la traduitrdquo
(BERGSON 2001 p 8798)
109
do proacuteprio sentimento que se desenvolve organicamente e muda sem cessar deve-se agrave
continuidade da duraccedilatildeo que conserva a chave da proacutepria liberdade e cujos momentos se
penetram e fundem em um todo de sentido Da mesma forma haacute uma vida obscura das
ideias e Bergson (2001 p 89100) admite que natildeo raro nos apegamos agravequelas que
podemos explicar com mais dificuldade
O espaccedilo que aplicado agrave vida da duraccedilatildeo ndash seu ser e seu sentido ndash a desnatura em
siacutembolos todavia natildeo constitui pura negatividade Uma vez que os animais provavelmente
natildeo representam como os homens Bergson entrevecirc na intuiccedilatildeo do espaccedilo homogecircneo uma
espeacutecie de preparaccedilatildeo para a vida social coalescente no Essai com o olhar avaliador
impessoal e afeto ao inerte analiacutetico do eu superficial Esta tendecircncia pela qual nos
representamos distintamente a exterioridade das coisas e a homogeneidade do meio
espacial em que se situam ldquoest la mecircme qui nous porte agrave vivre en commun et agrave parlerrdquo
(BERGSON 2001 p 91103) deve estar relacionada portanto agraves proacuteprias condiccedilotildees do
viver-junto Bergson observa que quanto mais completamente se realizem as condiccedilotildees da
vida social mais o eu superficial esconde o primeiro e mais e mais os estados que antes se
penetravam na profundidade iacutentima da consciecircncia satildeo exteriorizados e transformados em
representaccedilotildees distintas separados de noacutes Nessa medida o inumeraacutevel em profundidade ndash
que Lapoujade (2010 p 39) denomina ldquoun nombre confus ou obscur de la dureacuteerdquo ndash
conteacutem o nuacutemero em potecircncia nuacutemero efetuado por intermeacutedio da representaccedilatildeo O que
finalmente a representaccedilatildeo o siacutembolo a inteligecircncia e ndash para dizecirc-lo em uma soacute palavra ndash
a intervenccedilatildeo do espaccedilo na pura duraccedilatildeo separa de noacutes eacute o acesso agrave realidade da duraccedilatildeo
em profundidade acesso a esse niacutevel de nosso eu que corresponde a ldquocelui qui sent et se
passionne celui qui deacutelibegravere et se deacutecide [] une force dont les eacutetats et modifications se
peneacutetrent intimement []rdquo (BERGSON 2001 p 8393) e que jaacute natildeo mede a duraccedilatildeo mas
a sente sede subjetiva da liberdade
Dito isso pudemos compreender que a realidade e o todo de sentido do tempo que a
duraccedilatildeo implica decorrem de uma experiecircncia interior concreta apenas ela em primeiro
momento pode franquear-nos o acesso agrave duraccedilatildeo como totalidade orgacircnica jamais
totalizaacutevel pois aberta agrave sucessatildeo e agrave penetraccedilatildeo reciacuteproca que a enriquece continuamente
na fusatildeo de ldquomille sensations sentiments ou ideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p 1513)
Se pudemos demonstrar a realidade e o sentido do tempo a partir do conceito de
duraccedilatildeo desprendida diretamente de uma experiecircncia interior cujo esforccedilo de ascese
Bergson natildeo cessa solicitar agrave consciecircncia eacute preciso amplificar essas conclusotildees em dois
110
pontos ao mesmo tempo em que avanccedilamos a anaacutelise na direccedilatildeo da passagem do ser
presente ao ser do passado O primeiro deles diz respeito ao estatuto marcadamente
presente da temporalidade desvelada pela experiecircncia concreta de duraccedilatildeo seria preciso
descobrir no ser presente e na atualidade que ela implica o ser do passado ainda que
momentaneamente dado como siacutentese interior a uma consciecircncia Por outro lado o
segundo ponto de ampliaccedilatildeo diz respeito ao estatuto psicoloacutegico da experiecircncia da
duraccedilatildeo Ao produzir uma distinccedilatildeo tatildeo precisa entre multiplicidades quantitativa e
qualitativa numeacuterica e natildeo numeacuterica e enfim entre tempo e espaccedilo eacute natural pensar que
Bergson exige uma consciecircncia preacutevia agrave constituiccedilatildeo da experiecircncia concreta ndash quando em
tudo trata-se justamente do inverso
sect 3 DO SER PRESENTE AO SER DO PASSADO
Em tudo o que dissemos sobre a duraccedilatildeo como experiecircncia psicoloacutegica pudemos
discernir dois tipos de multiplicidades uma numeacuterica outra natildeo numeacuterica Para
compreender como a experiecircncia duracional assinala jaacute uma passagem do ser presente ao
ser do passado ndash ainda que permaneccedilamos por ora no campo das siacutenteses da consciecircncia ndash
eacute necessaacuterio retomarmos dois tipos de conservaccedilatildeo que ocorrem uma no campo das
multiplicidades numeacutericas envolvendo objetos atuais e outra no das multiplicidades natildeo
numeacutericas envolvendo o virtual
Retornemos ao que Bergson explica sobre o mais simples ato de contar Viacuteamos
nesse sentido que uma tal siacutentese soacute eacute possiacutevel se supusermos uma consciecircncia que se
representa unidades precariamente indivisiacuteveis e absolutamente semelhantes dispostas no
espaccedilo de maneira descontiacutenua no entanto essa siacutentese mental natildeo pode reduzir-se a uma
repeticcedilatildeo nua das unidades caso contraacuterio seria impossiacutevel derivar o nuacutemero de uma soma
de unidades Para que isso seja factiacutevel eacute preciso representar as unidades como uma
multiplicidade simultacircnea e justapondo todas as unidades contemporaneamente no espaccedilo
efetuar a siacutentese que pela retenccedilatildeo de todas essas unidades pode apreendecirc-las de uma soacute
vez
Algo aparentemente semelhante parece operar no seio da duraccedilatildeo mas com
caracteriacutesticas que demonstramos serem absolutamente diferentes a organizaccedilatildeo de
estados de consciecircncia afecccedilotildees sensaccedilotildees colorantes ou musicais supotildeem igualmente
uma consciecircncia que jaacute natildeo efetua uma siacutentese mas opera deixando um instante penetrar
111
no outro indefinidamente estamos portanto diante do sentido sempre em vias de
formaccedilatildeo de uma multiplicidade de fusatildeo o que nos coloca frente a frente com o misteacuterio
de sua continuidade Percebemos facilmente que as multiplicidades numeacutericas satildeo
definidas pelas diferenccedilas de grau a adiccedilatildeo a subtraccedilatildeo e as siacutenteses representativas
envolvidas em uma mudanccedila de nuacutemero natildeo alteram sua natureza intimamente divisiacutevel
Entre uma unidade e outra continua a haver uma diferenccedila de grau que poderia sem
dificuldades ser resumida em uma diferenccedila na posiccedilatildeo que cada unidade ocupa no
espaccedilo o que implicaria sua justaposiccedilatildeo e simultaneidade Contudo o que assegura a
continuidade das multiplicidades qualitativas e sua compenetraccedilatildeo reciacuteproca em que toda
miacutenima variaccedilatildeo acarreta uma diferenccedila de natureza ndash vale dizer ndash uma alteraccedilatildeo
diferencial da curvatura da integral que a definiria
Eacute na obscura noccedilatildeo de continuidade que pela primeira vez viraacute inserir-se uma
necessaacuteria conexatildeo entre duraccedilatildeo e memoacuteria um dos conceitos que forjam o fio diretor da
presente pesquisa Talvez jaacute seja possiacutevel pressentir na ideia de continuidade da duraccedilatildeo a
necessidade de uma espeacutecie de memoacuteria ldquoil srsquoen faut que tous les eacutetats de conscience
viennent se mecircler agrave leur congeacutenegraveres comme des gouttes de pluie agrave lrsquoeau drsquoun eacutetangrdquo
escreve Bergson (2001 p 110-111125) A continuidade implica que o lago como a
duraccedilatildeo se acumule continuamente e amplie-se ao fundir-se no conjunto
Assim como eacute necessaacuterio reter unidades para contaacute-las e o fazemos jaacute no espaccedilo
natildeo seria preciso conservar os estados aniacutemicos anteriores como que agraves costas do
movimento invenciacutevel da sucessatildeo em direccedilatildeo ao devir Caso contraacuterio a ideia de
sucessatildeo passaria a ser para noacutes exclusivamente uma tediosa repeticcedilatildeo do presente como
apreenderiacuteamos uma frase musical ou a profundidade de um sentimento sem supor que a
continuidade implica jaacute uma ligaccedilatildeo entre presente e passado como registros da
realidade Mas se o conservamos seraacute da mesma forma como contamos justapondo
estados de consciecircncia no espaccedilo
Nada do que dissemos antes e no limite nenhum texto de Bergson autoriza uma
tal interpretaccedilatildeo Isso implicaria supor a existecircncia dos estados de consciecircncia como
corpos materiais impenetraacuteveis uns aos outros quando se trata precisamente de evitar
representaacute-los como desdobrando-se lado a lado em um tempo vazio homogecircneo e sem
qualidades ndash que finalmente natildeo passaria de uma representaccedilatildeo bastarda da duraccedilatildeo real
que apraz agrave inteligecircncia e agrave utilidade De uma perspectiva global todo o movimento de
paulatina suspensatildeo da representaccedilatildeo e da inteligecircncia nos dois primeiros capiacutetulos do
Essai tende a este limite conceber uma continuidade independente de coordenadas
112
espaciais apreendida conservada e integrada em uma totalidade movente de sentido
definida por sua abertura agrave sucessatildeo por um lado e dizendo respeito exclusivamente agrave
duraccedilatildeo que lhe serve de esteio imanente por outro
Se quisermos aproveitar a forccedila imageacutetica do exemplo da frase musical proposta
por Bergson concluiremos prontamente pela impossibilidade de justaposiccedilatildeo para
apreensatildeo de totalidades contiacutenuas de qualidades intensivas ou de diferenccedilas de natureza
Como Freacutedeacuteric Worms bem observa ao lado de uma passividade do espiacuterito que constitui
o iacutendice de receptividade da sensaccedilatildeo uma vez suspenso o ato de representaccedilatildeo deve
surgir um novo sujeito em profundidade paradoxalmente pessoal e impessoal capaz de um
ato de retenccedilatildeo que opera ldquoa passagem de uma passividade ou de um efeito sensiacutevel a
outrordquo (WORMS 2011 p 71) Decerto uma diferenccedila abissal persiste entre ouvir uma
nova nota que distinguimos claramente por um esforccedilo de anaacutelise e apreendecirc-la no
conjunto indivisiacutevel de uma melodia Neste caso ldquoa nota natildeo eacute somente lsquopassadarsquo ela
passou nas outras notas natildeo ocorreu apenas uma sucessatildeo mas uma continuaccedilatildeo uma
conservaccedilatildeo e uma integraccedilatildeordquo que se produziram no tempo e natildeo como ldquoconstruccedilotildees
abstratas de uma consciecircncia reflexa (ou de um pensamento exterior a seu conteuacutedo) uma
vez que impotildeem seu efeito a seu conteuacutedo mesmo como um sentido imanente ou uma
unidade indivisiacutevelrdquo (WORMS 2011 loc cit) Nesse aspecto Worms eacute ainda uma vez
categoacuterico ao afirmar que este ato de conservaccedilatildeo ldquoparece evocar a memoacuteriardquo (Idem
ibidem loc cit) A noccedilatildeo de continuidade interna agrave definiccedilatildeo de duraccedilatildeo permite-nos
dizer como vimos que nesse caso evocar a memoacuteria significa jaacute forccedilosamente
pressupocirc-la
Natildeo por outra razatildeo Gilles Deleuze tenderaacute a enxergar na continuidade implicada
pela duraccedilatildeo a imagem da memoacuteria ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire conscience
liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo (DELEUZE
1966 p 45) A foacutermula deleuziana nesse aspecto natildeo poderia dar testemunho mais fiel do
bergsonismo Confirmando a adequaccedilatildeo da interpretaccedilatildeo deleuziana Bergson implicaraacute
mais claramente duraccedilatildeo e memoacuteria em LrsquoEacutenergie Spirituelle (1919) ldquoToute conscience
est donc meacutemoire ndash conservation et accumulation du passeacute dans le preacutesentrdquo (BERGSON
2001 p 81805) No entanto natildeo seria preciso ir tatildeo longe jaacute em 1896 em Matiegravere et
Meacutemoire era possiacutevel ler ldquoBref la meacutemoire sous ces deux formes en tant qursquoelle
recouvre drsquoune nappe de souvernirs un fond de perception immeacutediate et tant aussi qursquoelle
contracte une multipliciteacute de moments []rdquo (BERGSON 2001 p 18431) Da mesma
forma Vladimir Jankeacuteleacutevitch definia a memoacuteria natildeo como a obstinaccedilatildeo de nossas
113
experiecircncias em sobreviverem a si mesmas mas a partir da continuidade e da penetraccedilatildeo
muacutetua dos estados psicoloacutegicos ldquoelle est ce qui continue les uns agrave travers les autres les
innombrables contenus dont lrsquoensemble forme agrave tout moment lrsquoeacutetat actuel de notre
personne inteacuterieurerdquo (JANKEacuteLEacuteVITCH 2008 p 07)
Eis o que poderia bastar para comprovar que desde o Essai nem tudo se reduz ao
atual e ao presente na ideia de duraccedilatildeo embora a entrada bergsoniana pela pesquisa das
sensaccedilotildees arriscasse em princiacutepio iludir-nos do contraacuterio Descobrir o fundo mnemocircnico
no signo da continuidade da duraccedilatildeo coloca-nos de suacutebito na perspectiva da transiccedilatildeo
ontoloacutegica entre ser presente e ser do passado Natildeo se pode construiacute-la adequadamente no
entanto sem compreender de que modo nosso eu toca a superfiacutecie do real ou como
Bergson prefere colocar o problema que serve de pedra de toque agrave escritura de Matiegravere et
Meacutemoire como se daacute ldquoa relaccedilatildeo do corpo com o espiacuteritordquo Trata-se de saber se poderemos
tambeacutem aiacute descobrir uma passagem entre ser presente (atual) e ser do passado (virtual)
Eis a questatildeo pela qual se deve orientar o proacuteximo segmento de nossa pesquisa
Desde as primeiras linhas de Matiegravere et Meacutemoire engendra-se um movimento
conceitual que define um campo povoado de exterioridades onde tudo parece comeccedilar em
absoluto Como um duplo do gesto do Essai que solicitava um vigoroso esforccedilo agrave
consciecircncia para abolir tudo exceto sua interioridade suspendendo as representaccedilotildees
desde o iniacutecio de seu livro de 1896 Bergson pede que finjamos nada conhecer sobre as
teorias da mateacuteria e do espiacuterito Essa suspensatildeo implica afinar ingenuidade e intuiccedilatildeo que
natildeo estatildeo mais voltadas aos estados de consciecircncia mas abrem-se sobre um campo infinito
de imagens que digamos logo constitui em Bergson o todo do universo72
ldquoEacute preciso olhar
[] como se fosse a primeira vezrdquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 136)
De seu turno Freacutedeacuteric Worms natildeo hesita em afirmar que o primeiro capiacutetulo de
Matiegravere et Meacutemoire ldquoDe la seacutelection des images pour la repreacutesentation du corpsrdquo funda-se
sobre um princiacutepio duplo de imanecircncia e diferenccedila ldquoimanecircncia (ou pertenccedila) das imagens
percebidas agrave realidade do mundo diferenccedila (de aspecto ou de forma devida a nossas
necessidades ou a nossa accedilatildeo) entre as imagens percebidas e a realidade do mundordquo
(WORMS 2011 p 135) Todavia para conjugar a imanecircncia das imagens e a diferenccedila
72
Seguimos nesse aspecto a interpretaccedilatildeo de Prado Juacutenior (1989 p 117) sobre a passagem do Essai a
Matiegravere et Meacutemoire como uma passagem do interno ao externo ldquoO Essai isolava a consciecircncia de toda
exterioridade para captar-lhe a duraccedilatildeo interna mostrando nela o selo da liberdade Mas a descoberta ficava
limitada agrave esfera que lhe servia de horizonte a subjetividade humana finita Agora eacute necessaacuterio ampliar o
campo da Presenccedila para aleacutem dos estreitos limites da presenccedila interna e verificar o modo de inserccedilatildeo da
liberdade no interior do serrdquo
114
que a percepccedilatildeo engendra eacute preciso antes de tudo gerar ndash natildeo um sujeito portador da
consciecircncia mas o genuiacuteno sujeito do campo transcendental bergsoniano o corpo73
Bergson propotildee a suspensatildeo do intelecto ao mesmo tempo em que reorienta a
intuiccedilatildeo do interno na direccedilatildeo do externo ndash natildeo passariacuteamos tambeacutem aqui do psicoloacutegico
em direccedilatildeo ao ontoloacutegico Momentaneamente com Bento Prado Juacutenior jaacute podemos
pressenti-lo ldquoA passagem da psicologia agrave metafiacutesica eacute uma passagem do lsquointeriorrsquo ao
lsquoexteriorrsquo que ao mesmo tempo elimina a oposiccedilatildeo absoluta entre os dois termos
fazendo-os nascer de uma familiaridade mais profundardquo (PRADO JUacuteNIOR 1989 p 119)
Com essa suspensatildeo dos conceitos preacute-formados e com a reorientaccedilatildeo de nossa tensatildeo para
o fora tudo o que Bergson eacute capaz de constatar logo se transforma em uma surpreendente
descriccedilatildeo do universo em termos de imagens ldquoMe voici donc en preacutesence drsquoimages au
sens plus vague ougrave lrsquoon puisse prendre ce mot images perccedilues quand jrsquoouvre mes sens
inaperccedilus quand je les fermerdquo (BERGSON 2001 p 16911)
Desenvolvendo esse olhar exterior que permite compreender o universo como um
conjunto de imagens eacute possiacutevel perceber a dinacircmica que parece envolvecirc-las
indistintamente ldquoToutes ces images agissent et reacuteagissent les unes sur les autres dans
toutes leurs parties eacuteleacutementaires selon des lois constantes []rdquo (BERGSON 2001 p
16911) Uma dentre essas imagens destaca-se do conjunto embora tenha sua gecircnese nele
ldquoce que je ne la connais pas seulement du dehors par des perceptions mais aussi du dedans
par des affections crsquoest mon corpsrdquo (Idem ibidem loc cit) e passando em revista a cada
uma de suas afecccedilotildees eacute possiacutevel perceber que provenientes de estiacutemulos de fora elas
contecircm como que convites a agir sobre certa regiatildeo do real das imagens Isso implicaraacute que
se todas as imagens exteriores parecem submeter-se homogeneamente agraves leis da natureza
de tal forma que agindo umas sobre as outras nada de novo acrescentariam no mundo o
corpo-imagem bergsoniano percebido do interior por meio de afecccedilotildees sensaccedilotildees
sentimentos e lembranccedilas como o modelo de outros corpos-imagens aparece ao mesmo
tempo como centro de accedilatildeo sobre as demais imagens e a um soacute tempo como centro de
indeterminaccedilatildeo74
Se as afecccedilotildees e sensaccedilotildees percepcionadas nada mais satildeo do que accedilotildees e reaccedilotildees
internas a esse conjunto de imagens tudo o que compotildee um corpo ndash dos nervos aferentes
73
ldquoNatildeo haacute outro sujeito senatildeo o corpordquo afirma Worms (2011 p 145) ao tratar da gecircnese da percepccedilatildeo em
Bergson 74
ldquoTout se passe comme si dans cet ensemble drsquoimages que jrsquoappelle lrsquounivers rien ne se pourrait produire
de reacuteellement nouveau que par lrsquointermeacutediaire de certaines images particulieacuteres dont le type mrsquo est fourni
par mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p 17012)
115
ao ceacuterebro como centros organizados de accedilatildeo e indeterminaccedilatildeo ndash bem como tudo o que
vindo de fora produz nele uma afecccedilatildeo constituem partes integrantes do conjunto de
imagens do universo75
Nessa medida se interpretamos este corpo-imagem como um
centro de accedilatildeo sobre as demais imagens compreenderemos a sua singularidade pragmaacutetica
(WORMS 1997 p 21) incapaz de fazer nascer uma representaccedilatildeo como desdobramento
ideal do entorno de imagens Talvez seja importante perceber que Bergson utiliza a noccedilatildeo
de imagem ndash algo que seria menos que uma coisa e mais que uma representaccedilatildeo ndash
justamente a fim de assinalar que esse campo transcendental constitui-se sem sujeito ou
objeto ndash objeto para um sujeito A realidade das imagens tomada no princiacutepio do campo
transcendental designa apenas potenciais de um corpo-imagem e das imagens que fazem
parte de seu mundo circundante ao mesmo tempo em que o integram em sua estrutura
imanente de realidade
Apenas em meio a esse universo de imagens eacute que se poderaacute distinguir o proacuteprio
corpo sua singularidade sensiacutevel eacute o que conservaraacute uma percepccedilatildeo em potecircncia na
medida em que o corpo constitui uma imagem que banhada de outras imagens difere
delas em grau na medida em que natildeo se o conhece exclusivamente de fora Eacute apenas nesse
niacutevel que um corpo-imagem pode ser considerado centro de um sistema mais abrangente
de imagens Natildeo haacute representaccedilatildeo outrossim porque na medida em que o corpo integra o
universo de imagens natildeo haacute qualquer desdobramento de realidade Por isso do ponto de
vista loacutegico o ceacuterebro natildeo pode ser a sede de representaccedilotildees do mundo afinal o que a
hipoacutetese inicial das imagens deseja eacute obstruir toda duplicaccedilatildeo eacute manter-se fiel agrave imanecircncia
de uma soacute estrutura de realidade composta por imagens76
Eacute certo que Bergson observa as
imagens transmitirem movimentos de uma a outra das imagens exteriores ao corpo-
imagem sendo impossiacutevel supor que haja mais nesse corpo ndash seja uma representaccedilatildeo de
uma imagem com a qual natildeo tem contato ou mesmo uma representaccedilatildeo do todo ndash do que
aquilo que constitui o conteuacutedo imediato desse corpo as modificaccedilotildees produzidas pelas
images environnantes e aquilo que o corpo-imagem lhes devolve em termos de
movimentos
75
ldquoMon corps est donc dans lrsquoensemble du monde mateacuteriel une image qui agit comme les autres images
recevant et rendant du mouvement avec cette seule diffeacuterence peut-ecirctre que mon corps paraicirct choisir dans
une certaine mesure la maniegravere de rendre ce qursquoil reccediloitrdquo (BERGSON 2001 p 17114) e ainda ldquoMon
corps objet destineacute agrave mouvoir des objets est donc un centre drsquoactionrdquo (BERGSON 2001 p 17214) ldquoO
corpo eacute uma imagem como as outrasrdquo atesta Worms (2011 p 140) 76
ldquoIl faut donc extirper tout de suite [] le vice logique de la thegravese des savants parce qursquoelle implique une
thegravese ontologique ou meacutetaphysique celle de lrsquoexistence drsquoun deuxiegraveme niveau de realiteacute [] celui de la
reacutepresentationrdquo (WORMS 1997 p 27)
116
Logo se percebe que o corpo eacute passivo e ativo sensoacuterio e motor Na medida em que
haacute universo de imagens exteriores corpo-imagem ndash compreendido como imagem que
experimento por dentro ndash e uma seacuterie de imagens particulares decalcadas do universo
exterior por esse corpo-imagem veremos que interveacutem um terceiro conjunto um conjunto
de imagens particulares em razatildeo de seu contato com o corpo Ainda aqui natildeo haacute nenhuma
interioridade representaccedilatildeo ou desdobramento do real universo de imagens corpo-
imagem e conjunto particular de imagens para um corpo pertencem a uma soacute estrutura de
realidade Notamos outrossim que eacute a accedilatildeo de um corpo sobre as imagens que o rodeiam
e nas quais ele incessantemente se banha que orienta certa ldquopercepccedilatildeordquo o fato de que
certo conjunto de imagens eacute para um corpo um conjunto particular recortado do todo de
imagens Contudo natildeo se produz uma gecircnese adequada da percepccedilatildeo sem saber como ela
estaacute ligada a essa destinaccedilatildeo praacutetica do corpo
Tomando-os no campo transcendental viacuteamos que eacute a accedilatildeo e certo grau de
indeterminaccedilatildeo orgacircnica ndash que introduz o novo ndash que permite afirmar certa situaccedilatildeo
privilegiada do corpo em relaccedilatildeo agraves outras imagens Nesse sentido Bergson deduz a
relaccedilatildeo entre corpo e universo de imagens definida simbolicamente por um conjunto
particular de imagens decalcado do todo das muacuteltiplas vias de accedilatildeo possiacuteveis para um
corpo77
Tais possiacuteveis escapam agrave determinaccedilatildeo riacutegida da influecircncia das outras imagens
mas relacionam-se imediatamente agrave accedilatildeo real Com efeito o corpo decide entre vaacuterios
procedimentos materialmente possiacuteveis e esta decisatildeo eacute orientada pelas necessidades
praacuteticas e vantagens que esse corpo-imagem pode obter das imagens que o circundam
responde portanto agrave utilidade e agrave vida desenhando uma relaccedilatildeo pragmaacutetica entre corpo e
imagens circundantes78
Contudo como um corpo poderia fazecirc-lo sem jaacute se representar
esses possiacuteveis Como imagens sugerem vantagens a um corpo A vantagem ou a utilidade
praacutetica eacute decalcada das imagens circundantes pelo corpo ao passo em que tais imagens as
desenham superficialmente sobre a face que elas voltam para um corpo-imagem como se
emitissem signos que adquirissem para ele um sentido vital Os desenhos superficiais
desses potenciais de accedilatildeo adquirem um sentido que natildeo revela a totalidade da relaccedilotildees de
um dado corpo no universo de imagens de que participa mas prefiguram objetivamente um
ponto de vista que o enriquece e que o faz tomar parte em um conjunto particular de
77
ldquo[] si mon corps est un objet capable drsquoexercer une action reeacutelle et nouvelle sur les objets qui lrsquoentourent
il doit occuper vis-agrave-vis drsquoeux une situation privileacutegieacuteerdquo (BERGSON 2001 p 17214-15) 78
Freacutedeacuteric Worms (1997 p 31) reforccedila essa relaccedilatildeo entre os possiacuteveis da accedilatildeo e a utilidade vital ldquo[] ces
possibles ne sont pas des possibles abstraits ils sont rapporteacutes agrave lrsquoaction crsquoest-agrave-dire agrave la vie et au besoin et
non au choix purrdquo
117
imagens Poreacutem como esse conjunto de imagens ldquointeressantesrdquo objetos para um corpo
ao passo em que estaacute sujeito agrave sua accedilatildeo se desenha como tal Natildeo encontrariacuteamos aqui
uma evocaccedilatildeo da proacutepria percepccedilatildeo como conjunto de objetos para um corpo decalcado do
campo transcendental
Os signos que certa imagem interessante emite satildeo variaacuteveis em relaccedilatildeo ao corpo
Bergson observa que essa variaccedilatildeo se deve sobretudo agrave variaccedilatildeo de uma relaccedilatildeo de
distacircncia que acontece na pura exterioridade79
Eis o que permite entrever o primado que o
bergsonismo concede agrave relaccedilatildeo de distacircncia a um soacute tempo espacial e pragmaacutetica em
relaccedilatildeo aos objetos sobre toda qualidade sensiacutevel Ao mesmo tempo em que as qualidades
sensiacuteveis variam em funccedilatildeo da distacircncia ldquoassegurando os objetos contra a accedilatildeo imediata
de meu corpordquo os objetos que cercam esse corpo refletiriam a sua accedilatildeo possiacutevel sobre eles
Por essa razatildeo haveria uma relaccedilatildeo de correspondecircncia simboacutelica entre corpo e um
conjunto particular de imagens circundantes que Worms (1997 p 33) resume na imagem
de um ldquoreflet sans regardrdquo na falta de um sujeito desse corpo-a-corpo entre imagens que
natildeo eacute mais que uma relaccedilatildeo de exterioridade pura ldquocomme si lrsquoobjet de la vision en
preacuteceacutedait le sujetrdquo e no entanto tudo o que vimos designa um universo jaacute organizado pela
accedilatildeo do corpo Todavia resta explicar como as coisas podem por si mesmas adquirir um
sentido
Isso se deve agrave correspondecircncia real entre os movimentos concretos que ocorrem no
sistema nervoso e a exterioridade das coisas Eacute preciso provar que a sede da percepccedilatildeo eacute
mais o universo de imagens que o interior de um corpo que tanto o decalque das imagens
pelo recorte perceptivo operado no universo de imagens como o reflexo que as imagens
que o circundam oferecem de suas accedilotildees possiacuteveis pertence ao proacuteprio campo de imagens
Trata-se enfim de precisar o lugar da percepccedilatildeo na realidade A experiecircncia pela qual
Bergson procura demonstraacute-lo eacute a do corte de nervos aferentes do sistema ceacuterebro-
espinhal suprimindo assim a percepccedilatildeo Para compreender o que se passou
reconsideremos os trecircs sistemas de imagens universo conjunto de imagens circundantes e
corpo-imagem Cada um deles permanece o que era antes A uacutenica diferenccedila estaacute no fato
de que a ligaccedilatildeo entre corpo e mundo foi seccionada isto eacute jaacute natildeo eacute possiacutevel a um corpo
decalcar por meio do sistema sensoacuterio-motor os movimentos ocorram eles em qualquer
regiatildeo do universo de imagens Por essa razatildeo Bergson (2001 p 17316) conclui que isso
79
ldquo[] jrsquoobserve que la dimension la forme la couleur mecircme des objets exteacuterieurs se modifient selon que
mon corps srsquoen approche ou srsquoen eacuteloigne [] que cette distance elle-mecircme repreacutesente surtout la meacutesure dans
laquelle les corps environnants sont assureacutes en qualque sorte contre lrsquoaction immeacutediate de mon corpsrdquo
(BERGSON 2001 p 17215)
118
soacute pode significar que a percepccedilatildeo traccedila no conjunto de imagens ldquocomo uma sombra ou
um reflexordquo as accedilotildees possiacuteveis de um corpo Eis o que permitiraacute definir a mateacuteria
provisoriamente como ldquolrsquoensemble drsquoimagesrdquo e a percepccedilatildeo como ldquoces mecircmes images
rapporteacutees agrave lrsquoaction possible drsquoune certaine image determineacute mon corpsrdquo (BERGSON
2001 p 17317) Isso natildeo apenas prova a existecircncia independente das imagens em relaccedilatildeo
agrave toda percepccedilatildeo consciente mas permite deduzir que a percepccedilatildeo eacute funccedilatildeo das imagens
de seus movimentos reais enfim da mateacuteria
Se pudemos compreender a gecircnese da percepccedilatildeo no universo de imagens e em que
medida os movimentos reais satildeo efetivamente percepcionados fizemo-lo como um estaacutegio
necessaacuterio para entrever a passagem entre ser presente e ser do passado na proacutepria
percepccedilatildeo Ateacute aqui brindamo-nos com uma percepccedilatildeo impessoal natildeo-subjetiva e
correspondente aos movimentos materiais A fim de encontrar no campo perceptivo o
ponto mais claro em que vem inserir-se a memoacuteria eacute indispensaacutevel que compreendamos a
gecircnese da consciecircncia isto eacute eacute preciso investigar se e como as imagens podem dar conta
de uma percepccedilatildeo consciente Conveacutem lembrar que realizamos com Bergson o
contramovimento do Essai vamos do exterior ao interior a fim de compreender como uma
memoacuteria pode introduzir-se nas percepccedilotildees mais imediatas naquilo que parece mais atual
e dessa forma favorecer a passagem que visamos a construir do atual em direccedilatildeo ao
virtual nos sucessivos cruzamentos entre registros psicoloacutegico e ontoloacutegico
Pode-se adiantar que para engendrar a consciecircncia de um campo de imagens
Bergson precisaraacute deduzir toda experiecircncia sensorial da accedilatildeo do corpo pela mediccedilatildeo do
ceacuterebro ndash que natildeo a produz ndash fazendo intervir uma teoria da percepccedilatildeo pura (WORMS
1997 p 37)
De tudo o que viacuteamos especialmente da experiecircncia do corte de nervos aferentes
do sistema ceacuterebro-espinhal eacute possiacutevel deduzir que o ceacuterebro e tal sistema permanecem
materiais constituem como partes integrantes do corpo-imagem tambeacutem eles imagens e
desempenham uma funccedilatildeo de mediaccedilatildeo entre os movimentos da mateacuteria e a accedilatildeo possiacutevel
de nosso corpo sobre ela o que designa a percepccedilatildeo Eacute possiacutevel perceber ainda que essa
funccedilatildeo mediadora origina uma seleccedilatildeo possiacutevel que daacute ao corpo um conjunto de imagens
circundantes sobre o qual ele poderia agir o que implica reconhecer que a accedilatildeo organiza a
seleccedilatildeo das imagens e de consequecircncia a proacutepria percepccedilatildeo Nesse patamar Bergson
adianta uma tese de LrsquoEacutevolution Creacuteatrice afirmando que entre os extremos da seacuterie
animal o sistema nervoso seraacute construiacutedo a fim de engendrar a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo e
119
inibir o automatismo80
Se a percepccedilatildeo estaacute fundada neste sistema orientado para a accedilatildeo
seria possiacutevel estender essa hipoacutetese agrave percepccedilatildeo ndash percebemos a fim de agir e agimos
com um grau cada vez maior de indeterminaccedilatildeo Dela Bergson deduziraacute a necessidade de
uma percepccedilatildeo consciente
No iniacutecio da seacuterie animal perceberemos que a percepccedilatildeo reduz-se a um simples
contato ao qual se segue imediatamente uma resposta organizada quase como um impulso
mecacircnico que mimetizasse na mateacuteria organizada as accedilotildees e reaccedilotildees de imagens materiais
umas sobre as outras contudo agrave medida em que a indeterminaccedilatildeo insere-se entre contato-
excitaccedilatildeo e accedilatildeo do corpo correspondente a reaccedilatildeo torna-se mais incerta dando mais lugar
agrave hesitaccedilatildeo e aumentando o intervalo entre a accedilatildeo possiacutevel do animal e os objetos
interessantes com efeito os sentidos permitem ir cada vez mais longe Por isso Bergson
(2001 p 18329) escreveraacute que ldquola perception dispose de lrsquoespace dans lrsquoexacte
proportion ougrave lrsquoaction dispose du tempsrdquo isto eacute a percepccedilatildeo se amplifica agrave razatildeo direta do
tempo de hesitaccedilatildeo que a indeterminaccedilatildeo injeta entre estiacutemulo e accedilatildeo Contudo como essa
indeterminaccedilatildeo deveraacute implicar consciecircncia e por que a consciecircncia parece nascer dos
movimentos interiores do ceacuterebro Eis o momento em que a teoria da percepccedilatildeo pura deve
interferir
Em primeiro lugar Bergson a admite como uma simplificaccedilatildeo das condiccedilotildees da
percepccedilatildeo consciente pois segundo ele ldquoEn fait il nrsquoy a pas de perception qui ne soit
impregneacutee de souvenirsrdquo (BERGSON 2001 p 18330) eles definem os milhares de
detalhes de nossa experiecircncia passada que vem misturar-se agrave percepccedilatildeo de uma imagem
atual Sem por ora extrair daiacute todas as consequecircncias conveacutem observar que isso permite
entrever de imediato uma necessaacuteria passagem entre ser presente e ser do passado no seio
da experiecircncia real de uma percepccedilatildeo consciente da mesma forma permite destacar as
lembranccedilas que aiacute intervecircm de certo fundo psicoloacutegico Em segundo lugar por meio dessa
hipoacutetese ideal da percepccedilatildeo pura e impessoal Bergson deseja mostrar que ela estaacute na base
de nosso conhecimento das coisas ao mesmo tempo em que evitaria confundir percepccedilatildeo e
lembranccedila como fenocircmenos que comportariam apenas uma diferenccedila de grau como se a
lembranccedila fosse uma percepccedilatildeo de menor intensidade Se Bergson insiste em ver aqui uma
diferenccedila de natureza eacute por utilizar o estratagema da percepccedilatildeo pura para dividir um misto
da experiecircncia concreta a percepccedilatildeo consciente que nos faraacute retornar sobre a perspectiva
de uma continuidade dos estados conscientes Para compreendecirc-lo dinamicamente e a fim
80
ldquo[] le systhegraveme nerveux est construit drsquoun bout agrave lrsquoautre de la seacuterie animale en vue drsquoune action de
moins en moins neacutecessaire []rdquo (BERGSON 2001 p 18127)
120
de que possamos perceber como a memoacuteria se insere em uma percepccedilatildeo instantacircnea
atenhamos-nos por um momento agrave experiecircncia concreta de uma percepccedilatildeo consciente ao
misto indiferenciado de objetividade e subjetividade que ela supotildee ldquoSi court qursquoon
suppose une perception en effet elle occupe toujours une certaine dureacutee et exige par
conseacutequent un effort de la meacutemoire qui prolonge les uns dans les autres une pluraliteacute de
moments Mecircme [] la lsquosubjectiviteacutersquo de qualiteacutes sensibles consiste surtout dans une espegravece
de contraction du reacuteel opereacutee par notre meacutemoirerdquo (BERGSON 2001 p 18430-31)
Reencontramos na experiecircncia concreta da percepccedilatildeo consciente um misto de duraccedilatildeo e
espaccedilo de mateacuteria e memoacuteria e uma continuidade de penetraccedilatildeo entre um momento e
outro isto eacute algo que evoca duas formas de memoacuteria as lembranccedilas que recobrem uma
percepccedilatildeo imediata e a memoacuteria como contraccedilatildeo de uma multiplicidade de momentos que
fundam ldquoa subjetividade das qualidades sensiacuteveisrdquo A memoacuteria e a subjetividade
encontram-se natildeo em uma interioridade qualquer mas nessa espessura de duraccedilatildeo
irredutiacutevel a um instante que haacute pouco nomeaacutevamos continuidade ndash prova de que
Bergson permanece ainda no mesmo universo de imagens inicialmente dado
Retornemos agora agrave hipoacutetese da percepccedilatildeo pura ciosos de seu valor esquemaacutetico
Com ela Bergson toca o proacuteprio conceito de real aprofundando o sentido do termo
imagem Dado um universo de imagens entre as quais um corpo o real eacute definido antes
pelo potencial das accedilotildees reciacuteprocas entre corpo-imagem e universo de imagens que pelo
conjunto especiacutefico Vimos ainda que esse potencial de accedilatildeo varia em funccedilatildeo das
distacircncias entre corpo e universo de imagens entre imagem-centro e a definiccedilatildeo variaacutevel
das imagens em sua periferia Em razatildeo de ser-nos imediatamente impossiacutevel agir sobre
certa imagem ndash distante demais de nosso corpo logo ausente do recorte que desenha nosso
potencial de accedilatildeo sobre as coisas cujas superfiacutecies emanam seus reflexos ndash isso significa
apenas que esta imagem existindo realmente deixou de ser efetivamente percebida Ela
permanece presente sem ser percebida ao passo em que sobre ela natildeo somos capazes de
nenhum potencial de accedilatildeo imediato No entanto se nosso corpo banhado por imagens
caminhar em sua direccedilatildeo diminuir a distacircncia relativa que o separa dela subitamente ela
passaria a existir para ele e talvez a interessaacute-lo Se tomarmos esse corpo-imagem
banhado de imagens como referecircncia diremos que a accedilatildeo potencial em relaccedilatildeo a certo
conjunto de imagens define objetos para esse corpo Com isso percebemos que o atual
condiz com a efetuaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo que transforma uma imagem em uma
percepccedilatildeo que reflete um potencial de accedilatildeo cuja contiacutenua variaccedilatildeo corresponde agraves
variaccedilotildees qualitativas desse corpo De outro lado ao compreendermos que o real natildeo
121
depende da percepccedilatildeo mas estaacute dado na existecircncia da imagem aquelas que natildeo integram o
recorte interessante sobre cujas superfiacutecies natildeo se desenha qualquer potencial de accedilatildeo de
meu corpo teraacute em relaccedilatildeo a ele uma realidade virtual que consiste em ser sem serem
atualmente percebidas Eis um importante registro de uma ontologia do virtual que
Bergson resume em foacutermulas muito breves81
e que por forccedila de uma analogia
desencadearaacute em relaccedilatildeo agrave memoacuteria uma seacuterie de consequecircncias metafiacutesicas que natildeo nos
cabe adiantar
Verifiquemos em que consiste a diferenccedila entre ser e ser percebido De um ponto
de vista loacutegico Bergson pode antecipar que haacute mais em ser que em ser percebido de tal
forma que a representaccedilatildeo comporta uma diminuiccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imagem Caso
contraacuterio a passagem entre ser e ser percebido nas condiccedilotildees de um campo transcendental
tal como Bergson o supotildee se tornaria senatildeo impossiacutevel misteriosa Sua explicaccedilatildeo sobre a
dinacircmica dessa diminuiccedilatildeo demanda que tomemos uma imagem pela qual nos
interessamos vivamente Olhando-a no conjunto vemo-la como uma imagem solidaacuteria agrave
totalidade das imagens ora se continuando em algumas ora se prolongando outras No
entanto para representaacute-la para nos interessarmos por ela como operamos Recortamo-la
do conjunto abolindo sua solidariedade contiacutenua para com outras imagens materiais assim
como se podem produzir quadros no cinema82
Dela conservamos apenas ldquola croucircte
exteacuterieure la pellicule superficiellerdquo (BERGSON 2001 p 18633) suprimindo o que a
antecede o que a segue mas tambeacutem seu conteuacutedo isolando seu invoacutelucro por meio do
obscurecimento de seu entorno A representaccedilatildeo designa este resiacuteduo o que resta quando
esvaziamos uma imagem devido a nossas necessidades e funccedilotildees Daiacute porque natildeo haveria
diferenccedila de natureza mas apenas de grau para as imagens entre o fato de simplesmente
ldquoseremrdquo e o de serem conscientemente percebidas ndash uma imagem soacute seraacute atual ou virtual
na medida em que acentuamos o papel do corpo na seleccedilatildeo das imagens e no que respeita
agrave mateacuteria exclusivamente em relaccedilatildeo a ele83
81
ldquoIl est vrai qursquoune image peut ecirctre sans ecirctre perccedilue elle peut ecirctre preacutesente sans ecirctre repreacutesenteacutee et la
distance entre ces deux termes preacutesence et repreacutesentation paraicirct justement mesurer lrsquointervalle entre la
matiegravere elle-mecircme et la perception consciente que nous en avonsrdquo (BERGSON 2001 p 18532) 82
Embora Bergson utilize a metaacutefora do quadro natildeo emprega a do enquadramento no cinema ela nos parece
adequada sobretudo no sentido em que Deleuze a utiliza em seus livros sobre cinema reconhecidamente
inspirados no bergsonismo a fim de esclarecer o conceito de quadro ou enquadramento como um recorte
perceptivo de um universo de imagens Sobre este aspecto conferir Lrsquoimage-mouvement cineacutema 1
(DELEUZE 1983 p 23-45) 83
Eacute precisamente isto o que Deleuze (1966 p 50) assinala no que denomina ldquoa diferenccedila entre ser e ser uacutetilrdquo
(percebido) ldquo[] dans ce cas lrsquoecirctre est seulement celui de la matiegravere ou de lrsquoobjet perccedilu donc un ecirctre
preacutesent qui nrsquoa pas agrave se distinguer de lrsquoutile autrement qursquoen degreacuteerdquo
122
Se imaginaacutessemos portanto uma percepccedilatildeo inconsciente e outra consciente de uma
imagem material deveriacuteamos afirmar que a primeira por natildeo eliminar todas as relaccedilotildees da
imagem no seio contiacutenuo das imagens que conformam a mateacuteria eacute mais vasta que a
percepccedilatildeo consciente que discerne distingue e elimina visando agrave utilidade e agrave necessidade
vital que se do ponto de vista do conhecimento adequado do real implica revestir toda
representaccedilatildeo de negatividade do ponto de vista pragmaacutetico perfaz uma escolha positiva
A explicaccedilatildeo de Bergson (2001 p 19139) funda-se na dependecircncia entre ceacuterebro e
imagem como funccedilatildeo de ldquolrsquoindeacutetermination du vouloirrdquo Diziacuteamos haacute pouco que o sistema
nervoso composto pelo conjunto formado pelo ceacuterebro e suas vias de recepccedilatildeo e resposta
exerce uma funccedilatildeo mediadora entre as imagens do universo e um corpo essa funccedilatildeo estaacute
intimamente vinculada ao movimento que liga as imagens umas agraves outras na exterioridade
de forma tal que sua funccedilatildeo eacute transmitir distribuir ou inibir movimentos84
Com efeito
quando um desses fios mediadores eacute cortado a percepccedilatildeo eacute diminuiacuteda e com ela pode-se
dizer que tambeacutem os movimentos que um certo corpo pode produzir em virtude de
estiacutemulos eacute reduzido pelo menos em funccedilatildeo de uma impossibilidade de coordenaacute-los dada
a ausecircncia ou diminuiccedilatildeo da percepccedilatildeo de certos movimentos Isso eacute o que autoriza a
compreender o sistema nervoso como um sistema sensoacuterio-motor ele natildeo apenas
transmite distribui e inibe movimentos mas constitui o centro de indeterminaccedilatildeo dos
movimentos do proacuteprio corpo que integra eacute nesse centro que ldquoles perceptions naissent et
que les actions se preparentrdquo (BERGSON 2001 p 19646)
Tudo isso equivale a dizer que a correspondecircncia que identificaacutevamos entre
configuraccedilatildeo motora do sistema nervoso e percepccedilatildeo exterior daacute-se entre imagens de
mesma natureza (ceacuterebro e imagem exterior) tambeacutem que as percepccedilotildees conscientes se
formam ali onde estaacute a imagem em sua superfiacutecie Se isto for verdade embora perceptos e
afetos possam misturar-se na experiecircncia concreta percepccedilotildees natildeo podem confundir-se
com afecccedilotildees Enquanto vimos que as percepccedilotildees se efetuam em relaccedilatildeo ao corpo
agenciado com a imagem mas fora dele as afecccedilotildees satildeo produzidas em um ponto
determinado de um corpo derivadas de um misto entre corpo e imagens exteriores85
E no
84
Bergson assinala a correspondecircncia entre configuraccedilotildees motrizes do ceacuterebro e percepccedilatildeo exterior
deixando entrever a funccedilatildeo eletiva dos centros de indeterminaccedilatildeo ldquo[] comme la structure du cerveau donne
le plan minutieux des mouvements entre lesquels vous avez le choix comme drsquoun autre cocircteacute la portion des
images exteacuterieurs qui paraicirct revenir sur elle-mecircme pour constituer la perception dessine justement tous les
points de lrsquounivers sur lesquels ces mouvements auraient prise perception consciente et modification
ceacutereacutebrale se correspondent rigoureusementrdquo (BERGSON 2001 p 190-19139) 85
ldquo[] ma perception est en dehors de mon corps et mon affection au contraire dans mon corpsrdquo
(BERGSON 2001 p 205-20658) e ainda logo adiante ldquoLrsquoaffection est [] ce que nous mecirclons de
123
entanto as afecccedilotildees tambeacutem surgem das imagens como contato entre imagens extensas
expostas agraves forccedilas do meio que ameaccedilam desagregaacute-las Se a percepccedilatildeo era funccedilatildeo da accedilatildeo
potencial de um corpo sobre certo conjunto de imagens recortados do universo material em
dois sentidos ndash como nosso corpo pode agir sobre as coisas mas tambeacutem como as coisas
podem agir sobre ele ndash a distacircncia entre corpo e imagens definia a iminecircncia de
atualizaccedilatildeo desse potencial de accedilatildeo Se corpo e imagem entram em contato a distacircncia
entre as superfiacutecies dos corpos anula-se e a accedilatildeo virtual tende a atualizar-se por uma
coincidecircncia extensa entre corpo e objeto Daiacute porque dizer que a percepccedilatildeo eacute exterior e a
afecccedilatildeo interior ao corpo natildeo sendo mais que o esforccedilo do corpo-imagem sobre si mesmo
Com efeito quando a superfiacutecie do corpo toca a superfiacutecie do objeto supomos percebecirc-lo
quando na verdade uma afecccedilatildeo vem misturar-se agrave percepccedilatildeo como uma impureza
Todo esse longo desvio teria nos dado esquematicamente a teoria da percepccedilatildeo
pura sua divisatildeo em relaccedilatildeo agraves afecccedilotildees bem como uma ideia de consciecircncia derivada dos
corpos vivos considerados como centros de indeterminaccedilatildeo ndash ou como Bergson talvez por
comodidade muitas vezes se expresse ldquovontaderdquo86
Impessoal ela se limitaria por
enquanto a ligar ldquopar le fil continu de la meacutemoirerdquo uma seacuterie de visotildees instantacircneas
dadas pela percepccedilatildeo pura que tanto faria parte das coisas como dos corpos orgacircnicos que
as percebem (BERGSON 2001 p 21267) Segundo essa perspectiva os corpos vivos
receberiam excitaccedilotildees elaborariam reaccedilotildees imprevisiacuteveis por meio de uma escolha que
embora indeterminada natildeo se afigura por isso arbitraacuteria ou caprichosa afinal seria
inspirada em experiecircncias passadas de situaccedilotildees anaacutelogas agrave atualmente percebida
ldquoLrsquoindeacutetermination des actes agrave accomplir exige donc pour ne pas se confondre avec le pur
caprice la conservation des images perccediluesrdquo (BERGSON 2001 p 21367) e portanto
implicaria uma espeacutecie de memoacuteria na ausecircncia da qual perderiacuteamos segundo Bergson
todo poder de dispor do futuro
Por isso retornando agrave direccedilatildeo da experiecircncia concreta que nos doava a percepccedilatildeo
de um objeto atual fundindo-se em milhares e milhares de lembranccedilas sensaccedilotildees e
lrsquointerieur de notre corps agrave lrsquoimage des corps exteacuterieurs elle est ce qursquoil faut extraire drsquoabord de la perception
pour retrouver la pureteacute de lrsquoimagerdquo (BERGSON 2001 p 20659) 86
Como Deleuze (1966 p 47-48) observa com propriedade natildeo se trata de compreender nesse estaacutegio da
pesquisa bergsoniana uma consciecircncia psicoloacutegica e pessoal mas uma consciecircncia coextensiva aos corpos
orgacircnicos e impessoal que oferece uma ldquolinha de subjetividaderdquo que introduziraacute a duraccedilatildeo ao lado da ldquolinha
objetivardquo que corresponde agrave extensatildeo agraves imagens e ao corpo-imagem Segundo Deleuze ambas as linhas agraves
quais correspondem lembranccedila e percepccedilatildeo subjetivo e objetivo bem como o seu cruzamento na afecccedilatildeo
resultariam da divisatildeo do misto que a representaccedilatildeo implica No entanto no estaacutegio da divisatildeo do misto
trata-se de linhas puras que natildeo devem ser embaralhadas
124
sentimentos conveacutem notar que uma tal descriccedilatildeo suporaacute a conservaccedilatildeo das imagens
passadas misturando-se agrave percepccedilatildeo presente na medida da utilidade que lhe suscita a
vivecircncia atual de situaccedilotildees anaacutelogas87
Eacute nessa medida que uma lembranccedila se atualizaria
por um chamado agrave utilidade no presente de tal forma que perceber tornar-se-ia uma
ldquooportunidade de lembrarrdquo Percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo cessam de interpenetrarem-se e
fundirem-se na experiecircncia concreta por isso a teoria da percepccedilatildeo pura natildeo passa de uma
hipoacutetese ou de um esquema para dividir o misto precisando a existecircncia de uma diferenccedila
de natureza e natildeo apenas de grau entre percepccedilatildeo e lembranccedila ou exprimindo essa
diferenccedila de natureza em outras palavras eacute preciso evitar compreender a lembranccedila como
uma percepccedilatildeo enfraquecida quando eacute claramente inadequado explicar um conceito pelo
outro pelo simples fato de misturarem-se na experiecircncia concreta
Um dos grandes perigos da confusatildeo de que Bergson (2001 p 21470)
prontamente adverte eacute viciar a teoria da memoacuteria ignorando a diferenccedila entre presente e
passado que embora tenham igualmente realidade como veremos teriam mantida esta
ilusatildeo seus registros embaralhados ao infinito88
No fundo o que a teoria da percepccedilatildeo
pura pretendia estabelecer era a radical diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo e lembranccedila
de tal forma que a realidade pudesse ser ldquotocada penetrada e vividardquo sem construccedilotildees ou
reconstruccedilotildees efetuadas pelo espiacuterito Entretanto na realidade nunca haacute percepccedilatildeo pura
absolutamente imediata porque o instantacircneo que ela supotildee abstratamente para tornar-se
eficaz e tocar as superfiacutecies das coisas mesmas jamais existe como tal isto eacute sempre ocupa
uma duraccedilatildeo cuja continuidade engendra segundo o fio da memoacuteria a subjetividade e a
consciecircncia que faz penetrar essas sucessotildees em um todo contiacutenuo Assim ldquo[] il nrsquoy a
jamais pour nous drsquoinstantaneacute Dans ce que nous appelons de ce nom entre deacutejagrave un travail
de notre meacutemoire et par conseacutequent de notre conscience []rdquo (BERGSON 2001 p 216-
217 72)
Sempre misturada a ela na experiecircncia concreta a memoacuteria eacute praticamente
inseparaacutevel portanto da percepccedilatildeo Ateacute aqui sua funccedilatildeo eacute a de realizar uma passagem
entre o passado e o presente a memoacuteria ldquointercale le passeacute dans le preacutesent contract aussi
dans une intuition unique des moments multiples de la dureacutee et ainsi par sa double
87
Sobre a funccedilatildeo pragmaacutetica da conservaccedilatildeo das imagens passadas Bergson (2001 p 21368) afirma
sinteticamente que ldquoelles ne se conservent que pour se rendrent utiles agrave tout instant elles compleacutetent
lrsquoexpeacuterience preacutesente en lrsquoenrichissant de lrsquoexpeacuterience acquiserdquo e a um soacute tempo esta se acumula e cresce
sem cessar 88
Por essa razatildeo Bergson nos previne ldquoMais cette illusion en recouvre encore une autre qui srsquoeacutetend agrave la
theacuteorie de la connaissance en geacuteneacuteral [] Lrsquoactualiteacute de notre perception consist donc dans son activiteacute
dans les mouvements qui la prolongent et non dans sa plus grande intensiteacute le passeacute nrsquoest qursquoideacutee le preacutesent
est ideacuteo-moteurrdquo (BERGSON 2001 p 21571)
125
opeacuteration est cause qursquoen fait nous percevons dans la matiegravere en nous alors qursquoen droit
nous la percevons en ellerdquo (BERGSON 2001 p 219-22076) Isto significa que a memoacuteria
comunica agrave percepccedilatildeo seu caraacuteter subjetivo espiritual cuja realidade precisamos ainda
que brevemente demonstrar
126
CAPIacuteTULO 5 ndash MEMOacuteRIA FUNDAMENTO DO TEMPO
Falaacutevamos da existecircncia de certo procedimento de construccedilatildeo de passagens entre
psicologia e ontologia no bergsonismo como se Bergson esburacasse um campo a fim de
aceder ao outro mostrando entre eles uma obscura coextensatildeo Os uacuteltimos segmentos
conceituais permitiram abrir pela via psicoloacutegica um acesso agrave duraccedilatildeo real e logo aos
primeiros problemas de uma ontologia realizando o contramovimento abrimos por um
cruzamento entre psicologia e ontologia uma via na qual se engendrou o esquema da
percepccedilatildeo pura a passagem entre ser presente e ser do passado o que nos conduziu a
colocar-nos precisamente a questatildeo da realidade da memoacuteria
A fim de nos mantermos leais a Bergson natildeo podemos abandonar o campo
transcendental tampouco o gesto de absoluta imanecircncia exigido por ele A hipoacutetese central
deste capiacutetulo ndash que tende a problematizar brevemente a realidade virtual da memoacuteria ndash eacute a
de que em Bergson a memoacuteria natildeo pode reduzir-se agraves lembranccedilas de natureza
psicoloacutegica haveria consequecircncias mais amplas envolvidas pelo conceito como uma
memoacuteria ontoloacutegica que eacute o fundamento do desenrolar do tempo89
Em siacutentese a memoacuteria
eacute o que faz o presente passar e nessa medida ela seria mesmo por extensatildeo loacutegica o
fundamento do devir Finalmente tratar-se-aacute de conciliar memoacuteria e duraccedilatildeo solucionando
o problema que nos potildeem alguns textos de Bergson sobre o pluralismo ou o monismo da
concepccedilatildeo de duraccedilatildeo tomada agora segundo uma perspectiva mais ampla para aleacutem da
duraccedilatildeo meramente psicoloacutegica Enfim tudo se resume agrave demonstraccedilatildeo da existecircncia de
uma memoacuteria ontoloacutegica coalescente ao conceito de duraccedilatildeo contemporacircnea ao presente
a fim de deduzir daiacute a impossibilidade de reduzir em Bergson memoacuteria agrave memoacuteria
psicoloacutegica pessoal90
Comecemos por demonstrar a realidade da memoacuteria acompanhando
89
Nesse ponto nossa hipoacutetese tenderaacute a demonstrar a afirmaccedilatildeo que consta igualmente em Le Bergsonisme
de Gilles Deleuze (1966 p 55) bem como na passagem da segunda siacutentese do tempo de Diffeacuterence et
Reacutepeacutetition em que Deleuze (2006 p 124) evocando Bergson afirma ldquoO fundamento do tempo eacute a Memoacuteria
[] a Memoacuteria eacute a siacutentese fundamental do tempo que constitui o ser do passado (o que faz passar o
presente)rdquo 90
Essa reduccedilatildeo eacute o motor declarado da criacutetica que Maurice Halbwachs antigo aluno de Bergson e disciacutepulo
de Durkheim endereccedilava ao bergsonismo em Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire (HALBWACHS 1994) e
ulteriormente em La Meacutemoire Collective (Idem 1997) a fim de estabelecer um fundamento social para a
memoacuteria individual ao contraacuterio de deduzir ndash como teria feito Bergson segundo este seu ceacutelebre leitor ndash a
memoacuteria social da individual Embora natildeo convenha que nos ocupemos aqui detalhadamente desta longa e
proliacutefica polecircmica eacute interessante anotar que Worms (2011 p 172) a soluciona no interior da proacutepria obra de
Bergson entrevendo no dualismo da memoacuteria que Bergson desenvolveraacute nos capiacutetulos centrais de Matiegravere et
Meacutemoire a individualidade da lembranccedila pura em seu conteuacutedo global com a unicidade de um
acontecimento em uma vida como ligada agrave passagem do tempo ldquoCom efeito para se lembrar do individual
Bergson eacute o primeiro a mostrar que se tem necessidade de um auxiliar presente pragmaacutetico socialrdquo E
127
os principais desenvolvimentos dos capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire a fim de
chegar agrave sua consistecircncia virtual
sect 1 O PROBLEMA DO RECONHECIMENTO
O CEacuteREBRO E AS DUAS MEMOacuteRIAS
Jaacute se afirmou que os dois capiacutetulos centrais de Matiegravere et Meacutemoire formam uma
unidade que natildeo admite interpretaccedilatildeo descontiacutenua91
Isso decorre do fato de que a
demonstraccedilatildeo da realidade da memoacuteria em sua consistecircncia virtual depende de um
dualismo mais profundo ao qual natildeo se pode aceder plenamente apenas com o conceito de
percepccedilatildeo pura Nesse sentido vimos que a percepccedilatildeo pura corresponde agrave realidade
espacial da mateacuteria povoando um registro de imagens em si mesmas atuais que natildeo
cessam de repetir-se no presente O movimento geral dos dois capiacutetulos centrais do livro de
Bergson tende a demonstrar dois tipos de reconhecimento que estatildeo em uacuteltima anaacutelise
fundados nesse dualismo a construir no proacuteprio seio da memoacuteria a fim de completar a
descriccedilatildeo do papel do ceacuterebro com relaccedilatildeo ao reconhecimento de imagens bem como de
desconstruir a tese do paralelismo psicofiacutesico ndash que ao inveacutes de compreender a
solidariedade entre o ceacuterebro e o pensamento em seus proacuteprios termos deduziria uma
correspondecircncia mecacircnica entre estado psiacutequico e estado cerebral ocultando consciente
ou inconscientemente teses metafiacutesicas (BERGSON 2001 p 959-960188) O progresso
dessas anaacutelises das quais destacaremos mais o solo metafiacutesico que o epistecircmico ndash do qual
nos permitiremos extrair apenas o essencial para fundar os argumentos de Bergson ndash nos
levaraacute a seu tempo ao questionamento sobre a realidade do virtual sobre o modo de ser
especiacutefico da memoacuteria pura um dos termos revelados pelo dualismo bergsoniano
Com efeito os fenocircmenos de reconhecimento e uma seacuterie de patologias
relacionadas a ele satildeo tomados de empreacutestimo agraves descriccedilotildees dos estudiosos da fisiologia
do ceacuterebro de uma psicologia que no fim do seacuteculo XIX buscava afirmar-se como
ciecircncia mas tambeacutem da medicina formando o solo comum experimental para que Bergson
completa ldquo[] se haacute necessidade de uma ocasiatildeo presente fiacutesica ou social imagem ou relato natildeo se segue
que o conteuacutedo da lembranccedila seja individual psicoloacutegico e passado a lembranccedila ressuscita a individualidade
ou natildeo ressuscita nada eacute preciso tecirc-la vividordquo Embora natildeo seja esta nossa direccedilatildeo principal um obscuro
diaacutelogo com as premissas que Halbwachs extraiu da leitura de Bergson ndash sobretudo a da natureza
eminentemente psicoloacutegica da memoacuteria em sua obra ndash pode encontrar aqui um campo para seu
estabelecimento Eacute necessaacuterio sobretudo refazer o longo caminho do qual deriva essa sinteacutetica objeccedilatildeo que
lhe fizera Freacutedeacuteric Worms 91
ldquoIl est impossible drsquoenvisager seacutepareacutement les deux chapitres centraux de Matiegravere et Meacutemoirerdquo (WORMS
1997 p 91)
128
pudesse examinar concretamente suas teses valendo-se da interpretaccedilatildeo dessas
observaccedilotildees De nossa parte utilizaremos dessas descriccedilotildees apenas o que for necessaacuterio
para demonstrar a base experimental das distinccedilotildees operadas por Bergson afinal a
experiecircncia concreta aqui natildeo eacute senatildeo um instrumento para demonstrar uma tese
ontoloacutegica que ocupa o coraccedilatildeo de Matiegravere et Meacutemoire a da realidade virtual da memoacuteria
a discussatildeo de sua conservaccedilatildeo em si e sua principal distensatildeo o papel que ela
desempenha como fundamento do tempo que nos permite destituir as relaccedilotildees entre tempo
e instantacircneo retornando a um conceito de duraccedilatildeo ontologicamente ampliado
Para introduzir no seio da memoacuteria e de suas relaccedilotildees com o ceacuterebro um dualismo
que resulta do procedimento de divisatildeo do misto empiacuterico Bergson retoma algumas
conclusotildees do primeiro capiacutetulo e brinda-nos com o desenvolvimento de uma ideia de
corpo ainda pensada no campo transcendental mas agora desenvolvida sub specie
durationis O que vem a ser o corpo-imagem assim pensado Entre imagens o corpo natildeo
faz mais que identificar movimentos e transmiti-los mas tambeacutem recolhecirc-los e conservaacute-
los sob a forma de mecanismos motores que seratildeo determinados no caso de reaccedilotildees
involuntaacuterias a estiacutemulos ou escolhidos ndash em virtude do maior proveito pragmaacutetico e em
concorrecircncia com as lembranccedilas ndash no caso de accedilatildeo voluntaacuteria Bergson estaacute a descrever
uma forma de memoacuteria orgacircnica atuante no corpo-imagem que reuacutene essa seacuterie de
impressotildees na medida em que se produzem de tal modo que o corpo seraacute natildeo mais do que
um corte instantacircneo que praticamos no devir em geral (BERGSON 2001 p 22381) O
corpo corresponde a uma espeacutecie de uacuteltima imagem que pensada de direito constituiria o
limite ideal entre o futuro de nossas accedilotildees e o passado de nossas lembranccedilas Consistindo
desse ponto de vista em uma espeacutecie de corpo-limiar essa descriccedilatildeo do corpo-imagem
indicaria de antematildeo o papel que o ceacuterebro desempenha como mediador entre as
representaccedilotildees passadas de nosso organismo e um presente indubitavelmente real que
solicita a nossa accedilatildeo o corpo seria uma espeacutecie de uacuteltima imagem de uacuteltimo
prolongamento das representaccedilotildees em movimentos preparatoacuterios bem como primeiro
prolongamento destes em accedilotildees nascentes Sua hipoacutetese sobre a sobrevivecircncia das imagens
poderaacute ser entatildeo deduzida mediante a suposiccedilatildeo da destruiccedilatildeo dessa ligaccedilatildeo uma vez
cortada a conexatildeo orgacircnica entre nossas representaccedilotildees e o real permanecem no entanto
existentes o corpo-imagem e o universo de imagens no qual este se banha como natildeo
permaneceriam tambeacutem as imagens do passado As lesotildees cerebrais porque dizem
respeito ao elo entre lembranccedilas que podem ser chamadas a agir no presente e este mesmo
129
presente natildeo podem abolir nem as imagens do passado nem as do presente mas a
conexatildeo entre umas e outras isto eacute afetando um aparelho sensoacuterio-motor cujos
movimentos desenham accedilotildees nascentes possiacuteveis no espaccedilo natildeo se abole por completo
nem a linha de objetividade nem a de subjetividade nem as imagens atuais nem o que
podemos chamar precaacuteria e indistintamente de imagens do passado ou lembranccedilas Uma
conexatildeo que diz respeito ao corpo-imagem eacute abolida e isso eacute tudo
Essa descriccedilatildeo leva Bergson (2001 p 224-22582-83) a formular trecircs hipoacuteteses 1ordf)
Uma vez que o corte da conexatildeo implica aboliccedilatildeo natildeo das imagens do passado tampouco
da memoacuteria motora do corpo mas de sua capacidade de tornar essas imagens ndash lembranccedilas
ou motoras ndash eficazes seria possiacutevel dizer que o passado sobrevive de dois modos nos
mecanismos motores (memoacuteria do corpo) e em lembranccedilas independentes (memoacuteria pura)
2ordf) Com base nisso seria possiacutevel deduzir que o reconhecimento das imagens e sua
consequente utilizaccedilatildeo no presente deve efetuar-se tambeacutem de duas formas ora na proacutepria
accedilatildeo por movimentos quando emana do objeto ora no passado por representaccedilotildees
quando emana do sujeito 3ordf) A experiecircncia do corte da conexatildeo ou da lesatildeo cerebral nos
mostraria que se passa por graus insensiacuteveis das lembranccedilas dispostas ao longo do tempo
aos movimentos que desenham sua accedilatildeo possiacutevel no espaccedilo de tal forma que as lesotildees
atingem esses movimentos mas natildeo as lembranccedilas ndash sejam elas motoras ou imagens saiacutedas
do passado Percebe-se nesse sentido que a despeito de Bergson considerar a realidade
em si mesma da memoacuteria atraveacutes dessas proposiccedilotildees bem como a independecircncia de sua
existecircncia em relaccedilatildeo ao corpo sua formulaccedilatildeo permanece intrinsecamente fundada em
uma hipoacutetese bioloacutegica Na medida em que os mecanismos cerebrais constituem o uacuteltimo
prolongamento da seacuterie de nossas representaccedilotildees passadas e dessa forma as medeiam e
inserem na accedilatildeo presente basta cortar essa ligaccedilatildeo e ldquolrsquoimage passeacutee nrsquoest peut-ecirctre pas
deacutetruite mais vous lui enlevez tout moyen drsquoagir sur le reacuteel et par conseacutequent [] de se
reacutealiserrdquo (BERGSON 2001 p 22583) A primeira proposiccedilatildeo segundo a qual o passado
pode sobreviver distintamente em mecanismos motores e em lembranccedilas independentes
deve ser objeto de verificaccedilatildeo ndash seguindo sua tradicional forma de demonstraccedilatildeo pela
experiecircncia e de divisatildeo do concreto depurado de acordo com um dualismo
A descriccedilatildeo de Bergson apoia-se na experiecircncia do aprendizado de uma liccedilatildeo a fim
de compreender a persistecircncia de duas formas de memoacuteria que podemos adiantar
convencionaremos nomear ldquomemoacuteria do corpordquo e ldquomemoacuteria purardquo Ao estudar uma liccedilatildeo
um aluno organiza sua retenccedilatildeo progressivamente por meio de repeticcedilotildees pode analisaacute-la
130
dividi-la em partes escandi-la e como fruto de sucessivas leituras ele percebe que as
partes organizam-se cada vez melhor ateacute o ponto em que saberaacute suas liccedilotildees de cor
Se examinaacutessemos as fases implicadas no aprendizado dessa liccedilatildeo descobririacuteamos
que duas formas de memoacuteria agem em sua base Podemos compreender o aprendizado
como a realizaccedilatildeo de cada uma das sucessivas leituras de tal forma que cada leitura
manifestaraacute uma singularidade proacutepria como um acontecimento determinado em nossa
vida No entanto se aprendemos de cor ndash isto eacute pela repeticcedilatildeo de um esforccedilo de
decomposiccedilatildeo e recomposiccedilatildeo ndash transformamos a liccedilatildeo em um haacutebito Portanto o
primeiro tipo de memoacuteria realiza o registro imediato de um evento uacutenico irrepetiacutevel ou
ldquodatadordquo o acontecimento eacute registrado como uma leitura em particular apreendida em sua
singularidade proacutepria o segundo tipo de memoacuteria que transforma a liccedilatildeo em um haacutebito
desenha a apreensatildeo do todo por meio de uma accedilatildeo ou de um esforccedilo por ldquoimprimirrdquo a
liccedilatildeo na memoacuteria para poder revisitaacute-la quando bem quisermos de acordo com nossa
conveniecircncia ou com sua utilidade no segundo caso o haacutebito de memorizar uma liccedilatildeo
conforma-se segundo sua utilidade futura
Todavia que diferenccedila e sobretudo que tipo de diferenccedila poderiacuteamos descobrir
nessas memoacuterias Entre elas haveria uma mera diferenccedila de grau ou uma diferenccedila de
natureza Para respondecirc-lo encaminhando-nos um passo aleacutem na construccedilatildeo do dualismo
entre memoacuteria do corpo e memoacuteria pura seria preciso observar como se constituem haacutebito
(lembranccedila da liccedilatildeo) e lembranccedila (lembranccedila das leituras) A lembranccedila da leitura deve-se
a uma inscriccedilatildeo imediata do evento na duraccedilatildeo natildeo supotildee uma accedilatildeo mas um registro
duracional tal como registramos um acontecimento em nossas vidas imediatamente como
mera representaccedilatildeo trata-se portanto de uma lembranccedila menos impessoal que constitui
nossa histoacuteria passada segundo uma memoacuteria espontacircnea ou perfeita A lembranccedila da
liccedilatildeo sua transformaccedilatildeo em haacutebito exige por outro lado uma atitude um esforccedilo voltado
para accedilatildeo para o presente Natildeo se trata de uma memoacuteria de registro passiva que decorre
da inscriccedilatildeo de um acontecimento irrepetiacutevel na duraccedilatildeo mas eacute fundada na repeticcedilatildeo em
um investimento inteligente tornando uma seacuterie de movimentos coordenados passados em
um acuacutemulo presente motor Assim aprendemos a liccedilatildeo de cor natildeo basta repeti-la eacute
preciso reintegrar toda a seacuterie de repeticcedilotildees a fim de formar um todo de sentido e apreendecirc-
lo Trata-se de uma memoacuteria agida no presente vivida Quando aprendemos algo de cor
significa que tivemos de empreender o esforccedilo de substituir uma imagem espontacircnea
(memoacuteria pura) por uma motora (memoacuteria do corpo) (BERGSON 2001 p 23190-91)
131
Essas breves consideraccedilotildees tornam possiacutevel conceber duas memoacuterias teoricamente
distintas ldquoLa premieacutere enregistrerait sous forme drsquoimages souvenirs tous les eacuteveacutenements
de notre vie quotidienne agrave meacutesure qursquoils se deacuteroulentrdquo (BERGSON 2001 p 22786)
Memoacuteria perfeita de singularidades ela natildeo negligencia nenhum detalhe e atribui a cada
acontecimento seu lugar e data Ela se deveria de acordo com Bergson agrave necessidade
natural de tornar possiacutevel o reconhecimento inteligente de situaccedilotildees jaacute experimentadas
informando a accedilatildeo presente Poreacutem para isso ela tem de passar pelo corpo e encontrar
nele o seu derradeiro prolongamento aquele que a torna eficaz desenhando jaacute accedilotildees
nascentes no espaccedilo Nesse ponto encontramos a segunda forma de memoacuteria que se
caracteriza pela deposiccedilatildeo no corpo de uma seacuterie de mecanismos sensoacuterio-motores cujas
respostas e amplitude de estiacutemulo multiplicam-se agrave razatildeo direta do enriquecimento de
nossa experiecircncia vivida Eacute preciso lembrar poreacutem que esta consiste em uma experiecircncia
de ordem inteiramente distinta da primeira e no entanto implica uma memoacuteria de
natureza correspondentemente diversa ldquocette conscience de tout un passeacute drsquoefforts
emmagasineacute dans le preacutesent est bien encore une meacutemoire mais une meacutemoire
profondeacutement diffeacuterente de la premiegravere toujours tendue vers lrsquoaction assise dans le
preacutesent et ne regardant que lrsquoavenirrdquo (BERGSON 2001 p 22786)
Entre memoacuteria pura e memoacuteria do corpo verificamos existir portanto uma
diferenccedila de natureza natildeo de grau e seu criteacuterio praacutetico diferencial eacute o sentido em que se
opera o registro92
No caso da memoacuteria pura o registro se opera no sentido das
singularidades de nossa vida pessoal povoada de acontecimentos uacutenicos e faticamente
irrepetiacuteveis no fundo eacute a sua inscriccedilatildeo na duraccedilatildeo real que assegura sua irrepetibilidade
embora eventos similares sempre possam voltar a ocorrer no espaccedilo e talvez destaquem
uacutetil e excepcionalmente do fundo da memoacuteria pura uma lembranccedila que venha em seu
socorro93
No caso da memoacuteria do corpo haacute um registro mais excepcional ndash porque ativo ndash
decorrente do esforccedilo de repeticcedilatildeo voltado para a accedilatildeo ou para o presente de tal modo que
se depositam em mecanismos sensoacuterio-motores sob a forma de um acuacutemulo que constitui o
haacutebito Como as lembranccedilas aprendidas satildeo mais uacuteteis eacute natural repararmos mais nos
registros produzidos pela memoacuteria do corpo que naqueles frutos da memoacuteria pura
92
ldquo[] comment ne pas reconnaicirctre que la diffeacuterence est radicale entre ce qui doit se constituer par la
reacutepeacutetition et ce qui par essence ne peut se reacutepeacuteterrdquo pergunta-se Bergson (2001 p 22988) como iacutendice do
criteacuterio distintivo por natureza das duas memoacuterias 93
Bergson precisa a excepcionalidade do haacutebito em relaccedilatildeo ao registro passivo de singularidades na duraccedilatildeo
operada pela memoacuteria pura ldquoLes souvenirs qursquoon acquiert volontairement par reacutepetition sont rares
exceptionnels Au contraire lrsquoenregistrement par la meacutemoire de faits et drsquoimages en leurs genre se porsuit agrave
tous les moments de la dureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 228-22988)
132
Entretanto essas definiccedilotildees reenviam a dois outros problemas primeiro o que justifica a
percepccedilatildeo e a formaccedilatildeo de haacutebitos motores Segundo como as lembranccedilas-imagens
entram nos esquemas da utilidade no presente Natildeo seriam elas intrinsecamente inuacuteteis
uma vez que os haacutebitos motores mostram-se suficientes agrave vida adaptada de qualquer
organismo94
Esses satildeo precisamente os problemas que se encontram por traacutes do
mecanismo do reconhecimento mas para compreendecirc-los eacute preciso voltar ao corpo e a seu
significado liminar
Quando pensado sub specie durationis Bergson dizia natildeo entrever no corpo-
imagem mais do que um limite movente entre passado e futuro Afinal tomado como
limiar duracional extenso o corpo-imagem natildeo pode consistir em nada aleacutem de uma
imagem atual banhada de outras imagens atuais e apreendida em uma representaccedilatildeo
instantacircnea Tomado como ponto de inserccedilatildeo no devir o corpo-imagem comporta no
entanto por si mesmo como vimos uma memoacuteria orgacircnica que chamamos ldquomemoacuteria do
corpordquo Esta participa dos movimentos extraiacutedos dos processos de percepccedilatildeo e adaptaccedilatildeo
do corpo-imagem a seu meio ndash o que se afigura uma necessidade de todo organismo ndash e
resulta no registro do passado dos movimentos e de suas repeticcedilotildees em geral sob a forma
de haacutebitos motores Ao mesmo tempo a consciecircncia registra todo o desenrolar singular de
cada um desses e de outros acontecimentos uma vez que opera no seio da memoacuteria pura
forja suas memoacuterias-lembranccedilas que em si e por si mesmas natildeo possuem qualquer
utilidade e tampouco podem agir sobre o presente O que Bergson (2001 p 23191) afirma
eacute que essas memoacuterias caminham lado a lado e prestam-se muacutetuo apoio A conservaccedilatildeo das
lembranccedilas-imagens nos coloca todavia lado a lado com o risco ndash no limite patoloacutegico ndash
da confusatildeo entre os imperativos pragmaacuteticos e de utilidade envolvidos pela necessaacuteria
adaptaccedilatildeo de um organismo ao meio em que vive e essas ldquoimagens de sonhordquo95
Como
afastar esse risco senatildeo pelo caraacuteter intrinsecamente pragmaacutetico dessa consciecircncia em
tensatildeo com a vida Atrelada unicamente agrave utilidade a consciecircncia que efetua o registro dos
eventos singulares que se fundem na memoacuteria pura eacute a mesma que a um soacute tempo
descarta em relaccedilatildeo agrave atualidade vivida todas as imagens passadas que natildeo possam
coordenar-se agrave percepccedilatildeo atual formando com ela um conjunto uacutetil A consciecircncia age
simultaneamente vinculada agrave memoacuteria e atenta agrave vida ela tira partido da memoacuteria em
detrimento da memoacuteria para fazecirc-la servir agrave vida agrave accedilatildeo e ao presente Por isso a
94
Bergson (2001 p 23089) com efeito afirma sobre a memoacuteria do corpo ldquo[] un ecirctre vivant qui se
contenterait de vivre nrsquoaurait pas besoin drsquoautre choserdquo 95
ldquoEn se conservant dans la meacutemoire en se reproduisant dans la conscience ne vont-elles pas deacutenaturer le
caractegravere pratique de la vie mecirclant le recircve agrave la reacutealiteacuterdquo (BERGSON 2001 p 23090)
133
memoacuteria pura pode ser definida em relaccedilatildeo agrave consciecircncia como uma memoacuteria inibida ou
de recalque96
soacute age subordinada agrave consciecircncia Eis aiacute o mecanismo que as torna
ldquolembranccedilas impotentesrdquo97
ndash elas satildeo impotentes exclusivamente em face de uma diferenccedila
pragmaacutetica em relaccedilatildeo a uma consciecircncia atual que natildeo eacute mais que a representaccedilatildeo ideal e
liminar de uma adaptaccedilatildeo de nosso corpo ao presente por isso comeccedilaacutevamos por ele
Dessa forma eacute possiacutevel entrever em siacutentese duas memoacuterias segundo as quais o
passado se conserva e que natildeo satildeo senatildeo teoricamente distintas lembranccedilas-imagens
pessoais que desenham todos os acontecimentos em sua singularidade e mecanismos
motores que satildeo capazes de utilizar o passado na direccedilatildeo da utilidade e da vida Mais
adiante essa dissociaccedilatildeo se mostraraacute particularmente importante a fim de evitar certos
enganos comuns Entre eles aquele que sustenta a tese da localizaccedilatildeo das lembranccedilas-
imagens no corpo designando o ceacuterebro como ldquoo oacutergatildeo da representaccedilatildeordquo por excelecircncia
(BERGSON 2001 p 23596) outro consiste em misturar indefinidamente no ato de
reconhecimento pelo qual reavemos o passado no presente suas componentes motoras
com as lembranccedilas-imagens Eacute portanto sob esse duplo aspecto que se torna necessaacuterio
compreender dinamicamente o fenocircmeno do reconhecimento capaz de ligar o passado ao
presente
O ponto de partida de Bergson eacute conhecido ndash as teorias do reconhecimento
contrariariam absolutamente a experiecircncia ao aplicarem-se a fazer o fenocircmeno surgir de
uma reaproximaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila ignorando sua jaacute demonstrada diferenccedila
de natureza A experiecircncia biofisioloacutegica e meacutedica sobre o tema indicaria que na maioria
das vezes a lembranccedila soacute surge uma vez reconhecida a percepccedilatildeo (BERGSON 2001 p
23798) Portanto sua tese oposta desta vez ao enganoso pensamento associacionista e
96
ldquo[] les souvernirs tendent agrave srsquoincarner font pression pour ecirctre reccedilus ndash si bien qursquoil faut tout un
refoulement issu du preacutesent et de lsquolrsquoattention agrave la viersquo pour repousser ceux qui sont inutiles ou dangereuxrdquo
(DELEUZE 1966 p 69-70) Em um sentido genealoacutegico Freacutedeacuteric Worms explica a origem da concepccedilatildeo de
Bergson ldquoNotons drsquoembleacutee comment la conscience retrouve ici le pouvoir de seacutelection qursquoelle avait deacutejagrave
dans la perception augmenteacutee drsquoune force drsquoinhibition dont Bergson avant Freud emprunt la notion agrave Ribot
celui-ci avait deacutecrit dans le cas drsquoattention notamment comment les mouvements du corps ont une fonction
critique et neacutegative qui inhibe et refoule le contenu de la conscience psychologiquerdquo (WORMS 1997 p
108) 97
Freacutedeacuteric Worms (2011 p 175) explicou o sentido das expressotildees ldquoimpotenterdquo ldquoinagenterdquo e ldquoinconscienterdquo
com as quais Bergson dotou a memoacuteria pura demonstrando que todas satildeo indiciaacuterias de uma ontologia
virtual ldquoO passado puro eacute lsquoinagentersquo lsquoimpotentersquo eis sobre o que Bergson natildeo cessa de insistir tal eacute a
diferenccedila fundamental que explica todas as outras estando aiacute compreendida uma inconsciecircncia que natildeo eacute
uma inexistecircncia uma virtualidade que natildeo eacute senatildeo o contraacuterio do atual e do ativo um passado enfim que
natildeo se opotildee ao presente senatildeo porque este se define pela vidardquo E ainda completa ldquoessa diferenccedila entre
potecircncia e impotecircncia que natildeo eacute uma diferenccedila entre existecircncia e inexistecircncia que deve mesmo permitir
criticar esta anuncia uma comunidade de natureza mais profunda entre as duas memoacuterias []rdquo (Idem
ibidem p 176-177)
134
que deve conduzir-nos definitivamente ao problema da realidade da memoacuteria pura ndash uma
vez que a memoacuteria do corpo demonstrou-se pelos mecanismos sensoacuterios-motores que se
depositam no haacutebito ndash seraacute a de que a mera associaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e lembranccedila natildeo
explica suficientemente o processo de reconhecimento98
Caso contraacuterio supondo a
dependecircncia que associaria definitivamente lembranccedila e percepccedilatildeo seria forccediloso que com
a aboliccedilatildeo patoloacutegica do reconhecimento declaraacutessemos ndash contra todo iacutendice cliacutenico dos
estudos da cegueira psiacutequica99
por exemplo ndash a aboliccedilatildeo da percepccedilatildeo que lhe seria
correlata
O proacuteprio fenocircmeno da cegueira psiacutequica autorizaria a definir dois tipos de
reconhecimento que como veremos seguem as linhas de articulaccedilatildeo conceituais jaacute
desenhadas pela definiccedilatildeo das duas memoacuterias O primeiro um reconhecimento instantacircneo
do corpo que natildeo engendra ou supotildee nenhuma lembranccedila aproximado da transcriccedilatildeo de
uma percepccedilatildeo pura (BERGSON 2001 p 238-240100-103) Trata-se nesse caso de um
fenocircmeno de ordem motora que age na base do reconhecimento de movimentos natildeo-
organizados uma vez que a memoacuteria do corpo os tenha organizado seraacute possiacutevel servir-se
do objeto reconhecido adaptar-se pragmaticamente a ele esboccedilando os movimentos que
lhe correspondem100
Se Bergson (2001 p 239-240) pode afirmar que ldquoIl nrsquoy a pas de
perception qui ne se prolonge en mouvementrdquo evocando a autoridade de Ribot e
Maudsley eacute porque haacute uma certa consciecircncia evidentemente orgacircnica impessoal dos
movimentos nascentes coordenando-os agrave percepccedilatildeo servindo-se e criando haacutebitos motores
organizando e reorganizando suas tendecircncias pragmaacuteticas que nos permitem servir-nos de
um objeto reconhececirc-lo Essas repeticcedilotildees tendem a consolidar as conexotildees e para
compreender o porquecirc basta observar como nosso sistema nervoso eacute disposto em vista da
construccedilatildeo de aparelhos motores que satildeo ligados por centros a excitaccedilotildees sensiacuteveis ao
mesmo tempo em que a dispersatildeo definida pela ramificaccedilatildeo de seus terminais torna as
conexotildees possiacuteveis ilimitadas por isso eacute sempre possiacutevel enriquecer as conexotildees entre
percepccedilotildees e movimentos correspondentes preacute-formados de tal forma que toda percepccedilatildeo
atual possui um ldquoacompanhamento motor organizadordquo (BERGSON 2001 p 240102) que
98
ldquo[] en reacutealiteacute lrsquoassociation drsquoune perception agrave un souvenir ne suffit pas du tout agrave rendre compte du
processus de la reconnaissance Car si la reconnaisance se faisait ainsi elle serait abolie quand les anciennes
images ont disparu elle aurait toujours lieu quand ces images sont conserveacuteesrdquo (BERGSON 2001 p
23798-99) 99
A cegueira psiacutequica eacute definida por Bergson (2001 loc cit) como a incapacidade de efetuar a recogniccedilatildeo
de objetos no espaccedilo que de fato permanecem objetos de uma percepccedilatildeo sem reconhecimento 100
Sobre a relaccedilatildeo entre o reconhecimento motor do corpo e o uso pragmaacutetico de um objeto Bergson (2001
p 239 101) salienta ldquoReconnaicirctre un objet usuel consist surtout agrave savoir srsquoen servirrdquo eis portanto uma
feiccedilatildeo definitivamente pragmaacutetica do reconhecimento operado pelo sistema sensoacuterio-motor
135
nos daacute o sentimento de reconhecimento usual o que faz supor uma consciecircncia dessa
organizaccedilatildeo Com isso Bergson parece uma vez mais deduzir do campo inicialmente dado
de imagens o jogo entre corpo e campo em outras palavras porque as imagens agem umas
sobre as outras e os corpos fontes de indeterminaccedilatildeo estatildeo implicados nessa dinacircmica eacute
como se a circunstacircncia de um corpo ser uma imagem em meio a imagens fosse jaacute um
convite agrave accedilatildeo
Ao lado desse jogo entre percepccedilatildeo movimentos preacute-formados e formaccedilatildeo
dinacircmica de novos movimentos nascentes cada vez mais adaptados pragmaticamente ao
presente subsistem os sucessivos registros duracionais que acompanham o seu desenrolar
no tempo que Bergson (2001 p 241103) chama de ldquonossa vida psicoloacutegicardquo A memoacuteria
pura natildeo cessa de operar e de ser inibida pela tendecircncia pragmaacutetica dessa consciecircncia que
age apenas para adaptar um corpo-imagem agraves imagens nas quais se banha Jaacute vimos que o
equiliacutebrio sensoacuterio-motor estabelecido em funccedilatildeo dessa adaptaccedilatildeo entre percepccedilatildeo e
movimentos de resposta implica que a ldquoconsciecircncia praacutetica e uacutetil do momento presenterdquo
(Idem ibidem loc cit) iniba sem cessar as lembranccedilas que exercer pressatildeo desde o fundo
da memoacuteria pura deixando passar apenas as lembranccedilas-imagens uacuteteis101
Eacute nesse ponto
que as lembranccedilas-imagens podem intervir no processo de reconhecimento
A todo momento ao acompanhar a percepccedilatildeo como seu duplo ou sua sombra a
memoacuteria pura registra cada acontecimento contemporaneamente agrave montagem dos
aparelhos motores pela memoacuteria do corpo Dada essa coalescecircncia Bergson (2001 p
241103) afirma que ldquoelle se survit [] avec tout le deacutetail de ses eacuteveacutenements localiseacutes dans
le tempsrdquo A consequecircncia ontoloacutegica imediata que jaacute se pode deduzir aqui eacute que sendo
contemporacircnea ao presente a existecircncia da memoacuteria natildeo exige um presente descarnado
acompanhando sombriamente o presente que se faz a memoacuteria natildeo eacute o fruto maduro
demais de um presente que passou ndash ela sobrevive em si como se houvesse como veremos
mais adiante um registro duplo do mesmo plano de realidade Ainda que seja
contemporacircnea ao presente a memoacuteria no entanto natildeo age inibida pragmaticamente ndash o
que assinala a marca da impotecircncia e da inutilidade das lembranccedilas puras ndash a memoacuteria se
define pela espera como se aguardasse uma fissura no mecanismo para dentro do qual
empurraria suas imagens
101
Em Le Recircve texto de uma conferecircncia proferida em marccedilo de 1901 no Institut Geacuteneacuteral Psychologique e
republicada dezoito anos mais tarde em LrsquoEacutenergie Spirituelle Bergson (2001 p 88999) se exprime sobre
essa forma de pressatildeo que as lembranccedilas exercem do fundo da memoacuteria pura ldquoIl ne faut pas croire que les
souvenirs logeacutes au fond de la meacutemoire y restent inertes et indiffeacuterentes Il sont dans lrsquoattente ils sont presque
attentifsrdquo A mesma passagem autoriza que definamos a espera como um elemento da memoacuteria pura (cf
infra)
136
No entanto como eacute possiacutevel remontar ao passado para dele retirar imagens
Bergson explica esse processo como algo essencialmente ativo isto eacute como um esforccedilo
por meio do qual nos liberamos do interesse pragmaacutetico circunscrito agrave accedilatildeo a fim de
descobrir a lembranccedila-imagem singular relacionada com o presente Isso eacute possiacutevel em
funccedilatildeo da proacutepria consciecircncia praacutetica Em copresenccedila com o presente sobrevive o
conjunto das imagens passadas Eacute certo que essa sobrevivecircncia seu modo especiacutefico
exige ainda uma demonstraccedilatildeo da qual no momento conhecemos apenas os iacutendices mais
gerais mas seguindo Bergson suponhamos por ora sua existecircncia Dada esta copresenccedila
de nosso passado e nosso presente eacute preciso que a lembranccedila-imagem colhida no passado
em que remontamos natildeo seja arbitraacuteria eacute preciso que haja certo discernimento certo bom
senso ndash que satildeo outros nomes pelos quais Bergson designa a ldquoconsciecircncia praacuteticardquo ndash na
escolha de uma imagem da qual vamos nos servir no presente Natildeo soacute os movimentos satildeo
prolongamentos da percepccedilatildeo como satildeo no sentido inverso prolongamentos dessas
lembranccedilas-imagens que por sua vez descolam-se da memoacuteria pura entatildeo os
movimentos efetuados ou nascentes delimitam pragmaticamente o campo de lembranccedilas-
imagens virtuais como delimitam por um recorte externamente a percepccedilatildeo de objetos-
imagens atuais De seu turno o que chamamos de recalque pragmaacutetico das lembranccedilas-
imagens que inibem as inuacuteteis envolve o deslocamento do passado pelo presente requer a
assunccedilatildeo de uma atitude presente102
Eacute preciso poreacutem conduzir o argumento da sobrevivecircncia da memoacuteria e por
extensatildeo o de sua conservaccedilatildeo independente do corpo ateacute suas uacuteltimas consequecircncias A
fim de estendecirc-lo o maacuteximo possiacutevel as doenccedilas do reconhecimento ofereceriam a
experiecircncia suficiente para determinar ateacute que ponto as lembranccedilas podem realmente
desaparecer Aproximando-se dessas descriccedilotildees cliacutenicas Bergson (2001 p 242-243105-
107) observa dois traccedilos caracteriacutesticos comuns agraves cegueiras psiacutequicas a perda do sentido
de orientaccedilatildeo de um lado e a incapacidade de desenhar objetos por meio de traccedilos
contiacutenuos ndash caracteriacutesticas geralmente apresentadas por pacientes acometidos por essas
doenccedilas Juntamente a casos de cegueira verbal ndash que consistem no esquecimento de certas
letras do alfabeto ndash todas as descriccedilotildees cliacutenicas convergem de maneira a revelar que o que
eacute afetado por essas patologias natildeo eacute a lembranccedila ou a percepccedilatildeo em sentido objetivo mas
o haacutebito de distinguir as articulaccedilotildees do objeto percebido isto eacute ldquodrsquoen compleacuteter la
102
ldquo[] la suppression des anciennes images tient agrave leur inhibition par lrsquoatittude preacutesente []rdquo (BERGSON
2001 p 241104)
137
perception visuelle par une tendence motrice agrave en dessiner son schegravemerdquo (BERGSON
2001 p 243107)
Isso nos deixa no limiar em direccedilatildeo ao uacuteltimo movimento do segundo capiacutetulo de
Matiegravere et Meacutemoire que corresponderaacute ao estudo de sua terceira hipoacutetese segundo a qual
se realiza uma passagem gradual das lembranccedilas aos movimentos no reconhecimento
concreto A fim de verificaacute-la seraacute necessaacuterio efetuar a passagem do reconhecimento
automaacutetico que mobiliza o haacutebito e se realiza por movimentos por distraccedilatildeo ao
reconhecimento atento em que lembranccedilas-imagens intervecircm positivamente
Essa passagem entre reconhecimentos automaacutetico e atento supotildee compreender as
relaccedilotildees entre percepccedilatildeo e lembranccedila Natildeo eacute possiacutevel compreender como uma lembranccedila
insere-se de grau em grau em uma atitude ou movimento sem determinar como nos
representamos as relaccedilotildees entre percepccedilatildeo atenccedilatildeo e lembranccedila Comecemos por definir
em que consiste a atenccedilatildeo Geralmente a definimos como uma espeacutecie de intensificaccedilatildeo
do estado intelectual a fim de tornar uma percepccedilatildeo mais intensa destacando os detalhes
de um objeto essa poreacutem eacute uma ideia obscura Seguindo Ribot tambeacutem nesse aspecto
Bergson (2001 p 246109-110) prefere definir a atenccedilatildeo em funccedilatildeo de uma adaptaccedilatildeo
geral do corpo Essa definiccedilatildeo lhe parece mais adequada na medida em que os fenocircmenos
de inibiccedilatildeo preparam a atenccedilatildeo voluntaacuteria103
Agindo na percepccedilatildeo supondo a inibiccedilatildeo dos
movimentos que decorreriam da percepccedilatildeo automaticamente a atenccedilatildeo implicaraacute pois
uma parada dos movimentos que perseguem um resultado uacutetil imediato aqui viratildeo inserir-
se segundo Bergson ldquomovimentos mais sutisrdquo que satildeo os prolongamentos da lembranccedila
A percepccedilatildeo exterior provoca nossos movimentos que a desenvolvem em linhas gerais por
outro lado a memoacuteria dirige agrave percepccedilatildeo recebida imagens antigas e semelhantes cujo
esboccedilo jaacute teria sido traccedilado por nossos movimentos Em siacutentese a memoacuteria mais imediata
no limite duplica nossa percepccedilatildeo presente devolvendo-lhe imagens semelhantes ou a
imagem idecircntica agrave percepccedilatildeo Essa duplicaccedilatildeo eacute o resultado de uma seacuterie de tentativas de
siacutentese implicados na atenccedilatildeo seu resultado natildeo seraacute assimeacutetrico tampouco arbitraacuterio
uma vez que movimentos de imitaccedilatildeo presidem como viacuteamos a seleccedilatildeo das lembranccedilas-
imagens nas quais a percepccedilatildeo se prolonga (BERGSON 2001 p 248112) Nesse limiar a
lembranccedila-imagem que interpreta nossa percepccedilatildeo atual insere-se nela sendo impossiacutevel
distinguir de fato o que dividimos de direito Fecha-se assim um circuito pelo qual se
forma uma imagem-percepccedilatildeo orientada ao espiacuterito e uma imagem-lembranccedila que tende
103
ldquo[] les phenomegravenes drsquoinhibition ne sont qursquoune preacuteparation aux mouvements effectifs de lrsquoattention
volontairerdquo (BERGSON 2001 p 246110)
138
em direccedilatildeo ao espaccedilo No interior dele tudo se dispotildee em diferentes niacuteveis de um
complexo percepccedilatildeo-memoacuteria a imagem atual remete a uma imagem virtual que lhe eacute
solidaacuteria em cada um desses niacuteveis mesmo no mais imediato em que uma lembranccedila-
imagem virtual duplica o objeto atual a memoacuteria estaacute inteiramente presente em seu maior
niacutevel de tensatildeo Ou seja se passarmos sucessivamente de um niacutevel a outro verificaremos
que eacute a mesma vida psicoloacutegica que se repete indefinidamente em sua totalidade mais ou
menos contraiacuteda104
Portanto o limite da memoacuteria eacute a memoacuteria pura correspondente ao
registro singular na duraccedilatildeo dos acontecimentos que desenham o curso de nossa existecircncia
passada Eis a memoacuteria espontacircnea ou perfeita tal como se registra na proacutepria duraccedilatildeo
tendo sua existecircncia atrelada ao tempo
Tudo isto seraacute objeto de uma longa demonstraccedilatildeo empiacuterica que natildeo nos cabe
acompanhar senatildeo em seus termos mais gerais sob pena de tornar este desvio necessaacuterio
grande demais105
A verificaccedilatildeo dessa hipoacutetese se desenvolve a partir de uma seacuterie de
confrontaccedilotildees de patologias do reconhecimento contemplando os reconhecimentos visual
auditivo e de palavras Por meio delas Bergson indica a partir de numerosos exemplos que
lesotildees cerebrais natildeo aboliriam as lembranccedilas mas ora implicariam um oacutebice agrave seleccedilatildeo das
imagens ndash ou seja agrave recepccedilatildeo dos movimentos ndash ora importariam a ausecircncia no corpo de
um ponto de aplicaccedilatildeo por meio do qual as lembranccedilas se prolongariam em accedilatildeo ndash isto eacute
afetariam a capacidade de preparaccedilatildeo sensoacuterio-motora mantendo as lembranccedilas
permanentemente em sua condiccedilatildeo de impotecircncia decorrente da inibiccedilatildeo pela consciecircncia
praacutetica
Haacute todavia um ponto notaacutevel a destacar no interior desse desenvolvimento que nos
conduz agrave impossibilidade de localizaccedilatildeo das lembranccedilas no ceacuterebro ou em qualquer outro
ponto da mateacuteria ou do espaccedilo Ele se torna importante ao passo em que eacute o momento
culminante de toda a anaacutelise cliacutenica a que Bergson se dedica nessa longa demonstraccedilatildeo
afinal se ldquoas lembranccedilas natildeo podem estar contidasrdquo em determinado lugar ndash preconceito
intelectual derrisoacuterio segundo Bergson106
ndash eacute porque se conservam em si mesmas
104
ldquoLa mecircme vie psycologique serait donc reacutepeacuteteacutee un nombre indeacutefini de fois aux eacutetages successifs de la
meacutemoire et le mecircme acte de lrsquoesprit pourrait se jouer agrave bien des hauteurs diffeacuterentes Dans lrsquoeffort
drsquoattention lrsquoesprit se donne toujours tout entier mais se simplifie ou se complique selon le niveau qursquoil
choisit pour accomplir ses eacutevolutions Crsquoest ordinairement la perception preacutesente qui deacutetermine lrsquoorientation
de nocirctre esprit mais selon le deacutegreacute de tension que nocirctre esprit adopte selon la hauteur ougrave il se place cette
perception deacuteveloppe en nous un plus ou moins grand nombre de souvenirs-imagesrdquo (BERGSON 2001 p
250-251115-116) 105
O trecho que comentamos em suas linhas gerais e que indicamos ao leitor que se interesse em seguir mais
detalhadamente o seu curso corresponde a (BERGSON 2001 p 252117-118 a p 270140) 106
Isso se deve ao fato de que para Bergson a memoacuteria eacute inassimilaacutevel a dispositivos ou entes corpoacutereos
tampouco a espaccedilos ou agrave extensatildeo em geral Por isso ele natildeo cessa de ironizar sua constante assimilaccedilatildeo a
139
independentemente da mateacuteria do espaccedilo ou do que mais cedo chamaacutevamos de imagens
que existem atualmente Em outras palavras demonstraacute-lo nos oferece um ingresso para
problematizar a consistecircncia virtual da memoacuteria
Tudo se concentra no momento capital em que Bergson na impossibilidade de
remontar todas as experiecircncias cliacutenicas de Matiegravere et Meacutemoire retoma em uma
conferecircncia intitulada Lrsquoacircme et le corps (1912) publicada sete anos mais tarde em
LrsquoEneacutergie Spirituelle a demonstraccedilatildeo de que levada a seu limite a tese do paralelismo
psicofiacutesico se contradiz107
Aproveitemo-nos portanto do mesmo artifiacutecio demonstrativo
utilizado por Bergson Eis o argumento de Bergson em sua integralidade
[] les purs souvenirs appeleacutes du fond de la meacutemoire se deveacuteloppent en
souvenirs-images de plus en plus capables de srsquoinseacuterer dans le schegraveme moteur Agrave
mesure que ces souvenirs prennent la forme drsquoune reacutepresentation plus complegravete
plus concregravete et plus consciente ils tendent drsquoavantage agrave se confondre avec la
perception qui les attire ou dont ils adoptent le quadre La preacutetendu destruction
des souvernirs par les leacutesions ceacuterebrales nrsquoest qursquoune interruption du progregravess
continu par lequel le souvenir srsquoactualise Et par conseacutequent si lrsquoon veut agrave toute
force localiser les suvenirs auditifs des mots par exemple en un point deacutetermineacute
du cerveau on sera ameneacute par des raisons drsquoeacutegale valeur agrave distinguer ce centre
imaginatif du centre percepetif ou agrave confondre les deux ensemble (BERGSON
2001 p 270140)
Onde estaria portanto a contradiccedilatildeo da tese paralelista com a experiecircncia Se nos
concentramos por um momento na explicaccedilatildeo psicoloacutegica baseada na dependecircncia entre
percepccedilatildeo e ceacuterebro somos levados a confundir o cerebral e o mental de tal forma que a
percepccedilatildeo se depositaria em algum lugar no ceacuterebro por outro lado se confundimos o
centro material da percepccedilatildeo com o da representaccedilatildeo ndash de modo que atribuiacutemos ao ceacuterebro
a funccedilatildeo de engendrar representaccedilotildees ndash ao observarmos os casos cliacutenicos das afasias das
cegueiras psiacutequicas ou auditivas natildeo eacute possiacutevel compreender por que um doente
dispositivos ldquoA vrai dire je ne suis pas sucircr que la question lsquoougraversquo ait encore un sens quand on ne parle pas
drsquoun corps Des clicheacutes photographiques se conservent dans une boicircte des disques phonographiques se
conservent dans des casiers mais pourquoi des souvenirs qui ne sont pas des choses visibles et tangibles
auraient-ils besoin drsquoun contenant et comment pourraint-ils en avoirrdquo (BERGSON 2001 p 85755) Se
Bergson aceita a ideia de um continente onde as lembranccedilas ficariam alojadas eacute apenas em sentido
puramente metafoacuterico e completa graciosamente ldquoet je dirai alors tout bonnement qursquoils se sont dans
lrsquoespritrdquo (BERGSON 2001 p 856-857755) 107
O que Bergson (2001 p 85249) diz em LrsquoAcircme et le Corps eacute essencial para afianccedilar ao leitor que ao
reduzir a longa cadeia de demonstraccedilotildees experimentais de Bergson a esse ponto notaacutevel continuamos a
seguir no que importa as principais articulaccedilotildees conceituais que elas insinuam ldquoIl mrsquoest impossible
drsquoeacutenumerer ici les faits et les raisons sur lesquels cette conception se fonde [] Comment faire Il y aurait
drsquoabord un moyen semble-t-il drsquoen finir rapidement avec la theacuteorie que je combat ce serait de montrer que
lrsquohypothegravese drsquoune eacutequivalence entre le ceacutereacutebral et le mental est contradictoire avec elle-mecircme quand on la
prend dans toute sa rigueur [] Jrsquoai tenteacute cette deacutemonstration autrefois []rdquo Sobre o mesmo assunto em
Matiegravere et Meacutemoire ldquo[] nous devons poursuivre cette illusion jusqursquoau point preacutecis ougrave elle aboutit agrave une
contradiction manifesterdquo (BERGSON 2001 p 270140)
140
acometido de cegueira psiacutequica percebe objetos mas natildeo os reconhece A mesma
perplexidade resultaria do caso de um paciente acometido por cegueira auditiva ele natildeo
pode interpretar os sons que no entanto ouve Ora a lesatildeo natildeo teria afetado este centro
que corresponde agrave percepccedilatildeo e agrave memoacuteria do objeto A soluccedilatildeo imediata eacute distinguir as
localizaccedilotildees cerebrais de tal forma que haveria centros perceptivos e elementos nervosos
relacionados agrave lembranccedila Eacute necessaacuterio lembrar que a tese do paralelismo insiste sobre a
existecircncia de uma diferenccedila meramente de grau e natildeo de natureza entre percepccedilatildeo e
lembranccedila como se as uacuteltimas fossem versotildees desintensificadas das primeiras Entretanto
se centros perceptivos e mnemocircnicos estatildeo localizados distintamente como uma
lembranccedila intensificando-se tornar-se-ia percepccedilatildeo Como uma percepccedilatildeo
enfraquecendo-se tornar-se-ia lembranccedila ndash supondo que ambas tenham a mesma natureza
Natildeo haacute resposta satisfatoacuteria possiacutevel porque as alternativas contraditoacuterias estatildeo
envolvidas por uma ilusatildeo comum que consiste em tratar percepccedilatildeo e lembranccedila-imagem
de uma perspectiva exclusivamente estaacutetica o que conduz a compreender as lembranccedilas
como se fossem coisas que supotildeem uma localizaccedilatildeo no espaccedilo e natildeo no tempo
Considerando o mesmo problema sob o ponto de vista dinacircmico seria necessaacuterio supor a
diferenccedila de natureza entre uma e outra definindo e distinguindo a percepccedilatildeo completa
ldquopor sua coalescecircncia com uma imagem-lembranccedila que lanccedilamos ao encontro delardquo108
Chegamos assim ao ponto em que Bergson efetua uma profunda fratura na
ontologia que desenvolvia ateacute aqui levando-a do atual em direccedilatildeo ao virtual do ser
presente ao ser do passado ao outro dos termos que conformam a construccedilatildeo progressiva
dessas passagens feitas no cerne de uma mesma realidade Eacute certo que Bergson natildeo cessa
de definir a imagem-lembranccedila reduzida ao estado de lembranccedila pura como ineficaz
impotente Seraacute necessaacuterio precisar o sentido dessas definiccedilotildees que consistiriam em
algumas das caracteriacutesticas do virtual que jaacute se pode antecipar O virtual designa de certa
forma o pragmaticamente recalcado por uma consciecircncia que se define pela atenccedilatildeo agrave vida
e ao presente
Para demonstrar esse viacutenculo bastaria perceber que para tornar uma lembranccedila
saiacuteda da memoacuteria pura uma lembranccedila eficaz eacute necessaacuterio engendrar um processo de
atualizaccedilatildeo que consiste na ldquoseacuterie drsquoeacutetapes pas lesquelles cette image arrive agrave obtenir du
corps des deacutemarches utilesrdquo (BERGSON 2001 p 275146) sendo a excitaccedilatildeo dos centros
108
ldquo[] la perception complegravete ne se deacutefinit et ne se distingue que par sa coalescence avec une image-
souvenir que nous lanccedilons au-devant drsquoellerdquo (BERGSON 2001 p 271142)
141
sensoriais a uacuteltima dessas etapas A imagem virtual evolui em direccedilatildeo a uma sensaccedilatildeo
apenas virtual esta evolui em direccedilatildeo a movimentos reais os quais ao realizarem-se
realizam tambeacutem a sensaccedilatildeo da qual constituem um prolongamento O desdobramento
natural de nossa deacutemarche consiste em interrogar o problema da sobrevivecircncia das
imagens e com ele o modo ontoloacutegico de que o ser do passado participa
sect 2 COEXISTEcircNCIAS
A CONSISTEcircNCIA VIRTUAL DA MEMOacuteRIA
Do virtual ao atual da memoacuteria pura agrave percepccedilatildeo pura Bergson natildeo cessa de
afirmar que se trata de divisotildees de direito e natildeo de fato Assim se desejaacutessemos
representar agrave inteligecircncia ndash e isto no bergsonismo equivale a dizer espacialmente ndash como
tudo se passa disporiacuteamos lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo em uma
mesma linha segmentada sem jamais fazer jus aos limiares indiscerniacuteveis e agrave continuidade
de penetraccedilatildeo que operam a passagem de uma na outra seguindo intuitivamente a
experiecircncia concreta Momentaneamente encontramos um dos centros de nosso
argumento que a fim de compreender a centralidade da memoacuteria no processo transicional
pretende estabelecer seu sentido sobre bases ontoloacutegicas irredutiacuteveis agrave memoacuteria
psicoloacutegica ndash motivo pelo qual se torna necessaacuterio investigar em Bergson uma ontologia
da memoacuteria ou uma ontologia do virtual No entanto eacute importante lembrar que a diferenccedila
de natureza que Bergson introduz entre percepccedilatildeo e lembranccedila seraacute pouco a pouco
estendida agrave diferenccedila entre atual e virtual presente e passado O que dissimula o caraacuteter
niacutetido da diferenccedila eacute o processo de atualizaccedilatildeo das lembranccedilas109
Retornemos da representaccedilatildeo inteligente agrave intuiccedilatildeo tal como ela segue as linhas de
fato de uma experiecircncia concreta do trabalho da memoacuteria Como recuperar uma lembranccedila
um acontecimento de nossa vida passada A resposta de Bergson ndash sobre a qual Deleuze
(1966 p 53) insistiu sem cessar e a cuja insistecircncia tambeacutem Worms (2011 p 175) deu
razatildeo ndash eacute por meio de um salto no passado destacando-nos do atual e nos colocando
subitamente no virtual Para compreender o que significa esse salto ndash especialmente para
Bergson a quem a continuidade parece um elemento conceitual tatildeo importante ndash
109
Por isso sobre a distinccedilatildeo de direito entre lembranccedila pura lembranccedila-imagem e percepccedilatildeo Bergson
(2001 p 276148) afirma ldquoqursquoil est impossible de dire avec preacutecision ougrave lrsquoun des termes finit ougrave commence
lrsquoautrerdquo Worms (1997 p 141) observa que ldquo[] la diffeacuterence de nature entre souvenirs et perceptions si elle
est formuleacutee comme diffeacuterence entre le lsquovirtuelrsquo et lrsquoactuelrsquo est-elle masqueacutee par le mouvement mecircme
drsquoactualisation par lequel les souvenirs se reacutealisentrdquo
142
precisamos retomar algumas conclusotildees precedentes e que retiram a primazia de nosso
haacutebito intelectual de pensar no presente
Na seccedilatildeo precedente haviacuteamos observado a existecircncia de dois tipos de memoacuteria
que nos levavam a conceber natildeo apenas duas formas de sobrevivecircncia do passado ndash em
mecanismos motores e no proacuteprio passado ndash mas tambeacutem a identificar dois modos
(automaacutetico e atento) pelos quais o reconhecimento se processa Atento agrave dinacircmica
segundo a qual percebemos os objetos no espaccedilo Bergson concebeu uma seacuterie de niacuteveis de
consciecircncia coalescentes com a percepccedilatildeo idealmente pura do objeto atual engendrados
segundo diferenccedilas de contraccedilatildeo no que nomeou circuito perceptivo Sua concepccedilatildeo
terminava por demonstrar o que no niacutevel da percepccedilatildeo pura Bergson podia apenas supor
que toda percepccedilatildeo eacute jaacute um misto em que as lembranccedilas-imagens constituem a impureza
em outras palavras que toda percepccedilatildeo implica ao mesmo tempo lembranccedila que seu niacutevel
mais contraiacutedo corresponde ao duplo virtual de uma imagem atualmente percebida Em
cada um dos niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos em relaccedilatildeo agrave percepccedilatildeo
atual encontraacutevamos a integral de nossa memoacuteria Naquele momento adiantaacutevamos esta
conclusatildeo isso eacute o que supotildee uma coexistecircncia virtual da lembranccedila em relaccedilatildeo agrave
percepccedilatildeo em outras palavras dizer que a percepccedilatildeo eacute jaacute lembranccedila significa que o
processo perceptivo por mais puro que se o suponha deixa passar um miacutenimo de virtual
que no niacutevel mais contraiacutedo consiste na lembranccedila-imagem do estado atual de nosso
corpo que percebe um objeto atual
Essas conclusotildees nos levam a desmitificar segundo Deleuze (1966 p 53) duas
falsas crenccedilas a de que o passado soacute se constitui depois de ter sido presente e a de que ele
pode ser reconstruiacutedo pelo novo presente em relaccedilatildeo ao qual ele eacute passado Muito pelo
contraacuterio a supor-se uma memoacuteria de coexistecircncia contemporacircnea ao presente que passa
adiantaacutevamos a conclusatildeo de que haacute um passado que jamais fora presente um passado que
natildeo eacute um presente sucedido e descarnado mas sua imagem virtual coextensiva que jaacute se
prolonga na direccedilatildeo da memoacuteria pura Seguindo Deleuze adicionariacuteamos em relaccedilatildeo agrave
segunda falsa crenccedila ndash sobre a qual Bergson natildeo cessa de insistir ndash que natildeo se reconstroacutei o
passado pela via do presente110
Isso eacute o suficiente para compreendermos o que significa saltar no virtual por que
Bergson exige precisamente essa imagem que Deleuze diz ser ldquoquase kierkegaardianardquo
110
ldquoCrsquoest en vain qursquoon en chercherait la trace [du passeacute] dans quelque chose drsquoactuel et de deacutejagrave reacutealiseacute
autant vaudrait chercher lrsquoobscuriteacute sous la lumiegravererdquo (BERGSON 2001 p 278150) A expressatildeo entre
colchetes natildeo consta do original
143
compreende-se tambeacutem em que sentido Bergson emprega constantemente a expressatildeo
drsquoembleacutee que em portuguecircs equivale tatildeo bem a expressotildees como ldquode suacutebitordquo ldquode
imediatordquo ldquode prontordquo todas iacutendices de um modo Sua funccedilatildeo semacircntica poderia jaacute indicar
que uma diferenccedila de atitude eacute o que se passa entre as realidades do presente e do passado
Worms a esse propoacutesito sublinha a importacircncia de natildeo interpretar a diferenccedila de natureza
entre o ser presente e o ser do passado como uma diferenccedila ontoloacutegica radical como a que
haveria entre dois tipos de ser Uma interpretaccedilatildeo como essa implicaria naturalmente
deformar o gesto bergsoniano da imanecircncia pelo qual permanecemos leais a uma soacute
estrutura de realidade a de seu campo transcendental em que satildeo dadas as imagens e a
partir do qual tudo eacute deduzido Mais apropriadamente seria o caso de conceber a diferenccedila
entre presente e passado como ldquouma diferenccedila pragmaacutetica ligada agrave accedilatildeo do corpo e agrave
vidardquo (WORMS 2011 p 175)
No entanto um salto natildeo indicaria um dualismo metafiacutesico de substacircncia Tudo
converge para responder negativamente a essa questatildeo Se por um salto ou por uma
atitude sui generis ndash como Bergson (2001 p 276148) algumas vezes se expressa ndash eacute
possiacutevel distender a consciecircncia e colocar-se diretamente no passado haacute uma simples
diferenccedila de accedilatildeo ou de modo ndash natildeo radicalmente ontoloacutegica ndash entre presente e passado
atual e virtual A tese de Worms nesse aspecto seria confirmada por um outro dado o que
concerne agrave memoacuteria pura inibida ou recalcada pela atenccedilatildeo agrave vida
Decerto Bergson natildeo cessa de ligar o passado puro ao elemento de impotecircncia ao
mesmo tempo natildeo cessa de dizer como vimos que a memoacuteria pura eacute uma espera ldquoquase
atentardquo por uma fissura que a deixe passar algumas imagens no presente A forccedila inibidora
que coloca a memoacuteria a serviccedilo da vida implica que a memoacuteria pura enquanto inuacutetil
permaneccedila impotente inconsciente incapaz de atuar daiacute porque ela se define pela pressatildeo
ndash que empurraria no presente todas as suas imagens se pudesse ndash bloqueada pela forccedila de
inibiccedilatildeo que a determina como espera Em relaccedilatildeo ao virtual a espera eacute tambeacutem o seu
modo especiacutefico se por virtual compreendermos simplesmente ldquoo que natildeo atuardquo
(WORMS 2011 p 175)
Dizecirc-lo inconsciente ou impotente demanda estabelececirc-lo desde um ponto de vista
no segundo capiacutetulo de Matiegravere et Meacutemoire em que tudo gira em torno do atual eacute a
consciecircncia pragmaacutetica voltada para a vida que perspectiva o virtual como impotente e
inconsciente para o atual o virtual eacute o que natildeo atua e ele o eacute exclusivamente ao passo em
que natildeo toma parte dessa consciecircncia pragmaacutetica em que eacute mantido fora dela Suas
imagens esperam no fundo da memoacuteria pura enquanto natildeo satildeo solicitadas pela vida Em
144
relaccedilatildeo agrave consciecircncia o virtual eacute atualmente pressatildeo e espera mas potencialmente accedilatildeo e
afecccedilatildeo Nada disso no entanto os retira do existente se perspectivarmos o virtual desde
seu proacuteprio ponto de vista a memoacuteria pura eacute o que existe para si como potencial de accedilatildeo
e afecccedilatildeo e entatildeo ela jaacute natildeo poderia definir-se por uma impotecircncia ontoloacutegica mas
exclusivamente pragmaacutetica Pragmaacutetica aqui significa ldquocom relaccedilatildeo agrave vidardquo ldquodo ponto de
vista do presenterdquo Ontologicamente a memoacuteria eacute potecircncia pura ndash potecircncia definida como
o que natildeo age mas exerce pressatildeo permanece agrave espreita Eis o que definiria um registro
ontoloacutegico diverso do virtual dado na mesma estrutura de realidade a que pertence o ser do
presente
A tese fundamental que consiste em explicar o mecanismo de vigiacutelia por analogia
ao do sonho em Le Recircve natildeo mostraria nada aleacutem dessa diferenccedila pragmaacutetica do atual ao
virtual111
ldquoNous nrsquoapercevons de la chose que son eacutebauche celle-ci lance un appel au
souvenir de la chose complegravete et le souvenir de la chose complegravete dont notre esprit
nrsquoavait pas conscience qui nous restait en tout cas inteacuterieur comme une simple penseacutee
profite de lrsquooccasion pour srsquoeacutelancer dehorsrdquo (BERGSON 2001 p 88999) O sonho
consiste senatildeo no estado de consciecircncia em que as lembranccedilas puras encontram-se
inteiramente potentes livres e agentes ao menos em um estado mais distendido de atenccedilatildeo
agrave vida em que nossa consciecircncia encontra-se indiferente agrave loacutegica embora natildeo seja incapaz
dela ndash e por vezes diz Bergson (2001 p 890-891100-101) ela nos prega peccedilas buscando
uma continuidade entre imagens disparatadas fazendo-nos natildeo raro tocar o absurdo Essa
indiferenccedila relativa assinala em relaccedilatildeo agrave vida e agrave vigiacutelia um relaxamento e uma distraccedilatildeo
pragmaacutetica em geral sonhamos natildeo vivemos entatildeo eacute da potecircncia especiacutefica do virtual
que a consciecircncia se deixa penetrar quando os mecanismos de inibiccedilatildeo da memoacuteria pura
encontram-se relativamente suspensos ndash porque com efeito natildeo satildeo jamais abolidos Uma
matildee pode dormir pesadamente ao lado de seu filho a ponto de natildeo ser acordada pelo som
de um trovatildeo mas o menor suspiro do bebecirc pode despertaacute-la ldquoNous ne dormons pas pour
ce qui continue agrave nous inteacuteresserrdquo (BERGSON 2001 p 893103) Eis a bela imagem que
Bergson convoca a fim de ilustrar a coalescecircncia entre o eu dos sonhos que se desinteressa
e adormece e o da vigiacutelia que precisa adormecer para continuar interessado Caso natildeo
adormecesse jamais se cansaria afinal estar a todo momento atento agrave vida e sobretudo
ldquoAvoir du bon sens est tregraves fatigantrdquo (Idem ibidem p 892103)
111
ldquo[] agrave lrsquoeacutetat de la veille la connaissance que nous prenons drsquoun objet implique une opeacuteration analogue agrave
celle qui srsquoaccompli en recircverdquo (BERGSON 2001 p 88999)
145
A partir desse breve desvio compreendemos o sentido do salto bergsoniano
compreendemos tambeacutem em profundidade o que Bergson quer dizer quando afirma que
ldquo[] nous nrsquoatteindrons jamais le passeacute si nous nrsquoy placcedilons pas drsquoembleacuteerdquo Indicando uma
diferenccedila pragmaacutetica isso significa que a fim de precisar o trabalho ativo da lembranccedila
deve-se dirigir um esforccedilo ou uma atitude que nos destaque do presente para colocarmo-
nos de imediato no passado em geral depois em certa regiatildeo dele Saltamos no virtual no
passado na memoacuteria em decorrecircncia de adotarmos uma atitude apropriada antes de as
lembranccedilas distraiacuterem-nos para a vida eacute mantendo-nos algo distraiacutedos para a vida que
recuperamos as lembranccedilas fazendo-as participar de um quadro em que o presente as
exige em que o atual as colore e as faz viver
Toda a criacutetica do bergsonismo ao associacionismo reside no fato de este ter
considerado essa dinacircmica de atualizaccedilatildeo que corresponde agrave proacutepria continuidade do
devir como uma multiplicidade descontiacutenua de elementos inertes e justapostos
confundindo percepccedilatildeo e lembranccedila em um misto mal analisado Bergson de seu turno
quer seguir as linhas de realidade da experiecircncia concreta sem destituir dela a duraccedilatildeo que
ela ocupa Eacute nesse sentido que a aplicaccedilatildeo das conclusotildees do Essai ndash especialmente
aquelas que o levavam a diferenciar multiplicidades quantitativas e qualitativas ndash autoriza a
rejeitar o argumento associacionista que confunde a diferenccedila de natureza entre percepccedilatildeo
e lembranccedila com uma simples diferenccedila de grau O significado proacuteprio dessa diferenccedila de
natureza eacute a distinccedilatildeo entre presente e passado corresponde se a levarmos agraves uacuteltimas
consequecircncias agraves duas metades da mesma ontologia de que nos ocupamos o atual e o
virtual Por essa razatildeo eacute ela que serve de ingresso para demonstrar a realidade da memoacuteria
o virtual como um modo do ser e assim evitar o mau haacutebito intelectual de confundir ser e
ser presente ndash o que nos leva a reduzir o real a uma de suas metades
Como definir o presente senatildeo em funccedilatildeo de um corpo-imagem Como defini-lo
senatildeo em relaccedilatildeo agrave vida ao esforccedilo pragmaacutetico por perseverar entre as imagens Se entre o
presente e o passado natildeo haacute uma diferenccedila apenas de grau mas de natureza eacute nisso
precisamente que a diferenccedila se resolve ndash como a diferenccedila entre memoacuteria do corpo e
memoacuteria pura da duraccedilatildeo resolvia-se na distinccedilatildeo entre o repetiacutevel por mecanismos
sensoacuterio-motores e o registro infinitesimal de acontecimentos irrepetiacuteveis Em siacutentese a
diferenccedila de natureza entre presente e passado se expressa no fato de que ldquoMon preacutesent est
ce qui mrsquointeacuteresse ce qui vit pour moi et pour tout dire ce qui me provoque agrave lrsquoaction au
lieu que mon passeacute est essentiellement impuissantrdquo (BERGSON 2001 p 280) Acabamos
146
de definir o sentido desses termos segundo diferentes planos de consciecircncia na obra de
Bergson ndash e um dos sentidos sumamente importantes encontra-se implicado na
perspectivaccedilatildeo do virtual pela atenccedilatildeo agrave vida O que Bergson requer nesse ponto da
argumentaccedilatildeo eacute algo bem mais simples eacute que perspectivemos o virtual segundo o ponto de
vista em que ele aparece concretamente a uma consciecircncia atenta agrave vida112
Se na intenccedilatildeo de esclarecer o sentido e a realidade da lembranccedila pura deixarmo-
nos ficar por um instante nessa perspectiva o momento presente surge como o decorrer do
tempo ao contraacuterio ao tempo decorrido chamaremos passado e precisariacuteamos o instante
presente como o momento em que ele decorre Eis aqui uma ilusatildeo uma intromissatildeo do
espaccedilo jaacute estamos a nos representar o presente como um instantacircneo ideal quando
sabemos suficientemente bem que concretamente ele ocupa uma duraccedilatildeo Essa duraccedilatildeo
estende-se nos dois sentidos em direccedilatildeo ao passado do qual ela proveacutem e em direccedilatildeo ao
futuro ao qual ela tende Podemos entatildeo do ponto de vista de um presente psicoloacutegico
concreto dizer que ele se constitui na percepccedilatildeo de um passado imediato e de uma
determinaccedilatildeo do futuro imediato formando um todo indiviso (BERGSON 2001 p
280153) Ora o menor intervalo de tempo que acaba de passar prolonga-se no presente em
uma sensaccedilatildeo o menor intervalo de tempo no qual meu presente se precipita desenha jaacute
os movimentos que comporatildeo minha accedilatildeo mais imediata Por isso Bergson pode afirmar
que todo presente psicoloacutegico eacute sensoacuterio-motor ndash misto indecomponiacutevel de direito do
prolongamento da uacuteltima sensaccedilatildeo e do proacuteximo devir em movimentos e accedilotildees Ou seja
ldquo[] mon preacutesent consiste dans la conscience que jrsquoai de mon corpsrdquo (BERGSON 2001 p
281153) pensado sub specie durationis ele natildeo designa mais do que um estado atual um
corte artificial de meu devir daquilo que estaacute em vias de formaccedilatildeo Essa continuidade de
devir designa a proacutepria realidade do tempo na qual a mateacuteria tambeacutem deve ter lugar como
repeticcedilatildeo incessante do atual113
As sensaccedilotildees atuais manifestam-se na superfiacutecie do corpo ocupando extensatildeo
localizadas elas satildeo fontes de movimentos e compotildeem um certo estado da materialidade
112
Eis como segue a argumentaccedilatildeo reforccedilando que a ideia de impotecircncia da memoacuteria pura eacute decalcada
forccedilosamente de um ponto de vista atual sobre o virtual ldquoOn chercherait vainement en effet agrave caracteacuteriser le
souvenir drsquoun eacutetat passeacute si lrsquoon ne commenccedilait par deacutefinir la marque concregravete accepteacutee par la conscience de
la reacutealiteacute presenterdquo (BERGSON 2001 p 280152) Ora o que Bergson define aqui como ldquoa marca concreta
da realidade presente aceita pela consciecircnciardquo constitui o iacutendice da perspectivaccedilatildeo do virtual pelo atual que
permite definir ndash do ponto de vista do atual de uma consciecircncia pragmaacutetica atenta agrave vida ndash as lembranccedilas
puras como impotentes inagentes inuacuteteis Como demonstramos do ponto de vista do ldquoeu dos sonhosrdquo
desinteressado da vida seria um contrassenso dizecirc-lo 113
ldquoLa matiegravere en tant qursquoeacutetendue dans lrsquoespace devant se deacutefinir selon nous un preacutesente qui recommance
sans cesse inversement notre preacutesent est la mateacuterialiteacute mecircme de notre existence crsquoest-agrave-dire un ensemble de
sensations et de mouvements rien drsquoautre choserdquo (BERGSON 2001 p 281154)
147
do corpo que tambeacutem estaacute em devir como a variaccedilatildeo das sensaccedilotildees demonstrariam sem
dificuldade De seu turno a lembranccedila pura apresenta caracteriacutesticas completamente
diversas inextensa natildeo ocupa a superfiacutecie do corpo em ponto algum embora possa
produzir sensaccedilotildees ao atualizar-se deixando de ser lembranccedila pura de acordo com sua
utilidade para a vida Impotente ela natildeo se conservaria no corpo mas sobreviveria em si
mesma em ldquoestado latenterdquo ndash outra maneira de definir a espera e a espreita do virtual
A lembranccedila espera e espreita durante todo o tempo em que natildeo eacute uacutetil e
permanecemos interessados ou em que age livremente porque precisamos descansar e
geralmente sem abolir os mecanismos de atenccedilatildeo agrave vida adotamos a atitude de nos
desinteressarmos e adormecer Dessa forma do ponto de vista da consciecircncia pertence agrave
memoacuteria o signo de uma impotecircncia radical No domiacutenio psicoloacutegico da consciecircncia ndash que
eacute a marca do presente do atualmente vivido do que age ndash o real resolve-se no atual o
virtual inibido e inuacutetil cai em um estado de inconsciecircncia o que eacute dizer impotecircncia Para
uma consciecircncia obcecada pela vida o que cai em um estado inconsciente pareceria cair
muito naturalmente na inexistecircncia Fora dessa consciecircncia poreacutem assumindo o ponto de
vista daquilo que permanece inibido porque inuacutetil e inconsciente porque virtual nada do
que existe precisa ser atual perspectiva do sonhador ou do distraiacutedo
Tocamos finalmente o conceito de real em Bergson Determinar quais as
condiccedilotildees para afirmar algo como real ou existente constitui boa parte da soluccedilatildeo do
problema da realidade do virtual agrave qual os comentadores geralmente datildeo muito pouca
atenccedilatildeo Em Matiegravere et Meacutemoire as componentes do conceito de realidade ontoloacutegica jaacute
aparecem um deles subentendido na existecircncia de um registro duracional espontacircneo ou
perfeito dos acontecimento de nossa vida outro mais explicitamente no campo das
imagens Resumamos tudo em uma palavra para Bergson no campo da experiecircncia o ser
se define pela potecircncia de ser experimentado Para afirmaacute-lo eacute preciso contudo algumas
cautelas ldquoSer experimentadordquo natildeo deve ser interpretado aqui nos estreitos limites de uma
experiecircncia pessoal e psicoloacutegica mas mais amplamente no campo transcendental que
define em Bergson as condiccedilotildees da experiecircncia concreta bem como do surgimento do
corpo orgacircnico de diferentes planos de consciecircncia aiacute incluiacutedo o niacutevel psicoloacutegico Nele a
realidade de uma imagem se constitui pelo potencial de agir e ser agido como uma
lembranccedila pura de seu ponto de vista virtual define-se como real segundo o mesmo
criteacuterio Ao mesmo tempo supotildee integrar-se ao campo constituindo uma espeacutecie de seacuterie
148
(BERGSON 2001 p 288163) Detenhamo-nos por um momento na anaacutelise desses
pontos
Isolemos o campo transcendental com as imagens que o compotildeem e nos
perguntemos o que basta para definir sua realidade Do ponto de vista orgacircnico e impessoal
do corpo-imagem o que a define natildeo eacute o fato de ser percebida ndash sabemos que um corpo-
imagem natildeo eacute capaz de perceber a totalidade das imagens atualmente dadas ndash mas o poder
ser percebido em resumo um potencial de percepccedilatildeo Basta lembrarmos o que define a
percepccedilatildeo pura deixando por ora de lado sua imagem virtual coalescente que
concretamente vem aiacute misturar-se trata-se precisamente do acompanhamento de
superfiacutecie dos movimentos nascentes dos potenciais de accedilatildeo de um corpo definidos pela
distacircncia entre corpo-imagem e as imagens que o circundam em funccedilatildeo de cuja variaccedilatildeo
diferenciam-se tambeacutem as promessas e ameaccedilas que essas imagens envolvem114
Enfim
essa variaccedilatildeo define os potenciais de accedilatildeo reciacuteprocos entre corpo-imagem e o restante do
universo de imagens Se ser eacute poder ser percebido ldquoserrdquo se define pelo potencial de accedilatildeo ndash
entendido como potencial de agir e de ser agido ndash com relaccedilatildeo a um corpo-imagem que se
banha em um universo de imagens Esse universo de imagens corresponde natildeo apenas a
uma seacuterie mas tambeacutem agraves linhas esquemaacuteticas da analogia que Bergson propotildee para
definir a sobrevivecircncia da memoacuteria em relaccedilatildeo agrave da mateacuteria A memoacuteria deve sobreviver
integralmente quando natildeo a percebemos distintamente da mesma forma como o universo
atual de imagens natildeo eacute abolido quando ndash reevoquemos a primeira metaacutefora com a qual
Bergson deseja que experimentemos o campo transcendental ndash fechamos nossos sentidos
para ele e deixamos de percebecirc-lo115
Quer se trate de imagens atuais quer de imagens
virtuais estas natildeo satildeo abolidas apenas porque deixamos de percebecirc-las porque fechamos
114
Eacute significativo que Bergson (2001 p 286160) afirme que ldquoles objets situeacutes autour de nous repreacutesentent agrave
des degreacutees differeacutents une action que nous pouvons accomplir sur les choses ou que nous devrons subir
drsquoellesrdquo esse excerto textualmente tatildeo distante encontra-se em paralelo com a primeira descriccedilatildeo das
imagens materiais no campo transcendental que ainda natildeo supotildeem uma vida ldquoToutes ces images agissent et
reacuteagissent les unes sur les autres dans toutes leurs parties eleacutementaires selons des lois constantes []rdquo
(BERGSON 2001 p 16911) 115
A bela imagem analoacutegica bergsoniana para aproximar os estados de inconsciecircncia da mateacuteria e da
memoacuteria eacute a seguinte ldquoTout le monde admet en effet que les images actuellement preacutesentes agrave notre
perception ne sont pas le tout de la matiegravere Mais drsquoautre part que peut-ecirctre un objet mateacuteriel non perccedilu une
image non imagineacutee sinon une espegravece drsquoeacutetat mental inconscient Au delagrave de murs de votre chambre que
vous percevez en ce moment il y a des chambres voisines puis le reste de la maison enfin la rue et la ville
ougrave vous demeurez Peu importe la theacuteorie de la matiegravere agrave laquelle vous vous ralliez reacutealiste ou ideacutealiste
vous pensez eacutevidemment quand vous parler de la ville de la rue des autres chambres de la maison agrave autant
de perceptions absentes de votre conscience et pourtant donneacutees en dehors drsquoelle Elles ne se creacuteent pas agrave
meacutesure que votre conscience les accueillent elles eacutetaient donc deacutejagrave en quelque maniegravere et puisque par
hypothegravese votre conscience ne les appreacutehendait pas comment pouvaitent-elles exister en soi sinon agrave lrsquoeacutetat
inconscient Drsquoougrave vient alors qursquoune existence en dehors de la conscience nous paraicirct claire quand il srsquoagit
des objets obscure quand nous parlons du sujet rdquo (BERGSON 2001 p 284158)
149
nossos sentidos para elas Quando adormecemos profundamente natildeo abolimos o mundo
real quando vivemos natildeo abolimos as imagens de sonho Daiacute porque a analogia que
Bergson propotildee entre lembranccedilas inconscientes e regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria natildeo eacute
apenas um artifiacutecio retoacuterico Ela se sustenta ontologicamente sobre um criteacuterio de real que
exige que a percepccedilatildeo seja tomada em um sentido muito preciso Dados no campo
transcendental um corpo-imagem participa de uma seacuterie apresenta uma conexatildeo loacutegica ou
causal com aquilo que o precede e o segue ao passo em que eacute dado no interior do proacuteprio
campo por isso insistiacuteamos em dizer que se trata de um ldquocorpo-imagem banhado de
imagensrdquo Sua existecircncia soacute pode ser definida por um potencial de accedilatildeo na medida em que
se exerce em funccedilatildeo de uma seacuterie da qual participa
Eacute possiacutevel objetar que a definiccedilatildeo de Bergson eacute demasiadamente fenomenoloacutegica
dizer que ldquoser eacute poder ser percebidordquo implicaria pressupor junto ao ser uma consciecircncia (ao
menos potencial) predisposta a percebecirc-lo em potecircncia No entanto Bergson dispensa
radicalmente o estratagema da subjetividade transcendental (PRADO JUacuteNIOR 1989 p
145) Por essa razatildeo afirmamos de um lado que o conceito de real em Bergson deveria
ser definido segundo um potencial de accedilatildeo que implica poder agir e ser agido e natildeo
simplesmente como ldquopercepccedilatildeordquo que eacute um termo que nos habituamos a psicologizar Eacute
importante observar que na mesma medida em que tendemos a psicologizar o termo
ldquopercepccedilatildeordquo admitimos sem dificuldade que a proacutepria mateacuteria inorganizada comporte
potenciais de accedilatildeo e em certo niacutevel interaja em seacuteries heterogecircneas sem por isso nos
representarmos que aiacute opera uma consciecircncia de tipo psicoloacutegico Ao mesmo tempo
advertimos que adotariacuteamos momentaneamente o ponto de vista do corpo-imagem um
ponto de vista orgacircnico que comporta certo niacutevel de consciecircncia embora natildeo forccedilosamente
psicoloacutegico ou antropoloacutegico
Para desfazer de uma vez por todas os possiacuteveis enganos conduzamos esse criteacuterio
de realidade ao seu limite suponhamos um campo transcendental povoado de elementos
inorgacircnicos de imagens que natildeo se experimentam por dentro um mundo feito apenas de
mateacuteria Se aiacute podemos enxergar a constituiccedilatildeo de uma seacuterie de imagens como assegurar
sua realidade sem uma consciecircncia que abra e feche seus sentidos no horizonte das
imagens dadas no campo transcendental Ora suprimamos toda consciecircncia com isso
perdemos os centros de indeterminaccedilatildeo que agem entre as imagens mas natildeo as imagens
mesmas Inconscientes as imagens natildeo cessaratildeo de agir e reagir umas sobre as outras sem
introduzir no mundo nada de novo segundo as leis constantes da natureza Ainda assim
elas existiratildeo pois se definem por potenciais de accedilatildeo e reaccedilatildeo determinados por meio dos
150
quais interagem mecanicamente Accedilotildees e reaccedilotildees natildeo cessaratildeo de variar mas de modo
determinado e constante Os organismos e as consciecircncias satildeo dispensaacuteveis e no limite
natildeo podem fundar uma ontologia da imanecircncia como a de Bergson justamente pela forccedila
de seu criteacuterio de real Potenciais de accedilatildeo accedilatildeo e reaccedilatildeo efetivas ndash pouco importa se
determinados ou natildeo ndash satildeo o quanto basta para definir algo como existente do ponto de
vista da mateacuteria inorganizada116
Para existir basta o inconsciente compreendido natildeo como
uma regiatildeo psicoloacutegica agrave moda freudiana mas como o extraconsciente como ldquoexistence
en dehors de la consciencerdquo (BERGSON 2001 p 284158) ao longo de todo o
bergsonismo eacute uma existecircncia fora da consciecircncia que define o real O real eacute o que pode
existir em estado consciente (ser percebido ser agido efetivamente) ou em estado
inconsciente (poder ser percebido poder ser agido virtualmente) Foi para atingir esse mais
alto grau de coerecircncia que definiacuteamos o sentido da impotecircncia da memoacuteria como originada
da perspectiva do que eacute agido e atual assim resguardaacutevamos da perspectiva do virtual os
potenciais de ser percebido e ser agido que permanecem em estado inconsciente
Um excerto de Dureacutee et Simultanacuteeacuteiteacute de 1922 dedica-se agrave questatildeo da realidade e
devemos verificar nossa hipoacutetese tambeacutem aqui Ele oferece ainda o mesmo criteacuterio de real
mas o desenvolve em um contexto de todo diferente consistente em determinar
criticamente a natureza do tempo em relaccedilatildeo agrave Teoria da Relatividade de Einstein A
grande preocupaccedilatildeo de Bergson nesse aspecto seria a de distinguir os elementos reais e
convencionais com os quais a fiacutesica definia o tempo Isso o conduz a questionar o que se
entende por ldquorealidaderdquo compreendida como realidade ldquoem geralrdquo e nessa medida
converge com nossa anaacutelise Apoacutes observar a inexistecircncia de consenso filosoacutefico sobre o
tema117
Bergson anuncia que continuaraacute a seguir sua uacutenica regra metodoloacutegica para aquele
ensaio ldquoa de natildeo afirmar nada que natildeo possa ser aceito por qualquer filoacutesofo qualquer
cientistardquo sobre a realidade especiacutefica do tempo
Como nos representamos comumente o tempo Certamente natildeo sem um antes e
um depois isto eacute fora de uma seacuterie contiacutenua sem uma sucessatildeo em funccedilatildeo da qual o
tempo se define para noacutes Toda a argumentaccedilatildeo de Bergson envolve-se pela demonstraccedilatildeo
116
ldquo[] les choses une fois constitueacutees manifestent agrave la surface par leurs changements de situations les
modifications profondes qui srsquoaccomplissent au sein du Tout Nous disons alors qursquoelles agissent les unes sur
les autres Cette action nous apparaicirct sans doute sous forme de mouvementrdquo (BERGSON 2001 p 750-
751302) Do modo como Bergson se expressa em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice percebe-se que o potencial de accedilatildeo
(agir e ser agido) o que jaacute implica supocirc-lo integrado a uma seacuterie eacute suficiente para assegurar movimento e de
consequecircncia existecircncia no tempo na duraccedilatildeo 117
ldquo[] o problema recebeu tantas soluccedilotildees quantas satildeo as nuanccedilas que o realismo e o idealismo comportamrdquo
(BERGSON 2006 p 76)
151
de que onde natildeo haacute memoacuteria natildeo poderia haver sucessatildeo e por extensatildeo loacutegica tempo118
Nesse caso ou haacute antes ou depois jamais a conjugaccedilatildeo de ambos que eacute imprescindiacutevel
para haver tempo Diante disso Bergson pode definir de uma vez por todas seu criteacuterio de
real em relaccedilatildeo ao tempo ldquo[] quando quisermos saber se estamos lidando com o tempo
real ou com um tempo fictiacutecio teremos simplesmente de nos perguntar se o objeto que nos
apresentam poderia ou natildeo ser percebido tornar-se conscienterdquo (BERGSON 2006 p 77)
As duas uacuteltimas oraccedilotildees parecem revelar uma inadequaccedilatildeo em nosso conceito de
real afinal haacute pouco diziacuteamos que ele natildeo se define por uma consciecircncia No entanto isto
ocorre apenas em aparecircncia Em primeiro lugar observe-se que Bergson retorna a seu
criteacuterio de real expressando-o em termos equivalentes aos da definiccedilatildeo de 1896 ldquoser eacute
poder ser percebidordquo Nada precisamos aprofundar sobre o sentido de percepccedilatildeo
continuam a valer aqui as razotildees retrospectivas
Em segundo lugar a expressatildeo ldquo[] tornar-se conscienterdquo eacute a que parece opor
embaraccedilos ndash mas eles satildeo meramente fictiacutecios e decorrem do haacutebito intelectual de supor
que sempre que se diz ldquoconsciecircnciardquo estaacute-se a dizer ldquoconsciecircncia psicoloacutegicardquo ou
ldquoconsciecircncia humanardquo Veremos que por traacutes dessa leitura natildeo encontraremos nada aleacutem
de um preconceito antropoloacutegico Comecemos observando nesse proacuteprio excerto a que
outro conceito Bergson compara esse elemento de consciecircncia Apoacutes definir o tempo como
o senso comum o define ndash como sucessatildeo seacuterie que encadeia antes e depois ndash Bergson
(2006 p 77) acrescenta que seria impossiacutevel supor sucessatildeo ldquo[] ali onde natildeo haacute alguma
memoacuteria alguma consciecircncia real ou virtual []rdquo Ou seja nesse trecho o sentido de
consciecircncia afasta-se do preconceito antropoloacutegico para ser compreendida antes como
ldquoalguma memoacuteriardquo ldquoreal ou virtualrdquo A consciecircncia aqui equivale agrave memoacuteria elementar
impessoal natildeo-psicoloacutegica e ontoloacutegica que a duraccedilatildeo real supotildee na retenccedilatildeo e penetraccedilatildeo
de instantes que opera Afinal ela soacute pode consistir em sucessatildeo multiplicidade
qualitativa heterogecircnea e de penetraccedilatildeo se ldquoalguma memoacuteriardquo age para fundir essa
multiplicidade em um contiacutenuo
Em terceiro lugar se retornarmos a uma das regiotildees mais importantes da
argumentaccedilatildeo metafiacutesica de Bergson em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute sobre o tempo nos
depararemos com um aprofundamento dessa ideia de consciecircncia que seraacute uacutetil para dirimir
qualquer duacutevida sobre o sentido em que ela eacute empregada para definir o criteacuterio de
realidade ldquoO que queremos estabelecerrdquo diz Bergson ldquoeacute que natildeo se pode falar de uma
118
De nossa parte essa demonstraccedilatildeo seraacute detalhada na proacutexima seccedilatildeo ldquoO ser do passado como fundamento
do tempo memoacuteria repeticcedilatildeo devirrdquo
152
realidade que dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo ldquo[] eacute impossiacutevel imaginar ou
conceber um traccedilo-de-uniatildeo entre o antes e o depois sem um elemento de memoacuteria e por
conseguinte de consciecircnciardquo e no iniacutecio do paraacutegrafo subsequente ldquoTalvez o emprego
dessa palavra repugne se associarem a ela um sentido antropomoacuterfico Mas para conceber
uma coisa que dura natildeo eacute de modo algum necessaacuterio pegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e
transportaacute-la mesmo atenuada para o interior da coisardquo (BERGSON 2006 p 56)119
Em
resumo com consciecircncia ou com memoacuteria Bergson quer dizer continuidade da duraccedilatildeo
interpenetraccedilatildeo e fusatildeo de elementos de uma seacuterie natildeo consciecircncia humana120
O que o conceito de real e seu criteacuterio de verificaccedilatildeo assim discutidos datildeo a ver eacute
uma espeacutecie de grito que atravessa o bergsonismo ldquoNatildeo antropologize demais a memoacuteria
nem a consciecircnciardquo Eis um dos significados profundos que impedem que se coloque
Bergson no rol dos psicoacutelogos Tampouco o campo transcendental deve equivaler a uma
consciecircncia transcendental uma vez que ldquoa consciecircncia filosoacutefica soacute surge no interior de
um campo que a precede e natildeo pode ser isolada de suas raiacutezes preacute-filosoacuteficasrdquo (PRADO
JUacuteNIOR 1989 p 205) Ele eacute a regiatildeo do ser em que se constituem seacuteries extensas e
inextensas ou duracionais
Esse longo desvio nos permite retomar definitivamente a demonstraccedilatildeo do modo de
conservaccedilatildeo em si mesmo das lembranccedilas puras no exato ponto em que o abandonamos
para investigar o conceito bergsoniano de real Enriquecidos pela ideia de que o ser ou o
real para Bergson devem definir-se como potencial de accedilatildeo ndash compreendido como poder
de agir e ser agido que supotildee sua participaccedilatildeo em uma seacuterie ndash remontamos do campo
transcendental em direccedilatildeo agrave consciecircncia implicada no organismo atento para a vida
Adotamos uma vez mais seu ponto de vista em relaccedilatildeo ao qual a lembranccedila pura mostra
apenas uma face de impotecircncia e inconsciecircncia ndash nesse ponto jaacute podemos afirmar que a
primeira eacute o signo do virtual a segunda o signo do real como existecircncia fora da
consciecircncia Agrave lembranccedila pura pertencem a espera e a espreita na medida em que o
presente eacute ldquoo que vive para mimrdquo De seu turno ldquo[] le passeacute nrsquoa plus drsquointerecirct pour nousrdquo
(BERGSON 2001 p 285159) e eacute desse ponto de vista impotente porque inconsciente
Inclinando-se incessantemente em direccedilatildeo ao futuro o presente condiz com a distacircncia
relativa em que podemos agir ou sofrer a accedilatildeo das imagens agrave nossa volta e assim se
119
A referecircncia corresponde a todos os trechos citados 120
Deleuze (1966 p 45) converge com essa interpretaccedilatildeo ao afirmar ldquoLa dureacutee est essentiellement meacutemoire
conscience liberteacute Et elle est conscience et liberteacute parce qursquoelle est drsquoabord meacutemoirerdquo
153
desenha no espaccedilo o esquema de nosso futuro imediato Coexistente com esse ldquoinstanterdquo
que define o de uma percepccedilatildeo atual ndash que emprestando uma inspirada expressatildeo
poderiacuteamos compreender como ldquoo miacutenimo de tempo contiacutenuo pensaacutevelrdquo (DELEUZE
1996 p 184) ndash decorre a duraccedilatildeo em que essa percepccedilatildeo sucede
Essa coextensatildeo nos parece misteriosa ndash como nos parece misteriosa a realidade do
passado em si mesmo ndash em face de determinaccedilotildees bioloacutegicas especiacuteficas ldquoLe mecircme
instinct en vertu duquel nous ouvrons indeacutefiniment devant nous lrsquoespace fait que nous
refermons derriegravere nous le temps agrave meacutesure qursquoil srsquoeacutecoulerdquo (BERGSON 2001 p 286160-
161) Assim somos levados a aceitar de bom grado que o universo material ultrapasse
nossa percepccedilatildeo presente mas tambeacutem confundimos no que diz respeito ao escoar do
tempo ser e ser presente De seu turno Bergson insiste sem cessar na analogia do estatuto
virtual do inconsciente suposto por regiotildees natildeo percebidas da mateacuteria e o das lembranccedilas
puras121
No entanto se as lembranccedilas saiacutedas do fundo da memoacuteria podem parecer encerrar
algo fantasmaacutetico e irreal isso natildeo se deve senatildeo agrave accedilatildeo inibidora e organizadora da accedilatildeo
imediatamente futura de uma consciecircncia atenta agrave vida ndash funccedilatildeo de um recalque vital
Da mesma forma que os objetos dispostos no espaccedilo parecem formar uma seacuterie na
extensatildeo as lembranccedilas puras no ponto mais distendido de uma consciecircncia apresentar-
se-iam tambeacutem como uma seacuterie contiacutenua Assim podendo ser percebidas e participando de
uma seacuterie temporal preenchem-se as condiccedilotildees para a existecircncia ndash no campo da
experiecircncia ndash das lembranccedilas afinal a impotecircncia atribuiacuteda agraves lembranccedilas por uma
atenccedilatildeo agrave vida que natildeo cessa de vigiaacute-las e inibi-las natildeo determina outra coisa senatildeo a
pressatildeo que exercem do fundo da memoacuteria feita de espera e espreita sua impotecircncia atual
assinala do ponto de vista do virtual um potencial de agirem e serem agidas um potencial
de atualizaccedilatildeo sua participaccedilatildeo em uma continuidade temporal virtual assegura sua
potencial participaccedilatildeo em outra seacuterie de efetuaccedilatildeo projetando-se no espaccedilo Por essa
razatildeo tudo o que compotildee a memoacuteria pura define-se como real mas virtual porque
inconsciente ndash exatamente como as regiotildees da mateacuteria natildeo percebidas por um corpo-
imagem promessas ou ameaccedilas fora da consciecircncia e no entanto plenamente reais O
potencial do virtual eacute o mesmo de um golpe desferido pelas costas e no escuro ndash ele toca a
121
ldquoEn reacutealiteacute lrsquoadheacuterence de ce souvenir agrave notre eacutetat preacutesent est tout agrave fait comparable agrave celle des objets
inaperccedilus aux objets que nous percevons et lrsquoinconscient joue dans les deux cas un rocircle du mecircme genrerdquo
(BERGSON 2001 p 286-287161) ou entatildeo ao afirmar ldquoNous nrsquoavons pas affaire en ce qui concerne les
objets inaperccedilus dans lrsquoespace et les souvenirs inconscients dans le temps agrave deux formes radicalment
diffeacuterentes de lrsquoexistence mais les exigences de lrsquoaction sont inverses []rdquo (BERGSON 2001 p 288162-
163)
154
sombra do irrepresentaacutevel que com efeito soacute o eacute do ponto de vista dos recortes imoacuteveis
que o atual produz no devir
Se pudemos nos convencer de que a memoacuteria se conserva o problema que se
insinua agrave anaacutelise eacute a determinaccedilatildeo do ldquolugarrdquo em que ela se conserva e se essa questatildeo se
insinua diz Bergson isso se deve inteiramente agrave nossa obsessatildeo pelas imagens obtidas no
espaccedilo Jaacute conhecemos os motivos ndash e tambeacutem alguns gracejos ndash com os quais Bergson
rejeitava a hipoacutetese da conservaccedilatildeo cerebral ou a tese do paralelismo psicofiacutesico Ao
discorrer sobre o papel do ceacuterebro a seccedilatildeo precedente demonstrou abundantemente as
articulaccedilotildees conceituais que conduzem essas teses ao absurdo ou ao paradoxo Se o ceacuterebro
eacute como demonstramos uma parte do corpo bioloacutegico uma imagem material ele nunca
ocupa mais do que o momento presente Sendo sempre o estado estacionaacuterio de um devir
em vias de formaccedilatildeo de minhas sensaccedilotildees e de meus movimentos dos prolongamentos de
uns nos outros logo se torna desnecessaacuterio pensar a conservaccedilatildeo do passado em analogia a
clichecircs fotograacuteficos a serem armazenados em algum lugar Se Bergson (2001 p 290166)
afirma a sobrevivecircncia em si do passado eacute ultrapassando a suposiccedilatildeo do haacutebito intelectual
de pensar a conservaccedilatildeo como relaccedilatildeo espacial inaplicaacutevel agrave duraccedilatildeo entre um continente
que conserva e um conteuacutedo a ser conservado A conservaccedilatildeo eacute antes de mais nada
retenccedilatildeo ou registro na duraccedilatildeo ndash isto eacute memoacuteria
Contudo como o passado pode por hipoacutetese conservar-se em si mesmo se deixou
de ser A essa contradiccedilatildeo Bergson responde afirmando que ldquola question est preacuteciseacutement
de savoir si le passeacute a cesseacute drsquoexister ou srsquoil a simplement cesseacute drsquoecirctre utilerdquo (BERGSON
2001 p 291166) O que estaacute na raiz dessa contradiccedilatildeo aparente eacute a reduccedilatildeo do ser ao ser
presente ndash confusatildeo explicada ao nos representarmos o tempo de modo espacializado e ao
ignorarmos a realidade movente do devir122
Se o presente for apenas um limite ideal
moacutevel entre o passado e o futuro nada teraacute menos realidade que ele ao mesmo tempo em
que ele eacute jaacute se passou Se o presente por outro lado for o presente concreto ocupando
uma duraccedilatildeo tomando parte em uma continuidade ele teraacute muito de passado imediato por
meio do qual reconstruiacutemos a unidade e o sentido de uma percepccedilatildeo123
As razotildees de fundo
122
ldquoVous deacutefinissez arbitrairement le preacutesent ce qui est alors que le preacutesent est simplement ce qui si faitrdquo
(BERGSON 2001 p 291166) 123
Bergson explica por que percebemos praticamente soacute o passado por meio do ceacutelebre exemplo de uma
instantacircnea emissatildeo luminosa ldquoDans la fraction de seconde que dure la plus courte perception possible de
lumiegravere des trillions de vibrations ont pris place dont la premiegravere est seacutepareacutee de la derniegravere par un intervalle
eacutenormeacutement diviseacuterdquo (BERGSON 2001 p 291166-167) Dessa forma nossa mais instantacircnea percepccedilatildeo
consistiria em uma siacutentese mental de uma incalculaacutevel multidatildeo de elementos rememorados por isso
Bergson pode afirmar que a percepccedilatildeo pura eacute jaacute lembranccedila e que o presente puro natildeo passa do
inapreensiacutevel avanccedilar do passado a roer o futuro
155
satildeo psico-bioloacutegicas como tudo em nossa consciecircncia psiacutequica nos inclina agrave vida damos
primazia agravequilo que se desenrola atualmente natildeo agravequilo que jaacute se desenrolou eis o fruto de
nossa adaptaccedilatildeo ao presente mais proacutexima dos haacutebitos engendrados pela memoacuteria motora
que das lembranccedilas puras
No entanto entre a memoacuteria motora e a memoacuteria pura apenas esta uacuteltima seria a
verdadeira registrando em continuidade seacuteries de acontecimentos uacutenicos e irrepetiacuteveis no
dorso inextenso da duraccedilatildeo real Apesar de opostos haacutebito e memoacuteria pura agenciam-se na
experiecircncia concreta em que o corpo se determina como o lugar de passagem dos
movimentos recebidos e devolvidos mediaccedilatildeo para com as imagens que o cercam A
ceacutelebre imagem do cone invertido sobre um plano daacute-nos enfim a relaccedilatildeo coextensiva
entre elas O cone invertido designa a totalidade de nossas lembranccedilas acumuladas
distribuiacutedas em diferentes niacuteveis de consciecircncia ndash repeticcedilotildees mais distendidas na medida
em que nos aproximamos da base mais contraiacutedas ao passo em que nos deslocamos em
direccedilatildeo ao veacutertice Este designa o estado atual de nosso corpo e de seus mecanismos
sensoacuterio-motores que tocando o plano em determinado ponto representa seu recorte
perceptivo como o niacutevel mais contraiacutedo da base do cone e portanto da memoacuteria pura com
a qual toda percepccedilatildeo atual coexiste e na qual se duplica O equiliacutebrio entre as duas
memoacuterias definiria o senso praacutetico do homem de accedilatildeo enquanto a primazia do presente
designaria natildeo apenas as formas de vida inferior mas tambeacutem o homem impulsivo por sua
vez o que vive em meio aos milhares de imagem do passado caracteriza-se como o
sonhador que de seu turno natildeo estaacute melhor adaptado agrave vida O que a vida exige eacute que a
percepccedilatildeo seja pragmaacutetica isto eacute que ela seja capaz de responder a uma tendecircncia ou a
uma necessidade (BERGSON 2001 p 299176)
A uacuteltima questatildeo que nos resta abordar eacute como Bergson descreve a dinacircmica de
atualizaccedilatildeo de lembranccedilas especialmente como selecionar em uma multidatildeo de imagens
semelhantes agrave situaccedilatildeo presente aquela mais uacutetil para a accedilatildeo Essa questatildeo se torna
relevante na medida em que torna possiacutevel aprofundar a questatildeo da distribuiccedilatildeo das
lembranccedilas em diferentes niacuteveis de consciecircncia mais ou menos contraiacutedos Se retornarmos
ao diagrama do cone invertido Bergson (2001 p 305184) havia suposto que a totalidade
de nossas lembranccedilas ndash o que para ele equivale agrave nossa personalidade ndash coexiste indivisa e
contraiacuteda em relaccedilatildeo agrave nossa percepccedilatildeo presente Concentrada no ponto moacutevel que
descreve o estado atual de nosso corpo e seu recorte perceptivo com relaccedilatildeo ao plano da
representaccedilatildeo a consciecircncia teria de expandir-se na direccedilatildeo da base a fim de que
156
colocando-se no passado em algum niacutevel de consciecircncia dele pudesse encontrar aiacute uma
lembranccedila uacutetil
Esse movimento de contraccedilatildeo e de expansatildeo pelo qual a consciecircncia passa de um
niacutevel de consciecircncia a outro decorre das necessidades fundamentais da vida (BERGSON
2001 p 305185) Em cada um dos extremos ndash veacutertice da percepccedilatildeo informada pelos
haacutebitos motores ou base da memoacuteria pura ndash natildeo eacute possiacutevel encontrar isoladamente
nenhuma razatildeo para fixar a atenccedilatildeo em uma parte determinada do passado afinal no
veacutertice todo haacutebito motor adaptado ao presente seria semelhante e contiacuteguo agrave percepccedilatildeo
enquanto na base toda lembranccedila pareceria radicalmente diversa e descolada da percepccedilatildeo
atual ndash mesmo porque colocados de iniacutecio na base nossa atenccedilatildeo agrave vida por demais
desinteressada jaacute natildeo seria capaz de determinar os efeitos de semelhanccedila e continuidade
(BERGSON 2001 p 306186)
Descritos esses dois limites extremos eacute necessaacuterio observar que concretamente eles
jamais satildeo atingidos ldquoNotre vie psychologique normale oscille [] entre ces deux
extremiteacutesrdquo (BERGSON 2001 p 307187) sem jamais entregar-se a um estado puramente
sensoacuterio-motor nem a um devaneio absolutamente desligado de uma vaga atividade atual
Com efeito o estado sensoacuterio-motor orienta a memoacuteria da qual eacute seu prolongamento ativo
por sua vez a memoacuteria pressiona no sentido desse prolongamento do qual ela constitui a
base a fim de inserir aiacute a maior quantidade de imagens possiacutevel Disso resulta uma seacuterie de
estados possiacuteveis da memoacuteria correspondentes a niacuteveis diferentes de contraccedilatildeo e distensatildeo
da consciecircncia Para representaacute-los mais facilmente basta imaginar que no diagrama do
cone insere-se entre a base e o veacutertice uma seacuterie de secccedilotildees virtuais paralelas agrave base
Cada uma delas apresenta um estado da memoacuteria mais ou menos contraiacutedo conforme
esteja mais proacuteximo da percepccedilatildeo ou da memoacuteria pura ao mesmo tempo cada um desses
niacuteveis implica a totalidade de nosso passado ndash a repeticcedilatildeo integral de nossa memoacuteria Em
cada um desses niacuteveis embora natildeo se trate de lembranccedilas justapostas umas agraves outras ldquohaacute
pontos brilhantesrdquo lembranccedilas dominantes que se multiplicam cada vez mais ao passo em
que se remonta em direccedilatildeo agrave base nela haacute apenas constelaccedilotildees claras e vastas
Poreacutem como a atualizaccedilatildeo e a seleccedilatildeo de um desses estados se operam Tudo se
passa com dois movimentos simultacircneos pelos quais nossa memoacuteria responde ao apelo do
presente Um de translaccedilatildeo pelo qual a memoacuteria vai ao encontro do estado presente em
vista da accedilatildeo outro de rotaccedilatildeo pelo qual orientando-se de acordo com a situaccedilatildeo em
questatildeo apresenta-lhe sua face mais uacutetil (BERGSON 2001 p 307-308188) A cada um
desses infinitos niacuteveis de contraccedilatildeo que reduzem mais ou menos a integral de nossa
157
memoacuteria em virtude do presente corresponde um sem nuacutemero de formas de associaccedilatildeo por
semelhanccedila e contiguidade Natildeo por acaso Bergson (2001 p 309189-190) observa que
ldquoDans le plan extrecircme qui repreacutesente la base de la meacutemoire il nrsquoy a pas de souvenir qui ne
soit lieacute par contiguumliteacute agrave la totaliteacute des eacuteveacutenements qui le preacutecegravedent et aussi de ceux que le
suiventrdquo
Eacute a continuidade da duraccedilatildeo em sua forma mais pura e distendida que encontramos
dessa maneira a memoacuteria elementar que natildeo cessa de formar seacuteries por contiguidade ndash o
que constitui como vimos um dos criteacuterios do real para Bergson Portanto eacute a ele que
devemos retornar a fim de desdobrar as consequecircncias efetivamente ontoloacutegicas desse
conceito de memoacuteria Apenas um tal desdobramento tornaraacute possiacutevel apreender o
significado de afirmar o ser do passado como fundamento do tempo
sect 3 O SER DO PASSADO COMO FUNDAMENTO DO TEMPO
MEMOacuteRIA REPETICcedilAtildeO E DEVIR
De um ponto de vista ontoloacutegico a consistecircncia virtual da memoacuteria define o ser do
passado Se como vimos a memoacuteria soacute pode conservar-se em si no proacuteprio tempo o
ceacutelebre esquema do cone de memoacuteria apresenta a coexistecircncia da totalidade de nosso
passado ndash inteiramente presente em cada um dos infinitos niacuteveis que separam a base do
cone de seu veacutertice presente ndash com o estado atual de nosso corpo sensoacuterio-motor
conferindo agrave percepccedilatildeo um horizonte de realidade temporal De acordo com esse horizonte
o presente mais imediato consistiria na integral de nosso passado em seu niacutevel mais
contraiacutedo ponto perceptivo sobre o plano da representaccedilatildeo As linhas gerais desse
esquema em que coexistem memoacuteria do corpo percepccedilatildeo presente e memoacuteria pura
distribuiacutedos em diversos niacuteveis de repeticcedilatildeo psiacutequica determinam a realidade proacutepria do
ser do passado e com ele a realidade da memoacuteria
Correlata a essa realidade eacute a necessidade de pocircr-se de iniacutecio no passado saltar
pragmaticamente do registro do atual ao virtual em que se conservam as lembranccedilas a fim
de enriquecer a percepccedilatildeo presente com uma lembranccedila uacutetil ndash selecionada em vista das
necessidades presentes no transcurso da accedilatildeo ndash no tempo de hesitaccedilatildeo entre a siacutentese de
registro dos movimentos que se prolongam em lembranccedilas e a do prolongamento das
sensaccedilotildees misturadas a lembranccedilas que deflagram a accedilatildeo de um corpo Esse tempo de
hesitaccedilatildeo ndash mais ou menos amplo ndash eacute o que define o grau de indeterminaccedilatildeo que se pode
158
inserir nas accedilotildees Tudo decorre da coexistecircncia da memoacuteria pura que se natildeo existe no
mesmo sentido do atual ndash definido pela atividade pelo puro devir em relaccedilatildeo ao qual eacute
levado a abrir-se ndash insiste ou simplesmente eacute (DELEUZE 1966 p 49-50) Ela eacute sem
agir eacute ser mas sem ser uacutetil Da perspectiva do atual a memoacuteria pura definia-se como
impotente e inconsciente da do virtual potecircncia fora da consciecircncia psicoloacutegica e sem
relaccedilatildeo (senatildeo virtual) com o atual ponto em que memoacuteria e imemorial parecem coincidir
A memoacuteria pura constitui o iacutendice de que a memoacuteria antes de ser psicoloacutegica eacute
ontoloacutegica sendo necessaacuterio precisar como Bergson a compreende Na medida em que
esse iacutendice que liga a realidade da lembranccedila agravequela de um fundo obscuro no qual jamais
conseguimos nos colocar por inteiro ndash e no entanto ele estaacute inteiramente presente em cada
um dos niacuteveis subsequentes a esse limite puro ndash seraacute possiacutevel reafirmar natildeo apenas sua
realidade mas que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo para o presente passar Nesse sentido a
memoacuteria poderaacute ser compreendida como fundamento do tempo Do ponto de vista do
atual o tempo se define pela sucessatildeo real pelo escoamento do presente ao mesmo tempo
veremos que eacute soacute do ponto de vista da memoacuteria que se pode entrever no presente que
passa o puro devir A essa problemaacutetica vem juntar-se a seguinte questatildeo sob o ponto de
vista da coexistecircncia de duraccedilotildees muito diferentes da sua percepccedilatildeo simultacircnea haacute um soacute
tempo ou muitos Haacute uma soacute memoacuteria ou muitas Trata-se do enigma da pluralidade ou
da unicidade do tempo em Bergson na qual deve verificar-se ainda uma vez a questatildeo do
tempo real
A fim de responder a essas trecircs questotildees essenciais agrave determinaccedilatildeo do problema de
uma ontologia do virtual em Bergson vecircm cruzar-se com os capiacutetulos centrais de Matiegravere
et Meacutemoire as anaacutelises de Dureacutee et Simultaneacuteiteacute (1922) especialmente seu capiacutetulo
terceiro sobre a natureza do tempo o mais profundamente metafiacutesico de toda essa
polecircmica e no qual a realidade do tempo eacute colocada mais em termos ontoloacutegicos que
psicoloacutegicos ndash daiacute porque merecer nesse momento atenccedilatildeo analiacutetica
Assim como no Essai em Dureacutee et Simultaneacuteiteacute o tempo seraacute definido antes de
tudo em funccedilatildeo da continuidade de nossa vida interior No entanto a essa definiccedilatildeo segue-
se um raacutepido movimento que abstrai a consciecircncia individual e que consiste em questionar
o significado impessoal dessa continuidade definida por uma imanecircncia a si mesma ldquoO
que eacute essa continuidade A de um escoamento ou de uma passagem mas de um
escoamento e de uma passagem que se bastam a si mesmos uma vez que o escoamento
natildeo supotildee uma coisa que se escoa e a passagem natildeo pressupotildee estados pelos quais se passa
159
[]rdquo (BERGSON 2006 p 51) Enquanto experimentamos em profundidade a realidade
movente de uma transiccedilatildeo a inteligecircncia faz com que instantacircneos e estados recortados de
seu movimento absoluto nos obsedem O que eacute vivido natildeo satildeo os estados ou as coisas
mas as passagens natildeo os instantes artificialmente captados mas as transiccedilotildees que duram
entre esses instantes ndash apreensotildees inertes em relaccedilatildeo agraves quais podemos afirmar que algo se
passou alterou-se Portanto a realidade do tempo pode tocar a superfiacutecie das coisas mas
penetra apenas entre o que uma inteligecircncia arbitrariamente decreta serem dois de seus
estados
Prova disso eacute que Bergson define essa transiccedilatildeo naturalmente experimentada de
duas formas ldquoeacute a proacutepria duraccedilatildeordquo ldquoEla eacute memoacuteriardquo Se pudermos definir a memoacuteria
como fundamento do tempo toda a questatildeo estaacute em determinar que tipo de duraccedilatildeo ou
que tipo de memoacuteria permite definir a continuidade implicada em uma transiccedilatildeo que basta
a si mesma que natildeo depende dos estados em que se encarna e que altera que constitui a
proacutepria substacircncia incessantemente movente que longe de atravessar pelas coisas parece
ser algo pelo que as coisas atravessam
Eis aqui o gesto radicalmente ontoloacutegico de Bergson ao definir essa continuidade
que implica sucessatildeo atual e empurrando o passado no presente e este no puro devir faz o
presente passar ldquoEla eacute memoacuteria mas natildeo memoacuteria pessoal exterior agravequilo que ela reteacutem
distinta de um passado cuja conservaccedilatildeo ela garantiria eacute uma memoacuteria interior agrave proacutepria
mudanccedila memoacuteria que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros
instantacircneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantementerdquo
(BERGSON 2006 p 51) Essencialmente virtual a memoacuteria eacute apresentada com as
propriedades da proacutepria duraccedilatildeo isto eacute como ldquoqualidadeldquo como ldquoheterogeneidaderdquo como
ldquoo que difere de sirdquo (DELEUZE 2002 p 34) independente dos estados cuja realidade
movente depende dela ela se manteacutem ldquoexterior agravequilo que ela reteacutemrdquo ela eacute impessoal
pois parece dispensar uma consciecircncia psicoloacutegica para constituir uma pura ldquocontinuidade
do antes no depoisrdquo Memoacuteria pura sem imagem-lembranccedila virtual absoluto limite
inconsciente que no entanto age na realidade do tempo sem se confundir com os estados
atuais que soacute podem alterar-se no imenso corpo-mundo dessa memoacuteria que assegura a
sucessatildeo do presente
Contudo a sucessatildeo natildeo eacute senatildeo um ponto de vista do atual sobre uma
continuidade virtual que impotildee uma memoacuteria coexistente com o presente Do ponto de
vista de um atual que parece perseverar em si mesmo o que senatildeo a memoacuteria viria inserir
a diferenccedila na repeticcedilatildeo engendrar um tempo de sucessatildeo contiacutenua Por si o presente eacute
160
um instantacircneo atualmente impotente que nem se torna passado nem se abre ao devir Se
o presente natildeo adveacutem sem memoacuteria o presente e o devir encontram nela o seu
fundamento se por ldquofundamentordquo entendermos aqui a mediaccedilatildeo que torna possiacutevel o
porvir Se um presente pode bastar-se em sua realidade atual jamais constituiria por si
sem a memoacuteria um presente que passa jamais se inseriria em uma seacuterie temporal
contiacutenua Desse ponto de vista talvez muito abstrato e instantacircneo Bergson pode dizer que
nada tem menos realidade que esse presente Contudo se tomado a partir da experiecircncia
concreta ele ocupa uma duraccedilatildeo ele se insere em uma seacuterie que natildeo comeccedila nem termina
por ele mas que o integra ndash e o que significa integrar o presente em uma seacuterie temporal
senatildeo ligaacute-lo por uma espeacutecie de memoacuteria ao passado e ao porvir O que estaacute implicado aiacute
senatildeo duraccedilatildeo sucessatildeo real memoacuteria ndash que natildeo se confunde com a linha abstrata que a
inteligecircncia decalca dela
Para provaacute-lo natildeo eacute preciso uma consciecircncia humana por certo basta a memoacuteria
muito impessoal do corpo os haacutebitos motores os prolongamentos mnemocircnicos impessoais
mais imediatos dos movimentos percebidos Tudo parece muito atual quase instantacircneo
natildeo fosse o tempo de hesitaccedilatildeo miacutenima que o aparelho sensoacuterio-motor deixa passar entre
estiacutemulo e reaccedilatildeo poreacutem no menor tempo contiacutenuo de percepccedilatildeo-accedilatildeo de um organismo
o que manteacutem a continuidade de uma na outra eacute ainda uma espeacutecie de memoacuteria Isso eacute
suficiente para provar que natildeo eacute preciso uma memoacuteria humana de tipo psicoloacutegico para
engendrar o tempo ele se basta com essa memoacuteria impessoal que prolonga o antes e o
depois ndash e como vimos ela eacute facilmente divisaacutevel no vivo Poreacutem ainda que esse exemplo
seja suficiente natildeo levamos com ele o conceito de memoacuteria como fundamento do tempo
a seu limite proacuteprio as imagens materiais em seu campo transcendental haveraacute a mesma
espeacutecie de memoacuteria entre elas
A reposta eacute forccedilosamente positiva e nos permite ver que mesmo aqui o gesto
ontoloacutegico de uma memoacuteria que ldquoprolonga o antes no depoisrdquo que eacute a ldquomemoacuteria interna agrave
proacutepria mudanccedilardquo jaacute se encontra suposto pela proacutepria realidade do campo transcendental
Caso contraacuterio como as imagens agiriam e reagiriam umas sobre as outras O que ligaria
mesmo imediatamente accedilatildeo e reaccedilatildeo Como exerceriam de maneira determinada o
potencial de accedilatildeo que haacute pouco definia sua realidade Haacute ainda um miacutenimo de tempo
contiacutenuo no qual accedilatildeo-reaccedilatildeo por simultacircneas que sejam satildeo recolhidas uma na outra Isso
prova que a mateacuteria dura que mesmo a repeticcedilatildeo material mais pura e nua ndash aquela que
natildeo parece introduzir no mundo nada de novo ndash implica uma memoacuteria da variaccedilatildeo de
potenciais nesse sentido muito elementar continuidade do antes no depois um
161
prolongamento que natildeo pode ser senatildeo temporal quando tomamos as imagens em seu
conjunto Natildeo haacute realidade em Bergson sem um miacutenimo de tempo contiacutenuo sem uma
duraccedilatildeo espessa a implicar uma memoacuteria que basta a si mesma ndash melodia pura sem
qualidades ldquosucessatildeo sem separaccedilatildeordquo (BERGSON 2006 p 52) No entanto com isso
deslocamos relativamente o problema da memoacuteria como fundamento do tempo soacute seraacute
possiacutevel afirmaacute-lo na medida em que se possa demonstrar que a duraccedilatildeo eacute necessaacuteria
mesmo agravequilo que aparentemente natildeo dura coisas simultaneamente percebidas
Tudo isso pode parecer ainda anaacutelogo demais a uma percepccedilatildeo interior e consciente
do tempo por mais que nos esforcemos por experimentaacute-lo da forma como Bergson
requer ontologicamente em si mesmo como continuidade pura e transiccedilatildeo ininterrupta
que bastando a si mesma parece implicar uma siacutentese passiva da memoacuteria independente
de um sujeito que contrai os instantes Se supomos que a mateacuteria e mesmo as
simultaneidades exigem uma duraccedilatildeo eacute preciso passar do tempo interior ao tempo das
coisas Como isso eacute possiacutevel Em geral fazemo-lo por uma ampliaccedilatildeo progressiva de
nosso recorte perceptivo do mundo material imaginando horizontes cada vez mais amplos
e todos submetidos pelo menos de direito ao sentimento de duraccedilatildeo que nossa consciecircncia
experimenta ao perceber uma dada regiatildeo da mateacuteria Se as coisas sob a eacutegide da
percepccedilatildeo consciente parecem durar da mesma forma que nossa consciecircncia ndash e se toda
percepccedilatildeo como vimos implica a um soacute tempo uma realidade dentro de noacutes (a de nosso
corpo) e fora de noacutes (a da superfiacutecie material percebida) ndash eacute loacutegico deduzir que o universo
dure como se houvesse ldquouma consciecircncia impessoal que seria o traccedilo-de-uniatildeo entre todas
as consciecircncias individuais assim como entre essas consciecircncias e o resto da naturezardquo
(BERGSON 2006 p 52-53) Assim em um uacutenico ato dois ou mais acontecimentos
seriam captados pela mesma percepccedilatildeo instantacircnea simultacircneos estariacuteamos diante de uma
realidade externa a noacutes que dura e uma interna que se sente durar
Se a deduccedilatildeo de um tempo das coisas a partir de um tempo interno repousa sobre a
simultaneidade verificada ao menos entre um momento de nossa vida interior um
momento de nosso corpo e um momento de toda a mateacuteria circundante uma questatildeo se
ligaria agrave da memoacuteria como fundamento do tempo haveria uma multiplicidade de duraccedilotildees
ou tudo se passaria como parece haveria uma soacute duraccedilatildeo a envolver todo o universo
Deparamos com as teses pluralistas ou monistas sobre a realidade da duraccedilatildeo Apoacutes
uma longa demonstraccedilatildeo de sua realidade jaacute natildeo precisamos questionaacute-la senatildeo com
relaccedilatildeo ao seu sentido A soluccedilatildeo desse ponto eacute essencial agrave demonstraccedilatildeo da memoacuteria ou
do ser do passado como fundamento do tempo de um ponto de vista ontoloacutegico afinal eacute
162
ela (a memoacuteria) que pode entregar-nos a duraccedilatildeo em sua realidade ontoloacutegica mais
profunda ela responde por seu sentido mais extremo No entanto por capital que seja essa
questatildeo a demonstraccedilatildeo de Bergson parece agrave primeira vista muito obscura e ateacute mesmo
evasiva124
acompanhemos como Bergson desenvolve esse raciociacutenio analoacutegico que ele
admite ldquomal ser conscienterdquo
Parte-se do pressuposto de que consciecircncias humanas tenham a mesma natureza
isto significa que diversas que sejam elas duram da mesma maneira ldquovivem a mesma
duraccedilatildeordquo (BERGSON 2001 p 54) Isso posto imaginamos seacuteries de consciecircncias
humanas distribuiacutedas por toda a extensatildeo do universo material de tal forma que ndash
proacuteximas umas das outras ndash ldquoduas delas tenham em comum a porccedilatildeo extrema do campo de
sua experiecircncia exteriorrdquo (Idem ibidem loc cit) Definem-se assim dois campos
contiacuteguos de experiecircncia externa que participam respectivamente da duraccedilatildeo de cada uma
das consciecircncias assim distribuiacutedas Como entre as duas consciecircncias trata-se da mesma
duraccedilatildeo entre as duas experiecircncias tratar-se-aacute tambeacutem de uma mesma duraccedilatildeo uma vez
que as porccedilotildees extremas do campo de cada uma das experiecircncias exteriores coincidem satildeo
comuns Logo ldquomediante esse traccedilo-de-uniatildeo elas se juntam em uma experiecircncia uacutenica
desenrolando-se numa duraccedilatildeo uacutenica que seraacute como queiram a de uma ou de outra das
duas consciecircnciasrdquo (BERGSON 2006 p 54-55) Eacute nesse ponto que Bergson insere um
raciociacutenio analoacutegico progressivo que consiste em repetir a experiecircncia indefinidamente
abrangendo a totalidade do mundo material Assim ateacute os confins da mateacuteria veremos que
ldquouma mesma duraccedilatildeo vai recolher ao longo de seu caminho os acontecimentos da
totalidade do mundo materialrdquo (BERGSON 2006 p 55)
Prestemos atenccedilatildeo por um momento agraves consciecircncias humanas que asseguram que
essa duraccedilatildeo seja a mesma de um extremo a outro da totalidade do mundo material sua
funccedilatildeo se resume em retransmitir a duraccedilatildeo que se difunde por todo o horizonte
material125
Suprimidas essas consciecircncias natildeo restaraacute mais do que ldquoo tempo impessoal em
que todas as coisas se escoaratildeordquo deixando entrever que eacute uma e mesma duraccedilatildeo que pela
multiplicaccedilatildeo de nossa consciecircncia transportamos agrave seacuterie das imagens materiais que
compotildeem o universo atestando ldquopela identidade de suas duraccedilotildees internas e pela
contiguidade de suas experiecircncias exteriores a unidade de um Tempo impessoalrdquo
124
ldquo[] caso fosse preciso decidir a questatildeo optariacuteamos no atual estado de nossos conhecimentos pela
hipoacutetese de um Tempo material uno e universal Natildeo eacute mais que uma hipoacutetese mas estaacute fundada num
raciociacutenio por analogia que devemos ter por conclusivo enquanto natildeo nos tiverem oferecido nada mais
satisfatoacuteriordquo (BERGSON 2006 p 54) 125
ldquo[] e poderemos entatildeo eliminar as consciecircncias humanas que tiacutenhamos disposto aqui e acolaacute como
retransmissores para o movimento de nosso pensamento []rdquo (BERGSON 2006 p 55)
163
(BERGSON 2006 p 55) Em siacutentese certo nuacutemero de consciecircncias de mesma natureza e
simultacircneas aplicadas duas a duas a regiotildees contiacuteguas da mateacuteria assegurariam pela
simultaneidade da percepccedilatildeo comum que as coisas duram Suprimidas essas consciecircncias
restaria apenas a simultaneidade da experiecircncia potencial do todo da mateacuteria assegurada
por um Tempo uacutenico universal que implicaria um niacutevel de consciecircncia ou de memoacuteria
A demonstraccedilatildeo bergsoniana que retraccedilamos em suas precisas articulaccedilotildees parece
remeter a um problema jaacute resolvido por ocasiatildeo da demonstraccedilatildeo da realidade do ser do
passado e de sua conservaccedilatildeo em si mesmo Se ldquonatildeo se pode falar de uma realidade que
dura sem introduzir nela uma consciecircnciardquo (BERGSON 2006 p 56) estamos
devidamente advertidos de que natildeo se pode emprestar a essa palavra um sentido
antropomoacuterfico Ao suprimir as consciecircncias humanas eacute precisamente disso que se trata
Com efeito viacuteamos que Bergson afirma ser desnecessaacuterio conceber a duraccedilatildeo nesses
termos ldquopegar a memoacuteria que nos eacute proacutepria e transportaacute-la mesmo atenuada para o
interior da coisa [] Eacute o caminho inverso que eacute preciso seguirrdquo (BERGSON 2006 p 56)
o de um tempo impessoal e em tudo inumano Eacute precisamente a ideia de simultaneidade ndash
de todo diferente em relaccedilatildeo agrave tendecircncia espacializante que se apresentava no Essai ndash que
tornaraacute possiacutevel revelar um tempo impessoal e inumano fundado em uma memoacuteria
elementar ou ontoloacutegica
De que maneira memoacuteria e consciecircncia estatildeo implicadas nesse tempo elementar
que fundaria a continuidade de um instante no outro Na medida em que eacute impossiacutevel
haver tempo ali onde natildeo haacute sucessatildeo e eacute impossiacutevel haver sucessatildeo de fato que natildeo
corresponda agrave efetuaccedilatildeo de uma continuidade virtual se supusermos como Bergson (2006
p 57) que ldquoa duraccedilatildeo eacute essencialmente uma continuaccedilatildeo do que natildeo eacute mais no que eacute Eis o
tempo real ou seja percebido e vividordquo
O tempo ldquoreal percebido e vividordquo equivale a perspectivaacute-lo desde um registro
atual que natildeo pode dar-se sem supor um campo de virtualidades heterogecircneo e contiacutenuo
que se prolonga no espaccedilo em multiplicidades descontiacutenuas em instantes que sucedem uns
aos outros Eis a copresenccedila de uma memoacuteria elementar ligando dois instantes
engendrando o presente como presente que passa e como abertura ao puro devir o atual
como a mateacuteria natildeo pode senatildeo repetir-se sozinho como ele seria capaz de desaparecer e
engendrar o porvir Para que o presente se torne ldquopresente que passardquo eacute preciso divisar o
virtual que entra no atual ndash tempo que parece poder ser dividido agrave vontade na medida em
que a inteligecircncia o concebe como solidaacuterio agrave linha que o simboliza Equivale a dizer que
seria preciso captar o fluir do tempo como um progresso indivisiacutevel e global como quem
164
apreende o todo de uma frase meloacutedica ldquofechando os olhosrdquo abstraindo suas qualidades
suprimindo as notas e os tempos que a efetuariam recolocando-a na duraccedilatildeo pura
Metodicamente trata-se de perspectivar o tempo natildeo pelo campo do atual ndash atendendo
assim ao chamado da inteligecircncia ndash mas pelo virtual e pela intuiccedilatildeo ldquo[] nossa duraccedilatildeo
interior considerada do primeiro ao uacuteltimo momento de nossa vida consciente eacute algo
parecido com essa melodiardquo (BERGSON 2006 p 58)
A indivisibilidade dessa continuidade do passado no presente e do presente no
porvir eacute algo que Bergson natildeo cessa de afirmar Se pensamos a ligaccedilatildeo entre o passado e o
futuro imediatos como a que se efetua entre dois instantes eacute porque o passado jaacute implica
uma siacutentese passiva e portanto algum niacutevel ndash ainda que impessoal e inumano ndash de
consciecircncia126
Os instantes assinalam apenas paradas artificiais que nossa atenccedilatildeo para a
vida naturalmente agrave vontade no espaccedilo procura recortar em um contiacutenuo indivisiacutevel
falhando como quem tentasse atravessar uma chama com uma lacircmina natildeo dividimos a
chama sua continuidade heterogecircnea mas apenas o espaccedilo que ela parece desenhar em seu
fundo (BERGSON 2006 p 58) Tudo se passa como se a atenccedilatildeo decalcasse o contiacutenuo
no espaccedilo transformando-o em um simples siacutembolo perdendo a continuidade indefinida e
absolutamente movente De um lado isso implica que do ponto de vista do virtual a
duraccedilatildeo natildeo seja mensuraacutevel do ponto de vista do atual que substitui a continuidade
temporal por seu decalque espacial permite que se passe do tempo indivisiacutevel ao
mensuraacutevel
Bergson estaacute ciente de que esse eacute o tempo que acreditamos viver na maior parte das
vezes natildeo o do infinito escoar de nossa duraccedilatildeo interior indivisiacutevel e movente mas o
tempo mensurado coletivo ou coacutesmico exigido pelos imperativos da vida social127
Para
tanto basta projetar nossa proacutepria duraccedilatildeo em movimento no espaccedilo ndash como a trajetoacuteria
dos astros ou dos ponteiros de um reloacutegio por um movimento apreendido segundo a linha
de seu decalque bastam para fundar um tempo mensuraacutevel dando-nos um tempo
infinitamente divisiacutevel povoado de instantes inextensos semelhantes ao ponto geomeacutetrico
aristoteacutelico que jamais permite compreender como se atravessa de um ponto a outro Natildeo
suponhamos esta criacutetica uma prova do radical psicologismo de Bergson ndash ele eacute o primeiro
126
ldquo[] natildeo se pode conceber um tempo sem representaacute-lo percebido e vivo Duraccedilatildeo implica portanto
consciecircncia e pomos consciecircncia no fundo das coisas pelo proacuteprio fato de lhe atribuirmos um tempo que
durardquo (BERGSON 2006 p 57) Em outras palavras a duraccedilatildeo engendra algo como uma consciecircncia na
medida em que sua continuidade implica uma siacutentese passiva uma contraccedilatildeo passiva ndash natildeo realizada por uma
consciecircncia humana ndash que eacute a proacutepria memoacuteria elementar que se efetua como prolongamento sucessivo 127
ldquo[] vivemos uma vida social e ateacute coacutesmica tanto ou mais do que uma vida individualrdquo (BERGSON
2006 p 60)
165
a enunciar a importacircncia vital desse tempo essa projeccedilatildeo responde agrave tendecircncia
espacializante e decalcocircmana de nossa atenccedilatildeo agrave vida128
Ela tende naturalmente ao espaccedilo
ldquoeacute uma e vaacuteriasrdquo ldquoreparte-se sem se dividirrdquo (BERGSON 2006 p 61) permite agrave
percepccedilatildeo apreender simultaneidades129
tornando interessante contar simultaneidades
proacuteprias a movimentos de corpos que natildeo sejam os do nosso
Eacute precisamente esse tempo de simultaneidades que permite resolver de uma soacute vez
a questatildeo que nos colocaacutevamos sobre a pluralidade ou o monismo da duraccedilatildeo verificando
uma uacuteltima vez a validade da hipoacutetese bergsoniana sobre o monismo de um tempo
elementar e impessoal que supotildee a memoacuteria como fundamento do tempo Nesse particular
Deleuze (1966 p 80-81) chamava a atenccedilatildeo para o exemplo com que Bergson ilustrava a
capacidade da atenccedilatildeo de ser ldquouma e vaacuteriasrdquo
Quando estamos sentados agrave beira de um rio o correr da aacutegua o deslizar de um
barco ou o voo de um paacutessaro e o murmuacuterio ininterrupto de nossa vida profunda
satildeo para noacutes trecircs coisas diferentes e uma soacute como quisermos Podemos
interiorizar o todo lidar com uma percepccedilatildeo uacutenica que carrega confundidos os
trecircs fluxos em seu curso ou podemos manter exteriores os dois primeiros e
repartir entatildeo nossa atenccedilatildeo entre o dentro e o fora ou melhor ainda podemos
fazer as duas coisas concomitantemente nossa atenccedilatildeo ligando e no entanto
separando os trecircs escoamentos graccedilas ao singular privileacutegio que ela possui de
ser uma e vaacuterias (BERGSON 2006 p 61)
No exemplo de Bergson nossa atenccedilatildeo captura um agenciamento de fluxos
simultacircneos podendo dividir-se entre a apreensatildeo de sua unidade ndash dependente do fluxo da
consciecircncia que realiza esta siacutentese (no caso a nossa duraccedilatildeo interna) ndash bem como na
apreensatildeo de cada um dos fluxos (escoar do rio voo do paacutessaro e consciecircncia interior)
Contudo outra opccedilatildeo por fim apresenta-se agrave nossa atenccedilatildeo podemos apreender unidade e
multiplicidade dos fluxos de uma soacute vez simultaneamente representando os fluxos como
contidos em um soacute ndash o nosso ndash e ao mesmo tempo como contidos em si mesmos O que
explica essas siacutenteses tatildeo disparatadas que ora nos datildeo uma duraccedilatildeo ora uma pluralidade
delas podendo implicar ainda uma terceira possibilidade de siacutentese que corresponde agrave
divisatildeo da atenccedilatildeo para apreender simultaneamente todas as direccedilotildees unitaacuteria e muacuteltiplas
desses fluxos
128
ldquo[] eacute do nosso maior interesse tomar por lsquodesenrolar do temporsquo um movimento independente daquele de
nosso proacuteprio corpo A bem dizer encontramo-lo jaacute tomado A sociedade adotou-o para noacutes Eacute o movimento
de rotaccedilatildeo da Terrardquo (BERGSON 2006 p 60) 129
ldquoChamo lsquosimultacircneasrsquo duas percepccedilotildees instantacircneas apreendidas num uacutenico e mesmo ato mental podendo
a atenccedilatildeo mais uma vez fazer delas uma ou duas agrave vontaderdquo (BERGSON 2006 p 60)
166
Parece que nos representamos os fluxos como a apreensatildeo simultacircnea de instantes
mas essa percepccedilatildeo eacute enganosa Seu erro consiste em representar como instantes imoacuteveis
fluxos atuais (Bergson diz ldquofluxos exterioresrdquo) que duram realmente concretamente que
ocupam uma duraccedilatildeo indivisiacutevel Mesmo assim Bergson afirma a existecircncia desses
muacuteltiplos fluxos exteriores como conciliaacute-los com um tempo uacutenico e universal Tudo
parece resolver-se mais uma vez em um jogo perspectivo e analoacutegico Assim como nossa
atenccedilatildeo soacute pode apreender em nossa consciecircncia a existecircncia de dois fluxos exteriores
simultacircneos supondo a duraccedilatildeo interior em que se sintetizam natildeo poderiam coexistir dois
fluxos quaisquer sem supor um terceiro fluxo em que estivessem contidos130
Se posso dizer que o fluxo de minha consciecircncia eacute simultacircneo a outro fluxo
qualquer ndash o deslizar de um barco ou o voo de um paacutessaro ndash eacute porque minha consciecircncia
desdobra-se para abarcar a si mesma como fluxo atual singular simultacircneo ao do
movimento (ou fluxo) externo atestando sua simultaneidade de acordo com um terceiro
fluxo virtual no qual ela desdobra os outros dois fluxos atuais (o murmuacuterio de minha vida
interior o voo do paacutessaro) Por isso Deleuze fala de uma triplicidade fundamental de
fluxos Soluciona-se a aparente contradiccedilatildeo que pluralidade e unidade dos fluxos e da
duraccedilatildeo parecem envolver ao surpreender-nos ldquodesdobrando e multiplicando nossa
consciecircncia transportando-a para os confins extremos de nossa experiecircncia exterior []rdquo
(BERGSON 2006 p 55) essa atitude de desdobramento de nossa consciecircncia eacute capaz de
dar-nos acesso agrave realidade do tempo universal impessoal uno e virtual que sendo
multiplicidade heterogecircnea e qualitativa reuacutene uma pluralidade de fluxos exteriores que se
desdobram simultaneamente no registro do atual Como o atual ocupa do ponto de vista do
virtual uma duraccedilatildeo e portanto uma memoacuteria ndash isto eacute como ldquoos fluxos duram realmenterdquo
ndash natildeo haacute como pensar a realidade do tempo como a sucessatildeo de presentes sempre jaacute
abertos ao devir imediato sem introduzir aiacute virtualmente uma memoacuteria elementar
ontoloacutegica fundamental que opera a siacutentese passiva que importa do ponto de vista do
atual ldquoligar instantesrdquo ldquofazecirc-los passarrdquo
Soacute haacute sucessatildeo atual do tempo porque o tempo eacute memoacuteria coexistecircncia virtual do
presente que age com o que acabou de agir e destes com o que estaacute em vias de formaccedilatildeo
130
Com efeito eacute o que Deleuze auxiliou a esclarecer com precedecircncia nessa difiacutecil passagem da obra de
Bergson ldquoLrsquoeacutecoulement de lrsquoeau le vol de lrsquooiseau le murmure de ma vie forment trois flux mais ils ne
sont tels que parce que ma dureacutee est lrsquoun drsquoentre eux et aussi lrsquoeacuteleacutement qui contient les deux autres Pourquoi
ne pas se contenter de deux flux ma dureacutee et le vol de lrsquooiseau par exemple Crsquoest que jamais deux flux
pourraient ecirctre dits coexistants ou simultaneacutes srsquoils nrsquoeacutetaient contenus dans un mecircme troisiegraveme le vol de
lrsquooiseau et ma propre dureacutee ne sont simultaneacutes que dans la meacutesure ougrave ma proacutepre dureacutee se deacutedouble et se
reacutefleacutechit en une autre qui la contient en mecircme temps qursquoelle contient le vol de lrsquooiseau il y a donc une
tripliciteacute fondamental des fluxrdquo (DELEUZE 1966 p 81-82)
167
Eacute nesse sentido que uma memoacuteria ontoloacutegica eacute fundamento do tempo que se pode afirmar
que sem memoacuteria haacute apenas repeticcedilatildeo do presente eacute impossiacutevel engendrar o novo Se
Bergson afirma que natildeo haacute duraccedilatildeo onde natildeo haacute essa memoacuteria elementar eacute porque a
memoacuteria eacute o que faz o tempo passar diferindo radicalmente de si mesma ela insere a
diferenccedila na repeticcedilatildeo do presente e o abre ao porvir Porque a realidade profunda do
tempo natildeo se resolve no desenrolar de um fio eacute a simultaneidade compreendida como
coexistecircncia de fluxos ndash natildeo de instantes que implicam a perspectiva do atual ndash que
constitui a chave para compreender a realidade e o monismo de um tempo virtual em
Bergson131
Natildeo por acaso eacute isso o que Dureacutee et Simultaneacuteiteacute natildeo cessa de repetir que apenas
esse tempo eacute real que apenas ele pode ser vivido Se ele pode povoar-se por fluxos plurais
que podem ser divididos eacute sob a condiccedilatildeo de deixar ver abaixo do ponto em que
divisamos apenas simultaneidades o iacutendice inconfundiacutevel que se insinua sob uma
pluralidade de fluxos exteriores que duram concretamente o fato de que eles duram
realmente ocupam uma duraccedilatildeo O monismo da duraccedilatildeo constituiraacute portanto uma
memoacuteria elementar na qual se desenha a coexistecircncia virtual de todos os graus de toda a
pluralidade de fluxos atuais em um soacute fluxo virtual que os conteacutem e que se confunde com
a realidade fundamental do tempo a multiplicidade virtual e no entanto real da memoacuteria
131
ldquoLa theacuteorie bergsonienne de la simultaneacuteiteacute vient donc confirmer la conception de la dureacutee comme
coexistence virtuelle de tous les degreacutes en un seul et mecircme tempsrdquo (DELEUZE 1966 p 86)
168
TERCEIRA PARTE
Linhas de atualizaccedilatildeo Bergson o aberto e a transiccedilatildeo
169
CAPIacuteTULO 6 ndash O ABERTO E A TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E
DIREITOS HUMANOS
Seguindo as linhas ontoloacutegicas descritas em suas obras precedentes em
LrsquoEacutevolution Creacuteatrice de 1907 Bergson conduziu sua ontologia a um limite
aparentemente imponderaacutevel aquele em que ela se confunde parcialmente com a gecircnese
imprevista das formas de vida em que a duraccedilatildeo implica uma vitalidade inorgacircnica e
potente e coincide em certo niacutevel com a proacutepria vida na medida em que ambas remetem
ao virtual como a realidade proacutepria de sua potecircncia A correlaccedilatildeo entre ontologia e formas
de vida permite recolocar em profundidade a questatildeo do sentido da transiccedilatildeo e assim
compreender qual seu viacutenculo com a memoacuteria na dimensatildeo da experiecircncia social ndash que
afinal constitui o campo por excelecircncia ao qual se aplica a Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
Ao mesmo tempo colocar em jogo o sentido de transiccedilatildeo ndash que em Bergson recebe
transcriccedilotildees muito heterogecircneas (ontoloacutegicas fiacutesicas psicoloacutegicas morais sociais e
poliacuteticas) ndash permite aprofundaacute-lo em uma direccedilatildeo ainda mais radical a de seu viacutenculo
indissoluacutevel com a democracia e os direitos humanos que natildeo receberatildeo aqui uma
explicaccedilatildeo meramente histoacuterica mas genealoacutegica e estrutural aparentada ao virtual que
podem fazer passar Apenas essa explicaccedilatildeo nos autorizaraacute a compreender que as relaccedilotildees
entre transiccedilatildeo democracia e direitos humanos devem-se superficialmente agrave histoacuteria de
sua gecircnese em comum132
mas eacute justamente essa gecircnese histoacuterica partilhada que exige que
compreendamos suas implicaccedilotildees e relaccedilotildees em profundidade deduzindo delas mesmas a
funccedilatildeo transicional da memoacuteria na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo
Esse objetivo que se confunde no limite com o de nossa proacutepria tese exige no
entanto um passo adiante consistente em compreender em que medida ele pode remeter agrave
ideia de aberto Todo esse conjunto problemaacutetico seraacute atravessado ainda que
subrepticiamente por sua relaccedilatildeo com a questatildeo das formas de vida e mais
especificamente pela questatildeo da forma de vida humana ndash a que Bergson por vezes chama
ldquoestrutura geral do espiacuterito humanordquo e que decidimos nomear ldquociacuterculo antropoloacutegicordquo
funccedilatildeo da inteligecircncia tal como saiacuteda das matildeos da natureza ndash mas tambeacutem de seu apego
mais profundo agrave proacutepria vida O homem no limiar da espeacutecie no limiar de sua forma de
vida eacute o que reencontraremos aqui em todo o seu renovado interesse deslocado na direccedilatildeo
132
Cf nesse sentido Capiacutetulo 1 ldquoA Gecircnese da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo e o Direito Internacional dos
Direitos Humanosrdquo
170
do poliacutetico Natildeo se trata poreacutem de Bergson autor de uma teoria meramente moral ou
teoloacutegica O fechado e o aberto conceitos em funccedilatildeo dos quais todos os problemas
apareceratildeo colocados em Les Deux Sources de la Morale et de la Religion satildeo eles
proacuteprios construiacutedos em funccedilatildeo das quedas bioloacutegicas que desenham a superfiacutecie de uma
forma de vida dotada de uma irresistiacutevel tendecircncia ao fechamento agrave adaptaccedilatildeo e ao apego
agrave vida e dos movimentos de ruptura dos ciacuterculos especiacuteficos e do devir que o aberto ndash
como uma clareira no seio do ciacuterculo antropoloacutegico ndash natildeo cessa de comunicar e prolongar
fazendo do homem uma espeacutecie de termo da evoluccedilatildeo ao mesmo tempo em que o super-
homem que ele anuncia parece depocirc-lo incessantemente como um animal que convalesce
de inteligecircncia e representaccedilatildeo ndash patologia que explicaraacute todo o aparente absurdo e
irracionalidade das religiotildees estaacuteticas ao mesmo tempo em que despiraacute a obrigaccedilatildeo moral
de seu veacuteu racional Tudo enfim se coloca em funccedilatildeo da vida das potecircncias inorgacircnicas
de seu eacutelan e dessa maneira da duraccedilatildeo do virtual e das linhas de atualizaccedilatildeo da
memoacuteria
Fazecirc-lo implica no entanto retraccedilar passagens que natildeo podemos nos abster de
reconstruir uma vez que restrinjamos a anaacutelise ao estrato poliacutetico da obra de Bergson Trecircs
questotildees seratildeo os pontos de articulaccedilatildeo necessaacuterios para ultimar os temas do aberto e da
transiccedilatildeo sua compenetraccedilatildeo e suas distensotildees reciacuteprocas na direccedilatildeo da Teoria da Justiccedila
da Transiccedilatildeo
A primeira resume-se em definir de um ponto de vista biossocial o ciacuterculo
antropoloacutegico a forma de vida humana e suas tendecircncias ao fechamento Em seu
LrsquoEacutevolution Creacuteatrie Bergson o definia segundo inuacutemeras distensotildees da atualizaccedilatildeo da
inteligecircncia no entanto no niacutevel poliacutetico eacute preciso qualificaacute-la do ponto de vista dos
quadros sociais da experiecircncia que Bergson remontaraacute sem cessar ao bioloacutegico133
em um
sentido muito compreensivo que nos remete ao vital Assim trata-se da questatildeo da forma
de vida antropoloacutegica mas submetida a uma nova configuraccedilatildeo que leva as descriccedilotildees de
LrsquoEacutevolution Creacuteatrice a um campo de provas bastante heterogecircneo Precisamente esse
novo terreno de experimentaccedilatildeo permitiraacute definir em funccedilatildeo de uma forma de vida
antropoloacutegica ndash que pouco a pouco pareceraacute determinar-se por uma tendecircncia bioloacutegica ao
fechamento ndash questotildees relativas agrave moral agrave obrigaccedilatildeo e agrave relaccedilatildeo social temas que uma
vez que sejam esclarecidos em seu sentido dinacircmico contribuiratildeo para definir o problema
133
Por isso Alexandre Lefebvre (2013 ldquoBergsonrsquos Critical Philosophyrdquo In Introduction) afirma de modo
categoacuterico que o coraccedilatildeo criacutetico de Les Deux Sources estaacute no fato de que ldquo[] the source of morality is
biologyrdquo E mais adiante ldquothe source of closed morality is not society its biologyrdquo (LEFEBVRE 2013 Part
I ldquo3The colsed society Bergson and Durkheimrdquo)
171
da gecircnese dos potenciais transicionais da memoacuteria no acircmbito da Teoria da Justiccedila de
Transiccedilatildeo
A segunda questatildeo resume-se em uma tarefa que tambeacutem admite ser colocada sob a
forma de problema ldquoComo abrir o fechadordquo Tendo por base os dois capiacutetulos centrais de
Les Deux Sources uma vez que esta questatildeo esteja ndash como tudo aliaacutes ndash colocada em
funccedilatildeo da questatildeo das formas de vida tenderaacute a responder de que maneira reverter a
tendecircncia natural aparentemente irresistiacutevel ao fechamento Contudo antes disso o
fechado precisa ser conduzido um pouco aleacutem Compreendido em funccedilatildeo da proacutepria
maladie muito humana atribuiacuteda agrave inteligecircncia e agrave representaccedilatildeo como as tendecircncias
naturais que constituem causas da depressatildeo da dissoluccedilatildeo social e do desencorajamento a
tendecircncia ao fechamento encontraraacute nas religiotildees estaacuteticas uma espeacutecie de resposta vital
que possibilitaraacute ao homem permanecer apegado agrave vida malgrado toda convalescenccedila de
representaccedilatildeo Interpretando a religiatildeo em funccedilatildeo da vida Bergson descobriraacute que um salto
eacute possiacutevel a experiecircncia miacutestica tornar-se-aacute o campo de provas para a potecircncia de uma
religiatildeo dinacircmica capaz de ser definida em funccedilatildeo do aberto servir de iacutendice a uma ruptura
do ciacuterculo antropoloacutegico que pode levar o homem mais longe e mais alto do que a intuiccedilatildeo
filosoacutefica o pudera Eacute nesse sentido que Bergson poderia aparecer como uma espeacutecie de
ldquomeacutedico da civilizaccedilatildeordquo (LAPOUJADE 2010 p 77)
Contudo se responder agrave questatildeo ldquocomo abrir o fechadordquo aponta para uma praacutetica
vital natildeo esgotaraacute o fundo do problema que propomos Seraacute preciso colocar o aberto em
funccedilatildeo de um novo e uacuteltimo problema de que Bergson parece tratar com certa urgecircncia
praacutetica e poliacutetica devida agrave Primeira Guerra ndash atestada mais de uma vez entre seus
comentadores (WORMS 2011 p 292-293 SITBON-PEILLON 2012 p 15)134
Trata-se
da questatildeo que liga Bergson agrave poliacutetica definitivamente ldquoComo perseverar no abertordquo se o
miacutestico e o artista compartilham o gecircnio constituem indiviacuteduos excepcionais uacutenicos da
espeacutecie como fazer com que o aberto se comunique ou se transmita passe do individual ao
social Eacute a afetividade ou a emoccedilatildeo criadora que eles engendram que poderaacute comunicar o
aberto em profundidade tudo se passa como se sob os eus sociais definidos em
superfiacutecie houvesse uma comunidade de eus mais ou menos profundos que lanccedilados a
uma emoccedilatildeo criadora se deixariam penetrar em um niacutevel subrepresentativo O aberto se
define em funccedilatildeo da emoccedilatildeo criadora assim como as formas de vida e as conquistas
134
Nesse aspecto cf a ceacutelebre obra de Philippe Soulez (1989) Bergson politique em adiccedilatildeo Bergson a
biografia escrita a quatro matildeos por Soulez e Worms (2002) e ainda o prefaacutecio deste uacuteltimo ao quinto
volume dos Annales Bergsoniennes que tematizam renovadamente a filosofia poliacutetica de Bergson (WORMS
2012 p 29-34) Cf ainda (LEFEBVRE 2013 Part I ldquo1 A dialogue on warrdquo)
172
poliacuteticas mais antinaturais ndash a democracia os direitos humanos ndash satildeo engendradas por ela
uma espeacutecie de supraconsciecircncia Uma vez que esse noacute problemaacutetico seja constituiacutedo eacute a
questatildeo da transiccedilatildeo que se colocaraacute integralmente sob sua insiacutegnia assim como Bergson
coloca a questatildeo das sociedades fechadas e abertas da guerra e da paz ou da teacutecnica e da
mecacircnica em funccedilatildeo do aberto como eacutetica vital ndash o que como vimos significaraacute tambeacutem
em profundidade uma eacutetica ontoloacutegica
Definidas as trecircs questotildees que nos conduziratildeo ndash como se caracteriza o fechado a
sociedade humana saiacuteda das matildeos da natureza ndash como abrir o fechado e como perseverar
no aberto passemos imediatamente agrave determinaccedilatildeo do que constitui o fechado como
tendecircncia vital bem como de suas transcriccedilotildees no seio de uma filosofia moral que uma
vez que tenha sido fundada em uma metafiacutesica do idecircntico e do eterno natildeo estaraacute menos
envolvida em ilusotildees do que toda a metafiacutesica que Bergson criticou precedentemente
sect 1 O FECHADO O SOCIAL E O VITAL
Encontramos o fechado no ponto em que no limite de uma de suas linhas
divergentes o vital remete ao social no homem Portanto o fechado designa uma tendecircncia
de caraacuteter bioloacutegico originada no momento de descida da tensatildeo virtual que corresponde ao
eacutelan vital e sua alienaccedilatildeo em uma forma de vida atual a vida que encontra a mateacuteria tende
a fazer como vimos uma volta sobre si mesma fechar-se em um ciacuterculo adaptar-se agrave
ineacutercia da mateacuteria compor com ela um corpo fiacutesico organizar-se instrumental perceptiva
e afetivamente Contudo percebamos o fechado ali onde ele se manifesta no seio das
experiecircncias sociais mais tenras dos lugares de forccedila comuns a toda infacircncia e de onde
emanam os mandamentos Se o fizeacutessemos perceberiacuteamos que lhes obedecemos mais em
virtude do peso que comportam que da autoridade pessoal de quem os emite Eis o que
chamaremos mais tarde de ldquopeso da sociedaderdquo sob sua forma de pressatildeo sobre as vontades
individuais ponta uacuteltima de uma forccedila de aplicaccedilatildeo global que em tudo parece
assemelhar-se agrave solidariedade orgacircnica que manteacutem vinculadas as partes de um corpo
bioloacutegico135
A analogia contudo deveraacute ceder natildeo soacute a um liame constitutivo entre
135
ldquo[] crsquoest la socieacuteteacute Philosophant alors sur elle nous la comparerions agrave un organisme dont les cellules
unies par drsquoinvisibles liens se subordonnent les unes aux autres dans une hieacuterarchie savante et se plient
naturellement pour le plus grand bien du tout agrave une discipline qui pourra exiger le sacrifice de la partierdquo
(BERGSON 2001 p 98101-02)
173
memoacuteria e interdiccedilatildeo que aparece jaacute nas primeiras linhas de Deux Sources136
mas tambeacutem
ao fato da liberdade das vontades livres insuscetiacuteveis agrave necessidade que parecem constituir
a causa de toda associaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 981-98202)
Embora se possa reconhecer tudo isso sem dificuldade parece haver nessa analogia
mais que uma simples comparaccedilatildeo ela constitui o iacutendice de uma miacutemesis entre sociedade e
organismos vivos em que o haacutebito desempenha o mesmo papel que a necessidade no plano
da natureza e de tal forma que ldquola vie sociale nous apparaicirct comme un systegraveme
drsquohabitudes plus ou moins fortement enracineacutees qui reacutepondent aux besoins de la
communauteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98202) No interior dessa rija tessitura de deveres
haacutebitos de obedecer e de mandar explicam-se por certa delegaccedilatildeo social da qual
confusamente sentimos emanar uma ordem impessoal que exerce pressatildeo sobre nossa
vontade Se nos afastamos dela logo somos a ela reconduzidos e assim haacutebito e obrigaccedilatildeo
parecem coincidir
Com efeito a pressatildeo exercida pela obrigaccedilatildeo social implica uma diferenccedila natildeo
apenas de intensidade em relaccedilatildeo agrave massa confusa de nossos haacutebitos mas de natureza isso
se deve natildeo apenas agrave intensidade infinitamente maior com que opera a obrigaccedilatildeo social
mas ao fato de que as obrigaccedilotildees sociais mais ou menos intensas e no limite
infinitesimais satildeo objeto de uma exigecircncia comum que tem iniacutecio no ciacuterculo de nossas
relaccedilotildees mais proacuteximas e estende-se ateacute o ciacuterculo de nossas relaccedilotildees mais distantes cujo
limite eacute a proacutepria sociedade Dessa maneira as obrigaccedilotildees se prestam apoio muacutetuo
entrosam-se e constituem um bloco formado por ciacuterculos cada vez mais abrangentes de
exigecircncias sociais Que cada obrigaccedilatildeo mesmo a mais frugal ou a infinitamente pequena
vinculem eacute graccedilas ao todo da obrigaccedilatildeo do qual retiram sua forccedila da obrigaccedilatildeo em geral agrave
qual satildeo aparentadas agrave autoridade global do conjunto Sua analogia para com os
organismos revela mais que a mimeacutetica entre haacutebito e certa necessidade orgacircnica Na
medida em que o organismo manteacutem-se iacutentegro mediante a forccedila e a vitalidade indivisiacuteveis
das quais cada ceacutelula retira seu vigor um conjunto total de obrigaccedilotildees pressiona as
vontades por meio de um anaacutelogo da ldquovitalidade uacutenicardquo da qual as menores obrigaccedilotildees
retiram sua forccedila Assim como cada ceacutelula exprime superficialmente o todo de uma
136
ldquoLe souvenir du fruit deacutefendu est ce qursquoil y a de plus ancien dans la meacutemoire de chacun de nous comme
dans celle de lrsquohumaniteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98101)
174
vitalidade a comparaccedilatildeo deixa entrever que cada obrigaccedilatildeo exprime o todo da
obrigaccedilatildeo137
Embora toda sociedade seja constituiacuteda por indiviacuteduos livres e o fato da
liberdade138
seja o limite da analogia que Bergson propotildee a comparaccedilatildeo natildeo cessa de ser
alimentada pela proacutepria sociedade Assemelhando as leis que mantecircm a ordem social agraves
leis da natureza interessa agrave proacutepria sociedade manter a aparecircncia de que suas leis
organizam-se mecacircnica e necessariamente se leis sociais e fiacutesicas podem ser aproximadas
as primeiras pareceratildeo adquirir a regularidade e a feiccedilatildeo eterna das segundas Confundidas
logo as leis fiacutesicas teratildeo adquirido a imperiosidade dos mandamentos sociais e estes teratildeo
adquirido a inelutabilidade natural das primeiras139
Servindo ao haacutebito a inteligecircncia nos
brinda com a representaccedilatildeo de nossa liberdade individual a reboque de todas as forccedilas
sociais acumuladas contra um nosso possiacutevel gesto egoiacutesta O ponto de vista que enxerga
os indiviacuteduos unidos por meio de uma solidariedade social similar agrave dos organismos
permite afirmar que ldquolrsquoobligation est agrave la neacutecessiteacute ce que lrsquohabitude est agrave la naturerdquo
(BERGSON 2001 p 98607) Eis o ciacuterculo em que toda individualidade permanece
engastada a de uma obrigaccedilatildeo que natildeo vem de fora dos indiviacuteduos mas eacute constitutiva
deles enquanto tais natildeo haacute sociedade ou obrigaccedilatildeo ndash Bergson natildeo deixaraacute de afirmaacute-lo ndash
sem que se suponha a liberdade ao mesmo tempo natildeo haacute obrigaccedilatildeo que natildeo venha de
137
ldquoLa force qursquoune obligation tire de toutes les autres est plutocirct comparable au souffle de vie que chacune
des cellules aspire indivisible et complet du fond de lrsquoorganisme dont elle est un eacuteleacutement La socieacuteteacute
immanente agrave chacun de ses membres a des exigences qui grandes ou petites nrsquoen expriment pas moins
chacune le toute de sa vitaliteacuterdquo (BERGSON 2001 p 98303) 138
Bergson descreve o ato livre ao final do Essai como um ato exterior que expressa a integral do eu ou de
uma alma definida por sua profundidade Como a realizaccedilatildeo de uma accedilatildeo que jaacute natildeo exprime uma ideia
superficial mas responde ao conjunto de nossos sentimentos pensamentos de nossas aspiraccedilotildees mais
iacutentimas agrave concepccedilatildeo particular de vida que equivale agrave nossa experiecircncia passada (LAPOUJADE 2010 p
15) Ou entatildeo como o mais alto grau de dois elementos que operam na proacutepria duraccedilatildeo ldquopor um lado []
exprime a totalidade do conteuacutedo ou da histoacuteria do eu singular por outro faz sentir uma forccedila ou uma
lsquoatividade vivarsquo pela qual o eu se produz a si mesmordquo (WORMS 2011 p 83) Ou entatildeo finalmente ldquolrsquoacte
libre est la lsquomanifestation exteacuterieurersquo de notre personaliteacute tout entiegravererdquo (RIQUIER 2009 p 312-313) O ato
livre eacute o contemporacircneo das variaccedilotildees contiacutenuas que constituem o eu profundo do aspecto confuso obscuro
e infinitamente moacutevel da subjetivaccedilatildeo bergsoniana sub specie durationis Sua dinacircmica eacute a mesma das
sensaccedilotildees que se modificam ao se repetir ou dos sentimentos que parecem serem seres que vivem e se
alteram sem cessar (BERGSON 2001 p 8899) Rachando a crosta superficial do eu social a liberdade potildee-
no na presenccedila de si mesmo na imanecircncia de si que eacute jaacute a diferenccedila para consigo que o ato livre expressa na
duraccedilatildeo Essa ldquorelaccedilatildeo dinacircmicardquo com a atividade do eu eacute o que o vincula agrave duraccedilatildeo como uma ldquoforccedilardquo que
faz dela no eu profundo ldquoa condiccedilatildeo metafiacutesica ou mesmo simplesmente fiacutesica da liberdaderdquo (WORMS
2011 p 84) Nesse sentido a liberdade apareceraacute em Bergson como o correlato psicoloacutegico de um
imprevisto mais profundamente ontoloacutegico 139
ldquo[] si la loi physique tend agrave revecirctir pour notre imagination la forme drsquoun commandement quand elle
atteint une certaine geacuteneacuteraliteacute reacuteciproquement un impeacuteratif qui srsquoadresse agrave tout le monde se preacutesente un peu agrave
nous comme un loi de la nature [] Une infraction agrave lrsquoordre social revecirct ainsi un caractegravere anti-naturel []rdquo
(BERGSON 2001 p 98405)
175
fora ldquoChacun de nous appartient agrave la socieacuteteacute autant qursquoagrave lui-mecircmerdquo (BERGSON 2001 p
98607)
Natildeo haacute nenhuma antinomia entre o individual e o social mas uma solidariedade e
uma constitutividade reciacuteprocas Com efeito a perspectiva da consciecircncia em profundidade
poderia revelar o rosto incomensuraacutevel de uma personalidade de um ponto de vista
superficial poreacutem o indiviacuteduo parece ser em tudo solidaacuterio a seus semelhantes submetido
a uma disciplina que cria entre ele e os demais uma dependecircncia muacutetua que define certo
equiliacutebrio superficial e no entanto soacutelido Vecirc-se pois que o tecido social eacute constitutivo do
eu superficial que nele se insere que toma corpo com as demais personalidades
exteriorizadas Solidaacuterio significa portanto tambeacutem soacutelido e indica o viacutenculo pelo qual a
obrigaccedilatildeo liga cada um de noacutes aos outros mas nos liga tambeacutem a noacutes mesmos Tudo se
passa como se uma vez que nosso eu tivesse de integrar-se agrave tessitura social ele fosse ao
mesmo tempo constituinte e constituiacutedo em relaccedilatildeo a ela O eu superficial eacute o ponto de
fixidez do eu social pois eacute constituiacutedo e cultivado em seu meio eacute a vida pela qual nos
tornamos presentes a uma sociedade mas tambeacutem eacute o signo da presenccedila da sociedade em
noacutes140
Essa presenccedila da sociedade em noacutes eacute que explicaria em que medida ela exerce um
poder irresistiacutevel capaz de aplacar por muito tempo a liberdade mais profunda Nossa
memoacuteria e nossa imaginaccedilatildeo em larga medida vivem do que a sociedade introduziu nelas
Robinson Crusoeacute em sua ilha ou o guarda Florestal de Kipling que todas as noites vestia
seu traje de gala para jantar em um casebre isolado na Iacutendia ndash a fim de natildeo perder o
respeito por si mesmo ndash denotam precisamente que natildeo eacute a presenccedila de outros homens que
determina a da sociedade uma pulsatildeo social constitutiva da proacutepria subjetividade do
ldquorespeito por si mesmordquo pode encontrar na solidatildeo o oco suficiente com o qual fazer eco
Robinson ou o guarda florestal nutrem-se da energia da sociedade agrave qual continuam
idealmente ligados seja atraveacutes dos utensiacutelios manufaturados com que Crusoeacute sobrevive
seja atraveacutes de um viacutenculo moral como o do guarda de Kipling (BERGSON 2001 p 987-
98807-10)
A presenccedila da sociedade no indiviacuteduo poderia revelar-se ainda mais sensivelmente
no caso excepcional do criminoso que se sente impelido a cobrir as evidecircncias desmanchar
a memoacuteria de um crime como se ele jamais tivesse sido praticado ou que o leva a
confessar o crime a um amigo a fim de por meio dele evitar a ruptura social que tortura
140
ldquo[] la solidariteacute sociale nrsquoexiste que du moment ougrave un moi social se surajoute en chacun de nous au moi
individuel Cultiver ce lsquomoi socialrsquo est lrsquoessentiel de notre obligation vis-agrave-vis de la socieacuteteacuterdquo (BERGSON
2001 p 986-98708)
176
sua consciecircncia sob a forma de remorso Tanto em um caso como em outro o princiacutepio
parece ser sempre o de uma inexplicaacutevel pulsatildeo social que trata de evitar a ruptura com o
todo da comunidade que o crime implica Por isso apagar vestiacutegios pode ser mais que
evitar o castigo ndash pode ser evitar o abandono ndash ou confessar o crime a um conhecido pode
significar reintegraccedilatildeo agrave consideraccedilatildeo de algueacutem que eacute agora o uacuteltimo fio que o liga agrave
tessitura social
Ao mesmo tempo em que a experiecircncia de anguacutestia moral no grande criminoso se
explicaria tanto pela presenccedila da sociedade no indiviacuteduo quanto pela inserccedilatildeo do indiviacuteduo
nela experiecircncias mais comuns ndash a do bom pai esposo e cidadatildeo ndash tambeacutem prefiguram a
constitutividade reciacuteproca entre eu individual e eu social Tomemos essa experiecircncia na
dinacircmica natildeo mais excepcional do grande criminoso mas na das obrigaccedilotildees mais
comezinhas que penetram a existecircncia quotidiana de um indiviacuteduo141
Se tomarmos o
indiviacuteduo por centro veremos avolumarem ao seu redor ciacuterculos concecircntricos e cada vez
mais amplos de prescriccedilotildees e obrigaccedilotildees de que sua vida diaacuteria deixa-se atravessar Com
efeito apesar de em cada um desses ciacuterculos e de em cada uma das situaccedilotildees uma opccedilatildeo
ser possiacutevel uma resistecircncia poder ser sempre divisaacutevel eacute mais natural ajustar-se agrave norma
quase que automaticamente (BERGSON 2001 p 99013) Mesmo que nos deixemos ir a
esmo eacute natural que cumpramos o que a sociedade espera de noacutes se nossos deveres natildeo satildeo
cumpridos de modo autocircmato o satildeo pela forccedila do haacutebito da ineacutercia de quem ndash pela
educaccedilatildeo e pelo cultivo social ndash jaacute foi inserido na tessitura dos deveres agrave custa de certo
esforccedilo No entanto a liberdade no seio social sempre denota que uma resistecircncia ao dever
eacute possiacutevel resistecircncia dirigida ao desejo ou agrave accedilatildeo egoiacutesta que visa ao bem de si proacuteprio
natildeo ao do todo Nesse sentido suplantar o proacuteprio desejo e cumprir o dever social deve ser
encarado como uma forccedila suplementar como uma resistecircncia a si mesmo (BERGSON
2001 p 99114)
Natildeo raro para resistir agrave resistecircncia que nosso desejo opotildee ao dever encontramos
razotildees para fazecirc-lo Com efeito chegamos a tais razotildees pela via intelectual cumprimos
uma obrigaccedilatildeo como que persuadidos por suas razotildees e todavia isso natildeo significa ndash como
veremos mais adiante ndash que a fonte da obrigaccedilatildeo seja racional (BERGSON 2001 p
99216) Sob a razatildeo estaacute a pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo do sentimento moral que busca
razotildees mas natildeo eacute determinado pela razatildeo O que Bergson quer evitar aqui eacute que
confundamos a tendecircncia a ceder diante do todo da obrigaccedilatildeo ndash o que se explicaraacute como
141
ldquoCrsquoest la socieacuteteacute qui trace agrave lrsquoindividu le programme de son existence quotidiennerdquo (BERGSON 2001 p
99012)
177
uma tendecircncia natural ndash e o meacutetodo racional pelo qual um ser inteligente age sobre si
mesmo removendo o obstaacuteculo que impedia que tal tendecircncia se manifestasse As
filosofias morais que o fazem estariam uma vez mais inebriadas pela inteligecircncia
Contudo em que consiste a forccedila dessa tendecircncia natural que pode assim
manifestar-se Eacute a ela que Bergson nomeia ldquotodo da obrigaccedilatildeordquo ldquoextrait concentreacute
quintessence des mille habitudes espeacuteciales que nous avons contracteacutees drsquoobeir aux mille
exigences particuliegraveres de la vie socialerdquo (BERGSON 2001 p 99317) A inteligecircncia que
se aplica a essa forccedila natildeo eacute sua fonte de impulsatildeo mas de loacutegica pode tatildeo somente
conferir maior niacutevel de coerecircncia racional agraves exigecircncias sociais mas natildeo seraacute essa
coerecircncia a explicar a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce sobre as condutas
individuais142
A funccedilatildeo da razatildeo em moral eacute meramente reguladora enquanto essa pressatildeo
deveraacute explicar-se pela proacutepria vida
De fato Bergson assente em considerar que tardiamente sociedades civilizadas
foram capazes de conduzir as maacuteximas e regras morais historicamente erigidas a certa
sistemaacutetica bastante coerente de tal modo que um ser inteligente que se conduza por meio
delas irrefletidamente conduzir-se-aacute com certa racionalidade Todavia eacute a vida que
explica a obrigaccedilatildeo natildeo a razatildeo143
as obrigaccedilotildees nas sociedades primitivas natildeo mais
apresentaratildeo esse caraacuteter sistemaacutetico e ordenado e todavia tambeacutem entre elas vigoraraacute a
pressatildeo do todo da obrigaccedilatildeo ainda que sua moral participe bastante do acaso e do
incoerente (BERGSON 2001 p 99418) A fim de compreender o significado do todo da
obrigaccedilatildeo bastaria imaginar que a obrigaccedilatildeo exerce pressatildeo sobre uma vontade como um
haacutebito cada obrigaccedilatildeo arrasta atraacutes de si ndash agrave maneira de uma verdadeira memoacuteria social ndash
ldquola masse accumuleacutee des autresrdquo (BERGSON 2001 p 99519) e assim utiliza-se da
pressatildeo de seu conjunto Nesse sentido jaacute se pode entrever em que sentido a obrigaccedilatildeo
derivada do todo da obrigaccedilatildeo natildeo eacute mais que um ldquoil faut parce qursquoil fautrdquo um comando
simples ponta de lanccedila que exerce em um soacute local a pressatildeo do todo Eis porque ela natildeo
comporta razotildees nem se fundamenta em um a priori racional o todo da obrigaccedilatildeo como
grande memoacuteria social eacute uma construccedilatildeo cultural no tempo um efeito de cristalizaccedilatildeo no
tempo que assumindo analogamente as formas das leis fiacutesicas emite uma ilusatildeo de
142
Afinal diz Bergson (2001 p 99417) ldquoJamais aux heures de tentation on ne sacrifierait au seul besoin de
coheacuterence logique son inteacuterecirct sa passion sa vaniteacute Parce que la raison intervient en effet comme reacutegulatrice
chez un ecirctre raisonnable pour assurer cette coheacuterence entre des reacutegles ou maximes obligatoires la
philosophie a pu voir en elle un principe drsquoobligation Autant vaudrait croire que crsquoest le volant qui fait
tourner la machinerdquo 143
ldquo[] lrsquoessence de lrsquoobligation est autre chose qursquoune exigence de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 994-
99518)
178
eternidade Essa ilusatildeo natildeo dura mais que um momento o do puxatildeo que representa um
dever a ser cumprido pela mera pressatildeo que o todo exerce em sua regiatildeo ldquoil faut parce
qursquoil fautrdquo ndash eacute tudo o que temos Por essa razatildeo criticando a filosofia moral de Kant sob
esse aspecto Bergson (2001 p 99620) ironicamente afirma que ldquoun impeacuteratif absolument
cateacutegorique est de nature instinctive ou sonambulique []rdquo praticamente inevitaacutevel como
dever e radicalmente desarrazoado organizado pelo haacutebito que no homem natildeo passa da
imitaccedilatildeo do instinto
Decerto no campo da obrigaccedilatildeo natildeo se trata de qualquer haacutebito mas de um haacutebito
mais poderoso constituiacutedo de forccedilas acumuladas de todos os haacutebitos elementares o que
melhor imita o instinto em sua inevitabilidade Bergson leva muito longe essa miacutemesis pela
qual o haacutebito no homem prefigura o instinto nos animais Tatildeo longe que a obrigaccedilatildeo seraacute
explicada pela vida pela comunidade que o vital determina em mateacuteria social em linhas
divergentes da evoluccedilatildeo como as sociedades de tipo instintivo e as humanas Se as
procurarmos em cada uma das linhas de evoluccedilatildeo encontraremos um mesmo eacutelan
repartido entre a sociabilidade perfeita e o viacutenculo instintualmente orgacircnico das
predisposiccedilotildees sociais de insetos como as formigas e as abelhas e de outro as sociedades
humanas em que o viacutenculo quase-orgacircnico entre seus membros eacute obtido pela via da
inteligecircncia por meio do haacutebito que confere ordem e regularidade agraves accedilotildees Assim as
sociedades inteligentes se caracterizariam por um haacutebito genealogicamente enraizado de
contrair haacutebitos capazes de fundar o todo da obrigaccedilatildeo por mais que os haacutebitos contraiacutedos
sejam sempre contingentes (BERGSON 2001 p 996-99721) A obrigaccedilatildeo deriva mais
fundamentalmente de uma ldquointenccedilatildeordquo que a natureza faz passar pelas sociedades
inteligentes e que persiste nas civilizaccedilotildees mais espiritualizadas a obtenccedilatildeo de uma
sociedade em que certa margem de liberdade de accedilatildeo natildeo ameaccedilasse a tessitura social EM
LrsquoEacutevolution Creacuteatrice instinto e inteligecircncia satildeo descritos como formas de consciecircncia
que em estado rudimentar interpenetram-se e dissociam-se ao crescer originando as duas
linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash artroacutepodes e vertebrados (BERGSON 2001 p 608134)
As sociedades dos himenoacutepteros prolongam os instintos e utilizam instrumentos
organizados e invariaacuteveis as sociedades humanas prolongam a inteligecircncia e utilizam
instrumentos fabricados variaacuteveis e imprevistos Na medida em que os instrumentos
organizados ou natildeo satildeo empregados por cada uma dessas sociedades na execuccedilatildeo de
trabalhos especializados e ao mesmo tempo organizados e reciprocamente
complementares eacute porque algo como ldquoum vago ideal de vida socialrdquo torna-se imanente
tanto ao instinto como agrave inteligecircncia em virtude de uma comunidade de eacutelan
179
Entretanto natildeo se pode reduzir as configuraccedilotildees plurais das sociedades humanas
agravequilo que sucede por organizaccedilatildeo da natureza nas sociedades instintivas Enquanto os
indiviacuteduos que pertencem a sociedades instintivas participam da divisatildeo social do trabalho
fixados a uma funccedilatildeo especializada que decorre de sua estrutura orgacircnica invariaacutevel a
inteligecircncia fabricadora dos homens natildeo cessa de inventar instrumentos cada vez mais
adaptados a uma accedilatildeo progressivamente mais livre Pelas mesmas razotildees as sociedades
instintivas tendem a cristalizarem-se nas formas de organizaccedilatildeo saiacutedas das matildeos da
natureza enquanto as sociedades humanas detecircm a capacidade de variaacute-las144
No primeiro
caso as obrigaccedilotildees satildeo impostas por natureza no segundo apenas a necessidade de haver
uma regra eacute natural seu conteuacutedo estaacute sempre aberto agrave variabilidade e agrave inteligecircncia
humanas Natildeo fossem essas caracteriacutesticas a obrigaccedilatildeo seria instintual isso natildeo significa
que natildeo estejamos mesmo entre seres humanos diante de um instinto virtual que liga a
obrigaccedilatildeo aos fenocircmenos mais gerais da vida Esse instinto virtual consiste precisamente
em uma funccedilatildeo bioloacutegica anaacuteloga agrave do instinto nos animais mas preenchida por outros
meios que natildeo o instinto (WORMS 2011 p 300) Esse instinto virtual natildeo se manifesta
em instinto mas em reequiliacutebrios psicoloacutegicos ou inteligentes de uma regularidade
perturbada ndash o homem estaacute vinculado pelo todo da obrigaccedilatildeo e por isso se culpabiliza por
violar interditos ou ceder a desejos egoiacutestas procura e contrafaz razotildees para obedecer por
ineacutercia Haacute uma pulsatildeo social bioloacutegica naturalizada que superficialmente assume a forma
de um imperativo da qual todo imperativo retira seu vigor O fundo natural de toda
obrigaccedilatildeo ndash falemos de comunidades primitivas ou de sociedades ldquocultivadasrdquo ndash eacute o todo
da obrigaccedilatildeo a forma da obrigaccedilatildeo em geral que se apresenta sob um vieacutes cada vez mais
elementar e puro de necessidade145
Se o natural eacute recoberto pelo adquirido em grande
parte todavia o adquirido natildeo se transmite hereditariamente como o natural que persiste
por baixo de todo verniz de cultura Tudo se passa como se o primitivo natural fosse um
insistente contemporacircneo o imemorial sob o cultivado146
Eacute portanto mais em funccedilatildeo do
primitivo que do adquirido que se pode explicar o todo da obrigaccedilatildeo A um soacute tempo
144
ldquo[] dans une ruche ou dans une fourmiliegravere lrsquoindividu est riveacute agrave son emploi par sa structure et
lrsquoorganisation est relativement invariable tandis que la citeacute humaine est de forme variable ouverte agrave tous les
progregravesrdquo (BERGSON 2001 p 99722) 145
ldquo[] plus nous descendons de ces obligations particuliegraveres qui sont au sommet vers lrsquoobligation en
geacuteneacuteral ou comme nous disions vers le tout de lrsquoobligation qui est agrave la base plus lrsquoobligation nous apparaicirct
comme la forme mecircme que la neacutecessiteacute prend dans le domaine de la vie []rdquo (BERGSON 2001 p 99924) 146
ldquoNos socieacuteteacutes civiliseacutees si diffeacuterentes qursquoelles soient de la socieacuteteacute agrave laquelle nous eacutetions immeacutediatement
destineacutes par la nature preacutesentent drsquoailleurs avec elle une ressemblence fondamentalerdquo (BERGSON 2001 p
999-100025)
180
mesmo as sociedades civilizadas teratildeo de ser definidas como sociedades fechadas sob o
ponto de vista do todo da obrigaccedilatildeo de raiz bioloacutegica que as constitui
As sociedades fechadas definem-se pela tendecircncia natural a incluir certos
indiviacuteduos excluindo outros147
Eacute nos quadros de uma forma de vida atual depositada
biologicamente e que constitui uma tendecircncia ao fechamento das sociedades que se torna
preciso compreender em que sentido a exigecircncia social se encontra no fundo da obrigaccedilatildeo
moral Isso se deve a algo sobre o que Bergson natildeo cessaraacute de insistir entre sociedades
fechadas e a socidade aberta que se define como o conjunto da humanidade inteira natildeo haacute
uma diferenccedila meramente de grau mas de natureza Contudo frequentemente nos iludimos
a respeito dessa diferenccedila acreditamos ser possiacutevel passar do amor agrave famiacutelia agrave naccedilatildeo ao
amor agrave humanidade Todavia a moral macbethiana dos tempos de guerra (ldquoFair is foul
and foul is fairrdquo) deveria bastar para compreendermos que os deveres relativos agraves
exigecircncias sociais fundamentais tendem a uma sociedade fechada que inclui alguns e
exclui os demais natildeo agrave humanidade inteira O respeito agrave vida e agrave propriedade ndash comuns
como exigecircncia da vida social ndash correspondem agraves sociedades fechadas e natildeo agraves abertas
bastaria ver que a guerra os suspende e transformam o assassinato e a pilhagem em atos
meritoacuterios Fossem deveres para com a humanidade inteira e natildeo apenas dados no interior
de sociedades marcadas pelo fechamento tais deveres jamais seriam suspensos assim
como nenhum tempo de paz poderia constituir uma preparaccedilatildeo silenciosa para os tempos
de guerra No interior das sociedades fechadas a exigecircncia social que se encontra no fundo
das obrigaccedilotildees morais visa agrave coesatildeo social tatildeo densamente que Bergson (2001 p
100127) afirma que ldquolrsquoinstinct social que nous avons aperccedilu au fond de lrsquoobligation
sociale vise toujours [] une socieacuteteacute close si vaste soit-ellerdquo A moral das sociedades
civilizadas natildeo passa portanto do verniz espesso que recobre tal instinto virtual e em
larga medida essa moral cultivada retira em boa parte do proacuteprio instinto que ela ajuda a
recobrir o vigor de seus imperativos sonambuacutelicos Eles contudo natildeo visam agrave
humanidade ou ao aberto ldquo[] entre la socieacuteteacute ougrave nous vivons et lrsquohumaniteacute en geacuteneacuteral il y
a [] le mecircme contraste entre qursquoentre le clos et lrsquoouvert la diffeacuterence entre les deux
objets est de nature et non plus simplement de deacutegrerdquo (BERGSON 2001 p 100128)
147
ldquo[] le mecircme instinct tendrait probablement agrave reconstituir aujourdrsquohui si toutes les acquisitions
mateacuterielles et spirituelles de la civilisation disparaissaient du milieu social ougrave nous le trouvons deacuteposeacutees
elles nrsquoen ont pas moins pour essence de comprendre agrave chaque moment un certain nombre drsquoindividus
drsquoexclure les autresrdquo (BERGSON 2001 p 100025) Ainda ldquo[] ce nrsquoest pas en eacutelargissant la citeacute qursquoon
arrive agrave lrsquohumaniteacute entre une morale sociale et une morale humaine la differeacutence nrsquoest pas de degreacute mais de
naturerdquo (Idem ibidem p 100431)
181
Iludimo-nos frequentemente sobre a possibilidade de ampliar de grau em grau a
solidariedade entre os homens representando a famiacutelia e a naccedilatildeo como ciacuterculos contidos
em um ciacuterculo mais abrangente em tudo semelhante aos menores e que corresponderia agrave
humanidade Todavia basta comparar o amor agrave humanidade ao amor agrave paacutetria por
exemplo para concluir que as exigecircncias relativas agrave coesatildeo social derivam em grande
parte justamente do fechamento da necessidade de defender-se de inimigos do exterior a
religiatildeo por outro lado operaria a milagrosa passagem do amor a nossos parentes e
concidadatildeos ao amor agrave humanidade148
auxiliaria a iludir-nos de que chegaremos a amar a
humanidade de grau em grau quando para isso seria necessaacuterio um salto Signo dessa
diferenccedila de natureza o salto exprime a passagem a uma outra forma de obrigaccedilatildeo social
diferente da pressatildeo da moral fechada e vem ao encontro do amor agrave humanidade que
Bergson chama de ldquomoral completa ou absolutardquo
A moral completa diverge da forma de pressatildeo social emprestada ao todo da
obrigaccedilatildeo nas sociedades fechadas ela natildeo se resolve em imperativos impessoais Pelo
contraacuterio encarna-se em personalidades excepcionais que se convertem em exemplo Tais
exemplos triunfais ou heroicos jaacute natildeo impotildeem a aceitaccedilatildeo de nenhuma lei de qualquer
universal mas constituem a singularidade que convida agrave imitaccedilatildeo comum ndash arrastam
multidotildees atraacutes de si sem sequer exortaacute-los Eacute como se houvesse apenas um chamado agrave
miacutemesis natildeo haacute empurratildeo pressatildeo haacute apenas um chamado que procede de uma
personalidade moral excepcional Sua forccedila adveacutem da proacutepria existecircncia dessa
personalidade moral arrebatante que natildeo persuade pela razatildeo mas funde as maacuteximas em
sua singularidade (BERGSON 2001 p 1003-100429-31) Sua diferenccedila radical para com
a moral das sociedades fechadas estaacute precisamente em fazer ndash como os santos do
cristianismo os profetas de Israel os saacutebios gregos ou os iluminados do budismo ndash um
apelo agrave humanidade inteira natildeo mais agraves exigecircncias sociais149
A miacutemesis permite que uma
foacutermula do aberto persista entre noacutes por muito tempo inconsciente ou descarnada agrave
espreita ou em estado virtual Sua espera talvez indefinida determina-se em funccedilatildeo do
tempo da oportunidade dos potenciais de subjetivaccedilatildeo basta que a foacutermula se preencha
de mateacuteria e a mateacuteria se anime para que possa nascer uma nova forma de vida150
Nesse
148
ldquo[] la religion convie lrsquohomme agrave aimer le genre humainrdquo (BERGSON 2001 p 100228) 149
ldquo[] la seconde morale [] diffeacutere de la premiegravere en ce qursquoelle est humaine au lieu drsquoecirctre seulement
socialerdquo (BERGSON 2001 p 100431) 150
Eis a bela passagem em que Bergson (2001 p 100532) descreve a sobrevivecircncia virtual do aberto em
algumas foacutermulas ldquo[] il suffit [] que la formule soit lagrave elle prendra tout son sens lrsquoideacutee qui viendra le
remplir se fera agissante quand une occasion se preacutesentera Il est vrai que pour beaucoup lrsquooccasion ne se
preacutesentera pas ou lrsquoaacutection sera remise agrave plus tard Chez certains la volonteacute srsquoeacutebranlera bien un peu mais si
182
sentido o chamado que proveacutem do aberto e atravessa uma personalidade excepcional ecoa
como uma linha de atualizaccedilatildeo imponderaacutevel constitui-se na espreita que define o virtual e
sustenta-se pela miacutemesis mais ou menos descarnada dos seguidores que natildeo raro
inconscientemente atendem a seu chamado
A atitude moral do homem que responde agraves exigecircncias sociais de fechamento eacute
sem duacutevida a de um ser inteligente que sobretudo pode agir de maneira utilitaacuteria e
egoiacutesta Se agir assim arriscaraacute contrariar aquilo que exige o interesse geral Todavia logo
se vecirc que a moral utilitaacuteria e egoiacutesta do ser inteligente preocupado com seu proacuteprio bem-
estar dissimula sob si a accedilatildeo do instinto natural que o impulsiona agrave integraccedilatildeo social151
Natildeo haacute nenhum paradoxo nessa dinacircmica na medida em que essa pulsatildeo social relaciona-
se agrave obrigaccedilatildeo o indiviacuteduo viveraacute tanto pela sociedade quanto para si mesmo Eis porque a
alma se fecha em um ciacuterculo ndash porque social e individual se curto-circuitam (BERGSON
2001 p 100634) A alma aberta por sua vez implica uma atitude inteiramente diversa
ela abrange uma potecircncia amorosa definida mais do que pelo amor agrave humanidade pelo
amor aos animais plantas a toda a natureza e a todo o existente ndash e ao dizecirc-lo ainda natildeo
teremos ido longe demais Ela abrange todo o ser e todo poder ser independentemente de
seus conteuacutedos acidentais a alma aberta constitui-se por uma forma de amor total natildeo
totalizaacutevel aberto virtual e imponderaacutevel152
Entre as almas fechada e aberta verifica-se a
mesma diferenccedila de natureza que verificaacutevamos entre sociedades fechada e aberta O amor
ao todo natildeo eacute o amor familiar ou nacional dilatados pois os primeiros implicam exclusatildeo
podem incitar agrave violecircncia e agrave guerra o uacuteltimo por sua vez atinge a humanidade e a
ultrapassa cria-se um amor sobre-humano Em siacutentese o amor agrave humanidade vale por
aquilo que a ultrapassa
A atitude moral da alma aberta exige no entanto uma explicaccedilatildeo Sabemos de
onde uma moral fechada extrai sua forccedila ndash ela foi pretendida pela natureza ela eacute
engendrada pelo todo da obrigaccedilatildeo pelo qual o instinto exerce pressatildeo sobre o haacutebito
Contudo a atitude moral da alma aberta parece exigir um esforccedilo na medida em que natildeo eacute
predisposta pela natureza Se ela natildeo eacute o resultado de um alargamento progressivo dos
amores da alma fechada e se ela se constitui a partir de um chamado por que ele seria
peu que la secousse reccedilue pourra en effet ecirctre attribueacutee agrave la seule dilatation du devoir social eacutelargit et affaibli
en devoir humain Mais que les formules se remplissent de matiegravere et que la matiegravere srsquoanime crsquoest une vie
nouvelle qui srsquoannonce nous compenons nous sentons qursquoune autre morale survientrdquo 151
ldquo[] au-dessous de lrsquoactiviteacute intelligente qui aurait en effet agrave opter entre lrsquointerecirct personnel et lrsquointerecirct
drsquoautrui il y a bien un substratum drsquoactiviteacute instinctive primitivement eacutetablie par la nature ouacute lrsquoindividuel et
le social sont tout pregraves de se confondrerdquo (BERGSON 2001 p 100633) 152
ldquoSa forme ne deacutepend pas de son contenu [] La chariteacute subsisterait chez celui qui la possegravede lors mecircme
qursquoil nrsquoy aurait plus drsquoautre vivant sur la terrerdquo (BERGSON 2001 p 100734)
183
atendido de onde ela retira a sua forccedila A resposta aparentemente lacocircnica de Bergson
pode soar surpreendente mas confere ao afeto e agrave emoccedilatildeo um lugar privilegiado em sua
obra (WORMS 2011 p 324) ndash jaacute natildeo estivesse este dado pelo proacuteprio lugar do
imponderaacutevel sentimento de amor que o aberto implica ldquoEn dehors de lrsquoinstinct et de
lrsquohabitude il nrsquoy a de lrsquoaction direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion
exerceacutee par le sentiment peut drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (BERGSON
2001 p 100835) Tudo se passa como se focircssemos inteiramente penetrados por uma
emoccedilatildeo musical natildeo se trata de introduzir uma emoccedilatildeo em noacutes mas de introduzir-nos em
uma emoccedilatildeo fundamental ao sabor da qual todo o nosso ser vibra com a qual todos os
nossos sentimentos ressoam e a que todas as nossas accedilotildees e desejos parecem responder
(BERGSON 2001 p 100836) A emoccedilatildeo eacute criadora na medida em que lanccedila ao mundo
uma nova nota fundamental e com ela sentimentos elementares aos quais uma
personalidade pode fazer eco ou com os quais poderaacute ressoar
Notemos que Bergson sempre faz interferir uma metaacutefora musical no momento em
que o novo ou o devir explicam-se pela duraccedilatildeo ou pelo tempo Jaacute natildeo haacute mais uma
duraccedilatildeo meloacutedica mas uma nota fundamental que se propaga entre personalidades no
tempo que pode permanecer agrave espreita que pode ser agida que pode estimular a criaccedilatildeo
mas tambeacutem a accedilatildeo com a qual esta se confunde no seio do poliacutetico e do social O proacuteprio
tempo define-se portanto segundo um segmento afetivo Eacute preciso tempo para que a
sensibilidade recolha um afeto vibre com ele estenda-o modifique-o ou o comunique da
mesma forma eacute no tempo que uma nota fundamental eacute criada eacute na duraccedilatildeo que ela pode
ecoar indefinidamente seguindo seu contiacutenuo virtual coexistindo com um sem nuacutemero de
outras notas fundamentais e melodias que por sua vez engendram outros afetos e outras
linhas de subjetivaccedilatildeo capazes de interferir com uma personalidade Sob a emoccedilatildeo ou a
criaccedilatildeo natildeo haacute como natildeo perceber a duraccedilatildeo em que elas se desenrolam sem cessar
Contudo eacute preciso discernir de que tipo de emoccedilatildeo se estaacute falando em que consiste
essa emoccedilatildeo na qual toda criaccedilatildeo ndash artiacutestica ou cientiacutefica ndash apareceraacute enodada Bergson
(2001 p 101140) fala dela como de um estremecimento afetivo da alma de um revolver
das profundezas um estimulante para a accedilatildeo e o pensamento ndash emoccedilatildeo capaz de gerar
ideias Haacute com efeito algo como uma emoccedilatildeo que coincide apenas com uma agitaccedilatildeo
afetiva superficial decorre de uma ideia ou imagem representada deve-se em suma a um
estado intelectual do qual procede A sensibilidade agita-se como efeito de uma agitaccedilatildeo
superficial relativa a estados intelectuais nada profundos Trata-se pois de uma emoccedilatildeo
infraintelectual Por outro lado a emoccedilatildeo que Bergson afirma ser verdadeiramente criadora
184
eacute supraintelectual153
natildeo no sentido em que eacute axiologicamente superior agrave inteligecircncia mas
que eacute anterior a ela no tempo Natildeo nascendo de uma ideia a emoccedilatildeo engendra ideias e
representaccedilotildees designa a potecircncia da alma para uma sensibilidade profunda que se
prolonga em gecircnio esforccedilo e paciecircncia por toda parte na ciecircncia como na literatura154
Trata-se portanto de uma emoccedilatildeo ativa que natildeo apenas impele agrave accedilatildeo mas conduz-se por
uma sensibilidade em profundidade da integral da alma tal como aparecia no Essai
Worms (2011 p 324) assinala que essa emoccedilatildeo proveacutem da alma como ldquouma tomada do eu
por inteiro e natildeo de uma parte emotiva ou de uma faculdade separada []rdquo nesse sentido
a emoccedilatildeo designa o fundo ativo e total de uma personalidade que se constitui pela accedilatildeo da
proacutepria duraccedilatildeo que faz memoacuteria consigo que natildeo cessa de variar Emoccedilatildeo criaccedilatildeo e
duraccedilatildeo confundem-se ao infinito no niacutevel de atualizaccedilatildeo de uma personalidade com elas
eacute a proacutepria personalidade que eacute criada como linha de subjetivaccedilatildeo que uma obra ou nota
fundamental podem ajudar a completar
Sendo supra e natildeo infraintelectual diziacuteamos a emoccedilatildeo antecede a representaccedilatildeo
engendra a ideia ao inveacutes de ser engendrada por ela Tudo se passa como se a inteligecircncia
fosse entatildeo impelida por uma espeacutecie de gozo antecipado em resolver um problema em
avanccedilar sem cessar vitalizando as representaccedilotildees que gera e com as quais seu encontro se
determina no enunciado de um problema capaz talvez de conduzi-la a uma soluccedilatildeo
Tambeacutem a coincidecircncia entre um autor e seu assunto vecirc a inteligecircncia consumir-se em
ldquolrsquoeacutemotion originale et uniquerdquo (BERGSON 2001 p 101443) em uma intuiccedilatildeo Se a
inteligecircncia pode abandonar-se a articular e rearticular ideias palavras e soacutelidos a emoccedilatildeo
natildeo trabalha a frio a intuiccedilatildeo funde os materiais fornecidos pela inteligecircncia e a emoccedilatildeo
constitui a causa virtual das ideias representaccedilotildees e palavras que a exprimem155
Com
efeito se a gecircnese moral se deve em profundidade agrave emoccedilatildeo ela sempre pode cristalizar-se
em representaccedilatildeo e constituir uma estrutura como se o aberto da emoccedilatildeo se fechasse na
clausura da representaccedilatildeo exatamente como o eacutelan eacute abertura vital que volta a se fechar
sob uma forma de vida atual No social como no vital natildeo se pode explicar o
engendramento pelo engendrado o virtual pelo atual apenas o contraacuterio eacute possiacutevel Para
aderirmos a uma moral natildeo basta a coerecircncia racional eacute preciso que a atmosfera da
emoccedilatildeo que a criou esteja de alguma forma presente assim jaacute natildeo nos obrigamos
153
ldquoCreacuteation signifie avant tout eacutemotionrdquo (BERGSON 2001 p 101342) 154
ldquoSeule en effet lrsquoeacutemotion du second genre peut devenir geacuteneacuteratrice drsquoideacuteesrdquo (BERGSON 2001 p
101241) 155
ldquo[] agrave cocircteacute de lrsquoeacutemotion qui est lrsquoeffet de la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui srsquoy
surajoute il y a celle qui precegravede la repreacutesentation qui la contient virtuellement et qui en est jusqursquoagrave un
certain point la causerdquo (BERGSON 2001 p 101444)
185
puramente mas cedemos agrave inclinaccedilatildeo que a emoccedilatildeo nos imprime (BERGSON 2001 p
101545)
Na medida em que a moralidade fechada do instinto social define-se pela pressatildeo
capaz de opor agraves vontades individuais cristalizando-se a emoccedilatildeo em imperativo a
moralidade aberta define-se por uma aspiraccedilatildeo que resiste a essa natureza e ao inveacutes do
prazer e do estado de bem-estar geral que caracterizam a normalidade do que Bergson
chama de ldquosociedades afrodisiacuteacasrdquo o aberto concede-nos um sentimento no qual todo
prazer se envolve e absorve ndash a alegria Enquanto o prazer remete ao fechado ao
imobilismo confortaacutevel do bem-estar a alegria remete ao entusiasmo e agrave aspiraccedilatildeo proacutepria
dos miacutesticos e das individualidades excepcionais156
Na medida em que a vida se dividiu
em espeacutecies e tendo obtido a espeacutecie humana dividiu-a em indiviacuteduos como seus
momentos de parada virtual satildeo os indiviacuteduos que podem conduzir a vida um pouco aleacutem
de si mesmos eacute por meio de certos indiviacuteduos excepcionais que a humanidade pode ser
arrastada a um sentimento de coincidir com o esforccedilo gerador da vida (BERGSON 2001
p 102051) Suas personalidades compreendidas como singularidades abertas agrave accedilatildeo da
duraccedilatildeo variando em funccedilatildeo dela constituem os pontos luminosos em que o aberto
constitui-se como o momento em que o esforccedilo criador da vida ultrapassa a forma criada
em que a potecircncia inorgacircnica do virtual leva o atual mais aleacutem de si mesmo e se inventam
novas formas de vida e de pensamento Essa invenccedilatildeo soacute eacute possiacutevel poreacutem no seio afetivo
de uma emoccedilatildeo criadora que constitui essa propulsatildeo profunda de que a criaccedilatildeo eacute o
expresso157
As formas de vida atuais especiacuteficas ou morais satildeo apenas a imagem fria e
paacutelida dessa emoccedilatildeo criadora cinzas sobre a brasa sua cristalizaccedilatildeo temporaacuteria
Encontramo-nos portanto diante de duas morais Uma fechada agrave qual o homem
estaacute predestinado por sua estrutura natural que visa a conservaacute-lo como ser ao mesmo
tempo inteligente e sociaacutevel outra aberta pela qual alguns indiviacuteduos excepcionais
parecem romper parcialmente com a natureza ndash no sentido da moralidade fechada agrave qual
estavam predestinados ndash colocando-se uma vez mais no sentido do eacutelan vital (BERGSON
2001 p 102356) Eis o que faz com que a moral fechada constitua apenas um momento
156
ldquoIls sont [plaisir et bien-ecirctre] en effet arrecirct ou piegravetinement sur place tandis qursquoelle [la joie] est marche en
avantrdquo (BERGSON 2001 p 102457) As expressotildees entre colchetes natildeo constam do original 157
ldquo[] crsquoest toujours dans un contact avec le principe geacuteneacuterateur de lrsquoespegravece humaine qursquoon srsquoest senti
puiser la force drsquoaimer lrsquohumaniteacute Je parle bien entendu drsquoun amour qui absorbe et reacutechauffe lrsquoacircme entiegravererdquo
(BERGSON 2001 p 102152)
186
da moralidade aberta158
como se o dinacircmico absorvesse o estaacutetico e o explicasse em
profundidade
O fechado saiacutedo das matildeos da natureza e o aberto pelo qual se rompe em certa
medida com a natureza naturada para aceder agrave natureza naturante constituem o dualismo
fundamental que atravessa por toda a extensatildeo de Les Deux Sources (WORMS 2011 p
286) No entanto natildeo haveria uma alma que se abre Entre o estaacutetico e o dinacircmico natildeo
haveria uma moral de transiccedilatildeo (BERGSON 2001 p 102862) Esse natildeo seria
precisamente o estado da inteligecircncia entre o infra e o supraintelectual meio-termo entre
duas tendecircncias puras Com efeito eis o que Bergson afirma159
e a inteligecircncia definir-se-
ia entatildeo por uma insuficiecircncia de impulsatildeo Persistindo na ataraxia ou na apatia a
inteligecircncia encontraria na pura contemplaccedilatildeo e em uma moralidade do desprendimento
da alma estoica um prolongamento natural Todavia uma alma e uma moralidade de
transiccedilatildeo entre o aberto e o fechado parecem colocar de imediato uma questatildeo de que
ainda natildeo podemos nos aproximar senatildeo por tateio a questatildeo sobre como abrir o fechado
Se por ora natildeo podemos tocar senatildeo sua sombra estamos advertidos que a alma pode ser
atravessada por dois movimentos de sentidos inversos ldquoCe qui est aspiratoin tend agrave se
consolider en prenant la forme de lrsquoobligation strict Ce qui est obligation strict tend agrave
grossir et agrave srsquoeacutelargir en englobant lrsquoaspirationrdquo (BERGSON 2001 p 103064)
Cristalizaccedilatildeo e fluxo solidificaccedilatildeo e fusatildeo
Sob o plano intelectual em que os imperativos morais interpenetram-se sob a forma
de conceitos pressatildeo e aspiraccedilatildeo satildeo duas forccedilas profundas que correspondem a duas
formas de obrigaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 104382) Como expressos de tendecircncias puras
ao fechamento e agrave abertura que natildeo existem senatildeo como limites ideais um misto de ambas
forjaraacute a estrutura social afinal assim como o homem natildeo eacute puramente inteligecircncia ou
intuiccedilatildeo as sociedades humanas natildeo satildeo nem puramente instintuais e orgacircnicas como natildeo
poderiam ser puramente miacutesticas160
Poreacutem assim como isso natildeo retira a realidade da
obrigaccedilatildeo nua tampouco subtrairaacute de nossa consideraccedilatildeo o fato de que mesmo no interior
das sociedades mais civilizadas satildeo as almas miacutesticas que as arrastam em seu conjunto
sem cessar elas eacute que podem ser revivificadas por cada um de noacutes seguidores ou
imitadores e ela natildeo cessa de exercer sobre noacutes certa atraccedilatildeo que Bergson diz ser ldquovirtualrdquo
Pressatildeo e aspiraccedilatildeo correspondem a duas ordens de forccedilas uma infraintelectual instintiva
158
ldquoLa morale courant nrsquoest pas abolie mais elle se preacutesente comme un moment le long drsquoun progregravesrdquo
(BERGSON 2001 p 102558) 159
ldquoEntre les deux il y a lrsquointelligence mecircmerdquo (BERGSON 2001 p 102963) 160
ldquoLrsquoaspiration pure est une limite ideacuteale comme lrsquoobligation nuerdquo (BERGSON 2001 p 104685)
187
naturalizada como um fato da vida outra supraintelectual intuitiva que faz passar por uma
forma dada o impulso vital que eacute a causa profunda de sua gecircnese Se respondemos ao
chamado miacutestico em maior ou menor grau isso se deve agrave forccedila da proacutepria emoccedilatildeo outrora
provocada A correlaccedilatildeo das duas formas em regiotildees diferentes da alma permite uma
projeccedilatildeo contiacutegua agrave inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1046-104785-86) Eis o que nos
coloca acima da sociabilidade meramente animal mas abaixo de uma sociedade aberta eis
tambeacutem a regiatildeo em que a moral parece compor-se por projeccedilatildeo com a razatildeo o que
permite reconduzi-la coerentemente a princiacutepios
Bergson insiste no entanto que esta eacute uma projeccedilatildeo meramente racional da moral
Como vimos sua causa natildeo eacute intelectual mas mais profunda161
seu enigma eacute explicado
pela vida em sentido infra ou supraintelectual nos sentidos de sua cristalizaccedilatildeo ou de sua
gecircnese dinacircmica A polecircmica estabelece-se de forma franca com a filosofia moral kantiana
mas tambeacutem se dirige contra qualquer pretensatildeo de fundar a moral a partir da loacutegica Nem
o egoiacutesmo nem a paixatildeo cedem agrave inteligecircncia ou ao espiacuterito especulativo Ao mesmo
tempo natildeo se poderia fundar a moral em criteacuterios unicamente racionais sem inserir sub-
repticiamente forccedilas de ordem diferente (BERGSON 2001 p 105090-91) A sociedade
estaacute dada na proacutepria forma de vida humana sob a forma de instinto virtual haacutebito de
contrair haacutebitos e por meio dessa dinacircmica tenderaacute a conservar-se o maacuteximo que puder
Nesse contexto o que a razatildeo faraacute eacute eleger um princiacutepio sistematicamente coerente
adequado a esta finalidade conservadora da sociabilidade que seraacute repartido coletivamente
segundo a pressatildeo que o todo da obrigaccedilatildeo exerce estaacute portanto carregado das tendecircncias
que a moral social depositou nele A razatildeo veraacute aspiraccedilotildees prolongando princiacutepios morais
prestes a se tornarem imperativos mas tanto uns quanto outros resultam da atmosfera
social na qual satildeo ldquopressentidosrdquo (BERGSON 2001 p 105292-93) Se uma obrigaccedilatildeo eacute
necessaacuteria e ateacute mesmo biologicamente predisposta seus conteuacutedos equivalem a valecircncias
livres que podem ser soldadas agrave inteligecircncia a qual permanece incapaz por si de explicar
a origem da obrigaccedilatildeo Com efeito a vida poderia ter se limitado a fabricar sociedades
fechadas e a garantir sua coesatildeo por meio de viacutenculos obrigacionais estritos entre seres
inteligentes cuja inteligecircncia natildeo teria chegado ao ponto de estimular nenhuma
transformaccedilatildeo radical (BERGSON 2001 p 105597)
161
ldquo[] de ce qursquoon aura constateacute le caractegravere rationnel de la conduite morale il ne suivra pas que la morale
ait son origine ou mecircme son fondement dans la pure raisonrdquo (BERGSON 2001 p 104786) ldquoBref et pour
tout reacutesumer il ne peut ecirctre question de fonder la morale sur le culte de la raisonrdquo (Idem ibidem p 105090)
188
Sua mutaccedilatildeo depende portanto de um salto qualitativo em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia
de almas que Bergson diz serem excepcionais ou privilegiadas que natildeo se limitavam pela
solidariedade ao grupo mas abriam-se ao amor agrave humanidade Do ponto de vista da vida
sua apariccedilatildeo teria sido tatildeo luminosa e intensa que tudo se passa como se cada indiviacuteduo
constituiacutesse em si mesmo uma nova espeacutecie ponto de passagem do eacutelan vital a partir do
qual seu impulso pode prolongar-se mais aleacutem de uma forma de vida atual (BERGSON
2001 p 105698) Jaacute natildeo seriam mais sujeitos manifestando seu amor mas um amor
manifestando-se atraveacutes dessas individualidades penetradas por uma emoccedilatildeo criadora que
seria como um transbordamento de vitalidade A simples evocaccedilatildeo de seus nomes ainda
hoje comunicam algo dessa forccedila original produzem uma atraccedilatildeo mais ou menos
irresistiacutevel sejam eles Buda Jesus ou Soacutecrates
Os nomes ainda parecem fazer passar atraveacutes de si algo de um impulso original
como se fossem clareiras rescendentes de uma emoccedilatildeo criadora que coincide com o
proacuteprio eacutelan vital Nesse plano eacute possiacutevel notar que pressatildeo social e impulso de amor satildeo
duas manifestaccedilotildees complementares da mesma vida em sentidos diferentes tais como
duraccedilatildeo e espaccedilo ou espiacuterito e mateacuteria originalmente articuladas para conservar a forma
social caracteriacutestica da espeacutecie humana excepcionalmente e graccedilas a indiviacuteduos satildeo
capazes de se transfigurar (BERGSON 2001 p 105798-99) Eis em que sentido a
experiecircncia miacutestica se torna o campo de provas privilegiado dessa tese para aleacutem de
qualquer interpretaccedilatildeo da proacutepria miacutestica e a despeito de seus conteuacutedos nela os miacutesticos
jaacute natildeo satildeo mais seres de pura contemplaccedilatildeo e ecircxtase mas verdadeiros homens de accedilatildeo
encarnaccedilotildees de potenciais de transformaccedilatildeo de modos de vida aqueles que ldquosrsquoouvrent
simplement au flot qui les envahitrdquo (BERGSON 2001 p 1059102)
Na medida em que compreendemos o fundo vital por detraacutes da obrigaccedilatildeo e da
moralidade em sentidos tanto infra quanto supraintelectuais a religiatildeo natildeo deixaria de
colocar novos problemas com relaccedilatildeo agrave vida mas tambeacutem com relaccedilatildeo agrave inteligecircncia A
fim de que possamos nos aproximar do cerne da discussatildeo da transiccedilatildeo ndash que se dissimula
sob as questotildees ldquocomo abrir o fechadordquo e ldquocomo perseverar no abertordquo ndash seria preciso
atendo-nos apenas ao essencial aprofundar como a religiatildeo constitui tambeacutem ela uma
exigecircncia da proacutepria vida
A primeira perplexidade de supor a existecircncia de uma religiatildeo natural aos homens
pressentida em diferentes niacuteveis de elaboraccedilatildeo nas sociedades humanas ditas primitivas e
presente tambeacutem nas sociedades civilizadas eacute a aparente contradiccedilatildeo entre o mosaico de
189
aberraccedilotildees que as religiotildees constituem em relaccedilatildeo agrave inteligecircncia No entanto a tese
genuinamente antropoloacutegica de Bergson sobre a existecircncia de uma religiatildeo natural ou
primitiva que natildeo teria desaparecido na civilizaccedilatildeo ndash mas se encontraria recoberta por
camadas superficiais de educaccedilatildeo e variabilidade cultural ndash vai precisamente ao encontro
da destituiccedilatildeo desse aparente paradoxo Se por um lado as supersticcedilotildees que habitam o
fundo de toda religiatildeo parecem humilhar a inteligecircncia (BERGSON 2001 p 1061105)
por outro elas natildeo constituem exclusividade das mentalidades preacute-loacutegicas de Leacutevy-Bruhl
tais exigecircncias religiosas primitivas encontrar-se-iam copresentes aos modos de vida
civilizados na medida em que se constituiriam a partir da ldquostructure geacuteneacuterale de lrsquoesprit
humainrdquo (BERGSON 2001 p 1063107) Natildeo haacute pois diferenccedila de natureza entre a
mentalidade primitiva e a inteligecircncia saiacutedas das matildeos da natureza elas correspondem a
uma e mesma direccedilatildeo de desenvolvimento do eacutelan vital tatildeo inatos quanto a linguagem o
bom senso e o senso social no homem normal Natildeo eacute portanto em razatildeo da sociabilidade
que o homem difere estruturalmente dos himenoacutepteros ndash vimos outrossim que a
sociabilidade eacute uma tendecircncia comum a ambas as linhas divergentes de evoluccedilatildeo ndash mas
sim em razatildeo da indeterminaccedilatildeo que a inteligecircncia insere como potencial especiacutefico da
forma de vida do primeiro e que o instinto do segundo inibe Incapazes da inteligecircncia da
representaccedilatildeo e da invenccedilatildeo os insetos permanecem vinculados agrave vida pelo instinto que
nada mais eacute que o prolongamento natural do eacutelan nas formas de vida que o instinto habita
Na medida em que os insetos natildeo representam e o instinto assegura que suas accedilotildees sejam
necessaacuterias fixas e organicamente ordenadas as sociedades de himenoacutepteros natildeo
desenvolvem as supersticcedilotildees proacuteprias aos homens
Poreacutem como explicar no homem representaccedilotildees que engendram supersticcedilotildees A
resposta de Bergson descarta a imaginaccedilatildeo as funccedilotildees loacutegicas do espiacuterito para limitar-se agrave
descriccedilatildeo de uma funccedilatildeo que apesar de indeterminada encontra-se preacute-formada no
homem e ligada agrave vida em geral Trata-se da funccedilatildeo fabuladora que permitiraacute que tudo seja
explicado em profundidade pela vida em razatildeo de lrsquoattachement agrave la vie mas que
encontraraacute uma explicaccedilatildeo superficial a um soacute tempo individual e social162
Isso implica
poreacutem que compreendamos o sentido dessa necessidade natural a exigir uma funccedilatildeo
fabuladora como o efeito da religiatildeo
162
ldquo[] par rapport agrave la religion cette faculteacute [la fonction fabulatrice] serait effet et non pas cause Un
besoin peut-ecirctre individuel en tout cas social a ducirc exiger de lrsquoesprit ce genre drsquoactiviteacuterdquo (BERGSON 2001
p 1067112)
190
Tudo se passa como se a inteligecircncia consistisse em uma inclinaccedilatildeo perigosa tanto
ao indiviacuteduo quanto agrave sociedade Se entre os himenoacutepteros o instinto forja as accedilotildees que
correspondem a uma sociedade perfeita em que cada indiviacuteduo se encontra
organizadamente vinculado ao todo desempenha sua funccedilatildeo resultante de uma dada
inclinaccedilatildeo natural e estrutural entre os indiviacuteduos que participam de sociedades humanas
a inteligecircncia exerce uma funccedilatildeo duacuteplice na natureza A inteligecircncia permite a reflexatildeo ndash
que eacute capaz de transformar invenccedilatildeo em variabilidade e liberdade de accedilatildeo ndash inserindo
intervalos temporais cada vez maiores de hesitaccedilatildeo entre estiacutemulo e resposta e tornando
possiacutevel uma accedilatildeo tatildeo refletida quanto livre Ao mesmo tempo ao implicar a liberdade
mesma a inteligecircncia parece ameaccedilar a coesatildeo social ndash eacute portadora de perigos tanto quanto
do imprevisiacutevel ontoloacutegico que constitui a accedilatildeo livre A fim de assegurar a sociabilidade a
natureza encontrou na funccedilatildeo fabuladora um meio para prevenir-se contra as ameaccedilas que
levar a inteligecircncia e a indeterminaccedilatildeo tatildeo longe poderiam representar ao indiviacuteduo e agrave
coesatildeo social dessa forma a via encontrada teria sido invadir a inteligecircncia pouco a pouco
com a supersticcedilatildeo aproveitar os efeitos alucinatoacuterios da ficccedilatildeo ndash eficazes a ponto de
reorientarem condutas concretas desapegadas agrave vida ndash sem prejudicar a proacutepria
inteligecircncia163
Essa visatildeo eacute poreacutem ainda de todo esquemaacutetica A fim de confirmaacute-la seria preciso
compreender como a proacutepria natureza se previne em face da inteligecircncia e por outro lado
qual a origem da tendecircncia que encontra na funccedilatildeo fabuladora esse modo de prevenccedilatildeo
Para tanto conviria lembrar que por mais que as sociedades de himenoacutepteros e as de
homens procedam umas a partir do instinto outras a partir da inteligecircncia a comunidade
de eacutelan que descerraacutevamos acerca delas daacute conta de sua origem comum Tal origem
permitia entrever desde LrsquoEacutevolution Creacuteatrice que tanto o instinto encontrava-se
penetrado de certo niacutevel de inteligecircncia como a inteligecircncia aureolava-se de instinto como
uma nuvem de virtualidades copresentes agrave ela Eis o que definiria uma vez mais em
funccedilatildeo da inteligecircncia uma espeacutecie de instinto virtual que natildeo permite que o homem
divague infinitamente por meio da inteligecircncia e permaneccedila apegado agrave vida Se Bergson
diz que antes de filosofar eacute preciso viver eacute para assinalar que mesmo entre os homens o
instinto estaacute permanentemente agrave espreita ndash o que consiste no modo do virtual ndash ou que o
163
Ao inveacutes de as imagens alucionatoacuterias e das supersticcedilotildees contradizerem a inteligecircncia ldquoUne fiction si
lrsquoimage est vive et obseacutedante pourra preacuteciseacutement imiter la perception et par lagrave empecirccher ou modifier
lrsquoaction Une expeacuterience systegravematiquement fausse se dressant devant lrsquointelligence pourra lrsquoarrecircter au
moment ouacute elle irait trop loin dans les conseacutequences qursquoelle tire de lrsquoexpeacuterience vrai Ainsi aurait donc
proceacutedeacute la naturerdquo (BERGSON 2001 p 1067113)
191
instinto vigia sem cessar a inteligecircncia inibe a tendecircncia que a inteligecircncia tem a
especulaccedilatildeo desligada da vida e manteacutem um corpo atento agraves promessas e ameaccedilas de seu
entorno
Dito isso seria pois o caso de perguntar em que consiste essa tendecircncia que cria
nos homens uma faculdade que sugere a seres livres e inteligentes imagens quase
alucinatoacuterias Ao mesmo tempo trata-se de interrogar em que consiste a necessidade vital
a que essas imagens respondem Essas questotildees satildeo modos natildeo isomoacuterficos de propor em
profundidade o problema que concerne a Bergson no segundo capiacutetulo de Les Deux
Sources a saber em que consiste a complexa relaccedilatildeo entre fabulaccedilatildeo e vida Para
respondecirc-lo eacute preciso remontar a algumas descriccedilotildees de sua evoluccedilatildeo criadora sobre a
forma de vida humana ou o que chamamos de ciacuterculo antropoloacutegico ao qual a religiatildeo
encontra-se ligada bem como ao instinto virtual que circunda a inteligecircncia dos
vertebrados superiores (BERGSON 2001 p 1068-1069114)
O homem tal como saiacutedo das matildeos da natureza apresenta duas caracteriacutesticas a
inteligecircncia e a sociabilidade Para compreender em que sentido Bergson pode afirmar a
existecircncia de uma religiatildeo natural ao homem e como ela constitui uma exigecircncia vital que
se utiliza da inteligecircncia para reequilibrar a proacutepria vida seria preciso recolocar a
inteligecircncia e a sociabilidade na evoluccedilatildeo geral da vida interpretaacute-las biologicamente ndash no
sentido abrangente que Bergson advoga
Se retomarmos os dois sentidos em que a vida evoluiu veremos que a sociabilidade
encontra-se presente de modo bem-acabado em duas linhas divergentes que se originaram
de uma comunidade de eacutelan por essa razatildeo cada uma das linhas representam
desenvolvimentos diferenciados mas complementares da mesma tendecircncia natural agrave
sociabilidade Haacute pouco bastava que lanccedilaacutessemos os olhos agraves sociedades de insetos
himenoacutepteros (formigas abelhas) para percebermos uma forma imutaacutevel de organizaccedilatildeo
social baseada no instinto fixa e ordenada Na outra das linhas a dos homens poreacutem
verifica-se o desenvolvimento da sociabilidade segundo direccedilotildees inteligentes e inventivas
o que conduz a uma sociedade marcada pela variabilidade de formas de organizaccedilatildeo social
e permite que elas descrevam uma histoacuteria progressiva da evoluccedilatildeo desses modos de
relaccedilatildeo intersubjetiva Ao lado do instinto ndash prolongamento do esforccedilo organizador da
natureza ndash ou da inteligecircncia aureolada por franjas virtuais de instinto seja como for a
comunidade de eacutelan atesta que ldquole social est au fond du vitalrdquo (BERGSON 2001 p
1075123) Sendo a sociabilidade uma direccedilatildeo da vida que se reparte na medida em que
192
cresce ndash e que obseda ateacute mesmo as estruturas orgacircnicas individuais164
ndash ela se
manifestaraacute diferentemente nas linhas evolutivas e originaraacute dos dois tipos de sociedades
que viemos a conhecer as sociedades dos insetos e a dos homens
Na linha que corresponde agrave forma de vida humana ao ciacuterculo antropoloacutegico a
inteligecircncia eacute outorgada aos indiviacuteduos juntamente com a liberdade a indeterminaccedilatildeo e o
poder de iniciativa Pelo imprevisiacutevel que sua linha comporta e faz passar mas tambeacutem
pela tendecircncia ao egoiacutesmo que pode implicar a inteligecircncia ameaccedila romper em certos
pontos a coesatildeo social de tal forma que a natureza precisa encontrar um contrapeso agrave
inteligecircncia O instinto que inibido pela inteligecircncia persiste ao seu redor por forccedila de uma
comunidade original de eacutelan natildeo pode constituir esse contrapeso por seus proacuteprios meios
Em estado virtual ndash o que aqui significa natildeo agente e inibido ndash eacute apenas como resiacuteduo que
ele pode influir sobre a inteligecircncia todavia sob que forma um instinto virtual cujo lugar
encontra-se tomado pela inteligecircncia poderia atuar sobre ela Uma vez que o instinto natildeo
eacute inteligecircncia natildeo pode produzir representaccedilotildees no entanto pode agir sobre a inteligecircncia
ndash a produtora dessas representaccedilotildees possiacuteveis ndash na medida em que ainda eacute capaz de
suscitar imaginaacuterios contrapostos agrave representaccedilatildeo real Assim a inteligecircncia por meios
absolutamente proacuteprios poderaacute contrapor-se ao trabalho intelectual (BERGSON 2001 p
1076124) Eacute precisamente esta dinacircmica que define a funccedilatildeo fabuladora como o efeito do
apego agrave vida que reequilibra a coesatildeo social que tendecircncias e representaccedilotildees inteligentes
ameaccedilam romper No entanto devemos definir melhor em que consiste a funccedilatildeo social da
fabulaccedilatildeo bem como precisar como ela pode explicar-se pela proacutepria vida
Uma vez que constitui o prolongamento do trabalho organizador que a proacutepria vida
efetua em cada uma das linhas divergentes em que o eacutelan se reparte o instinto eacute
coextensivo agrave vida Se pressentiacuteamos nos indiviacuteduos uma certa tendecircncia virtual agrave
sociabilidade de suas partes constitutivas organizadas isso se deve ao fato de que o instinto
social nada mais revela que o espiacuterito de subordinaccedilatildeo e de coordenaccedilatildeo que se distribui e
anima as ceacutelulas tecidos e oacutergatildeos de todos os corpos vivos (BERGSON 2001 p
1077125) Por um lado Bergson natildeo cessa de afirmar a raridade da transmissibilidade dos
caracteres adquiridos por outro repete sem cessar a persistecircncia de tudo aquilo de que a
natureza dotou a forma de vida humana isto eacute das sociedades contemporacircneas agraves
sociedades primitivas virtualidades de instinto espreitam a inteligecircncia incessantemente
164
ldquoAgrave lrsquoeacutetat de simple tendence elle [la sociabiliteacute] est partout dans la nature [] La hantise de la forme
sociale qursquoon trouve dans un grand nombre drsquoespegraveces se reacutevegravele donc jusque dans la structure des individusrdquo
(BERGSON 2001 p 1074121) A expressatildeo entre colchetes natildeo se encontra no original
193
Daiacute porque o instinto no homem natildeo se encontraria suprimido mas inibido ou eclipsado
por uma outra tendecircncia de atualizaccedilatildeo da consciecircncia assim o instinto passa a secundar
como uma vaga nuvem de virtuais os nuacutecleos luminosos da inteligecircncia (BERGSON
2001 p 1077125-126)
Ao mesmo tempo em que a inteligecircncia permite inventar e progredir ameaccedila
prejudicar a disciplina social em dois sentidos que por constituiacuterem correlatos da
inteligecircncia satildeo inencontraacuteveis entre as formas de sociabilidade instintuais por um lado o
egoiacutesmo que ameaccedila a sociedade de desorganizaccedilatildeo e no limite de dissoluccedilatildeo e os
efeitos individuais nocivos originados por representaccedilotildees conscientes de eventos
imprevisiacuteveis que Bergson resumiraacute na representaccedilatildeo do acaso gerador de toda sorte de
supersticcedilotildees
Haacute pois em primeiro lugar um poder dissolvente da inteligecircncia que encontraraacute na
religiatildeo estaacutetica ndash aguilhoada agrave funccedilatildeo fabuladora como sua faculdade especiacutefica ndash uma
reaccedilatildeo defensiva da natureza Com isso estariacuteamos diante de uma ldquoreligiatildeo naturalrdquo ou
ldquoprimitivardquo que natildeo implica nenhum coacutedigo moral ou conteuacutedo de crenccedila especiacutefico165
sua
forccedila suficientemente potente contra o poder dissolvente da inteligecircncia reside no fato de
que a religiatildeo estaacutetica implica a existecircncia formal de costumes por intermeacutedio dos quais os
homens vinculam-se entre si e se desligam das projeccedilotildees utilitaacuterias e egoiacutestas que a
inteligecircncia naturalmente aconselha166
Assim torna-se possiacutevel estabelecer as expectativas
sociais sob certa atmosfera moral de confianccedila reciacuteproca
Do mesmo modo como a natureza se garante contra a desorganizaccedilatildeo e a
dissoluccedilatildeo ldquoLa reacutepresentation intelectuelle qui reacutetablit ainsi lrsquoeacutequilibre au profit de la
nature est drsquoordre religieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1084134-135) e visa a proteger o
homem dos efeitos deprimentes de seu apego agrave vida pela representaccedilatildeo intelectual de sua
proacutepria morte Enquanto todos os outros seres vivos apegados intensamente agrave vida apenas
adotam instintivamente o sentido de seu impulso o homem eacute o animal consciente de que se
destina a morrer Eis o que o impede de a exemplo de outras formas de vida simplesmente
165
Tanto que Bergson afirmaraacute que os deuses em particular satildeo contingentes mas a confianccedila ndash objeto da
religiatildeo estaacutetica e que ele denomina ldquototalidade de deusesrdquo ou ldquodeus em geralrdquo ndash seria necessaacuteria ldquoLe
pantheacuteon existe indeacutependamment de lrsquohomme mais il deacutepend de lrsquohomme drsquoy faire entrer un dieu et de lui
confeacuterer ainsi lrsquoexistence [] chaque dieu determineacute est contingent alors que la totaliteacute des dieux ou plutocirct
le dieu en geacuteneacuteral est neacuteceacutessairerdquo (BERGSON 2001 p 1145211) 166
ldquoTout ce qui est habituel aux membres du groupe tout ce que la socieacuteteacute attend des individus devra donc
prendre un caractegravere religieux srsquoil est vrai que par lrsquoobservation de la coutume et par elle seulement
lrsquohomme est attacheacute aux autres hommes et deacutetacheacute ainsi de lui-mecircme [] Agrave lrsquoorigine la coutume est toute la
morale et comme la religion interdit de srsquoen eacutecarter la morale est coextensive agrave la religionrdquo (BERGSON
2001 p 1079128)
194
confiar no futuro inibir toda representaccedilatildeo mortificadora ou ameaccediladora proveniente do
devir Poreacutem de onde procede essa consciecircncia sobre a proacutepria finitude senatildeo da
inteligecircncia A reflexatildeo que nasce junto com a inteligecircncia permite que o homem perceba
que tudo o que existe agrave sua volta perece assim logicamente deduz-se que ele tambeacutem
deva estar destinado a morrer Isso eacute o que constitui o deprimente de sua relaccedilatildeo de apego
agrave vida (BERGSON 2001 p 1085-1086136-137)
Na medida em que a inteligecircncia possui um efeito depressor sobre o indiviacuteduo a
funccedilatildeo fabuladora pode constituir o baacutelsamo de que a natureza equipou o vivente
Contrapondo agrave ideia de uma morte inevitaacutevel a imagem de uma vida apoacutes a morte lanccedilada
ao seio da proacutepria inteligecircncia torna-se possiacutevel reordenar as coisas ter novamente
confianccedila na vida e equilibrar as repeticcedilotildees de ideias negativas sobre o devir Desse ponto
de vista ldquola religion est une reacuteaction deacuteffensive de la nature contre la repreacutesentation par
lrsquointelligence de lrsquoinevitabiliteacute de la morterdquo (BERGSON 2001 p 1086137) tanto
indiviacuteduo como sociedade terminam por tirar proveito disso Assim como ao primitivo
bastaria ver sua imagem refletida em uma poccedila drsquoaacutegua para perceber pela primeira vez a
existecircncia de uma sua imagem completamente separada de seu corpo ndash modo no qual ela
poderia quem sabe sobreviver indefinidamente ndash isso seria suficiente para pensar de
modo inteiramente natural que o homem sobreviva em um estado espectral (comumente
em estado de sombra ou fantasma) agrave proacutepria morte (BERGSON 2001 p 1088139) A
sociedade tiraraacute proveito das imagens da vida apoacutes a morte assim lanccediladas em face das
representaccedilotildees da inevitabilidade do desaparecimento na medida em que isso tornaraacute
possiacutevel manter-se estaacutevel e duraacutevel prolongando a histoacuteria dos contemporacircneos e das
geraccedilotildees futuras na dos antepassados que cultuados poderatildeo ver-se transformados em
deuses Misturados com os vivos os mortos podem ainda agir sobre eles conservando-se
em estado espectral sua reminiscecircncia permitiraacute engendrar lendas e mitos em tudo
patrocinadas pelas fabulaccedilotildees coletivas167
Seja como for as duas garantias pelas quais a funccedilatildeo fabuladora responde ndash aquelas
contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo e a depressatildeo ndash permitem finalmente
compreender a religiatildeo como ponto de apoio natural contra a imprevisibilidade e o
sentimento de risco que a aplicaccedilatildeo da proacutepria inteligecircncia agrave vida parece implicar Todavia
esse sentimento ndash que natildeo se pode encontrar entre os animais seguros de si ndash deve-se
167
ldquoLes morts vont alors devenir des personnages avec lesquels il faut compter Il peuvent nuire Il peuvent
rendre service Ils disposent jusqursquoagrave un certain point de ce que nous appelons les forces de la naturerdquo
(BERGSON 2001 p 1090141)
195
justamente ao fato de que entre a representaccedilatildeo de um objetivo a atingir e o ato que visa a
ele ndash entre presa e captura entre flecha e alvo ndash vem inserir-se a inteligecircncia combinatoacuteria
de meios e fins Tornada presente a inteligecircncia eacute a indeterminaccedilatildeo da accedilatildeo a
representaccedilatildeo de certa margem de imprevisto como ameaccedilas filiadas ao proacuteprio tempo
que se tornam presentes agrave inteligecircncia Na medida em que a morte eacute obra do acaso por
excelecircncia pode-se afirmar em geral que todas as representaccedilotildees religiosas constituem
reaccedilotildees defensivas da natureza contra a representaccedilatildeo pela inteligecircncia de uma faixa
desestimulante de imprevisibilidade ndash natildeo raro vinculada ao medo e agrave necessidade ndash entre
a iniciativa tomada e o efeito almejado (BERGSON 2001 p 1094146) A experiecircncia da
vontade de ter sucesso que prova de que modo a supersticcedilatildeo pode entre homens muito
contemporacircneos inserir-se como representaccedilatildeo no seio da inteligecircncia poderia ser feita
ainda hoje e de modo muito simples poderia ser vivida imediatamente em um cassino em
um jogo de roleta por exemplo Logo esse homem se veraacute ndash imaginariamente ndash
empurrando a bolinha com a matildeo para mais proacuteximo do nuacutemero escolhido tentando
expulsar o acaso para ganhar a aposta Ora o mesmo ocorre com o selvagem que apela agrave
supersticcedilatildeo agrave magia ou agrave religiatildeo para que sua flecha atinja o alvo (BERGSON 2001 p
1094147) A supersticcedilatildeo toda vez em um caso como em outro natildeo passaraacute da
remodelaccedilatildeo em consecuccedilotildees mecacircnicas de causas e efeitos ndash isto eacute por vias racionais
Em resumo ldquoAgrave lrsquoorigine des croyances que nous venons drsquoenvisager nous avons
trouveacute une reacuteaction deacutefensive de la nature contre un deacutecouragement qui aurait sa source
dans lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1104159) Essa reaccedilatildeo suscita no proacuteprio seio
da inteligecircncia imagens e ideias que frustram a representaccedilatildeo deprimente ou a impedem de
se tornar completa Eis a dinacircmica segundo a qual a confianccedila no devir torna-se o
significado vital profundo de toda crenccedila garantia contra o medo e o receio que deprimem
o apego agrave vida ou ameaccedilam a coesatildeo social A reaccedilatildeo da natureza eacute positiva natildeo temerosa
a religiatildeo eacute antes de tudo uma reaccedilatildeo da vida contra o temor e assegura Bergson (2001 p
1105160) ldquoelle nrsquoest pas du tout de suite croyance agrave des dieuxrdquo ndash como se a confianccedila que
o otimismo do eacutelan vital inspira fosse uma espeacutecie de crenccedila ateia no porvir ou como se a
feacute fosse a razatildeo natural da religiatildeo sua condiccedilatildeo apenas formal e sem conteuacutedo Bergson o
comprova pela relaccedilatildeo do homem com a forccedila incomensuraacutevel da natureza na medida em
que um fenocircmeno qualquer jamais precisa de uma individualidade ou personalidade
completa agrave qual demos a matildeo ndash bastaria ver o que se passa com a longa e peculiar narraccedilatildeo
de William James em que toda a teologia sob todos os aspectos daacute um testemunho
profundo de confianccedila original na vida (BERGSON 2001 p 1105-1107161-162)
196
Natildeo haacute nessa religiatildeo deveras originaacuteria nenhuma determinaccedilatildeo semiespeculativa
de uma realidade preacute-loacutegica da mente primitiva Pelo contraacuterio haacute a forma de vida
copresente ao primitivo como ao homem contemporacircneo de uma inteligecircncia que ameaccedila
seu apego agrave vida e agrave sociedade O instinto e a vida satildeo os vigias da inteligecircncia168
Haacute um
jogo combinatoacuterio entre instinto e inteligecircncia que o determina De todo modo este teria
sido o erro que Bergson reprovara a Leacutevy-Bruhl vincular a religiatildeo a uma suposta
realidade preacute-loacutegica inerente agrave mentalidade do homem primitivo quando na verdade ldquola
religion eacutetant coextensive agrave notre espegravece doit tenir agrave notre structurerdquo afinal ldquo[] crsquoest
drsquoune neacutecessiteacute vitale qursquoont ducirc sortir les dispositions et les convictions originellesrdquo
(BERGSON 2001 p 1125185)
A religiatildeo estaacutetica ndash signo fabulador de lrsquoattachement agrave la vie ndash vincula-se agrave vida
em profundidade na medida em que se destina naturalmente a afastar os perigos a que a
inteligecircncia tende a expor o homem (BERGSON 2001 p 1133196) nesse sentido
fazendo as vezes de um representante do instinto virtual ela eacute infraintelectual e natural agrave
linha de evoluccedilatildeo que encontra no homem seu termo Com a funccedilatildeo fabuladora o homem
deveria escapar dos perigos globalmente dados com sua inteligecircncia saindo-se bem tanto
no plano individual da garantia contra a depressatildeo quando no plano social ou coletivo da
garantia contra a dissoluccedilatildeo ou a desorganizaccedilatildeo
Poreacutem assim como a moral natildeo eacute somente estaacutetica e infraintelectual a religiatildeo
tampouco eacute apenas esta natural Ainda no plano da vida mas projetando-se no sentido da
evoluccedilatildeo do eacutelan vital a religiatildeo pode envolver-se em uma dimensatildeo supraintelectual
estariacuteamos diante da religiatildeo dinacircmica capaz de desprender o homem de seu infinito girar
sobre o raio dado com o ciacuterculo da espeacutecie e de possibilitar a ele inserir-se novamente na
corrente evolutiva viva prolongando-a Globalmente a religiatildeo se explica biologicamente
ndash no sentido amplo e compreensivo que Bergson quisera atribuir a essa palavra A proacutepria
funccedilatildeo fabuladora comum agraves artes dramaacuteticas e agraves praacuteticas literaacuterias natildeo seria senatildeo a
continuidade luacutedica ou liacuterica desses esquemas vitais fabricadores de personagens com os
quais nossa tendecircncia agrave supersticcedilatildeo busca reequilibrar em noacutes os perigos do egoiacutesmo e da
depressatildeo contidos na tendecircncia como na atividade intelectual Natildeo haveria portanto
grande distacircncia no que diz respeito agrave faculdade fabuladora entre o romance
contemporacircneo e os contos antigos as lendas os conteuacutedos folcloacutericos ou mitoloacutegicos
168
ldquoLrsquointelligence est donc neacutecessairement surveilleacutee par lrsquoinstinct ou plutocirct par la vie origine commune de
lrsquoinstinct et de lrsquointelligencerdquo (BERGSON 2001 p 1112169)
197
A natureza entrega-nos uma humanidade aguilhoada ao ciacuterculo antropoloacutegico que
tende a uma sociedade fechada por forccedila natural da obrigaccedilatildeo e pela coesatildeo criada pela
religiatildeo estaacutetica e por sua funccedilatildeo fabuladora No interior dessa forma de vida propriamente
humana e natural indiviacuteduo e sociedade implicam-se reciprocamente circularmente
todavia esse ciacuterculo recebe em si mesmo uma fratura no dia em que se tornou possiacutevel ao
homem recolocar-se no sentido do impulso criador que se depositara em sua forma de vida
inteligente impelindo a natureza humana para frente ao inveacutes de deixaacute-la girar
infinitamente sobre o eixo que sua forma descreve (BERGSON 2001 p 1144210) A
abertura assim efetuada pela possibilidade inventiva copresente agrave inteligecircncia e agrave funccedilatildeo
fabuladora doava aos homens a possibilidade de uma religiatildeo que Bergson afirma ser
individual e ao mesmo tempo profundamente social Eis a miacutestica como cintilacircncia do
aberto em tudo diversa da religiatildeo estaacutetica que coagindo agrave disciplina (miacutemesis do
automatismo que fixaria haacutebitos no corpo) implicaraacute a solidificaccedilatildeo da crenccedila originada
das necessidades vitais em ritos e cerimocircnias que ao mesmo tempo em que reforccedilam a
disciplina produzem um estreitamento da solidariedade entre uma forma de culto e as
divindades a ele relativas
Nesse quadro a funccedilatildeo geral da religiatildeo estaacutetica poderia resumir-se a corrigir a
dupla imperfeiccedilatildeo humana que do ponto de vista estritamente natural a inteligecircncia
implica Seu ocircnus consiste como vimos na possibilidade de representando pela
inteligecircncia maior bem-estar sucesso de gozo de utilidades conduzir-se com egoiacutesmo a
despeito dos laccedilos de solidariedade social trata-se do potencial dissolvente ou
desorganizador da inteligecircncia que encontra no egoiacutesmo sua forma subjetiva mais bem
acabada O uacuteltimo de seus ocircnus constitui-se nos efeitos deprimentes que a inteligecircncia
pode opor ao apego agrave vida Representando-se como destinado a morrer o indiviacuteduo
deixaria afrouxarem-se os laccedilos que o unem ao todo social a si mesmo e ao fundo da vida
do qual proveacutem Incapaz de conter a fuacuteria imprevisiacutevel da natureza ou a inevitabilidade
dos eventos movidos pela forccedila do acaso a inteligecircncia teria por efeito um
desencorajamento natural ao qual a funccedilatildeo fabuladora tende a responder de imediato
inserindo imagens quase alucinatoacuterias no seio da proacutepria inteligecircncia fazendo com que o
primitivo recorra agrave religiatildeo para que suas flechas encontrem o destino desejado como o
homem pareceraacute soprar e mover imaginariamente com a matildeo no ar a bolinha lanccedilada agrave
roleta acreditando poder manejar as causas do acaso169
Maacutequinas de fabricar deuses e de
169
ldquoLa religion est ce qui doit combler chez des ecirctres doueacutes de reacuteflexion un deacuteficit eacuteventuel de
lrsquoattachement agrave la vierdquo (BERGSON 2001 p 1154223)
198
fabular narrativas seratildeo montadas por toda parte onde o homem sente esmaecer sua forccedila
vital e sua confianccedila na vida e no devir A funccedilatildeo fabuladora nesse contexto natildeo deixa de
ser inteligecircncia sem ser inteligecircncia pura ndash ela eacute ainda um refluxo do instinto virtual que
natildeo permite duvidar da vida segundo o qual ndash enquanto o homem se ressente de ser o
uacutenico animal que sabe que vai morrer ndash ldquoLe reste de la nature srsquoeacutepanouit dans une
tranquiliteacute parfaiterdquo (BERGSON 2001 p 1149216) A funccedilatildeo fabuladora eacute a encarregada
de fabricar uma religiatildeo natural pela qual o vital reage contra o que haveria de deprimente
para o indiviacuteduo e de dissolvente para a sociedade no exerciacutecio da inteligecircncia170
Por isso
a natureza entrega o individual e o social fechados em um ciacuterculo em uma forma de vida
definida pelas doenccedilas da representaccedilatildeo e da inteligecircncia bem como pelas formas
virtualmente instintuais e fabuladoras de reequilibraacute-las Nem sempre se atenta para o fato
de que uma compreensatildeo bioloacutegica da religiatildeo implica apontar que a religiatildeo estaacutetica ou
natural concorre precisamente para fornecer aos homens os instrumentos de sua
sociabilidade bem como da constituiccedilatildeo social de sua individualidade Ela corresponde ao
mesmo tempo a funccedilotildees morais e nacionais visa a estreitar e a conservar aquilo que
constitui e fortalece um grupo a tradiccedilatildeo a necessidade a vontade de defender o grupo
contra outros situando-o acima de tudo171
A religiatildeo engendra um homem sociaacutevel e no
entanto preso ao ciacuterculo antropoloacutegico de uma inteligecircncia que alargada e compensada no
que apresenta de ameaccedilador ao indiviacuteduo e agrave sociedade ainda natildeo conheceu o aberto ndash e
que todavia seu vir agrave existecircncia jaacute implica e revela
sect 2 ABRIR O FECHADO RUPTURA E DEVIR
A sociedade tal como saiacuteda das matildeos da natureza tende ndash como vimos ndash ao
fechado Em seu interior a religiatildeo natildeo apenas eacute constitutiva da moral como da identidade
de grupo que assegura as identidades individuais a coesatildeo social a divisatildeo do trabalho os
elementos da tradiccedilatildeo da moral e do grupo nacional a conservaccedilatildeo do que pareceu ser um
infinito girar sobre o eixo social devido ao ciacuterculo antropoloacutegico Se a funccedilatildeo fabuladora
insere imagens quase alucinatoacuterias na inteligecircncia humana ndash semelhantes como diz
170
ldquo[] lrsquointelligence serait un obstacle agrave la seacutereacuteniteacute qursquoon trouve partout ailleurs et [] lrsquoobstacle doit ecirctre
surmonteacute lrsquoeacutequilibre reacutetablirdquo (BERGSON 2001 p 1152219) 171
ldquoAgrave conserver agrave resserrer ce lien vise incontestablement la religion que nous avons trouveacutee naturelle elle
est commune aux membres drsquoun groupe elle les associe intimement dans des rites et des ceacutereacutemonies elle
distingue le groupe des autres groupes elle garantit le succegraves de lrsquoentreprise commune et assure contre le
danger communrdquo (BERGSON 2001 p 1152218)
199
Bergson (2001 p 1154223) agraves histoacuterias com as quais embalamos as crianccedilas e as
colocamos para dormir ndash eacute a fim de fazer frente aos perigos que a representaccedilatildeo
inteligente dada com a reflexatildeo172
implica Nesse sentido uma religiatildeo natural primitiva
ou se o quisermos estaacutetica mostrou-se profundamente vital ao ligar o homem agrave vida e o
indiviacuteduo agrave sociedade No entanto o ponto de vista da sociedade tal como saiacuteda das matildeos
da natureza natildeo eacute o de sua gecircnese ou de seu movimento mas se perspectiva como uma
parada virtual do movimento criador pelo qual o eacutelan depositou em um ponto extremo a
forma de vida a que nomeamos humanidade (BERGSON 2001 p 1154223) A fim de
superar o desencorajamento para a vida o homem deveria caminhar muito mais no sentido
das vagas franjas de intuiccedilatildeo que permaneceram ao redor de sua inteligecircncia que no
sentido da proacutepria inteligecircncia que tende precisamente agraves representaccedilotildees
desencorajadoras Eis o que implicaria a necessidade de apreender o fenocircmeno religioso
natildeo mais do ponto de vista estaacutetico de sua parada virtual funcional e coextensiva a uma
forma de vida marcada pela inteligecircncia mas do ponto de vista de sua gecircnese ou de seu
movimento real Se o vir agrave existecircncia de uma forma de sociabilidade fechada jaacute denuncia o
aberto eacute porque eacute dele que ela mesma procede em profundidade Assim como uma parada
virtual soacute pode explicar-se pela realidade de um movimento absoluto ou como um instante
soacute pode explicar-se segundo o indomaacutevel fluxo da duraccedilatildeo o estaacutetico soacute pode ser
compreendido em funccedilatildeo do dinacircmico e o fechado em funccedilatildeo da vitalidade do aberto que
lhe trouxera agrave luz
Viacuteamos toda essa extensa questatildeo resumir-se na pergunta ldquoComo abrir o fechadordquo
como produzir no ciacuterculo social no qual uma forma de vida gira infinitamente a fim de
conservar-se como tal uma ruptura ou transcrevendo um problema poliacutetico em termos
mais profundamente ontoloacutegicos como dissolver uma forma (de vida) e liberar seus
devires Eis o que estaacute em questatildeo na profunda discussatildeo sobre a abertura do fechado que
conduz Les Deux Sources na direccedilatildeo do campo de experiecircncia miacutestica (SITBON-
PEILLON 2002 p 185) Ou como quisera Worms (2011 p 323) se haacute toda uma
distacircncia infinita ndash uma diferenccedila de natureza ndash entre o fechado e o aberto entre a naccedilatildeo e
a humanidade como efetuar esse salto radical que traduz tambeacutem a diferenccedila entre os
niacuteveis do infra e do supraintelectual Afinal natildeo teria sido o proacuteprio Bergson (2001 p
1202284) a declarar que ldquoDe la socieacuteteacute close agrave la socieacuteteacute ouverte de la citeacute agrave lrsquohumaniteacute
on ne passera jamais par voie drsquoeacutelargissement Elles ne sont pas de mecircme essencerdquo
172
ldquo[] lrsquoinvention qui porte en elle la reacuteflexion srsquoeacutepanouit en liberteacuterdquo (BERGSON 2001 p 1153222)
200
Para solucionar essas questotildees que se dissimulam sob a aparente simplicidade
pragmaacutetica da pergunta sobre como abrir o fechado seraacute preciso compreender o fenocircmeno
religioso como um misto de fechamento e abertura seraacute necessaacuterio desenvolver um olhar
capaz de compreender o entreaberto ainda que ele possa rapidamente ser reconduzido ao
fechamento e agrave consolidaccedilatildeo Talvez esse fosse o sentido de uma moral de transiccedilatildeo
(BERGSON 2001 p 102862) e de sua atitude subjetiva correspondente quando Bergson
afirmava que entre a alma fechada e a aberta haveria a alma que se abre A fim de
solucionar a gecircnese da transiccedilatildeo no seio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo natildeo estariacuteamos
agrave procura do ponto de transiccedilatildeo coextensivo a essa atitude subjetiva da alma que se abre e
portanto de um ponto de vista dinacircmico
Todavia viacuteamos que o infinito girar sur place que caracterizava a forma de vida
humana tal como saiacuteda das matildeos da natureza era suspenso justamente por esta natildeo ser dada
como forma pura reencontraacutevamos em seu interior um ponto de ruptura do fechamento
uma brecha de reflexatildeo hesitaccedilatildeo liberdade e de duraccedilatildeo que o eacutelan introduzia e que por
meio do homem orientava-se no mesmo sentido do eacutelan ndash o sentido da criaccedilatildeo173
Na
medida em que natildeo subsiste no homem nem instinto tampouco inteligecircncia puros mas
pontos luminosos aureolados de vagas nuvens de virtuais instintivos174
o misticismo ndash
definido em funccedilatildeo de sua relaccedilatildeo com o impulso vital (BERGSON 2001 p 1156225) ndash
eacute o que completaraacute em accedilatildeo essa vaga franja de intuiccedilatildeo que aureola a inteligecircncia e que
produz um apego agrave vida em sentido totalmente diverso daquele que a religiatildeo estaacutetica
produzia
Contudo como se produz essa passagem do estaacutetico ao dinacircmico Bergson (2001
p 1156225) admite que o misticismo natildeo apenas eacute uma essecircncia rara vinculada a
personalidades tatildeo excepcionais que seriam mais que humanas mas que em geral ele
pode ser encontrado em estado de diluiccedilatildeo e assim tornado eficaz Da perspectiva de uma
religiatildeo mista composta por ritos cerimocircnias e tradiccedilotildees mas tambeacutem por um vago
perfume miacutestico que se comunica ao todo tudo se passa como se a diferenccedila de natureza
que haacute entre o estaacutetico e o dinacircmico se resolvesse em uma seacuterie de diferenccedilas de grau
(BERGSON 2001 p 1156225) Se o miacutestico eacute um indiviacuteduo excepcional e
essencialmente raro se a maioria natildeo podendo subir tatildeo alto quanto esse homem
173
Por essa razatildeo Brigitte Sitbon-Peillon (2002 p 187) escrevera que ldquoLa chance de lrsquohomme crsquoest
justement lrsquoimpureteacute dans laquelle tout existerdquo 174
A proacutepoacutesito Bergson (2001 p 610136-137) o afirmara em LrsquoEacutevolution Creacuteatriceldquo Il nrsquoy a pas
drsquointeligence ougrave lrsquoon ne deacutecouvre des traces drsquoinstinct pas drsquoinstinct surtout qui ne soit entoureacute drsquoune frange
drsquointelligencerdquo
201
privilegiado no entanto sente que algo de si lhes faz eco e responde assim a seu apelo o
misticismo constituiraacute um apelo agrave aspiraccedilatildeo que produz algo novo no antigo175
No interior
desse misto foacutermulas e ritos aparentemente vazios repetidos ao longo da duraccedilatildeo podem
fazer surgir inconscientemente o estado de espiacuterito capaz de preenchecirc-las Se a repeticcedilatildeo
pode gerar o ecircmulo espiritual de grandes homens de gecircnio eacute porque o que parece idecircntico
na repeticcedilatildeo eacute apenas uma forma abstrata a repeticcedilatildeo e a imitaccedilatildeo conservam virtualmente
o potencial de engendrarem criaccedilotildees transmitirem estados de espiacuterito reabrir uma alma
fechada e dissolver o estaacutetico Na medida em que Bergson (2001 p 1158228) diz que um
professor mediacuteocre que repete maquinalmente foacutermulas concebidas por grandes espiacuteritos
pode despertar em um aluno a vocaccedilatildeo que a ele proacuteprio eacute de todo inaudiacutevel tornando-o
inconscientemente ldquoen eacutemule de ces grands hommesrdquo o modo do inconsciente reenvia a
um virtual agrave espreita que definiraacute natildeo apenas o aberto mas a atitude subjetiva
correspondente da alma aberta e do miacutestico Nessa medida tudo se passa como se
atenuaacutessemos a diferenccedila entre o fechado e o aberto como se lanccedilaacutessemos uma ponte entre
o estaacutetico e o dinacircmico (BERGSON 2001 p 1158-1159229) ou como se descobriacutessemos
no ciacuterculo social uma ruptura pela qual a duraccedilatildeo ndash que eacute tambeacutem liberdade e criaccedilatildeo ndash se
infiltra Dessa maneira mesmo a mais vazia repeticcedilatildeo girando em falso poderaacute transmitir
essa liberdade insidiosa e incendiaacuteria que se inscreve igualmente no anthropos e em suas
formas de laccedilo social
Essa liberdade forma subjetiva da duraccedilatildeo encontra no modo de vida miacutestico seu
exemplar e seu intenso campo de provas Natildeo se trata de recuperar cada um dos pontos
notaacuteveis da argumentaccedilatildeo de Bergson sobre o misticismo grego oriental e cristatildeo
(BERGSON 2001 p 1159-1172229-246) mas de demonstrar o profundo papel da
miacutestica como forccedila especiacutefica das transiccedilotildees de alma mas tambeacutem das formas sociais de
vida Nesse sentido a miacutestica deve ser compreendida independentemente de seus
conteuacutedos ndash de crenccedila ou patoloacutegicos ndash meramente acidentais (BERGSON 2001 p
1170243) Eacute preciso compreender o miacutestico ldquopriveacute de ses extases de ses visions de tous
ces eacutetats anormaux et morbidesrdquo que natildeo satildeo condiccedilotildees necessaacuterias mas eventuais nas
quais o misticismo se produz (SITBON-PEILLON 2002 p 188) Este eacute o sentido
transcendental no qual Bergson toma a experiecircncia miacutestica concreta ndash se compreendermos
transcendental uma vez mais como o que define as condiccedilotildees da experiecircncia concreta
175
ldquoAinsi se constituera une religion mixte qui impliquera une orientation nouvelle de lrsquoancienne une
aspiration plus ou moins prononceacutee du dieu antique issu de la fonction fabulatrice []rdquo (BERGSON 2001
p 1157227)
202
Nesse sentido a experiecircncia de revelaccedilatildeo interior que William James descrevera a partir da
inalaccedilatildeo do protoacutexido de nitrogecircnio e que Bergson compara ao estado de embriaguez
dionisiacuteaca seria tambeacutem ela integralmente miacutestica na medida em que a intoxicaccedilatildeo natildeo
passaria do ensejo para a emergecircncia de um estado de alma que jaacute estava prefigurado ldquoIl
eucirct pu ecirctre eacutevoqueacute spirituellement par un effort accompli sur le plan spirituel qui eacutetait le
sienrdquo (BERGSON 2001 p 1160231) Mesmo a filosofia grega que conduzira o
pensamento humano a seu mais alto grau de abstraccedilatildeo e generalidade natildeo teria se passado
da experiecircncia dionisiacuteaca da embriaguez denotando que mesmo no fundo de uma
evoluccedilatildeo puramente racional estaacute um impulso ou um abalo que natildeo foram de ordem
racional176
Aquilo a que as experiecircncias gregas orientais ndash especialmente hindu e budista ndash e
cristatildes tendem eacute a um misticismo que seraacute completo apenas entre estas uacuteltimas O que
define o misticismo completo emancipado de suas circunstacircncias acidentais eacute uma
tomada de contato uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta
segundo Bergson (2001 p 1162233) Essa definiccedilatildeo do misticismo afigura-se de todo
capital e por diversas razotildees Em primeiro plano porque toma o misticismo naquilo que
constitui as condiccedilotildees transcendentais de sua experiecircncia concreta independentemente de
elementos acidentais Nesse sentido o misticismo eacute definido como um esforccedilo ativo e
como uma coincidecircncia parcial com o esforccedilo criador que a vida manifesta Natildeo por acaso
Bergson (Ibidem loc cit) diraacute desse esforccedilo que ele ldquoest de Dieu si nrsquoest pas Dieu lui-
mecircmerdquo Em segundo plano o misticismo que coincide com a vida encontra no indiviacuteduo
miacutestico a ponta extrema de seu esforccedilo criador a agir sobre a proacutepria forma de vida na qual
se encarna e a qual supera sem cessar ldquoLe grand mystique serait une individualiteacute qui
franchirait les limites assigneacutees agrave lrsquoespegravece par sa mateacuterialiteacute qui continuerait et
prolongerait ainsi lrsquoaction divinerdquo (Idem ibidem loc cit) Se haacute um Deus em Bergson ele
natildeo seria laacute muito diverso do eacutelan vital177
o miacutestico por sua vez natildeo seria nada muito
diverso de um super-homem a prolongar o movimento do eacutelan em uma direccedilatildeo Por essa
razatildeo o miacutestico pode ser definido como individualidade que supera os limites impostos
pela espeacutecie e pela forma de vida por sua materialidade e continua a accedilatildeo divina que se
confunde aqui com a accedilatildeo da proacutepria vida Eacute nessa medida que uma vez que a religiatildeo
176
ldquo[] crsquoest une force extra-rationelle qui suscita ce deacuteveloppement rationel et qui la conduisit agrave son terme
au-delagrave de la raisonrdquo (BERGSON 2001 p 1161232) 177
A propoacutesito Deleuze (1966 p 118) afirma que o Deus bergsoniano possui todas as caracteriacutesticas do
Impulso vital No mesmo sentido Worms (2011 p 249) afirmaraacute que Deus coincide com ldquoo processo de
criaccedilatildeo e de crescimento operante na realidade materialrdquo Por fim Cf (BOUANICHE 2002 p 162) cuja
leitura empresta ao Deus bergsoniano as feiccedilotildees de um fluxo criador e vital
203
estaacutetica fora definida como a religiatildeo natural a religiatildeo dinacircmica propulsionada por um
misticismo ativo poderaacute ser definida como salto fora da espeacutecie e da natureza
(BERGSON 2001 p 1164236)
Deixando o cristianismo dos grandes miacutesticos cristatildeos de lado como seu conteuacutedo
meramente acidental178
Bergson afirma que apenas entre eles teria sido possiacutevel encontrar
uma experiecircncia miacutestica completa que seria definida como accedilatildeo criaccedilatildeo e amor Agraves
experiecircncias orientais teria faltado o caraacuteter ativo da miacutestica agraves gregas o impulso natildeo
teria sido prolongado muito aleacutem e teria encontrado uma intelectualidade natildeo dilatada179
Os miacutesticos cristatildeos por sua vez ndash Santa Teresa Satildeo Francisco de Assis Joana DrsquoArc ndash
teriam sido os modelos de individualidades excepcionais que realizaram uma miacutestica
completa e ativa no domiacutenio da accedilatildeo Assimilados natildeo raro a doentes os miacutesticos e as
agitaccedilotildees profundas de suas almas eram capazes de subverter a cisatildeo entre o normal e o
patoloacutegico em proveito de um ldquoequiliacutebrio superiorrdquo (BERGSON 2001 p 1169-1170242-
243)
Poreacutem como esse reequiliacutebrio se processa e como uma alma encontra em si uma
abertura a partir da experiecircncia miacutestica Bergson define a experiecircncia miacutestica como uma
experiecircncia em que a alma eacute arrastada irresistivelmente por uma forccedila agrave qual cede Na
medida em que uma alma eacute abalada em suas profundezas pela corrente que a arrastaraacute estaacute
dada a abertura a alma cessa de girar sobre si mesma escapa agrave forma de vida descrita
biologicamente pela espeacutecie e que condiciona o indiviacuteduo a ela circularmente salta para
fora da natureza ao ouvir um chamado que a solicita ldquosempre em frenterdquo A iluminaccedilatildeo
confunde-se com esse momento imponderaacutevel de gozo em que os problemas se dissipam e
tudo parece resolver-se em uma visatildeo simboacutelica que anuncia a proacutepria presenccedila de Deus
Contudo ela natildeo se deteacutem nem na contemplaccedilatildeo nem no ecircxtase ela age movida por um
impulso que a arremessa agrave accedilatildeo (BERGSON 2001 p 1170-1171243-245) A alma
miacutestica que parece pendular sob uma noite escura como jamais houve torna-se um
instrumento maravilhoso pelo qual a vida e Deus mesmo agem nela em uma uniatildeo total e
definitiva ldquoDisons que crsquoest deacutesormais pour lrsquoacircme une surabondance de vie Crsquoest un
immense eacutelanrdquo (BERGSON 2001 p 1172246)
178
ldquoLe mysticisme complet est en effet celui des grands mystiques chreacutetiens Laissons de cocircteacute pour le
moment leur christianisme et consideacuterons chez eux la forme sans matiegravererdquo (BERGSON p 1168240) 179
ldquo[] ni dans la Gregravece ni dans lrsquoInde antique il nrsquoy eut de mysticisme complet tantocirct parce que lrsquoeacutelan fut
insuffisant tantocirct parce qursquoil fut contrarieacute par ler circonstances mateacuterielles ou par une intellectualiteacute trop
eacutetroiterdquo (BERGSON 2001 p 1668240)
204
O contato da alma com o princiacutepio do qual emana uma superabundacircncia de
vitalidade testemunha que nela liberdade e esforccedilo criador coincidem Trata-se de um
misticismo que natildeo se deteacutem no ecircxtase no gozo miacutestico mas atinge a suprema alegria de
uma alma que se faz preencher por um amor universal comparaacutevel apenas agravequele que Deus
experimenta em relaccedilatildeo ao todo Trata-se enfim do mesmo amor pelo todo ndash salto para
fora dos ciacuterculos fechados da moral famiacutelia paacutetria humanidade O amor e a emoccedilatildeo
criadora que estatildeo implicados na experiecircncia miacutestica superam a proacutepria natureza que
quisera que nos mantiveacutessemos fechados aos grupos familiar e social que encontraacutessemos
na paacutetria o sentido de nossa existecircncia e em uma fraternidade ideal e descarnada o
fundamento de nossa moral Contudo o amor miacutestico eacute supraintelectual natildeo constitui nem
o prolongamento sensiacutevel do instinto nem a continuidade racional de uma ideia180
Eacute nessa medida que Bergson poderaacute descrever o misticismo como portador de uma
essecircncia mais metafiacutesica do que moral ele conduz agrave experiecircncia capaz de interrogar os
arcanos da criaccedilatildeo que tem lugar por toda parte assume o sentido do impulso vital
comunicado a homens privilegiados que desejam imprimi-lo agrave humanidade inteira
transformando-a Se do ponto de vista da espeacutecie o homem encontra-se limitado como ser
vivo a alimentar-se de outros seres vivos ndash o que torna um imperativo pragmaacutetico que ele
fixe sua atenccedilatildeo na terra ndash e se isso bem o impulsiona em direccedilatildeo ao fechamento por
outro lado a humanidade conserva dois instrumentos uacuteteis agrave abertura a inteligecircncia que
pode ser prolongada como conveacutem em mecacircnica que no seu limite conserva o potencial
capaz de liberar a atividade humana e por outro lado a capacidade de variar as formas de
vida Em um momento mais recuado essa capacidade encontrava seu limite na criaccedilatildeo de
sociedades espirituais hoje poreacutem seria capaz de engendrar uma organizaccedilatildeo social e
poliacutetica que assegure agrave mecacircnica sua destinaccedilatildeo libertaacuteria e cosmopolita (BERGSON
2001 p 1175249) que veremos confundir-se com a proacutepria democracia O maquinismo
no entanto implica o perigo de que ao longo da experiecircncia histoacuterica ele se voltasse
contra seus proacuteprios propoacutesitos
O valor filosoacutefico do misticismo seria ainda mais visiacutevel na medida em que nos
desembaraccedilaacutessemos de uma objeccedilatildeo comum que reputa a experiecircncia miacutestica como um
evento excepcional e por ser essencialmente individual e diverso da experiecircncia cientiacutefica
insuscetiacutevel de solucionar problemas A fim de descartar essa objeccedilatildeo seria necessaacuterio
lembrar que satisfaz os criteacuterios de uma experiecircncia cientiacutefica aquela que seja suscetiacutevel de
180
ldquoIl ne srsquoagit donc pas ici de la fraterniteacute dont on a construit lrsquoideacutee pour en faire un ideacuteal Et il ne srsquoagit pas
non plus de lrsquointensification drsquoune sympathie ineacutee de lrsquohomme pour lrsquohommerdquo (BERGSON 1174248)
205
repeticcedilatildeo ou de controle (BERGSON 2001 p 1183260) Na medida em que a experiecircncia
pela qual passa o miacutestico eacute algo que todos podem experimentar ao menos de direito ndash
senatildeo de fato ndash bastando ter a disposiccedilatildeo e a energia para tanto a objeccedilatildeo talvez restasse
prejudicada Ainda que algueacutem natildeo experimente jamais um estado miacutestico eacute sempre
possiacutevel sentir algo da experiecircncia ressoar em si mesmo eacute o que acontecia com William
James por exemplo Com efeito assim como haveria pessoas insensiacuteveis agrave muacutesica haveria
pessoas insensiacuteveis agrave miacutestica mas disso natildeo se poderia extrair argumento algum nem
contra a muacutesica nem contra a miacutestica segundo Bergson (2001 p 1184261)
Em favor da validade da miacutestica haveria um firme consenso entre os miacutesticos que
definem apesar de uma variabilidade potencial de estados o mesmo tipo de experiecircncias
Sua psicologia indica em face do ensino regular da teologia uma grande docilidade em
aprender e em seguir seus diretores de consciecircncia e ao mesmo tempo um instinto seguro
que se manifesta em uma forma de liberdade superior capaz de abandonar todo ensino e
natildeo reconhecer outra autoridade senatildeo essa liberdade (BERGSON 2001 p 1185262)
Pressente-se sob seus gestos doacuteceis o advento de rupturas que constituem o signo de uma
intuiccedilatildeo mais profunda originada pelo contato com o Ser que se comunica com eles
Contudo a miacutestica por si soacute ndash como a ciecircncia ou a metafiacutesica por si soacutes ndash natildeo poderiam
dar ao filoacutesofo certeza absoluta Eacute preciso que sua interpenetraccedilatildeo origine pontos de
contato acumulaccedilotildees graduais de resultados adquiridos que longe de levarem a um
sistema concreto conduzem ao plano da experiecircncia ndash uacutenico esteio de qualquer
conhecimento
O que Bergson propotildee soacute eacute possiacutevel na medida em que a inteligecircncia foi aureolada
de intuiccedilatildeo que no entanto permanece no homem desinteressada e inconsciente Assim a
experiecircncia miacutestica de alguma maneira parece estender a experiecircncia interior da duraccedilatildeo
que nos conduz por aprofundamento agraves raiacutezes de nosso ser e ao princiacutepio da vida em
geral Em que sentido isso acontece Em primeiro plano os miacutesticos estatildeo sempre
dispostos a abandonar os falsos problemas (BERGSON 2001 p 1188266) Todas as
dificuldades e perplexidades ante as quais a filosofia se deteve satildeo de todo inexistentes
para eles A precedecircncia do nada sobre o ser da desordem sobre a ordem da eternidade
sobre o tempo ou do imoacutevel sobre o moacutevel satildeo reduzidas ao estado de simples miragens da
representaccedilatildeo de ilusotildees naturais positivas talvez no sentido deveras pragmaacutetico do viver
mas natildeo do especular ldquoCes questions un mystique estimera qursquoelles ne se posent mecircme
pasrdquo (BERGSON 2001 p 1189267) ilusotildees devidas agrave estrutura da inteligecircncia humana jaacute
natildeo lhe produzem qualquer anguacutestia metafiacutesica Uma vez que experimenta Deus que toca
206
no fundo do real natildeo experimenta nada de negativo sua existecircncia eacute uma positividade tal
como ele experimenta mas o que essa experiecircncia significa senatildeo criaccedilatildeo e amor emoccedilatildeo
criadora
O misticismo natildeo cessa de exprimir a foacutermula segundo a qual Deus eacute amor em
sentido forte o amor natildeo eacute um atributo ou um sentimento de Deus mas Deus ele proacuteprio
Nesse plano em que sente o amor abrasar-lhe a alma por dentro o miacutestico coincide
plenamente com esta emoccedilatildeo carregada de pensamento que precede e gera ideias que
conduz agrave inspiraccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1189268) Esse tipo de emoccedilatildeo superior natildeo
possui objeto basta-se a si mesma natildeo eacute o amor de ningueacutem mas sentimento repartido
segundo singularidades musicais ldquoUne autre musique sera un autre amourrdquo (BERGSON
2001 p 1191270) Amor atuante que a nada se dirige mas cria criadores seres dignos de
prolongaacute-lo como cria mundos inteiros ndash energia criadora que faz a vida penetrar na
mateacuteria como a matildeo na limalha181
Com efeito no mundo que conhecemos o eacutelan vital
originou linhas evolutivas divergentes Na linha em que forjou o homem linha em que
conseguiu fazer passar o essencial de sua impulsatildeo o homem gira no interior do ciacuterculo
antropoloacutegico A abertura estaacute dada na medida em que a intuiccedilatildeo miacutestica se permite
colocar esse problema foram chamados agrave existecircncia seres destinados a amar e a serem
amados eles soacute poderiam ser criados em um universo que teve de ser criado assim como
uma grande variedade de novas espeacutecies que foram sua preparaccedilatildeo seu sustentaacuteculo seu
resiacuteduo E no entanto ainda assim os homens soacute viveriam pela metade se natildeo fosse pela
genialidade e pelo esforccedilo de indiviacuteduos excepcionais em se colocarem novamente na
direccedilatildeo criadora do eacutelan do qual tudo proveacutem Nesse sentido a miacutestica natildeo apenas
representou um triunfo sobre a mateacuteria os instrumentos e a necessidade mas indicou ao
mesmo tempo ao metafiacutesico a direccedilatildeo na qual a vida escoava (BERGSON 2001 p
1194274)
Esse eacute o ponto em que o valor metafiacutesico da experiecircncia miacutestica concretiza-se sob o
olhar do filoacutesofo Com efeito diante disso que no misticismo pode confundir-se com o que
haacute de mais inefaacutevel para um ponto de vista unicamente inteligente do ponto de vista da
intuiccedilatildeo permanece soldado agrave experiecircncia miacutestica concreta que Bergson jamais abandona
em sua descriccedilatildeo O valor metafiacutesico da miacutestica estaacute em ensinar que ldquoo fechamento e a
abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo mesma
mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas da relaccedilatildeo do homem com a vida com seu princiacutepio
181
ldquoDes ecirctres ont eacuteteacute appeleacutes agrave lrsquoexistence ce qui eacutetaient destineacutes agrave aimer et agrave ecirctre aimeacutes lrsquoeacutenergie creacuteatrice
devant se deacutefinir par lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1194273)
207
primeiro e com o universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) Fica ainda uma
vez claro em que medida a obra bergsoniana ao encaminhar-se no sentido da superaccedilatildeo
do anthropos ndash compreendido como a forma de vida humana ou o ciacuterculo da espeacutecie ndash
encontra uma espeacutecie de destino biopoliacutetico182
A experiecircncia miacutestica recebe a impulsatildeo
capaz de revelar a dupla tarefa do homem no aberto romper sua forma de vida
emancipando-a tanto das necessidades e da mateacuteria pela inteligecircncia e pela mecacircnica
como superando a proacutepria forma de vida em que foi dada O miacutestico nesse sentido
gostaria de encaminhar toda a humanidade no sentido do divino compreende a
humanidade como ldquoune machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338) na
medida em que ela descreve a linha de evoluccedilatildeo que apesar de fundar-se em uma forma de
vida eacute capaz de fundi-la fazendo dela o ponto de inflexatildeo da proacutepria forma na qual uma
vida foi dada Trata-se em uacuteltima anaacutelise de encontrar no interior de si mesmo e de uma
forma de vida o aberto que se infiltra por ela e a recoloca em devir que reabre o fechado
Nesse sentido o misticismo bergsoniano natildeo pode conduzir senatildeo a uma ontologia
biopoliacutetica Natildeo eacute difiacutecil perceber que toda a tendecircncia ao fechamento e agrave constituiccedilatildeo de
sistemas organizados fechados que atravessa a integralidade da vida aparece em relaccedilatildeo a
ela como um obstaacuteculo a ser superado as formas de vida que se multiplicam em linhas
evolutivas divergentes como se fossem tentativas de fazer passar um pequeno veio de vida
e de duraccedilatildeo poderatildeo ser na linha do homem colocadas sempre em jogo ndash as experiecircncias
miacutesticas natildeo apenas o comprovam mas servem como terreno de experiecircncia e denotam a
subordinaccedilatildeo da histoacuteria ao devir Isto eacute se uma humanidade divina eacute possiacutevel ndash mesmo no
182
Bergson pode ser aproximado de uma redefiniccedilatildeo do conceito de biopoliacutetica de muitas maneiras e no
entanto aqui pretendemos natildeo mais fazer do que amarrar um devir desse conceito sob a epiacutegrafe de
LrsquoEgravevolution Creacuteatrice Seria possiacutevel encontrar originalmente em Foucault esse sentido positivo de
biopoliacutetica como potecircncia de variaccedilatildeo das formas de vida e como resistecircncia aos mecanismos de seguranccedila e
biopoder desde 1976 quando Foucault (2009 p 158) enuncia pela primeira vez sua tese ldquoFoi a vida muito
mais do que o direito que se tornou objeto das disputas poliacuteticas ainda que estas uacuteltimas se formulem atraveacutes
de afirmaccedilotildees de direitosrdquo Esses dois sentidos satildeo objeto de uma distinccedilatildeo semacircntica em La Faacutebrica de
Porcelana de Antonio Negri (2008 p 43) que passa a utilizar a diacuteade biopoder-biopoliacutetica para designar
pelo primeiro um poder exercido sobre a vida e pelo segundo um poder imanente agrave vida oposto ao primeiro
como contrapoder resistecircncia e potecircncia Uma deacutecada antes outro filoacutesofo poliacutetico italiano Maurizio
Lazaratto (1997 p 01) reclamava a Deleuze e sobretudo a Bergson um conceito de vida inorgacircnica
definida como ldquole temps et ses virtualiteacutesrdquo ldquole temps comme lsquosource de creacuteation continuelle drsquoimpreacutevisibles
nouveauteacutesrsquo lsquoce qui fait que tout se faitrsquo rdquo Ao fazecirc-lo Lazaratto pretendia redefinir o conceito de biopoliacutetica
em sentido bergsoniano de tal modo que ldquoLe concept de bio-politique doit comprendre non seulement les
processus biologiques de lrsquoespegravece mais aussi cette vie a-organique qui est agrave son origine comme elle est agrave
lrsquoorigine du vivant et du monderdquo (Idem ibidem loc cit) Trata-se de um vitalismo temporal natildeo orgacircnico
Essa vida inorgacircnica que Deleuze (2003 p 359-363) subtraiu sem cessar do bergsonismo a ponto de definir
no limiar de sua existecircncia todo seu projeto filosoacutefico por sua imanecircncia absoluta encontra no conceito
bergsoniano de uma vida remissiacutevel como vimos ao tempo como diferenciador profundo o conceito no qual
fundir uma ontologia virtual Seja como for fica justificado em que sentido se pode depreender do
bergsonismo um vitalismo do tempo virtual e genealogicamente biopoliacutetico e aleacutem disso esclarece-se
definitivamente o sentido muito preciso em que nos permitimos empregar essa expressatildeo
208
niacutevel individual ndash se essa experiecircncia tende a abarcar a humanidade inteira se ela toma
contato com o princiacutepio do qual proveacutem o Todo o homem soacute passa a possuir uma histoacuteria
na medida em que faz passar pelo interior de sua forma de vida um veio de devir
A fim de evitar mal-entendidos seria o caso de compreender a duplicidade do que
queremos significar por ldquoforma de vidardquo Com efeito a expressatildeo recebe uma transcriccedilatildeo
bioloacutegica no sentido bastante compreensivo que Bergson (2001 p 1061104) lhe
outorgara Descobriacuteamos no fundo da natureza uma tendecircncia ao fechamento capaz de
doar formas de vida e organizaccedilatildeo marcadas ateacute aqui pelas relaccedilotildees de grupo baseadas na
exclusatildeo sua tendecircncia agrave guerra do ponto de vista exterior ao grupo e agrave coesatildeo do ponto
de vista interior ao grupo ndash coesatildeo esta mantida natildeo apenas por uma moral que tende ao
fechamento como agrave religiatildeo estaacutetica que desempenhada automaticamente pelo instinto nos
animais e pelo instinto virtual nos homens cria formas de vida seguras de si previne a
sociedade e o indiviacuteduo das ameaccedilas de depressatildeo egoiacutesmo e desagregaccedilatildeo entre as
formas de vida inteligentes Haacute portanto nos himenoacutepteros como nos homens uma
sociedade saiacuteda das matildeos da natureza ela implica uma organizaccedilatildeo poliacutetico-social que
define natildeo apenas os modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo do grupo mas
sobretudo as formas de vida do proacuteprio grupo Lembremos que entre as formas de vida
inteligentes nas sociedades humanas primitivas ndash cujas tendecircncias natildeo deixam nem por
um momento de encontrar-se sob uma camada mais ou menos espessa de cultura nas
sociedades contemporacircneas (eis o que define a tese bergsoniana da persistecircncia do
natural)183
ndash a religiatildeo estaacutetica defendendo-se contra os efeitos perigosos e dissolventes
das relaccedilotildees do homem para com o grupo a que pertence e em profundidade do homem
com a proacutepria vida criavam-se tradiccedilotildees costumes ritos cerimocircnias e por meio delas
assegurava-se a coesatildeo do grupo sob uma forma nacional Sob todos os aspectos as
exigecircncias de abertura agraves quais a experiecircncia miacutestica responde revelam-se cada vez mais
exigecircncias praacuteticas e poliacuteticas especialmente no iniacutecio do quarto capiacutetulo de Les Dex
Sources
Dessa forma natildeo haacute apenas uma correlaccedilatildeo entre ontologia e formas de vida ndash
tomadas no sentido muito compreensivo que Bergson outorga a essa expressatildeo ndash mas
183
Se Bergson natildeo cessa de retornar ao primitivo parece fazecirc-lo em um sentido tambeacutem metafiacutesico que
SITBON-PEILLON (2002 p 194) considerou ldquoLe primitif serait [] la meacutetaphore du philosophe qui
lsquodeacutebarrasseacute de lrsquoacquisrsquo jetterait un lsquoregard naiumlfrsquo lsquoen soi et autour de soirsquo et ainsi arracheacute au symbolisme
tenterait de faire retour ver cet archaiumlsme qui est le fond de toute penseacuteerdquo Isso poreacutem na medida em que
ldquoLa philosophie de Bergson incarnerait [] la persistance du primitif dans la conscience et dans la penseacutee
rationellerdquo (Idem loc cit) Sobre as relaccedilotildees de aproximaccedilatildeo e distacircncia desta tese bergsoniana com La
penseacutee sauvage de Claude Leacutevi-Strauss (1962) Cf (KECK 2002 p 205-209)
209
essas formas de vida sendo biologicamente constituiacutedas implicam jaacute suas transcriccedilotildees
poliacuteticas referentes aos modos de existecircncia dos indiviacuteduos em funccedilatildeo da sociedades e dos
grupos aos quais pertencem e agraves formas de vida e de organizaccedilatildeo contempladas no interior
dos ciacuterculos concecircntricos de obrigaccedilotildees (entre os humanos os ciacuterculos da famiacutelia paacutetria
humanidade) que essas formas de vida genuinamente poliacuteticas compreendem Sob essa luz
de todo nova no bergsonismo e genuiacutena em Les Deux Sources a dualidade do aberto e do
fechado responde metafisicamente agraves exigecircncias de um problema praacutetico e poliacutetico184
ndash
ou nesse sentido inteiramente novo que se dissimula sob a obra bergsoniana ndash a um
problema originalmente biopoliacutetico ldquoComo abrir o fechadordquo eacute uma questatildeo que
perpassaraacute natildeo apenas a atualidade do momento histoacuterico que a Europa de Bergson
atravessava ndash a da indecidibilidade e dos umbrais de uma Europa que de um lado
impulsionava a mecacircnica e inventava os direitos humanos manifestando uma potente
tendecircncia agrave abertura e de outro captura o maquinismo nos aparelhos e estrateacutegias da
guerra agrave qual tendia e que nos tempos de Les Deux Sources comeccedilava a se insinuar185
A questatildeo permanece atual a toda sociedade humana na medida em que a
cristalizaccedilatildeo de tradiccedilotildees costumes e formas de vida revela uma tendecircncia ao fechamento
e agrave obrigaccedilatildeo moral sonambuacutelica que imita o automatismo do instinto186
nenhuma
transformaccedilatildeo pode efetuar-se sem abrir o fechado sem encontrar do ponto de vista das
formas de vida poliacutetica os pontos de ruptura das formas de vida biologicamente
construiacutedas para as sociedades humanas Se o primitivo natildeo deixava de ser como uma
memoacuteria social original e natural agrave estrutura espiritual que a vida montou nos homens
mesmo a mais civilizada Europa dos anos trinta poderia como de fato pocircde tender ao
fechamento agrave guerra e agrave hierarquia Isso natildeo eacute menos possiacutevel ainda hoje e natildeo eacute menos
possiacutevel em sociedades em transiccedilatildeo cujo problema essencial parece colocar-se do mesmo
modo como parecia colocar-se para Bergson ldquocomo abrir o fechadordquo Eis o que permite
que a transiccedilatildeo na qual a humanidade permanece por sua proacutepria estrutura natural ndash sua
existecircncia bioloacutegica e poliacutetica define-se antes de tudo por uma potecircncia biopoliacutetica de
184
ldquoEacute pois toda a filosofia de Bergson que se explica assim retrospectivamente em uma perspectiva
indissociavelmente praacutetica metafiacutesica e moral que liga nossa vida e toda vida em seus respectivos duplosrdquo
(WORMS 2011 p 368) ainda ldquo[] tudo se passa como se depois de ter oposto o fechado e o aberto por si
mesmos e como limites absolutos pudeacutessemos nos servir deles para nos orientarmos nos problemas
propriamente humanos e histoacutericos []rdquo (WORMS 2011 p 364) 185
ldquoDans Les Deux Sources [] Bergson part drsquoune contradiction anthropologique heacuteriteacutee de lrsquohistoire
politique celle de lrsquoirrationaliteacute des comportaments humains des croyences religieuses mais aussi et peut-
ecirctre surtout de la guerrerdquo (KECK 2002 p 214) 186
ldquoLrsquoactualiteacute pour aujourdrsquohui des Deux Sources est alors indissociable de certaines actualisations []
[] les problegravemes historiques deacutecrits pour Bergson (machinisme guerre civilisation aphrodisiaque) sont
enconre les nocirctres []rdquo (AMALRIC 2012 p 295)
210
variar ou cristalizar-se nelas ndash encontre no aberto uma tarefa eacutetica cosmopolita trata-se
natildeo apenas de abrir o fechado mas de combater o fechamento e de combatecirc-lo a fim de
perseverar no aberto Eacute possiacutevel pressentir de imediato que tudo isso deve receber
transcriccedilotildees poliacuteticas A moralidade do aberto agrave qual corresponde uma atitude subjetiva
proacutepria ndash a da alma aberta e no limite a do miacutestico que o propaga incendiariamente aos
indiviacuteduos falando-lhes em profundidade rompendo a casca parasitaacuteria do eu social e
evocando a liberdade radical e ontoloacutegica que os constitui como progecircneres da duraccedilatildeo ndash
fornece um criteacuterio eacutetico que dispensa toda transcendecircncia187
Tal liberdade natildeo se explica
mais pela razatildeo pelo sujeito e por seus criteacuterios dissociados da vida mas o aberto
constitui-se a partir dela Sua eacutetica funda-se no proacuteprio contato com a vida e com a emoccedilatildeo
criadora que dela procede opondo-se a toda exclusatildeo e a todo limite ela engendra uma
eacutetica amorosa que engloba o Todo responde a um apelo que conduz agrave paz e desfaz-se da
pressatildeo que tende agrave guerra188
Diante de tudo isso busquemos esboccedilar globalmente a resposta que o bergsonismo
oferece agrave questatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Essa questatildeo ndash que parece encaminhar-nos
subitamente na direccedilatildeo praacutetica de uma filosofia poliacutetica ndash tambeacutem poderia ser enunciada
em ldquoComo o estaacutetico se torna dinacircmicordquo ldquoComo o atual se virtualizardquo ou ainda
segundo uma transcriccedilatildeo propriamente biopoliacutetica ldquoComo lanccedilar uma forma de vida a um
devirrdquo Em uma nota redigida em resposta agrave obra que Loisy consagrara a Les Deux
Sources Bergson (2002 p 134) precisara a centralidade da questatildeo da abertura do fechado
em relaccedilatildeo agrave filosofia poliacutetica que desenvolveraacute no uacuteltimo capiacutetulo de seu livro suas
ldquoRemarques Finalesrdquo ldquo[] le moyen de reacuteforme essentiel selon moi nrsquoest pas [] la
lsquoscience psychiquersquo ni lsquolrsquoattent du heacuterosrsquo mais une certaine ouverture do clos une certaine
direction imprimeacutee au vouloir pour neutraliser lrsquohomme fondamentalrdquo Eis o gesto decisivo
187
ldquo[] a distinccedilatildeo entre o fechado e o aberto continua atraveacutes desse livro e para aleacutem dele a valer por si
mesma e a fornecer um criteacuterio uacuteltimo de orientaccedilatildeo a uma humanidade que renuncia a todo criteacuterio
transcendente mas que sente ou que sabe que permanecem criteacuterios morais imanentes a sua vidardquo (WORMS
2011 p 369) 188
Worms (2011 p 327) critica a leitura que Simone Weil (1990) devotou ao criteacuterio moral bergsoniano em
Lrsquoenracinement Seu argumento eacute o de que natildeo basta agrave moral do aberto o contato com a vitalidade e o
aumento de forccedila que se definam pela exclusatildeo e pela guerra A miacutestica em sentido bergsoniano soacute eacute
completa quando confundindo-se com um amor universal que natildeo comporta qualquer exclusatildeo define-se
pela abertura sem precedentes inclui o Todo e apela agrave paz A mesma criacutetica valeria para outro autor Luis
Quintanilla (1953) que em Bergsonismo y politica critica a moral bergsoniana pelas mesmas razotildees que
Weil embora geralmente o faccedila a partir da leitura de Georges Sorel e natildeo das obras de Bergson mesmas O
proacuteprio Bergson (2001 p 1240332) diraacute nesse sentido que ldquosi lrsquoon se tient au mysticisme vrai on le jugera
incompatible avec lrsquoimperialismerdquo
211
e subversivo que atravessa a obra bergsoniana a partir das sucessivas articulaccedilotildees entre
fechado e aberto (AMALRIC 2012 p 270)
Eacute nesse sentido que o aberto natildeo deixa de ser um ponto de vista que permite agrave
filosofia pensar o real para aleacutem dos modelos de clausura das sociedades fechadas
(AMALRIC 2012 p 276) Mas como o fechado deveacutem aberto Em uma palavra por
meio de uma atitude ndash que eacute ao mesmo tempo uma posiccedilatildeo subjetiva e uma accedilatildeo livre em
profundidade ndash de abertura do fechado Se Bergson insiste tatildeo intensamente sobre as
personalidades individuais excepcionais sobre os indiviacuteduos miacutesticos que tocando o eacutelan
vital em um ponto ou descobrindo-o sob o simbolismo de sua apariccedilatildeo natildeo eacute para atrelar
o devir das formas de relaccedilatildeo intersubjetiva ao heroiacutesmo que redundaria facilmente em um
culto da individualidade A questatildeo do devir das formas de vida ndash naquilo que elas
engendram de mais profundamente bioloacutegico e poliacutetico as tendecircncias de sociabilidade
forjadas pela natureza ndash encontra nas individualidades excepcionais a prova concreta
experimentada da possibilidade de abrir o fechado Moralistas artistas ou miacutesticos essas
individualidades excepcionais e de gecircnio natildeo satildeo o que carrega por si a humanidade para
aleacutem dela mesma satildeo a prova viva e histoacuterica de que eacute possiacutevel fazecirc-lo e de que se eles o
puderam foi por adotarem uma atitude aberta que eacute ao mesmo tempo um modo e
subjetivaccedilatildeo e uma accedilatildeo ndash ou em uma soacute palavra a efetuaccedilatildeo de um potencial de variaccedilatildeo
biopoliacutetica que conduz a humanidade para aleacutem de si mesma
Nesse plano tudo se passa como se a existecircncia de alguns super-homens que se
recolocaram no sentido do eacutelan fosse a prova histoacuterica da possibilidade que a humanidade
experimenta a todo momento ao redor de si como os virtuais imanentes agrave proacutepria condiccedilatildeo
humana que permitiriam ultrapassaacute-la A expressatildeo tatildeo ceacutelebre quanto equiacutevoca que se
encontra nas uacuteltimas linhas de Les Deux Sources pela qual Bergson concebe a humanidade
como ldquoune machine de faire des dieuxrdquo natildeo possuiraacute outro sentido senatildeo o de sintetizar
em uma foacutermula que combina a mecacircnica que pode nos liberar da necessidade ao destino
miacutestico ldquodivinordquo ou sobre-humano que nos reserva como continuaccedilotildees do eacutelan o destino
biopoliacutetico da humanidade Fazecirc-lo no entanto ndash Bergson o diz ndash implica uma escolha
entre viver apenas ou esforccedilar-se por realizar a funccedilatildeo essencial do universo Tal esforccedilo
condensa no homem a tendecircncia profundamente vital agrave abertura de uma alma que se abre
atitude subjetiva e efetuaccedilatildeo ativa como nos grandes esquemas da liberdade nos quadros
analiacuteticos do Essai subjetivaccedilatildeo e accedilatildeo se confundem ao infinito supondo a duraccedilatildeo como
memoacuteria elementar da mudanccedila e abertura ontoloacutegica ao porvir
212
Assim como a natureza definia formas de vida tendentes ao fechado fazendo
sistema organizando-se e a girando sobre si mesmas na mesma medida em que essa
tendecircncia ao fechamento parece implicar uma determinaccedilatildeo bio-ontoloacutegica de toda
individualidade (SITBON-PEILLON 2002 p 184) ela soacute se processa de um ponto de
vista dinacircmico supondo o aberto ndash o que deixa entrever uma abertura possiacutevel Assim
como a religiatildeo primitiva e natural permanece no homem e determina a partir da estrutura
geral de seu espiacuterito as formas de organizaccedilatildeo sociais tambeacutem a abertura permanece
contemporacircnea do fechamento capaz de abrir-se segundo comprova a experiecircncia pelo
menos na miacutestica Sabe-se que natildeo se passa de um termo a outro por alargamento
sucessivo aberto e fechado aparecem em primeiro momento como dois termos que
comportam uma irredutiacutevel diferenccedila de natureza da mesma forma natildeo se passa do amor
agrave famiacutelia ou agrave paacutetria ao amor ao Todo e agrave humanidade por via de intensificaccedilatildeo uma vez
que uma diferenccedila de natureza e natildeo de grau os perpassa (BERGSON 2001 p
1202284)
Todavia um outro tipo de passagem se faz possiacutevel e as experiecircncias miacutesticas
indicam precisamente o caminho que se deve percorrer Aqueacutem do misticismo vimos que
Bergson descreve ateacute mesmo uma alma de transiccedilatildeo como que ldquoentreabertardquo ao dinacircmico
signo de que uma franja indecisa virtual de instinto e intuiccedilatildeo natildeo cessa de aureolar a
inteligecircncia Satildeo precisamente essas franjas indecisas rodeadas por nuvens de virtuais que
encaminham agrave proacutepria vida elas entreabrem no homem o prolongamento de sua forma de
vida aparentemente imoacutevel na corrente evolutiva da qual essa forma procede189
Eacute como Todo virtual que o eacutelan se insinua no homem mostrando-se capaz de
produzir em sua forma de vida toda sorte de devires e de rupturas Cedendo agrave sua
reimpulsatildeo o homem salta para fora da natureza torna-se no dizer de Bergson ldquodivinordquo ndash
na medida em que se torna sobre-humano ndash mas ao mesmo tempo natildeo sai completamente
da natureza por isso Bergson afirma que essas individualidades ao tomarem contato com
o princiacutepio de todas as formas de vida constituem como indiviacuteduos ldquoune nouvelle
espegravecerdquo Seu salto para fora da natureza seria em termos espinosanos uma procura pelo
fora da natureza naturada ndash o que soacute pode definir-se como o reencontro em tudo divino
com a natureza naturante afinal ldquo[] crsquoest pour revenir agrave la Nature naturante que nous
nous deacutetachons de la Nature natureacuteerdquo (BERGSON 2001 p 102456)
189
ldquolsquoAffrangissementrsquo qui est affranchissement de lrsquoeacutelan vital par quoi lrsquoeacutevolution au lieu de srsquoimmobiliser
dans les formes de vie collective que les instincts et les tendences organiques de lrsquohomme primitif instituegraverent
dans le temps voisins de ses origines fut capable par un veacuteritable changement drsquoaboutir aux socieacuteteacutes
actuellesrdquo (SITBON-PEILLON 2002 p 187)
213
Eacute no misto do puro e do impuro do aberto e do fechado do devir e da forma que o
homem encontra uma saiacuteda para a liberdade (SITBON-PEILLON 2002 p 187) e a
liberdade em Bergson natildeo eacute mais que a transcriccedilatildeo em um modo de subjetivaccedilatildeo e afetivo
da criaccedilatildeo e do imprevisto ontoloacutegicos Uma ontologia profunda que se confunde com as
potecircncias virtuais do eacutelan atravessa pelas formas de vida depositando-se ao mesmo tempo
em que fratura a mateacuteria As franjas indecisas de inteligecircncia instinto e intuiccedilatildeo presentes
na estrutura geral do espiacuterito humano satildeo fixadas intensificadas e tornadas completas em
accedilatildeo pelos miacutesticos Eacute nesse sentido que viacuteamos o miacutestico ser tomado por Bergson a
despeito de toda crenccedila ecircxtase visatildeo estados moacuterbidos e anormais puramente acidentais
Importa considerar o misticismo completo como aquele que retira do impulso vital a
energia da accedilatildeo e do novo que o miacutestico estaacute prestes a lanccedilar no mundo Uma vez
completo no misticismo natildeo haacute apenas gozo e contemplaccedilatildeo mas transformaccedilatildeo da
alegria do gozo miacutestico ndash que se desembaraccedila dos falsos-problemas por meio de um
simbolismo que deixa transparecer em seu fundo intensivo o proacuteprio eacutelan e suas potecircncias
ndash em alegria da accedilatildeo (WORMS 2011 p 332) Enriquecendo a metafiacutesica com a
experiecircncia e com o contato com o eacutelan ao fazer do proacuteprio corpo o lugar do encontro com
uma potecircncia inumana posto que sobre-humana (SITBON-PEILLON 2002 p 188) os
miacutesticos pensam como homens de accedilatildeo e agem como homens de pensamento Assim como
o primitivo ndash que nos conduz ao fechamento ndash o miacutestico que encaminha ao aberto eacute
tambeacutem uma tendecircncia do espiacuterito190
uma direccedilatildeo da proacutepria realidade em que um
homem com a atitude e o esforccedilo apropriados pode efetuar-se
Pode-se pressentir como a questatildeo a que nos dedicamos longamente ateacute aqui ndash
ldquoComo abrir o fechadordquo ndash deve receber uma transcriccedilatildeo poliacutetica e sofrer uma distensatildeo
praacutetica no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux Sources a ponto de implicar no limite toda uma
filosofia poliacutetica do aberto Com efeito se o misto impuro eacute uma condiccedilatildeo que faz da
atitude e do esforccedilo de abertura seus correlatos na liberdade no interior da filosofia
poliacutetica bergsoniana mecacircnica e miacutestica se unem agrave emoccedilatildeo criadora para converter o
problema da instauraccedilatildeo do aberto na questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo Sem duacutevida
as Remarques Finales desta muacuteltipla obra bergsoniana tensiona ao maacuteximo os conceitos
metafiacutesicos a fim de transcrevecirc-los sob uma rubrica poliacutetica Natildeo eacute por acaso portanto que
agrave guerra e ao maquinismo capturado pelos aparelhos de Estado ver-se-aacute insinuar-se em
Bergson natildeo apenas o problema da direccedilatildeo miacutestica da teacutecnica mas o da direccedilatildeo miacutestica no
190
A propoacutesito ldquoToute reacutealiteacute est donc tendancerdquo escrevera Bergson (2001 p 1420211) ldquosi lrsquoon convient
drsquoappeler tendance un changement de direction agrave lrsquoeacutetat naissantrdquo
214
sentido das proacuteprias formas de organizaccedilatildeo poliacutetico-sociais que encontram na democracia e
nos direitos humanos dois modos coextensivos de manter aberto aquilo que a natureza
tende a fechar Eis o que devemos interrogar agrave luz desse novo campo problemaacutetico que se
define de um lado pela transcriccedilatildeo da intuiccedilatildeo metafiacutesica enriquecida pela experiecircncia
miacutestica e por outro a partir do contato miacutestico com o princiacutepio inumano que impulsiona a
vida mais aleacutem de si mesma e reconduz a natureza naturada agrave natureza naturante da qual
proveacutem
sect 3 PERSEVERAR NO ABERTO
TRANSICcedilAtildeO DEMOCRACIA E DIREITOS HUMANOS
A questatildeo ldquoComo perseverar no abertordquo precisa ser desenvolvida em trecircs direccedilotildees
coextensivas A primeira compreendida como etapa demonstrativa visa a esclarecer de
que maneira Bergson desenvolve a relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica nas Remarques
Finales de Les Deux Sources Trata-se de compreender os perigos sociais como a guerra
na era industrial a que a tendecircncia ao fechamento estaria em vias de levar a Europa no
momento da escritura da obra de Bergson mas tambeacutem de perceber em que sentido uma
moralidade aberta encontra na luta contra o fechamento sua distensatildeo poliacutetica mais proacutepria
e ainda como a democracia e os direitos humanos permitem avanccedilar na luta genuinamente
biopoliacutetica contra o fechamento em direccedilatildeo agrave perseveraccedilatildeo no aberto
Em uma segunda direccedilatildeo seria preciso enfrentar uma questatildeo na qual jaacute
resvalamos mas cujo epicentro permaneceu intocado Bergson afirma sucessivamente
propriedades quase incendiaacuterias do aberto como se ele se comunicasse por contaminaccedilatildeo
imediata de alma em alma Trata-se de perscrutar como isso eacute possiacutevel como o aberto se
comunica de alma em alma Sem isso restaria difiacutecil colocar nossa uacuteltima questatildeo e
uacuteltima direccedilatildeo de desenvolvimento que visa a relacionar o aberto e a transiccedilatildeo agraves questotildees
da democracia e dos direitos humanos
No extremo desse ponto seraacute possiacutevel interrogar as relaccedilotildees entre memoacuteria e
transiccedilatildeo no bergsonismo agrave luz do conceito de aberto da aspiraccedilatildeo moral e do devir que
elas realmente implicam atingindo finalmente apoacutes esse longo poreacutem imprescindiacutevel
plexo de demonstraccedilotildees o epicentro conceitual que nos conduz a apresentar a partir do
bergsonismo a inextrincaacutevel relaccedilatildeo entre memoacuteria e transiccedilatildeo que se encontra pressuposta
na Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo desde sua rubrica ontoloacutegica e a um soacute tempo poliacutetica
ou como preferimos biopoliacutetica
215
Todas essas perguntas ligam-se naturalmente agrave questatildeo precedente agrave qual
oferecemos uma resposta na uacuteltima seccedilatildeo ldquoComo abrir o fechadordquo Por essa razatildeo os
uacuteltimos desenvolvimentos que desaacuteguam na relaccedilatildeo entre mecacircnica e miacutestica no perigo da
guerra e na constante ameaccedila de fechamento a que podem estar ainda hoje submetidas as
democracias ocidentais como no tempo de Bergson191
natildeo poderatildeo deixar de ser seguidos
em suas articulaccedilotildees proacuteprias
Sigamos as grandes linhas de articulaccedilatildeo contidas no uacuteltimo capiacutetulo de Les Deux
Sources de la Morale et de la Religion Jaacute nas primeiras palavras do capiacutetulo vemos
Bergson (2001 p 1201283) remontar aos iacutendices biopoliacuteticos que atravessaram toda a sua
obra e esfumaram-se no caminho em um misto ldquoUn des reacutesultats de notre analyse a eacuteteacute de
distinguer profondeacutement dans le domaine social le clos de lrsquoouvertrdquo Satildeo precisamente
tais iacutendices ndash que chamamos biopoliacuteticos na medida em que possuem raiacutezes
compreensivamente bioloacutegicas192
ndash que permitem redesenhar as feiccedilotildees geneacutericas das
sociedades caracterizadas pelo fechamento ou pela abertura
As sociedades fechadas seratildeo definidas pela exclusatildeo como princiacutepio que forja a
coesatildeo do grupo e origina a necessidade de defender-se contra o outro o outsider e o
inimigo Sociedades estereotipadas e instintuais diferem das sociedades humanas pela
presenccedila da inteligecircncia nestas uacuteltimas e pelo potencial de variaccedilatildeo dos modos de relaccedilatildeo
intersubjetiva que podem produzir Elas contudo natildeo sentem menos a pressatildeo natural em
direccedilatildeo agrave sociabilidade originaacuteria no fundo de si ao mesmo tempo em que somos livres
para variar modos de existecircncia em comum o todo da obrigaccedilatildeo pesa sobre nossos atos
com toda a pressatildeo da natureza que exige uma forma de sociabilidade Saiacuteda das matildeos da
natureza ela natildeo passa de uma sociedade fechada que conserva no entanto em seu
interior um ponto de ruptura a partir do qual poderaacute abrir-se Enquanto isso natildeo ocorre o
todo da obrigaccedilatildeo e uma religiatildeo estaacutetica compensaratildeo os riscos egoiacutestas depressores e
dissolventes que a inteligecircncia importa em relaccedilatildeo aos indiviacuteduos e agraves sociedades humanas
que eles comporatildeo ndash ambas natildeo deixam de ser porque capazes de ressoarem em alguma
191
A esse respeito Worms (2011 p 368-369) ressaltou a atualidade da moralidade aberta bergsoniana bem
como uma seacuterie de outros autores buscaram atualizar a filosofia poliacutetica bergsoniana em funccedilatildeo do aberto O
resultado encontra-se reunido no quinto volume dos Annales bergsoniennes (Bergson et la politique de
Jauregraves agrave aujourdrsquohui) organizado por Worms (2012) do qual nos aproveitaremos para desenvolver algumas
reflexotildees sobre a filosofia poliacutetica proacutepria ao bergsonismo 192
Embora natildeo pretenda levar longe demais a analogia ndash uma vez que o homem e os himenoacutepteros
aproximam-se por estar no extremo das linhas de evoluccedilatildeo mas ainda assim ocupam extremos de linhas
diferentes e divergentes ndash Bergson afirma que ldquoLrsquohomme eacutetait fait pour elle [la socieacuteteacute] comme la fourmi
pour la fourmiliegravererdquo (BERGSON 2001 p 1201283)
216
medida com a inteligecircncia constitutivas de uma sociedade de tipo fechado (BERGSON
2001 p 1202284)
Da sociedade fechada agrave aberta percorre-se uma diferenccedila de natureza natildeo de grau
ldquoLa socieacuteteacute ouverte est celle qui embracerait en principe lrsquohumaniteacute entiegravererdquo ela possui
uma vocaccedilatildeo cosmopolita ndash e uma vez que sua energia adveacutem da proacutepria vida procede
por criaccedilotildees divergentes mais ou menos profundas em relaccedilatildeo ao homem que logo se
fecham e cristalizam em formas tradiccedilotildees costumes ou em instituiccedilotildees Assim que o
aberto faz uma volta sobre si fecha-se em um ciacuterculo a aspiraccedilatildeo enclausura-se em
pressatildeo torna-se obrigaccedilatildeo do todo e o ponto de fusatildeo passa a fundar Cada
transformaccedilatildeo de direccedilotildees insuspeitas e jamais predeterminadas exige um esforccedilo criador
proacuteprio e desenvolve-se em uma direccedilatildeo absolutamente singular e imprevisiacutevel como se a
mutaccedilatildeo de uma forma revelasse certa transparecircncia do devir em geral a que as formas
servem de instrumentos ou ensejos Os obstaacuteculos ou formas natildeo passam de ocasiotildees para
um devir que tem as mesmas caracteriacutesticas da duraccedilatildeo e do virtual uma transformaccedilatildeo
qualitativa e imprevisiacutevel (BERGSON 2001 p 1202-1203284-285) Nenhuma ideia
preexistiraacute a esse devir mas iraacute operar sua criaccedilatildeo imprevisiacutevel contemporaneamente a ele
Se o impulso vital a exigecircncia de criaccedilatildeo parece ceder diante do fechamento ou do
ciacuterculo da espeacutecie ateacute que outra oportunidade se apresente ele seraacute continuado e gestado
por meio de individualidades excepcionais193
Aberto e fechado dinacircmico e estaacutetico
podem entatildeo coexistir sob a forma de um misto No registro da moral Bergson entrevecirc a
coexistecircncia entre uma moral estaacutetica que se fixou nos costumes ideias e instituiccedilotildees cuja
forccedila reduz-se em uacuteltima anaacutelise agrave natural necessidade da vida em comum e de outro lado
uma moral dinacircmica ldquoqui est eacutelan et qui se rattache agrave la vie en geacuteneacuteral creacuteatrice de la
nature qui a creacutee lrsquoexigence socialerdquo (BERGSON 2001 p 1204286) Coexistem pois
pressatildeo e aspiraccedilatildeo como o infraintelectual a inteligecircncia ndash a procurar razotildees onde haacute
apenas niacuteveis mais ou menos intensos de vida ndash e o supraintelectual
A tese da persistecircncia do natural segundo a qual ldquoo primitivo natildeo deixa de serrdquo
nem mesmo sob as camadas mais recentes de cultura natildeo consiste em nada aleacutem de
afirmar a coexistecircncia de tendecircncias virtuais ao fechamento e agrave abertura O primitivo natildeo
193
ldquo[] de mecircme que lrsquoaspiration morale nouvelle ne prend corps qursquoen empruntant agrave la socieacuteteacute close sa
forme naturelle qui est lrsquoobligation ainsi la religion dynamique ne se propage que par des images et de
symboles que fournit la fonction fabulatricerdquo (BERGSON 2001 p 1203285) Assim o fechamento natildeo
consiste em uma tendecircncia natural negativa mas em um modo de comunicar claramente sob a forma de
pressatildeo ou siacutembolos uma aquisiccedilatildeo moral inteiramente construiacuteda no aberto e no dinacircmico O erro
consistiria natildeo apenas em atribuir uma funccedilatildeo unicamente negativa ao fechado mas em tentar explicar o
aberto por intermeacutedio do fechado
217
tem outro significado profundo senatildeo a dessa coexistecircncia de tendecircncias que atesta ter
havido uma sociedade fundamental e fechada saiacuteda das matildeos da natureza (BERGSON
2001 p 1206289)194
Por outro lado a tese da persistecircncia do natural permite infirmar e
criticar ateacute mesmo duramente a tese filosoacutefica natildeo demonstrada da transmissibilidade dos
caracteres adquiridos que explorada insistentemente em LrsquoEacutevolution Creacuteatrice natildeo
precisa ser revisitada aqui
Tudo indica que a sociedade natural seria constituiacuteda como um pequeno grupo no
entanto na mesma medida em que a natureza forjara inicialmente uma sociedade pequena
possibilitou tambeacutem que elas crescessem na medida em que engendrou a guerra e com ela
a possibilidade de associaccedilatildeo entre pequenos grupos que visavam a defender-se Embora
essas uniotildees sejam por si mesmas pouco duraacuteveis a guerra e a conquista encontram-se na
base dos impeacuterios como a experiecircncia histoacuterica de anexaccedilotildees territoriais e escravizaccedilatildeo de
populaccedilotildees para explorar seu trabalho teria demonstrado (BERGSON 2001 p 1210293-
294) No entanto ainda que se conceda certa aparecircncia de liberdade agraves populaccedilotildees
subjugadas logo a inteligecircncia passa a agir e faz sentir seus efeitos dissolventes As
grandes naccedilotildees modernas soacute poderiam ter-se construiacutedo nesse sentido ao neutralizarem
por meio do patriotismo ndash princiacutepio que se erige do fundo das proacuteprias comunidades
elementares dissolventes ndash a tendecircncia agrave desagregaccedilatildeo (BERGSON 2001 p 1210294)
virtude que ultrapassa o apego antigo agraves comunidades na medida em que pode tingir-se de
misticismo e de religiosidade195
A sociedade natural compreendida como um grupo
completo capaz de defender-se de outros grupos eacute marcada estruturalmente pela
inteligecircncia e pela liberdade que soacute podem ser contidas no seio da tendecircncia agrave
sociabilidade por outros artifiacutecios natildeo menos naturais a hierarquia e a disciplina haacute os
que mandam e os que obedecem ndash eis o dimorfismo de natureza psiacutequica que natildeo implica
duas categorias irredutiacuteveis (senhores e servos) Em verdade ambas as tendecircncias fazem
parte de noacutes integram nossa estrutura psiacutequica embora em geral a tendecircncia de obedecer
se manifeste mais constantemente que a de mandar ndash os tempos de revoluccedilatildeo o
demonstrariam melhor que qualquer outro exemplo196
Natildeo somos servos ou senhores por
194
ldquo[] la nature est indestructiblerdquo (BERGSON 2001 p 1206289) ldquo[] les dispositions de lrsquoespegravece
subsistent immuables au fond de chacun de nousrdquo (BERGSON 2001 p 1207291) isto eacute ldquolrsquoancien eacutetat
drsquoacircme subsiste dissimuleacute sous des habitudes sans lesquelles il nrsquoy aurait pas de civilisationrdquo (Idem ibidem
p 1209203) 195
ldquoIl fallait un sentiment aussi eacuteleveacute imitateur de lrsquoeacutetat mystique pour avoir raison drsquoun sentiment aussi
profond que lrsquoeacutegoiumlsme de la triburdquo (BERGSON 2001 p 1211295) 196
ldquoCrsquoest de quoi nous avons la vision nette en temps de reacutevolution Des citoyens modestes humbles et
oacutebeissants jusqursquoalors se reacuteveillent un matin avec la preacutetention drsquoecirctre des conducteurs drsquohommesrdquo
(BERGSON 2001 p 1212296-297)
218
natureza mas carregamos dentro de noacutes os iacutendices biopoliacuteticos que correspondem a esse
dimorfismo governamental na medida em que a vida social estaacute compreendida no plano da
estrutura da espeacutecie Eacute como se houvesse no mais submisso dos cidadatildeos um chefe
adormecido O que estaria na origem do engano quanto agrave separaccedilatildeo dos homens em classes
de mandantes ou de submissos natildeo passaria de um efeito cultural pelo qual por meios
historicamente muito heterogecircneos cultivou-se a naturalizaccedilatildeo da superioridade de estirpe
da classe governante Eis como se naturaliza o dimorfismo social do homem que estaacute
contido como tendecircncia inteiramente em cada indiviacuteduo da espeacutecie
Tudo se passa como se no interior dessa breve histoacuteria natural das formas humanas
de governamentalidade Bergson engendrasse uma fenomenologia da revoluccedilatildeo para
explicar o advento da democracia O instinto resiste a obrigaccedilatildeo via de regra perpetua-se
no seio do comum e no entanto a proacutepria classe dominante pode ou por uma
incapacidade evidente ou por abusos gritantes fazecirc-lo ceder na direccedilatildeo de um sentimento
de justiccedila capaz de dissipar a ilusatildeo segundo a qual a classe politicamente dirigente era
vista como naturalmente superior Toda a distacircncia entre senhores e suacuteditos esmaece Uma
vez que as classes superiores inspiram um respeito natural e quase religioso nas demais
compreende-se por que a humanidade soacute tenha chegado muito tarde agrave democracia
Concebecirc-la segundo Bergson implica um esforccedilo no sentido contraacuterio ao da natureza ela
seria a uacutenica forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que para aleacutem de toda histoacuteria das lutas contra
a desigualdade transcende as condiccedilotildees da sociedade fechada e atribui ao homem direitos
inviolaacuteveis que para manterem-se inviolados exigem de todos fidelidade ao dever
Como a miacutestica a democracia eacute um salto para fora da natureza mas natildeo de toda a
natureza a democracia eacute a forma de organizaccedilatildeo poliacutetica que na medida em que atribui a
todos direitos iguais faz de todo homem legislador universal e suacutedito proclama e
reconcilia a igualdade e a liberdade eleva a fraternidade a genuiacutena condiccedilatildeo poliacutetica Uma
vez que a fraternidade torne-se essencial Bergson natildeo hesita em ir mais longe Para aleacutem
de descobrir ressonacircncias puritanas na Declaraccedilatildeo de Direitos do Homem ndash provenientes
da Declaraccedilatildeo Americana de Independecircncia ndash ele afirma que ldquola deacutemocratie est drsquoessence
eacutevangeliquerdquo que ldquoelle a pour moteur lrsquoamourrdquo (BERGSON 2001 p 1213300) Haveria
pois sob a superfiacutecie das foacutermulas democraacuteticas signos que evocam sua origem religiosa
dinacircmica Mesmo porque seria impossiacutevel definir a democracia senatildeo em termos vagos
tudo nela eacute questatildeo de permitir perseverar no aberto de deixar o futuro aberto a todo
progresso ldquonotamment agrave la creacuteation de conditions nouvelles ougrave deviendront possibles des
219
formes de liberteacute et drsquoeacutegaliteacute aujourdrsquohui irreacutealisablesrdquo (BERGSON 2001 p 1213300-
301)
Ama et fac quod vis eacute a essecircncia da democracia Esta direccedilatildeo quase sempre
introduzida no mundo pela forma do protesto permitiu conceber o advento dos direitos
humanos como desafios lanccedilados a abusos a fim de liquidar com o intoleraacutevel Toda a
fenomenologia da revolta que Bergson esboccedila nessas paacuteginas encontraraacute em uma
assertiva de Egravemile Faguet um ponto miacutestico de aprofundamento Faguet teria escrito que a
Revoluccedilatildeo Francesa natildeo fora feita em prol da liberdade e da igualdade mas porque se
morria de fome Bergson assente mas pergunta ldquopourquoi crsquoest agrave partir drsquoun certain
moment qursquoon nrsquoa plus voulu lsquocrever de faimrsquordquo Algo se passou da ordem de um devir das
formas de vida Na medida em que as intenccedilotildees com que uma ideia eacute lanccedilada continuam a
imantaacute-la por um longo tempo eacute preciso lembrar que toda foacutermula democraacutetica origina-se
da revoluccedilatildeo exprime um desejo revolucionaacuterio formula o que deve ser a fim de liquidar
o que eacute ndash e nesse sentido implica um trabalho praacutetico a um soacute tempo negativo e positivo
A ele corresponde o que Bergson diz ser um estado de alma democraacutetico que descreve um
esforccedilo no sentido inverso da natureza
A natureza inclina toda sociedade que se constitui agrave guerra forma grupos por
segregaccedilatildeo e exclusatildeo manteacutem-nos coesos organizados hierarquizados sob a autoridade
absoluta do chefe tudo isso segundo Bergson (2001 p 1216302) significa guerra A
inteligecircncia fabricadora com que a natureza dotou o homem tambeacutem o predispocircs agrave guerra
na medida em que permitiu que nascesse nele o sentimento de propriedade ligado aos
instrumentos que fabrica aos lugares que frequenta aos alimentos de que se nutre aos
escravos que possui etc Eis o que faz da propriedade uma tendecircncia natural que conduz agrave
guerra persiste no homem um instinto guerreiro que preparado para a violecircncia encontra
no fundo de si mesmo uma euforia que logo seraacute aplacada pelo sofrimento mas que natildeo
deixa de constituir uma forma de encorajamento e de reaccedilatildeo defensiva contra o medo197
Sob o ponto de vista do instinto guerreiro haacute guerras ldquonaturaisrdquo
Bergson natildeo cessa de auscultar nessas paacuteginas os diversos modos pelos quais a
Europa do poacutes-Primeira Guerra ndash olvidada muito rapidamente dos dilaceramentos recentes
ndash reencontrava esse instinto guerreiro e uma tendecircncia ao fechamento sem precedentes
Decerto o instinto guerreiro de que Bergson fala natildeo pode ser encontrado em estado puro
na medida em que a inteligecircncia interfere com ele projeta sobre esse instinto motivos
197
ldquo[] lrsquoorigine de la guerre est la proprieacuteteacute individuelle ou collective et comme lrsquohumaniteacute est predestineacutee
agrave la proprieacuteteacute par sa estructure la guerre est naturellerdquo (BERGSON 2001 p 1217303)
220
racionais que tendem a desaparecer na medida em que as guerras se tornem mais crueacuteis
Sob esse comeacutercio entre a guerra e a inteligecircncia e mais especificamente sob a relaccedilatildeo
entre a guerra e a industriosidade humana ndash que natildeo devemos esquecer fora forjada desde
a origem por uma inteligecircncia fabricadora ndash insinua-se o problema da teacutecnica envolvido
pelos perigos do fechamento198
Eacute preciso compreender as razotildees que levam Bergson agrave questatildeo da teacutecnica elas natildeo
estatildeo menos ligadas agraves formas de vida poliacutetica e agrave vida em geral que todas as demais
questotildees Com efeito no poacutertico da anaacutelise desse problema Bergson (2001 p 1220306)
chegaraacute a declarar que tendo esclarecido as origens da moral e da religiatildeo tendo obtido
algumas conclusotildees natildeo precisaria ir adiante199
No entanto a distensatildeo praacutetica e poliacutetica
que conduzia seu aparato conceitual metafiacutesico ndash sobretudo as noccedilotildees de aberto e fechado
ndash ao limite de genuiacutenos iacutendices biopoliacuteticos copresentes agraves sociedades humanas pareceratildeo
exigir um passo aleacutem200
Mais precisamente o que o impulsiona eacute perceber que as
tendecircncias da sociedade fechada parecem persistir na sociedade que se abre na medida em
que todas elas (obediecircncia fixismo hierarquia disciplina autoridade propriedade)
convergem primitivamente no instinto de guerra eacute preciso investigar se esse instinto pode
ser ativado ou inibido e de que maneira poderia secirc-lo
Sociedades como as europeias contemporacircneas agrave escritura de Les Deux Sources ndash
que aliaacutes parecem natildeo ter perdido nada de sua atualidade ndash satildeo aquelas que implicam em
mais alto grau certa dependecircncia entre os modos de vida e de existecircncia e o
198
ldquoLa derniegravere guerre avec celles qursquoon entrevoit pour lrsquoavenir si par malheur nous devons avoir encore des
guerres est lieacutee au caractegravere industriel de notre civilisationrdquo (BERGSON 2001 p 1220307) 199
ldquoNous pourrions en rester lagraverdquo (BERGSON 2001 p 1220306) 200
Seria impossiacutevel natildeo enxergar por exemplo em um longo paraacutegrafo em que Bergson pesquisa a
superpopulaccedilatildeo a divisatildeo do trabalho a circulaccedilatildeo dos produtos e a distribuiccedilatildeo de recursos e mateacuterias-
primas industriais ndash e toda a exigecircncia de regulamentaccedilatildeo que poderia ser estabelecida por organismos
internacionais ndash como causas possiacuteveis da ativaccedilatildeo do instinto de guerra os iacutendices daquilo que algumas
deacutecadas mais tarde Foucault chamaria de ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo ou de ldquobiopoderrdquo poder sobre a vida
Bergson entrevecirc a necessidade de uma racionalizaccedilatildeo da produccedilatildeo do homem pelo homem atraveacutes de
regulaccedilotildees juriacutedico-administrativas e internacionais ndash em tudo coalescentes com a ideia foucaultiana de uma
ldquobiopoliacutetica das populaccedilotildeesrdquo fabricadora em que eacute o vital das populaccedilotildees que estaacute em jogo Para reter dessa
passagem apenas o essencial para demonstrar em que outro sentido o destino da filosofia bergsoniana natildeo
escapa a certa biopoliacutetica ldquo[] le scheacutema que nous venons de tracer marque suffisament les causes
essentielles accroisement de population perte de deacuteboucheacutes privation de combustible et de matiegraveres
premiegraveres Eliminer ces causes ou en atteacutenuer lrsquoeffet voilagrave la tacircche drsquoun organisme international qui vise agrave
lrsquoabolition de la guerre [] ce qui est certain crsquoest que lrsquoEurope est superpeupleacutee que le monde le sera
bientocirct et que si lrsquoon ne lsquorationalisersquo pas la production de lrsquohomme lui-mecircme comme on commence agrave le faire
pour son travail on aura la guerre [] Vous nrsquoeacuteviterez pas la reacuteglementation (vilain mot mais qui dit bien ce
qursquoil veut dire en ce qursquoil met impeacuterativement des rallonges agrave reacutegle et agrave regraveglement) Que sera-ce quand
viendront des problegravemes presque aussi graves celui de la reacutepartition de matiegraveres premiegraveres celuis de la plus
ou moins libre circulation des produits plus geacuteneacuteralement celui de faire droit agrave des exigences antagonistes
preacutesenteacutees de part et drsquoautre comme vitales Crsquoest un errreur dangereuse que de croire qursquoun organisme
international obtiendra la paix deacutefinitive sans intervenir drsquoautoriteacute dans la leacutegislation des divers pays et
peut-ecirctre mecircme dans leur administrationrdquo (BERGSON 2001 p 1221-1222308-309)
221
desenvolvimento industrial Eis o que definira sociedades afrodisiacuteacas sociedades de
prazer e gozo imoacuteveis tatildeo apaacuteticas quanto narcoacuteticas201
e que seriam talvez ainda hoje as
nossas ndash sociedades portanto provavelmente muito distantes do misticismo
ldquoincontestablement agrave lrsquoorigine des grandes transformations moralesrdquo (BERGSON 2001 p
1223310) as quais natildeo se tornaratildeo possiacuteveis senatildeo por um esforccedilo apropriado no sentido
do eacutelan vital a que corresponde tambeacutem um desejo profundo de fazecirc-lo202
Todavia
mesmo com relaccedilatildeo agraves sociedades afrodisiacuteacas natildeo haacute jamais um pessimismo bergsoniano
mas a insinuaccedilatildeo do aberto ldquoseraacute que a humanidade jaacute natildeo estaraacute suprida dos meios de
modificar-serdquo ou ldquotalvez esteja ela mais perto do que nunca do alvo que ela mesma
supotildeerdquo
Se Bergson recusa todo fatalismo em histoacuteria eacute na medida em que natildeo enxerga nela
um simples movimento pendular mas uma espiral ndash que implica a memoacuteria que impede
repeticcedilotildees puras ou nuas Jamais haacute simples alternacircncias de fluxo e refluxo na histoacuteria
nunca haacute um movimento pendular simples mas o desenvolvimento de tendecircncias segundo
a lei da dicotomia e a lei do duplo frenesi (BERGSON 2001 p 1227316) Sob a histoacuteria
soccedilobra o fundo do vital as lutas histoacutericas natildeo seriam senatildeo os signos superficiais e
expressivos de uma evoluccedilatildeo de tendecircncias mais profunda que em todos os aspectos
assemelha-se agraves tendecircncias de linhas de desenvolvimento da proacutepria vida Haacute portanto
uma coextensatildeo entre o movimento vital dos fluxos e suas transcriccedilotildees histoacutericas A
essecircncia de uma tendecircncia vital ndash afirmara o Bergson (2001 p 581102) de LrsquoEacutevolution
Creacuteatrice ndash eacute desenvolver-se em forma de feixe Na medida em que se desenvolve cresce
e cria as linhas divergentes segundo as quais um impulso original se dividiraacute203
O que
Bergson nomeia lei de dicotomia e lei de duplo frenesi tende a explicar esse movimento
global pelo qual uma tendecircncia se atualiza trata-se da dinacircmica de atualizaccedilatildeo de um
virtual propriamente dito ndash estejamos no campo da ontologia e da vida ou no da forma de
vida poliacutetica e da histoacuteria Com efeito em um caso estaremos no domiacutenio do imprevisiacutevel
no outro no da liberdade De todo modo imprevisto e liberdade constituem
essencialmente o mesmo embora determinem atualizaccedilotildees em niacuteveis diferentes que
coexistem entre si Definamos portanto as duas direccedilotildees em que uma atualizaccedilatildeo se
processa em geral A lei de dicotomia pode definir-se como a que provoca uma atualizaccedilatildeo
201
Bergson vai ainda mais longe ao afirmar que ldquoToute notre civilisation est aphrodisiaquerdquo (BERGSON
2001 p 1232322) 202
ldquoLrsquohumaniteacute ne se modifiera que si elle veut se modifierrdquo (BERGSON 2001 p 1223311) 203
Do ponto de vista de suas linhas divergentes criadas nas quais se reparte o eacutelan inicial ldquo[] une tendence
est la pousseacutee drsquoune multipliciteacute indistinctrdquo (BERGSON 2001 p 1225313)
222
por dissociaccedilatildeo ndash portanto por diferenccedila ndash do que originalmente constituiacutea uma tendecircncia
simples multiplicidade virtual e indistinta Por sua vez a lei de duplo frenesi consiste na
exigecircncia imanente a cada uma das tendecircncias criadas segundo a lei de dicotomia em
continuar-se indefinidamente exigir sua atualizaccedilatildeo ateacute o limite de uma tendecircncia criada
como linha divergente pela lei de dicotomia Bergson (2001 p 1227316) diz que cada
uma das tendecircncias exige ser realizada ateacute o seu limite mas pondera que talvez natildeo
houvesse esse extremo Encontrado esse limite virtual tendo chegado ao fundo de uma das
tendecircncias com toda a memoacuteria adquirida que isso implica voltar-nos-iacuteamos agrave atualizaccedilatildeo
da tendecircncia desprezada ndash e que permanecera agrave espera e agrave espreita ndash ateacute seu fundo204
Assim como uma inteligecircncia sobre-humana natildeo pode prever o devir histoacuterico
Bergson teraacute razatildeo em hesitar sobre a proximidade da humanidade a uma transformaccedilatildeo
miacutestica da moral A descriccedilatildeo do movimento de atualizaccedilatildeo de um impulso virtual
indiviso seu crescimento e dissociaccedilatildeo diferencial em tendecircncias autocircnomas a atualizaccedilatildeo
ateacute o fundo de uma enquanto a outra espera e espreita teria sido necessaacuteria para
compreender a questatildeo da teacutecnica e sua relaccedilatildeo com a miacutestica no acircmbito das sociedades
afrodisiacuteacas Como nunca a humanidade em geral parece buscar o luxo e o conforto por
meio da ciecircncia e das invenccedilotildees da teacutecnica responde a necessidades antigas na medida em
que cria novas que aceleram a insatisfaccedilatildeo das multidotildees Se a vida material dos homens
amplia-se significativamente entre os seacuteculos XV e XVI superando todo ideal asceacutetico que
constituiacutea a atmosfera da era medieval e fora diluiacutedo no comum dos homens eacute porque a
isso correspondem as evoluccedilotildees particulares de duas tendecircncias divergentes (BERGSON
2001 p 1230319) como se houvesse um progresso por oscilaccedilatildeo que potencialmente nos
conduziria a um retorno agrave vida simples ndash embora Bergson natildeo cesse de tratar disso como
algo aberto ao futuro e agrave sua imprevisatildeo Assim como o pensamento socraacutetico teria sido a
origem da vida cirenaica de prazeres e da vida ciacutenica de desprendimento violento
estendendo-se mais tarde no epicurismo e no estoicismo seria possiacutevel entrever uma
origem e um impulso comuns agrave sociedade afrodisiacuteaca e agrave vida simples Eacute no interior do
proacuteprio epicurismo ndash que popularmente consistiu natildeo raro na busca desenfreada de
prazeres ndash que Bergson encontra um Epicuro que desenvolveraacute o prazer supremo no
sentido da desnecessidade de prazeres205
Eacute nessas condiccedilotildees que um retorno agrave
204
ldquo[] quand on ne pourra plus avancer on reviendra avec tout lrsquoacquis se lancer dans la direction
neacutegligeacutee ou abandoneacuteerdquo (BERGSON 2001 p 1228316) 205
Esse coup drsquoœil sobre a histoacuteria das ideias resulta em que ldquo[] les deux principes sont au fond de lrsquoideacutee
qursquoon srsquoest toujours faite du bonheurrdquo (BERGSON 2001 p 1230319)
223
simplicidade natildeo seria certo por um lado mas tampouco teria algo de improvaacutevel afinal
ldquoune freacuteneacutesie apelle la freacuteneacutesie antagonisterdquo (BERGSON 2001 p 1233323)
Na medida em que pelo avanccedilo da ciecircncia superam-se necessidades antigas e
criam-se necessidades novas encontramos satisfaccedilotildees de luxo em invenccedilotildees mecacircnicas ndash a
proliferaccedilatildeo dos automoacuteveis como um luxo ostentatoacuterio o provaria suficientemente
(BERGSON 2001 p 1234324) Necessidades artificiais impulsionam ainda mais o
maquinismo embora a invenccedilatildeo mecacircnica persista um dom natural Seu progresso foi
limitado sempre pela mateacuteria e pela energia de que se aproveitava (esforccedilo muscular forccedila
do vento ou da aacutegua a energia acumulada por milhotildees de anos da hulha ou do petroacuteleo)
os saltos da teacutecnica habituaram-se a vencer distacircncias cada vez maiores na medida em que
a ciecircncia moderna integrou-se a ela e embora ciecircncia e teacutecnica possam distinguir-se
O que Bergson reprova agrave teacutecnica e ao espiacuterito de invenccedilatildeo eacute que natildeo tenham se
dirigido comumente aos interesses da humanidade inventando necessidades artificiais e
supeacuterfluas sem cessar natildeo asseguraram a satisfaccedilatildeo de necessidades mais elementares e
ainda que alterassem profundamente as relaccedilotildees capital-trabalho natildeo significaram aos
operaacuterios maior tempo de descanso e de liberdade206
Tais problemas poderiam poreacutem ser
corrigidos na medida em que a humanidade se esforccedilasse na direccedilatildeo de uma vida simples
racionalizasse a utilizaccedilatildeo do maquinismo orientada por certo misticismo e por certa ascese
(BERGSON 2001 p 1238329) A humanidade natildeo poderaacute fazecirc-lo contudo premida pela
fome e pela miseacuteria Se a miacutestica apela agrave mecacircnica eacute na medida em que para superar a
mateacuteria o homem precisa forccedilaacute-la encontrar nela um consistente ponto de apoio
(BERGSON 2001 p 1238329) Desde os instrumentos mais simples agraves maacutequinas mais
complexas e potentes que extraem seu potencial de accedilatildeo de uma energia acumulada por
milhotildees de anos todos prolongam o corpo e a inteligecircncia fabricadora com a qual a
natureza dotou o homem a teacutecnica e a mecacircnica o desenvolvem em um corpo aumentado a
exigir uma alma agrave sua altura ndash eis porque de certo ponto de vista tambeacutem a mecacircnica
parece convidar agrave miacutestica agrave constituiccedilatildeo de um suplemento de alma e a uma transformaccedilatildeo
moral capazes de preencher a distacircncia entre corpos totipotentes e as diminutas almas
humanas
206
ldquoDrsquoune maniegravere geacuteneacuteral lrsquoindustrie ne srsquoest pas assez soucieacutee de la plus ou moins grande importance des
besoins agrave satisfaire Volontiers elle suivait la mode fabriquant sans autre penseacutee que de vendrerdquo (BERGSON
2001 p 1236326) ldquo[] nous lui reprocherons [le machinisme] drsquoen avoir trop encourageacute drsquoartificiels
drsquoavoir pousseacute au luxe drsquoavoir favoriseacute les villes au deacutetriment des campagnes enfin drsquoavoir eacutelargi la distance
et transformeacute les rapports entre le patron et lrsquoouvrier entre le capital et le travailrdquo (BERGSON 2001 p
1236-1237327)
224
Mecacircnica e miacutestica natildeo seriam nesse sentido tendecircncias divergentes sujeitas agraves
leis de dicotomia e frenesi Direccedilotildees antagocircnicas originadas em um mesmo impulso
original de uma comunidade de eacutelan207
Eacute a miacutestica que permanece agrave espera e agrave espreita ndash
modo do virtual ndash enquanto nossa civilizaccedilatildeo leva a mecacircnica a seu limite e pareceraacute natildeo
parar de desenvolvecirc-lo senatildeo no limiar da cataacutestrofe Eis o que resulta da lei de dicotomia e
de duplo frenesi ldquo[] lrsquoaction en marche creacutee sa propre route creacutee pour une forte part les
conditions ougrave elle srsquoaccomplira et deacutefie ainsi le calcul On poussera donc de plus en plus
loin on ne srsquoarrecirctera bien souvent que devant lrsquoimminence drsquoune catastropherdquo
(BERGSON 2001 p 1227315) A descriccedilatildeo bergsoniana cada vez mais atual na medida
em que a mecacircnica parece conduzir-nos ainda hoje aos umbrais de uma cataacutestrofe
ambiental eacute o que estaacute a exigir uma profunda transformaccedilatildeo espiritual e moral capaz de
reunir os desiacutegnios da mecacircnica aos da miacutestica e por essa via reuni-los agrave proacutepria vida
A invenccedilatildeo coloca agrave disposiccedilatildeo do homem energias e potenciais de accedilatildeo
insuspeitados Restaria esforccedilar-se em relaccedilatildeo ao espiacuterito na direccedilatildeo da miacutestica tanto
quanto nossa civilizaccedilatildeo esforccedilou-se para dominar a mateacuteria Eis a procura pelo ldquode forardquo
capaz de fazer o homem emancipar-se da forma de vida que lhe fora atribuiacuteda pela
evoluccedilatildeo da vida assim livrar-se-aacute da proacutepria necessidade de ser uma espeacutecie Em relaccedilatildeo
a esse apelo que penetra miacutestica e devir liberaccedilatildeo e vida simples a humanidade soacute poderaacute
responder por si mesma nos termos de sua proacutepria liberdade que eacute tambeacutem a ressonacircncia
e a sobrevivecircncia do imprevisiacutevel ontoloacutegico que a constitui como tal208
A transiccedilatildeo da
alma que se abre que se prepara para cavalgar o corcel negro do devir implica o aberto
No entanto trata-se de saber como o aberto pode comunicar-se de alma a alma em que
consiste seu caraacuteter incendiaacuterio
Antes de nos encaminharmos definitivamente agraves derradeiras consideraccedilotildees da
presente seccedilatildeo antes mesmo de tornarmos evidente a relaccedilatildeo entre a transiccedilatildeo e a memoacuteria
que se insinua sem cessar sob os problemas de abrir o fechado de combater o fechamento
207
ldquoLes origines de cette meacutecanique sont peut-ecirctre plus mystiques qursquoon ne le croirait elle ne retrouvera sa
direction vraie elle ne rendra des services proportionneacutes agrave sa puissance que si lrsquohumaniteacute qursquoelle a courbeacutee
encore davantage vers la terre arrive par elle agrave se redresser et agrave regarder le cielrdquo (BERGSON 2001 p
1239331) 208
Tais satildeo as uacuteltimas linhas de Les Deux Sources em que Bergson evoca a liberdade mas tambeacutem o
potencial transespeciacutefico e biopoliacutetico da humanidade que retoma contato com o eacutelan vital (essa ldquomaacutequina de
fabricar deusesrdquo) e assumir a atitude espiritual correspondente ldquoA elle [lrsquohumaniteacute] de voir drsquoabord si elle
veut continuer agrave vivre A elle de se demander ensuite si elle veut vivre seulement ou fournir en autre lrsquoeffort
neacutecessaire pour que srsquoaccomplisse jusque sur notre planegravete reacutefractaire la fonction essentielle de lrsquounivers
qui est une machine agrave faire des dieuxrdquo (BERGSON 2001 p 1245338)
225
ou de perseverar no aberto ndash questotildees que nos encaminhavam inegavelmente a suas
transcriccedilotildees poliacuteticas no plano da democracia e dos direitos humanos ndash seria necessaacuterio
realizar um breve e derradeiro desvio a fim de compreender dinamicamente como o aberto
se comunica de uma alma a outra Com efeito pudemos compreender de maneira
esquemaacutetica as consequecircncias genuinamente praacuteticas que se dissimulam sob questotildees
aparentemente metafiacutesicas (abrir o fechado combater o fechamento perseverar no aberto)
Trata-se entatildeo de retrabalhar em detalhe alguns pontos-chave para compreender o caraacuteter
incendiaacuterio do aberto que se encontram expostos de maneira muito difusa na obra de
Bergson Esse curto desvio seraacute importante para compreender em que sentido natildeo haacute
transiccedilatildeo sem memoacuteria ndash e assumiremos aqui uma dupla articulaccedilatildeo entre os niacuteveis
psicoloacutegico e poliacutetico em que uma transiccedilatildeo se produz o que por si soacute auxiliaraacute a
esclarecer em que sentido o aberto pode ser tomado como o destino metafiacutesico de que as
transiccedilotildees poliacuteticas satildeo signo
Eacute em funccedilatildeo de uma teoria de emoccedilatildeo e de certa comunidade afetiva em
profundidade ndash que conviria chamar comunidade de eus profundos ndash que aspiraccedilatildeo
propulsatildeo e abertura satildeo mobilizados em funccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo No entanto por
mais que seja possiacutevel pressentir sob toda abertura do estaacutetico em dinacircmico uma
comunidade de eus profundos que reemerge agrave superfiacutecie definidora das relaccedilotildees sociais
solidificadas pelo haacutebito e pelo todo da obrigaccedilatildeo propaga-se incendiariamente resfria-se
e volta a consolidar-se fechando-se sobre si mesma natildeo podemos nos brindar de antematildeo
com o que devemos demonstrar Uma comunidade de eus profundos soacute seraacute atingida no
extremo desse desvio e ao passo em que possamos esboccedilaacute-la entre as condiccedilotildees de
possibilidade da efetuaccedilatildeo de uma transformaccedilatildeo ou de uma transiccedilatildeo poliacutetica Eacute a esse noacute
problemaacutetico que as questotildees ldquocomo o aberto se comunica de alma em almardquo e ldquoem que
consiste a dinacircmica de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteriardquo tendem a nos conduzir As
propriedades incendiaacuterias do aberto seriam muito mais do que uma bela imagem se
puderem ser explicadas dinamicamente em profundidade ligadas a uma teoria da emoccedilatildeo
criadora e a uma imitaccedilatildeo inventiva
Frisemos algo sobre o que jaacute insistimos longamente em outro momento mas que
recebeu em Les Deux Sources sua uacuteltima e definitiva distensatildeo praacutetica e poliacutetica Embora
desejemos conduzir a anaacutelise a partir do entrecruzamento entre dois niacuteveis da duraccedilatildeo ndash os
niacuteveis psicoloacutegico e poliacutetico-social ndash talvez natildeo seja demasiado ter em mente que o que
assegura essa coexistecircncia de niacuteveis eacute uma outra mais profunda e virtual e que
corresponde agrave proacutepria ontologia virtual da qual esses niacuteveis procedem Nesse sentido em
226
qualquer niacutevel em que o tomemos o que reabre o fechado o que racha o ciacuterculo descrito
pelo aparentemente natural e infinito tourner sur place que define uma forma de vida e os
coacutedigos sonambuacutelicos da moralidade estaacutetica satildeo algo como uma contraefetuaccedilatildeo virtual
que soacute se apreende em uma retomada de contato da forma com o eacutelan que eacute a condiccedilatildeo de
seu vir a ser tanto sob o ponto de vista do atual quanto do virtual O que eacute o aberto senatildeo
uma ruptura ou uma fenda na natureza naturada pela qual a duraccedilatildeo essencialmente
naturante natildeo cessa de forccedilar passagem O que Bergson define como ldquoa aberturardquo senatildeo o
conjunto de condiccedilotildees ndash entre as quais uma comunicaccedilatildeo do aberto de alma em alma ndash
pela qual eacute o devir como multiplicidade heterogecircnea e qualitativa que se comunica de
cima a baixo da ontologia agraves formas de vida do imprevisto agrave liberdade da evoluccedilatildeo das
espeacutecies ao salto inumano e sobre-humano de que o anthropos prova ser capaz na
experiecircncia miacutestica da memoacuteria elementar e ontoloacutegica que registra a passagem contiacutenua
da duraccedilatildeo agrave sua transfiguraccedilatildeo em memoacuteria psicoloacutegica e lembranccedila-imagem que torna
possiacutevel remuer la cendre do aberto A coalescecircncia entre o ontoloacutegico e os niacuteveis
psiacutequico poliacutetico-social ou histoacuterico que resta demonstrada em seus uacuteltimos termos
apenas agora ao cabo de Les Deux Sources ndash livro no interior do qual eacute uma atualizaccedilatildeo
em niacutevel do mesmo movimento que se passa em cada um desses niacuteveis na medida em que
ele eacute remissiacutevel em uacuteltima anaacutelise ao monismo poderoso e diferencial do eacutelan ndash jaacute seria
suficiente para termos presente que a origem com a qual o miacutestico toma contato designa
uma profunda forma de memoacuteria que se confunde com a integral da vida e de seus virtuais
A miacutestica designa a possibilidade de retomar o contato com essa memoacuteria cosmoloacutegica ndash
natildeo apenas bioloacutegica mas tambeacutem inorgacircnica e vital ndash e que persiste na forma de vida
humana Eis o que explica toda a centralidade da miacutestica como campo de provas no uacuteltimo
livro de jure de Bergson Essa tendecircncia que sobrevive no homem ao menos como virtual
ndash agrave espera e agrave espreita ndash soacute deseja que chegue a sua vez para que ela possa ser levada a
seu proacuteprio desespero conceitual para que tenha lugar seu desenvolvimento no sentido
mais radical para que sua linha de ruptura possa ser efetuada e conduzida a seu proacuteprio
frenesi
A fim de explicar como ela pode por um lado adormecer por duraccedilotildees muito
longas e por outro ser suscitada em duraccedilotildees muito curtas seria preciso entrever sua
relaccedilatildeo com uma teoria da emoccedilatildeo e da imitaccedilatildeo ndash nas quais tocamos apenas com as
pontas dos dedos ateacute aqui ndash em funccedilatildeo precisamente de uma espeacutecie de fenomenologia da
revoluccedilatildeo que encontraacutevamos nas Remarques Finales da obra de Bergson Nem mesmo os
mais contemporacircneos comentadores de Bergson ndash e que tentam reatualizar hoje o
227
bergsonismo como filosofia poliacutetica ndash levaram-na tatildeo longe O desafio que Bergson lanccedila
ao final do livro em tudo correlato aos devires democraacuteticos que o aberto inspirou mostra-
se paulatinamente ser algo da ordem de um desejo profundo e autecircntico virtual e
indomaacutevel puro ato de liberdade que eacute o representante psicoloacutegico de uma emoccedilatildeo
criadora de atmosfera incendiaacuteria Como explicar que certo dia homens outrora
obedientes e submissos decidam insurgir-se porque passar fome jaacute natildeo eacute mais toleraacutevel
Como natildeo enxergar nessa questatildeo a gecircnese dos proacuteprios direitos humanos como fruto do
desejo e de uma emoccedilatildeo criadora coletiva que se tornou necessaacuterio explicar ndash uma vez que
as lutas natildeo satildeo senatildeo os signos mais superficiais dessa clareira obscura e profunda que eacute o
aberto Se os direitos humanos como quisera Bergson se introduzem no mundo pela via
do protesto o desejo e a emoccedilatildeo satildeo seus precursores sombrios Cinzas que ainda fazem
rescender o perfume do aberto eles envolvem natildeo apenas um potencial emancipatoacuterio
contra a dominaccedilatildeo e a opressatildeo mas satildeo o iacutendice atual dos virtuais que sob eles
encontram-se agrave espreita agrave espera de variar formas de vida Por meio deles ou por meios
totalmente outros eacute contra o fechamento que se luta sem cessar contra a solidificaccedilatildeo da
desigualdade em haacutebito e da liberdade em coacutedigo moral
Contudo o que explicaraacute que se combata o fechamento do aberto sem cessar
Retornemos a uma distinccedilatildeo essencial entre o aberto e o fechado que se faz atravessar por
uma diferenccedila de natureza ndash e natildeo de grau Em virtude dessa diferenccedila Bergson recusava
vigorosamente a possibilidade de passar do fechado ao aberto pela via do alargamento
progressivo o amor ao Todo e a alma aberta jamais resultariam da extrapolaccedilatildeo do amor agrave
famiacutelia ou agrave paacutetria de que satildeo com efeito naturalmente capazes as almas fechadas209
Vimos a propoacutesito que todo esse contexto definia a questatildeo metafiacutesica e ao mesmo tempo
praacutetica e poliacutetica que segundo o proacuteprio Bergson constituiacutea o cerne problemaacutetico de Les
Deux Sources ndash ldquocomo abrir o fechadordquo ldquocomo reabrir o fechadordquo Sob essa questatildeo ndash
Worms bem o percebera ndash encontra-se muito mais do que uma simples questatildeo moral ou
poliacutetica destacada da ontologia210
pelo contraacuterio ela implica a ontologia bergsoniana
209
Pelo contraacuterio Antoine Janvier (2012 p 217-218) afirmaraacute que o processo de produzir difundir e
comunicar emoccedilatildeo recebe em Les Deux Sources o nome de amor mas pela vida inteira pelo Todo como a
descriccedilatildeo bergsoniana da alma aberta o provaria Cf nesse aspecto (BERGSON 2001 p 1006-100734) 210
ldquo[] o fechamento e a abertura natildeo satildeo apenas as dimensotildees morais da relaccedilatildeo da humanidade consigo
mesma mas tambeacutem as dimensotildees metafiacutesicas do homem com a vida com seu princiacutepio primeiro e com o
universo em seu conjuntordquo (WORMS 2011 p 367) ou ainda ao falar do que se encontra envolvido nos
problemas verdadeiros que Les Deux Sources desvela Worms diraacute que naquele livro ldquo[] encontraremos
natildeo apenas a gecircnese positiva da moral teoacuterica mas tambeacutem e sobretudo uma nova soluccedilatildeo para o problema
cosmoloacutegico para o problema da criaccedilatildeo que renova todo o pensamento de Bergsonrdquo (Idem ibidem p
347) Antoine Janvier (2012 p 210 e p 222) seguindo a inspiraccedilatildeo de Le Bergsonisme de Deleuze natildeo
deixa de considerar esta obra de Bergson como um desdobramento da ontologia da duraccedilatildeo em sentido
228
mesma o Todo virtual que se confunde com o eacutelan causa profunda do vir a ser do real em
sua integralidade
De outro lado sabemos o que permite no seio da forma de vida humana no
especiacutefico ciacuterculo antropoloacutegico que o aberto possa passar Se por um lado a natureza e o
instinto impotildeem o fechado e a vida social a inteligecircncia tambeacutem se introduz na estrutura
em geral do espiacuterito humano e com ela uma potecircncia de hesitaccedilatildeo que corresponde a uma
atualizaccedilatildeo de niacutevel psicoloacutegico da proacutepria imprevisibilidade ontoloacutegica da duraccedilatildeo
mesma enquanto diferenccedila consigo mesma ndash algo a que chamamos liberdade Nessa
abertura demasiado estreita em que ela se insere todo tipo de jogo se torna possiacutevel a partir
da tensatildeo constitutiva de nossa liberdade entre inteligecircncia e sociedade (DELEUZE 1966
p 112) Natildeo sem razatildeo o todo da obrigaccedilatildeo seraacute explicado pelo instinto virtual como
resistecircncia agrave resistecircncia porque o dado fundamental da inteligecircncia eacute o de resistir ao
fechamento que a natureza impotildee (BERGSON 2001 p 99113) Haacute uma indisciplina
natural nas crianccedilas porque a inteligecircncia abandonada a si mesma eacute fabricadora e
inventiva a variaccedilatildeo eacute o princiacutepio superior (supraintelectual) que natildeo cessa de ressoar nela
em um niacutevel apenas intelectual pragmaacutetico corporal atento ao presente e agraves exigecircncias da
utilidade e da vida A inteligecircncia e a invenccedilatildeo poreacutem natildeo satildeo nunca deixadas a si
mesmas ndash haacute sempre um instinto virtual que as vigia que reequilibra suas tendecircncias que
previne contra seus perigos e confabula para o social
Por outro lado ainda que o instinto virtual no homem pressione a inteligecircncia
tomando seu lugar instaura um intervalo entre accedilatildeo e reaccedilatildeo intervalo que Deleuze afirma
ser intracerebral Precisamente esse intervalo torna possiacutevel uma variaccedilatildeo de haacutebitos no
jogo entre inteligecircncia e sociedade ndash entre tendecircncias ao egoiacutesmo ao proveito individual e
pressatildeo exercida pelo todo da obrigaccedilatildeo ndash e indica dessa forma o sentido em que a
liberdade poderaacute alargar-se (JANVIER 2012 p 209) Tudo se passa como se essa
hesitaccedilatildeo duracional que a inteligecircncia implica encaminhasse ao aberto Precisamente essa
liberdade intervalar eacute o que explica certo privileacutegio do homem em relaccedilatildeo agraves demais
formas de vida do ponto de vista da evoluccedilatildeo ele seria o uacutenico capaz de encontrar no
ciacuterculo antropoloacutegico a condiccedilatildeo de ruptura e superaccedilatildeo de sua proacutepria forma de vida ndash eis
o que tornaria o homem em nossos termos o animal biopoliacutetico por excelecircncia definido
por sua potecircncia de variaccedilatildeo e invenccedilatildeo de formas de vida Natildeo por acaso Deleuze
(ibidem loc cit) diraacute que eacute toda a memoacuteria e toda a liberdade que se infiltram por esse
poliacutetico No mesmo sentido por fim ldquoLrsquoamour est [] le nom de la dureacutee saisi agrave son niveau le plus profonde
le plus fondamental []rdquo (AMALRIC 2012 p 274)
229
intervalo e se tornam atualizaacuteveis instaurando o privileacutegio da abertura no homem
indicaratildeo a sociedade aberta como limite ideal capaz de albergar por princiacutepio a
humanidade inteira e ir mais aleacutem ndash exprimir-se como amor ao Todo (BERGSON 2001 p
1202284 e ainda p 1006-100734) significado profundo da democracia
O aberto eacute o iacutendice dos devires de uma humanidade poacutes-humana na medida em que
se daacute conta de sua natureza transespeciacutefica O que a alma aberta encontraraacute no interior de si
eacute apenas a reiteraccedilatildeo do gesto constituinte da proacutepria vida assim tornava-se possiacutevel
definir a atitude miacutestica antes de tudo como uma tomada de contato e como coincidecircncia
parcial do miacutestico com a proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1162233) Eacute portanto no
sentido do eacutelan e por extensatildeo da proacutepria ontologia virtual da qual sai o cosmos que as
almas as formas de vida e de existecircncia em comum se abrem Por essas razotildees a alma
aberta natildeo eacute um dado puro e simples da natureza sempre e jaacute atualizado mas o resultado
de um esforccedilo que desenvolve uma virtualidade copresente agrave inteligecircncia e ao instinto em
certo sentido (JANVIER 2012 p 214-215) No interior da forma de vida os virtuais de
uma alma aberta encontram-se nesse sentido prefigurados na direccedilatildeo da abertura que a
inteligecircncia indica a inteligecircncia e a variaccedilatildeo de haacutebitos que a inteligecircncia implica ao
resistir agrave pressatildeo de uma moralidade fechada satildeo indiciaacuterios de uma direccedilatildeo a seguir mas
natildeo atualizam por si mesmas nenhuma linha que dela proceda em potencial Essa linha
consiste em uma espeacutecie de apelo do virtual ldquoappel agrave la coappartenance originaire agrave lrsquoeacutelan
vitalrdquo (ZANFI 2012 p 231) ao qual respondem as individualidades excepcionais e
intuitivas dos grandes homens morais dos artistas mas tambeacutem dos miacutesticos
Se pudemos reencontrar brevemente o aberto como virtual do proacuteprio homem
essa abertura que assim se insinua constitui apenas uma das condiccedilotildees de uma
transformaccedilatildeo qualquer Eis o que nos daacute ao mesmo tempo a chave do vitalismo virtual
com que Bergson dissipa os falsos-problemas e as ilusotildees metafiacutesicas para retomar um
contato com o real211
Todo um novo esforccedilo deve constituir-se no sentido de esclarecer
sua dinacircmica que nos indica precisamente o lugar de uma teoria das emoccedilotildees e da
imitaccedilatildeo involuntaacuteria e inventiva ndash esta profundamente influenciada por Gabriel Tarde
(AMALRIC 2012 p 284)212
Perguntar-se sobre a dinacircmica segundo a qual uma
211
ldquo[] penser toutes choses en termes de dureacutee et de mouvement crsquoest-agrave-dire comme des produits de lrsquoeacutelan
vitalrdquo (JANVIER 2012 p 203) 212
A audaacutecia da cosmologia bergsoniana e de sua filosofia do devir eacute nesse sentido muito proacutexima daquela
de Gabriel Tarde para quem ldquoexistir eacute diferirrdquo A afirmaccedilatildeo que constitui a cosmologia de Tarde eacute lapidar
natildeo apenas por exprimir a precedecircncia da diferenccedila ou sua natureza infinitesimal mas por forrar o real com
a diferenccedila e submeter a proacutepria identidade a ela A aproximaccedilatildeo entre as cosmologias de Tarde e Bergson eacute
nesse particular notaacutevel ldquoExistir eacute diferir na verdade a diferenccedila eacute em um certo sentido o lado substancial
230
transformaccedilatildeo dos haacutebitos sociais dos coacutedigos morais ou das formas de organizaccedilatildeo
poliacutetica se produz eacute finalmente interrogar ldquocomo efetuar o abertordquo Eacute apenas nesse passo
que uma teoria da emoccedilatildeo criadora receberaacute em Les Deux Sources um estatuto especial
(DELEUZE 1966 p 116)
A resposta de Bergson a essa questatildeo eacute bastante clara A alma aberta natildeo estaacute
jamais dada como atual pela natureza o que a natureza assegurou foi a sociabilidade por
meio de um instinto virtual e a variabilidade dos haacutebitos em virtude da inteligecircncia Saltar
para fora da natureza naturada para fora do adquirido ldquoexige toujours un effortrdquo
(BERGSON 2001 p 100735) Sua forma de transcrever nossa questatildeo ldquocomo efetuar o
abertordquo eacute perguntar-se ldquoDrsquoougrave vient que les hommes qui en ont donneacute lrsquoexemple ont trouveacute
drsquoautres hommes pour les suivre Et quelle est la force qui fait pendant ici la pression
socialrdquo (Idem ibidem p 1007-100835) Sua resposta embora concisa natildeo seraacute menos
clara ldquoNous nrsquoavons pas le choix En dehors de lrsquoinstinct et de lrsquohabitude il nrsquoy a drsquoaction
direct sur le vouloir que celle de la sensibiliteacute La propulsion exerceacutee par le sentiment peut
drsquoailleurs ressembler de pregraves agrave lrsquoobligationrdquo (Idem ibidem p 100835)
Eis o ponto em que uma afetividade ndash cujos termos ainda estatildeo por definir ndash
encontra seu lugar no interior da filosofia moral e poliacutetica bergsoniana Aleacutem do instinto e
do haacutebito apenas a sensibilidade poderaacute interferir com o querer e eacute precisamente essa
accedilatildeo direta da sensibilidade sobre o querer que Bergson chamaraacute emoccedilatildeo (JANVIER
2012 p 215) Contudo natildeo seraacute esta uma emoccedilatildeo qualquer sua accedilatildeo direta sobre o querer
eacute algo que natildeo se confunde com a accedilatildeo do instinto ou do haacutebito ndash formulado pela
inteligecircncia mas fixado pelo instinto ndash sobre o querer A emoccedilatildeo estaacute para aleacutem disso
constitui o fora do instinto e do haacutebito consiste na libertaccedilatildeo do homem em relaccedilatildeo a todo
adquirido que natildeo a precede de modo nenhum Bergson (2001 p 101140) afirmaraacute pelo
contraacuterio que eacute sempre uma emoccedilatildeo nova o que estaacute na origem das grandes criaccedilotildees da
arte da ciecircncia ou da civilizaccedilatildeo Trata-se portanto natildeo de uma emoccedilatildeo que se segue de
uma representaccedilatildeo ou de uma ideia ndash ela jamais se definiraacute pois como intelectual ou
das coisas o que elas tem ao mesmo tempo de mais proacuteprio e de mais comum [] a identidade eacute apenas um
miacutenimo e portanto apenas uma espeacutecie e uma espeacutecie infinitamente rara de diferenccedila assim como o
repouso eacute apenas um caso do movimento e o ciacuterculo uma variedade singular da elipserdquo (TARDE 2007 p
98) Toda a cosmologia bergsoniana parece ser a prova dessa maacutexima afinal Bergson realiza um vai e vem
constante entre o espiacuterito e o mundo material perguntando se a incessante mudanccedila que experimentamos por
dentro nosso sentimento de duraccedilatildeo poderia aplicar-se agravequilo que existe em geral Testemunhando essa
proximidade entre Tarde e Bergson satildeo as proacuteprias foacutermulas cosmoloacutegicas que chegam a se tocar por
caminhos muito distintos ldquo[] pour un ecirctre conscient exister consiste agrave changer changer agrave se mucircrir se
mucircrir agrave se creacuteer indeacutefiniment soi-mecircme En dirait-on autant de lrsquoexistence en geacuteneacuteralrdquo (BERGSON 2001 p
50007)
231
infraintelectual ndash mas de uma emoccedilatildeo que eacute um estimulante do pensamento e da
invenccedilatildeo213
Trata-se de uma emoccedilatildeo que responde agrave questatildeo que Deleuze se colocava em
Diffeacuterence et Reacutepeacutetition ldquocomo engendrar pensar no pensamentordquo Deleuze encontraraacute no
teatro de Antonin Artaud uma foacutermula muito geral que natildeo deixa de transpirar certo
bergsonismo ldquoeacute preciso accediloitar nosso proacuteprio inatismordquo Artaud ndash como todo artista de
gecircnio ndash natildeo deixava de saltar tambeacutem ele agrave sua maneira e como conveacutem para fora da
natureza naturada para fora do inatismo que significaraacute para Bergson todo o adquirido
instinto virtual e inteligecircncia atenccedilatildeo agrave vida e imobilidade do pensamento
Em Bergson eacute a emoccedilatildeo criadora que accediloita nosso inatismo engendra o pensar no
pensamento e nos permite saltar para fora do constituiacutedo e do adquirido naturais ndash o
miacutestico eacute esse artista nada suicida que executa ldquoo salto vitalrdquo Natildeo sendo consecutiva nem
a uma ideia nem a uma sensaccedilatildeo tampouco a uma representaccedilatildeo a emoccedilatildeo seraacute geradora
de ideias e de pensamento definindo-se menos por elas e mais como ldquoun eacutebranlement
affectif de lrsquoacircme [] un soulegravevement des profondeursrdquo (BERGSON 2001 p 101140) A
emoccedilatildeo criadora eacute portanto duplamente irredutiacutevel ela natildeo se reduz nem agraves excitaccedilotildees
fiacutesicas superficiais ou agraves sensaccedilotildees que se produzem em um corpo nem agraves ideias e
representaccedilotildees que gera como suas expressotildees Nesse sentido Bergson (2001 p 101241)
poderaacute definir a emoccedilatildeo criadora como emoccedilatildeo supraintelectual querendo significar com
isso natildeo uma superioridade de valor mas uma anterioridade no tempo como a que se
encontra presente na relaccedilatildeo entre aquilo que engendra e aquilo que eacute engendrado O apelo
bergsoniano eacute pois o de natildeo confundir produto e produzir a emoccedilatildeo criadora
supraintelectual definida como sensibilidade profunda eacute o que engendra na medida em
que essa vibraccedilatildeo da integral da alma ldquocrsquoest bien lrsquoimprevisible mecircme qui nous saisitrdquo
(JANVIER 2012 p 215) Natildeo casualmente denotando ainda uma vez a correlaccedilatildeo entre
os devires em sentido ontoloacutegico e nos demais registros (sociais morais ou poliacuteticos por
exemplo) Yala Kisukidi realizaraacute uma releitura do estatuto do fechado e do aberto em
funccedilatildeo da teoria das multiplicidades presentes no Essai sur les donneacutees immediates de la
conscience e natildeo hesitaraacute em vincular ao fechado as multiplicidades de tipo quantitativo e
ao aberto a multiplicidade qualitativa heterogecircnea e contiacutenua que corresponde no Ensaio
agrave proacutepria duraccedilatildeo214
213
ldquo[] lrsquoinvention quoique drsquoordre intelectuel peut avoir de la sensibiliteacute pour substancerdquo (BERGSON
2001 p 101140) 214
ldquoLe clos est le reacutegne du multiple en un sens quantitatif Multipliciteacute des parties qui forment les diffeacuterents
groupes humains Chaque groupe se recconnagraveit comme Un en tant qursquoil est identique agrave lui-mecircme ndash toute
identiteacute supposant lrsquoexclusion et la deacutefense contre lrsquoeacutetranger [] Contre cette multipliciteacute particularisante
232
Assim como os atos de liberdade em profundidade tais como aparecem no Essai
satildeo raros e excepcionais a emoccedilatildeo criadora natildeo deixa de ser uma forma de afetividade
excepcional que se traduz em forccedilas de aspiraccedilatildeo (JANVIER 2012 p 216) No entanto
seriam eles atos exclusivamente individuais prerrogativas dos grandes homens morais das
individualidades excepcionais dos homens de gecircnio e dos miacutesticos Eis a questatildeo que
parece insinuar sub-repticiamente o problema da comunicaccedilatildeo do aberto entre as almas
Aleacutem de jaacute sabermos que o aberto natildeo constitui um dado natural atualizado dois
outros argumentos seratildeo suficientes para respondermos negativamente a essa questatildeo O
primeiro deles reside na circunstacircncia de a alma aberta tal como caracterizada por
Bergson depender com efeito de um esforccedilo individual mas implicar uma postura
transitiva (AMALRIC 2012 p 282) Isso se provaria ateacute mesmo metafoacuterica e
imageticamente Se Bergson insiste nas propriedades incendiaacuterias segundo as quais o
aberto se transmite a atitude vital dos iniciadores dos indiviacuteduos excepcionais constitui
apenas um foco inicial Seu destino eacute tornar-se forccedila de aspiraccedilatildeo em virtude de sua
capacidade imanente de propagar-se de tornar-se coletiva Ao responder por que as
individualidades excepcionais tecircm imitadores Bergson (2001 p 1003-100430-31) diraacute
que ldquoleur existence est un appelrdquo ndash chamado em tudo diverso da pressatildeo quase-meloacutedico
na medida em que implica uma moral integralmente diferente de uma emoccedilatildeo superior
nova e irredutiacutevel Estar na presenccedila de uma personalidade moral eacute encontrar-se por isso
mesmo na presenccedila de uma clareira aberta a fogo
No entanto em algumas passagens difusas mas decisivas veremos que a
necessidade de estar em presenccedila de uma grande personalidade moral relativiza-se
paulatinamente Em primeiro lugar porque haacute ldquo[des] heacuteros obscurs de la vie moralerdquo
(BERGSON 2001 p 47) Pouco a pouco ao lado do exemplo das grandes personalidades
morais de homens excepcionais e de grandes iniciadores encontraremos existecircncias natildeo
menos exemplares e miacutesticas muito proacuteximas de noacutes ndash mas tambeacutem individualidades
distantes podem inflamar-nos certa aspiraccedilatildeo215
Com isso Bergson quer dizer que de
algum modo eacute possiacutevel sentir no mais profundo de noacutes um eco ou uma ressonacircncia do
aberto ndash mas isso tambeacutem implica que o aberto esteja como seu eco ao alcance de todos
Em segundo lugar veremos que estar em presenccedila de uma grande personalidade
moral relativiza-se definitivamente tambeacutem em um sentido que nos permitiraacute encontrar
lrsquoouvert comme assomption drsquoune humaniteacute divine se deacutefinit selon une multipliciteacute qualitative [] elle est
dans le cadre de la philosophie morale de Bergson un effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p 250) 215
ldquoCe pouvait ecirctre un parent un ami que nous eacutevoquions ainsi par la penseacutee Mais ce pouvait aussi bien ecirctre
un homme que nous nrsquoavions jamais rencontreacute []rdquo (BERGSON 2001 p 100430)
233
uma transcriccedilatildeo mais psicoloacutegica do que ontoloacutegica da memoacuteria Natildeo eacute de todo preciso
estar ou ter estado na presenccedila dos grandes homens de bem porque essa presenccedila pode ser
evocada a cada instante pela memoacuteria e pela histoacuteria na medida em que elas envolvem um
ponto de vista interno agrave sua accedilatildeo Os heroacuteis obscuros da vida moral ndash adormecidos talvez
no mais profundo de noacutes mesmos (AMALRIC 2012 p 283) ndash poderatildeo manifestar sua
personalidade em noacutes a todo momento bastaraacute ldquoque nous [les] eacutevoquions ainsi par la
penseacuteerdquo que apreendamos a abertura de uma existecircncia da qual nunca fomos
contemporacircneos de uma vida que nos foi simplesmente contada (BERGSON 2001 p
100430) Nesses dois sentidos ndash o das personalidades insuspeitadamente muito proacuteximas e
o das individualidades muito distantes ndash o aberto tal como manifestado nas vidas desses
heroacuteis obscuros que natildeo cessam de enviar-nos seus apelos eacute a exemplo de sua moral
irredutiacutevel ao individual (AMALRIC 2012 p 282)
Eis o apelo que natildeo cessa de procurar um eco no coletivo como em cada um de
noacutes se o aberto se propaga de maneira incendiaacuteria eacute porque deve haver algo como uma
difusatildeo e comunicaccedilatildeo entre as almas que apenas a imitaccedilatildeo e a ressonacircncia explicariam
O que essas personalidades excepcionais saiacutedas no entanto do mais comum de noacutes
mesmos suscitam eacute uma forccedila de aspiraccedilatildeo capaz de ecoar em cada um de noacutes Em seus
atos encontramos como que um modelo da accedilatildeo que natildeo implica um caminho de todo
dado e simplesmente a trilhar mas permite a uma personalidade entrever no mais
profundo de si a projeccedilatildeo da abertura singular que uma personalidade excepcional se
tornara para ela Por mais que a imite a singularidade irredutiacutevel da personalidade ndash feita
de duraccedilatildeo ndash inibe o idecircntico A propagaccedilatildeo do aberto daacute-se sem duacutevida por imitaccedilatildeo e
mediada por almas individuais transitivas do aberto contudo a imitaccedilatildeo pela qual o aberto
se propaga e se transmite de alma em alma natildeo se reduz a uma mimeacutetica superficial Esse eacute
o sentido da figura do eco ou da ressonacircncia ndash se a emoccedilatildeo criadora eacute uma vibraccedilatildeo da
alma um seu eacutebranlement ecoaacute-la ou ressoar com ela significa vibrar-junto percuti-la no
mais profundo de noacutes mesmos ao mesmo tempo em que ela ganha a tonalidade e a
coloraccedilatildeo singulares e irredutiacuteveis da alma na qual encontrou eco
Por essa razatildeo David Amalric (2012 p 283) natildeo apenas associaraacute a propagaccedilatildeo do
aberto entre as almas agrave inspiraccedilatildeo que o conceito de imitaccedilatildeo inventiva recebe das obras de
Gabriel Tarde mas afirmaraacute tratar-se em Bergson de uma teoria da propagaccedilatildeo imitativa
Por um lado ela daraacute ao fenocircmeno da imitaccedilatildeo e da proacutepria emoccedilatildeo criadora uma
dimensatildeo afetiva ndash como um entusiasmo incendiaacuterio (BERGSON 2001 p 102659) ndash e a
um soacute tempo coletiva por outro a imitaccedilatildeo seraacute um processo que ocorre em profundidade
234
que implica como consequecircncia da proacutepria natureza criativa e profundamente duracional
de toda personalidade um coeficiente de reinvenccedilatildeo e de reapropriaccedilatildeo dessa tensatildeo que se
manifesta originalmente como a abertura dos atos e das almas das individualidades
excepcionais Finalmente eacute como se tudo se tornasse uma experiecircncia coletiva de
libertaccedilatildeo em que a consciecircncia e a representaccedilatildeo satildeo no limite inteiramente
desnecessaacuterias agrave imitaccedilatildeo que como em Tarde seraacute inventiva e involuntaacuteria (AMALRIC
2012 p 284) Assim poderemos enxergar finalmente o fenocircmeno do aberto inserido no
tecido afetivo da sociedade recondicionando parcialmente as formas do viver-junto
Bastaraacute a emoccedilatildeo criadora bastaraacute ter respirado sua atmosfera e ter penetrado uma
emoccedilatildeo para agir de acordo com ela (BERGSON 2001 p 101545) Ela natildeo eacute o efeito da
representaccedilatildeo mas geradora de ideias Ela natildeo introduz sentimentos em noacutes mas introduz-
nos no interior de emoccedilotildees verdadeiramente impessoais como o que fazem as sublimes
canccedilotildees de amor ldquoTelle musique sublime exprime lrsquoamour Ce nrsquoest pourtant lrsquoamour de
personne Une autre musique sera un autre amour Il y aura deux atmosphegraveres de sentiment
distinctes deux parfums diffeacuterents et dans le deux cas lrsquoamour sera qualifieacute par son
essence non par son objetrdquo (BERGSON 2001 p 1191-1192270)216
Eis a sociedade que se abre a que se encontra a meio caminho entre o fechado e o
aberto seu limite ideal Sabemos no entanto que o incecircndio natildeo duraraacute para sempre Logo
ele se apagaraacute e as formas de vida que o eacutelan fundia em uma potecircncia superior que se
confundia com os virtuais e com seu proacuteprio devir voltaratildeo a solidificar-se e a tocar-se
pelas bordas superficialmente como se a vida se fechasse em uma forma de memoacuteria atual
e esquecidiccedila de si mesma As vibraccedilotildees pareceratildeo ter cessado as personalidades
gloriosas desaparecido o fechado pareceraacute ter recoberto integralmente o aberto ldquoCes
deux morales juxtaposeacutees semblent maintenant nrsquoen plus faire qursquoune la premiegravere ayant
precircteacute agrave la seconde un peu de ce qursquoelle a drsquoimpeacuteratif et ayant drsquoailleurs reccedilu de celle-ci en
eacutechange une signification moins eacutetroitement social et plus largement humainerdquo
(BERGSON 2001 p 1016-101747) Tudo se converte entatildeo em estrateacutegias para
combater o fechamento Em responder ldquoO que resta quando nenhum outro devir parece
possiacutevelrdquo Se nos perguntaacutevamos ldquoComo perseverar no abertordquo colocado do ponto de
216
Bergson (2001 p 100836) diraacute ainda sobre a impessoalidade da emoccedilatildeo musical que nos introduz em
emoccedilotildees como signo do Todo ldquoQue la musique exprime la joie la tristesse la pitieacute la sympathie nous
sommes agrave chaque instant ce qursquoelle exprime Non seulement nous mais beaucoup drsquoautres mais tous les
autres aussi Quand la musique pleure crsquoest lrsquohumaniteacute crsquoest la nature entiegravere qui pleure avec elle A vrai
dire elle nrsquointroduit pas ces sentiments en nous elle nous introduit plutocirct en eux comme des passants qursquoon
pousserait dans une danse Ainsi procegravedent les initiateurs en morale La vie a pour eux des reacutessonances de
sentiments insoupccedilonneacutees comme en pourrait donner une symphonie nouvelle ils nous font entrer avec eux
dans cette musique pour que nous la traduisons en mouvementrdquo
235
vista da sociedade que acabou de fechar-se sobre si mesma esse problema transfigura a
questatildeo inicial ldquoComo reabrir o fechadordquo Eis os termos em que o combate contra o
fechamento se transcreve
Eacute a questatildeo do devir em sentido a um soacute tempo ontoloacutegico e biopoliacutetico
cosmoloacutegico e moral que nos coloca no epicentro das relaccedilotildees entre memoacuteria e transiccedilatildeo
Respondendo a ela de uma maneira muito lacocircnica e talvez por isso mesmo infinitamente
pregnante Bergson parece fundir todos os niacuteveis embaralhar todos os registros em uma
foacutermula de todo decisiva ldquoremuons la cendre nous trouverons des parties encore chaudes
et finalement jaillira lrsquoeacutetincelle le feu pourra se rallumer et srsquoil se rallume il gagnera de
proche en procherdquo (BERGSON 2001 p 101747) Poreacutem o que se encontra em jogo
nessa foacutermula Natildeo se trata de estender um pouco mais aleacutem o gozo de suas imagens
iacutegneas do aberto O que o combate contra o fechamento solicita eacute de um lado perseverar
no aberto de outro reabrir o fechado Esse combate natildeo poderia ser mais poliacutetico e vital
Ele natildeo cessa de se dissimular sob as imagens explosivas e incendiaacuterias de que Bergson
(2001 p 825-82614-15) dotou natildeo apenas o aberto mas a proacutepria liberdade e a vida em
LrsquoEacutenergie Spirituelle217
Eacute preciso procurar o tecido de sentido do qual essas imagens natildeo
satildeo senatildeo um signo do aberto da mesma forma como o remexer das cinzas natildeo deve ser
senatildeo o indiacutecio do incendiaacuterio
Prestemos atenccedilatildeo sobretudo a esta foacutermula bergsoniana lacocircnica e magistral agrave
qual David Amalric (2012 p 284-287) dedicou belas paacuteginas Remuons la cendre
Sabemos que as experiecircncias de abertura satildeo sempre efecircmeras sempre ameaccediladas pelo
fechamento ndash lembremo-nos que Bergson natildeo se cansava de dizer que o instinto vigia
Sabemos que ldquo[] apregraves chacune [des expeacuteriences qui tendent vers la socieacuteteacute ouverte] se
referme le cercle momentaneacutement ouverterdquo (BERGSON 2001 p 100532) Parte da
aspiraccedilatildeo social torna-se pressatildeo e a obrigaccedilatildeo termina por recobrir o todo O verbo
remuer conjugado sob a forma imperativa na foacutermula bergsoniana indica ao mesmo
tempo um gesto e um convite agrave accedilatildeo segundo David Amalric (2012 p 285) como se nos
dissesse ldquomecircme lorsque lrsquoouvert a eacuteteacute entiegraverement recouvert par le clos lorsqursquoil nrsquoy a
guegravere plus de personnaliteacutes exceptionelles pour les susciter agrave nouveau il est encore
possible de faire quelque choserdquo218
O que Amalric natildeo nota ndash ao menos natildeo
217
Eacute nesse sentido que Deleuze diraacute que para Bergson ldquoLa liberteacute a preacutecisement ce sens physique lsquofaire
deacutetonerrsquo un explosif lrsquoutiliser pour des mouvements de plus en plus puissantsrdquo (DELEUZE 1966 p 113) 218
Bergson afirma ainda que ldquoLe souvenir de ce qursquoelles [les acircmes mystiques] ont eacuteteacute de ce qursquoelles ont
fait srsquoest deacuteposeacute dans la meacutemoire de lrsquohumaniteacute Chacun de nous peut les revivifier []rdquo (BERGSON 2001
p 104685)
236
expressamente ndash eacute que a escolha do verbo remuer natildeo eacute acidental Com efeito remuer eacute
sinocircnimo de bouger mouvoir deacuteplacer transmite a ideia de movimento de deslocamento
de mudanccedila de lugar e portanto de um gesto que na forma imperativa flexionada na
primeira pessoa do plural faz-se coextensiva de um convite agrave accedilatildeo Assim ldquoremuonsrdquo no
contexto da foacutermula bergsoniana pode ser traduzido sem prejuiacutezo de sentido por
ldquomovamosrdquo ldquoremexamosrdquo ldquodesloquemosrdquo ldquotroquemos de lugarrdquo a cinza o que restou do
aberto No entanto remuer possui em francecircs um emprego figurado muito particular
equivalente a ldquoprovoquer de lrsquoeacutemotionrdquo ldquoemocionar-serdquo Um escritor atento agrave etimologia
como Bergson demonstrou mais de uma vez estar consciente de que ldquomouvoirrdquo e
ldquosrsquoeacutemouvoirrdquo mover e emocionar-se possuem a mesma raiz etimoloacutegica David
Lapoujade (2010 p 73) em uma passagem talvez insoacutelita ndash porque relacionada agrave intuiccedilatildeo
e agrave simpatia ndash natildeo deixou de observar essa proximidade ldquoConnaicirctre pour Bergson crsquoest
toujours entrer dans un mouvement comme on srsquoeacutemeut drsquoune meacutelodie ou comme on entre
dans une danserdquo Contudo se conhecer eacute entrar em um movimento da mesma forma como
uma melodia nos moveemociona ou como entramos em uma danccedila eacute porque ldquoIl y a
quelque chose de plus profond que notre intelligence plus profond mecircme que notre vie
affective ou eacutemotionelle crsquoest le rythme particulier de dureacutee par lequel nous entrons en
relation avec drsquoautres reacutealiteacutesrdquo (Idem ibidem loc cit) - entatildeo jaacute natildeo haveria onde nos
fechar nessa aberta claridade
Remuer la cendre eacute com efeito um princiacutepio de agitaccedilatildeo e movimento um
turbilhonamento e um convite agrave accedilatildeo mas mais profundamente um convite coletivo a
fazer rescender o perfume do tempo Se a cinza eacute o que resta quando nenhum outro devir
parece possiacutevel quando o aberto parece fechar-se e solidificar-se em haacutebito e coacutedigo
moral trata-se de remexer a cinza ndash que natildeo eacute senatildeo a memoacuteria dos atos dos miacutesticos das
grandes personalidades morais como dos heroacuteis obscuros dos iniciadores e artistas de
gecircnio ndash para revivificaacute-la (BERGSON 2001 p 101747 p 104685) A memoacuteria eacute tudo o
que resta quando nenhum outro devir parece possiacutevel ela estaacute por isso mesmo fora do
possiacutevel constitui uma potecircncia virtual memoacuteria do jamais vivido memoacuteria para o futuro
(LAPOUJADE 2010 p 21-22) Fundamento do tempo a memoacuteria nos lembra de que
mesmo a evocaccedilatildeo e a miacutemesis de uma existecircncia miacutestica que jamais conhecemos que
jamais vivemos em nossa proacutepria vida que nunca foi agida e portanto define-se pela
espera e pela espreita que satildeo modos do virtual natildeo apenas estaacute ao alcance de nossa
experiecircncia mas jamais implicaraacute uma repeticcedilatildeo pura e sim uma reapropriaccedilatildeo e uma
imitaccedilatildeo inventivas Toda rememoraccedilatildeo como toda memoacuteria ontoloacutegica e elementar
237
implica o Todo virtual que eacute o fundamento do tempo e que reabre o devir o devir e o
virtual satildeo o que passa por contrabando no menor contiacutenuo de tempo dedicado agrave
reminiscecircncia Como em Matiegravere et meacutemoire eacute a duraccedilatildeo inteira que se atualiza em cada
niacutevel de memoacuteria
Contudo um uacuteltimo problema que nos levaraacute a responder de uma vez por todas agrave
questatildeo de como o aberto se comunica de alma em alma e ainda nos ofereceraacute a antevisatildeo
do que ateacute agora sem a definir chamamos de comunidade de eus profundos Todo esse
problema resume-se em responder ldquoComo o aberto encontra-se ao alcance de nossa
experiecircncia e ao menos de direito da experiecircncia de todosrdquo Eacute nesse ponto que veremos
uma ontologia do virtual que se insinuava como causa profunda da evoluccedilatildeo e das formas
de vida reabrir-se em cosmologia infiltrar-se definitivamente nas formas que engendra
Caterina Zanfi afirma que por meio da dualidade entre aberto e fechado Bergson
introduz em Les Deux Sources uma forma de sociabilidade que natildeo se constitui como
desdobramento do haacutebito e das convenccedilotildees utilitaacuterias mas sim um novo tipo de
sociabilidade ldquoqui puise dans une source plus profonde racine de la coappartenence et de
la solidariteacute des ecirctres fondement plus profond de la intersubjectiviteacuterdquo (ZANFI 2012 p
231) Essa nova forma de sociabilidade esboccedila-se em uma passagem senatildeo prematura de
todo insoacutelita em que Bergson deduz da incomensurabilidade da personalidade do eu
profundo para com todos os demais mas tambeacutem de sua irredutibilidade agraves figuras sociais
do eu superficial a potecircncia de um equiliacutebrio social superior Sabemos que o eu superficial
ndash progenitura do espaccedilo do soacutelido e da inteligecircncia natural ndash eacute desde o Essai a parcela
socializada de noacutes mesmos mas tambeacutem a mais inautecircntica e submissa Ao questionar o
indiviacuteduo em sociedade eacute o indiviacuteduo integral em que o superficial coexiste com o
profundo que o constitui como uniatildeo coesa No entanto se o eu superficial explica a
obrigaccedilatildeo e a moral fechada natildeo explicaraacute a liberdade ou a alma que se abre Por essa
razatildeo Bergson (2001 p 98607) pergunta prefigurando esse novo tipo de sociabilidade
em profundidade de que falou Caterine Zanfi ldquoSrsquoinstaller dans cette partie socialiseacutee de
lui-mecircme est-ce pour notre moi le seul moyen de srsquoattacher agrave quelque chose de solide
Ce le serait si nous ne pouvions autrement nous soustraire agrave une vie drsquoimpulsion de
caprice et de regretrdquo Insinua-se portanto uma outra forma de solidez e solidariedade
social que natildeo a superficial ldquo[] au plus profond de nous-mecircmesrdquo Bergson continua ldquosi
nous savons le chercher nous deacutecouvrirons peut-ecirctre un eacutequilibre drsquoun autre genre plus
deacutesirable encore que lrsquoeacutequilibre superficielrdquo
238
Estariacuteamos diante pois de dois tipos de equiliacutebrio a que correspondem dois tipos
de sociabilidade um superficial outro profundo De acordo com a imagem das plantas
aquaacuteticas que Bergson evoca eacute possiacutevel encontrar estabilidade e solidez em ambos os
sentidos na superfiacutecie a reuniatildeo das folhas permite que umas apoiem-se nas outras mas eacute
em profundidade que cada uma encontra-se firmemente enraizada a um solo comum Haacute
sem duacutevida uma sociedade superficial pela qual cada um manteacutem-se unido aos demais em
razatildeo da pressatildeo exercida por um conjunto impessoal de comandos morais que
correspondem agrave sociedade fechada O novo sentido de nossa vida social que Bergson
introduz pela imagem das plantas aquaacuteticas que se enraiacutezam em um solo comum constitui
esse novo sentido o que chamamos de comunidade de eus profundos na qual ldquo[] dans
lrsquoenracinement dans la vie commun agrave tous les individus on trouve la source meacutetaphysique
de la socialiteacuterdquo (ZANFI 2012 p 231)
Que Bergson se limite agrave imagem das plantas aquaacuteticas enraizadas a um solo comum
da mesma forma como indiviacuteduos estatildeo em profundidade enraizados ao mesmo eacutelan que
eacute a fonte de toda sociabilidade e invenccedilatildeo poliacutetica natildeo se trata de uma metaacutefora inerme e
sem maiores consequecircncias Ela atesta a correlaccedilatildeo entre o ontoloacutegico e todos os demais
niacuteveis de produccedilatildeo da vida de suas formas e de seus acontecimentos materiais ou
espirituais sobre a qual natildeo cessamos de insistir Natildeo casualmente Caterina Zanfi adverte
que a forccedila de uma transformaccedilatildeo manifesta-se sobretudo no indiviacuteduo mas ela eacute
transitiva e tende a tornar-se aspiraccedilatildeo chamado de heroacuteis obscuros da moral na medida
em que ldquofait appel agrave la coappartenence originaire de lrsquoeacutelan vital qui justifie lrsquoaccessibiliteacute
ideacutealement universal agrave ce renouvellement mecircmerdquo (ZANFI 2012 p 231-232) Com efeito
ideacutealement significa aqui de direito Eacute a dimensatildeo profunda da duraccedilatildeo a consistecircncia
virtual de uma memoacuteria elementar que faz o tempo passar que constituiacutea a condiccedilatildeo da
simultaneidade de fluxos atuais e que nesse plano eacute a condiccedilatildeo virtual da comunicaccedilatildeo
em profundidade da emoccedilatildeo criadora de sua propagaccedilatildeo incendiaacuteria e independente tanto
do instinto quanto do haacutebito das ideias como das representaccedilotildees Eis o que o acordo entre
os miacutesticos ndash que testemunham pontos de partida e chegada comuns ndash mas tambeacutem a
dimensatildeo de uma consciecircncia preacute-individual e preacute-subjetiva que garantia a simultaneidade
de fluxos atuais asseguram (ZANFI 2012 p 232 BERGSON 2001 p 1184261)
Eacute certo que Deleuze (1966 p 115-117) havia localizado a emoccedilatildeo criadora
bergsoniana em um intervalo intercerebral resultante dos jogos de invenccedilatildeo entre a
inteligecircncia e a sociedade e que a hesitaccedilatildeo da inteligecircncia natildeo seria senatildeo a imitaccedilatildeo
singularizante de uma hesitaccedilatildeo superior da duraccedilatildeo nas coisas A liberdade entatildeo soacute eacute
239
dada como resistecircncia A pressatildeo e o todo da obrigaccedilatildeo como resistecircncia agraves resistecircncias
satildeo infinitamente desdobradas nesse jogo Tudo se passa como se nesse intervalo viesse
atualizar-se em certos niacuteveis psicoloacutegicos mas tambeacutem sociais e poliacuteticos ndash que coexistem
com o Todo virtual do qual dependem ndash uma imensa memoacuteria cosmoloacutegica
Encontrariacuteamos desse modo a forma de solidariedade e o solo mais proacuteprio no qual estaacute
enraizada uma comunidade de eus profundos que encontra no aberto seu limite de direito
Bergson por sua vez apresenta prefiguraccedilotildees de que uma comunicaccedilatildeo incendiaacuteria
instala-se em profundidade e eacute ao mesmo tempo a fonte original de toda transformaccedilatildeo
social e poliacutetica Ela eacute a fonte ontoloacutegica de toda fenomenologia da revoluccedilatildeo espeacutecie de
uacuteltima resposta para aleacutem da qual nada haacute a procurar (JANVIER 2012 p 221) para
justificar uma mudanccedila na reparticcedilatildeo de nossos desejos que por ser um prolongamento da
proacutepria vida eacute indeterminada e imperceptiacutevel A arte e a miacutestica colocam-nos cada uma agrave
sua maneira no interior de uma emoccedilatildeo permitem perceber que a emoccedilatildeo criadora
estabelece-se constitui certa atmosfera instala-se em uma comunidade de eus profundos e
propaga-se de alma em alma como o aberto Assim a criaccedilatildeo artiacutestica que inicialmente
choca pode terminar por alterar o proacuteprio gosto do puacuteblico A obra expressatildeo da criaccedilatildeo ndash
ao mesmo tempo forccedila e mateacuteria ndash pode operar essa transformaccedilatildeo na medida em que ela
imprime um eacutelan que o artista comunicou que se confunde com aquele do artista que
permanece invisiacutevel e presente nele (BERGSON 2001 p 103875) O miacutestico instaura
essa mesma comunicaccedilatildeo em profundidade Ocorre agraves personalidades miacutesticas o mesmo
que sucede aos artistas de gecircnio que produzem obras que nos ultrapassam (Idem ibidem p
1157226)
Nada aleacutem de uma comunidade de eus profundos que se compotildee com a atmosfera
de uma emoccedilatildeo criadora que comunica o aberto de alma em alma como um entusiasmo
incendiaacuterio de uma verdadeira comunidade espiritual amorosa e ilimitada pode explicar
que homens ateacute outro dia humildes e submissos tenham resolvido repentinamente natildeo
mais querer morrer de fome criar direitos que exprimem um amor tatildeo universal aos
homens quanto a emoccedilatildeo criadora que ambienta a comunidade de eus profundos que natildeo
se confunde em nenhum grau com uma famiacutelia um grupo social ou uma paacutetria mas
testemunha um universalismo imanente ao Todo vital O aberto o devir e a ruptura que os
periacuteodos revolucionaacuterios datildeo a ver satildeo apenas o desdobramento no niacutevel poliacutetico de uma
criaccedilatildeo ontologicamente mais profunda que natildeo cessa de se produzir no universo Sua
moral realiza-se no caminho inverso ao da natureza em tudo contraposto ao fechado a
moral aberta eacute incompatiacutevel com a segregaccedilatildeo a hierarquia a disciplina e a guerra Em
240
tudo imanente agrave proacutepria vida a moralidade e as almas abertas compreendem o Todo o
virtual A democracia os direitos humanos o universalismo eacutetico e a paz tornam-se formas
de perseverar no aberto de combater o fechamento em seu proacuteprio terreno ndash embora
incessantemente ameaccediladas por ele Nesse extremo virtual ao qual tendem a intuiccedilatildeo
miacutestica e a comunidade de eus profundos poreacutem jaacute natildeo encontraremos nada semelhante
ao homem A comunidade de eus profundos consiste nos virtuais jamais vividos por nossos
eus superficiais mas coexistentes com eles Profundamente pessoais os virtuais do eacutelan
testemunham a um soacute tempo a presenccedila do impessoal em noacutes do advento de uma
humanidade divina do super-homem que o artista toca pelas bordas e que o miacutestico jaacute
pode ser inteiramente ndash espeacutecie que superou o homem que se compotildee de uma soacute
singularidade centelha obscura do aberto incecircndio no tecido cerrado e gris das formas de
vida
Na medida em que esclarecemos esse novo tipo de sociabilidade a comunidade de
eus profundos como substrato afetivo-espiritual inconsciente ou como fonte transicional
torna-se necessaacuterio compreender os termos praacuteticos e poliacuteticos em que ela se desdobra
Embora permaneccedilamos atentos agrave correlaccedilatildeo entre uma ontologia do virtual e seus
desdobramentos em uma filosofia poliacutetica os temas da transiccedilatildeo e do aberto ndash como os
papeis que a democracia e os direitos humanos assumiratildeo na filosofia poliacutetica bergsoniana
ndash revelaratildeo ao cabo o uacuteltimo niacutevel em que a memoacuteria constitui condiccedilatildeo necessaacuteria agrave
transiccedilatildeo poliacutetica em sentido institucional e social Em profundidade nos niacuteveis mais
puramente ontoloacutegicos vimos a memoacuteria confundir-se ao infinito com um virtual que eacute o
proacuteprio tecido sobre o qual os atuais se bordam isolamos uma memoacuteria elementar e
ontoloacutegica que constituiacutea o fundamento do passar do tempo que registrando os fluxos
duracionais sem cessar rompia o ciacuterculo do presente no qual o atual encontrava-se
enodado e o empurrava no sentido do devir O que temos ateacute aqui eacute uma coleccedilatildeo de
diversos niacuteveis ou de diversos fluxos coexistentes graccedilas ao virtual do qual procedem
desse movimento universal que coincide com o da proacutepria vitalidade inorgacircnica do eacutelan de
seus virtuais da potecircncia diferencial de sua multiplicidade heterogecircnea
Nesse quadro vimos a proacutepria liberdade surgir como o representante psicoloacutegico ou
poliacutetico-social de um operador mais profundo ndash o imprevisto ontoloacutegico que a duraccedilatildeo
implica Toda transformaccedilatildeo social coletiva natildeo deriva como pudemos perceber de outra
fonte A figura impessoal e preacute-individual do miacutestico constitui sua prova implicando uma
moralidade de aspiraccedilatildeo e supraintelectual eacute a proacutepria forma de vida da espeacutecie a natureza
241
naturada que o miacutestico supera isso contudo natildeo eacute possiacutevel senatildeo a partir do contato com
o eacutelan vital com o precursor sombrio do devir que sob a forma do amor universal e de
uma emoccedilatildeo criadora que se transmite de alma em alma que faz seus apelos ao mais
profundo de noacutes mesmos e natildeo cessa de procurar por ressonacircncias eacute uma forma de afeto
do proacuteprio tempo
Eacute pelo proacuteprio tempo que uma forma de vida se deixa afetar em profundidade para
entrar em um devir O mesmo vale para qualquer transformaccedilatildeo social para toda transiccedilatildeo
No entanto resta explicar como a democracia e os direitos humanos podem constituir no
bergsonismo formas de perseverar duravelmente no aberto Seria preciso encontrar o
limite da questatildeo ldquocomo perseverar no abertordquo ldquocomo combater o fechamentordquo
interrogando aquilo que eacute mais proacuteprio da Teoria da Justiccedila de Transiccedilatildeo a transcriccedilatildeo dos
problemas do aberto em dispositivos concretos e em estruturas institucionais Eis o que nos
coloca diante de um aparente paradoxo procurar modos duraacuteveis de perseverar no aberto
natildeo implicaria coagulaacute-lo em uma forma fazecirc-lo fechar-se sobre si No limite natildeo
estariacuteamos combatendo o fechamento com mais fechamento Satildeo precisamente essas
questotildees que exigem descer aos desdobramentos praacuteticos e poliacuteticos da metafiacutesica vital e
virtual de Bergson Tais desdobramentos revelaratildeo natildeo apenas a relaccedilatildeo entre uma moral
universal imanente e concreta com a democracia e os direitos humanos mas a centralidade
destes uacuteltimos para a produccedilatildeo de transformaccedilatildeo social Ao mesmo tempo seraacute possiacutevel
compreender de que maneira a memoacuteria das violaccedilotildees de direitos humanos as narraccedilotildees da
violecircncia ndash em niacuteveis social e institucional ndash podem encontrar-se no coraccedilatildeo dos devires
sem os quais nenhuma transiccedilatildeo se produz Eacute no sentido desse desdobramento derradeiro e
limiar que devemos conduzir nossa investigaccedilatildeo
Caso se compreenda a exemplo de Bergson a ldquosociedade que se abrerdquo como a
realidade da maior parte das sociedades compostas de um misto de tendecircncias ao
fechamento e agrave abertura seraacute possiacutevel revelar que uma questatildeo praacutetica e poliacutetica se destaca
na anaacutelise da sociedade fechada e se relaciona com a subsistecircncia de uma tensatildeo natural ao
fechamento ldquo[] puisque les tendences de la socieacuteteacute close nous ont paru subsister
indeacuteracinables dans la socieacuteteacute qui srsquoouvre puisque tous ces instincts de discipline
convergeaient primitivement vers lrsquoinstinct de guerre nous devons nous demander dans
quelle mesure lrsquoinstinct originel pourra ecirctre reacuteprimeacute ou tourneacutee []rdquo (BERGSON 2001 p
1220307) O que estaacute no coraccedilatildeo da filosofia poliacutetica bergsoniana aparece entatildeo muito
claramente trata-se de encontrar na moral de aspiraccedilatildeo que o aberto implica e para a qual
empurra as almas que se abrem uma possibilidade de superar a forma de sociabilidade
242
produzida de acordo com a natureza e com o instinto virtual que vigia as variaccedilotildees da
inteligecircncia De seu ponto de vista mais concreto e praacutetico trata-se de transformar a ordem
social das organizaccedilotildees humanas na medida em que elas satildeo atravessadas por um misto de
tendecircncias ao aberto e ao fechado (KISUKIDI 2012 p 246) A tendecircncia ao fechamento
aprisiona o homem no interior das formas de sociabilidade superficiais em formas de
organizaccedilatildeo e em modos de vida jaacute adquiridos de outro lado a tendecircncia agrave abertura renova
as alianccedilas entre homem e virtual e quebrando o ciacuterculo antropoloacutegico no interior do qual
a natureza o concebeu permite-lhe reencontrar sua destinaccedilatildeo metafiacutesica ao mesmo tempo
em que coloca em jogo suas formas de vida seus modos de existecircncia e relaccedilatildeo social
Na medida em que o aberto impulsiona o homem para aleacutem de si mesmo seraacute na
direccedilatildeo do eacutelan do qual procede ndash contraefetuaccedilatildeo virtual ndash mas tambeacutem na direccedilatildeo do
Todo por meio de processos de atualizaccedilatildeo que criam as linhas nas quais essa nova
tomada de contato com o eacutelan vital iraacute dividir-se e atualizar-se ateacute certo limite A alma que
se abre em direccedilatildeo ao Todo diz Bergson vai mesmo muito longe Natildeo se confunde com
uma alma fechada que ama sua famiacutelia sua paacutetria os grupos sociais aos quais pertence ou
afirma cumprir as foacutermulas vazias superficialmente universais a alma que se abre goza de
um amor que se estende a toda a humanidade a toda a natureza aos virtuais inorgacircnicos da
proacutepria vida (BERGSON 2001 p 1006-100734) Sob o aberto pulsa uma eacutetica
universalista em profundidade capaz de explicar a correlaccedilatildeo entre as transformaccedilotildees
sociais e a consolidaccedilatildeo da democracia e dos direitos humanos
Contudo prestemos atenccedilatildeo a essa alma que se abre por um momento e vejamos
se natildeo encontramos nela a atitude miacutestica que exprime a continuidade do eacutelan vital da qual
ela mas tambeacutem toda a espeacutecie humana procede finalmente Tanto o indiviacuteduo como a
espeacutecie humana representam interrupccedilotildees momentacircneas do eacutelan criador sua parada diante
de um obstaacuteculo A centralidade da figura do miacutestico explica-se em virtude do que sua
experiecircncia demonstra finalmente ndash a possibilidade da abertura da conversatildeo do estaacutetico
em dinacircmico da dissoluccedilatildeo da forma em energia da reabertura do que parecia fechado Se
mais aleacutem Bergson poderaacute convidar agrave accedilatildeo aqueles que experimentam um tempo de
fechamento praticamente absoluto dizendo ldquoRemuons la cendrerdquo exaltando os heroacuteis
obscuros da moral ou as narrativas de vidas de homens memoraacuteveis que jamais
conhecemos eacute porque recuperamos as existecircncias miacutesticas naquilo que elas tem de
poderosamente impessoal no ponto em que uma vida se confunde com um modo de
subjetivaccedilatildeo em ato com a efetuaccedilatildeo de um prolongamento do eacutelan vital com o qual
tomou contato Essa superaccedilatildeo de si ndash de que todo indiviacuteduo eacute capaz no limite ao menos
243
de jure ndash soacute eacute possiacutevel como acesso a uma comunidade de eus profundos capaz de
conceber uma outra forma de relaccedilatildeo social que jaacute natildeo se confunde com nenhum niacutevel
comunitaacuterio superficial (famiacutelia paacutetria foacutermulas universalistas abstratas e descarnadas
tampouco impeacuterio territoacuterio classe social ou gecircnero) Ao lado dos laccedilos profundos que
nos remetem a um eacutelan comum agrave metafiacutesica da criaccedilatildeo da qual todos tomamos parte em
profundidade haacute sempre o modo de subjetivaccedilatildeo que constitui um universal na sua
diferenccedila e uma diferenccedila em seu universal Eacute nesse sentido que Yala Kisukidi (2012 p
247) afirmaraacute que eacute o miacutestico como sujeito sem identidade que permitiraacute natildeo apenas uma
teoria do impessoal mas a refundaccedilatildeo do universalismo moral bergsoniano de acordo com
uma metafiacutesica da criaccedilatildeo O miacutestico eacute portanto a figura paradigmaacutetica do sujeito sem
identidade ndash que natildeo designa nada aleacutem do eu profundo em continuidade com o real
compreendido como criaccedilatildeo de imprevisiacutevel novidade (KIDUSIKI 2012 p 248)219
Com efeito eacute preciso compreender de um lado que o universalismo bergsoniano
natildeo estaacute jamais dado natildeo eacute desde sempre atual Assim como a abertura de uma alma o
universalismo exige o esforccedilo de uma criaccedilatildeo de si por si mesmo de uma abertura de si ao
impessoal que designa jaacute o Todo com seus virtuais O que estaacute dado pela natureza o que
eacute sempre jaacute atual eacute a pulsatildeo de fechamento e o haacutebito de contrair haacutebitos a autoridade a
hierarquia e o fixismo a guerra e as formas cerradas de sociabilidade que natildeo cessam de
vigiar as variaccedilotildees virtuais em que o tecido social se engaja e entreteacutem Seu fundamento
tampouco seraacute racional e esclarecido na medida em que ele pulsa do proacuteprio eacutelan vital a
razatildeo constitui apenas uma faculdade na qual as tendecircncias inteligentes depuseram o eacutelan
assim como natildeo pode explicaacute-lo natildeo pode explicar um universalismo que encontra nele
seu enraizamento imanente e profundamente ontoloacutegico
O universalismo moral bergsoniano dependeraacute desse modo integralmente de uma
metafiacutesica da criaccedilatildeo contudo sabemos que a criaccedilatildeo implica pelo menos duas metades
uma atual e outra virtual A criaccedilatildeo em ato a pura exigecircncia de criaccedilatildeo que se confunde
com o proacuteprio eacutelan vital encontra-se sem duacutevida no registro do virtual aquilo que eacute
criado segundo sua proacutepria linha divergente que parte do virtual e cria a si mesma em
seus proacuteprios termos designa uma expressatildeo dessa energia criadora (KISUKIDI 2012 p
248-249) De modo anaacutelogo Deleuze (1966 p 117-118) teraacute descoberto na emoccedilatildeo
criadora trecircs sentidos da criaccedilatildeo 1) enquanto ela exprime a criaccedilatildeo em sua totalidade 2)
219
ldquoLe mystique appelle au deacutepassament des deacuteterminations de lrsquoespegravece []rdquo (KISUKIDI 2012 p 249) ou
ainda ldquo[] lrsquoespegravece humaine est traverseacutee par lrsquouniteacute drsquoun courant qui lrsquoappelle agrave se deacutepasser en se recreacuteantrdquo
(Idem ibidem p 251)
244
enquanto ela cria a obra na qual se exprime 3) enquanto ela comunica essa variabilidade
inventiva de alma em alma o que implica descobrir sob a criaccedilatildeo uma espeacutecie de
memoacuteria coacutesmica capaz a cada vez de encarnar-se em emoccedilatildeo e de comunicar ndash e de
sempre tornar a comunicar ndash o eacutelan Assim como a memoacuteria pura servia-se do jogo
intervalar entre excitaccedilatildeo e reaccedilatildeo para insinuar-se em lembranccedilas-imagens a memoacuteria
coacutesmica do eacutelan serve-se do jogo intervalar entre pressatildeo e resistecircncia para romper o
ciacuterculo social que prende o indiviacuteduo a determinadas formas de vida220
A memoacuteria eacute pois
em cada um dos niacuteveis em que se atualiza integralmente sempre profundamente vital
Assim se o que Yala Kusikidi chamou de ldquouma refundaccedilatildeo da moral universalrdquo no interior
da filosofia poliacutetica de Bergson soacute pode ocorrer em funccedilatildeo de uma metafiacutesica da criaccedilatildeo ndash
mesmo porque o universalismo jamais eacute um a priori natildeo se encontra jamais natural ou
biologicamente dado ndash seraacute forccediloso reconhecer que o universalismo soacute pode consistir em
um efeito de criaccedilatildeo221
Poreacutem em que sentido deve-se compreender esse universalismo ligado ao
paradigma subjetivo nomaacutedico que eacute o miacutestico Que ele natildeo seja a priori e racional mas o
efeito afetivo de uma criaccedilatildeo jaacute pode fazer-nos entrevecirc-lo como concreto e imanente agrave
vida Assim como a figura nocircmade do miacutestico efetua em sua proacutepria existecircncia um
universalismo que eacute o efeito de uma criaccedilatildeo ndash que dissolvendo sua identidade individual e
de grupo descortina a comunidade de eus profundos que ele jaacute integra e que natildeo se
ressente de nenhum dos limites impostos pelo fechamento (impeacuterio paacutetria classe famiacutelia
ou gecircnero) ndash poderia haver em um niacutevel coletivo um universalismo concreto e imanente
agrave proacutepria vida como efeito de uma criaccedilatildeo e de uma emoccedilatildeo coletivas que encontram na
comunidade de eus profundos o solo comum impessoal no qual um novo tipo de
sociabilidade e de equiliacutebrio superiores poderiam ser encontrados Nesse ponto a
dissoluccedilatildeo das identidades individual e de grupo assinala a coincidecircncia entre o impessoal
e o universal
No entanto seria ainda o caso de perguntar se essa moral universal concreta e
imanente que encontra no impessoal o traccedilado dos destinos metafiacutesicos da proacutepria
humanidade consegue verdadeiramente desprender-se das contingecircncias em que parece
originar-se Em outras palavras como o misticismo cristatildeo ndash que Bergson como vimos
220
ldquoEt qursquoest-ce que crsquoest que cette eacutemotion creacuteatrice sinon preacuteciseacutement une Meacutemoire cosmique qui
actualise agrave la fois tous les niveaux qui libegravere lrsquohomme du plan qui lui est propre pour en faire un creacuteateur
adeacutequat agrave toute le mouvement de la creacuteationrdquo (DELEUZE 1966 p 117) 221
ldquoLrsquouniversel nrsquoest jamais donneacute mais est toujours le produit drsquoun effet de creacuteationrdquo (KISUKIDI 2012 p
250)
245
reputa ser o misticismo completo ndash eacute mais miacutestico que cristatildeo mais impessoal e universal
que contingencial Metodologicamente Bergson soacute se aproxima do misticismo cristatildeo
para reputaacute-lo a experiecircncia miacutestica completa por excelecircncia na medida em que ele possa
dissociar-se dos conteuacutedos de crenccedila proacuteprios ao catolicismo A miacutestica eacute uma experiecircncia
de retomada de contato com o eacutelan vital e natildeo haacute nenhum conteuacutedo de crenccedila a procurar
para aleacutem disso pois eacute a experiecircncia suprema universal (ao alcance de todos de jure) que
promove a coincidecircncia parcial de nossa vida com algo que nos excede em potecircncia ndash
chamemo-lo Deus ou eacutelan vital Nesse aspecto haacute uma distinccedilatildeo bastante precisa que
permite ao bergsonismo utilizar-se das experiecircncias miacutesticas cristatildes independentemente da
mateacuteria religiosa contingente e particular sobre a qual ela parece aplicar-se (KISUKIDI
2012 p 253) Que certa experiecircncia miacutestica seja aparentemente cristatilde estabeleccedila-se no
sentido do cristianismo de seus textos e conteuacutedos de crenccedila a impessoalidade e o
nomadismo miacutesticos provariam sem cessar o seu poder de passar-se do particular do
contingente e dos seus siacutembolos atingindo no contato com o eacutelan uma universalidade
puramente concreta e imanente agrave proacutepria vida Para Bergson evangeacutelico quer dizer em
profundidade universal assim como divino quer dizer virtual e vital Outra interpretaccedilatildeo
tornar-se-ia aporeacutetica na medida em que o misticismo soacute toca o eacutelan porque contraefetua
sua proacutepria forma contingencial o dado atualmente como efeito de um esforccedilo e de uma
criaccedilatildeo em profundidade Atingimos portanto no misticismo a diferenccedila profunda
inteiramente indiferente agraves diferenccedilas superficiais Nesse contexto de nenhum outro modo
impessoal e universal poderiam confundir-se ao infinito de nenhuma outra maneira o
particular superficial (identidades grupos) poderia ser absorvido no Todo universal que o
virtual designa
Disso decorre como Yala Kisukidi (2012 p 254) bem percebe que natildeo haja um
modelo abstrato nem mesmo o derivado de uma faculdade reacutegia de humanidade no
universalismo bergsoniano Uma vez que o destino metafiacutesico imanente do homem seja
precisamente o super-homem natildeo haveraacute nenhum humanismo intraespeciacutefico definidor do
amor ao Todo Definir uma humanidade por outro termo senatildeo o indefinido e talvez vago
aberto seria recair em construccedilotildees antropoloacutegicas artificiais tendentes precisamente agravequilo
que o aberto desejava conjurar na natureza (a exclusatildeo a dominaccedilatildeo a guerra)
Se pudemos revelar um quadro eacutetico do qual o aberto participa no sentido de um
universalismo concreto e imanente agrave proacutepria criaccedilatildeo trata-se de diagnosticar de que
maneira o aberto pode ser transcrito em termos praacuteticos e poliacuteticos investigando de que
forma a democracia e os direitos humanos encontram aiacute sua inserccedilatildeo O espaccedilo poliacutetico das
246
sociedades concretas natildeo eacute integralmente fechado ou aberto estes satildeo limites puros ideais
ou metafiacutesicos designam antes tendecircncias que efetuaccedilotildees nuas de tal modo que o espaccedilo
poliacutetico seraacute definido mais em funccedilatildeo do misto das duas tendecircncias que de apenas uma
delas Se sociedades concretas estatildeo mais proacuteximas portanto de sociedades que se abrem
do que de sociedades pura e simplesmente fechadas ou abertas ndash limites ideais aos quais as
formas de relaccedilotildees coletivas satildeo incessantemente puxadas
Todo devir democraacutetico seraacute explicado nesses termos a partir de um duplo
registro a comunidade de eus profundos por um lado e por outro uma emancipaccedilatildeo da
natureza O que constitui a condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica que visa agrave
transformaccedilatildeo social em geral agravequilo que chamamos de transiccedilatildeo ndash a emoccedilatildeo criadora que
ecoa na comunidade de eus profundos e reabre o que permanecera ateacute entatildeo fechado ndash
vem unir-se a uma tendecircncia de emancipaccedilatildeo da natureza que soacute pode efetuar-se na medida
em que o homem resiste a ela em que o profundo resiste a perseverar no social e no
superficial que o define222
Bergson natildeo deixou de entrever desde o iniacutecio de Les Deux
Sources que a emancipaccedilatildeo humana em relaccedilatildeo agrave natureza naturada e agraves formas de
existecircncia e de sociabilidade que ela implica Se Bergson (2001 p 98607) pudera dizer
que o indiviacuteduo pertence tanto agrave sociedade como a si mesmo fora para mostrar a
coexistecircncia diferencial entre dois ritmos um que define as ilusotildees de um sujeito fixo que
se resolve na camada mais superficial de uma identidade forjada em funccedilatildeo e por forccedila das
convenccedilotildees sociais outro que define a verdade sombria de um sujeito integralmente
constituiacutedo pelos tempos da memoacuteria e do devir e que como tal toma parte na
comunidade universal de eus profundos como uma comunidade que vem Pertencendo a si
mesmo em profundidade o indiviacuteduo torna-se o portador do novo anunciador da ruptura e
precursor das emergecircncias do profundo que contraefetua e dissolve o superficial
ldquoLrsquoindividu qui fait partie de la socieacuteteacute peut infleacutechir et mecircme briser une neacutecessiteacute qui
imite celle-lagrave [de lrsquoorganisme]rdquo (BERGSON 2001 p 98507) Que o eu bergsoniano
esteja sujeito a um duplo regime o do si e o do social pontos em que ele eacute ora vitalidade
inorgacircnica selvagem ora organizaccedilatildeo sob uma forma cortecircs e sociaacutevel eacute apenas a tensatildeo e
a resistecircncia do profundo em relaccedilatildeo ao superficial que explicaraacute a passagem do superficial
222
A comunidade de eus profundos que emerge de uma divisatildeo do sujeito jaacute presente no Essai eacute pressentida
por Yala Kisukidi (2012 p 258) como o que integra a proacutepria condiccedilatildeo de possibilidade de uma accedilatildeo poliacutetica
visando agrave transiccedilatildeo ldquoEn effet la condition de possibiliteacute drsquoune action politique visant la transformation de
lrsquoorganisation sociale et une certaine forme drsquoeacutemacipation de la nature srsquoarticule autour drsquoune theacuteorie de la
division du sujet reprenant la division entre le moi social et le moi profond deacutevelopeacutee dans lrsquoEssai sur les
donneacutees immeacutediates de la consciencerdquo
247
ao profundo ldquoCrsquoest cette reacutesistance qui se meut en action et rend possible lrsquoouverture des
socieacuteteacutesrdquo (KISUKIDI 2012 p 259)
Por essa razatildeo insistimos tatildeo longamente nos conceitos de emoccedilatildeo imitaccedilatildeo e
criaccedilatildeo como essencialmente ligados agrave possibilidade de um trabalho coletivo de resistecircncia
agrave natureza naturada Sua dimensatildeo coletiva explica-se ontologicamente A comunidade de
eus profundos natildeo eacute apenas o ponto em que o impessoal se confunde com o universal mas
aquele em que esses dois termos coincidem em profundidade ndash ontologicamente ndash com o
comum que jaacute estaacute para aleacutem de todo grupo coletivo concreto Se a miacutestica eacute uma
experiecircncia que estaacute virtualmente ao alcance de todos ndash o que implica que ela natildeo esteja
dada nem seja atual ndash eacute porque ela desenha um territoacuterio ilimitado transfronteiriccedilo e
cosmopolita em que o impessoal o universal e o comum se confundem ao infinito
Procuremos no entanto compreender a correlaccedilatildeo entre democracia e resistecircncia
que recebe em Bergson uma importacircncia vital A democracia seria sob todos os aspectos
vista como um efeito de criaccedilatildeo originado da resistecircncia coletiva em ceder agraves normas
sociais que a natureza envolve baseadas na exclusatildeo na propriedade individual e coletiva
na guerra no dimorfismo do homem social nas fabulaccedilotildees que legitimam a dominaccedilatildeo de
grupos sociais ou chefes baseadas em raccedila estirpe etc (BERGSON 2001 p 1213-
1214298-299 e p 1036-103773-74 e AMALRIC 2012 p 290) Bergson caracterizou
ademais o todo da obrigaccedilatildeo como ldquoresistecircncia agraves resistecircnciasrdquo precisamente em virtude
da tensatildeo que o jogo entre a liberdade dos eus profundos e as exigecircncias de uma
sociabilidade superficial parecem gerar a todo momento O que define o espaccedilo
democraacutetico eacute portanto a tensatildeo entre as tendecircncias agrave abertura e ao fechamento que criam
certa resistecircncia agrave natureza e agrave fixidez da forma de vida que ela engendrou como parada do
eacutelan criador Tudo se passa como se houvesse uma atitude correspondente a essa
resistecircncia mais original e mais profunda voltada contra o instinto virtual que organiza o
haacutebito contra o haacutebito de contrair haacutebitos e que combate a feiccedilatildeo conservadora do rapport
intersubjetivo nas sociedades humanas saiacutedas das matildeos da natureza haveria um estado de
alma democraacutetico capaz de resistir a essas tendecircncias de fechamento (KISUKIDI 2012 p
260)
Sabemos que o aberto como o universalismo concreto e imanente ao Todo vital ou
mesmo a democracia natildeo satildeo jamais dados atuais mas efeitos de uma criaccedilatildeo isso
permitiraacute caracterizar a poliacutetica precisamente como uma accedilatildeo coletiva de abertura do
fechado que corresponde em todos os seus pontos agrave liberaccedilatildeo das determinaccedilotildees naturais
das fabulaccedilotildees que naturalizam as articulaccedilotildees de dominaccedilatildeo social e poliacutetica mas tambeacutem