Memória e Narrativa Em “Araguaia Campo Sagrado

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    V Reunio Equatorial de Antropologia e XIII Reunio de Antroplogos do Nortee Nordeste.

    De 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE.

    Grupo de Trabalho: Antropologia do Cinema: entre narrativa, polticas epoticas.

    Ttulo do Trabalho :MEMRIA E NARRATIVA EM ARAGUAIA CAMPOSAGRADO.

    Autor: Fbio Tadeu de Melo [email protected]

    Universidade Federal do ParUFPA.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    MEMRIA E NARRATIVA EM ARAGUAIA CAMPO SAGRADO1.

    Fbio Tadeu de Melo PessaUniversidade Federal do Par

    O presente trabalho pretende abordar a memria dos camponeses sobre aGuerrilha do Araguaia, episdio ocorrido na regio conhecida como Bico doPapagaio, que abarca a fronteira dos atuais estados do Tocantins, Maranho ePar, a partir do documentrio intitulado Araguaia, Campo Sagrado.Trabalhando com as narrativas orais contidas no documentrio, podemosapreender um pouco das histrias de vida dos camponeses tendo como focoas narrativas e representaes construdas em relao Guerrilha doAraguaia, entre as clivagens construdas pelo PC do B, o partido da guerrilha,e os militares, que supostamente combatiam as aes dos subversivos nafloresta.Portanto, trabalhamos com a noo de memria enquanto campo dedisputa (Pollack, 1989) e o documentrio como representao de umadeterminada realidade, representao aqui entendida a partir da contribuiode Roger Chartier (1991) que tambm considera as prticas ou atitudes dossujeitos sociais, os seus modos de fazer, e que geram os modos de estar ever o mundo, modos muitas vezes conflitantes com as prticas erepresentaes oficiais.

    Palvras-chave: Cinema, Memria, Narrativas Orais, Campesinato.

    Introduo: a memria como campo de disputa.

    No dia 17 de novembro de 2011, foi lanado em Belm, na Jornada de

    Extenso da UFPA, o filme-documentrio Araguaia, Campo Sagrado2.

    Dirigido pelo professor e documentarista Evandro Medeiros, o filme aborda as

    diversas memrias construdas por camponeses, ex-mateiros e ex-guias do

    Exrcito brasileiro acerca da Guerrilha do Araguaia, movimento armado

    organizado por integrantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), entre os

    anos finais da dcada de 1960, quando os primeiros membros do PCdoB

    1 Este artigo parte integrante de minha Dissertao de Mestrado em fase de concluso,intitulada O pensamento radical no movimento campons: histria e memria da lutacamponesa em Conceio do Araguaia Par (1975-1985), no Programa de Ps-Graduaoem Histria Social da AmazniaUFPA.2

    Araguaia Campo Sagrado. Direo Geral: Evandro Medeiros. Labour Filmes Produes. Anode Produo: 2010-2011.

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    chegaram regio Araguaia, e 1974, quando os ltimos integrantes da

    Guerrilha foram mortos pelo Exrcito na regio chamada de Bico do Papagaio

    e que compreende os atuais estados do Par, Maranho e Tocantins, como

    mostra o mapa na figura 1.

    Figura 1. Mapa da Regio do Bico do Papagaio onde ocorreu a Guerrilha doAraguaia, com a discriminao dos vrios destacamentos criados pelo PCdoB.Fonte:MORAIS, Tas; SILVA, Eumano.Operao Araguaia:os arquivos secretos da guerrilha.2. ed. So Paulo: Gerao Editorial, 2005, p. 18.

    Segundo Evandro Medeiros, a ideia de produzir o documentrio tem a

    ver com a necessidade de esclarecer melhor um episdio ainda carente de

    pesquisas e fontes, principalmente se termos como referncia o silncio

    imposto aos moradores da regio. O objetivo era o de narrar a histria a partir

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    das memrias dos camponeses de modo a torn-los protagonistas de sua

    prpria histria3.

    O documentrio e a narrativa nele contida veem ao encontro da histria

    com o que alguns chamam de renascimento da narrativa. Peter Burke fala dasuperao por parte da historiografia do desprestgio do poltico, do

    acontecimento e da narrativa. A historiografia produzida nos anos de 1950 e

    1960, principalmente, assentada nas anlises das estruturas de longa durao,

    privilegiava anlises das estruturas de produo, da quantificao dos dados,

    da srie de documentos, das anlises demogrficas. Citando o clebre livro de

    Fernand Braudel, O Mediterrneo, Burke afirma que os historiadores estruturais

    encaravam os acontecimentos como a superfcie do oceano da histria(BURKE: 1992, p. 328).

    Para a historiadora Marieta de Moraes Ferreira, a fundao na Frana

    da revistaAnnales, em 1929, e da cole Pratique des Hautes tudes, em 1948,

    daria novas perspectivas a produo historiogrfica, focando agora uma

    histria total. No lugar de uma histria centrada nos grandes personagens, o

    foco seria o estudo das sociedades em seus mltiplos aspectos. No entanto,

    a questo da objetividade permanecia como preocupao fundamental e a

    narrativa e estudos focados no tempo presente ficariam em segundo plano,

    sem falar na predominncia inquestionvel das fontes escritas em detrimento

    das fontes orais e das histrias de vida (FERREIRA: 2002, p.378).

    A partir do final dos anos de 1970, com o desenvolvimento da Histria

    Cultural, privilegiando anlises qualitativas, relatos orais e desconstruindo

    noes vinculadas a dicotomia entre o popular e o erudito, o debate em torno

    da objetividade e da importncia das narrativas, sejam elas literrias ou orais,

    voltaria com grande fora.

    Para Georg Iggers, a publicao na revista Past and Present de um

    ensaio de Lawrence Stone sobre o retorno da narrativa ou aquilo que ele

    chama de a nova velha histria ir retomar o debate sobre a importncia da

    narrativa para a histria, no aquela factualista do historicismo clssico que

    privilegiava os grandes personagens, mas fundamentalmente uma narrativa de

    3Entrevista com Evandro Medeiro no Programa Dilogo Aberto da TV Nazar, Fundao

    Nazar de Comunicao, exibido em 28/11/2011. Disponvel em:.html. Acesso em: 30 de jun. 2012.

    http://www.youtube.com/watch?v=Oh35wa3FE54http://www.youtube.com/watch?v=Oh35wa3FE54
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    experincias de vida, individuais ou coletivas, de sujeitoshistricos annimos

    vinculados s classes subalternas, aos pobres e excludos (IGGERS: 1994, p.

    59-60).

    O alargamento dos objetos de estudos e a retomada de aspectos por

    certo tempo negligenciados ou esquecidos levou a possibilidades da ampliao

    do universo de pesquisa e a incluso de novas fontes e metodologias, como

    aquelas vinculadas aos estudos das fontes orais como forma de estudar

    sujeitos historicamente excludos, como os operrios, a exemplo da obra A voz

    do passado, de Paul Thompson (1992).

    Criticada por muitos como coisa de jornalista, a histria do tempo

    presente, por trabalhar com testemunhos vivos, tem desenvolvido

    metodologias a partir de inmeras pesquisas realizadas nos ltimos anos. Para

    a historiadora Marieta de Moraes Ferreira,

    Ao esquadrinhar os usos polticos do passado recente ou aopropor o estudo das vises de mundo de determinadosgrupos sociais na construo de respostas para os seusproblemas, essas novas linhas de pesquisa tambmpossibilitam que as entrevistas orais sejam vistas comomemrias que espelham determinadas representaes.Assim, as possveis distores dos depoimentos e a falta deveracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma

    nova maneira, no como uma desqualificao, mas comouma fonte adicional para a pesquisa (FERREIRA: 2002,p.324).

    A memria compreendida como campo de disputa foi apresentada por

    Pollak (1989) em um artigo de grande repercusso no Brasil. Para o autor,

    existiriam diversas dimenses da memria, tanto no que se refere s memria

    individuais, quanto aquelas partilhadas por grupos e instituies. Pare ele, a

    despeito da importncia da doutrinao ideolgica, existiria uma clivagem

    entre memria oficial e dominante e memrias subterrneas. Estas ltimas,

    transmitem suas lembranas dissidentes nas redes familiares e de amizades,

    esperando a hora da verdade e da redistribuio das cartas polticas e

    ideolgicas. (POLLAK: 1989, p.5)

    Em trabalho recente sobre o que chama de reviso do paradigma da

    guerrilha, Nascimento (2000) procura debater no apenas os paradigmas de

    revoluo presentes nos grupos de esquerda nos anos de 1960 e 1970, como

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    as dificuldades de se apreender as repercusses da Guerrilha entre a

    populao do Araguaia.

    Esse debate sobre o silncio, consciente ou no, em relao Guerrilha,

    tem a ver tambm com a construo da tese do suicdio revolucionrio em

    relao estratgia de guerra popular posta em prtica pelo PC do B no

    Araguaia que, segundo Reis Filho (1985), no lograria xito em funo da

    incompatibilidade entre as condies objetivas (local inadequado, falta de

    equipamentos e de treinamento) e as subjetivas (distanciamento entre os

    guerrilheiros e os camponeses) da Guerrilha.

    Essa tese, confrontada por Nascimento (2004), levaria a uma reviso da

    estratgia de poder por arte dos grupos de esquerda que se formariam nos

    anos de 1980, seja no que se refere ao novo sindicalismo (CUT) e do

    protagonismo poltico do Partido dos Trabalhadores que, a despeito da

    diversidade de correntes de opinio existente em seu interior, tem na

    denominada via chilena para o socialismo, ou seja, a tomada do poder

    poltico a partir da conquista de uma maioria institucional, o seu paradigma

    fundamental.

    Vale ressaltar, no entanto, que diferente do que defende Nascimento

    (2000, 2004), a reviso sobre o carter da revoluo brasileira no se deu

    apenas pelos setores de fora do PC do B. Pesquisando sobre a linha poltica

    adotada pelo partido desde a Guerrilha at a redemocratizao em 1985, Sales

    (2008) afirma que havia uma reorientao poltica dos comunistas. Utilizando

    como fonte as pginas do jornal oficial do PC do B, A Classe Operria,o autor

    apresenta as trs bandeiras do partido, quais sejam, a defesa de uma

    Assemblia constituinte livremente eleita, abolio de todos os atos e leis de

    exceo e anistia geral.Esse debate na esquerda, sobre o legado e a relevncia da Guerrilha,

    nos faz novamente pensar sobre uma questo levantada por Pollak (1989): a

    do enquadramento da memria. Para o autor, a memria deve ser entendida

    como uma operao coletiva dos acontecimentos e das interpretaes do

    passado que se quer salvaguardar. Tal enquadramento se d de diversas

    maneiras, mas dentro de dois elementos fundamentais. Em primeiro lugar, o

    enquadramento da memria se alimenta do material fornecido pela histria

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    num processo constante de disputa do passado, reinterpretando-o em funo

    dos combates do presente e do futuro. (POLLAK: 1989, p. 9-10).

    Outro elemento do enquadramento da memria diz respeito

    necessidade da credibilidade daquilo que se pretende salvaguardar, de modo a

    transformar essa memria selecionada em um instrumento de coeso e de

    identidade do grupo, posto que toda organizao poltica, por exemplo

    sindicato, partido poltico etc. , veicula seu prprio passado e a imagem que

    forjou para si. Alm disso, o trabalho de enquadramento da memria tem

    seus atores profissionais da histria das diferentes organizaes de que so

    membros (POLLAK: 1989, p.10).

    Podemos encontrar tambm essa perspectiva em Le Goff (1994) quando

    este faz a defesa de que a memria se serve da histria, salvando o passado

    para servir ao presente e futuro. E complementa, afirmando que os

    historiadores devem trabalhar de forma que a memria coletiva sirva para a

    libertao e no para a servido dos homens. (LE GOFF: 1994, p. 477).

    Nos combates e disputas em torno da memria, podemos perceber que,

    apesar das disputas internas que levaram a cises e expulses do partido,

    muito em funo do balano crtico em torno da avaliao da Guerrilha, como

    nos indica Reis Filho (1985), para o PC do B a memria da Guerrilha e de seus

    herisdeve ser vista, apesar da derrota militar, como uma vitria poltica, como

    uma glria, que caiu de arma na mo naquele campo de batalha da luta de

    classes, no Araguaia ponto alto de referncia da luta revolucionria e

    libertadora de nosso povo4. Nessa homenagem a Maurcio Grabois, dirigente

    do PCdoB morto pelas foras do Exrcito, est claro o sentido, por parte do

    dirigente do partido, de mitificar a morte do heri, de construir, portanto, uma

    histria que legitimaria a opo pela Guerrilha. uma imagem construda parasi.

    A anlise que fazemos dos discursos produzidos no documentrio

    AraguaiaCampo Sagradotem como perspectiva metodolgica os dizeres de

    Peter Burke, quando este afirma que

    as imagens no so nem um reflexo da realidade social nemum sistema de signos sem relao com a realidade social, mas

    4

    Trecho de um artigo de Digenes Arruda, dirigente do PC do B, publicado em A ClasseOperria, outubro de 1979, sobre Maurcio Grabois, lder mximo da Guerrilha do Araguaia.

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    ocupam uma variedade de posies entre esses extremos.Elas so testemunhos dos esteritipos, mas tambm dasmudanas graduais, pelas quais indivduos ou grupos vm omundo social, incluindo o mundo da imaginao. (BURKE:2004, p.232) [grifos meus]

    Alguns cuidados apresentados pelo autor nos serviram de alerta quando

    da produo deste artigo. Primeiro, reconhecer que as imagens do acesso

    no ao mundo social diretamente, mas sim a vises contemporneas daquele

    mundo. Alm disso, preciso contextualizar o testemunho das imagens,

    reconhecendo as influncias culturais, polticas e econmicas na produo,

    circulao e recepo das mesmas. Por fim, adverte, uma srie de imagens

    oferece testemunho mais confivel do que imagens individuais (BURKE: 2004,p. 236-237).

    Memrias e Narrativas sobre a Guerrilha do Araguaia

    As resolues contidas no documento Guerra Popular: Caminho da Luta

    Aramada no Brasil, aprovado pelo Comit Central do PCdoB em janeiro de

    1969, definem alguns princpios que nos ajudam a entender a organizao daguerrilha. Seria uma luta armada eminentemente popular sendo o interior o

    campo propcio guerra popular por representar um grande potencial

    revolucionrio (...) capaz de fornecer a massa principal dos combatentes da

    guerra popular. Alm disso, A tarefa de derrotar inimigos to poderosos

    encerra enormes dificuldades e, por isso, demandar um perodo longo 5.

    Dessa forma, o interior, o envolvimento direto do povo e a pacincia para a

    preparao de uma guerra prolongada fazem do Araguaia um local apropriado

    para a instalao de bases guerrilheiras. Alm disso, na guerra popular

    defendida pelo PCdoB um protagonista at ento ausente das teorias

    marxistas revolucionrias mais comumente defendidas por partidos e

    organizaes de esquerda entra em cena como sujeito revolucionrio, to bem

    estudado por Eric Wolf: o campons e suas revolues no sculo 20 (Wolf,

    5 Guerra Popular - Caminho da luta armada no Brasil (1969). Centro de Documentao e

    Memria Fundao Maurcio Grabois. Disponvel em: Acesso em: 12de jul. 2013.

    http://grabois.org.br/portal/cdm/noticia.php?id_sessao=49&id_noticia=3844http://grabois.org.br/portal/cdm/noticia.php?id_sessao=49&id_noticia=3844
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    1985), a exemplo da Chinesa, que seria a grande fonte de inspirao para o

    PCdoB. Para Rodrigo Peixoto, que participou como representante do Museu

    Paraense Emlio Goeldi do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) 6, a deciso do

    governo Mdici em utilizar (...) de todos os meios para eliminar, sem deixar

    vestgios, as guerrilhas rurais e urbanas, de qualquer jeito, a qualquer preo

    (Peixoto, 2011, p. 481), resultou no s na execuo de muitos guerrilheiros,

    como na priso de camponeses considerados prximos aos combatentes do

    PCdoB. Em um dos muitos relatos de sobreviventes podemos observar o

    significado da represso guerrilha na viso dos camponeses do Araguaia:

    Fiquei 23 dias preso, apanhando, bebendo gua de sal, noformigueiro, junto com o Beca, Z Maria, Z Novato,Domiciano, Z Graa e Raimundo Preto. Fui preso em casa, noCentro Novo, regio do Cajueiro, na regio de So Geraldo.Chegaram s 10 horas do dia e a procuraram se o pessoal damata [guerrilheiros] tinha andado na minha casa. Eu disse: Andaram... (...) A eles falaram se eu podia dar uma palavra naBase de Xambio. Eram mais ou menos uns 15 soldados,sargento, o doutor chefe, o doutor Jardim. Eu disse: Possosim. A telefonaram para l, para o helicptero me buscar. (...)Troquei a roupa, foi quando ligeiro o helicptero veio chegando.Embarquei no helicptero. Quando chegou em Xambio, com adistncia de uma braa do cho, me empurraram. J ca nosps dos homens. Do Romeu, do Magno e do Joo. Esses eram

    que ficavam na base s pra bater em gente. Da pra c eu nofalei mais nada. Era s na pancada e na pesada 7. [grifo meu]

    O depoimento do campons Dotorzinho mostra a disposio do aparato

    repressivo montado pela ditadura para aniquilar o movimento guerrilheiro

    organizado pelo PCdoB na regio Araguaia. Quando os primeiros guerrilheiros

    chegaram regio, em 1966 8, o Exrcito j havia preparado uma espcie de

    6O GTT (Grupo de Trabalho Tocantins) funcionou at maio de 2009, quando foi reestruturado,dando origem ao Grupo de Trabalho Araguaia (GTA). O objetivo do GTT era o de localizar,recolher e identificar os corpos de desaparecidos durante a Guerrilha do Araguaia. Fonte: Blogdo Planalto, 5 de maio de 2011. Disponvel em: Acesso em 8 de jun. 2013.7Depoimento de Dotorzinho, campons morador de So Domingos do Araguaia, concedido aRodrigo Peixoto em agosto de 2010. Citado em: PEIXOTO, Rodrigo. Memria Social daGuerrilha do Araguaia e da guerra que veio depois. Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi.Cincias Humanas. Belm, vol. 6, n.3, set.dez. de 2011, p. 495.8 Ainda segundo Rodrigo Peixoto, citando os dados recentes publicados pela SecretariaNacional dos Direitos Humanos, Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldo, foi o primeirointegrante do PC do B a se instalar na regio, em 1966. Em 1968, j se compunha um grupo de

    15 militantes. No incio de 1972, s vsperas da primeira expedio do Exrcito, eram quase70. In: BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica. Direito Memria e Verdade. Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos. Braslia:

    http://blog.planalto.gov.br/novo-grupo-de-trabalho-vai-ampliar-busca-a-desaparecidos-no-araguaia/http://blog.planalto.gov.br/novo-grupo-de-trabalho-vai-ampliar-busca-a-desaparecidos-no-araguaia/http://blog.planalto.gov.br/novo-grupo-de-trabalho-vai-ampliar-busca-a-desaparecidos-no-araguaia/http://blog.planalto.gov.br/novo-grupo-de-trabalho-vai-ampliar-busca-a-desaparecidos-no-araguaia/
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    dossi sobre o comunismo no Brasil. Denominado Inqurito Po licial Militar

    (IPM) n 709 9, o dossi resultou na publicao, em 1967, de quatro volumes

    cujo objetivo era estudar as origens, o funcionamento, as diretrizes e as formas

    de ao dos grupos comunistas em atuao no Brasil.

    Numa dessas publicaes, so analisadas uma srie de resolues de

    partidos e organizaes comunistas. Citando fragmentos da Resoluo Poltica

    do V Congresso do PCB, realizado no Rio de Janeiro, em 1960, o IPM n 709

    do Exrcito aponta duas posies polticas no interior do PCB que teriam

    desdobramentos nos anos seguintes ao golpe civil-militar de 1964. Enquanto o

    V Congresso afirma que nas condies atuais do Brasil e do mundo, existe a

    possibilidade real de que a revoluo (...) atinja seus objetivos por um caminho

    pacfico 10, a linha adotada pelo Comit Central do PCB logo aps o golpe de

    maro de 1964 seria a de autocrtica em relao ao pacifismo predominante

    na medida em o partido no havia se preparado (...) para enfrentar o emprego

    da luta armada pela reao 11.

    Analisando um outro documento, agora a resoluo poltica do Comit

    Central do PCB no Rio Grande do Sul, os militares apontam para a perspectiva

    que aos poucos, segundo a interpretao do IPM n 709, seria a nova

    tendncia predominante no partido:

    Os comunistas entendem que a luta armada revolucionriadeve estar vinculada a todas as formas de luta de massas (...).Sem uma base de massas, organizada e combativa, omovimento armado no ter condies para eclodir ou ficardemasiado vulnervel diante do inimigo. (...) A autodefesaarmada constituiu uma das formas de preparao para a lutaarmada, qual precisamos dedicar a ateno que merece.Especialmente nas zonas rurais, indispensvel proteger os

    camponeses, na luta por suas reivindicaes, contra a violnciados latifundirios e de seus mercenrios, uniformizados ouno 12.

    Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 195. Citado por PEIXOTO: 2009, op. cit., p.480.9 Inqurito Policial Militar n 709. O comunismo no Brasil: a ao violenta. 4 vol. Rio deJaneiro: Biblioteca do ExrcitoEditora, 1967.10

    Idem, p. 372.11Idem, p. 373.12Idem, p. 374.

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    As citaes acima, contidas no 4 volume do Inqurito Policial Militar de

    n 709 nos ajudam a compreender algumas atitudes de radicalidade tomadas

    pelo aparato repressivo, radicalidade aqui entendida como sinnimo de

    violncia e intransigncia do regime autoritrio em relao aos seus opositores,

    quaisquer que sejam suas origens ideolgicas, j que quase todos eram

    tratados como inimigos da revoluo ou agentes da subverso, no

    importando se eram estudantes, padres, freiras, agentes pastorais, operrios

    ou camponeses. Nos ajudam a entender tambm a disputa poltica no interior

    do PCB entre os setores que permaneceriam optando pela via pacfica e

    outros, como o PCdoB e a AP que na lei tura dos militares manifestavam-se

    francamente por uma ao violenta para a rpida implantao do socialismo

    brasileiro13. Chama a ateno tambm a preocupao dos comunistas

    gachos quanto a necessidade de organizao de autodefesas armadas,

    especialmente nas zonas rurais para proteger os camponeses, o que nos

    remonta a um movimento social muito importante antes do golpe de 1964: as

    Ligas Camponesas.

    Surgidas na conjuntura dos anos de 195014, por iniciativa dos prprios

    camponeses do Engenho Galilia (Julio, 1962, p.24.), em Pernambuco, asLigas Camponesas protagonizaram, em vrios estados brasileiros, diversos

    movimentos de disputa pela terra. Segundo Martins (2011, p.108), as ligas

    surgiram como um movimento religioso e legalista. No entanto, em vrios

    momentos, os movimentos camponeses assumiram um carter de

    resistncia15, como no conflito de Trombas, ocorrido em meados dos anos de

    1950, ao norte do atual estado de Gois, num territrio de conflitos motivados

    por grilagem e especulao imobiliria de terras devolutas. Os desdobramentos

    dos conflitos deram origem a chamada Repblica Socialista de Trombas,

    13Idem, p. 375.14 Para Clodomir Santos de Moraes, em artigo publicado em 1969, as Ligas ressurgiram em1955, pois j existiam em dcadas anteriores, como organizaes-apndices da estruturaunitria e centralizada do Partido Comunista (p. 23). Cita, por exemplo, a atuao dopernambucano Jos dos Prazeres e sua experincia tanto no anarcossindicalismo dos anos de1920 quanto no PCB, que abandonara em 1947 para atuar na mobilizao dos trabalhadoresrurais, atravs da Liga Camponesa de Iputinga. Cf. MORAES, Clodomir Santos de. Histriadas Ligas Camponesas do Brasil. In: STEDILE, Joo Pedro (org.) Histria e Natureza das LigasCamponesas 1954-1964. 2 edio. So Paulo: Expreso Popular, 2012, p. 28.15

    ESTEVES, Carlos Leandro da Silva. Nas trincheiras: luta pela terra dos posseiros emFormoso e Trombas (1948-1964). Uma resistncia ampliada. Dissertao (Mestrado emHistria Social), Niteri (RJ): Universidade Federal Fluminense, 2007.

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    territrio com um certo grau de autonomia, no qual se podia entrar e do qual

    no se podia sair sem salvo-conduto (Martins, 2011, p. 110-111) e que s

    seria ocupado militarmente em 1970, seis anos depois do golpe de 1964, em

    que

    Durante cerca de vinte anos os camponeses de Trombasestiveram politicamente organizados em territrio prprio,imune ao poder do Estado. Tratava-se da ttica poltica usadana Guerra da Coria, da mesma poca, que foi a de conquistare liberar territrios, ali instituindo a presena organizada decamponeses armados(MARTINS: 2011, p. 111).

    Tambm na dcada de 1950, mais precisamente em 1957, um

    movimento campons eclodiu no estado do Paran. Ali tambm se disputava

    terras devolutas, num processo de falsificao de ttulos de propriedade e

    grilagem de terras. Embora a prtica de grilagem no Paran existisse desde o

    sculo dezenove, tal prtica restringia-se aos crculos dos prprios fazendeiros

    que acabavam resolvendo as diferenas na justia. Agora a disputa era entre

    desiguais, fazendeiros e posseiros sendo que os ltimos em condies

    desiguais de acesso ao poder judicirio. A mesma propriedade era vendida

    vrias vezes, prtica que fazia da terra um instrumento de poder poltico eeconmico. Inconformados com a possvel perda de suas posses, os

    camponeses iniciaram um movimento armado de grandes propores. Nos

    dizeres de Jos de Souza Martins:

    Os camponeses do sudoeste do Paran deram a sua revoltaum formato claramente antagnico em relao ordem jurdicae poltica (...). Ocuparam cidades, destruram arquivos dacompanhia de terras que os fraudara, tomaram uma estao derdio, prenderam e destituram autoridades e constituram

    juntas governamentais e locais. E, por fim, retiveram o prpriosecretrio de segurana pblica do estado. (MARTINS: 2011,p. 112).

    Para o Exrcito, que classifica esses movimentos camponeses, incluindo

    a as aes das Ligas Camponesas, como exemplos de guerrilhas rurais, cujas

    aes teriam por objetivo a tomado de poder por meio insurrecional, o

    problema da disputa de terras resultante da valorizao de determinadas

    regies do pas, perfeitamente compreensvel e se coloca nos quadros dos

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    casos judiciais, com as influncias polticas e econmicas que sempre

    despertam16. Em outras palavras, um correto ordenamento jurdico e

    econmico e o devido controle poltico da questo agrria, a exemplo da

    criao do Estatuto da Terra e do INCRA, resolveriam os conflitos no campo. O

    problema, ainda segundo a viso do Exrcito, seria a infiltrao comunista e a

    mobilizao militar de elementos que se adestram na experincia da disputa

    local para a futura formao de grupos guerrilheiros capacitados luta

    revolucionria17.

    No caso da Guerrilha do Araguaia, tal preocupao do Exrcito mostrou-

    se totalmente descabida. Boa parte dos quase 70 guerrilheiros que estavam no

    Araguaia quando da primeira investida do Exrcito contra a Guerrilha, no incio

    de 1972, era composta de jovens estudantes universitrios, muitos dos quais

    considerados subversivos em funo da participao no 30 Congresso da

    UNE, em Ibina18. Ainda que parte dos guerrilheiros tenha feito treinamento

    militar na China19, a infiltrao comunista temida pelo Exrcito no ocorreu,

    embora a convivncia dos militantes com os camponeses tenha gerado bons

    relacionamentos, muito em funo do tratamento dispensado aos camponeses

    por parte dos comunistas, mas nada que configurasse uma cooptao de

    camponeses guerrilha ou de uma lavagem cerebral como gostavam de

    acreditar os oficiais do Exrcito.

    Essa boa relao estabelecida pelos comunistas com os moradores do

    Araguaia pode ser compreendida a partir de diversos depoimentos, como o do

    campons Joo de Deus, falando de uma das principais estratgias de

    aproximao da guerrilha com os habitantes do Araguaia:

    Eles eram muito prestativos. Tinha uma mulher comhemorragia, l no Igarap dos Perdidos. A foi l o Juca, mais oPaulo. A medicaram ela, s deram uma injeo e ela ficouboa. Depois ela adoeceu de novo a trouxeram ela pra sededeles aqui na beira do Caiano (igarap dos Caianos) e elestrataram dela.20

    16Inqurito Policial Militar n 709: 1967, op. cit., p. 392.17Idem, ibidem.18BRASIL: 2007, p. 195. Citado por PEIXOTO: 2009, op. cit., p. 480.19Segundo levantamento feito pelos jornalistas Eumano Silva e Tas Monteiro, do Estado deSo Paulo, 15 militantes do PCdoB teriam tido treinamento militar em Pequim. MORAIS, Tas;

    SILVA, Eumano. Operao Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. 2. ed. So Paulo:Gerao Editorial, 2005, p.42.20Depoimento de Joo de Deus no documentrioAraguaia: campo sagrado.

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    No depoimento de Joo de Deus possvel perceber a falta de

    assistncia bsica de sade aos moradores do Araguaia e que o socorro

    mdico prestado aos camponeses por parte dos guerrilheiros formava entre

    eles um forte elo de ligao. Alm disso, Joo de Deus era morador do antigo

    povoado Caianos, fundado pelo guerrilheiro Paulo Mendes Rodrigues em finais

    da dcada de 1960, transformado posteriormente em Boa Vista pelo Exrcito

    (Figueira, 1986,p.28). Nessa rea funcionou um dos trs ncleos ou

    destacamentos montados pelo PCdoB para a preparao da guerrilha, o

    destacamento C, ou Caianos. Havia ainda o destacamento B tambm

    denominado Gameleira, entre So Geraldo e So Joo, e o destacamento A ou

    Apinajs, em So Joo do Araguaia.

    O exrcito iniciou as operaes militares em maro de 1972 e contou

    com a coordenao de um personagem que se tornaria smbolo da represso

    Guerrilha, o ento capito do exrcito Sebastio Rodrigues de Moura, o

    Sebastio Curi21. Usando o nome de doutor Luchini, Curi se passava por

    engenheiro do INCRA para se aproximar dos camponeses e acessar as reas

    onde estariam os guerrilheiros. ele quem assina o relatrio final da Operao

    Sucuri, em 24 de maio de 1974, que coordenara diretamente, e que resultou no

    extermnio dos guerrilheiros que ainda estavam na mata e no conseguiram

    fugir.

    A caa aos comunistas foi feita com a mobilizao de um grande

    contingente de tropas numa regio de difcil acesso. H divergncia quanto ao

    nmero exato de soldados, variando de dez a vinte mil, o que mostra o temor

    das foras de segurana em relao Guerrilha. Para movimentar as tropas,

    facilitar o cerco aos guerrilheiros e ocupar militarmente a regio do bico do

    papagaio, o Exrcito abre trs estradas operacionais (OP 1, OP 2 e OP 3) emque o INCRA atuava no sentido de elaborar projetos para atrair colonos para a

    rea. A OP 2, que liga Marab a So Geraldo do Araguaia, hoje uma rodovia

    estadual, a PA 153.

    21 Depois da guerrilha, coordenou as aes de limpeza da rea para apagar os sinais doconfronto. Adotou o apelido de Major Curi e, por meio da coao e pelos pistoleiros a seuservio, transformou-se no homem mais temido da regio. Distribui lotes de terra par

    colaboradores e recebeu o garimpo de Serra Pelada para administrar. Fundou a cidade deCurionpolis e elegeu-se prefeito trs vezes. Tambm foi eleito deputado federal por vriosmandatos, o ltimo em 2004. In: MORAIS, Tas; SILVA, Eumano: 2005, op. cit., p. 594.

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    A proximidade com os guerrilheiros narrada em diversos momentos.

    Para Dona Marcolina, camponesa viva cujo marido fora preso e torturado,

    esse povo que disseram que era da mata [guerrilheiros], iamuito l em casa.

    Dei muito de comer a eles. Eu s conhecia bem o Murilo que morava bem a

    assim, passou mais de ano, eu vi o Murilo, o Zequinha e o Flvio. Eles ficaram

    muito tempo com a farmcia, trataram do meu irmo que estava com curuba.

    Nessa mesma linha, seu Beca, campons, fala da assistncia prestada pelos

    guerrilheiros, principalmente pela Dina22que, ao lado de Osvaldo, foi uma

    das mais destacadas guerrilheiras entre os camponeses:

    o povo chegava l em casa, j levados pela Dina que a Dinaera conhecida em So Geraldo. A minha mulher tava com

    dificuldade pra ganhar nenm. O farmacutico no deu maisjeito. A falaram olha tem uma mulher assim, mas eu disse elano vem, vem sim que ela muito caridosa. A fui atrs delaque veio na mesma hora, mandou comprar a injeo, aplicou ea mulher despachou23.

    Os depoimentos dos moradores confirmam o pioneirismo de Osvaldo

    na chegada regio. Segundo a camponesa Madalena primeiramente chegou

    o Osvaldo por aqui, ele conheceu meu pai ficou amigo do meu pai, morando

    com meu pai, mas ningum sabia quem ele era no24. Para o barqueiro

    Joaquim Borges Osvaldo era um bom companheiro de viagem, embarcava

    com a gente, fazia a comida no barco, era muito distinto com a gente. Mais

    adiante, afirma que ele ficava um pouco aqui depois ia embora pra mata. Ele

    dizia que mariscava gato [caava ona], j que naquele tempo pele de gato

    dava ona. Ele dizia que mariscava gato25.

    A represso durante a caa aos comunistas, entre os anos de 1972 e

    1974, e nos anos que se seguiram foi intensa. O mateiro Joaquim Borges

    conta que bateram e mataram muita gente porque acharam que eles davam

    22Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, embora formada em Geologia, ficou conhecida na regio doAraguaia como parteira, assistindo a vrias mulheres. Os relatos sobre seu desaparecimentoso contraditrios. Acredita-se que tenha sido morta pelos militares num ataque aodestacamento C, em dezembro de 1973. In: MORAIS e SILVA: 2005, op.cit., p. 568-569.23Depoimento de Seu Beca documentrioAraguaia: campo sagrado.24

    Depoimento de Dona Madalena no documentrioAraguaia: campo sagrado.25Depoimento de Joaquim Borges no documentrioAraguaia: campo sagrado.

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    cobertura pro povo da mata26. Essa muita gente a que se refere o mateiro

    Borges significa tanto o povo da mata, como eram conhecidos os

    guerrilheiros, como os prprios camponeses. Na memria de muitos moradores

    do Araguaia, principalmente das localidades prximas aos ncleos da guerrilha,

    um gesto de dar de comer ao povo da mata era motivo suficiente para o

    Exrcito vim e pegar27, isto , prender o suspeito de ser um colaborador da

    Guerrilha. Dona Dora, camponesa, esposa de ex-mateiro preso, conta que

    depois de seis anos o homem perdeu a mente. At hoje est assim,no sai de

    casa pra lugar nenhum, nem pra tirar o dinheirinho dele28. Para seu Joaquim,

    campons, o sofrimento aqui foi triste, teve gente que ficou paraltico. O Z

    Novato foi preso aqui, apanhou tanto que ficou paraltico 29.

    Apesar da violncia sofrida por muitos camponeses em razo da

    represso guerrilha, grande parte dos depoimentos dos sobreviventes no os

    v como culpados. A acusao de terroristas feita pelos militares, no parece

    convencer aos camponeses. Para seu Beca, campons,

    Eles [guerrilheiros] no eram terroristas, eram gente muitosofrida. Eles diziam pra mim que tava correndo atrs daliberdade por que ns vivia num cativeiro, vivia num pas cativo.Ns vivia naquele regime militar, ento um pas que ningumpodia conversar. Mas ningum acreditava. Eles dizia que erapra gente ir pro mato mas ningum quis ir no30. [grifo meu]

    O depoimento mostra, por um lado, a simpatia por quem tava correndo

    atrs da liberdade. Mas mostra tambm a dificuldade dos militantes do PC do

    B em tornar prtica a teoria de guerra popular, j que ningum quis ir pra o

    mato, isto , juntar-se ao exrcito popular almejado pelo PCdo B.

    Por outro lado, o exrcito no conseguia fazer-se compreender.

    Utilizava a mesma prtica de terror psicolgico e de guerra de propaganda para

    estigmatizar os adversrios da ditadura como sendo terroristas. Segundo a

    camponesa Dora, o povo dizia que eles eram terroristas. E eu l sabia o que

    era terrorista? Pra mim eles eram gente boa demais. Quando adoecia tratavam

    26Depoimento de Joaquim Borges no documentrioAraguaia: campo sagrado.27Depoimento de Dona Madalena, camponesa, filha de preso e torturado, no documentrioAraguaia: campo sagrado.28

    Depoimento de Dona Dora, no documentrioAraguaia: campo sagrado.29Depoimento de seu Joaquim, no documentrioAraguaia: campo sagrado.30Depoimento de seu Beca, no documentrioAraguaia: campo sagrado.

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    de ns31. O depoimento do campons Joaquim, vai na mesma direo: uma

    oisa que eu nem sei que diabo terrorista. Eu pelo menos no sabia. Eu nunca

    fui no estrangeiro32.

    Os camponeses, embora tivessem estabelecido boa relao com os

    combatentes do PC do B, certamente no compreendiam as questes de

    fundo que motivaram o deslocamento dos militantes de centros urbanos para a

    regio do bico do papagaio. O curto perodo de permanncia na rea e o

    aparato repressivo montado pela ditadura dificultaram um maior envolvimento

    dos camponeses com a estratgia da guerra prolongada do partido. Para o

    campons Messias, a poca da guerrilha foi de um sofrimento terrvel. A gente

    no podia abrir o bico e nada disso, Tinham uns puxa-saco por a que

    dedavam, que dizia que ns era terrorista, comunista, subversivo, satans de

    vida.33

    Os camponeses estavam fortemente marcados por uma cultura mstica,

    religiosa, enraizada num cristianismo de base popular34, como podemos ver na

    fala do campons Beca, ao referir-se a guerrilha como uma guerra suja na

    qual passara quarenta e cinco dias preso pegando peia, no almoo e janta. Fui

    torturado, fui massacrado (...). Seu Beca acredita que conseguiu sobreviver

    depois de orar a Deus e pedir um voto para o Divino Esprito Santo 35. Nesse

    sentido, como bem analisou Carlos Rodrigues Brando, as torturas sofridas e o

    milagre popularda sobrevivncia pode ser compreendido como a retomada

    da ordem natural das coisas da vida do fiel, da comunidade ou do mundo, por

    algum tempo quebrada. Dessa forma, seu Beca acredita ter vivido uma

    provao consentida por deuses e santos ao fiel devedor e justo, o Divino

    Esprito Santo, salvando-o do efeito direto da invaso do Mal sobre a ordem

    terrena(BRANDO: 1986, p. 131).

    31Depoimento de dona Dora no documentrioAraguaia: campo sagrado.32Depoimento de seu Joaquim no documentrioAraguaia: campo sagrado.33Depoimento de Messias no documentrioAraguaia: campo sagrado.

    34

    BRANDO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre a religio popular. SoPaulo; Brasiliense, 1986.35Depoimento de seu Beca

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    Consideraes finais

    Ainda existem algumas resistncias entre os historiadores em relao ao

    uso de fontes cinematogrficas em suas pesquisas. Falando de vriasreviravoltas no uso dos filmes como evidncia aos historiadores, dos anos de

    1970 e 1980 quando h vrios trabalhos na rea, aos anos de 1990 quando h

    muita desconfiana nessa perspectiva metodolgica, para o historiador Marc

    Ferro, autor de Cinema e Histria, h um fenmeno novo que a

    instrumentalizao do vdeo para finalidades de documentrios, isto , sua

    utilizao para escrever a Histria do nosso tempo, as enquetes flmicas que

    lanam mo da memria e do testemunho oral so numerosas (FERRO: 2012,

    p. 10).

    O filme tanto pode contar uma histria quanto criar um acontecimento.

    Ao analisar o filme do diretor polons Andrzej Wajda, Danton, Robert Darnton

    (1990, p. 29-36) apresenta as diferentes interpretaes e desdobramentos na

    arena poltica francesa do final dos anos de 1980. Danton e Robespierre, suas

    histrias e as memrias construdas sobre eles, esquerda e direita, entre

    socialistas, comunistas e gaullistas, foram recriadas no filme, independente da

    vontade do diretor. A associao de Danton, liderana importante da revoluo

    de 1789, com o lder do Solidariedade polons, Lech Walesa, o entusiasmo da

    direita francesa com a dessacralizao de Robespiere, descrito como um

    insensvel tirano, para espanto da esquerda, so exemplos da estreita relao

    entre a importncia historiogrfica do cinema, seu usos e, por vezes, seus

    abusos. Nessa perspectiva, consideramos o cinema como produto da

    sociedade que o produziu, como testemunho intencional, nada inocente,

    servindo de referncia importante para o historiador justamente por isso.

    Assim, como podemos ver, o documentrio analisado nos serve de fio

    condutor para a narrativa sobre a Guerrilha do Araguaia, episdio to

    fortemente silenciado. a materializao dos muitos combates e disputas da

    memria ob o ponto de vista daqueles que sofreram ameaas, torturas e

    perseguies. Os personagens falam de suas experincias, de seus mortos, de

    seus sonhos, de seu passado e de suas esperanas, na luta permanente da

    memria contra o esquecimento.

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