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A medicalização da educação como efeito histórico de uma
sociedade mista de disciplina e controle.
Murilo Galvão Amancio Cruz – UNESP, Assis
Hélio Rebello Cardoso Jr. – UNESP, Assis
Quadro Conceitual
Este trabalho faz parte de uma pesquisa de iniciação científica, financiada
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Partimos,
principalmente, das teorizações acerca da sociedade disciplinar e de controle,
postuladas por Foucault e Deleuze, respectivamente, para pensar a atual sociedade
e como ela engendra mecanismos que servem a uma lógica medicalizante.
A sociedade disciplinar, teorizada por Foucault, surge no século XVIII a partir
da expansão do capitalismo e da industrialização. Ela irrompe através das
instituições disciplinares que são características do século XVIII e XIX, e tem seu
ápice no início do século XX. As instituições características dessa Sociedade
Disciplinar eram os asilos psiquiátricos, penitenciárias, casas de correção,
estabelecimentos de educação vigiada, os hospitais, etc. E, além de disciplinar, tinha
como atuação marcar os indivíduos: Afirmar quem era louco – não louco; perigoso –
inofensivo; normal – anormal. E, ainda, determinar o lugar onde o indivíduo deveria
estar de forma a exercer poder sobre ele (FOUCAULT, 2010).
As disciplinas, segundo Foucault, tornam-se fórmulas gerais de dominação
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos (FOUCAULT, 2010, p.133).
O exercício do poder disciplinar sobre o indivíduo tinha, em suma, um
objetivo: a produção dos corpos dóceis. A produção do corpo para produção.
Mansano (2009) afirma, apoiada em Foucault, que toda essa transformação do
corpo, em prol do aparelho de produção que o capitalismo impunha fez necessário
um aparelho de coações que atingissem o homem desde a infância, passando pela
creche, escola e asilo. Sem contar, por vezes, a necessidade da passagem pela
prisão ou pelo hospital psiquiátrico, todas essas instituições referidas a um mesmo
sistema de poder (FOUCAULT, 2006). É notável o papel das instituições na referida
sociedade disciplinar. Eram elas que estavam fortalecidas e que difundiam os
valores da época, que deveriam ser apropriados pelos sujeitos “normais”.
Contudo, as instituições e as disciplinas passam por uma crise generalizada e
é Deleuze (1992) que explicita a nova configuração da sociedade que abandona,
aos poucos, as disciplinas para entrar na era do controle. Segundo Deleuze (1992),
na sociedade de controle, o confinamento na instituição não é mais necessário, ou
seja, os muros das instituições são “derrubados” e o controle se dá ao ar livre, de
forma contínua e imanente, o controle sobre as subjetividades e as identidades ficou
menos explícito, de forma que estamos subordinados a uma vigilância generalizada
nos espaços abertos, muito além do confinamento das instituições,
O que está sendo implantado, às cegas, são novos tipos de sanções, de educação, de tratamento. Os hospitais abertos, o atendimento a domicílio, etc., já surgiram há muito tempo. Pode-se prever que a educação será cada vez menos um meio fechado, distinto do meio profissional – um outro meio fechado -, mas que os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno ou o executivo-universitário (DELEUZE, 1992, p.216).
Deleuze descreve algumas mudanças relacionadas às instituições em crise,
exemplificando-as: nas prisões, novas penas substitutivas para os pequenos delitos,
utilização de “coleiras eletrônicas” que possibilitam o controle do outro e o obriga a
permanecer onde deve estar; nas escolas, controle contínuo, avaliação contínua, e a
proximidade da empresa nos níveis escolares; nos hospitais, novos regimes “sem
médico nem doente”, que aprofunda a produção de saber a fim de buscar doentes
potenciais e sujeitos a risco (DELEUZE, 1992a).
Com efeito, consideramos que a sociedade disciplinar ainda não se dissipou
totalmente, tampouco, a sociedade de controle emergiu por completo. Portanto,
defendemos aqui, que vivemos um período histórico em que coexistem elementos e
características da sociedade disciplinar em declínio e da sociedade de controle em
expansão. E é esta sociedade mista de disciplina e controle que produz um locus
propício para medicalização, que pretendemos mostrar a seguir.
Foucault, em seus estudos, alerta para o fato de que a loucura, no passado,
conviveu de forma livre como uma experiência que se mesclava com a lucidez, o
que ele chamou de experiência trágica da loucura (FOUCAULT, 2000) e que depois
foi apropriada pelo saber da medicina e trancada em um hospital, que não tinha
como objetivo a cura, mas o isolamento. Outro fenômeno parecido ocorreu com a
sexualidade, em que os saberes procuraram filtrar e organizar como, onde e por quê
a sexualidade deveria ocorrer.
Por fim, se estabelecemos um paralelo entre o que aconteceu com a loucura
no século XIX e a sexualidade no século XX, com o que está acontecendo com o
comportamento infantil hoje, no século XXI, chegaremos à conclusão de que os
processos são semelhantes, com o adendo importante de que a medicalização é um
fenômeno típico de nosso tempo, muito mais intenso que nos casos anteriores.
Foucault (2010) afirma que os esquemas de docilidade não são privilégio do
século XVIII, tampouco seriam do século XXI. No entanto, a descrição da disciplina e
da docilidade que o autor explicita, pode ser transportada e utilizada na atualidade
sem nenhum receio. “Em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de
poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”
(p.132). Trata-se de exercer poder sem ressalvas sobre o corpo ativo, exercendo
uma coerção sem folga, que trabalha sobre o corpo detalhadamente, direcionando
seus movimentos, gestos e atitudes.
As disciplinas, aliadas ao controle, agem de forma dupla, intensificando as
forças do corpo, em termos econômicos de utilidade; e enfraquecendo-as, em
termos políticos de obediência. É o que acontece, por exemplo, com uma criança
que não aprende na escola e é, portanto, diagnosticada como doente. Ao oferecer o
diagnóstico e tratamento, a medicina retira do papel dos pais/cuidadores qualquer
possibilidade de intervenção, já que pertence ao domínio médico – enfraqueceu as
forças políticas dos pais, que obedecem ao saber médico –; e ao mesmo tempo
potencializam as forças, ao verificar que ao receber tratamento médico, a criança
pode não recebe mais queixas dos professores, dos colegas, etc. A situação social e
política do não aprender foi silenciada. No caso da criança, sua potência de tempo
útil é fortalecida à medida que passa, na maioria das vezes, a acompanhar a massa
homogênea, no entanto, é enfraquecida ao se submeter ao diagnóstico, tratamento
e poder médico.
Nessa sociedade mista de disciplina e controle, as localizações funcionais
possuem um aspecto importante: é que ao codificar um espaço de vigília, através da
arquitetura e distribuição, cria, também, um espaço útil, ou seja, um espaço onde a
disciplina produza ação útil de acordo com o ambiente. Em relação à medicina:
Pouco a pouco um espaço administrativo e político se articula em espaço terapêutico; tende a individualizar os corpos, as doenças, os sintomas, as vidas e as mortes; constitui um quadro real de singularidades justapostas e cuidadosamente distintas. Nasce da disciplina um espaço útil do ponto de vista médico (FOUCAULT, 2010, p. 139).
Um espaço útil que permite afirmar onde e como se colocar os doentes. Em
outras palavras permite dizer que um leproso ou um louco deve ficar isolado,
separado. De forma semelhante, com devidas ressalvas, as crianças escolares
passam ou passaram por isso. Um exemplo do passado eram as classes especiais,
no Brasil, em que eram isolados ou separados os alunos com “deficiência intelectual
leve”, mas passível de educação. Este conceito já era, em si, complicado, pois
levava em conta testes relacionados ao quociente intelectual. Por exemplo, os
deficientes intelectuais leves e educáveis são os indivíduos que se encontram na
faixa dos 50 aos 70 (MACHADO, 1994). No entanto eram encaminhadas para estas
salas crianças com dificuldades de aprendizagem, que ao receber um diagnóstico
eram transferidas e passavam a ser os “alunos especiais”. Machado (1994) afirma,
Pensar o desvio, a diferença, é pensar a classificação de pessoas na mente dos homens. É pensar a mente dos homens... Aluno especial, mas afinal o que é isso? Não são óbvios esses objetos tidos como naturais e é desviando o olhar deles que se percebe as séries de práticas que os objetivaram (p.56).
Fica claro quão eram produzidos os alunos especiais. Na análise feita por
Machado (1994), o ato “ir para a classe especial” se misturava com a loucura. Para
os alunos e professores, loucos eram os que tinham dificuldades de comportamento
como quebrar a porta, provocar os menores, sair da sala. “A classe especial é um
lugar onde cabe “repetente”, “bagunceiro”, “burro”, deficiência, delinquência,
alienação. Afinal, não é um lugar para crianças “normais” (...) É um lugar para onde
se encaminham os diferentes. Diferentes do quê?” (MACHADO, 1994, p.49).
É um espaço, portanto, onde se mescla instituições, fenômeno típico de uma
sociedade disciplina-controle, uma vez que os muros das instituições são
transpassados entre a família, a escola e a medicina. A medicina por um lado e a
escola por outro, dialogando para pensar os acontecimentos escolares, porém,
limitando-os, muitas vezes, a um diagnóstico. Na atualidade, as classes especiais
não existem mais, porém, os encaminhamentos de crianças às clínicas médicas e
psicológicas em busca de diagnóstico, tratamento e resposta só vêm aumentando.
“A sala de aula formaria um grande quadro único, com entradas múltiplas, sob
o olhar cuidadosamente “classificador” do professor” (FOUCAULT, 2010, p. 142).
Esse olhar classificador, unido às técnicas disciplinares da disposição em filas, que
individualizam os corpos e os distribuem no espaço, é presente até hoje nas
relações escolares – É importante destacar que tanto os alunos “problemas” como
os professores são constituídos nas relações, ou seja, eles são efeitos. Efeitos de
uma produção política de subjetividade. Não pretendemos aqui, culpabilizar os
professores, pois estaríamos concentrando neles a culpa. Estaríamos pensando um
“ele” fora da relação, um “ele” em si; quando no real somos/pensamos/agimos de
determinada maneira a partir da nossa constituição histórica. É, portanto, efeito das
relações de poder e saber – Com a diferença de que, hoje, esse modelo serve, em
especial, a uma lógica medicalizante (MACHADO, 2011).
O indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma representação “ideológica” da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele “exclui”, “reprime”, “recalca”, “censura”, “abstrai”, “mascara”, “esconde”. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção (FOUCAULT, 2010, p.185).
Em relação à medicalização da infância, o mecanismo disciplinar apresenta
um aspecto importante: a escola tornou-se o lugar privilegiado de seleção das
crianças passíveis de medicalização de modo que esta instituição está sendo
inteiramente penetrado pelo saber médico.
Outro aspecto importante das operações disciplinares é a constituição dos
“quadros vivos” que organizam as multidões perdidas e perigosas, ou seja, grupo de
risco, em multiplicidades organizadas. Essa constituição permitiu, além de um
controle efetivo da economia e da tática, a construção de classificações racionais
dos seres vivos e, ainda, “repartir os doentes, dividir com cuidado o espaço
hospitalar e fazer uma classificação sistemática das doenças: outras tantas
operações conjuntas em que os dois constituintes – distribuição e análise, controle e
inteligibilidade – são solidários” (FOUCAULT, 2010, p.143).
Para Foucault, o quadro é, portanto, um mecanismo de mão dupla: técnica de
poder e processo de saber, que impõe uma ordem ao múltiplo e tem como objetivo
principal a obtenção de um instrumento que percorra e domine. Para tanto, três tipos
de quadros são necessários: a Tática, que trata do ordenamento espacial dos
homens; a taxinomia, que trata do espaço disciplinar dos seres vivos; e o
econômico, que trata do movimento das riquezas.
Desta forma, a repartição disciplinar, permite exercer o controle total sobre os
corpos. Transportando ao nosso objeto de pesquisa, podemos prever o quanto este
quadro serve à medicalização. Todo o “ser criança” é reduzido a uma caracterização
individual, que reduz sua singularidade, e a coloca em uma multiplicidade a priori:
um transtorno específico que a faz pertencer ao grupo que possuem este
diagnóstico. Assim, o controle se dá efetivamente, docilizando a criança para o
trabalho escolar imposto, de modo que seu comportamento, aprendizagem e
subjetividade sejam modulados.
De acordo com Mansano (2009) é a produção de saberes que torna possível
o sequestro do corpo e do tempo, uma vez que são justificadas pelo saber
“científico”. Outra técnica explorada pelas disciplinas e que dialoga com a produção
de saber e que serve à medicalização é o uso do exame que a partir de quadros
vivos que classificam todos os seres é possível qualificar, classificar, comparar e
normalizar os indivíduos. É a partir deste exame que a individualidade entra num
campo documentário. Segundo Foucault:
Daí a formação de uma série de códigos da individualidade disciplinar que permitem transcrever, homogeneizando-os, os traços individuais estabelecidos pelo exame: código físico da qualificação, código médico dos sintomas, código escolar ou militar dos comportamentos e dos desempenhos. (...) [Esses códigos] marcam o momento de uma primeira “formalização” do individual dentro de relações do poder. (FOUCAULT, 2010, p. 181).
Com isso, o indivíduo passa a ser um objeto descritível pela ciência – é o que
acontece, principalmente, nos manuais de transtornos mentais – e passível de um
controle através dos saberes produzidos, afinal, “o exame está no centro dos
processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e
objeto de saber” (FOUCAULT, 2010, p. 183). Além disso, possibilita a comparação
entre os indivíduos e a “estimativa dos desvios dos indivíduos entre si” (FOUCAULT,
2010, p.182) o que permite distribuí-los na população e combinar dois mecanismos
disciplinares: a vigilância hierárquica (o olhar classificador do
professor/médico/profissional psi) e a sanção normalizadora (tratamento a fim de
adentrar a norma).
O exame, cercado de todas as suas técnicas documentárias, faz cada indivíduo um “caso”: um caso que ao mesmo tempo constitui um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder. O caso não é mais, como na sauística ou na jurisprudência, um conjunto de circunstâncias que qualificam um ato e podem modificar a aplicação de uma regra, é o indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros e isso em sua própria individualidade; e é também o indivíduo que tem que ser treinado ou
retreinado, tem que ser classificado, normalizado, excluído, etc. (FOUCAULT, 2010, p.183).
Aliada ao mecanismo classificatório da sociedade disciplinar, que tem como
maior exemplo os manuais de classificação como o DSM e CID, temos o controle de
riscos da sociedade de controle, que pensa na prevenção de possíveis patologias.
Assim, é preestabelecido um modo de existir considerado saudável e que deve ser
seguido e para isso vale tudo: diagnóstico precoce, uso indiscriminado de
medicamentos, automedicação, não consultar médicos, etc. Afinal, a sociedade atual
também é marcada pelo consumo.
Para Foucault (2010) “O aparelho disciplinar perfeito capacitaria um único
olhar tudo ver permanentemente” (p.167). Vemos, atualmente, cursos e
treinamentos, por vezes patrocinados por indústrias farmacêuticas, para professores
a fim de ensiná-los como buscar em sala de aula os alunos que apresentam
sintomas de hiperatividade, dislexia, ou outros diagnósticos que justificariam seu
baixo desempenho escolar, encaminhando-os para a clínica médica.
Como já citado anteriormente a vigilância está disseminada e participamos
ativamente neste processo. Relacionado à vigilância está a popularização do saber
dito científico em rede televisiva e internet que repercute nos processos de
subjetivação. Assim, em relação às crianças escolares, é comum ouvirmos,
parentes, amigos, vizinhos e professores diagnosticando de maneira banal as
crianças. Alguns exemplos: se ela pula de mais é TDAH, se ela é quieta de mais é
autista. A diferença se torna uma doença justificada e consolidada pelo saber
“científico”. Em grande parte isso ocorre devido a presença de “especialistas” em
programas “não-especializados” que discorrem sobre assuntos científicos de forma
banal. No entanto, esse sucinto acaba sendo incorporado pelos que assistem,
contribuindo na excessiva patologização e medicalização que se assiste hoje, sem
um pensamento crítico a respeito. “É como se a lógica médica que circula no interior
dos hospitais atingisse também seu exterior e atravessasse a vida por inteiro”
(MANSANO, 2009, p. 103).
Objetivos
Neste trabalho objetivamos, principalmente, construir uma reflexão acerca da
sociedade atual em que vivemos e como esta serve a uma lógica medicalizante que
atua, principalmente, sobre a infância escolarizada a partir de mecanismos de
disciplina e controle.
Metodologia
Este trabalho consiste em uma investigação teórica e crítica, assim, a
metodologia fica no âmbito da leitura para exposição crítica do tema. Uma questão
metodológica importante é a de que não objetivamos questionar a eficácia dos
medicamentos, nem de que há crianças com problemas orgânicos que necessitem
deles. Pretendemos, isto sim, tomar como referencial teórico as explicitações de
Foucault e Deleuze que questionam o estatuto de verdade do saber psiquiátrico,
para pensarmos a atual banalização dos diagnósticos e a ideia de que este saber
não pode ser apresentado como possuidor de toda a verdade sobre a subjetividade
humana. Utilizamos, também, como metodologia, a “pedagogia do conceito”,
pensada por Deleuze & Guatarri. Segundo esses autores, todo conceito, em
filosofia, possui uma história, mesmo que esta história se cruze em outros momentos
com outros conceitos e, como consequência, outras histórias. No nosso caso,
expandimos essa metodologia teórica para pensar a dimensão histórica do saber
psicológico, psiquiátrico e médico; problematizando como comportamentos e
questões sociais passaram a ser vistas como doenças, historicamente.
Resultados
Nossa pesquisa ainda está em desenvolvimento, contudo, todo levantamento
e discussão bibliográfica que realizamos até o momento deixam claro alguns pontos:
vivemos uma sociedade mista de disciplina e controle; esta sociedade está imersa
em uma lógica medicalizante que captura, principalmente, as crianças em período
escolar; a relação entre saber/poder/verdade da atual sociedade tem produzido
subjetividades singulares que fogem ao padrão conhecido, nos convidando a
repensar nossos valores e ideias cristalizadas.
Conclusões
Não intentamos aqui concluir este assunto tão polêmico e complexo, porém,
cabem algumas considerações que são importantes. O que nos interessa e fica claro
é que a sociedade tem mudado e, com isso, novas subjetividades se apresentam.
Diante disso, a medicina tem sido chamada – ou tem se colocado – para resolver
essas questões que são sociais, políticas e econômicas. Com efeito, há déficits e
desordens orgânicas incontestáveis na área médica, assim como medicações
necessárias ao indivíduo. No entanto, atualmente, há uma supremacia das
explicações biológicas para os fatos da vida, nesse sentido uma banalização de
diagnósticos infantis tem sido apoiada pelas clínicas médicas e psiquiátricas.
Desconsiderar, portanto, a narrativa do sujeito que sofre e/ou passa por
dificuldades de comportamento, negligenciando seus devires e histórias, para
considerá-lo apenas como um corpo mecânico, que possui um cérebro máquina,
onde, funcional e estruturalmente, estão localizados seus déficits e desequilíbrios
químicos, é um erro histórico da dita ciência psiquiátrica e psicológica. Janet (apud
CANGUILHEM, 2006) afirma: “A psicologia é a ciência do homem por inteiro e não é
a ciência do cérebro: este é um erro psicológico que fez muito mal durante muito
tempo”.
Larrosa (2002) reafirma a necessidade de atentarmos aos processos de
subjetivação e produção de verdade que são constituídos historicamente.
A própria experiência de si que se constitui historicamente não é senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade (LARROSA, 2002, p.43).
Uma ressalva importante é a de temos consciência de que não são todos os
médicos psiquiatras que desconsideram a relação intersubjetiva e os processos de
subjetivação implicados no contato com o outro. Há médicos e médicos, assim como
há crianças e crianças. No entanto, há dados significativos sobre o crescente uso de
drogas psicotrópicas. Segundo o IDUM (Instituto Brasileiro de Defesa dos Usuários
de Medicamentos), em 2000 foram vendidas 71 mil caixas de metilfenidato; já em
2008, foram vendidas um milhão cento e quarenta e sete mil, o que representa um
aumento de 1.616%! Assim, a preocupação com o que estamos fazendo “em nome
da ciência” aumenta e nos faz aguçar o olhar para a questão, não desconsiderando
outras teorias, mas dialogando e discutindo a fim de criar e transformar o futuro. O
próprio Deleuze, apesar de todas suas críticas endereçadas à psiquiatria, não
desconsidera o uso da medicação e afirma, em entrevista, a importância delas na
restituição do sujeito. Nossa crítica se direciona ao uso indiscriminado e ao abuso de
poder da medicina e psiquiatria.
Segundo Poincaré (apud COSTA J.F., 2007, p.13) “um fenômeno que admite
uma explicação, admitirá também um certo número de outras explicações, tão
capazes quanto a primeira de elucidar a natureza do fenômeno em questão”.
Acreditamos e reafirmamos o que Poincaré aponta com a ressalva importante de
que a maioria dos “fatos científicos” em relação à saúde mental são hipóteses. Não
podemos considerar que a teoria está acabada, tampouco, considerá-la verdade
absoluta.
Sobre essa construção de verdades, que Foucault analisou durante toda sua
obra, Bergson, na conferência A consciência e a vida, mostra um caminho plausível.
Ele denomina de linhas de fatos as explicações possíveis que nos conduzem,
separadamente, a uma conclusão provável. Todas essas linhas de fatos podem
convergir para acumulação de probabilidades que tendem a uma certeza. Com
efeito, muitas explicações existem para as patologias mentais, mas nenhuma é
rigorosamente comprovada, é um campo de hipóteses. E é nesse campo que
devemos continuar trabalhando, afirmando o aforismo de Sócrates “Só sei que nada
sei” e continuar a investigar todos os fenômenos que perpassam a vida e,
principalmente à infância, sem parar no tempo (ou em uma única teoria).
Palavras chave: medicalização; disciplina; controle; escola; subjetivação.
Referências Bibliográficas
CANGUILHEM, G. O cérebro e o Pensamento. Trad. Sandra Yedid & Monah Winograd. Natureza Humana. São Paulo. Vol. 8, n.1, pp. 183-210, 2006. COSTA, J. F. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. 5ª ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2007. DELEUZE, G. Controle e Devir. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. DELEUZE, G. "Post-scriptum" sobre as sociedades de controle. In: DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992a. FOUCAULT, M. A História da loucura na idade clássica. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. ______. Poder e Saber. In: MOTTA, M. B. (org.). Estratégia, Poder-Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, Coleção Ditos & Escritos IV, 2006. ______. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. 38ª edição. Petrópolis: Vozes, 2010. LARROSA, J. Tecnologias do Eu e Educação. In: SILVA, T.T. (org.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos (5a ed.). Petrópolis: Vozes, 2002. MACHADO, A. M. Psicologia, trabalho institucional, medicalização: perigos e apostas. In: AZZI, R.G. & GIANFALDONI, M.H. (orgs.) Psicologia e Educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011 (texto gentilmente cedido pela autora). ______. Crianças de classe especial: efeitos do encontro entre saúde e educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1994. MANSANO, S.R.V. Sorria, você está sendo controlado: resistência e poder na sociedade de controle. São Paulo: Summus, 2009.
A MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO NAS SALAS DE APOIO À
APRENDIZAGEM: APONTAMENTOS INICIAIS
Nadia Mara Eidt- UEL1 Luciana Ramos Rodrigues de Carvalho- UEL2
Introdução
O presente artigo visa apresentar os resultados de uma pesquisa. acerca da
medicalização da educação nas salas de apoio à aprendizagem de cinco escolas
estaduais no Município de Londrina, Paraná3. As salas de apoio fazem parte de um
programa implantado pela Secretaria do Estado do Paraná (SEED) em 2004, que
visa auxiliar no enfrentamento das dificuldades apresentadas pelos alunos, com
relação à aprendizagem de Língua Portuguesa e Matemática. De acordo com
Oliveira (et all, 2009), o programa prevê o atendimento de quinze mil alunos, com
aproximadamente oitocentas turmas funcionando no sistema de contraturno. Assim,
as salas de apoio à aprendizagem integram as políticas públicas de educação do
Estado do Paraná, visando o enfrentamento do fracasso escolar.
Há quase quinze anos, Collares e Moysés (1996) denunciam a existência de
um acentuado processo da patologização e medicalização da educação, expresso
no deslocamento da investigação de aspectos político-pedagógicos para a busca de
soluções médicas. Segundo Roman (s/d), esse fenômeno se intensificou nas últimas
décadas. Isso se deve, em grande medida, ao aumento indiscriminado do uso de
cloridrato de metilfenidato (vendido sob o nome comercial de Ritalina e Concerta)
para tratamento do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). O
quadro é, na atualidade, o principal motivo de encaminhamentos de crianças para os
centros de referência em diagnóstico infantil e é uma das justificativas correntes para
o fracasso escolar. Diante desses dados, interessou-nos compreender quais foram
os critérios usados para selecionar os alunos da sala de apoio, se o professor sabe
da existência de alunos nas salas de apoio que fazem uso de tratamento médico ou
com outros profissionais e como isso interfere na aprendizagem do aluno.
1 Doutora em Educação: Educação Escolar pela UNESP/Araraquara. Professora do Departamento de Pedagogia da UEL. Email: [email protected] 2 Mestre em Educação pela UEL. Email: [email protected] 3 Vale destacar que essa pesquisa integra um estudo maior, que tem como objetivo compreender as significações em torno do ensinar e aprender produzidas por gestores, professores e alunos que integram a sala de apoio à aprendizagem no Município de Londrina-PR, e conta com o financiamento do CNPq/Capes.
A medicalização do fracasso escolar
De acordo com Zucolotto (2007, pg 137) “Medicalizar o fracasso escolar é
interpretar o desempenho escolar do aluno que contraria aquilo que a instituição
espera dele em termos de comportamento ou de rendimento como sintoma de uma
doença localizada no indivíduo, cujas causas devem ser diagnosticadas”. A
medicalização escamoteia os determinantes políticos e pedagógicos do processo de
ensino e aprendizagem, isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a
instituição escolar nele inserida. Em outras palavras, as dificuldades de cunho
institucional, social e político ficam reduzidas a supostas doenças individuais.
Collares e Moysés (1996) afirmam ainda que a Medicina, já em suas origens,
desempenhou um papel normatizador na vida dos indivíduos e dos grupos sociais.
Verifica-se que com a consolidação do capitalismo, esse processo se intensificou,
aumentando também sua eficácia. Essas ideias perduram até hoje, tanto na
formação dos profissionais de saúde e educação como no senso comum.
No contexto escolar, a medicalização da educação se expressa por meio de duas
vertentes, quais sejam, a desnutrição e as disfunções neurológicas. Pelos limites
desse estudo, focaremos nossa análise apenas na segunda vertente, cujos
distúrbios de aprendizagem constituem sua expressão mais atual (Collares e
Moysés,1996). Como bem assinala Proença (2002, pg. 185), a principal crítica à
concepção de distúrbio de aprendizagem a partir da perspectiva organicista,
hegemônica na atualidade, está em desconsiderar a “(...) complexidade do processo
de escolarização, reduzindo-o a simples falhas no sistema nervoso central”, como no
caso do TDAH. Assim, as explicações para o não aprender revelam o predomínio da
culpabilização do aluno, da família ou de outras condições geralmente consideradas
faltosas.
Nas últimas décadas, a medicalização da educação vem aumentando em
decorrência do aumento indiscriminado de crianças diagnosticadas como portadoras
de um distúrbio orgânico, o Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH). O tratamento baseia-se, essencialmente, no uso de Cloridrato de
metilfenidato (vendido comercialmente sob o nome de Ritalina e Concerta). A
substância pertence ao grupo das anfetaminas e atua como um estimulante do
sistema nervoso central potencializando a ação das substâncias cerebrais, como a
noradrenalina e dopamina. De acordo com o Instituto Brasileiro de Defesa de
Medicamentos (IDUM), dos anos de 2000 a 2008, no Brasil, as vendas cresceram
1.616%.
O conceito de TDAH tem sua origem no início do século XX. Em 1917 - 1918
ocorreu um grande surto de encefalite nos EUA. As crianças que sobreviveram à
doença manifestavam comportamentos atípicos, caracterizados por deficiências no
controle da atenção, impulsividade e hiperatividade, deficiências cognitivas,
dificuldades de relacionamento interpessoal, comportamento de desafio, problemas
de conduta e delinqüência (LOPES, 1998). Esses comportamentos seriam
consequência de lesões anatômicas no cérebro, causadas por encefalite. A partir
daí, na tentativa de generalização desse dado, postulou-se que crianças que
apresentassem comportamentos semelhantes deveriam ter uma lesão cerebral
(SUCUPIRA, 1985, p. 30).
Atualmente, os critérios definidos pelo DSM - IV são os mais utilizados para
diagnosticar o transtorno. O termo utilizado é Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade (TDAH) e tem como característica essencial a presença de
“um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade, mais frequente e severo
do que aquele tipicamente observado em indivíduos em nível equivalente de
desenvolvimento” (DSM -IV, 1994).
Embora o fenômeno da desatenção e da impulsividade seja inegável na
atualidade, ainda não há consenso, por parte dos pesquisadores, acerca das causas
desses comportamentos. Há mais de duas décadas, Sucupira (1985, pg 30) já
expressava a divergência, existente na academia, acerca de conceitos sobre o
assunto “(...) afinal, o que vem a ser a hiperatividade? Uma doença? Uma patologia
psiquiátrica? Um distúrbio do aprendizado? Ou uma alteração do comportamento?”.
Na bula da Ritalina consta que: o medicamento pode provocar muitas reações
adversas; seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente
elucidado e o mecanismo pelo qual o multifenidato exerce seus efeitos psíquicos e
comportamentais em crianças não está claramente estabelecido; a etiologia
específica dessa síndrome é desconhecida e não há teste diagnóstico específico
(MEIRA, 2011). Apesar da falta de concordância, entre os profissionais da medicina,
acerca da existência do TDAH como um transtorno orgânico, das advertências feitas
pelo próprio fabricante sobre reações adversas, o consumo do medicamento
aumenta ano após ano.
Metodologia
O presente trabalho se orientou pelos parâmetros da pesquisa qualitativa na
modalidade de estudo descritivo realizada em um espaço destinado a educação
formal. (VALENTIM, 2005, p.101). Alega que essa modalidade de pesquisa “não
visam enumerar ou medir os eventos, mas obter dados a partir das pessoas
envolvidas nos fenômenos estudados” A modalidade descritiva tem como finalidade
descrever as “características de determinada população ou fenômeno, bem como o
estabelecimento de relações entre variáveis e fatos” (MARTINS, 2002, p.36).
Participantes: Dezenove professores de cinco escolas estaduais em Londrina-
PR, escolhidas aleatoriamente, sendo 09 professores da sala de apoio e 10
professores da sala regular. Procedimento de Coleta de Dados: aplicado de modo
semelhante em cada unidade de ensino: dezenove entrevistas com questionário
semi-estruturado com os professores da sala regular e professores da sala de apoio.
Resultados e discussão
Como resultado preliminar da pesquisa em andamento, apresentamos dois
eixos de análise, a saber: 1) Critérios adotados pelos professores das salas
regulares para encaminhamento dos alunos para a sala de apoio e 2) Existência de
alunos nas salas de apoio que fazem uso de tratamento médico ou com outros
profissionais.
Eixo 1- Critérios adotados pelos professores das salas regulares para
encaminhamento dos alunos para a sala de apoio.
Nas entrevistas realizadas junto aos professores da sala de apoio e da sala
regular, (identificados, respectivamente por: Prof. PSA 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e PSR
1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10), buscamos investigar os critérios de avaliação para
encaminhamento dos alunos e as características destes alunos, por meios de
questões que enfatizaram: Que critérios foram usados para selecionar os alunos da
sala de apoio? Quem selecionou? Como selecionou? e Quais são as características
dos alunos que você encaminha para a sala de apoio?
Nas falas abaixo podemos identificar três critérios usados para o
encaminhamento dos alunos para a sala de apoio, quais sejam, 1) problemas de
comportamento e de atenção, 2) imaturidade e falta de pré-requisito e 3) defasagem
de conteúdo.
No que se refere à problemas de comportamento e de atenção, alguns
professores entrevistados afirmam que
PSR7: .... “tem aluno que é bem bagunceiro, ele não consegue aprender por causa da bagunça, conversa bastante. Outro aluno que é bastante tímido e ele não consegue associar assim palavras, muito menos ler. Por exemplo, fazer um seminário, ele não vai conseguir fazer. Então ele já tem essa dificuldade em se expressar, coisa de se expressar mesmo. E a letra, o pensamento também, falta de atenção bastante né. Que é esses alunos que travam”... (grifos nossos).
PSR9: “Alunos com déficit de aprendizagem, com dificuldades de concentração e que estão encontrando dificuldades com a disciplina (grifos nossos)”.
PSA1: “Alguns deles tem dificuldades e outros são descompromissados. Então é assim, indisciplina, desatentos, descompromissados, família desestruturada. E eles pensam assim, que vir para o apoio é para vir brincar, tanto é que eu falei, eu tenho um relatório que eu tenho que fazer deles, tanto das faltas quanto da aprendizagem, se melhoro, se teve progresso ou se continuou a mesma coisa. Então a maior parte deles são descompromissados, não tem responsabilidade, a preguiça também, não tem vontade. Que nem essa Janaina que veio ontem, ela tem dificuldade mas ela vem, as vezes ela questiona, ela vem tirar a duvida, já a outra não, não tem compromisso (grifos nossos)”.
PSA2: “É perceptível que os alunos que estão aqui tem desvio de concentração, eles tem dificuldades no aprendizado, falta de atenção, indisciplina” (grifos nossos).
A partir da fala dos entrevistados, é possível afirmar que o aluno
passa a frequentar a sala de apoio como uma “punição” á sua inadequação frente ao
modelo ideal de aluno que a escola e os professores almejam e reúne em si as
impossibilidades de aprender. Trata-se de um conjunto de atributos reunidos nessas
significações, tidos como negativos que são localizados no aluno e parecem assumir
um caráter permanente.
A característica mais comum na fala dos professores é que os
alunos são desatentos, tem dificuldades de concentração, falta de disciplina, mas
estas falas nos leva alguns questionamentos: a sala de apoio tem como objetivo
desenvolver a atenção dos alunos? O que é atenção para estes professores? Como
se desenvolve atenção nos alunos? O que é trabalhado com o aluno na sala de
apoio para que desenvolva a atenção e essa capacidade se expresse também na
sala regular?
Há alguns professores que acreditam que os alunos não acompanham a sala
de regular por não ter pré-requisito. Para explicar o porquê a criança não aprende,
as professoras usaram expressões como imaturidade e ausência de pré-requisito,
como pode ser verificado abaixo:
PSR3: “São alunos que não tem pré-requisito, que não acompanham a sala de aula e que eu pensei que com a sala de apoio poderiam obter melhores resultados.” (grifo nosso)
PSA2: “Eu percebo aqui que eles são muitos ‘novinhos’ né, eles têm muito insegurança, eles têm um pouco de dificuldade de aprendizagem, mas eles têm que começar a ter um pouco mais de segurança. Procurei trabalhar com eles, deles procurarem a resposta, eles têm muito medo, eles querem saber fazer o mecânico ali, então eu percebo essa dificuldade, eles não trabalham muito o raciocínio procurar chegar na resposta, pensar, analisar a situação, acho que é isso que falta muito. Mas ai tem caso de operação mesmo, mecânico né, divisão, por exemplo, no caso da Matemática, a divisão é a maior dificuldade que eles encontram, eles têm uma dificuldade imensa em fazer divisão né, mas eu ainda acredito que essa dificuldade é que não consegue entender o fundamento dessa divisão, o que é divisão?..., né?..., qual a definição de dividir, por isso que eles têm bastante dificuldade”.
Por fim, alguns professores estabelecem relações entre as defasagens de
conteúdos curriculares e a necessidade de os alunos frequentarem a sala de apoio:
PSA4: “Então, o primeiro critério é o seguinte: o professor da sala ele faz uma revisão diagnóstica com o aluno. No início do ano ele verifica como que ele vai continuar o conteúdo, como que ele vai iniciar o conteúdo dele, então ele precisa saber como que a sala está. E nessa revisão diagnóstica ele já percebe que tem alguns alunos com a defasagem, então ele encaminha uma ficha pra nós, mostrando a defasagem dos alunos óh, aí através dessa defasagem a gente vai trabalhando com os probleminhas, com os conteúdos que eles têm a defasagem. É ele que manda. O professor da sala que manda pra nó”s. PSR1: “É para aquele aluno que realmente precisa. Porque na realidade a sala de apoio não é para tirar as duvidas daquele ano é para tirar duvida anterior, é a defasagem mesmo. Então a gente percebe na primeira semana de aula eu faço a avaliação para ver o nível deles e as dificuldades. Eu coloco só exercícios de anos anteriores.” PSR6: “Os alunos foram selecionados por mim. Inicialmente não foi baixo rendimento em nota, foi observando as dificuldades deles em sala de aula. Aí no 2º bimestre foram alunos com baixo rendimento ou que eles perceberam algumas dificuldades e pediram que tivessem acesso a sala de apoio para sanar as dificuldades que eles tinham em sala de aula”.
A ideia que a sala de apoio é um espaço para alunos com defasagem nos
conteúdos anteriores fica explicita nas falas desses 3 professores. Entretanto,
chama a atenção o fato de que a avaliação e o encaminhamento destes alunos são
feitos logo nas primeiras semanas de aula, sem que professor tenha tido tempo de
realizar uma avaliação coerente e que tenha tido tempo hábil para conhecer os
alunos.
Podemos afirmar que os critérios utilizados para o encaminhamento dos
alunos foram subjetivos: empatia ou não com o aluno, “feeling” do professor, a
observação do comportamento do aluno nos primeiros dias de aula (indisciplina). O
aluno passa a frequentar a sala de apoio devido à inadequação frente ao modelo
idealizado de aluno. É indicado porque não atende às exigências de “aluno normal”
necessárias às situações de aprendizagem. É encaminhado porque é considerado
um “aluno problema”, pois reúne em si as impossibilidades de aprender. Assim que
o aluno cumpre sua “passagem” pela sala de apoio, pode retornar à “normalidade”
da sala regular.
A significação dada pelos professores a este espaço reforça a culpabilização do
aluno por seu baixo rendimento escolar, ou seja, pelo não aprender. Ao ter a
oportunidade de rever conteúdos que não aprendeu e “desperdiçá-la”, fica reforçada
a ideia, infelizmente recorrente, de que não aprende porque é mau aluno,
confirmando que a responsabilidade pelo aprender é do aluno e se ele apresenta
dificuldades de aprendizagem, o problema está centrado nele.
Compreende-se que a forma como o aluno é avaliado na escola revela a
organização do cotidiano escolar, as concepções sobre o aprender, os pressupostos
epistemológicos que norteiam a ação pedagógica e sugerem que os
encaminhamentos dos alunos à sala de apoio, sejam objeto de reflexão. A não
apropriação dos conteúdos por parte dos alunos, em nossa compreensão, não pode
ser ponto de partida ou causa para o não aprender, mas sim um indício de que o
processo de ensino-aprendizagem não anda bem, a contento. Considerá-lo
multicausal evita a culpabilização de um ou outro elemento na produção do
fenômeno.
Ao analisarmos as falas dos professores é possível observar que os seus
determinantes têm sido atribuídos muito mais aos fatores internos à criança,
colocando em segundo plano os fatores intraescolares (como a organização do
ensino) e extraescolares (como a lógica de funcionamento da sociedade capitalista).
Todavia, sabemos que as práticas pedagógicas exercem um papel fundamental nas
condições de educabilidade da criança, questão pouco discutida entre os
educadores.
Comum a todas essas concepções é o foco no aluno: ora é o seu aparato
biológico, ora a sua família incapaz, ora suas aptidões insuficientes ou distúrbios
psíquicos são produtores do fracasso. Às vezes, é a criança em si mesma,
entendida como um ser abstrato e vago, que não quer aprender.
Compreendemos que o aprender é um fenômeno complexo e que não pode
ser visto como unilateral, centrado apenas no indivíduo, ou na escola, ou na
professora, ou na família. Compreender, portanto, a escola como um espaço no qual
interatuam diferentes mecanismos e processos responsáveis pelo aprender/não
aprender é imprescindível. As dificuldades de aprendizagem revelam um processo
de complexidade maior e a indicação de participação do aluno na sala de apoio não
deve desconsiderar esse aspecto.
Eixo 2 - Existência de alunos nas salas de apoio que fazem uso de tratamento
médico ou com outros profissionais.
Dentre os 09 professores que atuam na sala de apoio (identificados,
respectivamente, como PSA 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9), 04 afirmam que sabem da
existência de alunos que fazem uso de tratamento médico e/ou psicológico e usam
medicação, embora desconheçam as razões que justificam seu uso. Esse dado
aponta para a naturalização do uso do medicamento no interior da escola, dado que
encontra-se em consonância com a prática da medicalização da educação e da vida:
PSA 2: Você sabe se algum dos seus alunos faz tratamento médico ou com outros profissionais da saúde, psicologia ou educação? PSA 1: “Nós temos casos de alunos que tomam ritalina, eu não sei o ‘problema’ só sei a medicação, pois o próprio aluno contou pra mim”. PSA 4: “Olha... até o que eu sei, eles tomam remédio, agora pra quê, se é pra déficit de atenção, eu não sei. Não tá escrito, mas eu sei que eles tomam remédio”. PSA 5: “Deixa eu ver... Guilherme, William, Talles, no momento que eu me lembro acho que tem seis, aqui na sala de apoio. Alguns psicológico, outros neurológicos. Tomam remédio”.
O encaminhamento de alunos aos especialistas na área de saúde, bem como
a administração do medicamento são considerados imprescindíveis para que o
aluno aprenda, tenha condição de permanecer em sala e tire boas notas, em
detrimento do papel do professor e do ensino escolar, fatores que não são sequer
mencionados pelos professores entrevistados:
Você sabe se algum dos seus alunos faz tratamento médico ou com outros profissionais da saúde, psicologia ou educação? PSA8: “Sim, alguns deles... Com psiquiatra, psicólogos... alguns necessitam e não fazem. O tratamento auxilia, se não acontecer é muito difícil fazer com que o aluno aprenda, acompanhe e mesmo tenha condição de ficar na sala” Você acha que isso interfere na aprendizagem do aluno? PSA 4: “Quando não toma o remédio daí tem esse problema, que a nota cai né... Você percebe pela nota, pela escrita, que ela não tá entendendo. Você pode explicar umas duas, três, quatro vezes que ele não vai entender”.
Esse discurso é compatível com a constatação de que a educação
contemporânea vem, por um lado, fetichizando o poder do remédio e, por outro,
delegando suas funções a outros especialistas, sobretudo aos da área da saúde,
pois perde de vista o fato de que remédio não educa e não promove o
desenvolvimento de capacidades psíquicas, como por exemplo, a atenção
voluntária.
A sala de apoio à aprendizagem transforma-se em um espaço de “triagem”,
onde ficam as crianças que aguardam realização da avaliação médica e tratamento
medicamentoso. O laudo é necessário para definir a entrada do aluno na sala de
recursos, e, indiretamente, também para determinar o que a criança é (in)capaz de
aprender. Isso pode ser verificado na passagem abaixo:
Você sabe se algum dos seus alunos faz tratamento médico ou com outros profissionais da saúde, psicologia ou educação? Você acha que isso interfere na aprendizagem do aluno? “Sim. Tem vários alunos assim. Que foi constatado assim é, como é que fala?!... Laudo. Tem muitos alunos, que tem a dislexia, algum tipo de comportamento que tem laudo e a gente trabalha diferenciado. Você acha que isso interfere na aprendizagem do aluno? Sim, como interfere. Mas só que o professor, que ele tem um... por exemplo, eu tenho uma aluna do 1º ano que eu trabalho com atividade diferente com ela, porque ela não vai entender, ela não vai entender uma função, jamais, pelo laudo médico né, mas só que a gente trabalha, a gente trabalha com as continhas. E ela está aqui na SAA? Não, ela não tá na SAA. Ela tá na sala de recurso. Por que a sala de recurso nada mais é do que uma sala de apoio também, de aprendizagem. Então os alunos que tem laudo estão lá? Tão lá. E aqui na SAA? Aqui que eu saiba não. Aqui só vem aluno com defasagem mesmo. Pode ser que eles estejam assim, tipo assim, procurando laudo. A mãe tá atrás do laudo, aí tá aqui primeiro pra depois ir pra lá, entendeu? (grifos nossos).
Pesquisas posteriores poderão dar continuidade a esse estudo, no sentido de
verificar como se dá, de fato, a intervenção pedagógica junto às crianças que
frequentam a sala de apoio à aprendizagem em virtude da queixa da existência de
problemas de atenção: esse espaço têm promovido a aprendizagem e o
desenvolvimento dessas crianças ou consiste apenas em um local de espera, até
que o laudo médico seja apresentado à escola e, assim, a criança passe a
frequentar a sala de recursos? E: a necessidade de apresentação de um laudo que
confirme a existência de uma dificuldade de atenção e comportamento, cujas causas
ainda são incertas mesmo no interior da própria medicina, para assegurar o ingresso
do aluno na sala de recursos não contribuiria para o acirramento de práticas
medicalizantes dentro e fora da escola?
Considerações Finais
Patto (1999) formulou importantes contribuições no sentido de romper com o
estigma de que fracasso é culpa do aluno ou de sua família e alerta para a presença
dos determinantes institucionais e sociais na produção do fracasso escolar, do que
problemas emocionais e neurológicos. A análise dos dados do presente estudo
permite afirmar que as questões levantadas por Patto (1999) apresentam-se atuais e
pertinentes. Pesquisa anterior, realizadas nas salas de apoio à aprendizagem
(CARVALHO, 2013), mostra que os professores na maioria das vezes não estão
preparados para lidarem com as dificuldades de aprendizagem apresentadas pelos
seus alunos. Nesse contexto, a prática da medicalização do fracasso escolar
encontra terreno fértil. Para os professores, este espaço é destinado à aqueles
alunos que sofrem a “doença do não-aprender” e, como doentes, precisam de
tratamentos especializados e medicamentos, mais do que de uma escola que
ensine.
Referências bibliográficas
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A medicalização da infância pela Disfunção Cerebral Mínima e pelo
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade: cara de um,
focinho do outro.
Rodrigo Bombonati de Souza Moraes
Centro Universitário São Camilo
RESUMO
O Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) nomeia o
comportamento considerado desatento e hiperativo, diagnosticado em crianças em
idade escolar. A Disfunção Cerebral Mínima (DCM) localiza, no cérebro, a origem de
comportamentos indesejados e não normais de crianças em mesma idade. Neste
trabalho, objetivamos realizar uma comparação entre essas duas modalidades de
psiquiatrização do comportamento infantil (FOUCAULT, 2006; COLLARES; MOYSÉS,
2010), tendo em vista a sofisticação discursiva dos processos de medicalização. Para
tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica, analisando as literaturas acerca dos
transtornos, publicadas em livros e artigos científicos desse campo, analisadas
criticamente. Em linhas gerais, podemos dizer que o discurso em torno do TDAH
complexificou-se comparativamente à DCM embora os temas e, muitas vezes, as
dúvidas quanto aos objetos analisados sejam semelhantes. Enquanto os
pesquisadores utilizam o manual da psiquiatria norteamericana DSM (Diagnostic and
statistical manual of mental disorders) para definir o TDAH, a definição da DCM é
orientada por meio de associações psiquiátricas. Percebemos continuidade na forma
de entender o comportamento desviante ou patológico da DCM para o TDAH, em que
a criança que tem o distúrbio ou o transtorno é aquela que está fora da norma,
incomoda, causa aversão aos colegas, familiares e professores, é insidiosa, tem baixo
desempenho escolar, não para quieta, perturba, argumenta inapropriadamente e que,
se não for diagnosticada e tratada, terá uma vida repleta de riscos, frustrações,
fracassos, desajustes sociais, em suma, de infelicidade. O diagnóstico é clínico e
ativado pelas pessoas que convivem com a criança. O tratamento é medicamentoso
com psicoestimulante. Concluímos que o TDAH é uma nova roupagem do DCM,
possibilitada pela utilização de conceitos neurocientíficos modernos, não menos
incontestados, algo que traz maior complexidade à questão da medicalização do
comportamento infantil.
Palavras-chave: Medicalização; Psiquiatrização da infância; TDAH; DCM.
INTRODUÇÃO
No Brasil, existem alguns trabalhos científicos – teses e dissertações – que
buscam criticar a medicalização da infância (PEREIRA, 2010; GUARIDO, 2008;
FREITAS, 1996). Tais trabalhos contribuem muito para a discussão ora apresentada,
além de abrirem a possibilidade de aprofundarmos a questão do controle sobre a
infância em outra perspectiva e apontar diversas consequências que transcendem o
campo educacional.
Por outro lado, o tema do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH), diagnosticado em crianças em idade escolar, ainda anima muitas pesquisas
consideradas científicas na tentativa de descobrir suas causas e modos de
tratamento. Já o tema da Disfunção Cerebral Mínima (DCM), diagnosticada nessa
mesma parcela da população, possuía as mesmas preocupações na década de 1970.
Ao comparar as formas clínicas que constituem essas duas “doenças” (definição,
prevalência, sintomas comportamentais, dificuldades escolares e comorbidades,
etiologia, diagnóstico e tratamento), observamos certa continuidade na forma de
produção de verdade sobre o corpo infantil.
Neste artigo, fruto de reflexão feita em tese de doutorado, objetiva-se realizar
uma comparação entre essas duas “patologias mentais” a partir dos discursos que as
constroem. Ou seja, trabalhamos as conceituações sobre o TDAH comparativamente
à Disfunção Cerebral Mínima (DCM) para perceber o processo de continuidade ou
desvio de um em relação à outra. O que nos aparece como fundamental é, por um
lado, a comparação entre o TDAH e a Disfunção Cerebral Mínima (DCM), que nos
fornecerá a percepção do processo de medicalização do comportamento infantil e, por
outro, a maneira como a infância insere-se no debate psiquiátrico atual.
Para tanto, realizamos uma pesquisa bibliográfica, analisando artigos e livros
que expõem a visão de mundo dos autores imersos na construção e justificação
desses temas, bem como as transformações dos conceitos utilizados nos discursos
médico-psiquiátricos e as consequências para o processo de medicalização.
Estruturalmente, além desta Introdução, o artigo divide-se em outras três
seções: na próxima etapa, faremos uma apresentação dos conceitos de
medicalização e psiquiatrização da infância, a fim de que sirvam como quadro
conceitual para a análise crítica da comparação entre o DCM e o TDAH, algo que será
realizado na última seção; entrementes, realizaremos uma revisão bibliográfica
positiva desses dois transtornos.
A MEDICALIZAÇÃO e a PSIQUIATRIZAÇÃO da INFÂNCIA
O processo de medicalização da criança no Brasil, por meio do TDAH, tem a
finalidade de criar o dispositivo de normalização do comportamento infantil para
adequação ao meio social produtivo tendo em vista um futuro repleto de riscos. Em
outras palavras, as estratégias de biopoder e de biopolítica do TDAH (FOUCAULT,
1998) visam à normalização do comportamento infantil, o que ocorre por meio dos
saberes e práticas de especialistas, criados sobre seu corpo, inseridos no campo de
poder constituído em torno da medicalização. O controle sobre esse comportamento
é uma de suas consequências. A medicalização seria assim uma justificativa científica
para a normalização da vida, visando à extração máxima de suas capacidades para
o desempenho.
Isso é feito pela assunção dos comportamos considerados anormais como
transtornos médicos e que, portanto, devem ser diagnosticados e tratados como
patologias (ROHDE; HALPERN, 2004; CONRAD, 1975). Para isso, os argumentos
médicos-científicos investem na naturalização do comportamento como patológico e
que somente será normalizado por meio de diagnósticos médicos e de tratamentos
medicamentosos (ILLICH, 1975; ROUDINESCO, 2000; ROSE; 1999, 2001;
COLLARES; MOYSÉS, 2010).
A questão disciplinar que leva à psiquiatrização do comportamento infantil
envolve um poder que, para Foucault (2006, p. 50), seria uma “forma capilar de poder,
última intermediação [...] pela qual o poder político (os poderes em geral) vem tocar
os corpos, agir sobre eles, levar em conta seus gestos, comportamentos, hábitos,
palavras”. Pensando no corpo da criança pelo dispositivo para o controle de suas
ações, os discursos constituem a criança por meio dos poderes disciplinares.
Não podemos desvincular o poder psiquiátrico do poder disciplinar, uma vez
que surgem como modalidades que podem ser chamadas de contato sináptico corpo-
poder, numa noção psicossociológica de autoridade (FOUCAULT, 2006). Além disso,
ao analisar a psiquiatria a partir do poder disciplinar, Foucault investiga o fato de a
psiquiatria produzir discurso verdadeiro que cria instituições e poderes.
A visibilidade do corpo, dos gestos, dos discursos e comportamentos, alinhada
à escrita, permite a individualização esquemática e, como efeito de poder,
centralizada. Isso faz com que o comportamento não mais precise ser,
necessariamente, punido, pois, com as informações disponíveis, o poder disciplinar
intervém antes do corpo se manifestar, antes do gesto, antes do discurso, no nível da
virtualidade, conforme ilustram os transtornos ora apresentados.
DCM e TDAH: cara de um; focinho do outro
Definições: o simpósio realizado em Oxford, em 1962, marcou um importante
momento para a DCM, pois se oficializou a nomenclatura “Disfunção Cerebral
Mínima”, uma vez que não havia suporte anátomo-clínico para sustentar a ideia de
“lesão”. A DCM refere-se a (LEFÈFRE; MIGUEL, 1975): 1) crianças sem problema de
inteligência; 2) problemas de aprendizagem e/ou distúrbios de comportamento de leve
a severo; 3) discretos desvios de funcionamento do sistema nervoso central; 4) pode
apresentar combinações de déficit na percepção, conceituação, linguagem, memória,
controle da atenção, impulsos ou função motora; 5) sintomas similares (considerados
aberrações) podem ou não complicar o problema como paralisia cerebral, epilepsia,
retardo mental, cegueira ou surdez; 6) causas por variação genética, irregularidades
bioquímicas, sofrimento na gravidez, moléstias ou traumas durante a infância ou
causas desconhecidas; e 7) nos anos escolares, há dificuldades especiais de
aprendizagem que constituem as mais importantes manifestações da condição de
DCM.
Quanto ao TDAH, Santos e Vasconcelos (2010, p. 717) atentam para o fato de
a sua compreensão ser feita pela conjunção de bases biológicas e comportamentais,
contribuindo para a implementação de terapias mais eficazes. O TDAH é um
comportamento de risco, mas que este não necessariamente representa o transtorno
e sim outra possível forma de patologia psiquiátrica. A tríade de sintomas da síndrome
caracteriza-se por desatenção, hiperatividade e impulsividade (ROHDE et al., 2000,
p. 7).
As definições apresentadas são muito similares, pois levam em consideração,
de maneiras distintas, os três sintomas que definem as patologias. Contudo, a
definição de DCM é mais genérica, menos classificatória e menos precisa. Já a
definição do TDAH parte de uma base bastante simples e descritiva (desatenção,
hiperatividade e impulsividade).
Prevalência: ambos os estudos concordam que a prevalência é maior em meninos,
mas em termos de epidemiologia, os números são discrepantes. Enquanto a
estimativa para TDAH é de 3% a 6%, o de DCM ocorre entre 5% e 10%, os estudos
de DCM parecem não ter alcançado uma maior exatidão devido à falta de precisão na
elaboração dos critérios de diagnóstico.
Sintomas comportamentais, dificuldades escolares e comorbidades: os
pesquisadores em torno do TDAH apresentam diversas características individuais e
critérios mais objetivos que possam constituir o quadro do transtorno. A
sintomatologia da DCM é bastante genérica, aponta para comportamentos que não
necessariamente correspondam ao distúrbio, além de depender quase que
exclusivamente da subjetividade do clínico. Alguns aspectos são muito semelhantes,
como a continuidade do transtorno na vida futura, as consequências negativas que
possam advir e os potenciais danos sociais que possam ocorrer caso o distúrbio e o
transtorno não sejam tratados. Ademais, os aspectos de dislexia, disgrafia e
discalculia considerados como comorbidades na DCM desaparecem no TDAH, pois
essas ganham um estatuto de transtorno em separado.
Tanto na DCM quanto no TDAH, os riscos que as crianças com os transtornos
podem sofrer em termos de sociabilidade e desempenho escolar são largamente
alardeados, principalmente, quanto à baixa performance na execução das tarefas e
trabalho e ao fracasso escolar (repetência, notas baixas etc.).
Etiologia: a ideia proposta na DCM de que o distúrbio advém de uma base orgânica
relativa ao cérebro, que possui uma causa genética, constituída por diversos genes,
e que causa deficiências nos neurotransmissores não foi abandonada nas análises do
TDAH. No caso da DCM, Lefèvre e Miguel (1975, p. 15) mostram que se trata de: uma
síndrome orgânica cerebral; prevalência no sexo masculino (4:1 em relação ao
feminino); herança hereditária, mesmo que não haja estudos que comprovem, do tipo
poligênico; etiologia ligada a distúrbios bioquímicos na esfera das catecolaminas em
função de neurotransmissores; a d. anfetamina afetar o metabolismo central da
dopamina (DA) e da noropinefrina (NE).
No caso do TDAH, os autores mostram, ainda, que as causas precisas da
doença não são conhecidas, mas que há uma aceitação na literatura de que fatores
genéticos e ambientais favorecem o desenvolvimento do transtorno. Acredita-se
assim que vários genes possuam influência sobre o transtorno (poligênico).
Investigam-se genes codificadores de componentes dos sistemas “dopaminérgico,
noradrenérgico e, mais recentemente, serotoninérgico”. Isto porque estudos
neurobiológicos têm sugerido o envolvimento desses neurotransmissores na
patofisiologia do transtorno.
Aqui, os estudos sobre o TDAH adicionaram mais um neurotransmissor, a
serotonina. Ambos os estudos, contudo, atentam para a ausência de evidências que
realmente comprovariam essas hipóteses.
Diagnóstico: ambos atestam a necessidade de exames clínicos, a partir da
identificação dos sintomas na criança. No TDAH, o diagnóstico é realizado com a
utilização do DSM e do CID, esperando verificar “se o sintoma supostamente presente
correlaciona-se com o constructo básico do transtorno, ou seja, déficit de atenção e/ou
dificuldade de controle inibitório” (ROHDE; HAIPERN, 2004, p. S64). Outro
instrumento bastante utilizado para o diagnóstico de TDAH é o chamado SNAP IV. Já
o diagnóstico da DCM deve ser feito por uma equipe multidisciplinar, sendo as
suspeitas levantadas nos primeiros dias da atividade escolar, ao se observarem
problemas de comportamento e de aprendizado, momento em que se encaminham
as crianças para exames neurológicos, psicológicos e eletrencefalográfico. Contudo,
a dificuldade reside no fato de haver ausência total de sinais neurológicos (LEFÈVRE;
MIGUEL, 1975, p. 18). Os autores do TDAH e da DCM alertam para a impossibilidade
de comprovação dos transtornos por meio de exames neurológicos e por
neuroimagem ou eletroencefalógrafo no caso da DCM. Contudo, abrem a
possibilidade de que possa haver uma comprovação futura.
Tratamento: tanto os estudos da DCM quanto do TDAH advogam a utilização de
psicoestimulantes para tratar os transtornos. Além disso, os autores apontam para
uma melhora significativa dos sintomas com o uso do metilfenidato. No caso do TDAH,
por se tratar de um quadro de deficiência de estratégias cognitivas, priorizam-se
intervenções como auto-instrução, registro de pensamentos disfuncionais, solução de
problemas, auto-monitoramento, auto-avaliação, planejamento e cronogramas
(SANTOS; VASCONCELOS, 2010, p. 720-721). Uma terapêutica alternativa sugerida
no estudo da DCM são os exercícios de motricidade para os casos de dislexia,
disgrafia, discalculia e distúrbios motores. Em ambos os casos, claramente, tais
tratamentos aparecem como alternativas ao tratamento medicamentoso.
DCM e TDAH: a sofisticação discursiva da medicalização
Podemos dizer que o discurso em torno do TDAH complexificou-se
comparativamente à DCM embora os temas e, muitas vezes, as dúvidas quanto aos
objetos analisados sejam semelhantes. Além disso, enquanto que os pesquisadores
utilizam o DSM para definir o TDAH, a definição da DCM é orientada por meio de
associações médico-psiquiátricas. Talvez, naquele momento, o DSM ainda não
tivesse se legitimado como porta-voz do discurso competente. Outra característica
dos estudos em torno do TDAH é a imensa preocupação com a citação de estudos e
com a comprovação das informações por meio de dados estatísticos. Percebemos
ainda que houve uma continuidade na forma de entender o comportamento desviante
ou patológico da DCM para o TDAH, em que a criança que tem o distúrbio ou o
transtorno é aquela que está fora da norma, que incomoda, que causa aversão aos
colegas, familiares e professores, que é insidiosa, que tem baixo desempenho escolar,
que não para quieta, perturba, argumenta inapropriadamente e que se não for
diagnosticada e tratada terá uma vida repleta de riscos, descaminhos, frustrações,
fracassos, desajustes sociais, em uma palavra, infelicidade. O diagnóstico é,
invariavelmente, clínico e ativado pelas pessoas que convivem com a criança. O
tratamento é, invariavelmente, medicamentoso com psicoestimulante.
Ao se propor, no caso do TDAH, a existência de uma lesão cerebral não muito
grave ou mesmo mínima que justificaria o comportamento hiperativo da criança não
se consegue estabelecer quaisquer conexões anatomopatológicas para determinar a
causa dessas doenças. O interessante é que as práticas psiquiátricas utilizam estes
discursos como referências, mas o tratamento não os leva em consideração. Assim,
os discursos aparecem como garantias de verdade de uma prática psiquiátrica que
pretendia a verdade como lhe sendo dada, sem questioná-la.
A questão da verdade não se coloca entre o psiquiatra e a doença mental posto
que a psiquiatria já é uma ciência. Ou seja, a psiquiatria já se vê como uma ciência na
prática, aparecendo como detentor dos critérios de verdade. Impõe aos corpos
dementes e agitados um sobrepoder que dá à realidade, pois detém a verdade em
relação à doença mental (FOUCAULT, 2006). A família inicia, e não necessariamente
a escola, o que Foucault (2006) chama de disciplina psiquiátrica, tornando-se o olhar
psiquiátrico de vigilância da criança para decidir sobre o normal e o anormal, por meio
do controle da postura, dos gestos etc.
Contudo, o problema da psiquiatria refere-se ao problema da verdade. O poder
psiquiátrico é, assim, um suplemento de poder por meio do qual o real é imposto,
digamos, à doença mental “em nome de uma verdade detida de uma vez por todas
por esse poder sob o nome de ciência médica, de psiquiatria” (FOUCAULT, 2006, p.
164-165). A psiquiatrização da infância passa pelos comportamentos em forma de
furor, violência agitação e, por outro, de abatimento, inércia, não-agitação, demência,
imbecilidade expressões comportamentais observadas tanto pelo TDAH quanto pela
DCM.
Podemos dizer que o saber psiquiátrico é um dos elementos por que o
dispositivo disciplinar organiza o sobrepoder da realidade em torno da doença mental.
É próprio do saber científico moderno supor que haja verdade em toda a parte, lugar
e o tempo todo. Essa verdade é aquela que se constata, que é dada na forma de
demonstração. A questão da verdade é assim introduzida, tanto no TDAH quanto na
DCM, a partir tanto do interrogatório quanto do uso de drogas que cada vez mais se
afirma em nossa sociedade e que fora, inicialmente, silenciado. O interrogatório fixa,
enquanto método disciplinar, o indivíduo à norma da sua identidade, vincula o
indivíduo à identidade social e à assinalação de portador de transtorno que lhe foi
imputada pelo meio. Já as drogas, como o metilfenidato, eram e continuam sendo um
instrumento disciplinar evidente, pertencendo ao reino da ordem, da calma, “da
colocação do silêncio” (FOUCAULT, 2006, p. 301).
Finalmente, percebemos que esse processo de medicalização possui os
elementos analíticos propostos por Rabinow e Rose (2006, p. 29), pois há, em ambos
os casos, discursos de verdade sobre a vitalidade dos seres humanos, e um conjunto
de autoridades ou especialistas que falem sobre essa verdade, além de modos de
subjetivação, em que os indivíduos são levados a agir sobre si mesmos, sob certa
autoridade, orientados pelos discursos de verdade, por meio de práticas do self, em
nome de sua vida ou saúde, de sua família ou de uma coletividade ou ainda de uma
população como um todo.
À GUISA DE CONCLUSÃO
Neste artigo, procuramos mostrar que o campo da medicalização da infância
parece tornar-se cada vez mais complexo, na medida em que os argumentos
médicos-científicos sofisticam-se. As diversas pesquisas relativas a todas as áreas
envolvidas na definição e legitimação da DCM, no passado, e do TDAH, atualmente,
fazem com que o novelo de forças atuantes no campo médico torne-se mais
intrincado, fugidio, dados os métodos empregados na constituição do TDAH como
patologia. Os saberes produzidos em torno do funcionamento das patologias cada vez
mais sem corpo (ROSE, 2001) são possíveis justamente por conta da busca das
relações entre elementos cada vez mais tênues (como as proteínas que compõem
determinado gene) que apontam para a perda há muito de um sujeito doente.
Antes, a sigla DCM ainda apontava para algo concreto (cérebro). Agora, o
TDAH aponta para ações demasiado abstratas que, embora provenham de um corpo,
esse já não é mais necessário. Acontece aqui o oposto da clínica do corpo sem órgãos
(DELEUZE; GUATTARI, 1996), em que o “corpo sem órgãos porque não requer mais
a tecnologia disciplinar do exame ou de que sejam vistos para o diagnóstico que gera
a prescrição ‘clínica’. O diagnóstico antecede o exame físico, é o diagnóstico do risco,
e estamos todos sob o risco da doença dos órgãos. Esse corpo sem órgãos, em
contrapartida, é um corpo sem forças, débil, exausto” (CECCIM; MERHY, 2009, p.
539). O corpo sem órgãos que estaria desprendido das forças que o tentariam
controlar é ainda mais controlado quando se elege o órgão (cérebro) ou o
comportamento (excesso de atenção e falta de atividade) como objetos de
investigação. Cria-se uma nomenclatura adequada à sintomatologia de um
comportamento social, ao mesmo tempo em que se buscam explicações
neurofisiológicas, para um comportamento considerado, no mínimo, diferente do
esperado ou, na realidade, anormal. O percurso da DCM para o TDAH ainda revela a
utilização de novos meios de biopoder como as técnicas psicológicas baseadas na
cognição e no comportamento. Antes, trabalhava-se o corpo com a psicomotricidade;
agora, trabalha-se a mente com a psicologia cognitivo-comportamental.
REFERÊNCIAS
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III Seminário Internacional Educação Medicalizada: Reconhecer e Acolher as Diferenças
Eixo 1: Ciência, Ideologia e Medicalização dos Diferentes Modos de Viver
A MEDICALIZAÇÃO EM ESTUDANTES: UMA REFLEXÃO A PARTIR
DA CONTRIBUIÇÃO DOS PROFESSORES
Cláudia Yaísa Gonçalves da Silva
Núcleo de Educação Continuada do Paraná
Michely Baladeli Borges Fransozio
Universidade Estadual de Maringá
PALAVRAS-CHAVE: Transtorno da falta de atenção com hiperatividade;
Medicalização; Professores.
QUADRO CONCEITUAL
Ambiente Escolar
Distúrbios de Aprendizagem
Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade
Outros Distúrbios
Visão Médica (medicalização)
Visão Contextualizada (biopsicossocial)
OBJETIVOS
Objetivo geral: O referido trabalho pretende reconhecer a visão que
professores do Ensino Fundamental da instituição particular manifestam
especificamente sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e
a medicalização no alunado.
Objetivos específicos:
- Apresentar uma breve contextualização acerca da evolução do pensamento
médico e sua influência nas diversas esferas da sociedade, inclusive na educação;
- Explicar o fenômeno da medicalização e sua relação com o aumento dos
diagnósticos de distúrbios de aprendizagem em alunos;
- Expor a dificuldade existente quanto à declaração da origem do TDAH e seu
diagnóstico;
- Suscitar a reflexão sobre os atuais diagnósticos de distúrbios de aprendizagem na
escola e a postura dos professores frente ao assunto.
METODOLOGIA
O presente estudo é de abordagem qualitativa e utilizou como principal
instrumento para levantamento dos dados, questões abertas a respeito da
compreensão que professores do Ensino Fundamental da escola particular possuem
sobre o assunto exposto. Para a realização do levantamento dos dados, foram
elaboradas perguntas abordando as informações que o professor possui sobre o
TDAH, sua postura perante o aluno diagnosticado com esse transtorno, a opinião
que o educador apresenta sobre esse tipo de medicalização na infância e as
características que considera inerente ao TDAH. A participação dos informantes foi
voluntária e salientou-se a preservação da identidade dos mesmos, pois o objetivo
principal da pesquisa permeia um levantamento geral acerca da opinião e
entendimento dos educadores frente à temática proposta.
RESULTADOS
Atualmente, no campo educacional, são crescentes os casos de crianças e
adolescentes fazendo uso de medicação por terem sido diagnosticadas com alguma
dificuldade dentro do espectro dos distúrbios de aprendizagem, principalmente o
TDAH. Tem-se identificado a utilização desses diagnósticos para justificar o fracasso
escolar dos alunos com dificuldades de aprendizagem, desconsiderando o contexto
social e histórico do sujeito e muitas vezes, a precariedade do próprio processo
ensino-aprendizagem.
Observa-se, então, a biologização da vida humana sendo tomada como
resposta para grande parte dos problemas sociais. A influência da clínica médica nos
diversos âmbitos da sociedade tem origem já no século XIII, em que o pensamento
médico positivista ganhou legitimidade enquanto atestado de verdade acerca da
doença. A partir do século XIX esse poder ficou ainda mais sustentado pela maior
objetividade e empirismo que a prática médica adquiriu (Foucault, 1977).
Como explica Priszkulnik (2000), o rigor científico passou a dirigir a clínica
médica pela objetividade, racionalidade e generalização, buscando nos sinais do
corpo a base para os diagnósticos, tratamento e obtenção da cura. Também a
regularidade dos sintomas se tornaram importantes para a classificação das
doenças por parte do médico, oferecendo melhor organização e segurança à
população geral.
Retomando o contexto escolar, Guarido (2007) refere que até o século XX a
pedagogia tinha o interesse de prevenir possíveis problemas na criança, que
pudessem desenrolar em dificuldades no adulto que ela viria a se tornar. Assim,
nesse período, o saber médico começou a se voltar para o desenvolvimento infantil,
procurando formas de tratamento para as crianças com dificuldades no meio escolar.
Surgiram, ainda, testes de inteligência visando indicar as pessoas apropriadas ao
modelo de aprendizado instituído pela instituição escolar em voga.
Por esse viés, a autora ressalta o quanto nessa época a fonoaudiologia,
psicologia e psicopedagogia, entre outras especialidades, inseriram-se no campo
escolar de modo a contribuir para que a problematização dos insucessos do alunado
recaíssem nele e na esfera familiar. Em meio à significativa intervenção do
pensamento médico, ficou difícil considerar problemas escolares para além do
biológico, ou seja, entender certas dificuldades de aprendizagem como fruto de um
sofrimento psíquico ou da não adequação aos moldes escolares vigentes. Tal
sistema se estende até os dias atuais, onde se constata o peso da psiquiatria sobre
a visão de profissionais da educação.
Adentrando na questão da medicalização, tem-se este termo para explicar
quando os problemas de ordem política e social são compreendidos e tratados como
sendo de princípio biológico. Contudo, o fato de profissionais de diversas áreas
igualmente ingressarem nessas práticas do campo médico, ampliou-se para o
conceito de patologização. O maior problema percebido é a responsabilização do
próprio sujeito e sua família sobre o que tange o processo de saúde e doença do
mesmo (Collares & Moysés, 1994).
Nesse sentido, Meira (2012) afirma não se estar fazendo uma crítica à
medicação eficaz de doenças, mas à banalização dos diagnósticos de distúrbios de
aprendizagem, sem a necessária avaliação do contexto histórico-social em que o
aluno se encontra inserido e aos fenômenos presentes na educação atual. Ao invés
da escola questionar apenas o motivo pelo qual o aluno não aprende, deveria
ampliar as indagações e investigar o que a instituição escolar tem feito para que o
aluno não tenha interesse e apresente falta de concentração.
Todas essas implicações se tornam ainda mais delicadas quando se diz
respeito sobre o diagnóstico do TDAH, o qual é palco de contradições de discursos e
inexatidão científica. Para Coelho, Chaves, Vasconcelos, Fonteles, Sousa & Viana
(2010), o diagnóstico exato é difícil, devendo abranger basicamente o quadro
comportamental do sujeito por não haver ainda comprovação científica de um
indicador orgânico ligado à origem de todas as variações do transtorno, além de não
ser eficaz o tratamento apenas com uso de psicoativos. Legnani e Almeida (2008)
destacam além da observação do comportamento, a realização de entrevistas com
pais e professores, avaliação neurológica, descarte da possibilidade de outras
doenças tanto de fundo biológico quanto psicológico e uso de testes de inteligência.
Mesmo assim, verifica-se que na maioria dos casos não se cumprem todo o
processo diagnóstico descrito acima, ficando restrito à averiguação dos sintomas e
inserção medicamentosa.
Por haver, ainda, uma discrepância entre as especialidades médicas a
respeito da origem exata do TDAH, observou-se por meio das questões aplicadas
aos professores da pesquisa, também uma dificuldade deles em falar sobre o
assunto. Muitos se sentiram inibidos em afirmar algo sobre o transtorno. Contudo,
não foi identificado o desconhecimento completo da temática, ao contrário, existe um
domínio geral construído por conhecimento prévio (estudo, leituras, discussões entre
os pares) e por experiências cotidianas da sala de aula. Ainda assim, a experiência
com o aluno no ambiente escolar se mostrou ser a fonte que melhor ilustra aos
professores, as peculiaridades e alcances do TDAH.
Ao averiguar a amplitude dos sintomas descritos no TDAH, nota-se que o
fármaco metilfenidato, comercialmente conhecido como Ritalina, consegue suprir
uma variedade de demandas, desde a agitação até seu oposto, a apatia da criança
ou adolescente. Assim, eliminando os sintomas, erroneamente se acredita que o
problema de comportamento e aprendizagem está sendo tratado. No entanto, o
medicamento parece estar mais a serviço de aliviar a angústia daqueles que não
sabem como lidar com o aluno, podendo ser a escola ou mesmo a família, do que a
ele próprio (Santos, Silva, Luzio, Yasui & Dionísio, 2012). Em vista disso, alguns
professores apontaram os efeitos positivos do medicamento nos casos difíceis de
concentração e indisciplina em sala de aula, mas, detectaram que algumas famílias
faziam o uso indiscriminado do remédio para conter o comportamento dos filhos,
quando estes se apresentavam difíceis de controlar.
Brant e Carvalho (2012) mencionam a necessidade de haver precaução ao
utilizar a Ritalina, descrito na própria bula do medicamento. Uma atenção especial
deve ser dada às pessoas com histórico de abuso de álcool e substâncias químicas
abusivas que podem ser emocionalmente instáveis.
No discurso dos professores, pôde-se reconhecer que para alguns alunos a
medicação auxilia consideravelmente no rendimento escolar, ocasionando a
diminuição da agitação e comportamentos inadequados durante a aula, e permitindo
algum nível de foco nas atividades propostas. No entanto, certos educadores
questionaram a dose medicamentosa administrada a uma parcela de alunos, que
parece ser excessiva devido ao bloqueio comportamental e engessamento inserido.
Destaca-se no discurso de alguns professores, que há os alunos que mesmo
fazendo uso de medicação não aparentam mudança considerável, continuam
desatentos, agitados, às vezes agressivos e desobedientes.
Por fim, destaca-se uma preocupação e empenho em grande parte da equipe
pedagógica para com os alunos medicados e diagnosticados com TDAH ou outras
dificuldades de aprendizagem. De forma geral, os educadores referiram tentarem
propor atividades que exijam diferentes habilidades para que o aluno que tenha
maior dificuldade em um tipo de avaliação, por exemplo, consiga mostrar sua
capacidade de outra forma. Verificou-se um cuidado do professorado também em
poupar os alunos com dificuldades escolares do constrangimento perante a turma,
auxiliando-os a se concentrarem e acompanhando mais de perto a produtividade dos
mesmos.
CONCLUSÕES
Faz-se passível de elucidação, que o campo dos distúrbios de aprendizagem
ainda não é de todo claro, havendo dúvidas, questionamentos e controvérsias tanto
entre os especialistas ligados à saúde, quanto à equipe pedagógica que lida
diretamente com essa clientela.
Todavia, verificou-se que mesmo assim, os professores do ensino particular
têm buscado envolver-se ativamente diante das dificuldades de cunho pedagógico
apresentadas por seus alunos. Dentro das possibilidades, procuram aproximar-se do
problema do aluno e sua família, para conseguir o desenvolvimento de um trabalho
melhor articulado e vislumbrando um sujeito por completo (biopsicossocial).
No que diz respeito ao TDAH, vale notar que mesmo os professores,
identificaram uma grande variação de comportamentos e reações dos alunos que
utilizam medicamento para o transtorno, não havendo um fácil discernimento de
quem realmente precisaria da introdução do fármaco para obtenção de resultados
satisfatórios no meio escolar. Apontam-se casos em que houve benefício do remédio
e outros sem mudança aparente, ou então, uma contenção desmedida do sujeito.
Acima de tudo, o atual estudo conseguiu mapear por meio da contribuição
dos professores do ensino particular, que uma parte dos alunos pode estar sendo
medicada indevidamente ou que o fármaco está sendo imposto de modo abusivo e
em um contexto errôneo. Porém, os educadores com suas limitações, procuram
atuar da melhor forma, adaptando o conteúdo à diversidade da classe e às
características peculiares que podem variar de aluno a aluno. A postura desse tipo
de educador oferece a esperança de que pelo menos no ambiente escolar, algo
esteja sendo realizado para além de um laudo diagnóstico, que se não usado
corretamente, patologiza a sociedade e uniformiza o ser humano.
Vale proferir que as reflexões desenvolvidas neste trabalho não procuram
negar a ocorrência de problemas de ordem biológica estar associadas às
dificuldades no aprendizado e aos comportamentos inadequados. Entretanto, diante
da fragilidade das constatações científicas sobre a procedência desses distúrbios,
deve-se atentar e contextualizar o problema, para não recair em rotulações sem
fundamento que podem marcar a vida e o futuro de uma pessoa.
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A MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA: UMA INVESTIGAÇÃO ACERCA DAS QUEIXAS ESCOLARES QUE
CHEGAM A UMA CLÍNICA-ESCOLA DE PSICOLOGIA
Lorena Carrillo Colaço (UNICENTRO) José Alexandre de Lucca (UNICENTRO)
O debate conceitual sobre a relação Medicalização e as "queixas escolares"
Com o crescente número de crianças/adolescentes encaminhados aos
serviços de atendimento médico, psicológico, fonoaudiológico, entre outros, com
perfil de queixa escolar, entendemos que se faz necessária a contínua reflexão
crítica acerca da temática.
A partir do trabalho de Neves & Almeida (2006), encontramos que a queixa
escolar é o motivo mais frequente pelo qual crianças são encaminhadas diariamente
aos serviços de atendimento psicológico e existem, também, inúmeras pesquisas
que apontam para a fragilidade dos “diagnósticos” que justificam as queixas
escolares (SOUZA, 2005; NEVES & ALMEIDA, 2006; CALIMAN, 2010; PATTO,
1999, etc.) e que criam o fenômeno chamado “medicalização”.
De acordo com Collares (1992, p. 25), “a medicalização é um dos fatores
indicados como responsável pelo fracasso escolar das crianças”. Em geral, para os
agentes da escola, a causa desse fracasso é extra-escolar, vêem a criança como
doente, quando ela não se apresenta como a escola deseja. Sobre o termo
“medicalização”
[medicalização] refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e as soluções para problemas dessa natureza. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo (COLLARES & MOYSÉS, 1994, p. 25).
O uso da palavra “medicalização” se deve ao fato de que não só os médicos
estão tornando biológicas as causas dos problemas de origem social. Outros
profissionais – psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, professores – através de
uma prática organicista, também “patologizam”, tornam uma patologia/doença
aquela característica da criança que, segundo a escola, não condiz com a
“normalidade”, essa causa é encontrada apenas no indivíduo (COLLARES &
MOYSÉS, 1994).
A patologização do cotidiano escolar resulta no diagnóstico de transtornos
como, por exemplo, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH).
Na linha de contraposição ao tdah, é necessário resgatar o conceito de atividade
que, para Leontiev, pode ser definido como a forma que o homem se relaciona com
o mundo, sempre orientada por objetivos e motivos, agindo de forma intencional
(LEONTIEV, 1978)
Leontiev enfatiza, basicamente, no conceito de atividade, o importante papel
das condições sócio-históricas em que o sujeito cresceu e se desenvolveu e também
da consciência individual (VYGOTSKY; LURIA; LEONTIEV, 2010).
As características e os critérios diagnósticos do Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade são apresentados, pela primeira vez na 3ª edição do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, que está transitando para
sua 5ª edição (conhecido como DSM-V). Na 4ª edição, publicada em 2002 pela
American Psiquiatrist Association (APA), o TDAH é descrito como um padrão
persistente de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade. Segundo o Manual,
“não existem características físicas específicas associadas com o Transtorno de
Déficit de Atenção/Hiperatividade” (2002, p. 115), ou seja, sua veracidade enquanto
transtorno neurológico não é comprovada. Na elaboração desse diagnóstico, os
aspectos sócio-históricos em que a criança está inserida são descartados, uma vez
que considera o TDAH como tendo origens genéticas e biológicas. Segundo
Vygotsky a única aptidão nata do ser humano é a capacidade que ele tem para
formar e aprender novas aptidões e de desenvolver sua inteligência e personalidade
(VYGOTSKY, 1998), ou seja, há uma relação dialética entre aprendizagem e
desenvolvimento.
Segundo Oliveira (2010), a aprendizagem “é o processo pelo qual o indivíduo
adquire informações, habilidades, atitudes, valores, etc. a partir de seu contato com
a realidade, com o meio ambiente e com as outras pessoas” (OLIVEIRA, 2010, p.
59).
Quando uma criança, no seu processo de aprendizagem, é “diagnosticada”,
ela acaba sendo encaminhada a outros profissionais que nem sempre desenvolvem
práticas críticas em relação à condição da criança. E dentre os vários lugares para
onde a criança pode ser encaminhada, tem lugar de destaque, aqui neste trabalho, a
clínica-escola.
A clínica-escola onde foi realizada esta pesquisa conta com serviço oferecido
pelos estagiários do curso de Psicologia da universidade, e “caracteriza-se por um
conjunto de atividades teórico-práticas executadas sob supervisão de um professor
do curso, pelo aluno regularmente matriculado nesse curso”1.
Procedimentos Metodológicos
A pesquisa aconteceu em duas etapas: primeiramente, foi realizada coleta de
dados junto à clínica-escola de Psicologia de uma universidade pública do Paraná.
Foi realizado um levantamento a partir dos encaminhamentos de
crianças/adolescentes com queixas escolares à clínica-escola, de agosto de 2011 a
agosto de 2012, a fim de apontar o número de encaminhamentos feitos pelas
diferentes possibilidades, para atendimento. Justifica-se a definição deste período
devido às mudanças ocorridas no processo de cadastros das crianças e
adolescentes encaminhados, tornando as informações mais detalhadas a partir do
segundo semestre de 2011.
Através desta pesquisa documental, foi realizado um mapeamento do
município destacando quais locais (bairros, instituições, etc.) encaminham maior
número de crianças e adolescentes para a clínica-escola e com quais queixas estes
chegam ao atendimento. Na segunda etapa da pesquisa, a atenção foi voltada para
as falas de duas gestoras da clínica-escola de Psicologia em questão. Por meio
desses relatos, que foram obtidos através de entrevista semiestruturada, se
pretendeu perceber como a clínica-escola entende e acolhe estes atendimentos,
desde a triagem até a devolutiva aos pais/responsáveis ou para as instituições.
Tanto o acesso aos prontuários quanto a utilização desses relatos/entrevistas
foram devidamente explicitados em Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
assinado pela direção da clínica-escola e que contempla todos os aspectos éticos da
pesquisa.
Resultados e Discussão
1 Segundo regulamento do espaço interno e de funcionamento da clínica-escola
Foram encontrados 46 encaminhamentos, feitos entre agosto de 2011 e
agosto de 2012, com perfil de queixa escolar, na fila de espera para atendimento.
Dentre estes 46, 5 são de 2011 e 41 são de 2012, e não estão contemplados
aqueles que, mesmo encaminhados durante este período, já foram atendidos ou
estão em atendimento. A partir da sistematização dos dados dos encaminhamentos
e das entrevistas, optou-se por subdividir esta discussão em categorias e atribuir
nomes fictícios para os sujeitos entrevistados na pesquisa, a fim de preservar o sigilo
de suas identidades – aqui elas se chamarão Marta e Raquel.
A caracterização e a triagem das queixas escolares
Analisando os dados, verificamos que 28 (60,9%) são de meninos e 18
(39,1%), meninas. Nas queixas apresentadas para encaminhamento dos meninos,
destacam-se as relacionadas ao comportamento (principalmente hiperatividade,
seguido de déficit de atenção). No caso das meninas, as queixas mais frequentes
são as referentes a dificuldades na aprendizagem, seguida de “problemas”
relacionados à introversão.
Vivemos em uma sociedade de cunho machista que ainda valoriza
comportamentos mais expansivos e extrovertidos para os meninos e mais
reservados e introvertidos para as meninas, porém, é possível observar um
paradoxo: as características destes padrões, para meninos e meninas, são
exatamente aqueles descritos como a justificativa para o encaminhamento deles. É
possível observar, portanto, como a escola ainda tem dificuldades em acolher tanto
as características das crianças como a diversidade e os diferentes modos de ser das
crianças dentro da escola.
As idades dos encaminhados variam entre 3 e 14 anos (foi encontrado,
também, um único encaminhamento onde o paciente tinha 32 anos e foi
encaminhado pelo EJA-Educação de Jovens e Adultos), sendo 9 anos (17,4%) a
idade mais freqüente, com 8 crianças. Dentro da faixa etária de 3 a 9 anos, as
queixas são, na maioria, referentes à hiperatividade, falta de atenção e agitação. As
queixas não se restringem apenas a alguns comportamentos, pois o que acaba
ocorrendo é a patologização da própria infância, já que comportamentos comuns de
crianças estão sendo vistos sob o ponto de vista medicalizante, conforme discutem
Meira (2011), Souza (2005), Angelucci (2007), Neves e Almeida (2006), entre outros.
Sobre a existência de um processo de triagem para as queixas escolares, as
duas gestoras afirmaram que este serviço não existe. O que existe é um serviço de
triagem mais amplo, para todos os encaminhamentos. Este serviço, no entanto, não
é específico da clínica-escola de Psicologia, mas uma atividade de triagem realizada
por acadêmicos de 4º ano (triagem através de uma disciplina) e de 5º ano (antes da
psicoterapia propriamente dita). Acerca da triagem, Marta afirma que existe uma
necessidade de contratação de psicóloga(o) para que “pudesse auxiliar também na
implantação de outros projetos” que viriam a melhorar e agilizar os atendimentos.
O acolhimento das queixas pela clínica-escola de Psicologia
As queixas apresentadas nos encaminhamentos são variadas. A fim de
facilitar sua exposição, optou-se por dividi-las em oito categorias, que estão
descritas por ordem de frequência: 1) Dificuldades na aprendizagem, 2)
Alteração/distúrbio do comportamento, 3) Déficit de atenção, 4)
Hiperatividade/agitação, 5) Outros, 6) Revolta, 7) Família e 8)
Hiperatividade/agitação + Déficit de atenção. Na categoria descrita como “Outros”,
constam queixas como “Distúrbio Emocional”, “Déficit Cognitivo”, “Transtornos
educativos”, “Distúrbio de conduta”, etc.
As queixas referentes a “Dificuldades na aprendizagem” são as mais
utilizadas para justificar o encaminhamento, totalizando 21,7% do total, seguida de
“Alteração/distúrbio de comportamento”, conforme Tabela 1.
Tabela 1. Categorias referentes às queixas presentes nos encaminhamentos para a clínica-
escola
QUEIXA FREQUÊNCIA PERCENTUAL
Dificuldades na aprendizagem 10 21,7% Alteração/distúrbio do comportamento 7 15,2%
Déficit de atenção 6 13% Hiperatividade/agitação 6 13%
Outros 6 13% Revolta 4 8,7% Família 2 4,3%
Hiperatividade/agitação + Déficit de atenção
2 4,3%
Sem dados 3 6,5% Total 46 100%
Com relação às queixas dos encaminhamentos, é possível observar, como já
afirmou Souza (2005), que existe uma fragilidade no processo diagnóstico, pois em
pesquisa de sua autoria, pôde observar que “um conjunto significativo de
psicodiagnósticos (...) não se confirmam no contato com essas crianças” (p. 83). O
encaminhamento é realizado apenas a partir da observação superficial do
fenômeno, desconsiderando “as mediações que o determinam e o constituem”
(ABRANTES, SILVA & MARTINS, 2005, p. 143), ou seja, além de desconsiderar o
contexto onde esta criança/adolescente está inserido e como se relaciona dentro
dele, não é observado, também, em que situações essa “queixa” ocorre.
No que diz respeito à categoria “Revolta”, é possível relacioná-la como um
princípio ao que é chamado, no DSM-IV, de Transtorno Desafiador de Oposição
(também conhecido como TOD). O diagnóstico de TOD é feito com base em alguns
critérios: discutir com adultos, desafio ou recusa a obedecer a solicitações ou regras
dos adultos, ser suscetível ou facilmente aborrecido pelos outros, deliberadamente
fazer coisas com o intuito de aborrecer outras pessoas, etc. Meira (2011) aponta que
há uma sobreposição de diagnósticos como, por exemplo, crianças diagnosticadas
com TDAH e TOD. A autora aponta ainda que autores que defendem a veracidade
do transtorno “não analisam os próprios conceitos que fundamentam o diagnóstico:
desafio e oposição” (p. 107-108).
A demanda por atendimento
Destacamos, aqui, a instituição escolar juntamente com médicos, como
maiores disparadores de encaminhamentos para a clínica-escola, sendo: 15 feitos
pelas escolas e 14 por médicos/pediatras. Todos os encaminhamentos feitos através
das escolas foram por escolas públicas (municipais e estaduais). Do total, 11 não
informavam quem fez o encaminhamento. Mais informações na Tabela 2.
Tabela 2. De onde vêm os encaminhamentos com queixa escolar para atendimento na clínica-escola de Psicologia
De onde vêm Frequência PercentualEscola 15 32,6%
Médico/Pediatra 13 28,3% Família 2 4,3%
CEEBJA 1 2,2% Conselho Tutelar 1 2,2%
CRAS 1 2,2% Médico + Psicólogo 1 2,2%
Psicólogo 1 2,2% Sem dados 11 23,9%
Total 46 100%
Sobre os encaminhamentos, Marta comentou que “às vezes [o
encaminhamento] pode vir dos pais, mas por trás desta queixa, geralmente é o
encaminhamento da escola, é mais difícil que os pais venham”. A escola aparece,
portanto, como quem mais demanda atendimento psicológico com justificativa de
‘queixa escolar’. Extensos relatórios são utilizados para a descrição da queixa para o
encaminhamento. Segundo Raquel, existe a dúvida na clínica-escola sobre o porquê
desse material:
“Algumas vezes a gente não sabe porque eles mandam muitos relatórios (...). Porque eles mandam umas papeladas dizendo ‘a criança não presta atenção’, ‘a criança não organiza a mesa de trabalho’. Então às vezes você fica meio assim: pra quê serve aquele instrumento? O que eles estão criando com aquilo? Porque eles mandam este material para a Psicologia sem nem a gente pedir?”
Como já afirmou Freller (1997, p. 76), “é preciso penetrar nas complexas redes
de relações envolvidas na queixa escolar”. Além de desconhecidos os objetivos
desse material, eles são iguais para todos os encaminhamentos. A partir disso,
torna-se possível uma reflexão crítica a partir das próprias políticas públicas em
educação que não dão condições para um trabalho mais qualificado dos professores
e, como afirmam Asbahr e Souza (2007, p. 189), “compreender o processo
educativo escolar é compreender os meandros pelos quais as políticas públicas
deixam suas marcas, suas diretrizes”.
Nos encaminhamentos feitos por médicos, as justificativas são curtas como,
por exemplo, “transtorno educativo”, “distúrbio de conduta”, “comportamento”, “déficit
cognitivo”, “distúrbio emocional”, etc. Essa objetivação traz algumas implicações
pois, ao ler um encaminhamento, não é possível saber com clareza qual é a queixa
descrita.
As dificuldades encontradas pela gestão da clínica-escola
A importância da articulação com a escola é descrita por Angelucci (2007)
quando afirma que
“o que se pode fazer é, a partir da queixa sobre a criança ou o jovem, conhecer as versões dela/dele e de sua família sobre o que está acontecendo para, então, propor-se à escola que participe do processo de reconstrução da história deste problema de escolarização” (p. 354).
Independente da queixa torna-se necessária, de acordo com Marx, “uma
análise extremamente rigorosa em relação ao homem na qualidade de sujeito
histórico” (apud MEIRA, 2007, p. 31).
Foram apontadas algumas dificuldades no que diz respeito às devolutivas dos
atendimentos para quem fez o encaminhamento e, uma delas diz respeito à
dificuldade de manter um contato com a escola. Segundo Raquel
“Quando eu supervisiono, as alunas que têm alguma questão assim [encaminhamento da escola] eu sempre peço para elas ligarem e, se possível, vir a pessoa que fez o encaminhamento: se é professor, diretora, pedagoga ou psicopedagoga. Nem sempre elas vêm, eu acabo até fazendo o contrário, acho que eu deveria repensar isso, porque acabo pedindo para as alunas irem para a escola, o que eu acho que deveria ser o contrário, a gente deveria chamar a professora para vir para cá”
Ainda que com dificuldades, é com a escola e com a família que as
devolutivas acontecem. Marta relata que quem fez o encaminhamento é chamado
para falar sobre o porquê do encaminhamento. “Eu já cheguei a atender aqui a mãe,
a professora e o aluno”, diz ela. Neste modelo, é possível explorar a queixa
conhecendo as pessoas que estão presentes nos diferentes contextos onde a
criança ou o adolescente convivem.
As gestoras apontaram grandes dificuldades em conseguir contato/diálogo
com médicos para a devolutiva do atendimento. De acordo com Raquel, um exemplo
disso foi o que aconteceu com uma acadêmica de Psicologia: “[ela] ligou e não
conseguiu falar, ela mandou uma carta, mas ele [o médico] não ligou de volta nem
deu retorno nenhum (...) acho que do pessoal da saúde a gente não tem muito
retorno não”. Esta dificuldade apresentada pela gestora aponta para uma falha na
articulação da rede de serviços do município, pois não integra as várias
possibilidades de atendimento.
Marta também relata que existem dificuldades em relação às devolutivas aos
profissionais da saúde e que, muitas vezes, é feito o contato com a escola para
conhecer melhor a origem da queixa. Segundo ela, “geralmente é feito o contato
com a escola, não necessariamente com o médico (...). Eu acho que a queixa
escolar tem que ser trabalhada (...) acho que, com quem demanda, a gente precisa
saber ‘porque você encaminhou o fulano?’”.
Foram apresentadas algumas possíveis estratégias para o enfrentamento da
alta demanda pelo atendimento psicológico para crianças com queixas escolares.
Entre elas está a possibilidade de criação de espaços – com orientação crítica e
reflexiva – para o debate e/ou diálogo sobre as questões pertinentes aos
encaminhamentos e procurar, acima de tudo, um fortalecimento na articulação com
escolas, professores, rede de saúde e os demais que demandam pelo atendimento.
Considerações Finais
A partir desta pesquisa é possível observar como as questões escolares e
sociais continuam sendo vistas sob a ótica organicista, desconsiderando o contexto
social das crianças/adolescentes, além da fragilidade nas justificativas para o
encaminhamento. Isso se comprova desde a superficialidade das descrições das
queixas nos laudos e relatórios de encaminhamentos até a impossibilidade de
contato para devolutiva e articulação críticas do atendimento àqueles que
promoveram as solicitações de atendimentos.
Neste sentido, entendemos que a partir da Teoria Histórico-Cultural, pautados
pela práxis, tenhamos elementos que auxiliem no enfrentamento e transformação
destas fragilidades que hoje promovem a banalização dos diagnósticos e do
consumo excessivo de medicamentos.
Referências ABRANTES, A. A.; SILVA, N. R.; MARTINS, S. T. F. Método histórico-social na Psicologia Social. Petrópolis: Vozes, 2005. ANGELUCCI, Carla Biancha . Por uma Clínica da Queixa Escolar que Não Reproduza a Lógica Patologizante. In: Beatriz de Paula Souza. (Org.). Orientação à Queixa Escolar. 1 ed.São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007, p. 353-378. American Psychiatric Association. DSM IV: Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais. Lisboa: Climepsi Editores, 1996. ASBAHR, F. S. F., SOUZA, M. P. R. Buscando compreender as políticas públicas em educação: contribuições da Psicologia Escolar e da Psicologia Histórico-Cultural. In: MEIRA, M. E. M., FACCI, M. G.D. Psicologia histórico-cultural: contribuições para o encontro entre a subjetividade e a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. CALIMAN, L. V. Notas sobre a história oficial do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade: TDAH. Brasília: Psicologia: Ciência e Profissão n° 1, ano 30, 2010, p. 46-61.
COLLARES, C. A. L. Ajudando a desmistificar o fracasso escolar. Série Idéias n ° 6. São Paulo: FDE, 1992. COLLARES, C. A. L.; MOYSÉS, M. A. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico – A patologização da educação. Série Idéias n ° 23. São Paulo: FDE, 1994. FRELLER, C. Crianças Portadoras de Queixa Escolar: Reflexões sobre o Atendimento Psicológico. In: MACHADO, A. M., SOUZA, M. P. R. Psicologia Escolar: em busca de novos rumos. São Paulo, Casa do Psicólogo, 1997. LEONTIEV, A. N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978. MEIRA. M. E. M. Construindo uma concepção crítica de psicologia escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In: Meira, M. E. M. e Antunes, M. M. (orgs.). Psicologia escolar: práticas críticas. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003. _________. Psicologia Histórico-Cultural: Fundamentos, pressupostos e articulações com a Psicologia da Educação. In: MEIRA, M. E. M., FACCI, M. G.D. Psicologia histórico-cultural: contribuições para o encontro entre a subjetividade e a educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007. _________. Incluir para continuar excluindo: A produção da exclusão na educação Brasileira à luz da Psicologia Histórico-Cultural. In: FACCI, M. G. D; MEIRA, M. E. M.; TULESKI, S. C. (Org). A exclusão dos “incluídos”: uma crítica da Psicologia da Educação à patologização e medicalização dos processos educativos. Maringá: Eduem, 2011. NEVES, M. M. B. da J., ALMEIDA, S. F. C. de. A atuação da Psicologia Escolar no atendimento aos alunos encaminhados com queixas escolares. In: ALMEIDA, S. F. C. de. Psicologia Escolar: ética e competências na formação e atuação profissional. Campinas: Editora Alínea, 2006. OLIVEIRA, M. K. de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. 5ª ed. São Paulo: Scipione, 2010. PATTO, M. H. S. A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999. SOUZA, M. P. R. de. Prontuários revelando os bastidores do atendimento psicológico à queixa escolar. Estilos da Clínica, vol. X, n° 18, 2005, p. 82-107 VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.; LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 11ª ed – São Paulo: Ícone, 2010. VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. 2a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
1
A Psicologia e a medicalização psiquiátrica da Educação
Ártemis Marques Alvarenga1
Kety Valéria Simões Franciscatti2
Palavras-chave: medicalização psiquiátrica – Psicologia – Educação
QUADRO CONCEITUAL
O referencial teórico deste trabalho é o de um dos principais representantes
da Teoria Crítica, T. W. Adorno, bem como de seu estudioso, J. L. Crochík. Tal
teoria reflete sobre as fraturas do pensamento ocidental e analisa criticamente a
finalidade das produções tecnológicas e dos caminhos percorridos pelo
conhecimento científico. Para Adorno (1967/2003, p. 132-133), na modernidade há
uma disposição de apego dos homens em relação à técnica: os meios – e a técnica
é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana – são
fetichizados, porque os fins – uma vida humana digna – encontram-se encobertos e
desconectados da consciência das pessoas. É nesse contexto que a medicalização
psiquiátrica da sociedade aqui é entendida: esse fenômeno está entrelaçado à
fetichização dos produtos tecnológicos. Dotados de vida própria, tornaram-se
independentes da sociedade que os produziu. Igualmente, o homem na
modernidade tem uma percepção tecnificada de si mesmo. Embora não seja a vilã
dos infortúnios da humanidade, pois traz bem estar e conforto, a reflexão sobre a
técnica é necessária, sobretudo quando se observa fenômenos como a crescente
medicalização da sociedade.
Fomentando a medicalização psiquiátrica da sociedade estão fatores como a
produção utilitarista acerca do sofrimento humano, bem como o avanço das
descobertas das neurociências e dos métodos diagnósticos atuais (as edições do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), que por sua vez estão
intimamente associados à indústria farmacêutica e à mídia de tal modo que se
1 MESTRE EM PSICOLOGIA PELA UFSJ 2DOUTORA EM PSICOLOGIA SOCIAL (PUCSP), PROFESSORA DO CURSO DE
PSICOLOGIA E DO MESTRADO EM PSICOLOGIA DA UFSJ.
2
fortalecem e se alimentam mutuamente. Esses “fisiologismo” acaba por gerar
produtos a serem consumidos.
No tocante ao campo educacional, entende-se que todos os esforços desse
campo deveria se destinar à emancipação dos indivíduos. Adorno (1967/2003, p.
121) afirma que a educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma
auto-reflexão crítica. Sugere também que se coloque em relevo os aspectos
regressivos da civilização, como a tendência reificadora dos indivíduos: pessoas que
se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um
material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a
disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa (Adorno, 1967/2003, p.
129).
Cabe à Psicologia, seja a da Educação ou a de outros campos, a tentativa de
libertar seu objeto de estudo. Percurso esse que está, segundo Crochík (1999, p. 48)
na busca e na denúncia daquilo que o impede de se constituir, e que deve ser procurado nas condições sociais que levam as instâncias sociais, tais como a família, a escola, os meios de comunicação de massa, a desenvolverem o indivíduo para que se adapte imediatamente às exigências da produção e do consumo, sem que possa pensar se esses se encaminham para os seus interesses mais racionais, entre eles a preservação da vida.
OBJETIVOS
Identificar e discutir a incidência de artigos que analisam a medicalização
psiquiátrica da educação em uma amostra de artigos científicos do campo da
Psicologia que tratam do neologismo medicalização psiquiátrica seja da sociedade,
seja do indivíduo, é o objetivo principal deste presente estudo.
Como objetivos específicos: a apresentação do tipo de pesquisa realizada
pelos autores dessa amostra de artigos científicos; a elaboração do perfil da
produção científica específica da medicalização psiquiátrica da educação,
contemplando a formação acadêmica de seus autores, as instituições em que foram
empreendidas tais pesquisas, os periódicos em que foram publicados, os
referenciais teóricos empregados e também os tipos de pesquisas realizadas.
METODOLOGIA
A pesquisa foi realizada durante a elaboração da dissertação de mestrado
intitulada “O que não tem remédio nem nunca terá: um estudo sobre a produção
3
científica da Psicologia em sua relação com a medicalização psiquiátrica do
sofrimento humano”, defendida pela Universidade Federal de São João del-Rei em
2013. De março a abril de 2011 procurou-se por publicações que tratassem do tema
medicalização nos seguintes sites de base de dados: Biblioteca Virtual em Saúde –
BVS3; Scielo4; Capes Periódicos5; Lilacs6; Ulapsi Brasil7; Pepsic8. Entende-se que
essas páginas da internet têm o potencial de fornecer o maior número de registros
sobre o tema em seus mais diversos campos.
O procedimento de seleção dos registros, em todos os sites eleitos, teve o
seguinte percurso: elegeu-se o termo medicalização para a busca. A primeira
amostra teve 529 registros. Após a exclusão dos registros que apareciam de forma
repetida nos sites, os critérios de inclusão foram: ser artigo científico (retirados foram
as palestras, dissertações de mestrado e teses de doutorado); tratar de
medicalização psiquiátrica; ter sido escrito por pelo menos um autor que tivesse
graduação ou pós-graduação (lato sensu e stricto sensu) em Psicologia.
Para se fazer tal seleção todos os artigos da amostra foram lidos. Não foi
delimitado um recorte de tempo para a entrada de artigos na seleção. Após esses
critérios chegou-se a um total de 19 artigos, publicados entre 2003 a 2010.
RESULTADOS
Nos tipos de pesquisa empreendidas pelos autores dos 19 artigos, há a
prevalência entre a empírica e a investigação teórica (9 e 8 dos 19 artigos,
respectivamente). Os casos clínicos representam 2 dos 19 artigos; os relatos dos
casos dão subsídios para exemplificar os conceitos psicanalíticos e a interferência
da medicalização psiquiátrica na vida do paciente. As pesquisas realizadas podem
ser visualizadas na tabela que se segue.
3 HTTP://REGIONAL.BVSALUD.ORG/PHP/INDEX.PHP 4 HTTP://WWW.SCIELO.ORG/PHP/INDEX.PHP 5 HTTP://WWW.PERIODICOS.CAPES.GOV.BR 6 HTTP://LILACS.BVSALUD.ORG 7 HTTP://WWW.BVS-PSI.ORG.BR/PHP/INDEX.PHP 8HTTP://PEPSIC.BVS-PSI.ORG.BR/SCIELO.PHP/SCRIPT_SCI_SERIAL/PID_1413-2907/LNG_PT/NRM_ISO
4
Tabela 1. Tipos de pesquisas realizadas Tipos de
Pesquisa Número
de artigos Conteúdo
Pesquisa Empírica
9
Entrevistas com 50 usuários de Serviços de Psicologia Aplicada de universidades públicas e particulares
Entrevistas com 400 pessoas usuários de um serviço público de saúde
Entrevistas com 17 usuárias de ansiolíticos de um serviço público de saúde
Entrevistas com 42 pessoas entre trabalhadores, gestores, profissionais de saúde e familiares de funcionários de uma empresa pública do setor de serviços
Pesquisa-intervenção realizada em grupo de acolhimento de um serviço público de saúde mental
Análise de 345 de prontuários do Pronto Atendimento de um Ambulatório de Saúde Mental
Análise da produção de um veículo da mídia destinada aos professores
Análise de propagandas de psicofármacos publicadas em periódico psiquiátrico
Pesquisa em Archivos Brasileiros de Hygiene Mental e em Anais dos Congressos Brasileiros de Hygiene o tema higienismo e eugenia
Pesquisa Teórica
8
Os autores buscaram, em referências bibliográficas diversas, elementos para defenderem seus argumentos e entenderem a medicalização da existência. Os referenciais teóricos majoritários foram as obras de Freud, Lacan e Foucault.
Relato de casos
clínicos 2
Um artigo relatou um caso clínico e outro 2 casos, ambos com fundamentação teórica psicanalítica
Nessa tabela foram identificados 2 artigos que discutiam a medicalização
psiquiátrica da educação. São eles9:
1- A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso
psiquiátrico e seus efeitos na Educação, estudo teórico de 2007 que analisa os
fatores da crescente medicalização psiquiátrica no tratamento do sofrimento
psíquico e que foram estendidos também para a infância, tais como:
a padronização de sintomas trazida pelas sucessivas edições da série DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), os resultados de pesquisas na neurociência – que tentam fundamentar o funcionamento
9 OS RESUMOS DE AMBOS OS ARTIGOS ESTÃO CONTIDOS NO ANEXO.
5
psíquico em bases orgânicas – e o grande desenvolvimento dos psicofármacos, fruto de maciços investimentos financeiros (Guarido, 2007, p. 151).
2- O que não tem remédio, remediado está?, pesquisa empírica de 2009 que
analisa a produção de uma revista destinada aos professores e tem como objetivo
refletir sobre o impacto da biologização do comportamento infantil e do
silenciamento do sujeito (Guarido, R.; Voltolini, R., 2009, p. 239) na escola;
Muito embora se reconheça a importância e relevância dos artigos para o
entendimento do tema, a presente análise se restringiu a traçar o perfil e a presença
de estudos sobre a medicalização psiquiátrica da educação no âmbito da Psicologia
– conforme o objetivo principal citado.
Em relação aos autores, ambos foram elaborados por Renata Guarido, sendo
o de 2009 em conjunto com Reinaldo Voltolini. A formação acadêmica de ambos é
graduação em Psicologia. Guarido tem especialização em Psicanálise e mestrado
em Educação. Voltolini possui mestrado e doutorado em Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano. A instituição a que os autores pertencem é a
Universidade de São Paulo (USP) e os periódicos em que foram publicados são
Educação e Pesquisa (2007) e Educação em Revista (artigo de 2009).
As referências bibliográficas finalizam o perfil dos dois artigos. Michel
Foucault teve o maior número de livros citados: A crise atual da medicina, A política
da saúde no século XVIII, História de la medicalización, História da sexualidade, O
nascimento da medicina social, Vigiar e punir: nascimento da prisão. Caliman,
comentador da obra do filósofo, também é citado. O referencial temático sobre a
Educação e infância está presente nos 2 artigos (Antelo, Arendt, Ariès, Donzelot,
Lefort, Legnani & Almeida, Mannoni, Moysés, Patto, Voltolini), como também o
psicanalítico (Lacan, Alemán, Bercherie, Birman, Costa, Domont de Serpa, Lebrun,
Roudinesco) e sobre ambos assuntos (Kupfer e Lajonquière). Sobre o tema
medicalização a autora elegeu Aguiar, Bolguese, Gori & Del Volgo, Postel & Quétel,
Rose e Silva.
Como os estudos da amostra dos 19 artigos, esses dois artigos lançam mão
do referencial foucaultiano e psicanalítico – bibliografia majoritária quando se analisa
criticamente o termo medicalização.
CONCLUSÕES
6
Embora os dois artigos representem muito bem o tema presente na
Educação, é notório que quando a Psicologia investiga a medicalização psiquiátrica,
o campo majoritário é a saúde mental, sobretudo os serviços públicos e a clínica
psicanalítica – a tabela 1 comprova tal afirmação. A Educação teve, no período em
que foi realizada a pesquisa, representação de apenas 2 dos 19 artigos. Algumas
hipóteses são aventadas quanto a esse resultado. Pode-se especular que a
produção científica preponderante da Psicologia no meio acadêmico é a da saúde
mental e a da clínica, o que torna reduzida a produção teórica da Psicologia em
relação à Educação. Ou então a de que a Psicologia da Educação elege como
prioritários assuntos outros que não o tema tratado nesse artigo. Pode-se supor
também que, embora haja movimentos da Psicologia a favor de práticas
antimedicalizantes na escola, eles não tenham equivalência no meio acadêmico. Ou
ainda – hipótese desalentadora – de que os profissionais da Psicologia não
apreendam a crescente medicalização psiquiátrica no meio escolar como um
problema grave que mereça análises críticas para lhe fazer frente e, nesse sentido,
corre o risco de aceitá-lo e assim naturalizá-lo. Todas essas indicações merecem
estudos aprofundados para que sejam comprovados ou refutados.
A Psicologia, ciência aplicada que contem em si a tendência dos processos
reificadores da existência, na medida em que não analisa criticamente essa
tendência nefasta, não contribui para emancipação humana (Crochík, 1999).
A presente pesquisa foi realizada no ano de 2011, portanto não se pode
absolutizar o estado do conhecimento sobre o tema medicalização psiquiátrica da
Educação. Considera-se também que até esse ano esse tema não era uma
realidade tão pungente como a de agora – um jornal noticiou que SP aumenta em
55% entrega gratuita da “droga da obediência10. Ou seja, tem crescido a prescrição
de ritalina, nome comercial do metilfenidato, medicação indicada para crianças com
o controverso diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH). A reportagem evidencia ainda que pesquisa feita pelo Sindusfarma, que
reúne as drogarias do País, apontou que o crescimento foi de 50% nas vendas no
período de 4 anos. Entre setembro de 2007 e outubro de 2008 foram vendidas
10 RECUPERADO EM 20 DE JANEIRO DE 2013 DE
HTTP://SAUDE.IG.COM.BR/MINHASAUDE/2013-01-15/SP-AUMENTA-EM-55-ENTREGA-GRATUITA-DA-DROGA-DA-OBEDIENCIA.HTML
7
1.238.064 caixas, enquanto entre setembro de 2011 e outubro de 2012 os números
passam para 1.853.930.
Para que o avanço técnico e científico não se desvie da destinação humana
de suas produções, mais e constantes pesquisas são sempre bem vindas ao tema
da medicalização psiquiátrica da Educação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Adorno, T. W. (1967/2003). Educação após Auschwitz. In T. W. Adorno. Educação e
emancipação. (3ª. Ed., pp. 119-138). (W. Leo Maar, Trad.). São Paulo: Paz e Terra.
Crochík, J. L. (1999). Notas sobre a formação ética e política do psicólogo. Psicologia &
Sociedade, 11 (1), p. 27-51.
Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o
discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa. 33 (1), p.
151-161. Recuperado em 20 de maio de 2013 de
http://www.scielo.br/pdf/ep/v33n1/a10v33n1.pdf
Guarido, R.; Voltolini, R. (2009). O que não tem remédio, remediado está? Educação
em Revista. 25 (1), 239-263. Recuperado em 20 de maio de 2013 de
http://www.scielo.br/pdf/edur/v25n1/14.pdf
Anexo
Resumo do Artigo 1:
Este estudo analisa criticamente as mudanças observadas no tratamento do
sofrimento psíquico na história recente, apontando a contribuição de fatores como: a
padronização de sintomas trazida pelas sucessivas edições da série DSM (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), os resultados de pesquisas na
neurociência – que tentam fundamentar o funcionamento psíquico em bases
orgânicas – e o grande desenvolvimento dos psicofármacos, fruto de maciços
investimentos financeiros. A ação desse conjunto de fatores teve por efeito a perda
da noção de sentido/significado dos sintomas e dos sofrimentos subjetivos, própria
da psiquiatria clássica, e a crescente medicalização dos indivíduos na sociedade
contemporânea. O texto busca alinhavar como aconteceu a produção de uma nova
verdade acerca dos sofrimentos psíquicos e amplia essa análise, evidenciando que
os procedimentos de medicalização surgidos no cuidado da população adulta foram
estendidos também para as crianças. Revê a evolução do tratamento da criança,
8
marcando a interação da pedagogia e da medicina na constituição da psiquiatria
infantil. Além disso, busca evidenciar os efeitos dessa verdade sobre os sujeitos,
identificando a forma como o discurso técnico (especialmente influenciado pelo
discurso médico-psicológico) tem tido lugar no mundo contemporâneo e como este
tem influenciado a Educação. Trata de ressaltar, como produtos, a banalização da
existência, a naturalização do sofrimento e a culpabilização dos indivíduos pelas
vicissitudes da vida. Argumenta que a psicologização da escola pode ceder lugar
hoje à psiquiatrização do discurso escolar. A articulação saber/verdade/poder é aqui
tratada a partir dos textos de Michel Foucault.
Resumo do Artigo 2:
Temos observado um aumento significativo na prescrição de medicamentos
psiquiátricos para toda sorte de sofrimentos cotidianos. Sabemos que as crianças
não têm sido poupadas dessa lógica de tratamentos. A escola, por sua vez, tem
apelado intensamente ao saber médico para “corrigir” os problemas apresentados
por seus alunos. A prática descrita brevemente está sustentada por uma
biologização cada vez mais bem-sucedida de nossa condição humana, ou seja,
parece que chegou o tempo de o homem viver de perto o mito do criador,
sustentado pelo controle da bioquímica e da genética de nosso organismo. Como
efeito dessa biologização temos um silenciamento do sujeito em benefício da
amplificação do lugar ocupado por seu organismo. Neste trabalho, pretendemos
discutir o impacto dessa lógica de tratamentos para a prática nas escolas. O que
pretendemos destacar aqui é que se a bioquímica responde ao porquê o menino
aprende ou não aprende, e o remédio se torna um instrumento imprescindível na
aprendizagem da criança, o professor “não tem mais nada a ver com isto”, no duplo
sentido que a expressão indica: o de desresponsabilização e o de impotência.
A CRÍTICA A MEDICALIZAÇÃO DO TDAH
Maria Izabel Souza Ribeiro (FACED/UFBA)
PALAVRAS-CHAVE: TDAH. Definição e Diagnóstico. Medicalização da
aprendizagem.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a apresentar o tema da pesquisa de doutorado em
andamento do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação
da Universidade Federal da Bahia. A referida pesquisa destaca como recorte temático
investigativo a medicalização da aprendizagem e a produção do fracasso escolar de
estudantes com diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH).
A pesquisa tem como objetivo geral investigar os fatores da/na escola de
produção das dificuldades no processo de escolarização de estudantes com
diagnóstico de TDAH e seu consequente fracasso, por meio da análise crítica dos
discursos e práticas relacionados à medicalização da aprendizagem. Como objetivos
específicos pretende: reconhecer as queixas de discentes com diagnóstico de TDAH
relativas ao seu processo de escolarização; identificar suas experiências em relação
às dificuldades enfrentadas no acompanhamento das atividades ou conteúdos
escolares e as estratégias de aprendizagem utilizadas; conhecer as queixas
produzidas pela escola e pelos professores acerca das dificuldades apresentadas por
esses alunos no processo de escolarização; como também identificar possibilidades
de intervenção pedagógica na perspectiva da superação do fracasso escolar de
estudantes com diagnóstico de TDAH.
A proposta da pesquisa é considerar que os estudantes possuem queixas em
relação à escola e, assim, valorizar suas manifestações para uma melhor
compreensão do aprender e não aprender na escola. Assim, além de conhecer as
queixas escolares produzidas por parte dos alunos, pretende analisar os fenômenos
diretamente relacionados ao TDAH na perspectiva da construção da crítica à
medicalização da aprendizagem.
Para a abordagem dos fenômenos do TDAH, a atenção e a atividade motora,
fundamenta-se nas argumentações teóricas da Psicologia Sócio-Histórica de Vigotski.
Deste modo, na tentativa de superação da medicalização da aprendizagem do TDAH
busca compreender como o processo de escolarização é construído para destacar os
fatores produtores das dificuldades e do consequente fracasso escolar de estudantes
com tal diagnóstico.
Para tratar da temática da pesquisa do doutorado o presente artigo apresenta
em sua estrutura a discussão sobre a medicalização do TDAH através do enfoque da
definição e produção do diagnóstico, além da introdução e as considerações finais.
2 A MEDICALIZAÇÃO DO TDAH: REFLEXÕES SOBRE SUA DEFINIÇÃO E
DIAGNÓSTICO
Na atualidade o TDAH tem sido diagnosticado por especialistas da área
médica, como neurologistas e psiquiatras, principalmente, a partir de
encaminhamentos realizados pela escola. Os encaminhamentos são resultado da
interpretação dos problemas no processo de escolarização e das manifestações e
expressões de crianças e adolescentes no espaço escolar, como característico de
problema/distúrbio/transtorno de aprendizagem e do comportamento. Considerado
uma Disfunção Cerebral Mínima (DCM) que afeta a atenção e a atividade do indivíduo,
é um fenômeno que, na atualidade, tem interessado profissionais, pesquisadores e
estudantes de diferentes áreas, particularmente das Ciências da Saúde, da Educação,
das Ciências Humanas e Sociais, em função do aumento na emissão de tal
diagnóstico.
Nas diferentes áreas que discutem o TDAH podemos encontrar controvérsias
em relação à sua existência. Controvérsias pautadas na dificuldade, e porque não
dizer, na imprecisão da emissão do diagnóstico e da vaga definição apresentada pelos
que defendem a existência do suposto transtorno.
O TDAH é definido na publicação da Associação Brasileira de Déficit de
Atenção (ABDA), de autoria da Dra. Kátia Beatriz Corrêa e Silva e Dr. Sérgio Bourbon
Cabral, edição de 2011 revisada pelo Dr. Paulo Mattos (Cartilha disponível para
download no site da Associação), como,
um transtorno neurobiológico, com grande participação genética (isto é, existem chances maiores de ele ser herdado), que tem início na infância e que pode persistir na vida adulta, comprometendo o funcionamento da pessoa em vários setores de sua vida, e se caracteriza por três grupos de alterações: hiperatividade, impulsividade e desatenção. (ABDA, 2011, p. 4)
Para os três grupos de alterações, a Cartilha apresenta explicações. Em
relação à hiperatividade coloca que "é o aumento da atividade motora. A pessoa
hiperativa é inquieta e está quase constantemente em movimento" (ibidem, p. 4.
Quanto à impulsividade informa que "é a deficiência no controle dos impulsos, é "agir
antes de pensar". Podemos entender impulso como a resposta automática e imediata
a um estímulo." (ibidem, p. 6). Com relação à atenção destaca que a "A falha da
atenção pode aparecer de diversas formas. A pessoa não consegue manter a
concentração por muito tempo, se começar a ler um livro, na metade da página não
consegue lembrar o que acabou de ler." E ainda acrescenta que "a mente da pessoa
com TDAH parece que não tem um "filtro", e por isso qualquer estímulo é capaz de
desviar sua atenção". (ibidem, p. 9)
Como explicitado nas explicações da Cartilha, a definição do TDAH reporta-se
a sua caracterização sintomatológica alusivas à atenção e à atividade motora,
compreendida como resultante de uma disfunção cerebral que remete à ideia de ser
uma doença, um transtorno neurológico. Assim, como sua definição relaciona-se
diretamente à sua sintomatologia, abordaremos a seguir as características
diagnósticas apresentadas na publicação da Associação Psiquiátrica Americana, o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quarta edição (2003),
conhecido pela designação DSM-IV, que é a base de construção das explicações da
Cartilha referenciada anteriormente.
O TDAH aparece no DSM-IV como pertencente à classificação dos
“Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou na
adolescência” (p. 112). Na apresentação das características diagnósticas são
destacados cinco critérios (Critérios A, B, C, D e E), os quais servirão de base para
emissão do diagnóstico e se referem à caracterização do transtorno no que diz
respeito a sua sintomatologia. O primeiro critério expõe a característica essencial do
TDAH: “consiste num padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade-
impulsividade, mais frequente e grave do que aquele tipicamente observado nos
indivíduos em nível equivalente de desenvolvimento (Critério A).” (p. 112). Para esse
Critério A é feita a diferenciação das manifestações dos sintomas de desatenção,
hiperatividade e impulsividade com a exposição de critérios específicos associados a
cada padrão persistente principal como forma de descrever as manifestações e
delimitar o diagnóstico. Os demais critérios apresentam-se complementares ao
Critério A:
Alguns sintomas hiperativo-impulsivos que causam comprometimento devem ter estado presentes antes dos 7 anos, mas muitos indivíduos são diagnosticados depois, após a presença dos sintomas por alguns anos, especialmente no caso de indivíduos com o Tipo Predominantemente Desatento (Critério B). Algum comprometimento devido aos sintomas deve estar presente em pelo menos dois contextos (p. ex., em casa e na escola ou trabalho) (Critério C). Deve haver claras evidências de interferência no funcionamento social, acadêmico ou ocupacional próprio do nível de desenvolvimento (Critério D). A perturbação não ocorre exclusivamente durante o curso de um Transtorno Global do Desenvolvimento, Esquizofrenia ou outro Transtorno Psicótico e não é melhor explicada por outro transtorno mental (p. ex., Transtorno do Humor, Transtorno de Ansiedade, Transtorno Dissociativo ou Transtorno da personalidade) (Critério E). (DSM-IV, 2003, p. 112)
De acordo com o Manual, para o TDAH pode ocorrer uma subclassificação a
partir do “padrão sintomático dominante nos últimos 6 meses”, o que significa dizer
que existem subtipos conforme a manifestação dos sintomas predominantes que
persistem ou apresentam regularidade durante o período de seis meses. A delimitação
do subtipo é orientada a partir da quantidade de sintomas (6 ou mais) apresentados
pelo indivíduo e pelo tempo da manifestação (pelo menos 6 meses). Os subtipos são:
Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, Tipo Combinado (6 ou mais sintomas
tanto de desatenção quanto de hiperatividade-impulsividade); Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade, Tipo Predominantemente Desatento (6 ou mias sintomas de
desatenção e menos de 6 de hiperatividade-impulsividade) e Transtorno de Déficit de
Atenção/Hiperatividade, Tipo Predominantemente Hiperativo-Impulsivo (6 ou mias
sintomas de hiperatividade-impulsividade e menos de 6 de desatenção). (p. 114).
O diagnóstico de TDAH é realizado a partir da aplicação do questionário SNAP-
IV construído a partir dos sintomas descritos no DSM-IV. O questionário transcreve as
orientações do manual para servir como um instrumento operacional de aplicação
para emissão do diagnóstico através do preenchimento por parte dos familiares e
profissionais da escola onde a criança/adolescente estuda. As categorias que devem
ser marcadas conforme melhor descreve o aluno para cada item são: Nem um pouco,
Só um pouco, Bastante e Demais. Categorias que revelam o caráter bastante
subjetivo da produção do diagnóstico, pois este depende da interpretação e percepção
(relativas às manifestações da criança/adolescente) de quem responde o
questionário, bem como sua concepção sobre cada item abordado e forma como lida,
acolhe ou recusa as manifestações listadas.
Diante da apresentação da definição e do diagnóstico do TDAH realizada a
partir, principalmente, do DSM (os outros materiais utilizados tem como base o DSM)
, vale a pena destacar que existem polêmicas relativas a essa temática em questão.
Dessa forma, para uma melhor reflexão a respeito do TDAH destacaremos as
controvérsias e divergências existentes em relação à compreensão desse suposto
transtorno.
Em relação ao TDAH, a perspectiva que defende a sua existência, vale-se do
dito discurso da ciência médica para explicá-lo como sendo uma alteração
neurológica, localizada no sujeito, portanto uma doença do próprio sujeito. Visão que
camufla as condições nas quais as manifestações, interpretadas como sintomas, são
produzidas. Tal visão remete-se ao que tem-se discutido sobre a medicalização da
vida escolar.
O termo medicalização, segundo Collares e Moysés (1994, p.26)
refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo.
De acordo com Guarido (2010, p. 30) "o conceito medicalização foi utilizado em
diversos estudos, especialmente a partir da década de 70 do século XX, para tratar
de uma maneira a partir da qual as vicissitudes do processo de aprendizado das
crianças foram frequentemente traduzidas." (grifo da autora). A tradução a qual a
autora reporta-se é, por exemplo, a produção de "uma multiplicidade de diagnósticos
psicopatológicos" (p. 29) e a suposição da existência de déficit neurológico (p. 29).
Dessa maneira, na perspectiva da construção crítica à medicalização,
amparada na compreensão de que as manifestações e expressões humanas são
constituídas em um processo sócio-histórico, resultantes da síntese de múltiplas
determinações, refletiremos sobre o discurso científico utilizado para explicar o TDAH.
As omissões e distorções relativas aos supostos transtornos/distúrbios de
aprendizagem são denunciadas por Moysés e Collares (2010) ao abordarem a
história da invenção das disfunções neurológicas:
A busca por raízes científicas das disfunções neurológicas - quando e como quem comprovou o quê - leva a uma interessante viagem pelo terreno das transmutações, com omissões e distorções de fatos, criações de mitos etc. Uma viagem que passa ao largo de evidências científicas, rigor metodológico, ética; em síntese, ao largo da ciência. (MOYSÉS & COLLARES, 2010, p. 73)
Nesse sentido, ressaltamos que as críticas construídas à existência do TDAH
resultam das informações não consensuais relativas ao tema e aos elementos
ocultados, não explicitados da história da invenção do transtorno, divulgadas por uma
visão naturalizada, biologizada e idealizada do ser humano.
Ao analisar criticamente tanto o DSM-IV quanto o SNAP-IV, é possível perceber
que as questões presentes nestes instrumentos são relativas a comportamentos e
atitudes que qualquer criança, jovem ou adulto podem apresentar de forma frequente
em situações diferentes, o que demonstra uma imprecisão na produção do
diagnóstico. Diante disso, surge um questionamento relacionado à definição do TDAH,
se “é um transtorno neurobiológico, de causas genéticas” como delimitar o diagnóstico
exclusivamente por relatos das manifestações comportamentais do indivíduo que são
caracterizadas como “sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade”?
A falta de exame laboratorial, avaliação neurológica e exame físico associados
ao transtorno é um aspecto relacionado ao diagnóstico tratado no DSM-IV que merece
destaque. Fato que denota o caráter subjetivo da avaliação diagnóstica, uma vez que
pauta-se na aplicação e interpretação do questionário SNAP-IV, conforme dito
anteriormente. No próprio Manual destaca-se que “o clínico deve, portanto, reunir
informações de múltiplas fontes (p. ex., pais, professores) e indagar acerca do
comportamento do indivíduo em uma variedade de situações, dentro de cada situação
(p. ex., ao fazer os trabalhos escolares, durante as refeições).” Nos tópicos referentes
aos achados laboratoriais associados e aos achados do exame físico e condições
gerais médicas gerais associadas, o Manual apresenta as seguintes afirmações:
Nenhum exame laboratorial ou avaliação neurológica ou da atenção foi estabelecido como diagnóstico na avaliação clínica do Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade. Os testes que exigem processamento mental concentrado são anormais em grupos de indivíduos com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, em comparação com sujeitos-controle, mas estes instrumentos não demonstram utilidade quando se está tentando determinar se um determinado indivíduo tem, ou não, o transtorno. Ainda não está claro quais déficits cognitivos fundamentais são responsáveis por estas diferenças de grupo. Não existem características físicas específicas associadas com o Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade, embora anomalias físicas menores (p. ex., hipertelorismo, palato exageradamente arqueado, orelhas com baixa inserção) possam ocorrer em uma proporção superior ao da população em geral. Também pode haver uma taxa superior de lesões corporais. (p. 115)
Afirmações que denunciam o caráter inconsistente e impreciso do processo de
avaliação e emissão de diagnóstico do TDAH. Aspecto reforçado no item Diagnóstico
diferencial (p. 117) quando declara que “na infância, pode ser difícil distinguir entre os
sintomas de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade e comportamentos
próprios da idade em crianças ativas (p. ex. correrias e barulhos excessivo) (grifo
do original).
A consideração da causa genética do suposto transtorno explicitada na Cartilha
da ABDA apresenta-se de forma não proeminente no DSM-IV:
Evidências consideráveis atestam a forte influência de fatores genéticos nos níveis mensurados de hiperatividade, impulsividade e desatenção. No entanto, as influências da escola, da família e dos pares também são cruciais na determinação do grau de comprometimento e co-morbidade. (p. 117).
Ainda relacionado a essa “considerável evidência” identificamos informações
no Manual que não demarcam o fator genético nem sustentam o caráter
orgânico/biológico do transtorno, por exemplo, quando explicitam as peculiaridades
da sintomatologia no tópico Características diagnósticas,
Os sintomas tipicamente pioram em situações que exigem atenção ou esforço mental constante ou que não apresentam atrativos ou novidades (p. ex., ouvir a explanação do professor, realizar os deveres escolares, escutar ou ler materiais extensos ou trabalhar em tarefas monótonas e repetitivas). Os sinais do transtorno podem ser mínimos ou estar ausentes quando o indivíduo se encontra sob um controle rígido, encontra-se num ambiente novo, está envolvido em atividades especialmente interessantes, em uma situação a dois (p. ex., no consultório médico) ou enquanto recebe recompensas frequentes por um comportamento apropriado. Os sintomas são mais prováveis em situações de grupo (p. ex., no pátio da escola, na sala de aula ou no ambiente de trabalho). (p. 113)
Tais considerações são colocadas como peculiaridades da sintomatologia de
um transtorno que é definido como neurológico e herdado, ou seja, determinado
biologicamente, mas as características apresentadas indicam elementos relacionados
ao contexto da situação, daí surge o questionamento: como as características de não
prestar atenção a algo não atrativo e direcionar a atenção quando encontra-se em
uma situação nova, envolvido em atividades interessantes podem ser indicadores de
um transtorno neurobiológico?
Além disso, observamos no item Características específicas de cultura, idade
e gênero informações que denotam a fragilidade da evidência:
À medida que as crianças amadurecem, os sintomas geralmente se tornam menos conspícuos. Ao final da infância e início da adolescência, os sinais de excessiva atividade motora ampla (p. ex., correr ou escalar excessivamente, na conseguir permanecer sentado) passam a ser menos comuns, podendo os sintomas de hiperatividade limitar-se à inquietação ou uma sensação interior de agitação ou nervosismo. (p. 116)
Todas as considerações anteriores nos remetem às concepções de ser
humano, desenvolvimento e aprendizagem que não consideram o aspecto
multifatorial e multidimensional da formação e constituição humanas, o que significa
que não concebem a interação dinâmica e dialética dos múltiplos e diferentes fatores
intervenientes da vida e história humana. Concepções que focalizam a análise no
indivíduo com destaque para o elemento biológico, orgânico ou psicológico de forma
isolada, fragmentada e determinista atreladas à lógica medicalizante de conceber e
compreender as manifestações humanas.
É com a abordagem crítica à essas concepções que proponho aprofundar na
pesquisa de doutorado a discussão no contexto da Educação ao focalizar a
medicalização da aprendizagem e a produção do fracasso no processo de
escolarização de estudantes com diagnóstico de TDAH.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, o suposto transtorno do TDAH está diretamente relacionado às
questões do processo de escolarização tanto no que diz respeito às características
dos sintomas quanto à presença e aparecimento das manifestações no contexto da
escola. Assim, entre os profissionais e pesquisadores que destacam o TDAH como
transtorno neurobiológico apesar de não ser considerado como problema de
aprendizado, configura-se como a “dificuldade em manter a atenção, a
desorganização e a inquietude” que “atrapalham no rendimento dos estudos” (site da
ABDA, acesso em 26.04.2011) ou destacam que “os sintomas de desatenção afetam
o trabalho em sala de aula e o rendimento escolar” (DSM-IV, p. 116). Colocação que
foca a compreensão no sujeito que apresenta um problema supostamente biológico,
considerado como doença, e, então, resulta na dificuldade e consequente fracasso
escolar. Como doença deve ser tratada, nesse caso o tratamento é focalizado no
sujeito, assim os demais fatores de produção concreta do não aprender na escola ou
do fracasso não são apreciados, analisados.
A perspectiva de compreensão do não aprender na escola como resultante de
fatores biológicos e/ou psicológicos dos estudantes revela uma análise fragmentada
e reducionista do complexo processo de escolarização, negligenciando os diversos
fatores intervenientes da aprendizagem. É atribuída a responsabilidade do não
aprender na escola ao próprio aluno de maneira isolada. Camuflam-se os fatores
pedagógicos, relacionais, políticos, econômicos, sociais, culturais e históricos.
Com isso temos o aumento de crianças e adolescentes que são excluídos no
interior da própria escola por apresentar alguma dificuldade no processo de
escolarização já que foge do padrão esperado do aluno idealizado. A esses alunos
cria-se o estereótipo de quem tem uma dificuldade de aprendizagem, um problema,
uma doença. Juntamente a esse estereotipo associa-se a ideia de que não terá êxito
na jornada do processo educacional.
E o que esses sujeitos (crianças e adolescentes) pensam, sentem, percebem,
experimentam... O que estão dizendo com essas manifestações? A escola tem se
preocupado em escutar, olhar, observar, interpretar o que através de suas
manifestações estão denunciando?
Por outro lado com a realização da análise em uma perspectiva crítica, pode-se
inverter a compreensão no sentido de considerar que os comportamentos e
manifestações dos alunos interpretados como “problema”, “sintoma”, “doença” tem a
possibilidade de revelar, denunciar fatores da própria escola que produzem a
dificuldade do processo de escolarização e o seu consequente fracasso. Assim,
considera-se que as manifestações dos estudantes, na verdade, podem ser um
caminho de identificação e apreensão dos fatores internos da/na escola de produção
da dificuldade de escolarização ao mesmo tempo em que podem revelar
possibilidades de uma construção de uma intervenção pedagógica na busca de sua
superação. O que pode ser ampliado no sentido de incluir um desafio a ser
conquistado: construir e reconstruir a prática pedagógica atenta a atribuição de
sentidos e significados dos sujeitos em escolarização, sejam crianças, adolescentes
ou adultos.
REFERÊNCIAS ABDA. Associação Brasileira do Déficit de Atenção. Disponível em: http://www.tdah.org.br/. Acessos em: 29 set. 2010 e 26 abr. 2011. DSM-IV-TR. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Tradução Cláudia Dornelles. 4 ed. rev. 1ª reimpressão. Consultoria e coordenação da edição prof. Dr. Miguel R. Jorge. Porto Alegre: Artmed, 2003. COLLARES Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS Maria Aparecida Affonso. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). Série Idéias, n. 23, São Paulo: FDE, 1994. Disponível em: htpp://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/idéias_23_p025-031_c.pdf GUARIDO, Renata. A biologização da vida e algumas implicações do discurso médico sobre a educação. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. Capítulo 2, p. 27-39. MOYSÉS, Maria Aparecida A.; COLLARES, Cecília A. L. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. Capítulo 5, p. 71-110. SILVA, Kátia Beatriz C.; CABRAL, Sérgio Bourbon. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: TDAH. Edição revisada por Dr. Paulo Mattos. Rio de Janeiro: ABDA, 2011.
Ação do Psicólogo Escolar na Educação Infantil: pelo acolhimento e valorização da diversidade do desenvolvimento da criança
Julia Chamusca Chagas Regina Lúcia Sucupira Pedroza
Universidade de Brasília
Palavras-chave: Psicologia Escolar; Educação Infantil; Educação em Direitos
Humanos; Patologização e Medicalização da Educação; Gestão Democrática.
Quadro Conceitual
Neste trabalho, partimos de uma perspectiva de psicologia histórico-cultural
fundamentada nas teorias de Vigotski e Wallon para pensar uma atuação do
psicólogo escolar voltada para a construção coletiva de projetos educativos de
qualidade, democráticos e acolhedores da diversidade do desenvolvimento humano.
Entendemos que projetos com essas características, consoantes com as propostas
da Educação em/para os Direitos Humanos (Candau, 2007), proporcionam
possibilidades de superação dos processos de patologização e medicalização da
educação. Dessa forma, nosso objetivo é trazer experiências de psicólogas
escolares em uma escola de Educação Infantil do Distrito Federal onde o fazer
educativo propicia uma maneira diferenciada de acolhimento às crianças, contrária à
lógica medicalizante de normatização da infância.
Baseamo-nos em Vigotski e Wallon por entender que esses autores viam nos
pressupostos do materialismo dialético possibilidades de a psicologia romper com
dicotomias na sua definição do ser humano e engajar-se em um novo projeto de
sociedade em que as relações interpessoais sejam mais democráticas e solidárias.
Esses pressupostos permitem ressignificar a psicologia – ao mesmo tempo em que
são por ela ressignificados – por possibilitarem uma compreensão do
desenvolvimento humano como processo complexo, contraditório e não-linear. Os
autores definiam o indivíduo como um ser social, ativo em suas relações na
sociedade, sendo ao mesmo tempo produto e produtor dessas relações e de sua
história. Dessa forma, o seu desenvolvimento é dinâmico, marcado pelas condições
materiais, englobando uma relação dialética entre as dimensões biológica, cognitiva
e afetiva. Isso implica considerar o indivíduo concreto, em sua totalidade, como um
ser em constante mudança, ao mesmo tempo em que transforma o mundo na sua
vivência.
Essa concepção é complementada pela visão de Heller (1970/2004) a
respeito da condição humano-genérica do sujeito. A autora demonstra que o ser
humano constitui-se na estrutura da vida cotidiana de forma dialética. Assim, é
composto pela manifestação genérica dessa cotidianidade, mas sem reduzir-se
inteiramente a ela, pois tem a sua constituição particular. Dessa forma, o indivíduo é
único, mas carrega em si a história da humanidade. Ela ressalta, ainda, que nem
sempre a convivência entre particularidade e generalidade se dá de forma
consciente, atentando para a alienação da vida cotidiana. Esta constitui um abismo
entre o homem genérico e suas possibilidades individuais, entre sua produção
humano-genérica e sua participação individual consciente nessa produção. Dessa
forma, os indivíduos nem sempre têm ciência de que podem elevar-se acima da
prática cotidiana, por meio de suas escolhas particulares.
A partir dessas considerações, enfatizamos a necessidade de a psicologia
superar a noção de natureza humana que baliza a produção de teorias de
desenvolvimento que imputam à concepção de ser humano universal valores
construídos em uma sociedade excludente e desigual. Essa visão ideologizada de
ser humano reduz as suas possibilidades de existência e fundamenta uma educação
que limita a sua autonomia e a sua possibilidade de elevação acima da prática
cotidiana, transformando a realidade social. Assim, entendemos a partir da reflexão
feita por Bock (2003) que a psicologia tradicionalmente desenvolveu um papel junto
à educação comprometida com a reprodução do modelo de sociedade capitalista
neoliberal. Defendemos, portanto, que a psicologia assuma a responsabilidade na
construção de outro projeto de sociedade, mais democrática e respeitosa dos
direitos humanos, contribuindo para a superação de relações de poder marcadas
pela divisão em classes sociais que se perpetuam ao longo da história.
A educação assume um papel central nesse novo projeto, criando
possibilidades para que o ser humano se insira de forma autônoma na sociedade.
Entendemos, junto com Freire (1996), que a educação não pode se restringir à
aquisição e memorização de conhecimentos, deve voltar-se para a integralidade do
sujeito e para a sua problematização ativa em relação ao mundo. O mais importante
não é o conteúdo como produto da educação, mas sim o processo de
desenvolvimento de sujeitos de desejos e de direitos.
Este trabalho, voltado para a Educação Infantil, fundamenta-se também nas
formulações de Larrosa (2004), Castro (2001) e Pulino (2001), que permitem
repensar o conceito de infância na perspectiva adotada neste trabalho na
contemporaneidade. Esses autores trazem uma visão de infância como
imprevisibilidade e emergência do novo, que não pode ser objeto de teorias que
visam esgotá-la nem de uma educação que pretenda discipliná-la e silenciá-la. Pelo
contrário, acolher a diversidade e a novidade infantil é trazer possibilidades tanto
para uma educação mais autônoma e respeitosa dos direitos da criança, quanto
para a transformação da sociedade pela novidade.
Nesse sentido, concebemos a Educação Infantil como um espaço de acesso
ativo ao conhecimento formal produzido por uma sociedade, em que crianças e
professores são parceiros na exploração do mundo a partir da sua curiosidade e de
seus interesses. As crianças não são um receptáculo dos conteúdos que os adultos
julgam necessários para a sua formação, mas sim participativas na construção do
seu projeto de educação. O professor é um organizador do meio social, que não se
impõe às crianças, mas tem a responsabilidade de proporcionar práticas educativas
que tanto façam sentido para seus alunos, quanto despertem novos interesses pela
construção de conhecimento.
Essa questão do sentido relaciona-se tanto com o que a criança já conhece e
traz como curiosidade sobre o mundo quanto com o momento do desenvolvimento
em que essa criança se encontra. As teorias de Vigotski e Wallon trazem
referenciais importantes para pensar as crianças como indivíduos concretos, únicos
e diversos, cujo desenvolvimento não pode ser previsto nem universalizado, mas
sim estudado de forma dialética. Essas teorias abrem possibilidades de falar do
desenvolvimento infantil considerando as suas contradições e especificidades,
concebendo as crianças como seres concretos e ativos em sua relação com o
mundo. Assim, permitem uma reflexão sobre o fazer educativo e uma reorganização
da escola para acolher cada criança da maneira como se apresenta. Opõem-se à
ideia de que apenas o aluno precisa se adaptar à escola, mostrando que esta
também deve adaptar-se a ele. A diversidade do desenvolvimento infantil não é
tomada como uma dificuldade a ser corrigida pelos psicólogos a partir de
intervenções de ajustamento. Ao contrário, acolher cada criança e sua singularidade
traz a possibilidade de dinamizar a proposta educativa.
Dessa forma, essa visão de educação se opõe claramente a perspectivas de
normatização e controle da infância, nas quais a medicalização atualmente cumpre
papel central. Consideramos fundamental denunciar que a atribuição de justificativas
de cunho biológico e individual para o fracasso escolar opera conseqüências graves
na vida dos sujeitos, principalmente impossibilitando que tenham acesso aos seus
direitos sociais (Souza, 2010). Ignorar esse fato é se colocar a serviço da exclusão.
Entretanto, mais do que denunciar, pretendemos assumir a tentativa de buscar
possibilidades de superar a lógica patologizante e medicalizante, estruturada na
normatização da infância para seu controle e submissão. Acreditamos que isso se
faz possível por meio de estudos sobre práticas educacionais que não se aproximam
às crianças pela sua estigmatização, normatização, mas sim pelo acolhimento de
cada criança da maneira como se apresenta, respeitando o seu “direito de ser aquilo
que é” (Korczak, 2009, p.43, livre tradução).
Vale ressaltar que a conceituação de medicalização adotada neste trabalho é
aquela exposta no Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da
Sociedade (2010), qual seja:
“Entende-se por medicalização o processo que transforma, artificialmente,
questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes
ordens são apresentados como “doenças”, “transtornos”, “distúrbios” que
escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais, afetivas que
afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas como
individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse
processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são
responsabilizadas pelos problemas, enquanto governos, autoridades e
profissionais são eximidos de suas responsabilidades.”
Entendemos que propostas educativas fundamentadas nos ideais de
democracia participativa e da Educação em/para os Direitos Humanos trazem em si
possibilidades de acolhimento às crianças que permitem refletir sobre a superação
da lógica medicalizante. A participação de todos os membros da escola na sua
gestão democrática é essencial para a melhoria da sua qualidade. Vale ressaltar que
essa forma de gestão não é concebida apenas como a eleição de diretores, vice-
diretores e representantes de cada segmento no Conselho Escolar. Ela demanda a
construção e a implementação do PPP da escola por todos os seus membros no seu
cotidiano, desde a sala de aula até os espaços de reunião da comunidade escolar,
passando pelas conversas de corredor e pelo bate-papo na hora do cafezinho. É o
exercício democrático diário, a convivência em comunidade e o diálogo plural e
diverso em vários espaços da escola que constroem a gestão democrática da escola
e, consequentemente, possibilidades de uma educação mais acolhedora do
desenvolvimento humano.
Objetivos
Construir possibilidades de superação dos processos de patologização e
medicalização da educação a partir de experiências de psicólogas escolares em
uma escola de Educação Infantil que acolhe a valoriza a diversidade do
desenvolvimento infantil baseada em um projeto político-pedagógico diferenciado
construído coletivamente no cotidiano da escola por todos os seus membros.
Metodologia
Este trabalho consistiu de realização de entrevistas semi-estruturadas com
três ex-psicólogas escolares de uma escola de Educação Infantil do Plano Piloto de
Brasília que é uma associação. Além disso, as pesquisadoras mantém há vários
anos contato freqüente com a escola, seja por meio de atuação direta da primeira
autora como membro do quadro funcional da escola (2007-2008), ou da segunda
autora como mãe de uma estudante (1997-2001), além de muitas participações
formais e informais em eventos de formação de professores e outros profissionais e
reuniões da escola. Buscamos ressaltar o valor da vivência e da reflexão sobre a
própria prática como forma de saber não só para si, mas que pode ser
compartilhada como um saber para os outros (Silva, 2006). Assim, essa experiência
de proximidade com a associação é esclarecida neste estudo porque permeia toda a
sua construção e desenvolvimento, ao mesmo tempo em que pode contribuir à
investigação sobre o papel do psicólogo escolar na Educação Infantil.
As entrevistas semi-estruturadas abordaram as funções do psicólogo escolar
na associação, sua relação com todos os segmentos da escola, sua atuação na
gestão democrática e suas concepções acerca desse tipo de gestão. Realizadas em
2010, compuseram o projeto de pesquisa que resultou na dissertação “Psicologia
Escolar e Gestão Democrática: uma proposta de atuação em escolas públicas de
Educação Infantil”, defendida nesse mesmo ano. Essas entrevistas serão, portanto,
revisitadas para este trabalho, em um entendimento de que trazem informações
significativas sobre uma proposta educacional e uma postura das psicólogas
entrevistadas que permite pensar possibilidades de superação dos processos de
patologização e medicalização da educação.
Resultados
Um dos aspectos mais relevantes das entrevistas, para este trabalho, está na
concepção de criança que foi construída ao longo dos anos. Essa concepção
fundamenta a atuação do psicólogo escolar e dos outros profissionais, impactando a
maneira como as relações se constroem na escola. Essa concepção está
fundamentada no respeito à criança, na visão de que ela é uma pessoa que tem
desejos e opiniões que precisam ser ouvidos e acolhidos na escola. Contrapõe-se,
portanto, à visão de imposição da vontade do adulto sobre a criança, da autorização
para que ele fale por ela, porque se julga mais capaz. Essa é uma concepção
intimamente relacionada com a elaboração de Larrosa (2004) acerca do enigma da
criança. Para esse autor, a postura mais freqüente em relação às crianças tem sido
a de subjugá-las pelo que se julga conhecer sobre ela, pelos vários saberes
construídos sem uma escuta do que a criança tem a dizer. É uma crítica, assim
como aquela feita por Castro (2001), de que as ciências têm formulado muitos
conhecimentos que acabam por autorizar as pessoas a dominar as crianças,
discipliná-las e impor a elas uma forma de ser coerente com o status quo.
As falas das entrevistadas demonstram a crítica à escola como instituição de
imposição de uma disciplina às crianças, sem a possibilidade de elas falarem sobre
o que esperam desse processo educativo. Buscam uma concepção de educação
que parte da compreensão da criança como sujeito, prosseguindo para uma visão
semelhante à de Wallon (1952/1987) de que a escola precisa se adaptar ao aluno. É
nesse relacionar-se com a criança, conhecê-la, acreditar nela, conversar sobre as
suas opiniões, desejos e interesses que um projeto educativo deve ser construído.
Conceber a criança como um sujeito ativo na produção de conhecimento junto com
os seus colegas e seus professores implica em trabalhar os conhecimentos de forma
dinâmica, viva, em constante relação com as questões que surgem dos debates, da
experiência com o mundo. Essa é uma concepção muito relacionada com a proposta
de Freire (1996) em relação à pedagogia da autonomia, onde a realidade e o
interesse do aluno são o ponto de partida da ação do professor. Esse professor não
é passivo, está junto com os educandos, devendo inclusive realizar práticas que
despertem esse interesse dos alunos. Assemelha-se, ainda, às propostas de
Vigotski (1926/2004) quando afirma que é a problematização do mundo, o debate
sobre as vivências e o conhecimento de cada um, que move o processo de
aprendizagem na escola. Também vai ao encontro da proposta de Wallon
(1952/1987), para quem o trabalho educativo deve ser sempre adaptado às
necessidades de cada criança.
Em suma, é um projeto educativo que realiza a construção do PPP também
dentro da sala de aula. Esse projeto não está alheio ao que acontece no cotidiano,
ele é pensado e repensado nos vários espaços de debate da associação, nas
reuniões de formação continuada dos professores, bem como junto com as crianças
em sala de aula. Dessa forma, propicia às crianças a vivência dessa gestão
democrática e a sua participação ativa nesse processo. Esse fazer educativo
estrutura-se, portanto, na lógica de democracia participativa da associação. Essa
característica diferenciada da escola proporciona uma proposta educacional que
realmente acolhe e valoriza a diversidade de cada pessoa que dela participa.
Propicia, assim, o enfrentamento da abordagem patologizante e medicalizante das
crianças ao trazer possibilidades de relacionar-se com elas na escola de uma
maneira que não passa pela sua submissão nem estigmatização.
A atuação do psicólogo tem o processo educativo como foco, as suas ações
são direcionadas a todos os segmentos visando a melhoria desse projeto, da escola
como um todo, conforme propunha Wallon (1952/1987). Não é um foco individual,
buscando avaliação, seleção e diagnóstico de crianças ditas desajustadas. A
finalidade da escola é o acesso ao conhecimento formal, de forma ativa, que envolve
uma vivência social e um desenvolvimento nas e pelas relações com as pessoas e
com esse conhecimento. O foco está no processo educativo, mas a maneira como
ele se constrói, enquanto processo, também se torna central na atuação desse
profissional. Sendo assim, da mesma forma em que ele atua no sentido de
proporcionar uma melhoria no PPP da escola, ele busca trabalhar junto às pessoas
para que a participação coletiva na construção desse projeto seja promotora do
desenvolvimento de todos. Além disso, valoriza esse processo de construção
coletiva como uma forma de realização do ideal que permeia esse PPP, de uma
sociedade mais democrática.
Cria, portanto, possibilidades de vivência e de relação para as crianças e para
os adultos que trazem o reconhecimento e a valorização das diferenças. Cada
pessoa realiza seu papel criativo e transformador a partir de suas condições e da
maneira como se apresentam. Ressaltamos a importância do trabalho do psicólogo
escolar nesse processo ao voltar-se para toda a comunidade educativa no processo
de gestão democrática, ou seja, na construção coletiva e participativa de PPPs
acolhedores da diversidade do desenvolvimento humano. Defendemos uma ação
desse psicólogo junto à comunidade educativa no sentido de acolher a singularidade
de cada pessoa em desenvolvimento no processo educativo, reconhecendo e
revelando os não-ditos presentes nas relações interpessoais. Trazer à tona os mal-
estares cria a oportunidade de reconhecer e acolher as diferenças, construindo um
espaço de diálogo democrático que aproveita os conflitos enquanto oportunidade de
desenvolvimento, pois denunciam relações de exclusão e assimetria de poder.
Assim, o psicólogo escolar pode promover uma convivência junto aos diversos
atores do contexto escolar fundamentada no ideal democrático da igualdade de
direitos e da autonomia pela participação de todos na construção do PPP de sua
escola.
Conclusões
Os desafios colocados para a psicologia frente aos processos de
medicalização e patologização da educação são muitos. Reconhecer a atual
retomada desses processos de maneira hegemônica na nossa sociedade, dentro da
nova roupagem oferecida pela neuropsicologia, é fundamental no enfrentamento
desses desafios. Entretanto, entendemos que é necessário, também, reconhecer
experiências brasileiras de educação que permitem pensar na superação desses
processos que têm sido tão danosos às nossas crianças e à sociedade em geral.
Neste trabalho, buscamos explorar uma experiência educativa diferenciada
que oferece possibilidades de pensar PPPs acolhedores da diversidade do
desenvolvimento das crianças. Tomamos o papel do psicólogo escolar nesse
processo por entender que precisamos assumir a nossa responsabilidade no
acolhimento e enfrentamento dos conflitos do cotidiano escolar, sem nos isentarmos
e encaminhá-los para outros profissionais, como é feito dentro da lógica
medicalizante.
É importante ressaltar que não pretendemos oferecer um modelo educacional
e de atuação em psicologia escolar prontos, aplicáveis a qualquer contexto. Pelo
contrário, entendemos que cada contexto escolar, dada a sua diversidade e
complexidade, demanda ações que lhe são próprias, construídas junto com os seus
participantes. Assim, algumas ações podem ser replicadas, outras talvez não façam
sentido em contextos diferentes e ainda há possibilidade de desenvolver novas
ações que sejam pertinentes a demandas específicas. Fica a ressalva de que
compreendemos as nossas limitações, porém corremos um risco pela defesa do
nosso ideal (Freire, 2000).
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Acolher a diferença: uma experiência interdisciplinar na Creche Nossa Senhora Aparecida
Maria Claudia G. Maia A. do Brasil, EBPMF / IUPERJ1
Isidoro Eduardo Americano do Brasil, EBPMF, SEPAI-UCAM2
Resumo:
Este trabalho visa discutir a experiência de 18 anos da Escola Brasileira
de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF) na Creche Nossa Senhora
Aparecida, RJ. Este convênio interinstitucional possibilita a prática psicanalítica
dentro de uma unidade educacional de atendimento a crianças entre 2 e 4
anos, tendo o trabalho criado condições para o exercício da psiquiatria da
infância, sempre relevando as particularidades e singularidades de cada
criança. A experiência aqui relatada produz reflexões sobre as condições de
produção entrelaçadas aos campos da Psicanálise com crianças, da Educação
e da Psiquiatria da Infância, levando em consideração a atual política
educacional para inclusão de crianças portadoras de necessidades especiais,
ressaltando que o público-alvo desse trabalho não se limita às crianças, mas
inclui também os professores, coordenadores, demais profissionais
responsáveis pelo funcionamento da creche e pais.
Histórico do Projeto:
Há 18 anos a Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano
(EBPMF) sustenta a prática psicanalítica numa creche da zona norte do Rio de
Janeiro – creche esta criada e administrada por uma igreja católica sob a
regulação de convênios públicos, que atende à população de baixa renda, em
sua maioria oriunda de favelas daquela região. O convênio entre as duas
instituições foi estabelecido, incialmente, visando o trabalho analítico com as
crianças entre 2 e 4 anos e assim se manteve por aproximadamente dois anos.
1 Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF) / Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro – Universidade Candido Mendes (IUPERJ/UCAM) 2 Escola Brasileira de Psicanálise Movimento Freudiano (EBPMF) / Serviço de Psicanálise em Atenção à Infância (SEPAI) – Universidade Candido Mendes (UCAM)
Após esse período, a demanda de trabalho se estendeu aos funcionários da
creche, motivando uma transformação, como efeito, nos encaminhamentos de
crianças realizados pelo corpo docente aos psicanalistas.
Num terceiro tempo, mais precisamente há 08 anos, nosso trabalho
ultrapassa os muros da escola e surgem as solicitações de atendimento
analítico por parte da comunidade.
Há dois anos iniciamos a experiência da “entrevista-ensaio” que
acontece em função de um impasse na prática analítica ou a partir da demanda
específica de professores ou da coordenação da creche. Neste dispositivo um
psicanalista, que também é psiquiatra, entrevista a criança e seus responsáveis
com a participação de outros analistas e psiquiatras, marcando uma diferença
em relação ao campo médico: neste setting – que tem sua origem bem
delimitada no campo da psiquiatria com Charcot – a criança tem uma
participação ativa, junto a seus pais, deslocando o foco do olhar/observação
médica para a escuta de um sujeito. Esta nova experiência marca a interseção
entre a clínica da criança – pediatria e psiquiatria da infância –, a psicanálise e
a pedagogia.
O desenvolvimento desse trabalho, além de produzir efeitos de mudança
subjetiva num nível individual e particular, produz consequências político-
institucionais na medida em que o conceito de diferença, que vem acoplado ao
de sujeito e suas vicissitudes, ganha novos formatos e pode ser dialetizado,
problematizado, e ter sua referência deslocada e expandida no âmbito maior da
creche como instituição multiplicadora de políticas públicas no território da
educação infantil.
Quadro Conceitual:
Este trabalho se ampara na interseção de três disciplinas: Pedagogia,
Psicanálise com criança e Psiquiatria da Infância. Isso se justifica porque a
Psicanálise com criança, a Pedagogia e a Psiquiatria da Infância são campos
historicamente entrelaçados que contribuem, com seus diferentes saberes,
para a compreensão da criança e do adolescente em suas configurações
subjetivas. Além disso, a reflexão teórica dessas disciplinas favorece a
apreensão da atual política de inclusão pedagógica dos portadores de
transtornos psíquicos com efeitos comportamentais que, nesse contexto, são
acolhidos nas salas de aula regulares e trazem situações inéditas de
convivência nem sempre exequíveis ou tranquilas para professores e alunos.
Num primeiro momento, a interseção entre Psicanálise e Psiquiatria
infantil, para citar apenas uma parte do campo de prática, permite uma
compreensão da psicopatologia infanto-juvenil que foge às amarras das atuais
classificações de doenças (DSM IV e CID 10), centrando a atenção e o cuidado
na criança e não apenas na doença, abrindo possibilidades para outras
intervenções terapêuticas que não se resumem à farmacologia, mas, ao
contrário, que oferecem a elaboração de conflitos a partir da escuta
psicanalítica e da implicação do sujeito em seu sofrimento. Uma clínica que
aposta na linguagem, no valor do dito, pode intervir sobre uma patologia mental
caracterizada pelo prejuízo do desenvolvimento da linguagem como, por
exemplo, nos casos de crianças autistas.
Se o trabalho psicanalítico é sempre contado um a um, tal especificidade
deve ser transposta para a educação, devendo esta vincular sua investigação
na elaboração também do um a um, propondo-se a não se enquadrar num
modelo universalista, que mais segrega do que agrega. Nesse sentido, a
Psicanálise atualiza determinados fundamentos da ação pedagógica
progressista, fundamentos estes que devem colocar-se sempre à prova,
evitando formulações standards na medida em que educar não implica um
conceito com critérios prontos. Ofertar um espaço de escuta psicanalítica – de
modo privado ou no âmbito do trabalho em grupo com professores – é ofertar a
possibilidade de construção do outro, construção de um outro que atravesse,
de modo desejante, o discurso da inclusão, uma vez que múltiplas
subjetividades exigem novos paradigmas.
É no exercício da equipe interdisciplinar que se estabelece o trabalho
crítico de inclusão, tomando como autores de referência os clássicos das três
disciplinas: Freud, Lacan, M. Mannonni, Françoise Dolto, Rousseau, Freinet,
Maria Montessori, Makarenko, Paulo Freire, Itard, Binet, Kanner, Ajuriaguerra
entre outros. Tais autores orientam nossos estudos e prática, levantando
questões sobre o valor de verdade de um enunciado médico e também
desvelando o imaginário que opera nas relações médico / professor X criança
(o médico e o professor visto pela criança; a criança vista pelo médico e pelo
professor).
Objetivos:
1. Oferecer uma escuta psicanalítica que possibilite ao sujeito
analisante (criança ou o adulto professor e responsáveis) elaborar
suas questões sintomáticas e fantasmáticas;
2. Fazer circular, numa instituição de caráter pedagógico, o discurso
analítico, provocando reflexões sobre a construção do outro,
relevando as particularidades dos sujeitos;
3. No entrelaçamento dos discursos psicanalítico, psiquiátrico e
pedagógico, construir novos paradigmas acerca do imaginário sobre
o diferente, mas especificamente o outro diferente;
4. No cruzamento dos campos da Psicanálise com crianças e da
Psiquiatria da Infância, abrir a perspectiva de alternativas para a
inclusão que vá além do recurso psicofarmacológico, pois este parte
de um diagnóstico atrelado a manuais classificatórios e
uniformizantes;
5. Divulgar e discutir esse trabalho com pares como meio de submeter
a experiência ao controle e contraposição de outros saberes e
projetos.
Justificativa:
No mundo globalizado, onde questões sobre o lugar do outro tornaram-
se prementes, a política de inclusão escolar cria situações delicadas de
convivência com os sujeitos portadores de diferenças; diferenças estas que
escapam a um modelo de aluno comum e que exigem da instituição
educacional um reposicionamento acerca de sua função e estratégia
pedagógicas. Neste novo contexto, em que o elemento multicultural é relevante
e onde não há mais lugar para uma escola paralela de acolhimento ao rotulado
como desigual, demanda-se dos profissionais da educação uma outra atuação
pedagógica, um outro posicionamento subjetivo, visando assistir às crianças e
adolescentes. Esta demanda, entretanto, nem sempre vem acompanhada da
necessária formação para o profissional escolar. Nesse contexto, a experiência
da EBPMF, trabalhando diretamente com crianças e professores, inova e
produz efeitos no funcionamento institucional, isto é, produz dialetização em
relação àquilo que ideologicamente as políticas públicas classificam como
diferente.
Metodologia:
1. Os encaminhamentos para atendimento psicanalítico semanal, em
espaço privado, com duração entre 30 e 50 minutos, podem ser
feitos pelos responsáveis das crianças, pela coordenação da creche,
pelos professores ou pelas próprias crianças, ressaltando que os
menores de idade só iniciam um tratamento possível após
autorização do responsável.
2. As entrevistas psiquiátricas mensais e de duração variando entre 40
e 60 minutos são agendadas a partir da demanda dos psicanalistas;
esta ocorre diante de impasses da clínica que remetem à construção
diagnóstica envolvendo os dois campos de conhecimento: a questão
de diagnóstico diferencial entre TDAH e a agitação neurótica, por
exemplo; a questão do autismo em contraponto a uma lesão
neurológica; a criança deficiente mental; ou ainda sujeitos
depressivos que optam pela abstinência medicamentosa entre
outros.
3. Todas as atividades clínicas são submetidas a supervisão semanal
na sede da EBPMF, com duração de uma hora.
4. Encontros de estudo teórico são realizados quinzenalmente, também
na sede de EBPMF, com duração de 1h e 30 minutos.
5. Reuniões de discussão com o grupo de profissionais da creche
(professores, coordenadores e demais profissionais da instituição)
são realizadas quinzenalmente e animadas pelo psicanalista
responsável pelo convênio; nesses encontros textos são lidos e
debatidos, além de se oferecer espaço para a discussão de casos
trazidos pelos professores.
Resultados:
1. Resultados clínicos, em se tratando de uma pesquisa qualitativa:
1.1. Desde o início do trabalho, em 1995, as vagas oferecidas pela
instituição passaram a incluir todas as crianças, sem restrições no
campo da psicopatologia (respeitando, porém, requisitos de outra
ordem, tais como genitores com carteira de trabalho assinada,
área programática, idade mínima etc.);
1.2. As crianças consideradas com necessidades especiais foram
encaminhadas para avaliação e possível tratamento, incluindo aí
os casos de crianças autistas, deficientes mentais, com
deficiências físicas, com agitação psicomotora, enlutadas etc.
Vale ressaltar que as crianças fora do critério oficial de
necessidade especial também foram escutadas mediante
demanda dos pais ou das mesmas.
1.3. Aos professores e demais profissionais foram franqueados
espaços de escuta psicanalítica, esta se dando tanto no modo
privado como em grupos maiores de discussão.
1.4. Um melhor funcionamento na prática pedagógica criativa, uma
vez que os profissionais passaram a conhecer e lidar de modo
pacífico com o diferente (o diferente que habita em cada um e o
que diz respeito ao outro).
1.5. Estabelecimento de rede de atendimento com outras escolas
municipais do Rio de Janeiro e órgãos de defesa dos direitos da
criança e do adolescente.
2. Resultados teóricos:
2.1. Produção textual por parte dos psicanalistas no âmbito da
EBPMF.
2.2. Criação de Curso de Especialização sobre a temática da inclusão
escolar, oferecido a partir deste ano no IUPERJ/UCAM.
2.3. Uma formação diferenciada dirigida ao pedagogo em sua nova
prática escolar.
2.4. Ampliação do saber referentes aos três campos de conhecimento,
Psicanálise, Educação e Psiquiatra, diante da elaboração e
refinamento do objeto de pesquisa.
Conclusões:
A oferta de uma escuta analítica às crianças e profissionais de uma
creche no subúrbio do Rio de Janeiro promoveu efeitos de retificação subjetiva
nos envolvidos. Tais efeitos atravessaram a instituição como um todo e
interferiram, de modo positivo, no processo pedagógico não só do aluno
chamado especial, mas também do aluno e corpo docente de modo geral. Isso
porque a oferta de um dispositivo que trabalha com o sintomático do sujeito
traz consequências, mesmo para a criança que fala, que produz efeito
significante, mas que ainda não é portadora de um discurso .
Podemos resumir tal intervenção na Creche Nossa Senhora Aparecida,
então, como a passagem do discurso universitário em seu conhecimento
burocrático sobre o outro para o discurso analítico na medida em que este,
como nos ensina Lacan, é da ordem do saber e não do conhecimento ou da
representação e releva o sujeito, sujeito do desejo e da falta.
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ZIZEK, S (org.). Um mapa da ideologia. RJ: Contraponto, 1996.
* Além dos clássicos citados no corpo do texto.
AUDISMO E DEAF GAIN: EXPERIÊNCIAS SURDAS E AS
POSSIBILIDADES DE RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS
Francielle Cantarelli Martins – PPGE/UFPel
Madalena Klein – PPGE/UFPel
Este trabalho apresenta os resultados de uma pesquisa que analisou os
discursos de sujeitos surdos sobre os termos: audismo e Deaf Gain1. Aproxima-se
de autores do campo dos Estudos Surdos, procurando articular discussões acerca
desses conceitos aos entendimentos de relações de poder e resistência. O problema
que conduziu a investigação foi: como os significados produzidos por discursos do
audismo e do Deaf Gain são negociados nas práticas contemporâneas da educação
de surdos.
Quadro Conceitual
Audismo é um termo utilizado para apresentar aspectos negativos, barreiras,
marcas históricas; a falta de comunicação, a falta de convívio na sociedade, a visão
da superioridade e inferioridade, identidades que se enfrentam, entre outras coisas.
É como se os surdos fossem rotulados por coisas negativas.
Quando vista pela estrutura da normalidade, a surdez só pode ser imaginada como uma perda. Como resultado, os surdos só podem ser vistos como tendo uma perda na comunicação humana normal, a menos que eles sejam reabilitados ou curados. As instituições de medicina e educação têm há muito tempo tentado resolver as questões de perda auditiva através de pedagogias e procedimentos de normalização – desde problemas da fala e da audição a procedimentos cirúrgicos, e até mais recentemente, a testes genéticos que fornecem aos pais as opções de evitar o nascimento de crianças surdas no geral. (BAUMAN e MURRAY, 2009, p. 6)
Para entender esse termo e os demais que nos acompanharam na pesquisa,
nos aproximamos do campo teórico denominado de Estudos Surdos que analisam
1 1 Este é um termo novo, ainda não traduzido para a língua portuguesa, por isso, utilizo de uma tradução provisória. O sinal utilizado para esta expressão é emprestado da American Sing Linguage - ASL, não havendo um termo distinto em Libras. Pode ser definido como um reenquadramento do conceito de "surdez" para uma forma de diversidade sensorial e cognitiva com o potencial de contribuir para o bem maior da humanidade (Bauman e Murray, 2009).
aspectos que permeiam a vida dos surdos, que fazem parte da sua história, que
contribuem para o desenvolvimento da sua identidade. A constituição desse campo
de saber contribui para o fortalecimento da cultura e da identidade surda,
favorecendo a vivência desses sujeitos e o compartilhar de experiências que
auxiliam a mudar a visão a respeito de quem eles são. Karin Strobel (2008)
aprofundou em sua tese sobre a importância da historia dos surdos:
O sujeito surdo ao conhecer e a vivenciar a história de surdos desenvolve a sua identidade pessoal, do ‘eu’, começa a ter uma visão mais sistematizada acerca sua diferença e do povo surdo em que vive, através de suas descobertas e discussões, enxerga o mundo, discute, descreve e escreve o que vê, o que sente em relação ao seu ser surdo. Ele exterioriza a sua subjetividade e desenvolve sua auto-estima. (STROBEL, 2008, p. 41)
A história da educação de surdos registra uma mudança drástica em 1880, no
Congresso de Milão. Antes desse congresso os surdos estudavam e trabalhavam,
eram professores. Nessa época existia o Instituto de Surdos da França, fundado
pelo Abade L’Epée, que foi a primeira escola pública de surdos no mundo, referência
para outros países. Nessa escola era utilizada a Língua de Sinais como primeira
língua, mas também havia ensino da língua oral e o ensino do latim básico. Apesar
de o Instituto desenvolver a educação nessa área de maneira que contribuía para o
aprendizado e desenvolvimento dos alunos surdos, alguns anos depois iniciou o
movimento de alguns médicos, professores de fala e outros profissionais
preocupados com a cura e normalização. Procuraram então a cura para a audição e
fala das pessoas surdas. Com esse movimento, foi organizado o Congresso de
Milão, entre os dias 6 e 11 de setembro de 1880, quando foi declarado que o método
oralista2 era superior ao uso da língua de sinais. Foi aprovada uma resolução que
proibia o uso da língua de sinais nas escolas e nas comunidades surdas do mundo.
A intenção da proposta era curar para normalizar, proibindo o uso dos sinais que, na
concepção dos especialistas da fala, inibia a oralização. Uma das justificativas dessa
decisão do congresso foi a religião, que apoiava a oralização, em virtude das
confissões. Também outros aspectos de ordem política e social interferiram nessa
decisão, como a organização dos estados-nação (Itália, Alemanha, Espanha, são
alguns exemplos), que dependiam da unificação linguística. Em vista dessa e outras
justificativas e objetivos e por haver um expressivo número de ouvintes e ínfimos
2 É um método de ensino para surdos, no qual se defende que a maneira mais eficaz de ensinar o surdo é através de da língua oral, ou falada.
representantes surdos, a oralização foi vitoriosa nesse congresso, espalhando-se
pelos diferentes países. Então, devido à opinião e dominação de uma lógica
centrada na audição, preocupados com a “cura” e a normalização dos surdos,
buscando a homogeneização na sociedade, iniciou-se o método oralista em todo
mundo.
Los Sordos han estado protestando, durante más de 120 años, contra la situación de la educación para los Sordos, y para eso se han valido de variados conceptos, tales como ‘derechos humanos’, ‘reconocimiento de los lenguajes minoritarios’, ‘genocidio’ y algunos otros, la mayoría de los cuales han sido ignorados o tomados en cuenta sólo parcialmente. (LADD, 2005, p. 4)
Após essa traumática reunião e seus resultados na vida dos surdos nas últimas
décadas, recentemente o movimento surdo buscou outros discursos e práticas sobre
as questões culturais, linguísticas, educacionais e identitárias dos surdos. Através de
discussões em torno da educação dos surdos, procurou-se mostrar a importância de
pesquisas nessa área, a fim de tencionar o domínio dos discursos ouvintistas. De
um lado estavam os ouvintes que acreditavam ser os surdos deficientes; de outro a
minoria surda, buscando a visibilidade da sua cultura, identidade, entre outros.
Até hoje usa-se o termo deficiência auditiva, que significa falta de audição,
como necessidade. Mas os surdos não pensam por esse prisma, pois não sentem
falta da audição. Percebem-se como diferentes, aproximando-se das discussões e
lutas de outras minorias. Harlan Lane (1992) escreveu o livro A Máscara da
Benevolência, no qual faz essa aproximação, ao comparar os surdos com outros
grupos como negros, mulheres, latinos e asiáticos, pois, como eles, também são
vistos como estranhos culturais. As pessoas surdas se constituíam em uma minoria,
elas têm sua própria língua, valores e cultura, mas são discriminadas assim como
outras minorias, independentemente de raça, classe ou sexo.
Lutando pelos seus direitos, surgiram outras necessidades, girando em torno
da inclusão educacional e social, como o bilinguismo, a acessibilidade em espaços
públicos, o intérprete da língua de sinais, entre outros. Iniciaram-se, então,
discussões e pesquisas organizadas em um campo denominado Estudos Surdos,
lançando-se com o objetivo de luta contra a representação da surdez como
deficiência, contra a visão da pessoa surda enquanto indivíduo deficiente, doente e
sofredor, e contra a definição da surdez como experiência de uma falta.
Consideramos oportuno assinalar que esse não é um tema comum, mas por
ser novo e complexo gera polêmica, pois não é um termo conhecido/utilizado na
sociedade. Apenas a comunidade surda começou a utilizá-lo, relacionando-o à sua
própria vida.
Entre os sujeitos surdos existe uma luta pelo reconhecimento de uma cultura
própria, constituída por marcas compartilhadas entre os sujeitos surdos, quais
sejam, a experiência visual, a língua de sinais, as histórias de lutas por
reconhecimento, a importância do encontro surdo-surdo, entre outros. Estas e outras
temáticas são discutidas nos Estudos Surdos, que se utilizam de discussões dos
Estudos Culturais e que possibilitam uma problematização no campo cultural.
Os Estudos Culturais formam um campo de pesquisas de caráter
interdisciplinar na área da cultura. Gênero e sexualidade, identidades nacionais, pós-
colonialismo, etnia, políticas de identidade, discurso e pós-modernidade constituem
as temáticas abordadas por esses estudos.
É importante compreender os Estudos Culturais e os Estudos Surdos como
base teórica para aprofundar o tema do audismo e do Deaf Gain, porque neles se
apresentam entendimentos sobre as diferenças, os discursos, as identidades.
Assim, sujeitos surdos convivem na comunidade surda, têm seus discursos, fazem
parte da diferença, têm suas identidades, mas sempre enfrentam barreiras por
serem surdos, por usarem a língua de sinais, por afirmarem/mostrarem/defenderem
suas identidades.
Também na pesquisa foram utilizados alguns conceitos de inspiração
foucaultiana como relações de poder-saber, resistência, discurso. Consideramos
que esses conceitos ajudam a pensar sobre o termo audismo, pois indica as
relações de dominação de um modelo ouvinte, que pretende a normalização dos
surdos. Nessa perspectiva, Gládis Perlin3 aprofundou sua tese sobre os surdos, sua
alteridade, identidade, diferença.
No pós-estruturalismo a significância do termo ouvintismo, por exemplo, está no terreno, mais como denúncia contra toda política de obrigação a copiar identidades, de objetivação visando curar, normalizar, copiar a mesmidade no surdo, tendo por modelo o ouvinte. (PERLIN, 2003, p. 34)
3 Primeira surda a doutorar-se no Brasil.
O audismo aparece como uma forma de ver o corpo sob a ótica das práticas de
normalização, de controle das identidades, e homogeneização delas. Quando
Foucault apresenta o corpo como “[...] superfície de inscrição de acontecimentos”
(2010, p. 22), ele mostra que a genealogia está no ponto de articulação do corpo
com a história. Ela deve mostrar o corpo marcado de história e a história marcando o
corpo. Até hoje existem discussões sobre o corpo danificado. É relevante relembrar
o fato da surdez significar, para alguns, como um corpo vigiado (Wrigley4, 1996, p.
1). Apesar disso, o corpo surdo enfrenta as batalhas nos conflitos sociais,
permeando as discussões sobre identidade e igualdade. Foucault, ao analisar o
biopoder, nos ajuda a entender os processos de dominação e normalização das
pessoas surdas na nossa sociedade. Assim, Harlan Lane (1992), apoiado em
Foucault, apresenta que a sociedade busca a inserção desse sujeito surdo anormal
à norma.
Diante do exposto, podemos argumentar que a articulação dos Estudos Surdos
aos Estudos Culturais sob a ótica das teorias das relações de poder de Michel
Foucault nos foi produtiva. Acreditamos que essas perspectivas nos ajudaram
entender as relações entre de audismo e Deaf gain, ou seja entender como
acontecem as relações de poder entre surdos-ouvintes, entre surdos-surdos e entre
o sujeito surdo consigo mesmo.
Objetivos
Nosso objetivo geral foi analisar as experiências de sujeitos surdos em
relação às barreiras e suas conquistas com o audismo e o Deaf Gain.
Dentre os objetivos específicos, destacamos: - identificar situações de
experiências de audismo nos sujeitos surdos e na comunidade surda; compreender
os discursos e práticas audistas e surdistas na comunidade surda; - analisar as
barreiras na vida dos sujeitos surdos e como eles resistem a elas.
Metodologia
A metodologia utilizada na investigação previa a análise de discursos de
surdos capturados através de entrevistas. No caso dos participantes desta pesquisa,
foi necessário realizar as entrevistas utilizando filmagens, pois todos os
4 Utilizamos da versão traduzida do original, para uso em aula, pelo grupo de pesquisadores do NUPPES – Núcleo de Pesquisas em Políticas Educacionais para Surdos da UFRGS.
entrevistados e a pesquisadora/entrevistadora são surdos e utilizam a Libras, que é
uma língua visual.5 A importância das entrevistas filmadas consiste no fato de que
essa é a maneira de registrar os discursos produzidos em língua de sinais,
característica cultural para entrevistas com surdos.
A busca durante as entrevistas foi por discursos atuais que contivessem as
barreiras contemporâneas que os surdos enfrentam. Também se pretendeu saber
como eles sentem esses acontecimentos, como enfrentam e o que fazem para
sobrepujá-los, transpô-los.
Foram escolhidos seis sujeitos, sendo que cada um deles é proveniente de
uma área de formação diferente, bem como atuação profissional distinta. Eles têm
um ponto em comum: estão de certa forma envolvidos com a educação dos surdos e
com o movimento surdo; moram nas cidades em que existe uma associação de
surdos, com comunidade surda atuante e participativa, com interesse pelo
desenvolvimento da comunidade surda e da Libras.
As perguntas que serviram de roteiro para a entrevista foram as seguintes: 1)
Descreva quem você é hoje; 2) Qual sua área de atuação? Como você escolheu
esta área? Algo lhe influenciou? Por quê?; 3) Relate suas experiências sobre
audismo e surdismo; 4) O que você avalia como conquistas (deaf gain) na sua vida e
como elas se deram?
Para realizar a análise dos discursos dos sujeitos entrevistados sobre suas
experiências, foram construídas as seguintes categorias: experiências de sujeitos
surdos sobre família e experiências de sujeitos surdos sobre educação.
Resultados
Na categoria as experiências de sujeitos surdos sobre família, alguns relatos
mostraram que as famílias se chocaram quando descobriram a sua surdez, mas
mesmo assim, os entrevistados não tiveram prejuízo no seu desenvolvimento. Estes
sujeitos surdos narraram as suas experiências de reabilitação. Podemos dizer que
estas experiências contribuíram para a subjetivação desses sujeitos e não podem
ser consideradas experiências perdidas. Quando começaram a ter contato com a
comunidade surda e língua de sinais, compreenderam o que denominam de mundo
surdo. No entanto algumas das suas famílias preocupavam-se com a norma, com o
5 Cabe ressaltar que, atendendo às questões éticas da pesquisa, foi elaborado um Termo de Consentimento Informado que assinado pelos participantes.
modelo ouvinte, tanto as famílias ouvintes como algumas das famílias surdas.
Um conceito importante para as análises da pesquisa foi o de relações de
poder, a partir de Foucault. Vários relatos evidenciaram experiências dos
entrevistados sobre as relações de poder vivenciadas na sociedade, na família,
entre as pessoas.
Por toda a parte onde existe o poder, o poder exerce-se. Ninguém propriamente dito é o titular do poder; e, no entanto, ele sempre se exerce em certa direção, com uns de um lado e os outros do outro; não se sabe quem o tem exatamente; mas sabe-se quem não o tem (FOUCAULT, 2001, p. 181).
Os discursos dos surdos capturados na pesquisa fazem lembrar o autor Lane
(1992, p. 43) quando compara a história dos surdos com o colonialismo:
O colonialismo é o padrão ao qual outras formas de opressão podem ser equiparadas envolvendo, tal como ele, a subjugação física de um povo enfraquecido, a imposição de uma língua e de costumes estrangeiros, e o controlo da educação em nome dos objetivos do colonizador.
Colonialismo é uma forma de poder que pode ser bem comparada ao
audismo, o que Lane fez ao analisar as histórias das pessoas surdas.
O conceito que também é produtivo para relacionar os relatos de sujeitos
surdos sobre a norma é o biopoder em que há preocupação em aperfeiçoar a vida,
em minimizar os desvios da normalidade. Sobre o biopoder Dreyfus e Rabinow
escrevem:
O desenvolvimento do biopoder é contemporâneo do aparecimento e da proliferação das próprias categorias de anomalias que as tecnologias de poder e saber supostamente eliminariam. A expansão da normalização funciona através da criação de anormalidades que ele deve tratar e reformar (2010, p. 214).
Na mesma direção o Skliar (2003, p. 174) diz que “a ideia de biopoder torna
explícita a representação de que para administrar a vida dos indivíduos é necessário
atuar sobre as populações”. A autora Rezende, em sua pesquisa sobre o implante
coclear em crianças surdas também argumenta que biopoder é uma estratégia para
tornar a viver na norma, capturando família, sociedade, escola e entre outros:
Os discursos hegemônicos sobre os sujeitos surdos, na questão do teste de orelhinha, tecem uma rede de poderes imensa, uma microfísica de poder; poderes em cada instância, em cada prática, em cada discurso, em cada estratégia. Os discursos da norma, que instaura e promove o biopoder, são estratégias de normalização da soberania ouvinte, que captura não apenas o surdo, mas a sua forma de viver, de ser e de estar no mundo, na
sociedade, na família e na escola. (REZENDE, 2010, p. 125)
Em alguns relatos, as famílias começaram a mudar essa visão sobre ser
surdo quando tiveram contato com a comunidade surda, ou conheceram sujeitos
surdos e perceberam que eles podem ter oportunidade de ter uma vida
independente no futuro. Um exemplo foi uma família que mudou sua concepção
quando conheceu um psicólogo surdo que atendia pacientes surdos: inicialmente
tiveram momentos de resistência, estranharam quando souberam que o psicólogo
era surdo, demoraram a aceitar e mudaram a opinião sobre ser surdo. Alguns
entrevistados apresentaram suas resistências, quando as suas famílias se
preocupavam com a normatização. Alguns realizaram relatos sobre a ocorrência de
audismo na sua família, quando esta manifestava preocupação com a norma e
sociedade. Também trouxeram o Deaf Gain, quando eles apresentaram que
obtiveram benefícios, pois suas famílias mudaram a concepção e os aceitaram.
É importante entender que as famílias fazem parte de experiências dos
sujeitos surdos, pois convivem juntos o maior tempo de suas vidas. Vivenciando os
diversos momentos com surdos, teve algumas situações em que as famílias
procuraram o melhor caminho para seus filhos, mas na maior parte do tempo
desconheceram a Libras.
Na categoria as experiências de sujeitos surdos sobre educação, os relatos
são sobre as escolas nas quais os surdos ingressaram: um dos entrevistados
ingressou na escola de surdos e aprendeu Libras desde criança. E os demais
estudaram em escolas regulares, não conheciam Libras e não tinham a presença de
interpretes de Libras. Porém, teve um momento bem interessante com dois
entrevistados: eles ingressaram na universidade e a partir deste momento é que
iniciaram o contato com a Libras, através do acompanhamento de interpretes de
Libras. Em seus relatos enfatizam que acreditam que a Libras mudou suas vidas,
principalmente na aprendizagem das aulas. Consideramos que esses relatos
significam, sim, que a Libras é a língua desses surdos, por isso a importância de
conhecê-la; não entende-la como ferramenta mas sim como primeira língua de
sujeitos que necessitam dela para compreensão e entendimento do mundo, afinal de
contas é uma língua como as outras.
Esse pode ser identificado como um relato de Deaf Gain, por causa da língua
que fez com que todos fossem beneficiados, pois antes de ter acesso a esta língua
não havia compreensão, interação e comunicação de fato, Foi importante não só
para os surdos, mas também para os professores e colegas, pois eles também
mudaram a ideia sobre Libras e ser surdo.
Também, a análise desta categoria mostrou que os sujeitos surdos lutam
pelos seus direitos, pela identidade, língua, entre outros, em processos de
resistência.
Nos relatos, percebemos que esses movimentos são contemporâneos, como
o movimento a favor da educação e cultura surda, e sempre apresentados como
história das experiências vividas. Os entrevistados contaram sobre seu passado,
como aprenderam nas escolas com o ensino oralista, quando não tinham interpretes
de Libras e começaram a contatar Libras e a Comunidade Surda, e quando eles
começaram a lutar pelos seus direitos. Para Lunardi (1998, p. 161):
Algumas formas de resistências, como a criação da associação de surdos, fundadas após a imposição do ensino oralista nas escolas, a luta pelo direito de adquirirem a língua de sinais como primeira língua, os matrimônios entre os/as surdos/as, são expressões genuínas dessas resistências.
Enfim, a partir da análise dessas categorias, identificamos experiências de
sujeitos surdos em relação ao audismo e Deaf Gain. Percebemos que tem várias
situações que mostram nas experiências de sujeitos surdos barreiras e as formas
como resistem. Durante a analise dos discursos dos entrevistados, compreendemos
que o mundo tem praticas audistas pois as experiências por eles relatadas mostram
muitos exemplos. E, os momentos de grande importância são os de Deaf Gain, pois
mostram as conquistas, importâncias, benefícios e contribuições que eles têm na
sua comunidade.
Conclusões
Espero que os resultados aqui apresentados possam motivar a discussão
entre acadêmicos e as políticas públicas, principalmente entre a comunidade surda.
Ficou evidenciado que há experiências audistas na comunidade surda, mas também
há experiências de Deaf Gain entre os sujeitos surdos e isso ajuda a compreender
que é necessário mudar a visão.
Muitas pesquisas focavam experiências de audismo no passado, nesta
pesquisa, os sujeitos surdos relataram sobre suas experiências e mostraram que
elas se mantêm ainda hoje. Por isso, consideramos importante conhecer e analisar
estes termos nos discursos contemporâneos. Estes discursos mostram que têm
sentido, eles desconstroem a visão de normalização nos corpos surdos. E, claro,
que tem vários olhares sobre os discursos surdos e seus corpos, porém, neste
trabalho, os discursos de sujeitos surdos mostram as suas experiências — nada de
olhares dos outros, mas sim discursos próprios — esta pesquisa mostra que há
velhas e novas histórias.
Os termos aqui estudados podem ser utilizados em varias áreas como na
educação de surdos, e também podem se relacionar com as discussões sobre
identidade, cultura, entre outros. São termos capturados nas experiências de
sujeitos surdos, que narram sobre seus processos de construção de identidade e
cultura surda, quando participam do movimento surdo e lutam pelos seus direitos.
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WRIGLEY, Owen. The politics of deafness. Washington: Gallaudet University Press, 1996.
Caçando não humanos ou onde anda Harrison Ford?1
LEONARDO TRÁPAGA ABIB2 ROBERTA MONTEIRO BRODT3
JOSÉ GERALDO SOARES DAMICO4 Considerações Iniciais
Outrora espaço de identificação e expulsão dos leprosos e dos loucos, a cidade
de hoje, redesenhada numa variedade de transformações urbanas, econômicas e
sociais, tem se constituído como um terreno fértil de disputas entre os modos de
gestão da vida e as determinações de como os indivíduos devem auto gerir-se.
Trata-se de uma série de práticas de governamento que buscam incluir todos
(normais/anormais, humanos/não-humanos) nos jogos de poder e que se disseminam
pelo tecido social indicando e constituindo certos modos de viver. No entanto, como
chama atenção Emerson Elias Merhy (2012, p. 13)
nesse campo, não há garantias de controle total, a produção de desviantes é parte do processo. Em paradoxo, estimular os desejantes, ativá-los gera campo de multiplicidades. E como no filme BladeRunner a sociedade que se funda nesse processo, necessita dos seus caçadores de não-humanos resultados de si mesma.
A partir da citação acima, cabe perguntar quem seriam os “novos não-
humanos” no cenário urbano contemporâneo? Como se constitui a ideia de que esses
não humanos devem ser caçados? E por último quem são seus caçadores? Trata-se
em certa medida de problematizar “como” a internação compulsória5 se coloca como
central na agenda pública (política e midiática) por parte de múltiplos setores sociais,
que clamam pelo recolhimento compulsório de sujeitos que vivem nas ruas e que
fazem uso/abuso de substancias psicoativas. Tais medidas ao serem defendidas por
determinados grupos de “especialistas”, os experts (como médicos, políticos,
colunistas) que justificam estarem defendendo a família, a sociedade e por
consequência o próprio indivíduo é que está assentada esta vontade de “capturar os
não-humanos”. Autores como Raquel Rolnik (2012) e Emerson Merhy (2012) apontam
1O presente texto é oriundo de um projeto de dissertação de mestrado, intitulado provisoriamente de “Sinais que vem da rua: encontros entre trabalhadores e usuários de um Consultório na Rua”. 2Mestrando do PPGEC/FURG. 3Mestranda do PPGEC/FURG. 4Professor do PPGEC/FURG e do PPGCOL/UFRGS e orientador dos outros co-autores. 5A internação compulsória não é uma prática inédita dos nossos tempos. Michel Foucault (2006), demonstrava que na França no início do século XIX, a política consistia em fazer o internamento passar por cima da interdição e prevalecer o poder cientifico-estatal sobre o poder familiar (já que quem pede e decide o internamento por essa lei é um médico). No Brasil, de acordo com a lei 10.216/2001, existem três tipos de internação: I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
essas práticas de aprisionamento como “políticas higienistas”, “varredura social”, que
em nome de interesses econômicos, financeiros e corporativos são acionadas em
momentos específicos para gerir a população.
Diante dos pressupostos de que vivemos em um contexto urbano marcado pela
biopolítica (FOUCAULT, 2011), pela consequente produção de novos anormais
(MERHY, 2012), e pelas formas de resistência às políticas de internação compulsória
de usuários de drogas (que afeta principalmente aqueles que vivem em situação de
rua), temos o intuito de problematizar certas naturalizações que vem sendo
amplamente disseminada de que a solução única para o abuso de drogas é a retirado
do sujeito das ruas que vêm emergindo em algumas cidades brasileiras.
A partir do acompanhamento duma equipe de um Consultório na Rua - CnR,
na cidade de Porto Alegre, pretendemos analisar que sinais estão vindos das ruas
nesse contexto, que experiências podem emergir a partir do encontro entre os
trabalhadores desse CnR com as pessoas em situação de rua e com as comunidades
em que esses passam maior parte do tempo. Dessa questão principal de análise,
emergem outras, como: i) de que formas os trabalhadores e usuários de um CnR
ocupam os diferentes espaços da cidade? ii) como os diferentes discursos sobre os
moradores de rua são colocados em funcionamento?
Cientes de que iríamos acompanhar processos de circulação pela cidade e de
encontros com diferentes pessoas; de que a possibilidade do imprevisível, da abertura
de novos caminhos, da constituição de novas redes e múltiplas relações - que não
podem ser analisadas somente em si, mas articuladas com questões históricas,
políticas, subjetivas e sociais - adotamos a etnografia multi-situada (MARCUS, 1995)
como opção metodológica.
Para Sciré (2009, p. 98) a realização da etnografia multi-situada não se
restringe apenas à prática de campo, pois ela engloba também “o fazer, a forma de
relatar o que se ouviu (...) o “seguir as linhas” refere-se ao trabalho do pesquisador,
no momento de analisar os dados”. Sobre os instrumentos analíticos da pesquisa,
utilizaremos diários de campo, reportagens e imagens que dizem respeito ao assunto.
Tais instrumentos estão sendo analisados na perspectiva da analise cultural ancorada
na teorização foucaultiana (FISCHER, 2001; MEYER et al, 2004; DAMICO, 2011).
Com isso queremos dizer que os elementos que irão compor o escopo da pesquisa
não estarão de acordo com os tradicionais princípios da pesquisa cientifica, como a
suposta neutralidade e rasa objetividade.
No atual momento da pesquisa um de nós está inserido numa equipe de CnR
da cidade de Porto Alegre-RS, participando das atividades desenvolvidas pelo serviço
na zona norte da cidade. Dentre as atividades acompanhadas: abordagem e o
acolhimento dos sujeitos em situação de rua, encaminhamentos para outros serviços
tanto da saúde quanto da assistência social, práticas corporais com os usuários,
reuniões de equipe, procedimentos especializados (curativos, entrega de
medicamentos, aplicação de injeções), distribuição de preservativos e outras. A
equipe se desloca de Kombi (às vezes até mesmo a pé) até praças, viadutos, terrenos
baldios, zonas de prostituição para atender as pessoas em situação de rua que
circulam por esses espaços.
Para este texto iremos apresentar algumas das problematizações, a partir das
vivências no Consultório na Rua e de diálogos com as elaborações de autores do
campo da saúde coletiva, como Émerson Elias Merhy, Antônio Lancetti, Sandra
Caponi e outros autores que têm aproximação crítica com as formulações de Michel
Foucault.
A invenção dos Consultórios nas Ruas
Em Salvador, no ano de 1997, foi realizada pelo Centro de Estudos e Terapia
do Abuso de Drogas - CETAD/Universidade Federal da Bahia uma pesquisa
etnográfica sobre o quadro de jovens em situação de rua, usuários de substâncias
psicoativas na capital baiana. O estudo apontou que estes jovens pouco chegavam
ao CETAD e quando o faziam, dificilmente davam continuidade ao tratamento. Para
tentar dar conta dessa situação, o CETAD criou o primeiro Consultório de Rua do
Brasil, com a finalidade de acompanhar estes jovens no território, buscando novas
formas de produzir cuidado e de ampliar o acesso deles à serviços de saúde
(OLIVEIRA, 2009). Entre os anos de 1999 e 2006, esta experiência do Consultório de
Rua foi desenvolvida no município de Salvador-BA, mostrando-se como uma
estratégia interessante para o atendimento junto aos usuários de drogas em situação
de rua (JORGE; WEBSTER, 2012). A partir de 2009 foram criados mais Consultório
de Rua no país, o que tornou esse serviço, esse estilo de abordagem em uma
referência para o trabalho com pessoas em situação de rua.
No ano de 2011 os Consultórios de Rua se transformam em Consultórios na
Rua - CnR, passando de um serviço da saúde mental para se tornar um serviço da
rede de atenção básica do SUS, com o objetivo de atender às demandas e
necessidades da população de rua, para além das questões relacionadas ao uso
abusivo de álcool e outras drogas (BRASIL, 2011).
Alguns fatores nos motivaram a chegar até um CnR e optar pela inserção nesse
serviço como lócus da pesquisa. Dentre esses fatores estão o envolvimento prévio
dos pesquisadores com o campo da saúde mental e da saúde coletiva, tanto na clínica
quanto na militância; a intenção de construir narrativas sobre os processos de trabalho
desse serviço; pelo fato de ser um lócus interessante para conhecer e dialogar com
as pessoas em situação de rua; e analisar como que os sujeitos e coletivos envolvidos
com o Consultório na Rua têm atuado frente a esses desafios impostos pela biopolítica
e pelo biopoder na contemporaneidade.
O CnR se pauta pela estratégia da redução de danos como forma de
construção dos atendimentos à população em situação de rua. Tal estratégia tem por
objetivo
evitar, se possível, que as pessoas se envolvam como uso de substância psicoativas. Se isso não for possível, para aqueles que já se tornaram dependentes, oferecer os melhores meios para que possam rever a relação de dependência,orientando-ostanto para um uso menos prejudicial, quanto para a abstinência, conforme o que se estabelece a cada momento para cada usuário (CONTE et al, 2004, p. 62).
Para Rose Mayer, em entrevista à Conte et al (2004), a estratégia da redução
de danos pode ser vista como um paradigma a partir do qual se parte do real, do
existente para uma situação melhor e possível. Relaciona-se com a
interdisciplinaridade, “pois o “real” e o “possível” podem ser vistos de vários olhares.
Pressupõe autoria, protagonismo, pois é o sujeito que vai poder avaliar o “real” e o
“melhor”. É um processo educativo, de construção de autonomia” (CONTE et al, 2004,
p. 68).
A partir disso, as atividades acompanhadas até então são bem variadas. Ações
como acolhimento, escuta, distribuição de preservativos, prática de esportes,
aplicação de medicamentos, curativos, acompanhamento em outros serviços de
saúde e encaminhamento para confecção de documentos (identidade, certidão de
nascimento, etc). A equipe buscar construir as atividades baseadas nas demandas
trazidas pelas pessoas que vivem na rua e naquilo que o CnR pode ofertar à esses
sujeitos. Quanto aos locais das abordagens, são lugares localizados na zona norte da
cidade, onde há uma quantidade razoável de pessoas em situação de rua, como
praças públicas, terrenos baldios abandonados, construções inacabadas e zonas de
prostituição.
Embora o CnR seja um serviço que emerge das experiências e lutas dos
movimentos sociais da saúde, que se propõe a prestar cuidado e acolhimento à
população em situação de rua no próprio território em que a pessoa circula e que tem
como rivais aqueles sujeitos e grupos que são contrários aos pressupostos da reforma
psiquiátrica e por que não dizer também do SUS, ele ainda corre o perigo de ser um
lugar privilegiado para que governos controlem, a partir de equipes de saúde, e vigiem
essa população em situação de rua que passa a ser a mais nova categoria a se
incorporar numa biopolítica contemporânea.
Se por um lado há um risco de os serviços abertos, como o CnR, serem
capturados por uma lógica negativa da biopolítica, pautada pelo viés do controle, da
vigilância e do mapeamento de novos grupos de anormais, há por outro lado a
ampliação do acesso à saúde para a população em situação de rua, de modo a buscar
a garantia efetiva de alguns princípios e diretrizes do SUS, como a integralidade, a
universalidade e a equidade, além da possibilidade de se proporcionar novos e
potentes encontros entre trabalhadores e usuários. Tal lógica pode se encaixar
também numa perspectiva biopolítica, contudo na sua positividade. A respeito dessa
dualidade da biopolítica, Caponi (2009, p. 534) diz que
implica aceitar um processo complexo que tem duas faces. Por um lado, o domínio do vital (natalidade, saúde, mortalidade e reprodução), que para os gregos era eminentemente privado, ingressará na esfera do social e, consequentemente, da política. Os direitos das mulheres, das crianças, dos trabalhadores, o reconhecimento dos direitos básicos à alimentação e à assistência, ainda que duramente conquistados, falam da positividade dessabiopolítica. Mas existe outra face, obscura, desse mesmo processo: as políticas higiênicas, psiquiátricas e eugênicas desenvolvidas no século XIX com o objetivo de melhorar a população e a raça classificaram uma série de condutas que, sob a categoria de anormalidade, podem começar a ser medicamente controladas.
Na perspectiva dessa face obscura, negativa da biopolítica, Foucault (2008, p.
11) aponta para o fato de que os governos tentam impedir quaisquer tipos de
comportamentos que possam ser considerados desviantes, apelando para toda uma
série de técnicas de vigilância dos indivíduos, “de diagnóstico do que eles são, de
classificação de sua estrutura mental, da sua patologia própria, etc., todo um conjunto
disciplinar que viceja sob os mecanismos de segurança para fazê-los funcionar”.
Biopolítica, “novos anormais” e os tensionamentos no contexto urbano
Muitos discursos têm sido produzidos sobre a internação compulsória para
usuários de drogas. São discursos que perpassam diferentes campos do saber, como
saúde, educação, assistência social, segurança, direitos humanos e justiça. Diversos
segmentos da sociedade têm se mobilizado em cima do tema. Parte dos
posicionamentos tem ido na direção de posicionar o morador de rua que faz uso de
substâncias psicoativas enquanto este “novo não-humano”, um “zumbi”, um sujeito a
ser medicalizado, contido química e fisicamente, a ser privado do espaço da rua
devendo este ser tratado mediante internação hospitalar para desintoxicação ou
comunidades terapêuticas ou ainda clínicas específicas para usuários de drogas. Para
os setores mais conservadores da sociedade, só dessa forma é que se poderá
“reabilitar”, “tornar apto”, “inclusivo”, esse sujeito para viver em sociedade. Esse é um
dos posicionamentos que se enquadram numa política da vida, uma biopolítica como
alertava Michel Foucault (2011), como forma de controlar e gerir as vidas das pessoas.
Nesse sentido, a biopolítica vai operar com controles precisos, regulações de
conjunto e mecanismos de segurança, para exigir mais vida, majorá-la e dessa forma
gerí-la (PORTOCARRERO, 2011). Esse modo de gerir a população, para Foucault, é
contemporâneo do aparecimento das categorias de anormalidades, como o
delinquente, o perverso e o par normal-anormal (ibidem). Ao identificar cientificamente
essas anormalidades, as possíveis estratégias biopolíticas passam a estar numa
posição privilegiada para supervisioná-las e administrá-las. O corpo passa a ser uma
realidade biopolítica, e entre as estratégias biopolíticas estariam a medicina, o
urbanismo, a demografia e outras (FOUCAULT, 2002).
Pode-se ver que ao longo dos séculos XIX e XX passam a existir novos modos
de classificação dos desvios e das anomalias e também um novo modelo de
intervenção sobre os indivíduos. Surge assim um novo espaço classificatório de
doenças e anomalias que permitirá a proliferação, na segunda metade do século XIX,
de um conjunto de doenças relacionadas a comportamentos considerados desviantes
(CAPONI, 2009).
É possível pensar que talvez entre todos os novos anormais produzidos (no
sentido foucaultiano) nos dias de hoje, os indivíduos em situação de rua, formam uma
das faces mais gritantes ao ingressarem no bojo das estratégias biopolíticas. Como
forma de gerir essa população na atualidade, governos aliados a alguns setores da
saúde e assistência traçam novos planos para supervisionar, administrar essa
categoria especifica de anormais. É aí que entram os discursos que desvalorizam e
tiram potencia da pessoa em situação de rua, tornando um problema da esfera social
em doença e motivo para “limpar as ruas”. A justificativa mais usada é de que esses
sujeitos só podem melhorar, curar-se se forem internados (nos diferentes lugares que
citamos no parágrafo acima), mesmo que contra vontade, pois no estado em que se
encontram, podem ser um perigo não mais a si mesmos, mas à toda população.
Merhy (2012) nos diz que no campo da saúde, forte aliado dos processos da
ordem biopolítica, novos biopoderes são requisitados sendo que a medicina nos dias
atuais cedeu lugar para sua transformação: de exclusivamente dos corpos de órgãos,
agora temos uma medicina do corpo sem órgãos, que opera não somente com as
questões biológicas, mas também que medicaliza condutas, comportamentos
considerados anormais. A partir dessa nova conformação do campo saúde, agora
portador de uma clínica do corpo sem órgãos, podemos perceber na micropolítica do
dia-a-dia uma série de situações que serão elencadas como objetos necessários de
suas intervenções. Os usuários de drogas, que ocupam ruas, praças e matos em
qualquer cidade, vêm se constituindo num prato cheio para normatização do não
controlado, do imprevisível (ibidem).
Essas intervenções de recolhimento da população de rua que faz uso de drogas
vêm ganhando espaço nas agendas públicas de diversas capitais brasileiras. Daí que
emerge de setores mais críticos à essas posturas governamentais, posições que
podem ser sintetizadas na ideia de que com essas políticas o que se pretende não é
ajudar esses sujeitos, mas, sim, promover uma grande “limpeza social” nessas
cidades (SILVA, 2010; ROLNIK, 2012).
Ao partirem do pressuposto que associa o usuário de droga como dependente
químico, esses governos indicam através dessas políticas que só a abstinência e a
interdição do contato com a droga podem produzir efeitos terapêuticos, como outros
sujeitos além do campo político tem advogado e tentado provar cientificamente
(MERHY, 2012). Tais ações não contam somente com o apoio de recursos
governamentais, que justificam tal investimento com o discurso de um possível caos
social caso não se adote políticas mais duras, mas também de indústrias
medicamentosas, de comunidades terapêuticas e de clínicas psiquiátricas privadas.
Ao contrário disso, as demais formas de tratar dessa temática em que não se prevê a
repressão, mas, sim, uma aposta na produção de novas formas de vida para essa
população, os investimentos estatais são parcos (ibidem).
Já na outra ponta da discussão, estão movimentos sociais; algumas entidades
representativas, como sindicatos, associações e conselhos; e trabalhadores da saúde,
justiça e assistência social, que defendem que as formas de tratar as pessoas que
vivem na rua e sofrem pelo uso abusivo de álcool e outras drogas devem ser integrais,
aliando as políticas da saúde e da assistência, de modo a colocar à disposição dessa
população diversos serviços públicos para que elas possam ser atendidas de forma
voluntária, consentida e não afastada do convívio social, das ruas. Para esses grupos
não se descarta a internação específica para desintoxicação num hospital geral, o que
se reivindica é que essa internação deve partir do desejo, da vontade da pessoa e que
ela tenha acesso a uma série de políticas e serviços quando ela sair do hospital e que
não seja vista como um “zumbi”, um “não-humano”, desprovido de razão, desejo e
direitos.
Antônio Lancetti (2012), comenta que até então no Brasil estávamos
caminhando para construção de redes de cuidados em saúde mental para pessoas
usuárias de drogas, quando então se lançou sobre o imaginário social essa intensa
campanha midiática marcada pelo alarme, desinformação, promessa de um caos e
que os serviços públicos de saúde e assistência não dariam conta dessa falsa
epidemia. Por conta desse imaginário construído fortemente pela mídia e por
governos, a população em geral desconhece a rede de apoio ao usuário de drogas,
os serviços, as políticas públicas e os profissionais que lidam com essa temática.
Atualmente no Sistema Único de Saúde – SUS existem dispositivos para além
da internação hospitalar, como os Centros de Atenção Psicossocial específicos para
atender à usuários de álcool e outras drogas – CAPS AD6. Há dois tipos de CAPS AD:
o tipo III que pode funcionar até vinte e quatro horas e o tipo II que atende das 8h às
18h. Ambos são serviços que contam com equipe multiprofissional, atendimento sob
a forma de oficinas, grupos, acolhimentos, atendimentos individuais, consultas, visitas
domiciliares e internação curta no caso dos CAPS AD III (que eventualmente podem
realizar procedimentos de desintoxicação).
Os coletivos que se posicionam contra esses projetos de internação
compulsória em massa, defendem a ampliação e a qualificação desses serviços da
rede SUS, como os CAPS AD e os Consultórios na Rua, além da construção/criação
de novos dispositivos de cuidado, de atenção e acolhimento às pessoas que vivem
em situação de rua, que fazem uso abusivo de substâncias psicoativas.
Considerações Provisórias
6 Além dos CAPS AD, o SUS também prevê que os usuários de álcool e outras drogas também sejam acolhidos e atendidos nas Unidades Básicas de Saúde - UBS, pelas equipes de Saúde da Família – ESF e nos Centros de Atenção Psicossocial para pessoas em sofrimento psíquico – CAPS.
Foucault (1999, p. 150) nos indica que “tudo o que é desordem, indisciplina,
agitação, indocilidade, caráter reativo, falta de afeto, etc., tudo, daqui em diante,
poderá ser psiquiatrizado”. Portanto, os novos anormais ingressam no bojo das
biopolíticas contemporâneas pela medicina do “não-patológico”, calcada em atender
esses desviantes das condutas consideradas normais e esperadas para o sucesso de
uma dada população. Não é à toa que dentre aqueles que defendem as internações
compulsórias como forma de tratar o usuário de droga, principalmente o que vive na
rua, estão grupos conservadores representantes da psiquiatria biologicista, da
indústria farmacêutica, donos de comunidades terapêuticas, setores dos governos e
outros que não apostam em formas mais ampliadas de acolher essa demanda tão
complexa.
Sendo assim, ficam aqui nessas primeiras considerações, algumas perguntas
a serem pensadas por nós: como não produzir corpos para essa biopolítica? De que
maneiras o CnR (e outros serviços do campo da saúde, da assistência social e etc)
pode ser uma alternativa de resistência às estratégias biopolíticas de controle,
vigilância e produção de anormais?
Referências
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CienciasSociales, Universidad de Barcelona, Vol. XV, nº 895 (18), 5 de noviembre de
2010.
Conversas sobre a Medicalização da Educação numa
Escola pública na cidade de Belém.
Autor principal: Evelyn Tarcilda Almeida Ferreira (Estudante de
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará)
Demais autoras: Daiane Gasparetto, Eline Freire Monteiro, e Rafaele
Aquime.
Trabalho realizado como requisito de avaliação da Disciplina Processos
de Subjetivação, História e Política, ministrada pela Profª Flávia Lemos no
Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará.
Belém – PA. Janeiro/2013
Palavra-chave: Medicalização, Educação, Subjetividades.
Quadro Conceitual
O termo medicalização segundo Collares e Moysés (1994) está
relacionado na busca de soluções médicas para questões eminentemente de
outra natureza, ou seja, sociais e políticas. O processo de medicalização
baseia-se na concepção de saúde-doença da ciência médica a qual centra-se
no indivíduo e enaltece a abordagem organicista.
Nesta perspectiva, a medicalização das práticas educacionais tem sido
uma temática discutida em espaços acadêmicos, fóruns e congressos e o
seguinte trabalho possui como principal objetivo levar essa discussão para o
ambiente escolar, local este onde se fomenta as práticas de ensino-
aprendizagem, por meio de onde o olhar medicalizante pode estar presente.
Conforme assinala Collares e Moysés (1994), a educação, assim como
outras áreas da sociedade, vem sendo medicalizada de forma intensa, sendo a
aprendizagem ou o seu fracasso, encaradas como processos centrados no
aluno ou no máximo em sua família. Permitindo que a política educacional seja
quase nunca questionada em torno desse fato. Uma ilustração dessa
concepção é atrelar o fracasso escolar à presença de disfunções neurológicas,
rotulando a criança como disléxica ou hiperativa.
De acordo com Arantes, Lobo e Fonseca (2004, p. 3) “quanto mais a
razão de fecha em um modelo único e absoluto, maior o empobrecimento do
pensamento, a domesticação da vida e a intolerância a diferença”. A
medicalização, portanto, privilegia o saber médico em detrimento dos outros
saberes.
Nesse sentido, é essencial destacar que as contribuições da Psicologia
na área da Educação estão fundamentadas em propor uma articulação da
Política Pública Educacional com a vida escolar, com as relações
estabelecidas do sujeito com a sociedade e suas condições individuais, de
cunho orgânico ou não (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2011).
Diante do exposto, o relatório irá expor as duas atividades realizadas
pelo grupo de psicólogas em uma Escola Estadual de Ensino Fundamental
localizada na Região Metropolitana de Belém.
Objetivos
A primeira atividade consistiu em uma roda de conversa com os
professores e técnicos em educação sobre a “Medicalização da vida escolar” e
a segunda atividade consistiu em uma oficina com alunos com a temática “A
escola que queremos”.
As duas atividades objetivaram uma interlocução entre a temática da
medicalização da educação num espaço onde a aprendizagem se constrói e
os atores dessa construção.
Metodologia & Resultados
Abaixo será descrito como se desenvolveu a atividade.
Atividade 1: Roda de conversa com professores e técnicos em
educação da rede pública de ensino fundamental do Estado.
No dia 14 de dezembro de 2012, às 14h00, quatro profissionais de
psicologia reuniram-se com o corpo de profissionais para discutir sobre a
temática da “medicalização da vida escolar”.
Inicialmente, perguntou-se às participantes o que entendiam por
medicalização, no intuito de consultar o que sabiam sobre este assunto. Entre
poucas opiniões explanadas, foi mencionado que o tema poderia ter relação
com médicos, remédios, bem como sobre a possibilidade de a escola estar
doente. Inclusive, fomos indagadas sobre a relação do assunto abordado com
a escola.
Observou-se que as participantes tinham poucas informações
consistentes sobre a temática, porém, demonstraram, em sua maioria,
curiosidade e interesse.
Primeiramente, foi apresentado ao grupo o conceito de medicalização,
pretendendo problematizar a relação deste assunto com as práticas no
contexto escolar, desvelando questões e interesses que estão implicados à
racionalidade medicalizante.
Como interesses ligados à esta racionalidade, foram abordadas noções
acerca da lógica do mercado de medicamentos, a exemplo do metilfenidato; da
implantação de serviços voltados para atender as novas demandas de
doenças e de promoção a saúde; da criação de doenças relacionadas à vida
escolar, tais como o TDAH, TDA, TOD, dislexia entre outros.
Outras reflexões levantadas dizem respeito ao ideal cultural de
valorização da performance na sociedade contemporânea, que estimula a
competição e o consumismo, ocasionando o assujeitamento e fragilização das
relações humanas.
Por fim, com base no documento “Recomendações de práticas não
medicalizantes para profissionais e serviços de educação e saúde” (Fórum
sobre medicalização da educação e da sociedade, 2012), foram apresentadas
proposições de saberes e fazeres não medicalizantes para serem
desenvolvidos no contexto escolar.
No encerramento, foi apresentado também o vídeo “Medicalização da
Vida Escolar” produzido pelo CRP 5, que aborda de uma forma caricata,
exagerada e com humor, os processos de medicalização da vida escolar e da
sociedade.
Após as explanações teóricas sobre o assunto, foi aberto um debate, a
partir do qual os profissionais puderam expressar suas opiniões, dúvidas e
divergências. Entre as ideias apresentadas, foram ressaltadas: a proximidade
do tema com a prática, a dificuldade de lidar com os comportamentos
diferentes e a necessidade de uma rede de serviços que auxiliem na condução
de casos de alunos que apresentem dificuldades de aprendizagem.
Compareceu também entre os argumentos, um discurso em defesa da prática
docente, buscando justificar as lacunas na atuação do professor.
Observou-se que a maioria mostrou-se aberta para a discussão.
Contudo, percebeu-se também falas conservadoras, que denotam uma
resistência ao questionamento de seu trabalho.
Importante ressaltar aqui que o intuito desta roda de conversa foi
problematizar, instigar e desnaturalizar pensamentos a respeito da
medicalização e não avaliar ou criticar a prática docente desta escola. Dessa
maneira, tanto as opiniões favoráveis ou contrárias foram acolhidas ao longo
do debate.
Atividade 2: Oficina sobre o tema “A escola que queremos” realizada
com alunos de duas turmas de uma escola de ensino fundamental da rede
pública do Estado.
No dia 19 de dezembro de 2012, às 14h00, foi realizada uma atividade
lúdica de confecção de cartazes com expressão livre de desenhos e colagens
a partir da temática “A escola que queremos”. As quatro profissionais de
psicologia dividiram-se entre duas turmas para conduzir a atividade,
totalizando 32 crianças participantes.
A condução da atividade seguiu o seguinte roteiro: 1) apresentação das
psicólogas, alunos e professores; 2) apresentação da proposta de trabalho; 3)
divisão das crianças em subgrupos; 3) elaboração dos cartazes; 4)
apresentação da produção.
A receptividade e a participação dos alunos foram favoráveis ao
desenvolvimento da intervenção, por meio da qual se sentiram livres e à
vontade para produzir o material de acordo com o ritmo individual.
Observaram-se diferenças entre na produção dos subgrupos no que se
refere ao conteúdo e na forma de abordar o tema. No entanto, em todos os
trabalhos notou-se a criatividade e as opiniões refletidas nas imagens
compostas.
A partir do conteúdo dos cartazes, pode-se intuir o que os alunos
esperam da escola, bem como o que esta poderia oferecer de melhorias.
Interessante perceber o quanto as crianças possuem a noção do que a
escola deve contemplar em termos de alimentação, espaço e tempo para lazer
e aprendizagem.
Alguns desenhos expressaram imagens que podem representar as
deficiências do ambiente escolar e as relações interpessoais presentes. A
partir disso, permitiu-se pensar no quanto os alunos tem uma percepção crítica
sobre o cenário no qual estão inseridos.
De um modo geral, a proposta da oficina foi propiciar um espaço de
expressão criativa que possibilitasse aos alunos a demonstração de seus
pensamentos e sentimentos em relação à realidade escolar.
Conclusões
Partindo da ideia de que a medicalização é oriunda do processo de
transformação de questões sociais humanas em biológicas, nota-se a
importância ampliar e democratizar o debate, fazendo interlocução com
espaços não acadêmicos, compartilhando o significado da medicalização e
suas extensas implicações nos processos de socialização.
Nesse sentido, este trabalho foi uma pequena estratégia de reflexão e
produção que se contrapôs à racionalidade medicalizante e que possibilitou
um espaço de expressão para aqueles que muitas vezes não são devidamente
ouvidos.
Assim, esta ação aponta que os problemas de aprendizagem
demandam uma compreensão abrangente, que contemple dispositivos
concretos relacionados à formulação de políticas públicas, apoiando, deste
modo, ações transdisciplinares e intersetoriais.
Referências Bibliográficas
ARANTES, Esther Maria de Magalhães; LOBO, Lília Ferreira;
FONSECA, Tânia M. Galli. Pensar: a que será que se destina? Diferentes
tempos de uma reflexão sobre a morte anunciada do educador. Disponível em:
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científico] Disponível
em: <<http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_23_p025-031_c.pdf>> .
Acesso em: 7 jan. 2013.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Caderno Não a
Medicalização. Disponível em: <http://site.cfp.org.br/publicacao/subsidios-
para-a-campanha-nao-a-medicalizacao-da-vida-medicalizacao-da-
educacao/>>. Acesso em: 7 jan. 2013.
ANEXOS
Figura 1: Roda de conversa
Corpos que não param: o processo de medicalização escolar
Dr.ª Cláudia Rodrigues de Freitas
Resumo Este artigo busca analisar como as instituições vêm engendrando o processo de medicalização atuando de forma rizomática na sociedade. Na segunda metade do século XX se produzem dispositivos já sendo nomeados de medicalização. No século XXI a intensidade de tais dispositivos se torna mais intensos. Nas instituições escolares podemos observar este dispositivo sendo anunciado de diversas formas. A mais intensa vem sendo através do suposto Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Este é reconhecido como um dos elementos mais frequentes no processo de Medicalização escolar. Os autores que definem as lentes teóricas utilizadas neste artigo são Foucault, Moysés e Caliman. Discute-se os espaços disciplinar desencadeados, onde crianças contam, através de seus Corpos em movimento de instituições escolares e familiares, padecendo de um “transtorno de déficit atencional” às suas crianças. O olhar valorizador do fenômeno hiperatividade, incorre no grande equivoco de centrar no aspecto biológico e cerebral a constituição do sujeito em detrimento do entendimento de que esse fenômeno é produzido na relação entre as pessoas. A produção da desatenção é de responsabilidade não só da criança, mas de todos aqueles envolvidos com ela de alguma forma. Apesar da tendência à valorização da dimensão biológica, é possível identificar uma pluralidade de fatores intervenientes ao considerar o sujeito na sua complexidade e totalidade, assim como a potência do trabalho contextual e educativo. Palavras-chave: Medicalização; TDAH; Escola. Pistas iniciais
Com o consentimento da sociedade, que delega à medicina a tarefa de normatizar, legislar e vigiar a vida, estão colocadas as condições históricas para a medicalização da sociedade, aí incluídos comportamento e aprendizagem. (Moysés, 2008, p.1)
O século XVIII se caracterizou por uma intensa ruptura paradigmática. O tão
falado Século das Luzes pedia um sujeito determinado, um sujeito da razão.
Estabeleceu-se a possibilidade de diferentes concepções de natureza, corpo, mente
e atenção. O debate filosófico sobre mente e corpo se aqueceu. A razão teria a
incumbência de controlar o corpo. “Por sua vez, a mente também deveria ser
controlada, e atenção em excesso sobre algo não deveria ser incentivada” (FREITAS,
2010, p. 2). Apenas a artistas era permitida uma atenção excessiva, quando fosse por
seus objetos de criação. A Ciência, nesse período, era uma habilidade que se
constituía para dar sustentação à construção do conhecimento “verdadeiro”. A
medicina, como nos conta Foucault (1994, p. X), teve sua “data de nascimento em
torno das últimas décadas do século XVIII”. Essas alterações pediam modificações
aos sujeitos, demandando vida ordenada, moderada, racional e prudente.
No século XIX, a objetividade científica se estabeleceu de vez e intensificaram-
se as discussões sobre a localização e as funções mentais do cérebro, definindo a
possibilidade de desenvolvimento das teorias da neurofisiologia e da psicologia
fisiológica.
De acordo com Moysés (2008, p. 141), é no século XIX “que se funda a
medicina tal qual a conhecemos na atualidade.” No final desse século há um “processo
de cerebrização da vontade da atenção” (CALIMAN, 2006, p. 34). A referida autora traz
ainda algumas reflexões desencadeadas no final desse período, as quais me parecem
ainda pertinentes, vigentes, no século XXI:
A prática diagnóstica das patologias da atenção se deparava com dois problemas: como definir os casos nos quais o distúrbio da atenção era um sintoma secundário daqueles que ele estava em primeiro plano? Como saber quando seus excessos e suas falhas ultrapassam o limite da normalidade? (ibid, p. 40).
Os dispositivos em circulação formam a ideia de normal e anormal, na qual o
conceito de norma, segundo o latim “normális”1, significa esquadro, instrumento de
medida do ângulo reto. O normal, a partir daí, se define conforme a regra, as leis
reconhecidas. O contrário seria o (a)normal2, o (ir)regular, o (pato)lógico. O normativo,
nesta perspectiva, seria o que “constitui uma norma, uma regra de ação ou de
conduta”3.
O questionamento sobre a prática diagnóstica persiste, encontrando pertinência
no século XXI. Já na última década, passou a ser reconhecida como a “década do
cérebro” (Santos, 2011; Rose, 2011; Rose, 2007a; 2007b, Caponi, 2007). Este período
articula saberes entre “genes e cérebro” tomando a biologia como o elemento mais
potente da discussão sobre “o que é ser humano” (Santos, 2012, p 5).
A escola hoje vem produzindo discursos que identificam um número expressivo
de crianças com diagnósticos variados e, endossados pelo discurso médico, estes
1 Diccionario del Lenguaje Filosófico de Paul Foulquie (1967, p. 699). 2 Opto por esta forma na intenção de marcar a negação e não a palavra em oposição. 3(ibid, p. 699)
identificam problemas da vida contemporânea (tristeza, cansaço, agitação, etc.) a
conceitos médicos como depressão, bipolaridade, transtorno obsessivo compulsivo,
Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) entre outros. Freitas
(2011a), da visibilidade a expressões mais evidentes da epidemia do diagnóstico de
TDAH. Assim como este, muitos outros trabalhos pensam e desencadeiam pesquisa
sobre o campo (Freitas, (2010, 2011b), Caliman, (2000, 2006, 2008a, 2008b, 2010),
Abreu (2006), Itaboray (2009), De-Nardin (2007), De-Nardin e Sordi (2007) Fernández
(2012), Richter (2012) Ortega, (2010), Pereira (2010) e tantos outros. Em forma de
epidemia o discurso escolar encaminha crianças aos consultórios médicos, mas qual
a intenção?
Mas de fato como a escola vem pensando o processo de medicalização que
atravessa a sociedade e toma vulto no cotidiano da escola? Vem pensando? Pensar
a organização pedagógica a partir do diagnóstico pedagógico é um desafio ao fazer
escolar assim como pensar as singularidades desencadeadas na temporalidade e
diversidade culturais. O saber da educação face às crianças referidas por diagnósticos
variados e de forma cada vez mais frequente toma a direção da Medicalização
Escolar. Impregnando os espaços escolares a Medicalização do Aprender na escola
deve ser objeto de preocupação das discussões escolares.
O conceito de medicalização vem tomando várias vertentes e sendo estudado
por muitos pesquisadores. O que chamo aqui de medicalização toma conforto nas
indicações de Angelucci e Sousa (2010, p.9) quando referem esse processo como a
tentativa “de conferir uma aparência de problema de Saúde a questões [...] de
natureza social”. A Medicalização não é apenas o ato em si de prescrever medicação,
mas podemos pensá-la também como engrenagem, como máquina da medicina
transformando a vida em objeto.
O tema tem proliferado em diversas revistas, artigos de jornais, não apenas os
especializados, mas os de trânsito comum, com grande tiragem para uma parcela
enorme da população4. Desdobram-se eventos sobre o tema dando evidências de sua
relevância.
Escavando este terreno, buscamos pistas de como a educação lida com os
sujeitos referidos ou acolhidos através de discursos oriundos da área médica e, ainda,
4 O trabalho de Ynayah Souza de Araujo Teixeira, intitulado “O enfrentamento da medicalização pelo trabalho pedagógico”, de 2008, relata com mais detalhes esses dados.
de quais recursos lança mão para tratar essa questão. A educação cria um corpus de
conhecimento ou apenas convoca o saber médico? O que os escritos acadêmicos e
científicos indicam/produzem sobre/com a escola acerca da temática
“medicalização”? Reconhecemos a necessidade de detectar os efeitos de tais
evidências no cotidiano da escola.
Complexa rede de diferentes olhares e muitos atores, dentre os quais a escola
ocupa uma posição fundamental tanto na sinalização daquilo que emerge muitas
vezes como o primeiro olhar identificador, quanto na potencial oferta de acolhimento
para o sofrimento desencadeado nos fenômenos que envolvem a atenção, sua
suposta ausência e seus efeitos.
É preciso olhar com preocupação para os rumos que vão sendo inferidos nos
últimos anos com relação ao diagnóstico e sobre os propósitos da medicação.
Caliman (2008a-2008b-2009-2010) faz referências intensidade que isso vem
acontecendo.
A cultura da medicalização reconhece sinais e sintomas, esquecendo o sujeito,
num movimento que se configura “em um biologismo extremo”. Ao olhar para a vida
infantil, reconhecemos os nomes atribuídos a esta como construções “identitárias”
com caráter homogeneizante. Observo os vários discursos sobre a medicalização se
engendrando, funcionando como promessas se cumprindo e imediatamente,
rastreando a sua trajetória, se descumprindo.
O poder médico ou o de suas instituições se constrói por meio de alguns
procedimentos, pela elaboração de determinados dispositivos, os quais os definem
como conquistas da ciência na modernidade. Existe um “espírito” sendo engendrado.
[...] “espírito” como superfície de inscrição para o poder, com a semiologia por instrumento; a submissão dos corpos pelo controle das ideias; a análise das representações como princípio, numa política dos corpos bem mais eficaz que a anatomia ritual dos suplícios. O pensamento dos ideólogos não foi apenas uma teoria do indivíduo e da sociedade; desenvolveu-se como uma tecnologia dos poderes sutis, eficazes e econômicos, em oposição aos gastos suntuosos do poder dos soberanos (FOUCAULT, 1992, p. 93).
Delevati (2012), em sua dissertação de mestrado, destaca algumas evidências
que corroboram o foco da medicalização, assim como a preocupação com esta
temática. A pesquisadora, ao relatar sobre os sujeitos atendidos nas salas de recursos
no Município de Gravataí, aponta um número expressivo de alunos recebendo o rótulo
de “TDAH” e com a ausência deste item nas fichas “foram registrados no Censo no
campo Deficiente Intelectual” (p. 98). Seguindo seus registros
Outras crianças com diagnóstico clínico de transtorno opositivo desafiador, transtorno de conduta, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, entre outros, foram identificadas no Censo escolar tanto no campo deficiência intelectual, quanto entre os transtornos globais de desenvolvimento. (p.103) Neste ponto encontram-se as dúvidas e diferentes ações. Principalmente em relação à deficiência intelectual. Neste aspecto encontrou-se um maior nº de distorções. Entre as mais frequentes, professores que incluem o aluno no AEE e não registram no censo ou que atendem e registram no Censo, mesmo quando as evidências apontam outras tipologias não contempladas na política (TDAH, transtorno de leitura e escrita, entre outros). (p.117)
Reconheço nas pistas deixadas por Delevati subsídios para um engajamento
intenso dos professores no processo de medicalização através de diagnósticos das
mais variadas ordens. Este processo, no entanto, não é algo pontual neste município,
mas encontra eco em outros tantos.
No Município de Porto Alegre crianças passam a frequentar a Escola Especial
a partir de diagnósticos de TDAH e Déficit de atenção como descreve Silva5:
É importante notar que alunos com comprometimentos menos graves, como aqueles que apresentam diagnóstico de hiperatividade e distúrbio de atenção, passaram a compor o público atendido pelas escolas especiais. Segundo relatos de uma professora da escola em foco, esses alunos começaram “a chegar à instituição porque se entendia que os mesmos precisavam de um momento de organização”.
Silva reconhece estes dados através dos documentos escritos e descritos nas
pastas dos alunos em uma escola Especial:
Hoje em dia, a escola recebe alunos que apresentam diferentes diagnósticos como, por exemplo:
[...] transtornos de desenvolvimento, paralisia cerebral, prematuridade, atrasos no desenvolvimento, doenças metabólicas, transtorno neuropsicomotor, deficiências múltiplas, hiperatividade e distúrbio de atenção, deficiências múltiplas, como deficiência mental associada à lesão cerebral, à deficiência física, visual e auditiva (PPP, 2012, grifo meu).
São da maior gravidade os relatos e assim como contata Silva este tipo de
situação pipoca em caráter de epidemia ao nomear as crianças pelo suposto
diagnóstico de TDAH.
As educadoras, quando relatam estas “formas de nomear”, já estão contando
de um esquadro, de formas de “enquadrar” todos estes sujeitos em diagnósticos, em
5 Dissertação de Mestrado de Edson Silva, UFRGS, 2013.
patologias, oferecendo os subsídios, permitindo, de fato, tomarem existência. É como
se reeditassem permanentemente um espaço esquadrinhado na sala de aula ou no
âmbito escolar para deixar de fora os que se mostram “diferente”.
O que eu procuro não são as relações que seriam secretas escondidas, mais silenciosas ou mais profundas do que a consciência dos homens. Tento, ao contrário, definir relações que estão na própria superfície dos discursos: tento tornar visível que só é invisível por estar muito na superfície das coisas. (FOUCAULT, 2008, p. 146).
Epílogo
Reconheço os discursos como práticas descontínuas que podem tanto se cruzar
como eventualmente se ignorar ou se excluir. O diagnóstico pode ser referido por
vários ‘núcleos produtores’, como família, escola, médico. No entanto, reconheço o
diagnóstico em sua formação inicial, é de “oferecido pela escola”. Há indícios que
permitem dizer: o diagnóstico conta com a aprovação e o incentivo médico.
O olhar valorizador do fenômeno hiperatividade, segundo meu entendimento,
incorre no grande equivoco de centrar no aspecto biológico e cerebral a constituição
do sujeito em detrimento do entendimento de que esse fenômeno é produzido na
relação entre as pessoas. A produção da desatenção é de responsabilidade não só
da criança, mas de todos aqueles - envolvidos com ela de alguma forma.
Apesar da tendência à valorização da dimensão biológica, constitutiva no
entendimento e na atenção às manifestações da hiperatividade, é possível identificar
uma pluralidade de fatores intervenientes na constituição dos Corpos Que Não Param,
nos indicando a necessidade de considerar o sujeito na sua complexidade e
totalidade, assim como a potência do trabalho contextual e educativo.
Muitas vezes o diagnóstico de TDAH se realiza a partir de uma série de
indicadores fixos e isolados, sem analisar sua dinâmica, sua origem, a singularidade
do sujeito imerso em seu contexto.
Vejo na prática, que a regra é ministrar a medicação sem maiores informações
ou preocupações com exames preliminares. Às vezes, nem ao menos se escuta a
palavra da criança. Escuta-se a mãe ou uma “cartinha da professora/orientadora” da
escola com preocupações veementes sobre o comportamento da criança. Geralmente
as queixas são trazidas a partir de comportamentos nos quais o “corpo não para”;
junto a ele, eu reconheço crianças que sintomatizam no corpo o que não conseguem
dizer com palavras ou, quando estas são pronunciadas, não fazem eco na escuta do
professor ou da família.
Na escola, muitas vezes se percebe a criança como o único ator no processo
de aprender. Quando não “conseguem” suportar a atenção nos conteúdos escolares,
imediatamente são reconhecidas como tendo algum problema. Vivemos em uma
época na qual adultos encontram-se em crise. A criança faz parte de uma história e
um contexto marcados pelas suas relações, principalmente na família e na escola, e
estas, por sua vez, na sociedade onde estão inseridas.
Proponho aqui o diagnóstico como a invenção de sentidos para cada sujeito,
cada criança, onde a dúvida seja elemento constante e proponha fissuras ao olhar. É
preciso perceber a criança como um sujeito em processo de estruturação, em
crescimento, no qual os conflitos são fundantes e fazem parte de um complexo amplo,
não podendo ser reduzido a aspectos negativos que lhe imputem rapidamente uma
estrutura de TDAH.
Reconheço crianças falando através de Corpos que não param, de uma
sociedade, de instituições escolares e familiares padecendo de um “transtorno de
déficit atencional” (Gonçalves, 2001, p. 209) às suas crianças. Não seria necessário
atendê-los, ao invés de medicá-los?
A produção da desatenção é de responsabilidade não só da criança, mas de
todos aqueles envolvidos com ela de alguma forma. Apesar da tendência à
valorização da dimensão biológica, é possível identificar uma pluralidade de fatores
intervenientes ao considerar o sujeito na sua complexidade e totalidade, assim como
a potência do trabalho contextual e educativo.
Referências
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CALIMAN, Luciana Vieira. Notas sobre a história oficial do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade TDAH. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 30, n. 1, mar. 2010.
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CALIMAN, Luciana Vieira. A Biologia Moral da Atenção - A Constituição do Sujeito (des)Atento, Doutorado em Saúde Coletiva Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil. Com período sanduíche em Max-Planck Institute for the History of Science(Orientador: Fernando Vidal). Orientador: Francisco Javier Guerero Ortega. Estado do Rio de Janeiro, FAPERJ, Brasil, 2006.
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CAPONI, Sandra. Da Herança à Localização Cerebral: sobre o Determinismo Biológico de condutas indesejadas. Physis: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.17, n.2, p.343-352, 2007.
DELEVATI, Aline. AEE: que "atendimento" é este? As configurações do Atendimento Educacional Especializado na perspectiva da Rede Municipal de Ensino de Gravataí/RS. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Orientador: Claudio Roberto Baptista.
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CURRÍCULO E MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO: UMA
ARTICULAÇÃO NECESSÁRIA DA FORMAÇÃO DE PROFESSORES?
Poliana C. A. Guilouski - UEPG
Marcelo Ubiali Ferracioli - UEPG
Palavras-chave: Medicalização. Fracasso escolar. Formação de professores.
Dificuldades de aprendizagem.
Quadro Conceitual
A proposta de formação docente deve considerar, em primazia, a capacidade
de leitura crítica do sistema educacional e cabe ao projeto político pedagógico do
curso traduzir e interpretar os desafios do contexto profissional (TOLENTINO, 2011).
Todavia, hoje comumente na leitura do fracasso escolar desprezam-se as análises
das políticas públicas e suas responsabilidades perante o atual modelo educacional,
enfocando-se em ações imediatistas e individualistas, entre elas, a medicalização.
Medicalizar o fracasso escolar é reduzi-lo à consequência de disfunções biológicas,
culpando unicamente o indivíduo como o responsável pelo não aprender,
desconsiderando a análise das relações sociais e educacionais (COLLARES E
MOYSES, 1985).
O presente trabalho ainda em andamento é parte do Trabalho de Conclusão de
Disciplina (TCD) do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade
Estadual de Ponta Grossa. É uma atividade de pesquisa da disciplina de Laboratório
de Ensino, ofertada em todos os anos da graduação, caracterizada como componente
curricular de prática escolar, obrigatório pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para
Formação de Professores da Educação Básica – documentos oficiais norteadores da
construção curricular. Cabe a esta disciplina articular e inter-relacionar os
conhecimentos específicos de Biologia com a prática escolar, desenvolvendo
habilidades e competências relativas ao trabalho docente, mediante ação-reflexão-
ação na prática educativa (PPC, 2009).
O trabalho de conclusão desta disciplina deve constituir-se de uma atividade
acadêmica de organização e sistematização do conhecimento sobre um objeto de
estudo pertinente à profissão de Licenciado em Ciências Biológicas, visando contribuir
para o ensino de Ciências e Biologia (UEPG, 2009). A escolha do tema medicalização
da educação para objeto de estudo do TDC, parte de questionamentos surgidos
durante a disciplina de Estágio Curricular Supervisionado no qual, com o contato direto
e continuo com o ambiente escolar, observou-se a aclamação naturalizada de
professores por intervenções medicamentosas para concretização do seu trabalho,
sem ao menos uma reflexão pedagógica fundamentada e crítica.
Equivocadamente, o espaço escolar tornou-se um determinante importante
para o diagnóstico massivo e precário de transtornos de aprendizagem e geralmente
é também onde ocorrem as primeiras intervenções a respeito. O processo pedagógico
que deveria ser o objeto de reflexão e mudança fica mascarado, ocultado pelo
diagnosticar e tratar singularizados (COLLARES e MOYSES, 1994) “[...] e o fim do
processo é a culpabilização da vítima e a persistência de um sistema educacional
perverso, com alta eficiência ideológica.” (p.30, 1994). Ao afastar a responsabilidade
da própria ação pedagógica, da escola e das políticas públicas, educadores
contribuem inconscientemente com o fenômeno da medicalização.
A educação é a apropriação dos conhecimentos acumulados pela humanidade
historicamente e é, também, historicamente homogeneizada e elitista. E este modelo
hegemônico da prática pedagógica, preconiza novos comportamentos e reprime
outras manifestações: [...] “grande contingente de indivíduos, particularmente
composto por aqueles que não conseguem atender as exigências da escola, e/ou que
não conseguem se manter no sistema produtivo, passam a ser considerados também
“deficientes” (CARVALHO e MARTINS, 2011, p. 22).
A história das explicações do fracasso escolar tem demonstrado a relação entre
o discurso científico que explica o fenômeno e a ideologia dominante, de acordo com
a qual só obtêm sucesso os mais aptos, os mais capazes, culpando os alunos pobres
e suas famílias, justificando assim a desigualdade social e ignorando os determinantes
escolares e políticos das dificuldades de escolarização (PATTO, 1990). O
neoliberalismo prega o individualismo e a naturalização da exclusão social
considerando-a como sacrifício inevitável para o processo de modernização e
globalização da sociedade (LIBÂNEO, 2010), em defesa aos interesses dominantes:
a contradição do capitalismo atravessa também a questão relativa ao
conhecimento: se essa sociedade é baseada na propriedade privada dos
meios de produção e se a ciência, como conhecimento, é um meio de
produção, deveria ser propriedade privada da classe dominante [...]Desse
modo, a sociedade capitalista desenvolveu mecanismos através dos quais
procura expropriar o conhecimento dos trabalhadores e sistematizar, elaborar
esses conhecimentos, e devolvê-los na forma parcelada. (SAVIANI, 2003, p.
137)
O reflexo desse mecanismo está em alunos desmotivados, recusantes,
desinteressados e apáticos em relação ao processo de ensino-aprendizagem, e estes
que se desviam do padrão considerado normal e fogem as regras hegemônicas de
controle são considerados problemáticos, portadores de algum suposto transtorno ou
distúrbio de aprendizagem. A escola tem uma forma disciplinar subjacente a uma
perspectiva educativa, um modo massificante e organicista de ver o educando que,
apartado de suas condições culturais e sociais, são analisados de forma superficial e
ambígua (LUENGO, 2008).
Concomitante, temos uma formação de professores que possui uma concepção
de educação distorcida, privilegiando a teoria em seus currículos em detrimento a
prática, afastando o futuro professor do pensamento crítico e reflexivo da realidade
educacional, pois não oferece subsídios para o exercício competente da práxis. Por
conseguinte, reduz a visão das verdadeiras causas do fracasso educacional, e assim
mantemos o sistema produtivista, onde a instituição escolar é apenas mais uma
ferramenta de controle social: a reprodução das contradições do sistema econômico
vigente.
Eidt e Tuleski (2009, p. 225) afirmam que
quando se entende que o homem apenas se humaniza em sociedade ou, dito
de outra forma, que esse processo de humanização se da a partir da inserção
da criança em seu meio histórico e cultural através das apropriações das
objetivações produzidas historicamente pela humanidade, dependendo mais
destas do que propriamente de sua herança genética para desenvolver-se,
os fenômenos caracterizados como transtornos na atualidade pode ser
reconfigurado.
O processo educativo se produz de forma deliberada e intencional, em cada
individuo singular, através de relações pedagógicas adequadas para atingir seus
objetivos, no qual cabe ao professor a mediar o saber natural ao saber sistematizado
(SAVIANI, 2000). E as funções psíquicas humanas, como a linguagem oral,
pensamento, memória, controle da conduta, escrita, cálculo “são funções psicológicas
desenvolvidas ao longo do processo de escolarização da criança e em sua atividade,
e dependem da qualidade dos mediadores culturais ofertados [...]” (EIDT e TULESKI,
2010, p. 240), os professores.
Assim, o intuito deste trabalho é verificar como as questões do fracasso escolar
e da medicalização da educação compõem o Projeto Pedagógico do Curso de
Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Ponta Grossa
(UEPG) e como são trabalhadas no cotidiano da formação dos acadêmicos, com a
finalidade de problematizar, frente à realidade do cotidiano escolar, a forma como o
tema integra as preocupações pedagógicas de professores da formação inicial, de
acadêmicos e de professores egressos desta instituição atuantes na Educação
Básica.
Ao concluir este trabalho integralmente, encaminharemos os resultados da
pesquisa para o Colegiado do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da
Universidade Estadual de Ponta Grossa, como uma forma de contribuir para o
processo em andamento da reformulação do Projeto Pedagógico do Curso. Visamos
a geração da discussão sobre o tema da medicalização da educação na formação
inicial de professores, buscando comprovar a necessidade de sua fundamentação no
curso de Licenciatura em Ciências Biológicas, a fim de diminuir os encaminhamentos
médicos, por meio de subsídios para intervenções didáticas diferenciadas.
Metodologia
Caracterizamos a presente pesquisa como qualitativa do tipo exploratório
descritiva, devido contar com dados documentais e de campo ao avaliar documentos
e realizar questionários a fim de identificar as considerações dos pesquisados. Para
Gil (1991) a pesquisa exploratória procura maior entendimento do problema a fim de
torna-lo mais explicito e a descritiva visa descrever características de um determinado
fenômeno e o estabelecimento das relações entre suas variáveis.
Tomamos como fonte de dados documentais o Projeto Pedagógico do Curso
(PPC) de Licenciatura em Ciências Biológicas da UEPG currículos 1(1996), 2 (2004)
e 3 (2008), e os programas das disciplinas pedagógicas: Fundamentos da Educação,
Psicologia da Educação, Didática, Estrutura e Funcionamento da Educação Básica.
Integrará a análise também a disciplina de Laboratório de Ensino em Ciências e
Biologia I, II, III e IV, as quais não são consideradas disciplinas pedagógicas, mas
disciplinas articuladoras entre os conteúdos específicos da Biologia e a prática
docente e Estágio Curricular Supervisionado I e II, a elas atribuídas a responsabilidade
da inserção crítica do licenciando no contexto educacional e desenvolver habilidades
de elaborar atividades de ensino levando em conta a multidimensionalidade da ação
educativa.
Ao realizar a análise, buscaremos aspectos onde questões que permeiam o
fenômeno da medicalização da educação possam estar integradas, considerando
também para o currículo oculto. Pois segundo Moreira (2005) a analise de um currículo
de ensino superior, deve superar verificações simplistas de suas disciplinas e carga-
horária e buscar a articulação entre os aspectos epistemológicos, pedagógicos e
aspectos políticos para compreender as disputas e interesses que caracterizam o
processo de produção do conhecimento na universidade.
Os dados de campo serão coletados ao longo da pesquisa, a partir de
questionários semiestruturados. Serão indagados os professores egressos do curso
de Licenciatura em Ciências Biológicas da UEPG que atuem no mínimo há quatro
anos nas séries finais do Ensino Fundamental e Médio em colégios de Ponta Grossa
– PR, da rede pública e privada de ensino. Procuramos distribuí-los entre regiões
socioeconômicas distintas.
Os questionários serão aplicados também aos acadêmicos do primeiro ao quarto
ano do curso e aos professores das disciplinas pedagógicas, Estágio Curricular
Supervisionado I e II, e Laboratório de Ensino em Ciências e Biologia I, II, III e IV, pois
a elas são atribuídas o desenvolvimento das habilidades didático-metodológicas
necessárias para o exercício da profissão. De tal modo, pretendemos discutir a
percepção dos educadores em função na rede pública de ensino com a dos
acadêmicos e professores do curso de Licenciatura em Ciências Biológicas frente à
relação entre o fracasso escolar e o diagnóstico de transtornos no processo de
aprendizagem, em especial o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH), com a finalidade de contrapor a formação inicial proporcionada e as
necessidades da realidade escolar no âmbito da medicalização.
Tratando-se de uma pesquisa que envolve sujeitos, o projeto foi submetido à
Comissão de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Estadual de
Ponta Grossa. Cada participante foi devidamente esclarecido sobre os objetivos da
pesquisa e assinou o Termo de Consentimento de Livre e Esclarecido (TCLE),
declarando sua livre participação e permanecia na mesma.
Pautaremos as discussões na literatura existente sobre os temas do fracasso
escolar e da medicalização da educação como fenômenos que interferem no trabalho
pedagógico do professor, identificando quais são os pressupostos que justificam a
medicalização e quais são os fenômenos médicos que estão mais comumente
relacionados a ela. Nossas discussões serão baseadas na Psicologia Histórico-
Cultural, a partir do “principio fundamental dessa psicologia, em que o homem não
nasce humano, mas se humaniza na medida em que se insere no mundo da cultura”
(EIDT e FERRACIOLI, 2007, p. 106).
Resultados
Como já aludido, esta pesquisa encontra-se em processo de construção. No
momento encontramo-nos na fase de aplicação dos questionários e dispomos,
parcialmente, de dados documentais levantados a partir dos Projetos Pedagógicos do
Curso (PPC’s) e empíricos.
Na prévia análise dos Projetos Pedagógicos do Curso de 1996, 2004 e 2008
percebe-se que a formação de professores da instituição investigada é anacrônica ao
cenário social atual. O currículo I, de 1996 segue as premissas da formação de
professores da década de trinta, na qual as disciplinas pedagógicas eram
consideradas como complementos das disciplinas de conteúdos específicos
(TOLENTINO, 2011).
Em 2003, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) fez novas exigências para
a formação de professores, suscitando a elaboração de um novo currículo: o currículo
II, de 2004. Para atender a esta nova regulamentação, houve um aumento
considerável da carga-horária das disciplinas pedagógicas e a criação de uma nova
disciplina como componente de prática curricular: Laboratório de Ensino em Ciências
e Biologia, presente em todos os anos de formação do curso com o objetivo de
articular os conhecimentos específicos da Biologia com a prática docente.
No entanto, não ocorreu uma mudança significativa na concepção desta
licenciatura, uma vez que o currículo “não é um elemento inocente e neutro de
transmissão do conhecimento social, [...] transmite visões sociais particulares e
interessadas, o currículo produz identidades individuais e sociais particulares”
(MOREIRA; SILVA, 2005 p. 7), ficou a mercê das concepções educativas dos seus
idealizadores, que possuem uma tendência às áreas específicas da Biologia, julgando
que o domínio destas, é o bastante para atuação docente. Este aspecto também
implicado no item “Competências e Habilidade Básicas Exigidas para o Profissional”
do PPC 2008: “O licenciado em Ciências Biológicas deve estar capacitado a [...] utilizar
os conhecimentos das Ciências Biológicas para compreender e transformar o contexto
sócio-político e as relações nas quais está inserida a prática profissional” (p. 36).
Não há nos currículos o reconhecimento da Educação enquanto ciência da
profissionalização docente e como elemento imprescindível na construção da
identidade e competência profissional. A redação dos PPC’s (1996, 2004 e 2008)
insinua uma preocupação na transmissão de conhecimentos científicos específicos
da área de Biologia, para a qual basta o professor ter domínio do conhecimento
específico da disciplina que ira ensinar e poucas linhas são dedicadas à formação de
professores, à construção da identidade do profissional docente e saberes práticos
necessários à competência profissional. Este modelo de formação de professores é
caracterizado por Saviani (2009) como modelo dos conteúdos culturais-cognitivos, no
qual se considera que para a formação do professor basta a cultura geral e o domínio
específico dos conteúdos da área de conhecimento correspondente à disciplina que
irá ensinar:
“Além da cultura geral e da formação específica na área de conhecimento correspondente, a instituição formadora deverá assegurar, de forma deliberada e sistemática por meio da organização curricular, a preparação pedagógico-didática, sem a qual não estará, em sentido próprio, formando professores.” (p.149).
A especificidade da ciência Educação está nos estudos pedagógicos, que
diferentemente das ciências humanas e naturais, que se preocupam com o
conhecimento específico dos seus fenômenos isolados (SAVIANI, 2000), “preocupa-
se com a identificação dos elementos naturais e culturais necessários à constituição
da humanidade em cada ser humano e a descoberta das formas adequadas para se
atingir esse objetivo” (p.18).
Deste modo, acreditamos que as negligências – teórica e metodológica,
enquanto curso de formação de professores – aqui apresentadas, serão verificáveis
também nas respostas dos questionários aplicados aos egressos acerca do processo
da medicalização. Já que no cotidiano escolar o professor irá se deparar com
situações múltiplas, para as quais não recebeu um aporte teórico e o domínio do
conteúdo da sua disciplina não lhe serve de nada anteriormente a outros saberes
docentes, visto que: “para existir escola não basta a existência do saber
sistematizado. É necessário viabilizar condições de transmissão e assimilação”
(SAVIANI, p.18, 2000).
Conclusões
Entendemos que para superar as práticas medicalizantes, é indispensável a
apropriação deste debate pelos profissionais que estão no chão da escola,
vivenciando seus conflitos e contradições cotidianamente. Portanto, construir a
democratização da escola através da superação da cultura elitista e excludente - que
regem nosso fazer pedagógico - e buscar um currículo multicultural que pense além
das especificidades do conhecimento biológico.
Esta ressignificação da docência requer uma formação inicial que contemple
criticamente os questionamentos sociais que permeiam o processo de ensino-
aprendizagem, ao ofertar subsídios teórico-metodológicos para que os futuros
professores confrontem sua prática com uma postura crítica da sociedade. Deve
capacita-los a organizarem e reorganizarem sua prática didático-pedagógica
cotidianamente de forma intencional e consciente, a fim de desenvolver condições de
aprendizagem, se moldando entre fragilidades e potencialidades não só em seus
planejamentos, mas em movimento dialético com a prática educacional, incorporando
aos poucos, em cada dia, a sua utopia. Não só na busca da realização da educação
ideal e significativa para a transformação da sociedade, mas para que cada um dos
seus alunos possa encontrar “um lugar na escola”.
Referências Bibliográficas
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1
Efeitos colaterais da medicação e da medicalização no
cotidiano escolar: corpo e subjetividade
Sabrina Gasparetti Braga – Universidade de São Paulo Marilene Proença Rebelo de Souza
Quadro Conceitual
Medicalização é um processo em que problemas não médicos são definidos e
tratados como problemas médicos, comumente denominados de doenças ou
distúrbios, portanto inscrever-se-iam no corpo biológico. A crítica à medicalização
repousa fundamentalmente sobre a preocupação sociológica de como o modelo
médico descontextualiza problemas sociais e os coloca sob o controle da medicina
(Conrad, 1992).
Como nos diz Moysés (2001) “a normatização da vida tem por corolário a
transformação dos problemas da vida em doenças, em distúrbios. Aí, surgem, como
exemplos na atualidade, os distúrbios de comportamento, os distúrbios de
aprendizagem” (p.176). Certas condições ou comportamentos são percebidos por um
“olhar médico” e a partir daí médicos podem reivindicar todas as atividades
relacionadas à condição vista.
No campo da aprendizagem, o “olhar médico” além de proporcionar uma
compreensão reduzida da inteligência, comportamento e aprendizagem ao corpo
físico, de forma abstrata e a-histórica emite um diagnóstico que rotula a criança como
doente por toda a vida. O tratamento fica a cargo do próprio médico que na maioria
dos casos prescreve um medicamento, e também de outros profissionais tais como
psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos, que muitas vezes dão continuidade ao
processo de medicalização.
Objetivos
Este trabalho apresenta um estudo de caso que buscou resgatar o processo de
escolarização de um estudante de ensino fundamental I com diagnóstico de Dislexia
e Transtorno Déficit de Atenção Hiperatividade. A presente discussão será centrada
no processo de medicalização sofrido e nos possíveis efeitos colaterais nocivos da
medicação, a curto e em longo prazo relatados pela criança.
2
Metodologia
Foram realizadas entrevistas com Vinicius1, sua mãe, suas professoras e com
a coordenadora pedagógica da escola. Buscou-se a partir da versão de cada um dos
participantes o acesso e compreensão da história de escolarização da criança.
Resultados
Vinicius estudou a 1ª e 2ª séries com a professora Nanci. Repetiu a 2ª série e
estudou a 3ª com professoras que não conseguimos contatar. A 4ª série cursou com
a professora Fátima, e à época da pesquisa estava refazendo a 4ª série com a
professora Maria.
Luciana, a mãe de Vinicius, relata que quando ele estava com oito anos iniciou
o acompanhamento com um médico neurologista que diagnosticou hiperatividade,
prescrevendo medicação. No final do mesmo ano a criança foi atendida em uma
instituição especializada em dislexia que realizou uma avaliação com resultado de
“quadro de risco para dislexia” e “suspeita de Transtorno Déficit de Atenção”. Embora
as conclusões do laudo sejam apenas “suspeitas” tanto a criança, quanto sua mãe e
o próprio neurologista que acompanhava o caso atuavam como se o diagnóstico fosse
conclusivo para dislexia e TDA.
O laudo diagnóstico realizado pela associação especializada em dislexia foi
concluído por duas profissionais: uma psicóloga e uma fonoaudióloga, por meio da
aplicação de testes padronizados. O diagnóstico de TDAH (transtorno déficit de
atenção/hiperatividade) foi realizado pelo médico por meio de entrevista com a mãe
sobre o comportamento da criança.
Vinicius toma medicação desde que foi diagnosticado como hiperativo em
2006, aos oito anos. Quando realizamos a pesquisa ele estava com doze anos de
idade. Iniciou tomando Ritalina2, primeira medicação prescrita pelo médico.
Atualmente, toma uma medicação manipulada. Converso com a mãe sobre a
possibilidade de saber quais eram os componentes da fórmula, Luciana diz que irá
verificar e eu poderia a contatar no trabalho para tomar nota. No entanto, todas as
1 Todos os nomes citados neste texto são fictícios. 2 Ritalina (metilfenidato) é uma droga estimulante do sistema nervoso central. “Seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado, mas presumivelmente ele exerce seu efeito estimulante ativando o sistema de excitação do tronco cerebral e o córtex. O mecanismo pelo qual ele produz seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças não está claramente estabelecido, nem há evidência conclusiva que demonstre como esses efeitos se relacionam com a condição do sistema nervoso central.” (Transcrição literal da Bula, Novartis)
3
vezes que liguei, ela disse não estar com a receita em mãos. Nas últimas vezes que
conversamos, ela conta que o remédio havia terminado, e a embalagem com o rótulo
e as informações sobre a fórmula jogadas no lixo. Para obter uma nova receita, iria
marcar uma consulta com o médico. Após esta data, não foi mais possível contatar a
mãe. Sobre a medicação Luciana diz que seria para o filho “acalmar, ficar mais
tranquilo, pois dislexia e TDAH não têm cura”, e que o médico aumenta a dose quando
Vinicius precisa dormir melhor. Ela também relata que Vinicius não gosta de tomar a
medicação.
Maria, a professora da quarta série, diz que Vinicius está tomando dois
remédios e que um seria “Ritalina”. No entanto, a mãe havia relatado que o filho deixou
de tomar esta medicação passando a tomar uma fórmula manipulada, além da
medicação para enxaqueca. Há um desencontro de informações que não pôde ser
verificado.
Em 1980, foi publicada no livro de Tarnapol (1980) a ata de uma mesa-redonda
sobre medicamentos. O objetivo da mesa, de acordo com a autora, era reunir médicos
e psicólogos experientes no trabalho com crianças que apresentam problemas de
aprendizagem para partilhar condutas em relação à prescrição de medicamentos. Ao
longo dos relatos percebe-se não ser uma discussão baseada em pesquisas
científicas previamente formuladas e com metodologia definidas para a prescrição das
drogas, mas sim relatos de casos clínicos individuais do tipo:
Quanto a drogas específicas, minha preferência pessoal é pelas anfetaminas, embora o metilfenidato (Ritalin®) seja provavelmente a droga mais suave. As anfetaminas são mais baratas; seu efeito mais duradouro, com preparações de liberação lenta, permite que se administre uma única dose pela manhã. Assim, a medicação se torna rotina e chama menos atenção [...] tomar o remédio é um assunto particular da criança (Clements et al., 1980, p.109)
Ou ainda: “o ‘Ritalin’ tem uma probabilidade muito maior de ser eliminado até a
tarde e por causa disso, apesar de meus preconceitos, às vezes receito algumas
doses também durante o dia”. (Clements et al., 1980, p.114). Freeman (1966 citado
por Denhoff &Tarnapol, 1980), com uma revisão dos trabalhos sobre drogas e
aprendizagem em crianças publicados 30 anos antes, já alertava para a falta de
controle científico no uso de drogas
quem ler a grande quantidade de trabalhos preliminares sem controle e positivos e depois fizer um levantamento sobre a situação da maioria dessas drogas vários anos
4
mais tarde, ficará totalmente convencido de que o uso “científico” e “objetivo” desses agentes ainda está muito longe. Descobrirá que talvez a maioria das drogas que, de início foram consideradas isentas de efeitos colaterais, se revelou como causadora de graves efeitos secundários e que uma boa proporção delas foi proibida por ser perigosa... (p.204)
No livro, fica evidente a posição reducionista dos autores em relação à
linguagem e aprendizagem que é assim definida: “a linguagem e a aprendizagem são
fenômenos biológicos, o resultado de processos anatômicos, fisiológicos e
bioquímicos que ocorrem no sistema nervoso central.” (Denhoff & Tarnapol, 1980,
p.167). Esta visão acaba por reduzir a linguagem e a aprendizagem a processos
resultantes de um substrato neurobiológico, afastando-se do processo interacional e
intersubjetivo que é espaço de constituição dos sujeitos e da própria linguagem.
Em outro momento, autores concluem que é necessário desenvolver atenção
da criança, pois este é um requisito básico para aprendizagem e para tanto
as principais abordagens para ajudar as crianças são a medicação, modificação de comportamento e aconselhamento psicoterápico. Em certas crianças, a escolha adequada da medicação controlará a hiperatividade e aumentará a capacidade de atenção e, assim, economizará muitos meses de trabalho intenso para a criança e o terapeuta. (Denhoff, & Tarnapol, L., 1980, p.101)
Diferentemente do postulado pelos autores que definem linguagem e
aprendizagem como um fenômeno biológico, acreditamos que as diversas funções
psicológicas desenvolvidas pelo homem foram construídas em um processo histórico-
social, e que depende de mediações e condições culturais apropriadas. Tais
concepções, apesar de terem sido publicadas em 1980 vigoram até os dias atuais,
mais de duas décadas depois, à revelia de todas as pesquisas críticas que têm sido
realizadas em direção oposta por considerarem a especificidade do objeto estudado:
o ser humano e suas construções sociais. (Coles, 1987; Souza, 1996, Moysés e
Collares, 1992; Moysés, 2010; Werner Junior, 1997).
A título de exemplo e para análise do caso aqui estudado utilizaremos uma
pesquisa recente de Pastura e Mattos (2004) com o objetivo de revisar os principais
efeitos colaterais do metilfenidato, em curto e longo prazo, no tratamento de crianças
com TDAH. Dentre os efeitos colaterais em curto prazo encontrados estão a redução
de apetite, insônia, cefaleia e dor abdominal. Dentre os efeitos em longo prazo estão
alterações de pressão arterial e frequência cardíaca, diminuição da estatura e abuso
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e dependência que tentam ser amenizados com os termos “possível”, “discreta” e
“raramente”. Mesmo com estas descrições o autor conclui que
o metilfenidato pode ser considerado medicação clinicamente segura no tratamento do TDAH, apresentando um perfil bastante satisfatório de efeitos colaterais. Aqueles ocorrendo em curto prazo são de pequena gravidade, autolimitados, dose-dependentes e facilmente contornáveis pelo médico. Embora menos estudados, os efeitos colaterais em longo prazo não são considerados como clinicamente graves, à exceção da dependência, fenômeno apenas muito raramente observado. (Pastura e Mattos, 2004, p.103).
A seguir alguns trechos da entrevista em que Vinicius conta sobre a medicação
que toma para hiperatividade, déficit de atenção e dislexia. Quais são os efeitos de
ingerir a medicação? E de não tomá-la?
Pesquisadora – Então é isso... e você está tomando remédio? Vinicius – Tô. Pesquisadora – Qual você está tomando? Vinicius – Eu não lembro agora. Pesquisadora – E como você se sente tomando o remédio? Vinicius – Eu tenho um pra dor na perna, quando eu corro, to com dor, aí dói a perna, e tem o da dislexia. Pesquisadora – E como você se sente quando toma esse remédio? Vinicius - É, durmo…eu só tomo a noite. Só tomar, daqui cinco minutos já estou dormindo, já. Pesquisadora – Ah, você toma e dorme rapidinho. E você tem dor de cabeça? Vinicius – Tenho. Enxaqueca. Pesquisadora – E quando você costuma ter? Vinicius – É, às vezes quando eu me sinto mal, e aí eu fico com dor de cabeça, e quando eu choro demais. Pesquisadora – Quando chora? Vinicius – É, dói a cabeça, quando eu fico nervoso fico com dor de cabeça, um monte de coisa. Pesquisadora – É mais quando você fica nervoso ou quando chora? Mas assim, toda semana você tem dor de cabeça? Vinicius – Não, é mais uma vez no dia… Pesquisadora – Uma vez? Vinicius – No dia. Pesquisadora – Todo dia? Vinicius – Não, um dia sim um dia não que eu tenho. Pesquisadora – Hoje você teve? Vinicius – Não. Pesquisadora – Ontem você teve? Vinicius – Ontem eu tive. Pesquisadora – ... e você já ficou algum dia sem tomar o remédio? Vinicius – Já, e eu não conseguia dormir, é ruim.
O estudo de Pastura e Mattos (2004) relata a cefaleia como um dos efeitos
colaterais em curto prazo, que para o autor é um efeito de pequena gravidade.
6
Pergunta-se: como vive uma criança que tem dor de cabeça dia sim, dia não? Quem
define qual a “gravidade” do efeito colateral? Como foram realizados os estudos que
concluem que a cefaleia não traz consequências significativamente graves e sofríveis
para a vida diária de uma pessoa? Este seria um efeito em curto prazo? Vinicius toma
medicação há quatro anos, e sofre com dores de cabeça por todo este tempo.
A criança também relata dependência do medicamento para dormir.
Pesquisadora - Sua mãe me falou que acabou o remédio. E você fica sem tomar... Vinicius – É, aí tem que comprar... Pesquisadora – E aí? Como você faz? Vinicius – Ah, eu tento dormir, pego o travesseiro, deito e fecho os olhos. Pesquisadora – Mas aí você dorme normal? Vinicius – É. Pesquisadora – Então com o remédio você fica do mesmo jeito que sem o remédio? Vinicius – Não, com o remédio eu durmo rapidinho, rápido, acordo tarde, melhor com o remédio. Pesquisadora – Sem o remédio você dorme.. Vinicius – Durmo, acordo uma duas horas da manhã.. Pesquisadora – E depois? Vinicius – Não durmo mais. Pesquisadora – E você fica fazendo o que? Vinicius – Nada, não fico fazendo nada, fico mexendo no celular. Pesquisadora – O que tem no celular, joguinho? Vinicius – É...eu não consigo dormir de vez em quando. Pesquisadora – Sem o remédio? Vinicius – Sem o remédio. Com o remédio eu deito na cama, do nada eu já estou dormindo, não dá cinco minutos minha mãe falou que eu já estou dormindo. Pesquisadora – E no outro dia. Vinicius - No outro dia eu não estou com sono. Pesquisadora – E sem o remédio o que mais que muda? Vinicius – Só o sono...senão eu fico cansado, já não durmo, as pernas doem...tem uma perna que o doutor falou, é essa perna aqui, dói aqui, porque... por causa do remédio, porque eu fico andando muito, dói, eu jogo bola dói. Pesquisadora – Por causa do remédio dói sua perna? Vinicius – É, porque eu não tomo o meu remédio.
Insônia também é um efeito colateral do uso do medicamento (Pastura e
Mattos, 2004). No caso de Vinícius a insônia surge porque há uma dependência do
medicamento para dormir adquirida nestes quatro anos de uso contínuo de
medicação. Os autores dizem que embora menos estudados, os efeitos colaterais em
longo prazo não são considerados como clinicamente graves, à exceção da
dependência, fenômeno apenas muito raramente observado (Pastura e Mattos, 2004,
p.103). Novamente, quem define a gravidade do efeito colateral? Se os efeitos em
longo prazo são menos estudados, como se conclui que são “menos graves”? Mesmo
7
que seja muito raramente observado o fenômeno da dependência, ainda sim se está
lidando com vidas, e portanto deve haver maior critério para afirmações deste teor.
Além disso, existem outras dores relatadas pela criança que podem estar
relacionadas ao uso prolongado de medicação. Lembramos que dentre os efeitos de
longo prazo citados por Pastura e Mattos (2004) estão alterações de pressão arterial
e frequência cardíaca.
Pesquisadora – A Eliza falou que outro dia você estava com dor no coração, é isso? Vinicius – Do nada, eu estava jogando bola, aí, sai, e estava...e do nada eu cai no chão e começou a doer, começou a doer aí deu choque nas pernas, doeu tudo. Pesquisadora – Doeu tudo... Vinicius – Aí fui fazendo uma massagem e parou. Pesquisadora – Você falou pra sua mãe? Vinicius – Falei, ela me levou no médico e era só uma dorzinha mesmo. Falou, que era pra ir passando a mão, até melhorar.
A história de Vinicius relatada acima parece contrariar outras conclusões de
pesquisadores que dizem “os efeitos cardiovasculares do metilfenidato são pontuais
e transitórios” (Pastura e Mattos, 2004, p.103), pois em outros momentos Vinicius
relata ter sentido palpitações e dores no coração.
A coordenadora pedagógica relata sobre as queixas constantes de Vinicius
dizendo que ele procura sempre uma dor para “ser o centro das atenções”, “ele está
sempre com uma dor em algum lugar”. Como Vinicius sofre com doenças inexistentes
– dislexia e TDAH – talvez precise sentir no corpo que algo acontece com ele. Afinal,
de acordo com a professora Maria, ele tem sim dificuldades, mas a sala toda tem, ele
nem sempre presta atenção ao que ela espera, e da mesma forma outras crianças da
sala assim também o fazem, mas Vinicius teria algum distúrbio. Seria este distúrbio
representado nas queixas de dores constantes? Às vezes reais, causadas pelo uso
de medicamentos. Mas há possibilidade de que por vezes seja para manter viva a
crença dos adultos à sua volta no distúrbio que diagnosticaram, o processo de
medicalização se concretizando... dores no cotovelo, no braço, no pé, na perna...
Enquanto a cabeça de alguns pesquisadores e profissionais de saúde não pensa no
peso dos diagnósticos dados e medicamentos prescritos, o corpo das crianças
padece.
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Conclusões
Vinicius, desde que foi diagnosticado sofre os efeitos da medicação e de uma
doença que não parece mesmo existir. Se ele escreve e se comporta como outras
crianças (como nos conta a professora Maria), porque seria ele doente? Diversos
efeitos colaterais nocivos do metilfenidato, principal medicamento utilizado para
crianças supostamente portadoras de TDAH, são relatados na literatura, mas parecem
desconsiderados por alguns profissionais que o receitam. Redução de apetite, insônia,
cefaleia e dor abdominal; alterações de pressão arterial e frequência cardíaca,
diminuição da estatura e abuso e dependência. (Patsura & Mattos, 2004)
Vinicius relata sobre suas dores constantes, sua última crise de dor no coração,
paralização das pernas, da necessidade da medicação e de médicos. Vinicius diz que
dói o joelho, dói o tornozelo, “dói a cabeça, um monte de coisa”. Foram muitos
diagnósticos, são muitas medicações (primeiro metilfenidato, agora uma fórmula
manipulada e uma medicação para enxaqueca) durante longo período. O processo de
subjetivação desta criança é marcado pela doença. Foram muitas vozes que
convergiam em coro a favor da doença, e outras valiosas que disseram sobre sua
capacidade e o ajudaram, como ele mesmo diz “Com essa ajuda de todo mundo eu
consegui bem, né. Queria ficar, queria ser igual meus amigos, aprendendo ler
direitinho”. É na interação com as pessoas à nossa volta que penetramos num
universo de valores, crenças, modos de pensar e de sentir. Ao utilizar a linguagem
como instrumento mediador da relação entre nós e os outros, possibilitamos o
desenvolvimento do pensamento e de outras funções psicológicas superiores, o que
nos distingue dos animais, e é também, pela linguagem que significamos e damos
sentidos à realidade e à nossa própria conduta. (Trautwein & Nébias, 2006)
No cotidiano escolar relatado pela criança evidenciam-se as consequências
corpóreas em decorrência da medicação, e psicológicas em decorrência de um
processo de medicalização, campo fértil para um processo de subjetivação pautado
em incapacidades e dificuldades que estabelecem limites a priori para o
desenvolvimento do sujeito.
Palavras-Chave: Medicalização – Escolarização – Subjetivação – Psicologia Escolar
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EM DEFESA DA ESCOLA: O CADERNO DE OCORRÊNCIAS E
O GOVERNO DA INFÂNCIA
Célia Ratusniak – UFSC/UNC
Palavras-chave: Foucault; escola; poder; caderno de ocorrências; infância.
Este trabalho é resultado da pesquisa de mestrado em educação, defendida
em 2012, que teve como objetivo compreender a lógica disciplinar, de controle e de
governo que legitima e regulamenta o uso do caderno de ocorrências em uma escola
pública de anos iniciais. Como caminhos metodológicos, utilizei a análise de
documentos, estudo de caso e entrevista semiestruturada. Investiguei como as
práticas disciplinares, de controle e de governo se inserem nas instituições escolares,
tomando como referencial teórico o pensamento foucaultiano. Pesquisei o surgimento
da prática dos registros de comportamentos inadequados, a partir da análise de
documentos que continham decretos que recomendavam essa prática no estado do
Paraná. Também investiguei a regulamentação, o uso, a função e os efeitos dos
cadernos de ocorrências nos sujeitos pertencentes à escola pesquisada. Para tanto,
analisei os aspectos políticos e institucionais que regulamentam e normatizam o uso
do caderno de ocorrências, examinando os seguintes documentos organizadores do
trabalho pedagógico: Plano Municipal de Educação, Projeto Político-Pedagógico e
Regulamento Interno, entendidos como estratégias daquilo que Foucault denominou
biopolítica, que se utilizam de conhecimentos produzidos sobre as crianças, a didática
e a escola para governar a infância. Nestes documentos, atribuem-se funções,
estabelecem-se ideais de comportamentos e penalidades para os que não seguem
estes padrões, normalizando, normatizando, criminalizando e judicializando a
infância. Registram-se os comportamentos inadequados dos alunos e de suas
famílias, numa identificação dos riscos sociais, julga-se, ameaça-se e pune-se,
constituindo um inquérito escolar que atribui a cada falta a sua sentença.
Os Cadernos de Ocorrências
O caderno de ocorrências é um mecanismo de registro/punição de
comportamentos inadequados na escola. São inadequados porque, de alguma forma,
produzem uma tensão que pode afetar a ordem dos trabalhos na escola. Estão fora
da norma. É uma técnica que penaliza e atemoriza os alunos e seus familiares, que
produz marcações identitárias responsáveis pela discriminação, pelo preconceito,
pela punição, pela exclusão.
O registro desses comportamentos consiste em descrever a situação de conflito
na escola, denominada ocorrência ou acontecido, em cadernos de registros,
conhecidos como livro-negro, livro-preto, livro de ocorrências, livro-ata ou cadernos
de ocorrências (denominação utilizada na escola pesquisada). Os envolvidos são
questionados, podem se justificar, são aconselhados, orientados, recebem uma
punição e assinam o documento, junto ao responsável por anotá-lo. Muitas vezes, a
situação de conflito é chamada caso, denotando a inserção de práticas judiciárias e
policialescas na escola.
As instituições modernas, como a escola, organizam formas de garantir a
manutenção da ordem, criando instâncias de investigação semelhantes aos inquéritos
para apurar as ameaças a essa organização. Questionam os envolvidos, tomando
seus depoimentos, apoiando-se no exame e na confissão para produzir jogos de
verdade que objetivam1 e subjetivam2 os sujeitos (Foucault, 2003). O inquérito se
apoia na normatização, caracterizado por um sistema de saber-poder disciplinar
assumido pelas instituições, representado por seus estatutos, regimentos, contratos,
regras, normativas, leis, que na escola estão presentes nos documentos de
organização do trabalho pedagógico. Tal sistema, por ter em sua base/fundamentação
o problema da norma e seu consequente desdobramento na identificação dos desvios,
naturaliza comportamentos dos sujeitos, pois como nos aponta Foucault “O sistema
escolar é também inteiramente baseado em uma espécie de poder judiciário. A todo
momento se pune e se recompensa, se avalia, se classifica, se diz quem é o melhor,
quem é o pior (2003, p. 120)”.
1 Na objetivação, ora o sujeito assume a posição de objeto para um saber, ora o objeto assume a posição de sujeito que se produz por um saber-poder, constituindo jogos de verdade que produzem saberes que nomeiam, classificam, definem o aluno. Esses saberes constituem o campo da Pedagogia e da Psicologia. 2 Segundo Larrosa (1994, p. 55), o aluno é constituído tanto pelos saberes que o objetivam como por aqueles que o subjetivam, ou seja, pela experiência de si: “O sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do sujeito, já não é analisada apenas do ponto de vista da ‘objetivação’, mas também e fundamentalmente do ponto de vista da ‘subjetivação’. Isto é, do ponto de vista de como as práticas pedagógicas constituem e medeiam certas relações determinadas da pessoa consigo mesma. Aqui os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como sujeitos falantes; não como objetos examinados, mas como sujeitos confessantes; não em relação a uma verdade sobre si mesmos que lhes é imposta de fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que eles devem contribuir ativamente para produzir”.
Os dados encontrados na pesquisa apontam para o uso do caderno de
ocorrências como uma prática similar ao inquérito judiciário. Sua problematização
serve de aporte para compreender como a instituição escolar estrutura e legitima seu
sistema de gratificações e sanções em benefício da manutenção de uma ordem que,
além de garantir o ensino dos conteúdos, garanta a constituição de sujeitos
pedagógicos – alunos – produzidos através dos jogos de verdade que os objetivam e
subjetivam a partir da norma. É uma prática que vem sendo reproduzida desde o
século XVI, com as recomendações nos manuais pedagógicos europeus, como o
documento jesuítico Ratio Studiorum3.
No Paraná, lócus da pesquisa, desde o século XIX existem documentos que
tratam da normatização e da normalização4 de práticas disciplinares na escola. MORO
(s.d.) analisou documentos compreendidos entre os anos de 1837 e 1903, nos quais
recomendava-se o registro de comportamentos inadequados em locais denominados
livros-negro ou livros-ata. DALCIN (s.d.) estudou o Regulamento de ordem geral para
as escolas de instrucção primária, que trazia o protocolo de punições permitido às
escolas, com a recomendação de se registrar comportamentos em livro ata.
Essas recomendações, regulamentadas por documentos oficiais, também
aparecem na escola pesquisada, em seus documentos de organização do trabalho
pedagógico - Plano Municipal de Educação, Projeto Político-Pedagógico e
Regulamento Interno. Estes documentos são construídos a partir de vários saberes:
sobre os alunos, os professores, a didática, a gestão escolar, o sistema de ensino. No
interior dessas políticas públicas se organiza o dispositivo pedagógico, no qual se
estendem as relações de poder que classificam, examinam, compõem, organizam,
nomeiam. E em todos esses documentos, existe a recomendação dos registros sobre
os comportamentos inadequados, legitimando o uso do caderno de ocorrências e
dotando-o do status de prova contra aqueles que não se enquadram na norma.
Ritual de preenchimento das ocorrências
3 Conjunto de normas criado para regulamentar o ensino nos colégios jesuíticos. Sua primeira edição, de 1599, além de sustentar a educação jesuítica, ganhou status de norma para toda a Companhia de Jesus. Tinha por finalidade ordenar as atividades, as funções e os métodos de avaliação nas escolas jesuíticas. (HISTEDBR, [s.d.]). DALLABRIDA (2005) tem um trabalho muito interessante que analisa a Ratio Studiorum numa perspectiva foucaultiana. 4 Conforme Veiga-Neto e Lopes (2006), “[...] acontece uma normalização disciplinar quando se tenta conformar as pessoas – em termos de seus gestos e ações – a um modelo geral previamente tido como a norma. Assim, é dito normal aquele que é capaz de amoldar-se ao modelo e, inversamente, o anormal é aquele que não se enquadra ao modelo”. Os autores sugerem “[...] acrescentar a palavra normatizar e suas derivadas para designar as operações de criar, estabelecer ou sistematizar as normas”. Assim, por exemplo, podemos entender que os dispositivos normatizadores são "aqueles envolvidos com o estabelecimento das normas, ao passo que os normalizadores [são] aqueles que buscam colocar (todos) sob uma norma já estabelecida e, no limite, sob a faixa de normalidade (já definida por essa norma)".
Existe uma espécie de ritual que acompanha os registros dos comportamentos
inadequados. Começa quando um aluno é delatado por estar fazendo algo errado. Ele
é posto sentado em um banco do refeitório e deve esperar que a diretora ou a
supervisora o chame para conversar sobre o que aconteceu e se justificar. Às vezes,
é chamado à sala da direção. Dependendo do tipo de coisa errada que fez e da análise
conjuntural que as profissionais fazem da situação, esse fato é descrito no caderno,
juntamente com uma justificativa ou autodefesa feita pelo acusado/citado e com as
providências que a escola tomou, devendo ser assinado por quem registrou e pelos
que foram registrados.
Às vezes, as pessoas que fazem esse registro acham mais interessante fazer
um acordo. Utiliza-se de uma suposta compreensão, compaixão e credibilidade: o
aluno não será registrado e, como é muito bonzinho, esforçado e inteligente, de agora
em diante ajudará a professora e a diretora a cuidar da escola, vindo contar tudo de
errado que ele perceber, em uma espécie de recondução. Esse convite à delação
torna o aluno também um agente da justiça, deslocando-o da posição de aluno
problema para um ajudante da vigilância, pois, na lógica da biopolítica não basta punir,
marcar, excluir, é necessário reconduzir.
Não há uma lista de transgressões que são passíveis dos registros, ignorando
o protocolo existente no Regulamento Interno da escola. Também não há publicidade
de quais são os alunos que estão no caderno. Quando se chega à sala da diretora,
deve-se contar o que aconteceu, narrar do seu ponto de vista os fatos e passar pelo
julgamento do adulto. Nesse ritual, podemos observar várias práticas judiciárias.
Primeiramente, um aluno é acusado de um comportamento inadequado, sendo
encaminhado à sala da direção. É instaurada uma espécie de inquérito (FOUCAULT,
2003), em que a diretora ou a supervisora, imbuída de sua autoridade, faz perguntas
aos envolvidos para saber o que aconteceu. Há a possibilidade de ele fazer sua
defesa, relatando suas justificativas para o acontecimento. Também há a possibilidade
de confessar. Dependendo do julgamento que a diretora ou a supervisora faz da
defesa, o aluno recebe ou não sua punição. Mas também pode haver atenuantes,
como ser a primeira ocorrência ou não ser um aluno que tem problemas de
comportamento, ou seja, sem antecedentes. Algumas vezes, fazem-se acordos,
suprimindo assim as penas. Todas essas práticas judiciárias são produtoras de
subjetividades. Cabe ressaltar que essa prática de assinar o caderno de ocorrências
é uma espécie de extração (FOUCAULT, 1988) de verdades sobre o sujeito, em uma
forma de individualizá-lo, nomeá-lo, objetivá-lo, subjetivá-lo. Nesse ritual, tanto o
sujeito produz verdades sobre si mesmo quanto verdades acerca de si são produzidas
pelo outro, constituindo a figura do aluno problema e da família problema.
A forma com que as ocorrências estão registradas atende a um padrão. Nelas,
constam sempre o dia, o nome dos envolvidos, a ocorrência e a assinatura. Muitas
vezes, também são citados quem trouxe ou encaminhou os alunos, as justificativas
do acontecido e as providências. Quase todos os registros são terminados com a
assinatura dos envolvidos. A assinatura é a comprovação da confissão do aluno, que
o leva a comprometer-se a realizar as recomendações dadas, o faz aceitar sua culpa
ou responsabilidade no ocorrido. A assinatura supostamente encerra a discussão e
coloca uma solução para o problema. Supostamente, porque muitas vezes essas
diferenças e conflitos continuam a existir, mas agora tentam solucionar-se longe dos
olhos da diretora.
Frequência dos registros:
A tabulação dos registros foi um instrumento de análise muito importante para
compreender o modo de funcionamento do caderno de ocorrências. Nela constaram
quais foram as ocorrências registradas, como surgiram, por que aconteceram, quem
são os envolvidos e que providências foram tomadas pelas pessoas que efetuaram o
registro. Muito mais que números, essa tabulação mostra o funcionamento das
práticas disciplinares, de governo e de controle que legitima e perpetua a prática de
registros de comportamentos na escola pesquisada.
O número de ocorrências diminuiu 74% de 2009 para 2010, e 27% de 2010
para 2011. Algumas hipóteses podem ser levantadas para explicar esse fenômeno. A
primeira explicação aponta para as mudanças ocorridas nos procedimentos de
registro utilizados. Segundo a profissional entrevistada, nem todos os alunos
encaminhados para a direção assinaram o caderno, pois estavam priorizando
somente acontecimentos muito graves para dar um peso maior ao caderno. Ou seja,
existem instâncias que determinam o que é muito grave e merece ser registrado, e
que também definem se é a melhor estratégia disciplinar naquela conjuntura fazer os
envolvidos assinarem o caderno. Porém, analisando os motivos dos registros de 2010
e 2011, não há uma mudança significativa nos tipos de ocorrências, ou seja, as
ocorrências não são mais ou menos graves que as do ano anterior. E nem deixam de
acontecer. O que deixa de acontecer são os registros.
Outra hipótese para a diminuição pode ser o fato dos professores procurarem
resolver os problemas ocorridos dentro da própria sala de aula, conversando com os
alunos, estabelecendo punições próprias, mediando conflitos, reprimindo, orientando,
aconselhando. Essas ações seguem a recomendação de que só sejam encaminhados
para a direção os problemas mais graves e corroboram com a capilaridade do poder,
colocando em ação vários tipos de “micropenalidades referentes ao tempo (atrasos,
ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de
zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice,
insolência).” (FOUCAULT, 2009, p. 172). Algumas vezes, os alunos que não fazem a
tarefa de casa devem ficar sentados durante o recreio na mesa de refeições, em uma
forma de exposição aos demais. Essa forma de punição por exclusão tem o objetivo
de suscitar nos demais a reprovação, fazer com que o aluno sinta vergonha e pense
no que fez. Todos que passam pelas mesas de refeição percebem os alunos sentados
mais ao extremo, perto da sala da direção. Eles são reconhecidos pelo espaço
diferenciado que ocupam, distantes dos que estão lanchando ou conversando,
sozinhos. Essa geografia dos lugares físicos e simbólicos aos corpos, essa exposição
ao olhar são formas de exercício do poder disciplinar.
Uma terceira explicação seria o fato de o caderno de ocorrências disciplinar os
alunos, servindo como mecanismo de punição efetivamente, o que os levaria a não
cometer mais o ato transgressor. A análise nos mostra que o ato de assinar o caderno
tem um efeito disciplinador com a maioria dos alunos, visto que eles aparecem
registrados apenas uma vez. Porém, ele não funciona com todos, pois os dados nos
mostram que existem alunos reincidentes. Mesmo com os profissionais da escola
sabendo que com esses alunos o registro não funciona, ele continua sendo feito. Isso
porque seu objetivo principal não são somente esses, mas os que não estão
registrados. Nesse sentido, o caderno de ocorrências se configura muito mais como
uma forma de controle dos outros alunos do que de disciplinarização dos reincidentes.
Foucault (2008), no Seminário Segurança, Território e População, discute a questão
do gerenciamento dos riscos na população e da tentativa de manutenção da
segurança em um nível aceitável. Nesse sentido, os dispositivos de segurança agem
sobre a multiplicidade com o objetivo de atingir a individualidade, utilizando-se de
estratégias que visam controlar não só a vida da população, mas também a de cada
cidadão. A análise do caderno de ocorrências mostra isso: por mais que existam dois
alunos que reincidam ano a ano nos registros, não sendo capturados e normalizados,
a existência dessa técnica disciplinar controla o comportamento de todos os outros
alunos que não estão ali ou não reincidiram, ou seja, ela ajuda a manter a ordem em
um nível ótimo que permita que os trabalhos na escola transcorram sem interrupções,
questionamentos e modificações.
Mas, com os alunos reincidentes, os efeitos disciplinadores e de controle
falham. Para Ratto (2007), eles manifestam uma dupla resistência, pois não deixam
de ter os comportamentos inadequados e nem se dobram ao efeito de serem
registrados. Eles transgridem, questionam as relações de poder que perpassam as
relações entre os sujeitos na escola, afetando a ordem, criando um movimento que
impulsiona mudanças e a invenção de novas formas de ser e de fazer. A resistência
dá visibilidade às diferenças. Ela emerge de várias formas, pois não há apenas uma
forma de resistência,
[...] Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos, em última instância: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (FOUCAULT, 1988, p. 91)
Se as relações de poder só se exercem em sujeitos livres, é essa liberdade que
os permite não se dobrar. E é essa liberdade que pode levar a escola a fugir das
amarras que lhe são impostas pelo sistema, se deslocando dos papéis atribuídos a
ela pelo Estado, desdobrando-se a partir das problematizações que se impõe. Isso
implica questionar como nos tornamos sujeitos dos discursos que fazemos, como
essas verdades são produzidas e legitimadas nas práticas pedagógicas, como esse
discurso objetiva e subjetiva o outro e a nós mesmos, produzindo pequenas linhas de
fuga que permitem a imersão das formas de resistência.
Considerações finais
As problematizações decorrentes da análise dos registros nos cadernos de
ocorrências permitiram compreender melhor como a escola opera sobre as crianças,
regulando seu tempo, afetando-as com o fim de transformá-las e moldá-las em alunos.
As instituições estatais possuem dispositivos que operam para a formação dos
sujeitos, como seres dotados de certas modalidades de experiências de si. Nesse
sentido, é na escola que a criança aprenderá a gramática específica que a adjetiva e
a constitui como aluno: aplicado, inteligente, esforçado, desinteressado, preguiçoso,
hiperativo, lento, rápido, caprichoso, desleixado, agitado, violento, indisciplinado, mal-
educado.
Quando a criança é conduzida para assinar o caderno de ocorrências, quando
questionam suas atitudes e a nomeiam, quando lhe determinam punições,
advertências, aconselhamentos, orientações, quando lhe pedem que justifique seu
comportamento, quando observam seu desempenho na sala de aula, sua conduta no
recreio, enfim, em todas as situações escolares, estão em jogo técnicas disciplinares,
de controle e de governo, utilizadas pelo dispositivo pedagógico, que buscam
constituir o sujeito aluno.
As problematizações decorrentes da análise dos dados encontrados a partir da
pesquisa foram fundamentais para que eu pudesse compreender o funcionamento e
os efeitos da prática dos registros que está sendo utilizada por mais de um século nas
escolas paranaenses. Os cadernos de ocorrências mostram como a escola tenta lidar
com o inesperado, a desordem, aquele que não segue a norma, o aluno que escapa
às técnicas de disciplinarização, em uma tentativa de captura daquele que tem
problemas de comportamento, mas muito mais em uma estratégia de controle de tudo
e de todos na escola, na busca de uma ordem escolar, mas muito mais uma ordem
social. Nesse sentido, realiza-se na escola um intenso trabalho de moralização dos
alunos, em que eles aprendem o que é certo e errado, garantindo assim a ordem na
sociedade.
O caderno de ocorrências possui registros que traduzem de maneira muito
significativa essas práticas que objetivam e subjetivam os alunos. Existe um protocolo
de ações a serem tomadas quando os alunos não respeitam as regras ali contidas,
mas que na realidade não é seguido. A indeterminação de quem merece ser registrado
torna seu efeito mais eficaz.
Em muitos registros, o acusado não explica o que aconteceu e nem se justifica.
O não falar, nessa situação, retrata o peso das relações hierárquicas e autoritárias.
Denota a impossibilidade de um discurso, de falar sobre, de manifestar as
insatisfações e os conflitos que poderiam gerar movimentos e transformações. Por
isso mesmo, o não falar também pode ser uma forma de resistência contra essas
formas de assujeitamento e de captura. Porque não se sabe o que o silêncio pensa.
O silêncio impede o adulto de colonizar as manifestações de insatisfação das crianças
e suas formas de resolução de conflitos. O silêncio também mostra a incompetência
dos adultos em estabelecer relação de confiança com as crianças. O silêncio
incomoda com sua polissemia.
Os cadernos de ocorrências contaram parte da história da escola pesquisada.
Não toda a história. Muitas coisas acontecem na escola que não têm nenhum registro
escrito. O cotidiano da escola é uma miríade de acontecimentos que envolvem várias
práticas. Práticas apoiadas em saberes instituídos e produzidos, sedimentados, que
produzem subjetividades. Práticas que nem sempre são visíveis imediatamente, que
de tão comuns costumamos ignorar, que naturalizamos como se sempre estivessem
ali, sedimentadas. Para desnaturalizarmos essas práticas, precisamos remover parte
por parte do sedimento. E, na educação, cada uma dessas partes é constituída por
saberes e poderes instituídos sobre infância, criança, escola, professores, didática,
saberes esses que permeiam os processos pelos quais a subjetividade dos alunos é
produzida.
A maneira como a maquinaria escolar funciona procura impedir os que nela
estão de perceber como o dispositivo pedagógico se estende e captura os sujeitos.
Não somente os alunos, mas professores, supervisores, diretores. Alguns executam,
alguns se submetem, mas tanto os adultos quanto as crianças estão enredados nas
relações de poder. Não sobram muitos espaços de resistência, pois a escola possui
formas de normalização tão eficazes que dificilmente não capture os novos modos de
ser e de se fazer. Aos professores é preciso ensinar, disciplinar, educar, dar um
sentido para uma escola que não consegue mais ocupar o lugar de redentora e de
propulsora da ascensão social. Aos diretores e supervisores cabe administrar uma
escola com familiares descontentes, professores descontentes, alunos descontentes.
Aos alunos cabe aprender coisas sem saber o porquê e o para quê, a perceber que
as pessoas não são iguais e que, pelo contrário, existem muitos sinais que as
distinguem, e essa distinção pode torná-las menos ou mais, dependendo da forma
como cada um é nomeado. Mas, compondo os fatos que configuram esse contexto,
existem espaços vazios cheios de significados. O desafio desta pesquisa foi fazer
emergir esses espaços, dentro da multiplicidade e a complexidade que compuseram
a prática dos registros de comportamentos inadequados nos cadernos de ocorrências,
desnaturalizando-as e descrevendo os regimes de verdades que são produzidos a
partir delas e que constituem o sujeito registrado.
REFERÊNCIAS
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DALLABRIDA, Norberto. Moldar a alma plástica da juventude: a Ratio Studiorum e a manufatura de sujeitos letrados e católicos. Revista Educação, Unisinos, v. 5, n. 8, p. 134-150, jan./jul. 2001
DALCIN, Talita Banck. Os castigos corporais nas escolas domésticas e isoladas do Paraná no século XIX: disciplina e controle dos corpos. Disponível em: <http://gajop.org.br/justicacidada/wp-content/uploads/Castigos-corporais.pdf>. Acesso em: 9 set. 2012.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
____. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003.
____. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009.
LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 35-86.
MORO, Neiva de Oliveira. “Livro Preto”: como eram tratadas a disciplina e a indisciplina nas escolas da região dos Campos Gerais – sua base legal, conteúdos e as representações que produzem. Disponível em: <http://www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Neiva_de_Oliveira_Moro_artigo.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2011.
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REVISTA HISTÓRIA, SOCIEDADE E EDUCAÇÃO NO BRASIL – HISTEDBR. Radio Studiorum. Acesso em 18 ago. 2012. Disponível em www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_ratio_studiorum.htm.
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VEIGA-NETO, Alfredo; LOPES, Maura Corsini. Inclusão e governamentalidade. 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302007000300015>. Acesso em: 24 ago. 2012.
Estágio em Psicologia Escolar e Educacional: possibilidades
de ruptura com discursos e práticas que patologizam a Educação.
Vânia Aparecida Calado
Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela
Universidade de São Paulo. Professora do Curso de Psicologia da Universidade
Potiguar, Campus Roberto Freire, Natal, RN.
Palavras-chave: estágio em psicologia escolar e educacional, formação
discente, medicalização da educação.
Introdução
Para Souza (2009, p. 179), a Psicologia Escolar e Educacional trata-se de uma
área de estudos e de atuação da Psicologia:
(...) que busca compreender o fenômeno educacional com produto das relações que se estabelecem no interior da escola. Escola essa atravessada pelas políticas educacionais, pela história local de sua constituição enquanto instituição e enquanto referência educacional e de aquisição de conhecimento pelos sujeitos que a constituem e nela se constituem.
A abordagem crítica em Psicologia Escolar e Educacional enfatiza a
complexidade de fatores implicados no processo educacional, pois nele encontram-
se elementos sociais, históricos, institucionais, políticos e ideológicos. Isso significa
compreender o indivíduo a partir da cultura que o envolve, de sua posição ocupada
no todo social, a partir das redes de relações e das instituições sociais das quais
participa. (PATTO, 1990).
A escola reflete as desigualdades sociais, econômicas e culturais e também as
reproduz. Segundo Abramovay e Castro (2006, p. 26):
Na escola, a exclusão se dá principalmente através do desempenho escolar, da repetência, do abandono e da evasão. Existe uma lógica perversa em que os alunos com maiores dificuldades, ao invés de serem vistos nas suas singularidades, são conduzidos a trajetórias escolares que tendem ao fracasso escolar, o qual se concretiza através do retraimento do aluno, do abandono, da evasão e da própria violência contra o sistema escolar. A experiência com o fracasso escolar mina a autoestima e pode trazer significativas consequências para a convivência escolar.
Apesar da complexidade de elementos para se compreender o que acontece
com a instituição educacional, atualmente assistimos a uma grande tendência pela
medicalização da educação. Para Moysés e Collares (2009, p. 2), a medicalização da
educação se refere a:
A medicalização da vida de crianças e adolescentes articula-se com a medicalização da educação na invenção das doenças do não-aprender. A medicina afirma que os graves – e crônicos – problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenças que ela, medicina, seria capaz de resolver; cria, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a medicalização. A medicalização do campo educacional assumiu, e ainda assume, diversas faces no passado recente, alicerçando preconceitos racistas sobre a inferioridade dos negros e do povo brasileiro (...)
Para as autoras, esse movimento transfere para o campo médico questões
coletivas, de ordem social e política. Além disso, reduz a aspectos biológicos,
isentando de responsabilidade outras instâncias de poder. O resultado é a
individualização e a culpabilização da vítima. Recentemente esse movimento tem sido
ampliado para outros campos de conhecimento e novas áreas, como psicologia,
fonoaudiologia, enfermagem, psicopedagogia.
Para essa concepção o fracasso escolar se deve às disfunções neurológicas,
incluindo-se aqui a hiperatividade, a disfunção cerebral mínima, os distúrbios de
aprendizagem, a dislexia. No entanto, são pretensas doenças do não aprender,
porque nunca foram comprovadas, apesar do esforço de pesquisadores e cientistas.
Todos esses elementos precarizam as relações construídas na escola,
provocam sofrimento em todos os seus atores e prejudicam a qualidade do processo
de ensino e aprendizagem.
O objetivo desse texto é descrever um relato de experiência de supervisão de
estágio em psicologia escolar e educacional e discutir as possibilidades do mesmo, a
partir da metodologia realizada, de contribuir para a formação de estudantes de
psicologia comprometidos com a construção de uma escola democrática e de
qualidade, com o aprimoramento dos processos educativos e com a ruptura de
práticas medicalizantes na instituição educacional.
Metodologia
O curso de Psicologia é oferecido numa instituição de Ensino Superior Privada
do município de Natal, Rio Grande do Norte. A matriz curricular apresenta duas
disciplinas teóricas anteriores ao estágio: Psicologia da Educação e Teorias de
Ensino-Aprendizagem. Nessas disciplinas são apresentadas a história e a relação
entre a Psicologia e a Educação, políticas públicas em educação, as teorias de
aprendizagem, estudos de caso relacionados às pretensas doenças do não aprender,
priorizando o debate crítico acerca da medicalização da educação, teorias da
abordagem crítica psicologia escolar e educacional.
Esse relato de experiência se refere ao acompanhamento de uma turma do
curso de psicologia em duas disciplinas: Teorias de Ensino-Aprendizagem e Estágio
Básico em Psicologia e Processos Educativos ministradas em 2012 e 2013. A turma
em questão havia estudado apenas a história entre Psicologia e Educação. Durante a
disciplina teórica, o trabalho centrou-se na apresentação dos pressupostos teóricos,
com a apresentação de diversos estudos de caso, realização de pesquisas, debates
e reflexões. O objetivo foi iniciar o processo de ruptura epistemológica com os próprios
estudantes que desconheciam o processo de escolarização e sua importância na
compreensão do fracasso escolar. Muitos revisitaram suas trajetórias escolares em
escolas públicas e particulares e puderam compreender o impacto na sua forma de
aprender e viver. (ASBAHR, MARTINS, MAZZOLINI, 2011).
Na disciplina Estágio Básico em Psicologia e Processos Educativos os
estudantes deveriam compreender que o centro da natureza e gênese da queixa
escolar é o processo de escolarização, considerando a rede de relações entre alunos,
escolas e famílias. Para a realização de uma investigação desta queixa é necessário
uma intervenção institucional fundada numa concepção dialética de homem e de
sociedade com relação interdependente, que não dissocia os planos macro e
microestruturais. O plano de ensino da disciplina de estágio define que a prática
aconteça em instituições educacionais, tendo em vista a compreensão dos processos
educativos e a elaboração de intervenção.
Para que o estágio acontecesse a parceria foi realizada com instituições
públicas de ensino fundamental e médio. A proposta do estágio foi apresentada às
equipes gestoras que relatavam algumas queixas escolares. A compreensão para
problemas como turmas indisciplinadas, problemas de aprendizagem, violência e
distanciamento da família se resumia à desestrutura familiar, aos problemas das
camadas mais pobres, que são concepções características da Teoria da Carência
Cultural (PATTO, 1990). Outra justificativa se centrava em grande parte de alunos
como portadores de supostos transtornos de aprendizagem, como dislexia e
transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. O maior problema é que não tinham
apoio do poder público e dos serviços de saúde para avaliação e diagnóstico dos
alunos, por isso não sabiam como proceder para tentar promover o processo de
ensino e aprendizagem. Como estratégia, formavam turmas homogêneas para não
prejudicar os bons alunos e facilitar o trabalho do professor. Souza (2007) explica
como a formação de classes homogêneas refere-se a funcionamentos escolares que
promovem exclusão e segregação de alunos, prejudicando ainda mais seu processo
de escolarização.
A partir da primeira escuta da demanda escolar, compreendemos que seria
importante iniciar uma investigação com as turmas apontadas como o centro do
problema. As turmas apresentam em média 35 alunos. Para poder oferecer espaço
de escuta e acolhimento aos alunos, formamos grupos de 4 estagiários para cada
turma. Solicitávamos no mínino 1 hora com cada grupo para podermos propor
atividades que possibilitassem a participação de todos.
O perfil de estudantes de ensino superior privado se caracteriza por pessoas
que trabalham e estudam. O trabalho é uma necessidade, seja para custear a
faculdade, como para sustentar a família. Diante dessa realidade, o estágio deveria
ser realizado no horário da disciplina, assim como a supervisão. Para viabilizar o
estágio e a supervisão, a ida a campo e a supervisão aconteciam quinzenalmente. Os
grupos de estagiários realizaram em média 6 a 7 visitas a campo, com permanência
de 3 horas na instituição para realização de diversas atividades: investigação da
história da escola, visita à comunidade, entrevistas com equipe gestora, professores
e demais funcionários, observação de diversos momentos da rotina escolar (entrada
e saída dos alunos, intervalo, aula vaga, rotina da secretaria e da equipe gestora, uso
da biblioteca, sala de multimídia e de informática, reunião de pais, grupos com os
alunos, leitura do projeto político pedagógico, discussão e planejamento das
atividades com os professores das turmas).
Na primeira visita à escola, os estagiários reuniram-se com a equipe gestora
para apresentação da instituição. Contatos sucessivos foram feitos durante as demais
visitas com o objetivo de refletir conjuntamente com a equipe gestora sobre os
elementos que surgiam a partir da imersão na instituição.
Os procedimentos realizados com os professores variavam conforme a
instituição. Alguns professores participaram de todas as atividades realizadas com a
turma pelos estagiários de psicologia e deram continuidade às mesmas durante as
aulas seguintes. Outros participavam da discussão e planejamento, mas não da
realização das atividades. E por fim, alguns professores apenas “cediam” suas aulas
e procuravam fazer outras tarefas, recusando-se muitas vezes a dialogar com os
estagiários.
O trabalho realizado com família consistiu no agendamento de encontros no
início e no final do estágio. O primeiro teve como objetivo apresentar a proposta de
estágio, realizar uma escuta de sua visão sobre a vivência escolar de seus filhos,
sobre a escola e pedir o consentimento para que seus filhos participassem das
atividades. O segundo encontro teve como objetivo ouvir dos pais como tinha sido a
participação dos filhos nas atividades do estágio, dar mais espaço para escuta e
reflexão acerca da instituição escolar e experiência escolar de seus filhos, assim como
para pedir sugestões e opiniões sobre o projeto de intervenção que estava sendo
construído com a participação de todos os segmentos da escola.
Algumas escolas deixaram de realizar reuniões e optaram por agendar plantões
pedagógicos, ou seja, no momento de entrega do boletim ou material escolar, os
professores ficavam de plantão e conversavam com os pais à medida que esses
chegavam. Outras instituições mantinham a prática da reunião de pais, em algumas
os estagiários aproveitavam parte dessa reunião para apresentar a proposta de
estágio. Noutras foi possível agendar momento específico de encontro entre pais e
familiares das turmas que seriam acompanhadas.
Na maioria das turmas foi possível realizar 4 a 5 encontros. O objetivo desses
encontros foi possibilitar espaço de acolhimento e escuta, a fim de pensar e
problematizar a experiência escolar e a queixa relacionada ao grupo, o
desenvolvimento de potencialidades (intelectuais e emocionais), o resgate do vínculo
com a aprendizagem. Nesses espaços, os participantes tiveram a possibilidade de
serem sujeitos, de falarem sobre seus sentimentos, idéias, inseguranças, planos
futuros (CHECCHIA, 2006). O último encontro caracterizou-se pela reflexão de todos
os momentos anteriores e construção coletiva de um projeto de intervenção na
instituição que possibilitasse a participação dos mesmos, tendo em vista a superação
da queixa apresentada. (SOUZA, 2010a).
Ao final do estágio, outro momento formal foi organizado tanto com gestores
como com docentes para discussão e construção coletiva do projeto de intervenção,
tendo em vista a continuidade de ações que visem o aprimoramento do processo
educativo e que pudessem ser realizadas pelos próprios atores da comunidade
escolar: profissionais, discentes e familiares. O resultado do fechamento do estágio
com todos os segmentos foi sistematizado por escrito pelos estagiários num projeto
de intervenção entregue à instituição. O acompanhamento se dará a partir das turmas
de estagiários seguintes.
Resultados
A imersão nas instituições educacionais públicas revelou uma série de
funcionamentos escolares muito bem explicitados por Souza (2007): infra-estrutura
precária, com falta de ventilação, iluminação, material de limpeza, falta de
manutenção das instalações impedindo o uso de espaços como quadra, ausência de
refeitório; bibliotecas não utilizadas; falta de merenda e de transporte escolar que
causava cancelamento das aulas; ausência de espaços de reflexão e troca de
experiências; utilização de estratégias de homogeneização na formação de turmas;
formação de grupos homogêneos intraclasse, que implica em não acompanhar os
estudantes com maior dificuldade; faltas frequentes dos professores; disciplinas sem
professores; muitas aulas vagas; discurso da instituição em relação aos alunos e seus
familiares com preconceitos ligados à raça, gênero e classe social; relação
hierarquizada entre escola e alunos e entre escola e família; reuniões de pais
transformadas em espaço de imposição e culpabilização, sem espaço de escuta e
participação.
O contato com a equipe gestora se deu em sua maioria com a coordenação
pedagógica. Os estagiários contaram com grande apoio e suporte para a organização
das atividades, como por exemplo, espaço, material, horário. Por outro lado, a
possibilidade de escuta e reflexão acerca dos elementos percebidos no contato com
a instituição foi muito mais difícil. A maioria dos gestores apresentou muita
centralização de poder de decisão e resolução de conflitos, pois problemas
vivenciados em sala de aula não eram resolvidos pelos professores, mas pelos
gestores, a partir de ações autoritárias, como ameaças e punições. O trabalho de
orientação e apoio pedagógico à equipe ficava prejudicado, devido ao acúmulo de
outras atividades. Também tivemos a oportunidade de conhecer coordenadores que
buscavam construir uma relação de maior horizontalidade com sua equipe, alunos e
familiares, apresentando maior disponibilidade de realizar reflexões e contribuições
aos estagiários além da infra-estrutura necessária para as atividades. Este segundo
grupo de coordenadores se mostrou mais sensível, flexível e acolhedor às
manifestações de sua comunidade, assim como percebemos menos estresse,
frustração e desânimo em relação ao seu trabalho.
A escuta e observação dos professores possibilitou compreender que
trabalham isoladamente, sem apoio pedagógico, com precário material didático,
baixos salários e desvalorização profissional. Assim como com os coordenadores,
encontramos muitos professores desanimados, frustrados, apresentando muita
agressividade, estresse, acreditando cada vez menos nos alunos, na equipe e nas
políticas educacionais.
Os professores que participaram das atividades com os alunos, inicialmente
tentavam conduzir as atividades em grupo de forma a disciplinar os mesmos. A partir
de conversas e reflexões com os estagiários e da escuta e observação das
expressões de seus alunos, aos poucos tornaram sua participação mais flexível e
acolhedora, se permitindo muitas vezes expressar seus sentimentos nos encontros
com os alunos mediados pelos estagiários, assim como dando continuidade a
algumas atividades nas aulas seguintes. No final dos trabalhos, os docentes podiam
perceber seus alunos de forma diferente e compreender um sentido por trás de um
comportamento inadequado. A relação entre os professores e alunos havia mudado.
A participação efetiva dos coordenadores e professores possibilitou o
acolhimento de suas necessidades, o reconhecimento, a valorização e a
potencialização de seus recursos. Da mesma forma, tal participação permitiu que
esses profissionais pudessem compreender seus alunos como sujeitos com diferentes
subjetividades (SOUZA, 2010a; CHECCHIA, 2006). Infelizmente, não foi possível
notar esse resultado com os professores que não participaram das atividades de
estágio.
Os encontros com os pais, apesar da pequena participação, permitiu
compreender o significado que a escola tinha para eles. Todos os pais foram
unânimes em reconhecer a importância da escola para os filhos, valorizavam os
professores e o trabalho realizado. Percebiam algumas falhas, como por exemplo, a
grande quantidade de aulas vagas provocadas pelas faltas dos docentes e por
disciplinas sem docentes. Não reclamaram da qualidade da aula dos professores,
apenas da relação com seus filhos, muitas vezes desrespeitosa e autoritária. Esses
familiares não encontravam espaço de escuta e valorização de seu ponto de vista e
por diversas vezes disseram que aquele momento tinha sido o primeiro em toda a
trajetória escolar de seus filhos. Pediram mais espaços como esses. Em todas as
escolas foi possível perceber a sua relação hierárquica em relação aos pais e como
esses são culpabilizados em relação aos problemas vivenciados pela instituição.
O trabalho com os alunos foi bastante diverso, devido à diversidade de faixas
etárias. A queixa geral relacionada aos alunos das séries iniciais do ensino
fundamental se referia à indisciplina, desinteresse, transtornos de aprendizagem ou
as pretensas doenças do não aprender. Para os alunos das séries finais e do ensino
médio, a queixa era a mesma com o acréscimo da agressividade.
Os primeiros encontros eram caracterizados com atividades para integração,
construção de vínculo e elaboração coletiva das regras de convivência. A cada
encontro, os alunos davam sugestões de temas para serem trabalhados, como por
exemplo: drogas, violência, família, perspectiva de futuro, relação interpessoal. Os
grupos utilizaram de vários recursos e estratégias como dinâmicas de grupo, músicas,
jogos, rodas de conversa, filmes, vídeos, oficinas de leitura, contação de história,
desenhos, elaboração de textos, cartazes e colagens. Inicialmente, a participação foi
difícil, seja pela timidez, pela não compreensão do trabalho dos estagiários, que foram
confundidos como professores ou autoridades que estavam ali para avaliá-los.
Todavia, a cada encontro, as resistências eram quebradas, a participação e a
expressão aumentavam. Compreendemos que inicialmente, os alunos reproduziam
com os estagiários sua relação com a escola, seja por meio da indisciplina, não querer
fazer as atividades, da agressividade, da apatia. O espaço que encontraram
possibilitou a expressão, o acolhimento e o respeito à sua subjetividade, à sua
diversidade, assim como a percepção de seus colegas e professores, como sujeitos.
Os alunos trouxeram muitas queixas relacionadas aos professores, gestores,
infra-estrutura da escola, aos colegas e familiares. Queixaram-se de não serem vistos
enquanto crianças e adolescentes, de não terem espaço de escuta e acolhimento de
suas manifestações. A percepção de aulas desmotivantes, monótonas, professores
sem paciência para explicar, com muito autoritarismo, provocavam a perda da
confiança de que a escolarização poderia contribuir com suas vidas. Outros, diante de
suas dificuldades para compreender o conteúdo ministrado, relataram experiências
de humilhação, desacreditando em sua capacidade de aprender e desistindo de
qualquer perspectiva de futuro.
Estar num grupo em que não era necessário acertar, em que podiam falar o
que pensavam e sentiam, dar sugestões, a partir de uma relação horizontal,
possibilitou o fortalecimento de seus potenciais e a mudança de comportamento.
Crianças e adolescentes que inicialmente não paravam quietas, que não eram
capazes de refletir, dar opinião e realizar uma produção escrita, ao final dos encontros,
faziam tudo isso. Os encontros contribuíram para a problematização da queixa
vivenciada e sua ressignificação (SOUZA, 2010; CHECCHIA, 2006).
Considerações finais
Durante as primeiras supervisões os estagiários relatavam experiências de
intenso sofrimento devido à imersão ao cotidiano escolar e à compreensão de sua
realidade. A reflexão, leitura de textos e o planejamento dos encontros seguintes,
possibilitaram que pouco a pouco realizassem uma ruptura epistemológica de uma
visão adaptacionista da psicologia, que percebessem a complexidade do fenômeno
escolar e o quanto explicações reducionistas como a desestrutura familiar, a
violências das comunidades, as supostas doenças do não aprender eram explicações
superficiais e preconceituosas que buscavam reduzir e culpabilizar ora o aluno, ora a
família ora os professores e gestores.
Gradativamente, os estagiários compreendiam a necessidade da Psicologia
construir uma práxis frente à queixa escolar que possibilitasse o trabalho participativo
com todos os setores do processo educativo, o fortalecimento do trabalho do
educador, a análise coletiva dos diferentes discursos para o enfrentamento dos
desafios. Apresentavam outro posicionamento ético e político que se desdobrava no
compromisso com a luta por uma escola democrática e de qualidade tendo em vista
a criação de espaços coletivos que possibilitarão a expressão e construção de significados,
assim como de novas práticas sociais. (PIRES, 2007; SOUZAb, 2010).
A prática, realizada pelos estagiários da disciplina Estágio Básico em Psicologia e
Processos Educativos, ancorada na abordagem crítica em Psicologia Escolar e Educacional
pôde contribuir com uma formação comprometida com o resgate da função social da escola
em uma perspectiva histórico-crítica, a formação do pensamento científico e do cidadão
crítico, assim como a ampliação da socialização e da difusão de valores na direção da
sociedade democrática. Rompeu com práticas discriminatórias, estigmatizantes que procuram
biologizar e patologizar as dificuldades vividas de um sistema escolar complexo, vítima de
sucessivas gestões públicas que depreciaram a escola pública e prejudicasse o desempenho
de seu papel social e político.
Referências bibliográficas
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FÓRUM SOBRE MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE - NÚCLEO BAHIA
Maria Izabel Souza Ribeiro (FACED/UFBA) Liliane Alves da Luz Teles (Faculdade São Bento da Bahia)
Elaine Cristina de Oliveira (ICS/UFBA) Lygia de Souza Viégas (FACED/UFBA)
Meire Pereira Checa (UNEB)
PALAVRAS-CHAVE: Medicalização da educação e da sociedade. Núcleo
Bahia. Ações e estratégias.
1INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta o Núcleo Bahia do Fórum sobre Medicalização da
Educação e da Sociedade a partir de sua história de constituição e exposição do
levantamento de suas realizações e propostas de ações.
O Núcleo Bahia foi fundado em 29 de outubro de 2011. Trata-se de um
grupo de profissionais e estudantes de diversas áreas, articulado com o Fórum
Nacional, instância que agrega pessoas físicas e jurídicas, instituições,
organizações governamentais e não-governamentais comprometidas com o
desenvolvimento de ações contra o processo de medicalização da vida de
maneira geral e especificamente da educação escolar. Tem como objetivo a
mobilização social para a construção da crítica à lógica medicalizante de
compreensão dos fenômenos humanos e consolidação de referências teóricas
e práticas de superação de tal lógica.
O Núcleo Bahia é constituído de Secretaria executiva e plenária.
Atualmente o Núcleo tem funcionado com uma Secretaria executiva ampliada
composta pelas seguintes instituições e representantes: Associação Brasileira
de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE) - Lygia de Sousa Viégas;
Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal da Bahia (UFBA) -
Maria Izabel Souza Ribeiro; Instituto de Ciências da Saúde (ICS) da UFBA -
Elaine Cristina de Oliveira; Grupo de Trabalho Psicologia e Educação (GTPE) do
Conselho Regional de Psicologia CRP/03 - Liliane Alves da Luz Teles;
Universidade do Estado da Bahia - Meire Pereira Checa; Profissional graduado
em História - Renato Santos de Souza. A Secretaria organiza e coordena as
reuniões mensais bem como articula as atividades propostas pelos seus
integrantes em seus diferentes âmbitos: social, político, acadêmico e científico.
De caráter propositivo, o Núcleo tem se dedicado a socializar informações
relacionadas ao tema, sobretudo por meio de pesquisas, cursos, grupo de
estudos, palestras, eventos em geral, publicações, participação em espaços
políticos, além da inserção na mídia local, com destaque para diversas
entrevistas a rádios e imprensa escrita.
O presente artigo está estruturado em três seções: introdução, história e
ações do Núcleo e considerações finais.
2 NÚCLEO BAHIA: HISTÓRIA E AÇÕES
Na Bahia a formação do Grupo de Trabalho Psicologia e Educação (GTPE)
do Conselho Regional de Psicologia (CRP03) em 2007 foi um marco inicial das
articulações entre profissionais e estudantes que buscava aprofundar os estudos
a repeito da relação psicologia e educação na perspectiva da construção de
referências teóricas e práticas com vias a contribuir com a superação da lógica
medicalizante na educação na Bahia.
Entre as atividades desenvolvidas é pertinente citar a articulação da
professora Lygia de Sousa Viégas com profissionais e pesquisadores implicados
com o debate no Estado de São Paulo, integrando-se ao grupo que se constituiu
como desencadeador do Fórum Nacional.
Desta maneira, quando aconteceu o I Seminário Internacional Educação
Medicalizada, em novembro de 2010 em São Paulo, contexto de Lançamento do
Fórum sobre a Medicalização da Educação e da Sociedade, a Bahia esteve
representada com a participação de ao menos doze (12) pessoas, entre
profissionais e estudantes de psicologia, as quais, de maneira efetiva,
assumiram o compromisso de consolidar um núcleo na Bahia. Além da
participação no Seminário, três trabalhos foram apresentados na forma de
pôster.
Todas as ações realizadas em 2010 e 2011 garantiram as condições para
que, em reunião no dia 29 de outubro de 2011, na Faculdade de Educação da
Universidade Federal da Bahia (FACED-UFBA), 17 profissionais e estudantes
de diversas áreas, sobretudo psicologia, pedagogia, terapia ocupacional,
fonoaudiologia e enfermagem, consolidassem o lançamento oficial do Núcleo
Bahia do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Assim, no II
Seminário Internacional a participação da Bahia foi ainda mais significativa com
a apresentação do pôster do Núcleo Bahia.
Com o lançamento oficial do Núcleo Bahia, as ações empreendidas para a
crítica à medicalização no Estado passaram a ter a legitimidade enquanto
movimento social e político na luta pela garantia do direito a vida.
Entendemos por medicalização “o deslocamento de problemas inerentes à
vida para o campo médico, com a transformação de questões coletivas, de
ordem social e política, em questões individuais, biológicas” (MOYSÉS &
COLLARES, 2010, p.72).
A medicalização é um fenômeno que nega a dinâmica, a diversidade e a
riqueza da vida do ser humano. Nega por não considerar a condição de
transformação e de imprevisibilidade das manifestações do humano, bem como
por não compreender a complexidade, a multidimensionalidade, a multiplicidade
de fatores em interação e o processo sócio-histórico de sua constituição. A
negação é pautada em uma concepção reducionista e determinista do ser
humano, por focalizar no aspecto e fator biológico ou psicológico de sua
formação.
No caso do nosso Estado, dados iniciais sobre o levantamento da compra
e dispensação decloridrato de metilfenidato pelos Municípios Baianos realizada
pelo Núcleo Bahia (2012) junto a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia
(SESAB) revelam que no ano de 2011 a entrega ao consumo do mesmo pelo
Governo do Estado foi de 12.410 comprimidos e até 16 de maio de 2012 foi de
6.360 comprimidos. Como ainda não temos os dados precisos da dispensação
até o final de 2012, consideramos, através da projeção da entrega, que o número
de medicamento provavelmente ultrapassou de maneira considerável o de 2011.
Destacamos que na apresentação de 54mg o número de comprimidos
dispensados até 16 de maio de 2012 superou o dispensado durante todo o ano
de 2011.
O gráfico apresentado a seguir explicita a quantidade de comprimidos por
miligrama dispensados pelo Governo do Estado em cada ano:
Figura 4: Dispensação metilfenidato, por número de comprimido
Fonte: Núcleo Bahia - Pesquisa em andamento, 2012
Cabe aqui destacar que se o consumo desse medicamento está sendo
ampliado, significa que, provavelmente, é resultado do aumento da emissão de
diagnóstico do transtorno, o que sugere que o fenômeno da medicalização tem
avançado no Estado. Destaca-se que esse medicamento é prescrito para
crianças e adolescentes com diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH)
Diante de dados como esses, compreendemos que a reflexão e a
discussão sobre os encaminhamentos de escolares para atendimento
especializado na área da saúde e a consequente emissão de diagnósticos de
transtornos de aprendizagem e comportamento são fundamentais para a
realização de uma análise crítica a respeito da queixa escolar e dos diversos
fenômenos educacionais. Ressaltamos que a necessidade da compreensão das
condições concretas de produção dos fenômenos da educação escolar
especificamente e dos fenômenos humanos e sociais de uma maneira geral é
notória.
Dessa maneira, espaços como o Fórum sobre medicalização da
educação e da sociedade são imprescindíveis para mobilizar a sociedade no
sentido da superação da concepção naturalizante, biologizante e patologizante
0
1000
2000
3000
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10 mg 18 mg 30 mg 36 mg 54 mg
Dispensação Metilfenidato, por número de comprimidos, pelo Governo do Estado ‐ BA
2011
2012 (até 16.05)
da vida humana. É nessa perspectiva que o Núcleo Bahia conseguiu, desde
antes de sua fundação, mobilizar grupos e instituições de educação e saúde na
direção de uma reflexão crítica em torno do diagnóstico e tratamento das
dificuldades de aprendizagem e problemas de comportamento na infância e
adolescência, entre outros temas. Como resultados concretos, temos sido
convidados a promover palestras, debates, participação em espaços políticos e
entrevistas sobre a medicalização, visando tanto a formação de profissionais e
estudantes de diferentes áreas quanto o diálogo com a sociedade.
Para o desenvolvimento das ações do Núcleo, a Secretaria executiva
ampliada realiza reuniões semanais para elaboração, organização e
planejamento das atividades e para deliberação dos encaminhamentos
necessários de acordo com as demandas surgidas nos diferentes campos, por
exemplo, político, social, acadêmico e científico. Além dessas reuniões semanais
são realizadas reuniões mensais com a plenária para discussão de temas
pertinentes aos objetivos e princípios do Núcleo, informes locais e nacionais,
divulgação das ações e eventos e planejamento de atividades, dentre outras
coisas.
As ações empreendidas pelo Núcleo Bahia do Fórum a partir da atuação
individual e/ou coletiva de seus membros tem fortalecido o debate crítico no
Estado e em particular na capital Salvador. Destacamos a seguir algumas
dessas ações, além das diversas palestras ministradas e publicações de artigos
de naturezas distintas:
Reuniões temáticas:
"A crítica a medicalização da vida" na Comemoração de 01 ano do Núcleo
em novembro de 2012.
“Material didático pedagógico Alfa e Beto: por que não?” com a Mestre em
Educação e coordenadora da ONG Avante Qualidade de Vida Maria
Thereza Oliva Marcílio e a professora Dra. Elaine Cristina de Oliveira em
março de 2013;
"Medicalização do parto" com a psicóloga Marta Campos em abril de
2013.
Cursos:
"Avaliação e Diagnóstico do TDAH: medicalização do comportamento e
da aprendizagem" ministrado pela professora Maria Izabel Ribeiro
(Faculdade de Educação da UFBA) no Curso "A prática clínica com
criança" do Instituo Viva Infância em outubro de 2012;
"Correlação neuropsicológica das convulsões – Epilepsia" ministrado pelo
neurologista Dr. Leon Benasayag da Universidad de Buenos Aires em
maio de 2012;"Crianças desatentas e hiperativas: perspectiva
psicanalítica" ministrado pela Dra. Gisela Untoiglich (Programa de Pós-
Graduação em Psicologia da Universidade de Buenos Aires) em maio de
2012;
"Neurociências, dislexia e alfabetização" ministrado pelo Dr. Steven
Strauss (Departamento de Neurologia do Hospital Franklin Square) em
maio de 2012;
"Neurolinguística discursiva: afasia e infância" ministrado pela Profa. Dra.
Maria Irma Hadler Coudry (Departamento de Linguística da Faculdade de
Ciências Médicas da UNICAMP)em maio de 2012;
"Respeitar ou rotular: as avaliações de desenvolvimento" ministrado pela
Profa. Dra. Maria Aparecida Affonso Moysés (Departamento de Pediatria
da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP) e pela Profa. Dra.
Cecilia Collares (Faculdade de Educação da UNICAMP) em maio de
2012;
"Medicalização da vida escolar" ministrado por Profa. Maria Izabel Ribeiro
(Faculdade de Educação da UFBA) na II Jornada Pedagógica da UNEB
em outubro de 2011;
"Orientação à queixa escolar” ministrado pela Profa. Dra. Lygia de Sousa
Viégas (Faculdade de Educação da UFBA e Fórum sobre a medicalização
da educação e da sociedade – Núcleo Bahia) no VII Congresso Norte-
Nordeste de Psicologia em maio de 2011;
"Medicalização da Educação e da Sociedade" ministrado pela Profa. Dra.
Maria Aparecida Affonso Moysés (Departamento de Pediatria da
Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP) e pela Profa. Dra. Cecilia
Collares (Faculdade de Educação da UNICAMP) em fevereiro de 2011;
"Medicalização da vida escolar" ministrado pela Profa. Maria Izabel
Ribeiro (Faculdade de Educação da UFBA) no II SIEPE (Seminário
Integrado de Ensino, Pesquisa e Extensão) da UFBA em setembro de
2010.
Participação em eventos:
Participação no Pré-Congresso de Psicologia na subsede Sudoeste do
CRP/03 com a temática medicalização de vida em março de 2013;
Mediação do Grupo de Trabalho Medicalização no I Encontro Baiano de
Saúde Mental Infanto-juvenil: o lugar da infância e adolescência na Rede
de Atenção Psicossocial, da Secretaria de Saúde do estado da Bahia
(SESAB) e Secretaria Municipal de Saúde de Salvador em novembro de
2012;
Mesa redonda "Medicalização" com a participação do Fórum sobre a
medicalização da educação e da sociedade – Núcleo Bahia, representado
por Elaine Cristina de Oliveira, Liliane Teles e Maria Izabel Ribeiro
(coordenação de Meire Checa) na III Jornada pedagógica da DEC I:
Educação e Movimentos Sociais: enlaces multidisciplinares na
Universidade do Estado da Bahia em outubro de 2012;
Mesa redonda “Em nome da proteção e do cuidado, que formas de
exclusão e sofrimento estamos produzindo?” no I Encontro Diálogos
Psicologia e Direitos Humanos e II Curso de Direitos Humanos “Proteção,
Exclusão e Sofrimento” em Julho de 2012;
Mesa redonda “Discutindo o Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) e a Dislexia” com a participação do Fórum sobre a
medicalização da educação e da sociedade – Núcleo Bahia, representado
por Elaine Cristina de Oliveira, Liliane Teles e Renato Souza na Jornada
pedagógica do SINPRO-BA em agosto de 2012;
Desfile em comemoração ao dia Dois de Julho, data da independência da
Bahia, com a participação de diversas mobilizações e Movimentos Sociais
em 2012;
Ciranda Reflexiva do Fórum Baiano de Educação Infantil intitulada
"Medicalização na Educação Infantil" com a participação do Fórum sobre
a medicalização da educação e da sociedade – Núcleo Bahia,
representado por Elaine Cristina de Oliveira e Lygia de Sousa Viégas
(coordenação de Maria Izabel Ribeiro) em março de 2012;
I Encontro de Psicólogas(os) Educacionais/Escolares da Bahia – ENPEB
promovido pelo Conselho Regional de Psicologia e o Grupo de Trabalho
de Psicologia e Educação realizado em agosto de 2011;
Apresentação de trabalhos:
Apresentação oral no I Seminário Interno do Fórum sobre Medicalização
da Educação e da Sociedade em São Paulo, setembro de 2012;
Apresentação em formato de Pôster: "Núcleo Bahia do Fórum sobre
Medicalização da Educação e da Sociedade" na 2ª Mostra Nacional de
Práticas em Psicologia em São Paulo, setembro de 2012;
Apresentação em formato de Pôster no VII Congresso Norte Nordeste de
Psicologia, maio de 2011;
Apresentação em formato de Pôster no III Congresso Baiano de
Educação Inclusiva e I Simpósio Brasileiro de Educação Inclusiva,
outubro de 2011;
Apresentação em formato de Pôster no II Seminário Internacional
Educação Medicalizada, novembro de 2011.
Entrevistas ao vivo em rádios e televisão locais: dez entrevistas, veiculadas
na TVE e nas Rádios Metrópole, BandNews, Excelsior e Candeias. Valem
acrescentar as duas entrevistas concedidas por Maria Aparecida Affonso
Moysés e Cecília Collares, nas Rádios Metrópole e Excelsior (2011).
Entrevistas mídia impressa: concedida ao Jornal A Tarde com a participação
de Lygia Viégas, Maria Aparecida Affonso Moysés e Cecília Collares (2011);
concedida ao Jornal do CRP03 na seção "Fala, categoria" com a participação
de Liliane Alves da Luz Teles e Maria Izabel Ribeiro (Edição 08, abril-junho
2012).
Organização de evento: “I Simpósio Internacional e I Simpósio Baiano
Medicalização da sociedade e da educação: ciência ou mito?” em maio de
2012 com a proposta de publicação das palestras em um livro com previsão
de lançamento em 2013.
Desenvolvimento de pesquisas: Pesquisa de levantamento sobre a compra
e dispensação do medicamento cloridrato de metilfenidato pelos Municípios
Baianos junto a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (SESAB) em
andamento desde o ano de 2012.
Atuações políticas:
Articulação com o Fórum Baiano de Educação Infantil (FBEI);
Apoio aos docentes da rede municipal de ensino de Salvador na luta
contra a implantação do Programa Alfa e Beto (2013) nas escolas
municipais de Salvador;
Participação em reunião no Ministério Público sobre a negação de
matrículas de crianças com algum tipo de diagnóstico psíquico em
fevereiro de 2013;
Interlocuções com representantes do poder público e políticos locais.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pela dimensão das ações realizadas e pelo espaço conquistado no
debate sobre a medicalização da vida consideramos que o Núcleo tem
contribuído significativamente na ampliação e aprofundamento da temática no
Estado, empreendendo esforços para construção de uma perspectiva de
compreensão não medicalizante da vida humana.
Assim, conclui-se que o Núcleo Bahia tem acompanhado de forma
decisiva a compreensão do processo de medicalização da educação e da
sociedade, contribuindo com sua superação crítica.
REFERÊNCIAS
COLLARES Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS Maria Aparecida Affonso. A transformação do espaço pedagógico em espaço clínico (a patologização da educação). Série Idéias, n. 23, São Paulo: FDE, 1994. Disponível em: htpp://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/idéias_23_p025-031_c.pdf MOYSÉS Maria Aparecida Affonso; COLLARES Cecília Azevedo Lima. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. p. 71-110.
CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA-SP; GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. GTPE. Grupo de Trabalho Psicologia e Educação. Conselho Regional de Psicologia 3ª Região (BA) - CRP 03. Um pouco de história. Impresso. Salvador, CRP 03: 2008. NÚCLEO BAHIA. Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Pesquisa de Levantamento sobre a compra e dispensação do medicamento cloridrato de metilfenidato pelos Municípios Baianos (em andamento). Salvador: Núcleo Bahia, 2012. SÃO PAULO. Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. São Paulo: Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2010. Disponível em: www.medicalizacao.com.br ______. Regimento Interno do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. São Paulo: Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, 2011. Disponível em: www.medicalizac
A infância medicalizada: uma análise sobre as publicações
relacionadas ao TDAH
Dalila dos Santos Silva – UNESP, Assis Daniele de Andrade Ferrazza – UNESP, Assis Murilo Galvão Amancio Cruz – UNESP, Assis
Pâmela Massoni Bardella Oliveira – UNESP, Assis
Palavras-chave: medicalização, TDAH, infância.
Quadro Conceitual
A transformação do sofrimento psíquico em doença e seu enquadramento no
âmbito da variedade de rotulações diagnósticas produzidas pela psiquiatria têm
apresentado sinais de estender-se, atualmente, a uma infância que até pouco tempo
era poupada dos veredictos psicopatológicos e da prescrição de psicofármacos que
costuma acompanhá-los. Na atualidade, as mais diversas condutas da infância que
são consideradas inadequadas e/ou indesejáveis têm sido transformadas, pelo saber
psiquiátrico, em manifestações sintomáticas de psicopatologias. Esta é uma
característica típica do processo de medicalização que pode ser compreendido como
uma forma do saber médico se apropriar de aspectos sociais, culturais, políticos e
econômicos e transformá-los em fenômenos da ordem médica. Nesse processo de
medicalização inúmeros aspectos, também, relacionados à infância serão apropriados
pelos saberes médicos e transformados em diagnósticos psiquiátricos.
Atualmente, a determinação diagnóstica que mais tem atingido crianças e
adolescentes é o “Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH), para o
qual a psiquiatria tem recomendado, principalmente, a administração de
psicofármacos (LEGNANI; ALMEIDA, 2008; GUARIDO, 2007). Nessa configuração
contemporânea, aquelas crianças que não se adaptam às regras e normas da
sociedade vigente estariam, então, sujeitas aos discursos e práticas normatizadoras
da medicina psiquiátrica que, conforme expõe Caponi (2007, p. 344), “possuem ainda
hoje, como ocorreu no início do século XX, diagnósticos ambíguos e imprecisos,
terapêuticas de eficácia duvidosa e efeitos colaterais imprevisíveis”.
Ao longo dos últimos 50 anos os procedimentos diagnósticos podem ser
localizados, principalmente, no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM). Mesmo período em que, também, assistiríamos aos avanços do
tratamento medicamentoso como forma majoritária de intervenção terapêutica no
âmbito médico-psiquiátrico (GUARIDO, 2007). É nesse contexto que pode ser
identificada a perda dos sentidos e significados de sofrimentos psíquicos e mal-
estares subjetivos, uma vez que inúmeros diagnósticos psiquiátricos pretendem
estabelecer bases biológicas objetivas para as mais diversas questões da existência
humana.
Desse modo, no mundo contemporâneo, o paradigma das ciências médicas
produziria verdades acerca da natureza do sofrimento psíquico reduzidas às
estruturas cerebrais e aos desequilíbrios neuroquímicos (CAPONI, 2012). Tal como
argumenta Guarido (2007), a psiquiatria contemporânea promove uma naturalização
do fenômeno humano e uma subordinação do sujeito à bioquímica cerebral, regulável
apenas pelo uso de remédios.
Nessa perspectiva, o grupo de pesquisas “Medicalização do social no
contemporâneo” da UNESP, campus de Assis, apresenta um estudo sobre o processo
de medicalização da infância que envolve a expansão do diagnóstico de “Transtorno
de Déficit de Atenção e Hiperatividade” (TDAH) e a generalizada prescrição de
medicamentos psiquiátricos destinados a silenciarem crianças e adolescentes na
contemporaneidade,
Objetivos
O presente trabalho teve como objetivo estudar o processo de medicalização
da infância através da análise de artigos científicos publicados, nos últimos três anos,
na base de dados da SciELO que apresentavam como tema o diagnóstico do TDAH.
Metodologia
Para o desenvolvimento da pesquisa foram levantados os artigos científicos
publicados e disponibilizados na base de dados da SciELO que apresentavam como
indexadores a palavra-chave TDAH, com filtro regional indicando as publicações no
Brasil. No total, foram encontrados 129 artigos científicos publicados no período de
2001 a 2013.
Para o desenvolvimento de uma análise mais detalhada das publicações sobre
a temática, selecionamos apenas os trabalhos publicados nos anos de 2010, 2011 e
2012, que perfizeram um total de 46 artigos divididos em dois grupos de análise. No
primeiro, selecionamos e analisamos os trabalhos que apresentavam pesquisas e
reflexões com bases e fundamentações críticas sobre o processo de medicalização
da infância e de banalização do diagnóstico do TDAH. O segundo conjunto de análise
seria composto por trabalhos que apresentassem pesquisas do campo das
neurociências e das psicofarmacologias que consideram o TDAH como um transtorno
da infância.
Os artigos considerados como críticos foram os que apresentaram uma
contextualização social, política e histórica sobre o TDAH, e desenvolveram
problematizações sobre o processo de patologização da infância. Já os artigos que
foram considerados como acríticos desconsideravam todos esses aspectos e
reduziram ao funcionamento biológico as dificuldades apresentadas por crianças e
adolescentes submetidos ao diagnóstico e ao tratamento medicamentoso. Além disso,
os trabalhos considerados como acríticos se baseavam no Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e apresentavam o diagnóstico sem
problematizar ou questionar a validade teórico-científica deste instrumento
psiquiátrico.
Nessa configuração, no desenvolvimento da pesquisa, selecionamos 19 artigos
científicos publicados no ano de 2010, dos quais apenas três foram considerados
como críticos. No ano de 2011, encontramos a publicação de 12 artigos, dos quais a
maioria foram considerados como acríticos e apenas 2 considerados críticos. E,
finalmente, no ano de 2012, foram analisados 15 artigos, dos quais 7 foram
considerados acríticos e 6 críticos. No total, dos 46 artigos publicados no período,
apenas 11 foram classificados como críticos.
Resultados e discussões
No ano de 2010 foram encontrados 19 artigos publicados na base de dados da
SciELO, dos quais 11 eram relacionados de alguma forma com revistas e publicações
da área da saúde, principalmente, da área da psiquiatria ou neurologia. Os outros oito
artigos estavam relacionados com publicações de outras áreas, tais como psicologia
e filosofia, porém, dentre eles, apenas três foram considerados como críticos.
Dentre as discussões apresentadas nos artigos classificados como acríticos
encontramos temas sobre o diagnóstico do TDAH e outras síndromes associadas,
sobre pesquisas no campo das neurociências que consideram a existência de
estruturas cerebrais e neuroquímicas relacionadas ao diagnóstico, estudos sobre o
uso e os efeitos da medicação nos casos de crianças diagnosticadas e pesquisas
sobre a utilização de testes para facilitar a identificação dos supostos “portadores” de
TDAH. Dentre as diversas análises possíveis, aqui, destacaremos alguns artigos
considerados significativos para representar os processos de medicalização da
infância.
A administração de medicamentos psicofarmacológicos apresenta
reconhecidamente um caráter experimental que gera, muitas vezes, a modificação
dos diagnósticos conforme a variação dos sintomas apresentados no decorrer do
suposto tratamento terapêutico determinado pela psiquiatria (GUARIDO, 2007).
Entretanto, mesmo diante de incertezas, a psiquiatria continua a levar adiante
discursos de que nossa vida mental decorreria inteiramente de explicações
neurobiológicas.
A partir dessas considerações, destacamos o artigo Síndrome de Gilles de la
Tourette associada ao transtorno de déficit de atenção com hiperatividade: resposta
clínica satisfatória a inibidor seletivo da recaptura de serotonina e metilfenidato (2010)
como um exemplo desse caráter experimental da administração de medicamentos
psiquiátricos. O artigo em questão descreve o caso clínico de um garoto de 12 anos
que foi encaminhado ao Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Gaffrée e
Guinle (HUGG) para avaliação diagnóstica e conduta terapêutica (aos nove anos,
quando cursava a 2ª série do ensino fundamental). Na ocasião, estava em uso de
carbamazepina, ácido valproico, risperidona e fluoxetina, e já utilizava todos esses
medicamentos desde os sete anos de idade. Naquele Serviço de Psiquiatria, conforme
nos descreve os autores, o menino seria diagnosticado com Síndrome de Tourette,
Transtorno obsessivo-compulsivo e Transtorno de Déficit de Atenção com
Hiperatividade, tipo combinado, segundo os critérios diagnósticos do DSM-IV-TR. No
decorrer do tratamento, aumentaram a dosagem de fluoxetina, parou-se gradualmente
com a carbamazepina, o ácido valproico e a risperidona. Porém, por conta de
comportamentos considerados como hiperativos, iniciou-se o tratamento com
metilfenidato, combinado a fluoxetina. Na conclusão do caso exposto, os autores
comentam que o paciente, em uso daquelas medicações há dois anos, agora, “sentia-
se melhor” e com a resolução de todos os problemas escolares. Nesse contexto,
chamamos atenção para uma redução do sofrimento psíquico dessa criança a uma
disfunção meramente biológica que será tratada essencialmente com medicamentos
psicofarmacológicos, em números e dosagens nada desprezíveis, situação observada
na maioria dos artigos deste levantamento.
Dentre os três artigos considerados como críticos podemos citar o estudo,
Discurso médico y estrategias de marketing de la industria farmacéutica en los
procesos de medicación de la infancia en Argentina (2010), que apresenta uma
reflexão qualitativa acerca da problemática da medicalização da infância. Estudo
interdisciplinar, que busca explorar o discurso do campo médico – pediatras,
psiquiatras infanto-juvenis e neurologistas infantis – em torno da construção
diagnóstica do TDAH e sua abordagem terapêutica nos sistemas públicos e privados.
De forma complementar, aborda a relevância dos mecanismos de marketing da
indústria farmacêutica que influenciam na ampliação do diagnóstico do TDAH.
Além disso, o artigo Classificações interativas: o caso do Transtorno de Déficit
de Atenção com Hiperatividade infantil (2010) trata da questão das classificações que
o mundo ocidental constrói acerca de determinados comportamentos e fenômenos
sociais e a representatividade que tem cada um deles. Neste trabalho, os autores
abrem espaço, também, para a problematização e compreensão de um fenômeno
muitas vezes recorrente aos que foram diagnosticados por essa “classificação oficial”
de uma doença e a resposta do social sobre o mesmo. Nesse sentido, o artigo trata
de forma crítica o problema recorrente da patogênese e o efeito de arco que incide
sobre esta, e destaca ainda que cada classificação, rotulação ou, até mesmo,
enquadre medicalizante pode apresentar um peso sobre a vida das pessoas, que
ficam à deriva desses conceitos sistematicamente construídos através dos tempos. A
biologização – isto é, a postulação de causas biológicas e individuais para os sintomas
apresentados pelo sujeito – e a consequente patologização dos comportamentos
indesejados, em geral, são bem vistas e incentivadas socialmente. A problemática se
instaura quando as práticas de saúde e suas respectivas prescrições se tornam muito
frágeis perante as classificações diagnósticas, que são constantemente reformuladas
por aquilo que é socialmente aceito. Assim, os limites entre o saudável e o patológico,
entre o normal e o anormal, pouco a pouco se tornam difusos.
Nesse sentido, Moysés e Collares (2010) destacam que nas sociedades
ocidentais é crescente o deslocamento de problemas inerentes à vida para o campo
médico, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em
questões individuais e biológicas. Dessa forma, as autoras indicam que vivemos
tempos em que a biologização e homogeneização de comportamentos se amplifica,
de modo a tornar os seres humanos cada vez mais suscetíveis às atuais escalas de
classificação e diagnóstico.
Por fim, o terceiro artigo crítico encontrado, intitulado como Notas Sobre a
História Oficial do Transtorno do Déficit de Atenção/hiperatividade TDAH (2010),
destaca dois pontos importantes da história oficial do diagnóstico do TDAH: as
descrições do médico inglês George Still, de 1902, que vinculou o transtorno a um
defeito da vontade inibitória, portanto, um “defeito no controle moral” que tinha como
base três suportes: cognição, consciência moral e vontade; e a síndrome da encefalite
letárgica, na primeira metade do século XX, que foi uma infecção misteriosa que
possuía muitas semelhanças com TDAH e impulsionou, assim como o TDAH, uma
enorme produção científica sobre o corpo e o cérebro, se apoiando na pesquisa
cerebral dos sistemas inibitórios. Neste artigo, a autora considera também os
elementos morais e políticos na história oficial do TDAH e define que eles fazem parte
dos níveis mais profundos da constituição desse diagnóstico. Para ela, uma das
formas de se construir um diagnóstico é desconsiderando todo seu círculo, isto é,
“desconsideram os aspectos morais, sociais, políticos, econômicos e institucionais
que alimentam a constituição do fato patológico” (CALIMAN, p. 49, 2010). Desse
modo, somos convidados a pensar as variáveis culturais e históricas envolvidas no
diagnóstico e como o TDAH legitimou um discurso neurobiológico sobre a atenção e
vontade.
No ano de 2011, dos 11 artigos analisados, consideramos que 9 eram trabalhos
que se classificavam dentro do conjunto de acríticos. E apenas dois apresentavam
posicionamentos críticos que tanto traziam perspectivas contrárias ao paradigma das
neurociências quanto ressaltavam a importância de valorizarem um novo olhar sobre
os problemas relacionados à infância com o intuito de viabilizarem novas práticas para
superar as generalizadas prescrições de psicofármacos.
Em relação aos artigos considerados acríticos todos traziam apontamentos
sobre o diagnóstico do TDAH baseados no DSM sem problematizarem a validade
teórico-científica deste instrumento psiquiátrico que, recentemente, seria questionado
inclusive pelo Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos (NIMH), um dos
principais órgãos financiadores de pesquisas na área e que participava efetivamente
da revisão da nova edição do manual juntamente com a APA (Associação norte-
americana de psiquiatria) e que declararia o abandono oficial da futura publicação, o
DSM V (INSE, 2013).
Em quatro daqueles artigos acríticos foram problematizados o papel da escola
no manejo com as crianças consideradas hiperativas e com problemas de
aprendizagem. Ao contrário daqueles estudos elucidarem os problemas das
instituições educacionais, das dificuldades de relacionamento professor-aluno, das
salas de aula superlotadas, entre outros fatores que poderíamos elencar aqui, todas
aquelas pesquisas consideravam que o mal que acomete cada vez mais crianças e
adolescentes está relacionado ao corpo biológico e seus desequilíbrios
neuroquímicos. Dentre os trabalhos sobre as instituições educacionais e o TDAH,
destacamos o artigo, Escola e desenvolvimento psicossocial segundo percepções de
jovens com TDAH (2011), em que os autores consideravam que a escola mal
preparada para receber e trabalhar com alunos diagnosticados com TDAH propagaria
discursos preconceituosos e bullying. Entretanto, a determinação de diagnóstico, no
âmbito da psiquiatria, já é por si só produtor de processos discriminatórios ao definir
o que seria um comportamento, atitude e gestos considerados como normais e
anormais (FOUCAULT, 2006).
Dentre os outros artigos classificados como acríticos, podemos destacar o
trabalho que recebe como título “Técnicas avançadas de ressonância magnética do
crânio em crianças portadoras de TDAH”, no qual o grupo de autores apresenta um
estudo sobre pesquisas que mostrariam que na ressonância magnética seria possível
identificar diferenças entre os cérebros de crianças diagnosticadas quando
comparados aos cérebros de crianças não diagnosticadas com TDAH. Pesquisas
como essa têm sido apresentadas no meio científico como uma grande descoberta
das neurociências e como forma de confirmar que haveria diferenças orgânicas e
estruturais no cérebro de pessoas “portadoras” e não “portadoras” de transtornos
mentais.
Por fim, no ano de 2012, foram encontrados sete artigos que se posicionavam
de forma acrítica em relação ao processo de patologização e medicalização dos
sintomas do TDAH. Esses artigos abordaram questões pertencentes ao TDAH de
forma reducionista, de modo a desconsiderar aspectos, sociais, culturais ou
educacionais em detrimento dos conhecimentos biológicos e da neurociência.
Dessa forma, os autores dos artigos se utilizaram de testes estatísticos e de
estudos com grupo controle e grupo experimental para comprovar suas hipóteses de
pesquisa. A partir dos métodos utilizados naquelas pesquisas seriam analisadas
pequenas amostras que depois seriam generalizadas para a população diagnosticada
com TDAH. Ao se fazer este tipo de análise, principalmente com crianças, os artigos
desconsideraram a subjetividade e o desenvolvimento que ocorre de forma
diferenciada em cada indivíduo. Assim, o desdobramento da infância e as aquisições
intelectuais foram examinados de forma geral sem levar em consideração o tempo
particular que cada um necessita para construir ou desconstruir um conhecimento.
Também no ano de 2012 foram encontrados seis artigos com posicionamento
crítico em relação ao diagnóstico de TDAH e ao uso de metilfenidato, com denúncias
da banalização da prescrição e do extraordinário crescimento de vendas daquele
medicamento. Os autores se utilizaram de revisões de literatura sobre o assunto, bem
como, do levantamento da história do diagnóstico de TDAH, da história de ascensão
da Psiquiatria e da indústria farmacêutica. Além disso, buscou-se analisar de forma
abrangente e multifatorial o contexto em que se notaram comportamentos atribuídos
ao TDAH e o caminho percorrido em direção à sua identificação/transformação em
sintomas patológicos.
Outros artigos apresentaram referenciais da Psicologia Histórico-Cultural,
Psicanálise, Filosofia e Ciências Sociais, que permitiram desconstruções de normas
e conceitos naturalizados pelo paradigma biomédico. Foram desenvolvidas reflexões
acerca da biomedicalização e patologização da vida apoiadas em reducionismos
biológicos, além de terem sido trazidos às discussões fatores sociais, culturais,
econômicos e políticos típicos da contemporaneidade, que nos permitem pensar a
emergência de novas formas de subjetivação características de modos de vida
pautados na globalização e capitalismo. Nesse contexto, evidenciou-se a gravidade
de pensar sujeitos apenas de acordo com o conhecimento biológico, que pode
patologizar e rotular àqueles que fogem da norma.
Enfatizou-se, em alguns artigos, a problemática do sistema educacional, que
tem se mostrado pouco efetivo no que diz respeito a acompanhar as transformações
dos modos de vida, e atribuído comodamente os problemas de ensino às crianças.
Assim, pode-se dizer que o ambiente escolar tem se constituído como uma grande
engrenagem que movimenta a ocorrência de diagnósticos de TDAH e a prescrição e
comercialização de medicamentos.
Investigaram-se aspectos das Neurociências, bem como da Psiquiatria, que
podem nos levar a pensar em uma parceria dessas áreas com a indústria
farmacêutica, uma vez que o TDAH se mostra como um transtorno
inventado/oficializado posteriormente à descoberta de um medicamento que pudesse
amenizar os sintomas atribuídos a esse transtorno.
Em suma, em alguns artigos o TDAH foi abordado como uma construção
consequente de reducionismos biológicos e genéticos. Neles, mostrou-se a
necessidade de reflexões sobre o diagnóstico e a utilização de medicamentos, que
podem ser claramente prejudiciais aos indivíduos. Contestou-se também a ampla
divulgação e incentivo ao diagnóstico, que chega aos mais variados ambientes por
meio de estratégias da indústria farmacêutica, e são acatados como formas de
combate ou tratamento a patologias já naturalizadas no imaginário social.
Conclusões
Na análise das recentes publicações científicas pudemos perceber como as
neurociências desenvolveriam diversas pesquisas e estudos que prometem
desvendar a estrutura funcional do cérebro e definir os desequilíbrios que provocariam
“perturbações mentais”, conflitos existenciais e problemas escolares e de
aprendizagem. No bojo das pesquisas neurocientíficas ainda estariam os
pesquisadores das áreas educacionais, como pedagogos e psicólogos, que
pretendem desenvolver técnicas cognitivas comportamentais que visem melhorar o
desempenho por meio do controle de comportamentos de crianças diagnosticadas
com TDAH. A artilharia direcionada à infância problema e diagnosticada com TDAH
seria composta por diversos saberes que desenvolveriam diariamente novas
estratégias e táticas que prometem acabar com o inimigo seja por meio das técnicas
de definição de diagnóstico, dos mecanismos utilizados para reconstrução da
normalidade através de ritalinas e pelas determinações terapêuticas e estratégias
educacionais nas escolas que englobariam condicionamentos, reforços e controle de
condutas consideradas inadequadas.
O presente trabalho pode notar que o número de artigos fundamentados em
critérios diagnósticos não confiáveis, como o DSM, é consideravelmente maior que o
número de artigos que levantaram um questionamento e uma problematização a
respeito do tema. Consideramos, portanto, importante o avanço das pesquisas sobre
o assunto a fim de levantar questionamentos e problematizações a todos os
pesquisadores da área da saúde mental, além de alertá-los para o fato de que o saber
psiquiátrico clássico tal como postulado nos manuais estatísticos não detém toda
verdade sobre a subjetividade humana e, ainda, está imerso em uma rede de
agenciamentos com interesses políticos, sociais e econômicos próprios que devem
ser questionados.
Referências Bibliográficas
BRZOZOWSKI, F. S.; BRZOZOWSKI, J. A.; CAPONI, S. Classificações interativas: o caso do Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade infantil. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 14, n. 35, Dec. 2010.
CALIMAN, L. V. Notas sobre a história oficial do transtorno do déficit de atenção/hiperatividade TDAH. Psicologia Ciência e profissão. Brasília, v. 30, n. 1, 2010. CAPONI, S. Classificar e medicar: a gestão biopolítica dos sofrimentos psíquicos. Revista Interthesis, 2012. CAPONI, S. Da herança à localização cerebral: sobre o determinismo biológico de condutas indesejadas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n.2, p. 342-352, 2007. ÉBR JÚNIOR, H LOOS. Escola e desenvolvimento psicossocial segundo percepções de jovens com TDAH. Paidéia. São Paulo, Vol. 21, No. 50, 2011. FARAONE, S. et al. Discurso médico y estrategias de marketing de la industria farmacéutica en los procesos de medicación de la infancia en Argentina. Interface (Botucatu), Botucatu, v. 14, n. 34, Sept. 2010. FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico: curso no Collège de France (1973-1974). São Paulo: Martins Fontes, 2006. GUARIDO, R. A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na educação. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 151-161, jan./abr. 2007. LEGNANI, V. N.; ALMEIDA, S. F. C. A construção diagnóstica de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade: uma discussão crítica. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 60, n. 1, p. 2-13, 2008. Disponível em: <www.psicologia.ufrj.br/abp/>. Acesso em: 22 set. 2008. MOYSÉS, M. A. A. & COLLARES, C. A. L. Dislexia e TDAH: uma análise a partir da ciência médica. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA e GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (orgs.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2010. PASSOS, R. B. F. & LOPEZ, J. R. R. A. Síndrome de Gilles de la Tourette associada ao transtorno de déficit de atenção com hiperatividade: resposta clínica satisfatória a inibidor seletivo da recaptura de serotonina e metilfenidato. Jornal brasileiro de psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 59, n. 2, 2010.
Jogo de resistência entre a docência e a saúde: um estudo com as professoras da Educação Infantil de uma cidade de porte médio no Rio Grande do Sul, Brasil.
Maria de Fátima Duarte Martins
Universidade Federal de Pelotas - UFPel
Jarbas Santos Vieira, José Roberto Feijó, Vanessa Gonçalves Bugs
Palavras chaves: medicamentação, processo de trabalho docente, educação infantil.
Introdução
Os primeiros estudos sobre as repercussões do trabalho na saúde dos
professores surgiram na década de 80. No Brasil esses estudos são mais recentes
e aparecem no final da década de 90, quando se elevou consideravelmente a
prevalência de problemas de saúde nas professoras e professores ocasionando o
aumento das solicitações de licenças de saúde, e o absenteísmo, que geraram
problemas nas escolas e insatisfação na profissão docente. Anterior a esse período
a maioria dos estudos dedicados à saúde do trabalhador estavam focados em
outras atividades laborais. (Apple, 1997; Carlotto, 2002; Delcor, N., S. et.al, 2004;
Gasparini et.al, 2005 & Araújo et.al., 2008). Essa emergência de estudos justifica-
se pela necessidade de estudar as relações entre o conflito das professoras para
adequaram-se as situações de trabalho educacional na sua maioria conflituosa e
pouco favorável, e as tentativas de atenuar os efeitos prejudiciais dessa condição
sobre a saúde, através do uso de medicamentos.
No final do século XX são instituídas no Brasil as reformas políticas
educacionais para a educação básica que estimulam a moral de auta
responsabilização e culpa por parte das professoras, que, aliada à deterioração dos
salários e das condições de trabalho, vem contribuindo para a intensificação e auto
intensificação do trabalho docente e para a geração de frustrações e desencantos
(Garcia, 2004) e isso pode levar ao adoecimento. Para o psicólogo Espanhol José
Esteve (1999) - podem ser desastrosas as desorientações provocadas por
indivíduos quando estes se vêm obrigados a mudanças excessivas em um período
curto de tempo.
José Esteve (1999) cunhou o termo - mal estar docente - para designar o
conjunto de conseqüências negativas que afetariam o professor a partir da ação
combinada das condições psicológicas e sociais em que se exerce a docência.
Para este autor, as repercussões psicológicas do mal-estar docente, percorrem uma
ampla escala que inclui pelo menos sentimentos de desconcerto e insatisfação ante
os problemas reais da prática do magistério, em franca contradição com a imagem
ideal do que é ser professor e o que gostariam de realizar, desenvolvimento de
esquemas de inibição, como forma de cortar a implicação pessoal no trabalho
realizado, pedidos de transferência de escola para fugir de situações conflitivas,
desejo de abandonar a docência (realizado ou não), absentismo trabalhista como
mecanismo para cortar a tensão acumulada, esgotamento e cansaço físico
permanente, depreciação do ego, depressão e auto culpabilização ante a
incapacidade para melhorar o ensino.
A combinação desse conjunto de conseqüências negativas psicológicas e
sociais em que se exerce a docência afetam o cotidiano dos professores e com o
passar do tempo conduz a um desgaste emocional e físico, estranhamento de seu
lugar de trabalho, seus colegas, seus estudantes e sua profissão. Nesse sentido de
acordo a Vieira et.al. (2009), o consumo de medicamentos está se tornando uma
busca pelo reequilíbrio e readaptação frente às intensas exigências das atividades
educativas, as inúmeras demandas e a falta de suporte social. Professoras buscam,
nos medicamentos prescritos ou não, mais que aliviar suas dores, fórmulas que
produzam disposição e energia para enfrentar a rotina diária, não somente na
escola, mas em casa e em outros espaços sociais que atravessam a profissão
docente e a vida privada. Medicamentação então se configura como um elemento
presente no processo pedagógico (e administrativo) das escolas, assim se
constituindo em mais um dispositivo de controle do professorado. Frente ao
conjunto de preocupações e desgastes físicos e emocionais no trabalho há uma
mudança da conduta das professoras, levando- as a adotar medidas emergenciais
que reorganizem as emoções, os sentimentos de inadequação e as desordens do
corpo para lidar rapidamente com as demandas do cotidiano.
Os resultados de um estudo realizado Vieira et.. al (2009) encontrou que as
professoras das crianças pequenas foram as que mais se afastaram do trabalho por
motivos de doenças. No Brasil estudos sobre o trabalho das professoras da
Educação Infantil e sua repercussão na saúde, ainda são escassos, em parte pelo
fato de ser recente a criação de instituições responsáveis pela Educação Infantil.
Com relação à rede pública municipal, foco desse estudo foi a partir de 2003
através da Lei 9394/96, que se criou o Sistema Municipal de Ensino de Pelotas (Lei
Municipal nº 4094 A nova lei contemplou a formação das professoras para atuarem
na Educação Infantil exigindo formação específica A possível relação entre
adoecimento e trabalho docente pode ter parte de sua origem nas mudanças do
papel do professorado, nas transformações do contexto social, no qual elas e eles
exercem a sua profissão, e nas mudanças das expectativas, de apoio e de
julgamento deste contexto social sobre as educadoras e educadores (Esteve, 1999;
Sacristán, 2008).
Esse trabalho é um recorde de um estudo realizado com todas as
professoras das Escolas Municipais de Educação Infantil da cidade de Pelotas, Rio
Grande do Sul, Brasil em que se avaliaram as características psicossociais das
professoras e sua relação com o trabalho e o consumo de medicamentos.
Apresenta-se resultados preliminares da pesquisa ‘A produção do mal-estar
docente nas Escolas Municipais de Educação Infantil de Pelotas (EMEIs)’ (2010-
2012)1, relativos ao uso de medicamentos por parte das docentes que atuam neste
nível de escolaridade. Trata-se, portanto, de uma discussão que funciona como
indicador de problemas relacionados à saúde do professorado, apontando alguns
elementos derivados do chamado mal-estar docente e relacionados ao processo de
trabalho educativo
1 Pesquisa financiada pelo CNPq.
Método
O estudo aqui apresentado é o resultado preliminar da pesquisa - A
Produção do mal-estar docente nas Escolas Municipais de Educação Infantil de
Pelotas – que teve como objetivo analisar a relação entre mal-estar docente e o
processo de trabalho desenvolvido pelas professoras que atuam nas Escolas
Municipais de Educação Infantil. Trata-se do desdobramento da pesquisa
‘Constituição das Doenças da Docência (Docenças) que analisou aspectos,
dimensões e elementos do processo de trabalho das professoras de escolas
públicas municipais de Ensino Básico da cidade de Pelotas e a sua relação com o
adoecimento. Os resultados desse estudo apontaram as professoras da Educação
Infantil como as que solicitaram mais licenças para tratamento de doenças
relacionadas aos transtornos mentais menores tais como, depressão, ansiedade e
estresse.
Mobilizados por esse resultado no ano de 2010 elaborou-se um novo
projeto voltado para esse grupo de professoras. Trata-se de um estudo de caráter
censitário. O Projeto foi financiado pelo CNPq e realizado em parceria com a
Secretaria Municipal de Educação, Biometria Médica e Secretaria de Saúde. O
projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres
Humanos, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e as recomendações da
Resolução n196/96 foram criteriosamente seguidas.
A rede municipal de Pelotas é composta de 27 Escolas Municipais de
Educação Infantil (EMEIS), que trabalham com crianças de zero a cinco anos de
idade. Para esse estudo optou-se por trabalhar com as professoras em exercício
diário com crianças. Os dados funcionais foram fornecidos pela Secretaria de
Administração, os dados referentes ao número de licenças de saúde e as doenças
mais freqüentes foram cedidos pelo Serviço de Biometria Médica. A pesquisa está
dividida em duas etapas: uma quantitativa e outra qualitativa. A etapa quantitativa
avaliou as características psicossociais do trabalho, utilizando o Job Content
Questionnaire (JCQ) desenvolvido por Karasek (1987), validado para o Brasil por
Tânia Araújo (Araújo, 2008) e traduzido para o Português como Questionário sobre
Conteúdo do Trabalho.
Foram acrescentadas ao questionário informações sobre o uso de
medicamentos por parte das professoras que atuam nas EMEIS. A primeira questão
referiu-se ao uso de medicação no trabalho - Para lidar com a rotina de meu
trabalho estou tomando alguma medicação? E a segunda referiu-se ao tipo de
medicamento utilizado. - Indique os tipos de medicamento que você toma ou já
tomou para dar aulas (uma ou mais opções).
Para a criação do banco de dados e análise das variáveis coletadas utilizou-
se o programa Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 13.0. A
pesquisa está sendo desenvolvida em duas etapas uma de caráter quantitativo, já
terminada que avaliou as características psicossociais do trabalho, e uma de caráter
quantitativo, ainda em andamento, cujo intuito é explorar as práticas educacionais
utilizadas pelas professoras em seu cotidiano de trabalho, bem como sua
compreensão sobre a relação do seu processo de trabalho com sua saúde. A
concordância das professoras em participar do estudo foi registrada em Termos de
Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Para esse trabalho analisou-se as informações sobre o uso de
medicamentos sem fazer uma análise ou relação com os resultados encontrados
referentes aos aspectos psicossociais. Portanto, todas as professoras da Rede
Municipal de Educação (N=196) responderam o questionário. Dessas 99% são
mulheres, todas trabalham 40 horas semanais com crianças de zero a cinco anos, a
média de idade é de 38 anos. Em relação à formação 77 (39,3%) possuem pós-
graduação e 27,6%, possuí nível superior completo. O tempo médio na profissão foi
de nove anos. A carga horária de todas as professoras é de 40 horas semanais.
Quanto ao uso de medicação o número absoluto totaliza 89 casos, o que
indica que menos de 50% das respondentes associam o uso de medicamentos ao
processo de trabalho docente. (figura 1).
N %
Toma algum medicamento 49 25 Não toma medicamento 106 54,1As vezes toma medicamento 40 20,4Não informado 1 0,5
Total 195 99
Na segunda questão – referente a uso de medicação para dar aulas, o
resultado demonstrou que ao analisar os dados encontrou-se que das 196
professoras, 120 docentes referiram tomar que algum tipo de droga para dar aula,
elevando o percentual de usuárias de medicação para 61,2%. (figura 2)
N %
Toma algum medicamento 120 61,20Não toma medicamento 76 38,80Total 196 100
Sobre o tipo de medicamentos consumidos, os analgésicos e os
antidepressivos são os medicamentos mais consumidos, seguidos pelos anti-
inflamatórios, antibióticos e anti-alérgicos. Os resultados apontam para um elevado
consumo de medicamentos os quais que podem ser comprados sem prescrição
médica.
Considerações finais
O trabalho da professora da Educação Infantil exige uma competência polivalente,
conforme apregoa os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). E ser polivalente
significa que à professora cabe trabalhar com conteúdos de naturezas diversas, que
abrangem desde cuidados básicos essenciais até saberes específicos provenientes
das diversas áreas do conhecimento. Sem dúvida que na forma como esse discurso
curricular está posto e vivido dentro das EMEIs vem causando muitos conflitos no
dia a dia das escolas e consequentemente na saúde das professoras.
Este caráter polivalente demanda, no plano teórico, uma formação bastante
ampla da profissional, que deve tornar-se, ela também, uma aprendiza, refletindo
constantemente sobre sua prática, debatendo com seus pares, dialogando com as
famílias e a comunidade, buscando, enfim, (in)formações necessárias para o
trabalho que desenvolve. Somado a isso a necessidade de, cada vez mais,
preencherem relatórios sobre objetivos e competências alcançados ou não por cada
um de seus alunos e alunas. Tantas exigências têm levado a intensificação de seu
trabalho e, em contra partida, a remuneração ainda não corresponde à carga
trabalhada cotidianamente.
Por outro lado os discursos das demandas oficiais com alto poder de
penetração na mídia, discursos.tem colocado os professores e as professoras tem
sido apontados como os grandes responsáveis pelo fracasso do sistema escolar
público e pelo insucesso dos alunos. Esse discurso interpelou e vem interpelando
os docentes, principalmente da escola pública do ensino fundamental e médio
(Anadon, Garcia, 2004; Hipólito et.al,2003.) produzindo uma demanda que vem
justificando as políticas de formação e certificação .
Diante de tantas exigências e de inúmeras dificuldades, as professoras
colocam em jogo diversos mecanismos de defesa para preservar sua saúde, como
são os esquemas de inibição da rotina ou o absentismo trabalhista e, no caso aqui
apresentado, no alto consumo de medicamentos. Entretanto, ao mesmo tempo em
que percebemos o compromisso com o cuidado e com a educação de crianças
pequenas, também percebemos momentos de desânimo causados pela
desvalorização salarial e pelas condições precárias de trabalho, talvez
potencializando o próprio adoecimento de muitas delas.
O alto consumo de medicamentos está cada vez mais se imiscuindo no
processo de trabalho docente dessas professoras. A isto estamos caracterizando
como medicamentação, que é a relação entre a adequação das professoras a
situações conflituosas do seu ofício e as tentativas de atenuar os efeitos prejudiciais
dessas condições sobre a sua saúde, através do consumo de medicamentos. As
docentes tentam através de medicação modos de aliviar os problemas que a
atividade laboral vem trazendo a sua saúde, procurando combater, o que pensam
ser, a origem de seus problemas.
Pesquisas no campo educacional (Codo, 2002; Esteve, 1999; Vieira et al.,
2009) têm mostrado que professoras vêm perdendo a vontade e o prazer em
exercer a docência e, com o passar do tempo, o desgaste tem conduzido grande
parte das profissionais a estranhar seu lugar de trabalho, seus colegas, estudantes
e sua profissão. Nesse sentido, o consumo de medicamentos está se tornando uma
busca pelo reequilíbrio e readaptação frente às intensas exigências das atividades
educativas, as inúmeras demandas e a falta de suporte social. Professoras buscam,
nos medicamentos prescritos ou não, mais que aliviar suas dores, fórmulas que
produzam disposição e energia para enfrentar a rotina diária, não somente na
escola, mas em casa e em outros espaços sociais que atravessam a profissão
docente e a vida privada.
Medicamentação então se configura como um elemento presente no
processo pedagógico (e administrativo) das escolas, assim se constituindo em mais
um dispositivo de controle do professorado. Frente ao conjunto de preocupações e
desgastes físicos e emocionais no trabalho há uma mudança da conduta das
professoras, levando-as a adotar medidas emergenciais que reorganizem as
emoções, os sentimentos de inadequação e as desordens do corpo para lidar
rapidamente com as demandas do cotidiano.
De acordo a Vieira et.al. (2009) o uso de medicamentos mantém um estreito
vínculo com a ideia do magistério como sacrifício - abandono e renúncia de si -,
haja vista que muitas docentes dispensam licenças de saúde ou mesmo adiam
cirurgias para finalizar o ano letivo, fechar avaliações, cumprir as obrigações com
colegas de trabalho, com seus alunos e com a escola, tornando a medicação um
componente cada vez mais constituinte do processo de trabalho.
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MEDICALIZAÇÃO DA ANORMALIDADE: FORMAS DE CONDUZIR A CONDUTA DOS SUJEITOS NA CONTEMPORANEIDADE
Kamila Lockmann – UFRGS/FURG1 Letícia Farias de Caetano - FURG2
Este texto apresenta um recorte de uma investigação que analisa os efeitos produzidos pelo saber médico nos sujeitos incluídos nas escolas contemporâneas. A partir da perspectiva pós-estruturalista e de algumas contribuições do pensamento foucaultiano analisamos um conjunto de fichas de encaminhamentos que são preenchidos por professores para encaminhar o aluno a algum atendimento especializado. Tais documentos reúnem um conjunto de discursos que descreve os comportamentos dos alunos, classificando-os e posicionando-os por meio dos diagnósticos produzidos. Além disso, esse material também expressa as intervenções desenvolvidas sobre os sujeitos escolares com o intuito de corrigir suas condutas indesejáveis. Como complemento aos discursos materializados nas fichas, realizamos entrevistas semiestruturadas com professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental de um Munícipio da Região Metropolitana de Porto Alegre-RS. Tais análises nos permitem evidenciar duas operações que o saber médico coloca em funcionamento: nomeação e normalização da anormalidade. A primeira delas desenvolve uma série de saberes sobre os sujeitos infantis com o intuito de classificá-los, descrevê-los e diagnosticá-los. A segunda desenvolve procedimentos de normalização dos sujeitos escolares, preponderantemente, aqueles vinculados à medicalização. A partir dessas discussões pretendemos mostrar como a medicina – relacionada tanto com a escola, quanto com a inclusão – pode ser compreendida como uma estratégia biopolítica que pretende gerenciar ou prevenir os riscos que a anormalidade pode causar aos sujeitos e à população.
Palavras-Chave: Inclusão Escolar; Medicalização; Normalização.
Não é por acaso que a necessidade de diagnosticar os alunos a partir dos seus
supostos desvios, ou de medicalizá-los, acompanha boa parte dos discursos
educacionais e está presente nas práticas escolares atuais. Podemos dizer que a
medicina foi, pouco a pouco, se inserindo nas discussões escolares e tentando
explicar as formas de desenvolvimento, aprendizagem e comportamento
apresentadas pelos alunos. Segundo Moysés (2008, p. 4), “aprendizagem,
comportamento e inteligência são apenas exemplos de questões que são
incorporadas ao pensamento e à atuação médicos.” Atualmente a presença do saber
1 Mestre e Doutoranda em Educação pela universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Pesquisadora integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Inclusão (GEPI/UNISINOS/CNPQ) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação da Infância (NEPE/FURG/CNPQ). 2 Graduanda do Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Educação da Infância (NEPE/FURG/CNPQ).
médico na escola é marcada por meio da produção de saberes sobre os sujeitos, que
através de laudos, diagnósticos ou classificações descrevem os alunos, suas
dificuldades de aprendizagem, desenvolvimento ou comportamento. Além disso, o
saber médico também se faz presente por meio de procedimentos de normalização,
notadamente aqueles vinculados à medicalização da “anormalidade”, ou seja, a tudo
aquilo que escapa, que foge, que desvia do padrão de normalidade inventado pela
ciência moderna.
Dessa forma, este artigo apresenta um recorte de uma pesquisa que analisa os
efeitos produzidos pelo saber médico nos sujeitos incluídos nas escolas regulares.
Para isso, analisamos alguns discursos coletados em 186 fichas de encaminhamento3
e em entrevistas semiestruturadas realizadas com alguns professores da Rede
Municipal de Ensino de uma Cidade da Região Metropolitana de Porto Alegre/RS. Tais
discursos descrevem as anormalidades dos sujeitos e não raramente receitam-lhes
medicamentos, tratamentos, ou demais intervenções que produzam efeitos
normalizadores nas formas de viver no mundo contemporâneo. A partir da análise dos
discursos selecionados, foi possível observar duas operações diferentes, mas
articuladas entre si, que o saber médico coloca em funcionamento. A essas operações
chamamos “nomeação e normalização da anormalidade”. Na primeira delas, que
abordaremos mais rapidamente, encontramos laudos e diagnósticos sobre os alunos
que tem o objetivo de nomear, de classificar, de enquadrar os sujeitos de acordo com
um aparato de saber médico que os define como normais ou anormais. Na segunda
podemos visualizar procedimentos de normalização dos sujeitos escolares,
preponderantemente, aqueles vinculados à medicalização. A partir dessas discussões
pretendemos mostrar como a medicina – relacionada tanto com a escola, quanto com
a inclusão – pode ser compreendida como uma estratégia biopolítica que pretende
gerenciar ou prevenir os riscos que a anormalidade pode causar aos sujeitos e à
população. É, portanto, uma tecnologia que age por meio dos processos
normalizadores do sujeito para atingir o plano coletivo e desenvolver mecanismos
controladores/ regulamentadores da sociedade. É preciso agir sobre cada indivíduo
para conseguir alcançar o governo no plano da população. Foucault (2008, p. 63)
3 Essas fichas de encaminhamento apresentam algumas perguntas elaboradas pela equipe da Secretaria de Educação do referido município e devem ser preenchidas pelos professores e coordenadores pedagógicos das escolas, quando desejam encaminhar alunos a algum atendimento especializado, tais como: psicologia, psicomotricidade, dançaterapia, psicopedagogia, arteterapia, fonoaudiologia, neurologia e ecoterapia.
destaca que “A população é pertinente como objetivo, e os indivíduos, os grupos de
indivíduos, a multiplicidade de indivíduos, [...] o serão simplesmente como
instrumento, relevo ou condição para obter algo no plano da população”. Assim, a
biopolítica é uma tecnologia que inaugura novos mecanismos de intervenção do poder
e extração de saber, com a intenção de governar a população e os fenômenos
produzidos pela vida na coletividade.
A nomeação e a normalização dos sujeitos escolares
Atualmente podemos dizer que a presença de saberes da área psi e da área
média encontram-se em evidência no interior das instituições de ensino. O desvio de
comportamento, por mínimo de seja, causa estranhamento, incômodo e por isso, há
a necessidade de tornar tais sujeitos conhecidos, nomeados, diagnosticados e
corrigidos, garantido assim a segurança da população por meio da manutenção e da
produção da “normalidade”. Parece que podemos visualizar alguns deslocamentos no
papel e na atuação da escola na Contemporaneidade. O espaço pedagógico parece
perder seu lugar e função no interior da instituição escolar, transformando-se num
grande laboratório clínico e terapêutico. A ênfase disciplinar sempre presente na
Escola Moderna engendra-se com novas lógicas de controle da população e aquilo
que não pode ser corrigido através do disciplinamento dos corpos, passa então a ser
moldado e normalizado pelo o uso da medicação. Os saberes e procedimentos
médicos tornam-se mais uma ferramenta de governamento utilizada no espaço
escolar e a justificativa pela não aprendizagem é respaldada por diagnósticos
prescritivos. Tais prescrições acabam por definir e estabelecer o grau de capacidade
dos sujeitos considerados “anormais”, delimitando o grau de potencialidade, assim
como os investimentos pedagógicos desenvolvidos sobre eles.
A prevenção de desvios comportamentais tornou-se uma tática econômica. É
necessário identificar os sujeitos com comportamentos indesejáveis, agressivos,
agitados, que não respeitam as regras determinadas, para que seja possível agir
sobre eles com o objetivo de gerenciar riscos futuros que eles podem produzir para si
e para a sociedade. Vale lembrar que não são apenas os casos de hiperatividade que
são considerados inadequados e interpelados no/pelo espaço escolar; também os
sujeitos ditos “lentos”, distraídos são considerados um risco para a ordem social, pois
são sujeitos improdutivos e incapazes de gerir sua própria vida, causando assim, um
prejuízo para a sociedade. Estes sujeitos também devem ser conhecidos,
classificados, diagnosticados e corrigidos a partir de intervenções psicológicas,
terapêuticas e medicamentosas que vemos circular e se proliferar nas escolas
atualmente.
A partir dessas discussões adentramos no material empírico e destacamos
excertos das fichas de encaminhamento analisadas que nos permitem perceber a
primeira operação anunciada anteriormente: a nomeação dos sujeitos anormais. Os
excertos a seguir mostram a forma como os sujeitos escolares são classificados,
descritos e posicionados pelas redes de saber e de poder que instituem as práticas
da escola moderna.
Apresenta distúrbios de comportamento (Documento 2), Tem hiperatividade (Documento 3), O menino tem retardo mental (Documento 4), O aluno é portador da síndrome do X frágil (Documento 5), Tem crises convulsivas – Epilepsia (Documento 6), A aluna tem problemas de visão e diabetes (Documento 7), Tem síndrome de Down (Documento 8), Teve asma e refluxo desde bebê, bem como problemas de oxigenação (Documento 9), Suspeita-se de hiperatividade. (Documento 10).
A prescrição de laudos e diagnósticos, como os apresentados acima, ou a
descrição das diversas anormalidades dos sujeitos, tais como os distúrbios de
comportamento, síndromes diversas e problemas de saúde, passam a compor o
campo de atuação e de intervenção do saber médico, definindo as dificuldades e
potencialidades dos sujeitos escolares e produzindo novas intervenções no campo
pedagógico. Tais definições e prescrições precisam ser problematizadas. Com isso
não queremos marcar uma postura contrária à produção dos diagnósticos, como se
eles não oferecessem ferramentas produtivas para o desenvolvimento do trabalho na
escola. Como aponta Freitas (2009, p. 19),
O conceito de diagnóstico pode trazer inúmeras conformações, dependendo da teoria e/ou do tempo histórico em que se constitui. Um diagnóstico elaborado com cuidado é interessante e necessário. O diagnóstico é importante para poder tratar, mas existem outros que selam, que aprisionam. É o modo de usá-lo que estabelece sua pertinência, ou mesmo sua inconveniência. O que é necessário combater é o uso irresponsável do diagnóstico. O diagnóstico traduzido em rótulo desencadeia dispositivos de armadura.
Sendo assim, reconhecemos a importância do diagnóstico para que se possa
conhecer melhor o sujeito, suas formas de aprender e se relacionar e, a partir disso,
propor práticas pedagógicas mais adequadas e eficazes ao seu desenvolvimento.
Porém, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que, em muitas ocasiões, o
diagnóstico produz um rótulo, atribui uma marca ao sujeito. É preciso compreender
que historicamente o saber médico vem ocupando um espaço de legitimidade e de
cientificidade e, quando produz um diagnóstico sobre os sujeitos, também está, ao
mesmo tempo, produzindo determinadas verdades sobre eles, conferindo-lhes uma
série de características, estabelecendo níveis do seu desenvolvimento, limitações
para a sua aprendizagem, assim como fazendo prescrições para a sua própria vida.
O questionável é justamente a forma como, muitas vezes, o saber médico
delimita os progressos, o crescimento e o desenvolvimento daquelas crianças
diagnosticadas. Problematizar essas questões não significa dizer que o saber médico
não tem importância, ou, ainda, conferir-lhe uma negatividade. Não pretendemos
produzir um juízo de valor posicionando o saber médico como bom ou ruim à
humanidade, ou à própria escola; no lugar disso, marcamos uma postura de suspeita
sobre esses determinismos que, muitas vezes, ele produz. Mais do que isso, muitas
vezes, ele limita o nosso olhar sobre o sujeito e, principalmente, sobre aquilo que
acreditamos que ele possa produzir ou aprender. Ou seja, passa-se a olhar muito mais
para o diagnóstico, para a doença e não tanto para o sujeito e suas possibilidades.
Portanto, é preciso entender que a “nomeação” dos sujeitos, muitas vezes, posiciona-
os como incapazes, não aprendentes, ou com dificuldades de aprendizagem.
Além disso, a “nomeação” vem acompanhada por uma “normalização”,
expressão que utilizamos para referir a segunda operação que o saber médico coloca
em funcionamento.
É nesse ponto que se torna possível perceber a articulação existente entre toda
essa produção de saberes sobre os anormais4, as técnicas de normalização
efetivadas e as estratégias biopolíticas. Primeiramente é preciso desenvolver todo um
aporte científico que torne esses sujeitos observáveis e explicáveis. A primeira
operação é tornar conhecido, nomear, descrever, categorizar, classificar para que, só
então, sua diferença possa ser capturada, regulada, governada. Essa primeira
operação –nomeação da anormalidade– é condição fundamental para que se possa
atuar sobre esses sujeitos, governando sua diferença, sua anormalidade.
4 Utilizamos o termo “anormais” [...] para designar esses cada vez mais variados e numerosos grupos que a modernidade vem, incansável e incessantemente, inventando e multiplicando: os sindrômicos, deficientes, monstros e psicopatas (em todas as suas variadas tipologias), os surdos, os cegos, os aleijados, os rebeldes, os pouco inteligentes, os estranhos, os GLS, os “outros”, os miseráveis, o refugo enfim (VEIGA-NETO 2001, p. 105). Sabemos que tal expressão causa incômodo e perturbação, principalmente a partir da invenção de uma série de palavras consideradas politicamente corretas para tal finalidade. Porém, o fato é que essas palavras, sensíveis ou grotescas, suaves ou rudes, ao referirem tais sujeitos, estão colocando-os num constante processo de comparabilidade com a norma, e esse processo não tem nada de inocente, pois compara, classifica e posiciona os sujeitos em lugares diferenciados.
Conhecendo-os, produzindo saberes sobre suas doenças, suas dificuldades, suas
possibilidades; é possível intervir de forma mais eficaz para regular suas formas de
ser, de agir e de se conduzir no mundo. É através dessas intervenções, que se torna
possível prevenir ou pelo menos reduzir os riscos e perigos que tais sujeitos –
anormais –trazem a população e a si próprios. Eis, portanto, a medicina atuando como
uma estratégia biopolítica que objetiva reconduzir os fluxos desviantes, extinguindo,
diminuindo ou prevenindo a ameaça que esses sujeitos produzem à sociedade.
Nos excertos apresentados a seguir, pode-se observar algumas estratégias
desenvolvidas pelo saber médico para atuar sobre os sujeitos anormais.
Tomou Tegretol por dois anos. Nunca teve convulsões. (Documento 11). Portador de deficiência auditiva, usa aparelho em decorrência da meningite. (Documento 13). Ele toma medicação. Ele tomava dois Gardenal e agora a médica achou melhor reduzir pra meio e eu já sinto que ele aumentou o nível de ansiedade dele. (Entrevista 3, 15/09/ 2009). Toma clorpriomazina. Tem acompanhamento com psiquiatra. (Documento 15). Ele frequenta neurologista, uma vez por mês, toma medicação. (Entrevista, 15/09/ 2009). Faz acompanhamento com neuropediatra em POA e toma medicação. (Documento 16).
A ingestão de medicamentos dos mais variados tipos, o uso de aparelho
auditivo, assim como as consultas sistemáticas e o acompanhamento por
neurologistas, constituem-se em técnicas de normalização desenvolvidas pela
medicina e monitoradas pela escola com o objetivo de controlar esses sujeitos,
aproximando-os ao máximo do normal. São, portanto, técnicas de normalização a
serviço de uma estratégia biopolítica. Segundo Foucault (2008, p.82-83), “a operação
de normalização vai consistir em fazer essas diferentes distribuições de normalidade
funcionarem umas em relação às outras e em fazer [...] que as mais desfavoráveis
sejam trazidas às que são mais favoráveis”. Ou seja, pode-se notar que o saber
médico opera justamente com esse intuito de ajustar, corrigir e normalizar, formas de
ser, de se comportar ou de aprender que se apresentam como desviantes ou
indesejáveis. Para isso, ele utiliza diferentes técnicas, entre elas: consultas,
acompanhamentos sistemáticos e o uso de variados medicamentos. Essas técnicas
são voltadas ao indivíduo particular, mas atingem um plano coletivo.
Os medicamentos são utilizados como uma forma química de conduzir as condutas dos sujeitos, acalmando, concentrando e melhorando suas possibilidades de estabelecer um convívio social mais adequado. A medicina, com seus saberes e instrumentos diferenciados, age sobre cada indivíduo que se constitui como um risco para o restante da população. Por meio do saber médico, moldam-se condutas e normalizam formas de ser, corrigindo-se e adequando-se os sujeitos para a vida em sociedade. (LOCKMANN; TRAVERSINI, 2011, p. 48).
Regulando as formas de ser dos sujeitos, seja mediante consultas
sistemáticas, seja pelo uso de medicamentos, previnem-se os riscos que eles podem
produzir para a sociedade e para si mesmos.
Há, na atualidade, pode-se dizer uma proliferação do uso de medicamentos
para os mais variados fins. É necessário atentar para o uso bastante corriqueiro que
tem sido atribuído a medicamentos como Ritalina, por exemplo. Depressão,
hiperatividade, déficit de atenção, distúrbios de comportamento, abalos psíquicos,
entre outras, são doenças inventadas recentemente, as quais afetam a produtividade
dos alunos na escola e precisam ser gerenciadas e/ou medicalizadas através do saber
médico. O fato é que muitas crianças são taxadas como hiperativas ou com Transtorno
do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) por se mostrarem agitadas, inquietas
ou, até mesmo por não se interessarem pelas aulas, anunciando assim uma falta de
atenção ou de concentração, conforme o esperado para sua idade.
Freitas (2009) aborda o fenômeno do TDAH como uma epidemia deste tempo,
visto que tem atingido um número crescente de crianças em idade escolar. A autora
destaca que “[...] desde há muito tempo fala-se em crianças com TDAH, mas nas
últimas duas décadas há uma diferencial de intensidade.” (FREITAS, 2009, p. 15).
Ainda considerando essa discussão, Caliman (2006) argumenta que a linha que
separa o indivíduo com TDAH do sujeito normal é bastante tênue. Em suas palavras:
Até o momento, nenhum teste ou exame específico e preciso para a “identificação” do TDAH foi definido. Seu diagnóstico continua sendo feito através de um processo misto que inclui testes psicológicos, história clínica, análise do desempenho escolar, entrevistas com pais e professores etc. (CALIMAN, 2006, p. 75).
A autora relata ainda que toda essa tecnologia de observação e descrição dos
comportamentos, da atenção e dos interesses das crianças, são as de maior valor na
construção do diagnóstico: “Muitas vezes, o papel do médico é apenas analisar todo
esse material e confirmar o diagnóstico. Mas, em outros casos o diagnóstico é
explicitamente rejeitado pelo médico.” (CALIMAN, 2006, p. 76). Em vista disso, a
descrição de professores, de psicopedagogos, da família, ou o preenchimento de
questionários, em nosso entendimento, bastante subjetivos, são as ferramentas que
permitem ao saber médico posicionar essas crianças como normais ou anormais, a
partir do seu enquadramento ou não nos padrões bem definidos da normalidade. Seus
comportamentos, suas formas de agir e de se comportar na escola são capturados e
analisados pelo saber médico, que rapidamente encontra em diferentes
medicamentos a solução para o problema que elas representam para a escola, para
sua aprendizagem e para o próprio convívio social. Algumas delas representam uma
ameaça passageira, e suas diferenças podem ser corrigidas em um período
determinado. Porém outras são fatores permanentes, que acompanham tais sujeitos
no decorrer de sua vida. Tem-se aqui, pode-se dizer, um exemplo de como a medicina
pode funcionar, dentro da própria escola, como uma ferramenta de controle social,
acalmando, concentrando ou alegrando corpos e mentes que escapam da
normalidade. Dessa forma, podemos entender a medicina como uma estratégia
biopolítica que encontra na escola um importante mecanismo para a sua efetivação.
No excerto a seguir, podemos perceber o uso do medicamento como um instrumento
de controle do corpo, de seu comportamento e de suas atitudes.
Eu acho que ele precisa de um remedinho. Ele é muito agitado, o nível de ansiedade dele é muito grande. Se ele tomasse um remédio acredito que ele ia se acalmar, conseguir se concentrar melhor e com isso aprender melhor. (Entrevista 2 13/09/2009).
A partir da fala citada acima, é possível notar o quanto o uso de medicamentos,
com a finalidade de moldar as condutas dos sujeitos, acabou não só se proliferando
no interior das escolas, mas também se banalizando. Pode-se dizer que, quando as
demais técnicas de disciplinarização dos corpos fracassam com determinados
sujeitos, recorre-se ao uso de medicamentos que acalmam, concentram e disciplinam
os alunos agitados, inquietos, hiperativos, agressivos, entre outros. Para usar uma
expressão de Bujes os alunos passaram a ser quimicamente disciplinados. Segundo
a autora (2006, p. 226),
Para essas crianças, nem o confinamento, nem a vigilância têm sido suficientes, os controles do tempo e sua fixação no espaço da sala de aula têm se revelado inoperantes. O encaminhamento a especialistas em terapias da área médica e psicológica tem sido a solução preconizada. Em muitos casos, o diagnóstico especializado e a intervenção medicamentosa se tornam a saída proposta. O aluno passa desta condição para a de paciente. Faz-se neste caso a transposição de uma lógica que se poderia chamar até agora de disciplinar para uma outra. [...] uma forma de impor uma ação inibitória ou estimuladora da conduta, através de um fármaco que age sobre o sistema nervoso central.
Ou seja, os medicamentos atuam como um instrumento de condução da
conduta dos sujeitos, de modulação, de regulação e contenção. Formas essas de
governamento dos sujeitos, anteriormente desenvolvidas pelo disciplinamento. “Essas
drogas prometem aumentar as capacidades de concentração, de memória e de
atenção necessárias ao desenvolvimento da performance produtiva.” (CALIMAN,
2006, p. 77). Dessa forma, pode-se entender que estamos todos inseridos em uma
lógica da seguridade, onde os sujeitos que se constituem como ameaças a ordem
pública precisam ser medicalizados e contabilizados a partir de um diagnóstico. Tais
práticas, de nomeação e normalização funcionam para minimizar o risco (da
improdutividade, da violência, das condutas inadequadas, da desordem, do caos) que
tais sujeitos produzem e garantir a seguridade do restante da população.
Alguns apontamentos finais
Com o intuito de desacomodar o que está sendo naturalizado pelo discurso
contemporâneo, as discussões levantadas neste texto trazem algumas
problematizações pelo uso exacerbado de medicamentos que circulam no âmbito
escolar, que deve ser, no mínimo, repensado; servindo de alerta para pais e
educadores. Sem reducionismos ou binarismo, estamos querendo contribuir para
repensar sobre algumas práticas que ocorrem nas escolas, que tem, cada vez mais
se afastando do âmbito do trabalho pedagógico e se aproximado de âmbitos da
medicina, da psicologia, da assistência social, etc. Ao propor essas problematizações,
não estamos anulando a capacidade das intervenções médicas ou desconsiderando
a necessidade da parceria que deve existir entre escola e setores especializados.
Apenas gostaríamos de alertar sobre os efeitos que essas práticas, podem causar no
só sobre os sujeitos escolares, mas também sobre o próprio papel da escola que
acaba priorizando, muitas vezes, uma variedade de atendimentos especializados e
esmaecendo o principal compromisso dessa instituição que deve girar em torno da
educação desses sujeitos e não da sua correção e/ou normalização.
Os saberes produzidos sobre os sujeitos e a regulação dos comportamentos
escolares tornou-se uma ferramenta de controle social, que tem na escola, um espaço
importante para a sua execução. Patologizar o comportamento dos alunos
considerados inadequados à ordem social tornou-se fundamental para poder agir
sobre estes sujeitos, trazendo-os o mais próximo possível dos padrões de
normalidade inventados. Antes de buscar a cura, a normalização e a adequação
desses sujeitos a determinados padrões pré-estabelecidos é preciso que a escola
abra possibilidades para se trabalhar com a diferença, com o outro, com o inesperado,
com o não planejado, com o desconhecido. É preciso reinventar as práticas
pedagógicas, planejando um currículo que abarque diferentes formas de aprender, de
ser, de conviver e afaste-se desse sonho moderno e ilusório da mesmidade. Eis um
grande desafio: criar intervenções pedagógicas positivas que escapem da prescrição
e da busca pela normalização. Estas sim, são práticas que parecem não apresentar
nenhuma contraindicação.
Referências Bibliográficas
BUJES. Maria Isabel Edelweiss. Uma infância inquieta? Portugal: Agosto/Setembro, 2008. Nº 181. Disponível em: http://www.apagina.pt/?aba=7& user=Maria%20Isabel%20Edelweiss%20Bujes&mid. Acesso em 04 abr. 2013.
CALIMAN. Luciana Vieira. A Biologia Moral da Atenção: a constituição do sujeito (des)atento. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006.
FOUCAULT. Michel. Nascimento da Biopolítica: curso no Collège de France: 1978 - 1979. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FREITAS. Cláudia Rodrigues de. Corpos que não param: criança, TDAH e escola. (2009) Proposta de Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.
LOCKMANN. Kamila; TRAVERSINI. Clarice Salete. Saberes Morais, Psicológicos, Médicos e Pedagógicos e seus Efeitos na Inclusão Escolar. In: THOMA, Adriana da Silva; HILLESHEIM. Betina. Políticas de Inclusão: gerenciando riscos e governando as diferenças. Santa Cruz do Sul, RS: Edunisc, 2011.
MOYSÉS. Maria Aparecida Affonso. A institucionalização invisível: crianças que não aprendem na escola. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2001.
1
Na contramão da medicalização: relato de experiência na escola
Cláudia Silva de Souza - Escola de Educação Básica da UFU
Gabriela Martins Silva - Escola de Educação Básica da UFU
Este estudo é fundamentado na perspectiva crítica em Psicologia escolar e
apresenta alguns dos desafios da escola mediante os processos de medicalização
vividos em nossa sociedade. Na contramão da medicalização, apresentamos o relato
de uma experiência ocorrida numa escola de educação básica mediante a
sistematização de queixas referentes a um aluno de sétimo ano do ensino
fundamental, a partir das quais foram realizadas várias intervenções
psicoeducacionais no sentido de esclarecer, contextualizar e implicar todos os sujeitos
participantes no processo de escolarização para a criação e elaboração de novas
compreensões e, consequentemente, novas estratégias para lidar com as dificuldades
enfrentadas.
Na contramão da medicalização é como muitos profissionais da área da
Psicologia Escolar vêm se sentindo ultimamente com a ampla divulgação de
terminologias psiquiátricas na sociedade, num fenômeno capaz de produzir
atribuições individuais, de cunho biologizante e psicologizante a fenômenos que são
eminentemente produzidos socialmente, nas relações entre as pessoas, no modo de
conviver e estabelecer significados e sentidos.
Tal processo tem sido fortemente divulgado nas mídias, sobretudo as
televisivas, o que tem provocado nas pessoas um movimento de busca por
diagnósticos médicos/psicológicos frente aos problemas sociais. Ademais, conforme
aponta Aguiar (2003), há um movimento da chamada Psiquiatria Biológica que tem
triunfado nas universidades, na mídia e na sociedade, em que se busca explicar os
transtornos mentais por meio de causas biológicas, caracterizando um reducionismo
biológico da própria psiquiatria. Assim, as pílulas têm ganhado espaço nas residências
de muitos consumidores, a partir de rótulos tais como hiperativos, depressivos,
bipolares, ansiosos e uma infinidade de denominações oriundas dos manuais de
psiquiatria que, a cada atualização, aumentam o volume dos transtornos
diagnosticáveis.
2
Ademais, a tendência em naturalizar problemas de ordem social é reforçada
pelo crescente interesse pelo estudo do cérebro e o avanço da genética (Eidt e
Tuleski, 2007). Concordamos com as autoras quando afirmam:
“Essas práticas evidenciam um processo de alienação vigente na própria
ciência, na medida em que alguns pesquisadores e profissionais
desconsideram os múltiplos fatores que têm determinado o surgimento
de novas doenças – ou o aumento vertiginoso de patologias já
conhecidas – deslocando o foco de análise de questões sociais,
econômicas e educacionais, unicamente para o plano individual e
orgânico” (Eidt e Tuleski, 2007, p.232).
É claro que muitas situações demandam tratamento medicamentoso, mas a
grande inquietação do movimento oposto à medicalização é referente à transformação
de questões dinâmicas e processuais em categorias estáticas, reificando
determinados comportamentos que passam a ser considerados sintomas
cristalizados, perdendo-se a singularidade dos fenômenos e a busca por caminhos
que potencializem o ser humano. “A medicalização desloca problemas coletivos para
a esfera do individual; problemas sociais e políticos para o campo médico. E o que
significam esses deslocamentos? A biologização e, consequentemente, a
naturalização desses problemas” (Moysés e Collares, 2006, p. 14).
O processo de medicalização chega às escolas como desafios, sobretudo,
quando as dificuldades encontradas nas relações sociais são encaminhadas aos
consultórios médicos enquanto problemas individuais, retornado à escola com
terminologias que definem um quadro de sintomas, passível de ser tratado a partir de
medicação. A este mecanismo, geralmente, soma-se a culpabilização de alunos que
acabam por perceberem a si mesmos como a única fonte geradora dos problemas
que lhes são acometidos e sua consequente estigmatização (Patto, 1990; Patto,
1984).
As práticas cotidianas demonstram que o paradigma médico e individualizante
prevalece na compreensão de grande parte dos problemas escolares. Contudo, “a
esse paradigma, contrapõe-se um outro, em que o social é concreto, histórico,
construído pelos homens, portanto mutável; nele, o processo saúde-doença é
apreendido como resultante da inserção social das pessoas, da qualidade (ou falta
3
de) em suas vidas” (Moysés e Collares, 2006, p. 14 e 15). Neste enfoque, a
perspectiva crítica em Psicologia escolar tem dado suporte aos profissionais que
vivenciam este fenômeno em sua atuação profissional, com subsídios teóricos que
contribuem na compreensão das dificuldades do processo de escolarização e
apontam para práticas que levam em consideração os fatores psicossociais
constituintes deste processo (Souza, 2007; Souza, 2000; Tanamachi e Meria, 2003)
Tal aporte direciona o profissional ao esclarecimento, contextualização e implicação
de todos os sujeitos envolvidos no processo de escolarização para o enfrentamento
das queixas. É nesta direção que apresentamos este relato de experiência.
Desenvolvimento
No presente trabalho abordamos uma experiência ocorrida numa escola de
educação básica federal, em que a queixa referente a um aluno de sétimo ano do
ensino fundamental se configurou como: agitação constante, dificuldade em ouvir o
outro e esperar a sua vez de falar, brincadeiras inconvenientes em sala de aula,
contínuo envolvimento em atividades não permitidas pelas regras da escola, atitudes
impulsivas mediante os grupos de trabalho, dentre outros aspectos.
Vale ressaltar que a escola em que tal experiência ocorreu conta com uma
equipe de psicólogos escolares que realizam várias ações junto aos professores,
alunos e familiares. No tocante ao caso aqui apresentado, as ações buscaram
envolver todos esses atores. Junto ao aluno, a psicóloga escolar realizou orientações
visando compreender o modo como ele percebia as situações, bem como suas
concepções sobre o ensino e a aprendizagem, procurando acordos e incitando ao
diálogo.
Junto aos pais foram feitas entrevistas para esclarecer e explicar os fatos,
discutir as possiblidades de colaboração e entendimento, implicando-os também no
processo de compreensão das queixas e busca de alternativas e parceria para a
adoção de novas posturas mediante os comportamentos reincidentes do aluno.
Além disso, foram promovidos encontros entre equipe pedagógica,
professores, família e aluno para realizar acordos com relação à adoção de posturas
e atitudes em prol da melhoria do processo ensino-aprendizagem do aluno, em sua
condição de sujeito singular.
4
Dentro das ações realizadas, vale destacar a coordenação de reuniões
coletivas com os professores que trabalhavam no mesmo ano de ensino do aluno em
questão, uma prática corrente da área de psicologia escolar da referida escola, que
merece destaque, dada sua importância para o caso. Os diálogos realizados junto aos
docentes do aluno buscou construir, junto ao grupo, um conjunto de ações para lidar
com a situação apresentada.
Ao longo dos encontros de diálogo, em que tratávamos várias outras questões
referentes ao processo ensino-aprendizagem das turmas, tínhamos o momento em
que analisávamos a situação específica apresentada nas relações entre professores
e aluno. A psicóloga escolar desempenhava a função de coordenação das reuniões e
mediação dos demais encontros entre os atores educacionais, além de trabalhar na
investigação de elementos que somassem para melhor contextualizar as queixas e
proceder nos encaminhamentos a partir delas gerados.
A princípio, as queixas apresentadas pelos docentes com relação ao
comportamento do aluno eram pontuais, mas a elas agregaram-se novas situações
que, paulatinamente, se apresentavam e se avolumavam nas narrativas docentes, o
que denotava a complexidade da situação e a necessidade de agirmos a partir de um
esforço conjunto. Nesse sentido, precisávamos cuidar para que estes últimos
aspectos não fossem negligenciados e o espaço de reuniões coletivas gerava
oportunidades para a apresentação e compreensão das questões de ensino-
aprendizagem, por meio de diálogos que foram avançando até o momento em que o
grupo compreendeu a importância de se adotar estratégias coletivas, baseadas em
princípios comuns, que pudessem auxiliar o processo relacional inerente à prática
pedagógica.
Deste modo, foram feitos vários combinados no sentido de trabalhar a conduta
docente frente os comportamentos apresentados pelo aluno. No decorrer dos
encontros, várias hipóteses foram consideradas: a necessidade de impor limites ao
aluno; a importância de incentivá-lo quanto ao seu esforço em cumprir os acordos,
adotando atitudes positivas; a tomada de algumas medidas disciplinares na tentativa
de modificar a postura do aluno com relação aos seus comportamentos; o manejo de
situações para não expô-lo mais do que ele o fazia por si mesmo; o cuidado para
evitar que a turma o isolasse; a constante busca de garantir um ensino de qualidade
para todos, o que exigia que as aulas transcorressem bem, sem interrupções
frequentes, dentre outras.
5
Nesta situação específica, percebíamos que não se tratava de um problema
pontual, facilmente resolvido com algumas mudanças na conduta pedagógica ou de
orientação ao aluno e/ou seus familiares. Conversas individuais, orientações e
encaminhamentos para o registro de ações indisciplinadas foram realizados, no
entanto, percebiam-se mudanças momentâneas no comportamento do aluno, mas
que duravam pouco tempo, exigindo-se que o corpo docente rediscutisse as questões
e adotasse novas estratégias em sala.
Nos momentos de discussão do caso deste aluno, com frequência era aventada
a possibilidade do aluno “ser hiperativo” hipótese esta que sempre que surgia nas
reuniões por meio de perguntas ou comentários como: “esse menino é hiperativo,
precisa de remédio!”; “mas ele não tem hiperatividade?”, era discutida pela psicóloga
escolar que procurava incitar o grupo a contextualizar as dificuldades, a buscar
estratégias coletivas e a se corresponsabilizar pela situação dada naquele momento.
Ressalta-se que o movimento de compreensão da queixa oscilava na medida em que
as várias tentativas que a equipe realizava não encontravam solução permanente e,
por isso, a hipótese de que o problema era a hiperatividade do aluno foi muitas vezes
apontada como a causa das dificuldades enfrentadas na escola.
Assim, buscamos os registros sobre a história do aluno nos arquivos da escola
para ampliarmos a compreensão das questões psíquicas e pedagógicas relacionadas
ao aluno e levantarmos aspectos importantes para a contextualização do seu
processo de escolarização. Os arquivos constavam que no início do ensino
fundamental houve a solicitação de avaliação neuropsicológica, por parte da equipe
docente que considerava o aluno como um “menino hiperativo”. O aluno foi
encaminhado para tal avaliação, não havendo, porém, caracterizado nenhuma
espécie de transtorno ou laudo por parte do médico especialista que avaliou a criança.
Tal informação foi recebida pela psicóloga escolar com certo alívio, uma vez que os
laudos médicos se constituem instrumentos de poder e que costumam influenciar
bastante as condutas humanas, especialmente em situações como esta, em que os
vários recursos utilizados mostravam-se insuficientes para a tão esperada “resolução
do problema” (Barbarini, 2011).
A psiquiatra França (2012) expõe que o diagnóstico de TDAH é controverso,
baseado em sintomas e propenso a transformar questões escolares em distúrbios
mentais e corporais dos alunos, ou mesmo transformar situações de vida envolvendo
perdas, sofrimentos em doenças. A autora ressalta que “esse diagnóstico não traz
6
benefícios à criança, pois encerra-se em si mesmo, dá a falsa impressão de que
estamos entendendo o que se passa com ela, tranquiliza pais e professores, mantém
a criança parcialmente atendida (por vezes desatendida), muitas vezes estigmatizada.
É um diagnóstico que privilegia os sintomas e não a função deles” (p. 197).
Neste sentido, destacamos o cuidado necessário para profissionais do campo
da educação e da saúde no tocante à utilização de termos que definem “quadros”,
“sintomas”, “síndromes” na vida das crianças e adolescentes, o que, conforme aponta
Diniz (2013, p. 6), “muitas vezes sela irremediavelmente um destino” devido ao poder
de significação oriundo deste processo de nomeação de sintomas.
O TDAH na perspectiva histórico-cultural
De acordo com Eidt e Tuleski (2007, p. 236), muitos estudos e pesquisas atuais
focalizam comportamentos como indisciplina, desatenção ou falta de controle como
problemas individuais, localizando a causa dos problemas na história pessoal do aluno
ou em sua família, desconsiderando a sala de aula, as relações professor-aluno, as
questões pedagógicas e as influências sociais que perpassam o contexto escolar.
A Psicologia histórico-cultural aponta para a constituição social do indivíduo, na
qual as funções psicológicas elementares ou involuntárias originam-se em fatores
biológicos, inatos, enquanto que as funções psicológicas superiores, voluntárias, são
constituídas nas relações mediadas da criança com o outro, com o mundo, com a
cultura (Pino, 2000; Eidt e Tuleski, 2007).
A transição das funções elementares para as superiores compreende
processos educativos ou de inserção cultural, tais como o desenvolvimento de
conceitos cotidianos e científicos, mediados pela linguagem. Paulatinamente, a
criança vai adquirindo o controle das suas próprias funções psicológicas. “Assim,
todas as funções inatas e involuntárias nos primeiros anos de vida, como a percepção,
memória, atenção, volição, linguagem e pensamento, vão sendo revolucionadas pela
interação social, tornando-se funções sobre as quais o indivíduo adquire controle”
(Eidt e Tuleski, 2007, p. 238).
No que se refere à atenção, função psicológica que traduz a capacidade
humana de selecionar estímulos, foco atual dos diagnósticos de TDAH, esta “advém
ao longo deste desenvolvimento e a partir das mediações realizadas pelo meio social
7
com a criança, nos âmbitos familiar e escolar, entre outros” (Eidt e Tuleski, 2007, p.
238).
Também a vontade ou controle voluntário, ou seja, a capacidade de refrear a
satisfação imediata dos impulsos e necessidades e retardar reações imediatas a
estímulos externos é associada aos diagnósticos de TDAH, cuja origem reside na
história social do homem. Nesse sentido, “tanto a atenção quanto o controle voluntário
são funções psicológicas desenvolvidas ao longo do processo de escolarização da
criança e em sua atividade, e dependem da qualidade dos mediadores culturais
ofertados para que possam ser conduzidos a bom termo na adolescência” (Eidt e
Tuleski, 2007, p. 240).
Vale ressaltar que “no contexto escolar, a hiperatividade e/ou déficit de atenção
apresenta-se como justificativa recorrente para o fracasso escolar de um número
expressivo de crianças, atribuindo-lhes a responsabilidade pelo não-aprender e
isentando de qualquer análise o contexto escolar e social onde estão inseridas” (Eidt
e Tuleski, 2007, p. 222). Por isso, buscando evitar a reprodução deste fenômeno,
foram desenvolvidas várias ações que envolvessem a todos no processo.
Encaminhamento para psicoterapia: na contramão da contramão?
A partir das ações realizadas com o aluno, professores e familiares, decidiu-se
pelo encaminhamento do aluno à psicoterapia, concomitantemente à continuidade das
ações já realizadas. Este encaminhamento foi realizado tendo em vista que, havendo
sido realizadas várias ações de cunho coletivo para conhecer e lidar com os
problemas, percebemos que questões de caráter afetivo-emocional, relacionadas ao
vínculo do aluno com a família estavam desencadeando alguns comportamentos em
sala de aula que prejudicavam tanto a aprendizagem do próprio aluno como a dos
colegas de sala. Igualmente, compreendemos que um trabalho de acompanhamento
psicoterapêutico consistiria num apoio para que o adolescente e sua família pudessem
estabelecer novas configurações, de modo que isso refletisse também na escola.
Entretanto, numa perspectiva de crítica à culpabilização e à medicalização, o
encaminhamento para a psicoterapia individual não seria uma forma de
psicologização, nos colocando na contramão do que criticamos?
Acreditamos que a individualização, aspecto tão fundante da nossa cultura,
perpassa todas as formas de atuação contemporâneas. Contudo, consideramos que
8
a crítica à medicalização e a psicologização refere-se, justamente, à redução das
queixas e possibilidades de resolução das mesmas ao indivíduo, buscando apenas
nele causas médicas ou psicológicas para as dificuldades. Assim, em que pese o
discurso teórico sobre a possibilidade de incorrermos em equívocos mediante os
encaminhamentos de alunos à psicoterapia, dando a impressão de que concordamos
que o aluno o “portador do problema”, conforme ocorrem nos processos de
culpabilização que tanto combatemos, tal ação foi realizada dentro de um conjunto de
outras ações de caráter coletivo e contextualizador da queixa, o que nos previne de
incorrermos à psicologização.
Nesse sentido, destacamos a importância de ressaltar aos envolvidos – equipe
docente, família, aluno – a contextualização dos fatores que interferem na qualidade
do processo ensino-aprendizagem, sobretudo no que se refere à construção de novos
modos de se relacionar, tendo em vista a constituição social dos fenômenos e seu
caráter intrinsecamente relacional.
A Psicologia histórico-cultural nos aponta que os processos de
desenvolvimento e aprendizagem se constituem nas relações entre as pessoas e,
sendo assim, “as funções psicológicas superiores existem concretamente na forma de
atividade interpsíquica nas relações sociais antes de assumirem a forma de atividade
intrapsíquica” (Eidt e Tuleski, 2007, p. 224), o que torna evidente o pressuposto
vigotskiano segundo o qual é através dos outros que nos constituímos (Vigotski,
2000). Nesta perspectiva, as queixas são sempre produto de relações sociais.
A experiência apresentada, à luz dos pressupostos da Psicologia escolar crítica
nos mostra que as concepções dos educadores incidem sobre o seu modo de produzir
educação e que sendo representantes de uma perspectiva que ainda traduz o
pensamento de uma minoria que combate a medicalização, é nosso o compromisso
de conquistar espaço e reconhecimento nesta luta nos mais variados segmentos
sociais.
Considerações Finais
Este estudo ressalta os desafios enfrentados para a realização de intervenções
psicoeducacionais que se apresentem no sentido contrário à medicalização dos
problemas escolares e aponta para o papel do psicólogo escolar neste processo. O
estudo demonstra que a transformação de questões dinâmicas e processuais em
9
categorias estáticas, tais como a “hiperatividade”, permite que os comportamentos
sejam cristalizados, perdendo-se a singularidade dos fenômenos e a busca por
caminhos que potencializem o ser humano.
Nesta conjuntura, o psicólogo escolar precisa acolher as queixas como material
inicial de análise e cuidar para transformá-las dentro de um processo mais amplo,
respeitando as concepções advindas dos vários atores institucionais, mas agregando
questionamentos e outras possibilidades frente aos processos de culpabilização e
medicalização da escola.
O caso aqui relatado continua nos desafiando e incitando a novas ações. No
entanto, o modo de enfrentá-lo adquiriu novos delineamentos, passando a ganhar
mais força as ações coletivas em detrimento das individuais, o olhar e o agir para o
processo e não para os resultados e a implicação de todos como responsáveis pela
produção e enfrentamento das dificuldades apresentadas.
Palavras-chave: medicalização; escolarização; Psicologia Escolar
Referências:
Aguiar, Adriano Amaral de. (2003). Entre as ciências da vida e a medicalização da existência: uma cartografia da psiquiatria contemporânea. In Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003.
Barbarini, T. A. (2011). A medicalização da vida e os mecanismos de controle: reflexões sobre o TDAH. Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP. v.18, n.1, pp.93-115.
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França, Maria Thereza de Barros. Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH): ampliando o entendimento. In Jornal de Psicanálise 45 (82), 191-207. 2012
10
Moysés, Maria aparecida Affonso Moysés e Collares, Cecília Azevedo Lima. (2006). Medicalização: elemento de desconstrução dos direitos humanos. In Documentos do CRPRJ.http://www.crprj.org.br/documentos/2006-palestra-aparecida-moyses.pdf. Acesso em 23/05/2013. Patto, M. H. S. (1984). Psicologia e Ideologia: Uma introdução crítica à Psicologia Escolar.São Paulo: T. A. Queiroz. Patto, M. H. S. (1990). A produção do fracasso escolar: Histórias de submissão e rebeldia. São Paulo: T. A. Queiroz. Pino, Angel Sirgado. O social e o cultural na obra de Vigotski. In Educação & Sociedade, ano XXI, nº 71, Julho/00. Souza, M. P. R. (2007) Prontuários revelando os bastidores do atendimento psicológico à queixa escolar. In Souza, B.P. (Org.), Orientação à queixa escolar (pp.27-58). São Paulo: Casa do Psicólogo. Souza, M. P. R. (2000). A queixa escolar na formação de psicólogos: desafios e perspectivas. In Tanamachi, E. R., Proença, M., & Rocha, M. (Orgs.), Psicologia e Educação: Desafios teórico-práticos (pp. 105-142). São Paulo: Casa do Psicólogo. Tanamachi, E. R., & Meira, M. E. M. (2003). A atuação do psicólogo como expressão do pensamento crítico em Psicologia e Educação. In Meira, M. E. M., & Antunes, M. A. M.(Orgs.), Psicologia Escolar: Práticas críticas (pp. 11-62). São Paulo: Casa do Psicólogo. Vigotski, L. S. (2000, julho). Manuscrito de 1929. Educação e Sociedade, XXI(71), 21-44.
O cinema usado como intervenção no contexto de medicalização do social no contemporâneo
Autor:
Kwame Yonatan Poli dos Santos
Mestrando da Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual Paulista - Campus de Assis
Co-autores:
João Paulo Lustosa Balsani
Graduando em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis
Laura Basoli Graduanda em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis
Luísa Milano Navarro
Graduanda em Psicologia da Universidade Estadual Paulista – Campus de Assis Quadro conceitual
Vivemos um processo de expansão das rotulações de diagnósticos
psiquiátricos que hoje atinge pessoas das mais diversas idades. Na atualidade todos
nós estamos submetidos às estratégias de patologização das mais diversas
questões existenciais. Nesse contexto, problemáticas interdisciplinares passaram a
ser capturadas por discursos e práticas do saber-poder médico-psiquiátrico e
transformadas em psicopatologias, cujo tratamento não escapará do principal
instrumento da psiquiatria na contemporaneidade: os psicofármacos.
Percebe-se que a medicalização é um fenômeno atual que submete cada vez
mais sujeitos ao julgo médico-psiquiátrico, que considera qualquer referência aos
conflitos e sofrimentos psíquicos como algo exclusivamente de ordem biológica
(INIART E RÍOS, 2012; BRZOZOWSKI E CAPONI, 2012).
Essa dinâmica, nos dias de hoje, é consequência da banalização de
diagnósticos psiquiátricos e da generalização da prescrição de psicofármacos, o que
culminaria no fenômeno de individualização de questões da ordem social, política,
econômica, cultural, familiar e educacional referentes à infância. Processo atrelado a
valorização da concepção organicista do sofrimento psíquico que, por meio de
diversas estratégias, promovem o apagamento das diferenças e das singularidades.
O grupo de estudos e pesquisas, ”Medicalização do social no
contemporâneo”, surgiu a partir destas problematizações relacionadas ao tema da
medicalização e psicopatologização da vida. Criado após as discussões realizadas
no evento “Medicação em debate: simpósio sobre a expansão do uso de
psicofármacos” realizado no ano de 2009 na Unesp - campus Assis,São Paulo, e
que contou com a participação de mais de 200 pessoas entre estudantes,
professores e profissionais da saúde e educação. O surgimento do grupo teve como
objetivo dar continuidade ao debate e promover novos encontros e produções.
A partir das discussões suscitadas no simpósio, formou-se um grupo de
estudantes da graduação e pós-graduação em psicologia com o intuito de
aprofundar os estudos e difundir debates acerca da temática da medicalização. Com
a construção de pesquisas por meio de levantamento de dados, a produção de
trabalhos científicos, a promoção de discussões e intervenções que pudessem ser
disparadores de reflexões sobre o problema da medicalização do social e da
banalização da prescrição de psicofármacos na atualidade, o grupo conquistou
também os espaços das instituições de saúde e de educação naquele município
paulista.
Buscando ampliar e democratizar a discussão acerca dos temas estudados
em grupo e de promover discussões que não atingissem apenas os alunos
vinculados ao curso de psicologia, mas também os estudantes de outras áreas do
campus, professores e, principalmente, profissionais da saúde e educação, além da
população do município, no segundo semestre do ano de 2012 foi realizado o “I
Ciclo de Filmes e Debates sobre o processo de medicalização do social”. Com a
periodicidade de exibição de um filme por mês, foram projetados e discutidos os
seguintes filmes e documentários: “Impulsividade” (2005), “Marketing da loucura”
(2005), “Geração Prozac” (2001), “DSM - A farsa mais mortífera da psiquiatria”
(2011) e “Requiem para um sonho” (2000).
Escolhemos a experiência estética promovida pelo cinema por ela não só
condensar uma série de informações ligadas ao fenômeno da medicalização, como
também pela sua capacidade de interceder junto à afetação, à sensibilização da
temática da sistemática patologização das diferenças no contemporâneo.
A escolha dos filmes e documentários ocorreu durante as reuniões do próprio
grupo de pesquisa, que selecionou obras que pudessem sensibilizar e disparar
discussões sobre as seguintes temáticas: a patologização e medicalização da
infância, a expansão da determinação de diagnósticos psiquiátricos, a banalização
da prescrição de psicofármacos, as relações de interesse entre a indústria
farmacêutica e a medicina, bem como as relações entre as dependências químicas
provocadas tanto por drogas lícitas quanto por drogas ilícitas.
Ao final das exibições dos filmes e documentários, professores de diferentes
áreas de conhecimento promoveram análises e problematizações relacionadas às
temáticas colocadas pelo filme em questão.
A intervenção teve como propósito instigar uma reflexão a partir da
experiência estética do cinema, acerca do processo de naturalização de patologias e
de medicalização de comportamentos, atitudes ou gestos que fugiam da construção
social sobre aquilo que é considerado, pelos discursos médico-psiquiátricos, como
normalidade. Ela contou com a participação de estudantes, professores e
profissionais da área da educação e da saúde, além da população em geral
interessada no tema da medicalização e patologização da vida na
contemporaneidade.
O foco principal do ciclo de filmes foi a problematização de um duplo
movimento do processo de medicalização do social na contemporaneidade:
primeiramente, o investimento da psiquiatria biológica nas neurociências, ao tentar
circunscrever todas as manifestações singulares em disfunções neuroquímicas; e,
consequentemente, o processo de invenção de novos transtornos, novas doenças,
fenômeno de patologização de todo comportamento desviante da norma social, com
fins de normatizar as diferenças.
Sinteticamente, as temáticas dos filmes versaram sobre: TDAH
(“Impulsividade”); o papel da indústria farmacêutica no processo de patologização
(“Marketing da loucura”); depressão (“Geração Prozac”); o manual auxiliar de
diagnóstico, o DSM (sigla em inglês para o Manual de Diagnóstico e Estatística dos
Transtornos Mentais), (“DSM - A farsa mais mortífera da psiquiatria”); e, por fim, uma
possível aproximação entre o uso de drogas psiquiátricas e as drogas ilícitas
(“Requiem para um sonho”).
Dado a complexidade da trama discursiva dos saberes implicadas na
temática, Contamos como marco teórico norteador do nosso trabalho os estudos do
campo da Esquizoanálise, visto que
[...] a Esquizoanálise não incide em elementos nem em conjuntos, nem em sujeitos, relacionamentos e estruturas. Ela só incide em lineamentos, que atravessam tanto os grupos quanto os indivíduos. Análise do desejo, a Esquizoanálise é imediatamente prática, imediatamente política, quer se trate de um indivíduo, de um grupo ou de uma sociedade. Pois, antes do ser, há a política (DELEUZE & GUATARRI, 1996, p. 77-78).
Objetivo
O presente trabalho objetiva relatar a intervenção do grupo de estudos
“Medicalização do social no contemporâneo” realizada por meio da utilização do
recurso estético do cinema como instrumento disparador de discussões relacionadas
à temática da patologização e medicalização da infância e da adolescência na
contemporaneidade.
Metodologia
O método de intervenção utilizado pelo grupo de estudos foi o cinema como
disparador de discussões e produção de conhecimento, que serviu como estratégia
para viabilizar e proporcionar uma linguagem acessível a todos, com fins de
sintetizar uma série de informações sobre o assunto. Buscamos com essa
intervenção uma forma de aplicar os nossos estudos teóricos em uma interface com
o cinema, de maneira a efetivar uma prática de resistência frente ao paradigma
medicalizante, hegemônico na atualidade.
No campo da psicologia contamos com diferentes propostas de intervenção,
que visam à produção de um desvio para a diferença em uma determinada
realidade. Acreditamos que o cinema seja um potente dispositivo, capaz de disparar
discussões e produzir reflexões, portanto, valioso instrumento para a realização
destas intervenções.
O cinema, segundo Deleuze, é um tipo de filosofia, é um exercício puro de
pensamento, com a ressalva de que não carece de conceitos, mas de sensações
que produzem subjetividades na medida em que causa um estado de
estranhamento entre o olhar e o desenrolar da estória. O cinema é pensamento
autônomo com linguagens próprias, uma “matéria inteligível” que ocupa “um espaço
de irrupção do diferente, um campo de imanência para o exercício do pensamento e
da alteridade” (BUENO, 2010, p.38).
De acordo com a filosofia de Deleuze, o pensamento tem afinidade com o
caos, ou seja, ele busca um mundo além das significações dadas e prontas. “Pensar
é pensar por conceitos, ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses
pensamentos não é melhor que o outro, ou mais plenamente, mais completamente,
mais sinteticamente pensado” (DELEUZE & GUATARRI, 1992, pp. 253-254). É
através deste contato com o caos que singularizamos diferentes formas de pensar,
que podem ser constituídas a partir do exercício da filosofia, das artes ou do cinema.
Assim, para o filósofo citado, não há uma afinidade natural entre o
pensamento e a verdade. Isto sugere variadas formas de exercício do pensamento,
que não detém verdade, mas problematizações. Desta forma, o cinema se fez
importante no nosso exercício de pesquisa-intervenção para que
problematizássemos as questões de nosso interesse: a excessiva patologização e
medicalização da diferença.
Para tanto, tentamos promover um exercício do pensamento, através da arte,
ao público presente. Uma vez que, segundo Deleuze, “o pensamento não nasce
sem algo que o force a pensar, algo que violente o sujeito e o force a pensar. O
pensamento só funciona em relação com uma força que o faça pensar” (BUENO,
2010, p. 38).
Nessa perspectiva, resgatamos o filósofo Gilles Deleuze para nos ajudar a
apreender a estética do cinema. Segundo o autor, “o cinema coloca em movimento a
imagem, similar ao que tenta a filosofia com o pensamento. Diferente de outras
obras de arte, o cinema, por meio do automovimento da imagem, e até de uma
autotemporalização” (Deleuze, 1992, p. 79), permite, assim, uma mudança de olhar,
o que implicaria uma possível alteração na concepção que tínhamos do objeto.
A experiência estética possibilita a reflexão criadora por realizar uma dupla função
de invenção, pois ao mesmo tempo em que proporciona um distanciamento, por se
tratar de um filme, proporciona uma aproximação, já que a obra utiliza diversos
elementos presentes no nosso cotidiano.
Por esse motivo, entre outros possíveis, tal intervenção tenha ressoado com
mais facilidade em um público que não estava tão atento as questões da
medicalização no contemporâneo. A partir desse ponto de vista, consideramos que o
cinema possibilitou a movimentação, criação e produção de um novo olhar em torno
da questão da medicalização das diferenças na contemporaneidade.
Resultados
Diante das preocupações relacionadas ao processo de patologização da
diferença, a intervenção relatada neste trabalho, realizada por meio da exibição dos
filmes, teve o intuito de levantar discussões e problematizações críticas sobre o
processo de construção social das noções binárias opositoras de
normalidade/anormalidade. Noções produzidas e reproduzidas por práticas e
discursos veiculados por saberes disciplinares, tais como a psiquiatria e a psicologia
(Foucault, 1982) e que repercutiriam na mídia, sem deixar de atingir alvos certos
como pais, professores, instituições educacionais e de saúde (Legnani e Almeida,
2008).
Os filmes exibidos são documentários e obras ficcionais, contudo não deixam
de ter uma verossimilhança com a realidade. Os enredos baseados nas histórias de
tantas sujeitos que são submetidos aos discursos de normalização, trazem
possibilidades instigadoras para se refletir sobre os processos de psicopatologização
e dos tipos de tratamentos determinados na contemporaneidade, reduzidos
principalmente à prescrição de medicamentos. Por exemplo, assim como ocorrera
com o personagem do filme “Impulsividade”, que foi (as)sujeitado ao diagnóstico de
TDAH e submetido às prescrições psicofarmacológicas, na vida real a história não é
diferente. Pelo contrário, inúmeros são os casos de crianças e adolescentes que
enfrentam dramas semelhantes todos os dias no mundo inteiro.
O número de diagnósticos de TDAH tem aumentado consideravelmente no
Brasil, ainda que psiquiatras vinculados a associações patrocinadas por laboratórios
farmacêuticos aleguem o subdiagnóstico (Mattos & cols., 2004). Além disso, a
patologização de grandes contingentes da população infantil e juvenil é um problema
enfrentado não apenas no Brasil, onde dados divulgados pelo IDUM (Instituto
Brasileiro de Defesa dos Usuários de medicamentos) revelaram um aumento de
1.616% na venda de metilfenidato no país entre os anos de 2000 e 2008 (IDUM,
2009), mas representa um fenômeno global que tem preocupado alguns intelectuais
e profissionais de diversos países no mundo. Em 2013 foi divulgado boletim da
ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária Brasileira), que aponta um
aumento de 75% no consumo de metilfenidato realizado por crianças e adolescentes
de 6 a 16 anos (ANVISA, 2013), dados que revelam o crescimento significativo do
consumo desse medicamento.
Os trágicos índices referentes à patologização da infância atualizam dramas
da ficção vivenciados no cotidiano, com consequências mais do que reais para a
vida daqueles sujeitos. Como pudemos observar nas histórias contadas através do
cinema, confirma-se a retirada de responsabilidade política, econômica, social e
delega-se ao dispositivo psiquiátrico o agenciamento desses impasses.
Dessa forma, retira-se dos sujeitos padecentes o saber/poder sobre o seu
mal-estar, prejudicando-os no desenvolvimento dos recursos internos para a
construção de saídas e invenção de sentidos para o seu sofrimento, assim,
conseguindo lidar com situações de sofrimento psíquico, tendo uma participação
ativa na resolução de seus próprios conflitos.
Nesse sentido, podemos dizer que a psiquiatria biológica reduz as
explicações do sofrimento psíquico ao déficit neuronal (Brzozowski e Caponi, 2012),
de modo a desimplicar o impasse subjetivo da criança. É inegável a relação de
dependência orgânica e psicológica que o medicamento prescrito provoca, visto que
desde muito cedo são passadas duas prescrições, além da medicamentosa: a
primeira é que, diante de qualquer mal-estar, existiria uma pílula para solucioná-lo; e
a segunda é a transmissão de uma ilusão, de que seria possível passar por uma
vida sem sofrimentos, uma vida esterilizada. Isso seria o contrário da concepção de
que ter saúde é, justamente, ser capaz de conviver com o sofrimento e buscar a sua
superação.
Conclusões
Atualmente, as condutas desviantes da norma social, consideradas
inadequadas e/ou indesejáveis, são transformadas pelo saber psiquiátrico em
psicopatologias, as quais têm atingido a todos nós com rotulações diagnósticas.
A intervenção relatada neste trabalho, realizada por meio da exibição dos
filmes ainda que longe de conseguir abranger toda a temática que envolve os
fenômenos da medicalização, possibilitou a construção de debates direcionados não
apenas à academia, mas também às pessoas da comunidade local, sobretudo
profissionais de instituições de saúde e educação, que puderam participar e
contribuir com discussões.
A partir de algumas reflexões suscitadas no debate promovido na sequência
da exibição dos filmes, conclui-se que os processos de patologização e
medicalização da sociedade têm ocorrido com o objetivo de incentivar antigos
mecanismos e estratégias de normalização, relacionadas a uma suposta adaptação
de sujeitos a uma norma estabelecida pelas sociedades disciplinares, conforme nos
convida a refletir os estudos realizados por Michel Foucault (1982).
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http://www.psicologia.ufrj.br/abp/ 2 Viviane Neves Legnani; Sandra Francesca Conte
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O processo de escolarização de egresso de escola especial e a tentativa de retorno após freqüência no ensino comum.
Tatiana Platzer do Amaral – UMC Luciano Nunes Sanchez Cores – UMC
Algacir José Rigon - UMC Anderson Borges de Santana - UMC
Esta pesquisa tem como tema a inclusão escolar de alunos especiais na rede
pública de ensino. A função da educação especial está diretamente relacionada às
características e interesses da sociedade capitalista, na qual se evidenciam
parâmetros claros de produtividade e homogeneidade, fatores que influem
diretamente na integração ou na segregação da criança dita deficiente, como aponta
Amaral (1988):
Intrínseca a esse processo de produtividade está a visão da homogeneização, na qual o indivíduo para ser produtivo precisa corresponder a um determinado padrão, seja de conduta, visão de mundo... Para se atingir determinados resultados é preciso, inclusive na escola, estar dentro de padrões determinados. (p.27)
Segundo Patto (1999) para se compreender as idéias dominantes sobre a
escolaridade e as várias opiniões detectadas com maior regularidade nos alunos
oriundos das classes populares, torna-se necessário recuperar a origem dessas
idéias e sua relação com os princípios dominantes de nossa época. O
desenvolvimento da política educacional se deu em meio à existência da crença no
talento individual como base para o sucesso social:
O fato de os novos homens bem sucedidos o serem aparentemente por habilidade e mérito pessoal – já que não o eram pelos privilégios advindos do nascimento – confirmava uma visão de mundo na qual o sucesso dependia fundamentalmente do indivíduo (...) (Patto, 1999, p.40).
Outro princípio dominante, citado pela autora e presente em muitos estados
americanos a partir de 1941, é o reconhecimento da diversidade das aptidões dos
seres humanos, ou seja, a desigualdade intelectual, e a explicação com base na
desigualdade social. Conseqüentemente atribuiu-se à escola a tarefa de induzir
cidadãos a uma aceitação quanto às suas posições sociais. Em virtude do advento
desse pensamento de controle social, teorias racistas e de “carência cultural”
surgiram e ainda estão presentes na tentativa de se justificara a perpetuação do
status de determinadas classes sociais. De acordo com Ferreira (1995)
2
A consolidação da ideologia burguesa depende, sem abdicar do discurso da igualdade de oportunidades, do seu poder de atribuir as diferenças entre os indivíduos à distribuição desigual de aptidões e dons. Isto serve para reafirmar o discurso da burguesia, segundo o qual “sendo todos livres e iguais no direito, o destino do ser humano não depende mais da ordem estabelecida, mas das capacidades individuais”. (p.24)
Considerando-se que a escolarização dos ex-alunos de escola especial
inseridos no ensino comum, perpassa duas modalidades de ensino distintas, porém
historicamente relacionadas, é necessário destacar que nenhum destes alunos não
teve acesso ao ensino, ou seja, não vivenciaram o que Patto (2000) denomina de
práticas de eliminação brutais, predominantes na história da educação brasileira por
meio da impossibilidade de acesso à escola. Outra prática descrita pela autora é a
eliminação sutil, que se caracteriza por meio de fenômenos como multi-repetência,
exigências materiais impossíveis de serem cumpridas, rituais de degradação e o:
encaminhamento a lugares oficiosos ou oficiais de diversificação da qualidade de ensino, como classes fracas, classes especiais para deficientes mentais ou outros estabelecimentos de ensino existentes na região, todos eles lixeiras da escola e do bairro, nas quais a aprendizagem marca passo ou dá meia volta. (p.192)
Coloca-se como desafio nesta pesquisa compreender o processo de inclusão
destes alunos, uma vez que, são originários de um processo de escolarização
marcado pelo descrédito social em suas capacidades de aprender. Segundo Ferreira
(1995) são crianças marcadas e:
O rótulo cria expectativas, ajuda a realizá-las e tem grande poder de generalização. A um aluno de dez anos, com uma idade mental igual a de seis anos, provavelmente estarão reservadas atitudes sociais e atividades apropriadas a uma criança de, no máximo, seis anos. (p.42)
São alunos que passaram pela escola, mas segundo Amaral (1997) ao
retornarem ao ensino comum sempre são inseridos nas séries iniciais, revelando o
desconhecimento dos rudimentos da escrita, dos cálculos matemáticos e de uma
leitura de mundo a partir de um conhecimento construído na escola. Mais ainda,
querem permanecer na escola, mesmo não aprendendo.
Esta pesquisa tem como objetivo compreender o processo de inclusão
escolar insatisfatória de ex-alunos de escola especial no ensino comum, a partir do
relato da mãe do aluno.
Esta pesquisa caracteriza-se como uma abordagem qualitativa que se
configura como Estudo de Caso. Foram feitas entrevistas não-estruturadas com a
mãe de um ex-aluno de escola especial e que buscava o retorno de seu filho para a
mesma escola especial, após ter passado um tempo na escola comum. A finalidade
era obter informações sobre a trajetória escolar de seu filho, desde o início de sua
3
vida escolar até a sua tentativa de retorno à escola especial, precedida pelo
surgimento da sua condição de especial. Antes de contemplarmos os resultados
obtidos e relacioná-los aos objetivos para este trabalho, cabe uma breve descrição
da realidade do aluno.
Resultados e Discussão
Lauro (nome fictício) é um menino de 13 anos que atualmente freqüenta a 2ª
série da classe especial em uma escola estadual. Não costuma falar sobre o
cotidiano escolar à sua família, e quando fala o faz somente sob muita insistência.
Reside em um bairro da periferia de um município da grande São Paulo, junto com
seus pais e seu irmão. Seu pai, 52 anos, atualmente trabalha como porteiro em São
Paulo, parou de estudar na 4ª série. Sua mãe trabalha como doméstica, tendo
abandonado a escola na 4ª série, uma vez que a escola ficava longe de sua casa.
Costuma dedicar boa parte de seu tempo livre às questões referentes à vida escolar
do filho, sendo a principal responsável pela escolarização do mesmo. Seu irmão é
mais novo, está com seis anos, e em breve ingressará na escola. Segundo a mãe
parece não ter os mesmos problemas do irmão. A gravidez de Lauro foi bastante
agitada e acabou nascendo depois do tempo. Lauro costuma se relacionar melhor
com pessoas mais velhas, tendo vários conhecidos em seu bairro. Porém não tem
amigos na escola, segundo a mãe.
Eixo 1: Recuperar o processo de escolarização do ex-aluno de escola especial;
Sua escolarização pode ser resumida conforme a tabela.
ANO IDADE ESCOLA SÉRIE Situação
Final 1997 3 Pré-escola 2002 7 Escola municipal 1 1ª Aprovado 2003 8 Escola municipal 2 2ª Retido 2004 9 Escola especial 1ª série adaptada Aprovado 2005 10 Escola especial 2ª série Evadiu 2005 10 Escola estadual - Classe especial para DM 2ª Retido 2006 11 Escola municipal 1 - Classe comum 2ª Retido 2007 12 Escola municipal 1 - Classe comum 2ª Evadiu
2008 13 Escola estadual - Classe especial 2ª Em
andamento Aos três anos, a mãe começou a suspeitar das dificuldades de seu filho
quando o matriculou na pré-escola. Soube, por intermédio das professoras, que seu
filho não tinha um relacionamento bom com elas. Não interagia com as demais
crianças, não participava das brincadeiras e chorava muito. A pedido da escola
levou Lauro para fazer um exame de eletro-encefalograma que não revelou nenhum
4
problema. Após alguns anos, saiu da pré-escola ingressando imediatamente no
ensino fundamental.
Ingressou na primeira série de uma escola municipal, aos sete anos. Além
das já conhecidas reclamações sobre a falta de entrosamento com os colegas,
somou-se, segundo as professoras, dormidas freqüentes em sala de aula e urina
nas calças. Analisando o comportamento, a diretora da escola insinuou à mãe que
tais atitudes seriam resultantes das possíveis brigas que aconteciam em casa, ou
mesmo de outras situações desagradáveis, como o consumo de álcool pelos pais.
Após o termino do ano letivo, Lauro foi promovido à segunda série. Diante do
incômodo e aborrecimentos com a suspeita de implicância da direção com o seu
filho, a mãe resolveu matriculá-lo em outra escola.
Na nova escola as queixas em relação a Lauro foram as mesmas. Após
relatar a situação à sua patroa foi indicada uma psicóloga de confiança para que
levasse seu filho então com 8 anos. Após três sessões, foi diagnosticada deficiência
mental e identificada a idade mental de 4 a 5 anos. Mediante a esse resultado, a
psicóloga encaminhou o aluno a uma escola especial. Segundo a mãe, toda a
família aceitou e compreendeu a nova situação, visto que anteriormente alguns
parentes acreditavam que tais comportamentos eram “sacanagem” de Lauro. O
aluno não ofereceu resistência ao ingressar na nova escola.
Na escola especial, com 9 anos, após avaliação da equipe multidisciplinar foi
inserido em uma primeira série com adaptações e no final do ano letivo promovido
novamente para a 2ª série. Ao longo do ano mudanças positivas foram identificadas.
Lauro tornou-se mais comunicativo, de forma a interagir mais com os colegas e a
própria família. Não reclamava para ir à escola. A mãe identifica como uma das
vantagens para ela e seu filho o atendimento da equipe médica oferecida na
instituição. No entanto, no ano seguinte a mãe precisou desligar o filho da escola por
motivos de mudança da sua família para São Paulo. Seus pais tentaram sem
sucesso encontrar outra escola especial na região. Acabaram matriculando o filho
com 10 anos na 2ª série de uma escola pública estadual com classe especial para
deficientes mentais. Sua mãe apontou que o ensino da escola era fraco, sem que
houvesse nada de aprendizagem significativa durante esse tempo ou qualquer
situação com seu filho. Ressaltou que a equipe escolar sempre foi educada e
atenciosa. Após esse breve período, a família retornou para Mogi das Cruzes,
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matriculando Lauro na mesma escola onde ele cursou a primeira série, aos 11 anos
(novamente na segunda série).
Inicialmente não houve problemas entre a escola e o aluno, o que causou
estranheza na mãe, considerando o histórico anterior. Mesmo os relatórios da escola
mostravam uma realidade até então desconhecida pela mãe, registrando
comportamento e desempenho satisfatório. Todavia, após breve período, os
relatórios da escola apontaram todas as dificuldades já conhecidas. Uma das vezes
que a mãe foi até a escola encontrou Lauro isolado em uma sala, sem colegas ou
professoras. Também acontecia de ficar fora da sala dormindo no banco do pátio ou
prestando auxílio nas manutenções da escola. No caderno Lauro nunca apresentava
conteúdo. A mãe estava apreensiva e muito preocupada até que a situação se
agravou após encontrar casualmente uma funcionária da escola que disse que “não
estavam sabendo trabalhar com o filho dela, que ele era inteligente, mas não estava
sendo bem estimulado”. Fato esse que evidencia os malefícios causados pela
condição de “aluno especial”. De acordo com Glat (1989):
Esse rótulo acarreta um julgamento antecipado do indivíduo como alguém totalmente desprovido de raciocínio, potencial de aprendizagem ou capacidade para qualquer tipo de desempenho formal ou acadêmico (p.19)
A situação atingiu o seu ápice quando a mãe se ausentou da reunião de pais
por julgar que não teriam nada para falar de seu filho e Lauro saiu sozinho da
escola, segundo um funcionário da escola que o alcançou e o levou até sua mãe,
mostrando-se rude e impaciente pela situação inesperada e por ser obrigado a levar
o aluno até a casa. A mãe decidiu procurar a diretoria de ensino – conforme nos
relatou – mesmo receando receber retaliações da direção da escola posteriormente,
a fim de relatar os acontecimentos. Foi imediatamente encaminhada ao Conselho
Tutelar. Após a denúncia no conselho que entrou em contato com a direção da
escola. Como retaliação Lauro foi impedido de participar de um passeio promovido
pela escola, sob a alegação de “medo” do comportamento do aluno. A mãe relatou
que sentiu revolta. Ainda entendido como retaliação, em outra ocasião, Lauro foi
ameaçado de “ser levado pela polícia”, após se recusar a entrar à sala. A mãe ficou
sabendo após muita insistência porque notou o comportamento estranho do filho,
visto que ele não costuma falar sobre os assuntos da escola. Lauro foi desligado da
escola antes do final do semestre.
Aqui não somente o descaso (ou mesmo frieza) para com o aluno é
evidenciado, como a própria incapacidade da escola em acolher e manter o aluno
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com necessidades especiais inserido adequadamente na rede regular de ensino, o
que, segundo Prieto e Sousa (2006), não se resume ao acesso à rede pública
assegurado pelas leis específicas:
Ainda que o atendimento educacional de alunos com deficiência mental preferencialmente deva se dar na rede regular de ensino (cf. art. 208, inciso III,CF/88)6, atender a esse objetivo não é meramente viabilizar seu acesso ao ensino regular. É também garantir sua permanência na escola, com condições de ensino que, de fato, respondam às suas necessidades educacionais específicas. (p.1)
Com base nas afirmações acima, podemos dizer que a escola em questão
permanece distante não somente da consolidação da educação inclusiva, mas
também de atingir aspectos básicos como o acesso permanente à sala regular e
condições dignas de ensino ao educando com necessidades especiais.
Com o auxílio do Conselho Tutelar, sua mãe finalmente conseguiu matriculá-
lo, aos 13 anos, na segunda série de uma escola estadual com classe especial para
deficientes mentais, situada no centro da cidade, na qual Lauro permanecia até o
momento das entrevistas.
Neste ano de 2008, Lauro não apresentou problemas com relação à
adaptação na escola. Sua mãe só tem acesso às atividades realizadas em dias de
reunião de pais ou no final de ano, visto que a escola não permite a entrega das
atividades aos alunos por receio de que esses estraguem seus trabalhos. O aluno
leva somente algumas frases em um caderno de caligrafia para casa. Os horários de
entrada e saída da classe especial, assim como o intervalo e mesmo as festas
escolares são distintos das demais classes da escola. O maior rigor da escola com
relação à classe especial é quanto à pontualidade dos relatórios médicos, bem como
à medicação freqüente dos alunos e suas consultas periódicas ao neurologista, o
que, segundo a mãe, é difícil de realizar considerando-se a precariedade dos órgãos
públicos de saúde. Ressalta-se aqui a biologização do ensino, manifestada na
escola especial e mesmo no ensino público, visto que as ditas classes especiais
giram em torno da medicalização do ensino, mostrando-se rigorosa quanto às
exigências de atendimento médico aos alunos e colocando em segundo plano as
preocupações referentes ao conhecimento transmitido aos alunos. Reiterando essas
idéias, Moysés e Collares (nos afirmam que:
A biologização – e conseqüente patologização – da aprendizagem escamoteia os determinantes políticos e pedagógicos do fracasso escolar, isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a instituição escolar nele inserida. (p.32)
7
Ou seja, por trás da visível rigidez que envolve o processo de medicalização
dos alunos está implícita uma política educacional que se isenta da responsabilidade
de promover ao aluno dito especial conhecimentos relevantes ao seu
desenvolvimento integral, cerceadas por questões alheias ao processo de ensino e
aprendizagem dos educandos. No momento, a preocupação de sua família se volta
à necessidade de manter seu filho na escola, não havendo maiores expectativas
quanto ao futuro dele após a vida escolar. Embora não tenha conseguido matricular
seu filho na antiga escola especial, ainda alimenta a esperança de conseguir esse
feito, aguardando também uma vaga em outra escola com recursos especiais.
Eixo 2: Analisar os motivos da tentativa de retorno à escola especial;
Verificou-se que a tentativa de retorno à especial está diretamente
relacionada às experiências negativas acumuladas nas escolas públicas ao longo da
trajetória escolar de Lauro, conforme sua mãe nos afirmou ao longo das entrevistas:
“Eles não estão preparados, é como se diz: ‘a criança não sabe, então que se dane.
Não sabe então também não vou quebrar a cabeça’, sabe perder tempo. Então eu
penso assim, porque foi o caso dele (...)”. (primeira entrevista)
Destacamos aqui a sucessão de fatos negativos ocorridos na penúltima
escola freqüentada por Lauro, na qual permaneceu em sala isolada, foi excluído de
eventos escolares e prestou serviços de manutenção à escola junto aos demais
funcionários, como já foi citado.
Em contraste aos problemas enfrentados nas escolas públicas, sua mãe
enaltece os diversos benefícios obtidos na escola especial sempre que questionada
sobre o estabelecimento:
“Eles são ótimos, são como uma família pra gente, porque tudo o que você precisa
está ali, médico, de tratamento, de tudo. Então, não tenho o que reclamar da escola,
eles sempre foram ótimos, até hoje se eu volto para procurar alguma coisa eles me
atendem muito bem, não tenho o que reclamar.” (primeira entrevista)
A necessidade de retorno à escola especial está atrelada à necessidade de
se adquirir atendimento médico, tarefa essa atualmente dificultada pela escassez
dos serviços públicos, embora a escola onde Lauro estude atualmente exija
constantes exames e atendimentos médicos dos alunos matriculados em classe
especial, conforme nos diz sua mãe:
“Porque é assim, queira ou não queira a escola do estado cobra muito da gente essa
parte de médico, neuro, psicólogo, só que eles não entendem que a gente tem
8
dificuldade para conseguir esses médicos, porque vira e mexe eles estão cobrando,
só que não é fácil. A gente leva quatro, cinco meses pra conseguir um neuro e aí
quando a gente consegue ele saiu, não está mais no posto aí lá vai você correr atrás
de novo, é complicado, e a escola está cobrando.” (terceira entrevista)
Novamente torna-se clara aqui a priorização do discurso médico, em
detrimento dos projetos educacionais, agravada pela responsabilização das famílias
nos que diz respeito às burocracias com atendimento médico, reduzindo as
questões de ordem escolar a uma busca constante por soluções de ordem médica.
No que concerne a essa questão, Moysés e Collares (1993) nos dizem que:
O reducionismo biológico pretende que a situação e o destino de indivíduos e grupos possam ser explicados por – e reduzidos a – características individuais. As circunstâncias sociais teriam influência mínima, isentando-se de responsabilidades o sistema político e socioeconômico e cada um de seus integrantes. (p.39)
Atualmente, a maior preocupação de sua mãe é com o futuro do filho caso
não consiga matriculá-lo na escola especial, visto que ele permanecerá na atual
escola somente até os 16 anos. Não alimenta muitas expectativas em relação ao
futuro do filho fora da escola, tendo como meta garantir a sua permanência em
algum estabelecimento de ensino.
Eixo 3: Investigar o conhecimento construído ao longo do processo de
escolarização.
Lauro ainda apresenta dificuldades na linguagem, é copista e ainda não lê
sem auxílio. Não realiza operações matemáticas, uma vez que segundo a mãe as
atividades de matemáticas são raras na escola. Entretanto, sua mãe afirma que a
rotina doméstica é normal, realiza algumas tarefas domésticas – auxiliando na
limpeza da casa e fazendo o almoço quando necessário. Não viaja, isto é, vai para a
escola no centro sozinho. A mãe leva e busca o filho. Lauro recebe medicamento
diariamente, – Trofranil, comprimido, uma vez ao dia – indicado pela neurologista da
escola especial para melhoria do comportamento, segundo a mãe, que costuma
pegar o remédio nos postos de saúde.
Segundo sua mãe, os locais onde Lauro obteve maior rendimento escolar
foram a escola especial e a escola onde ele estuda atualmente, ressaltando que “em
dois meses que ele ficou nessa escola, o que ele não fez durante o tempo que ele
ficou aqui (na escola do bairro) ele fez nessa escola”. Entretanto, ela nos relatou que
a atual professora parece não ser rigorosa quanto à anterior no que concerne às
atividades propostas:
9
“Na verdade a gente gostava mais da outra professora porque ela cobrava mais
deles, essa parece que não exige deles, não cobra deles.” (terceira entrevista)
Diante dessas informações, podemos constatar a descontinuidade do
processo de ensino e aprendizagem nas classes regulares da rede pública de
ensino, visto que as atividades promovidas na classe especial parecem não seguir
uma ordem curricular. Evidencia-se aqui a estagnação do ensino, a qual é alicerçada
nas características negativas típicas do rótulo de “criança especial”, tais como a
descrença na capacidade de aprendizagem, como afirma Glat (1989):
... a partir do momento em que um indivíduo, em função de um ou mais atributos seus, é identificado como desviante ou anormal, todos os seus demais atributos são subestimados e ele passa a ser visto unicamente em termos da característica estigmatizante. Ele é agora apresentado como um negro, um homossexual, um deficiente mental; em vez de como uma pessoa que uma de suas características é ser da raça negra, ter preferência por pessoas do mesmo sexo, ou sofrer de deficiência cognitiva. Em termos lingüísticos, pode-se dizer que o estigma é uma metonímia, em que o todo é nomeado em função de uma das partes.” (p.17)
Ou seja, o rótulo atribuído a esses alunos automaticamente determina as
prováveis limitações e estabelece limite no que diz respeito à atribuição de novos
conhecimentos. Um breve exemplo disso é o fato de Lauro permanecer ainda na
segunda série, conforme nos afirma sua mãe:
“Vamos supor que até os 16, 17 anos ele vai estar na 4ª, 5ª série e olhe lá, não sei
né? Porque vai fazer 2 anos que ele foi pra lá, ele entrou na 2ª, continua na 2ª série.
Aliás, ele continua na 2ª desde que começou a estudar. Quando ele evoluiu bem foi
quando ele estava na escola especial, quando ele passou da primeira pra segunda.
Quando ele saiu dessa escola estava na segunda. Foi pra São Paulo pra segunda
série, voltou aqui na outra escola na segunda e foi pra atual escola pra segunda, e
continua na segunda.”
Revela-se também a suposta impossibilidade da escola pública em manter
salas de aula heterogêneas, considerando que esta ainda mantém espaços distintos
aos alunos com supostas limitações cognitivas, o que mostra que a abolição das
salas segregadas caminha a passos extremamente lentos. Conforme nos afirma
Ferreira (2007):
O sistema educacional, em termos gerais, parece estar cristalizado e institucionalizado para lidar apenas com a homogeneidade, porque esta não apresenta nenhum perigo, já que não põe em dúvida valores, verdades e, principalmente, hábitos tradicionais.” (p.7)
CONCLUSÕES O processo de inclusão escolar de Lauro pode ser considerado precário, já
que sua escolarização, após o surgimento de sua condição de especial, se deu
10
quase que totalmente em ambientes especializados – quando não esteve
completamente isolado. A respeito dessa lacuna existente entre teoria e prática,
Ferreira (2007) nos afirma que:
A história das tentativas de mudanças pedagógicas tem centrado a inovação educacional na reforma de métodos, técnicas e programas, deixando intocadas as práticas, a estrutura da instituição, as relações escolares, as posturas profissionais, os tempos e espaços onde se processa a educação do aluno e, ainda, os rituais que dão concretude aos conteúdos intelectuais e formativos da escola. (p.3)
Ao passo em que se intensificam os discursos em defesa de uma educação
inovadora para todos, vemos em contrapartida a permanência de ações que nos
remetem a décadas de exclusão e segregação. A inexistência da comunicação entre
as escolas regular e especial, assim como a segregação das salas especiais da
escola pública em relação às demais salas da instituição escolar, reafirmam essa
realidade. Os resultados obtidos com a presente pesquisa revelam uma escola
mantenedora da exclusão e do preconceito, sendo necessárias reparações urgentes
no âmbito das práticas adotadas no ensino público, assim como a imediata
qualificação dos profissionais das salas regulares nos que diz respeito à
contemplação das necessidades específicas dos alunos tidos como especiais, visto
que o despreparo do corpo pedagógico representa um dos maiores empecilhos à
concretização da educação inclusiva, como nos aponta Sant’Ana (2005):
autores como Goffredo (1992) e Manzini (1999) têm alertado para o fato de que a implantação da educação inclusiva tem encontrado limites e dificuldades, em virtude da falta de formação dos professores das classes regulares para atender às necessidades educativas especiais, além de infra-estrutura adequada e condições materiais para o trabalho pedagógico junto a crianças com deficiência. O que se tem colocado em discussão, principalmente, é a ausência de formação especializada dos educadores para trabalhar com essa clientela, e isso certamente se constitui em um sério problema na implantação de políticas desse tipo. (p.2)
Todavia, ressaltamos que, se a especialização dos professores urge em ser
concretizada, tão importante e imediata se faz também a prática do respeito, da ética
e da sensibilização, valores imprescindíveis na formação do ser humano e,
inevitavelmente, em nossas escolas.
“Porque eu costumo falar assim: quando eu vou brigar pelo meu filho eu não brigo
só pelo meu filho, eu brigo por todas as crianças que tem essas dificuldades. Eu não
estou ali para brigar só por ele, porque não é só ele que tem essas dificuldades, tem
meio mundo que a gente nem sabe a conta de quantos têm. Então você não está ali
pra dizer “eu vou brigar pelo meu filho, você tem que brigar por todos, é um direito
deles, entendeu?” (mãe de Lauro)
11
REFERÊNCIAS
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1
O psicólogo na atenção primária à saúde e o atendimento ao
escolar: reflexões sobre a patologização da educação
Helivalda Pedroza Bastos
Universidade de São Paulo
O presente trabalho é parte de nossa pesquisa de doutorado,
vinculada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, área de
concentração Psicologia Social, nele nos propomos a estudar o processo de
patologização da educação que se mostra na atuação dos psicólogos da rede
pública de saúde, mais especificamente nas Unidades Básicas de Saúde
(UBS’s). Nosso trabalho consiste na revisão da literatura e em entrevistas com
profissionais concursados lotados na região norte do município de São Paulo –
compreendidas entre as subprefeituras Jaçanã/Tremembé, Vila Maria/Vila
Guilherme, Santana/Tucuruvi e Casa Verde. As entrevistas foram norteadas pelo
referencial teórico de José Bleger e a análise dos dados pelo referencial teórico
de grupos operativos, tal qual formulado por Enrique Pichon-Rivière.
Entendemos que o processo de patologização da educação produz
diferentes formas de exclusão e forja subjetividades medicalizadas. A
subjetividade é aqui entendida como fabricada e modelada no registro social,
não dada a priori nem interior ao indivíduo, mas produzida pelos vetores mais
diversos presentes na coletividade (TORRE e AMARANTE, 2001). No sentido
2
aqui posto medicalizar significa definir em termos médicos problemas sociais e
buscar sua origem na biologia (ILICH, 1975). À ampliação do espectro da
Medicina para outras áreas das ciências da saúde – Psicologia, Fonoaudiologia,
Enfermagem etc. - se dá o nome de patologização, entendida como um processo
ideológico que transforma questões sociais em problemas orgânicos. (MOYSÉS
e COLLARES, 1997).
Dentre as formas de patologização encontramos a psicologização,
que se caracteriza pela utilização recorrente de explicações de caráter
psicológico para descrever e analisar fenômenos educacionais,
desconsiderando o processo de produção social. Esse tema é amplamente
analisado por diversos autores que discorrem criticamente sobre a participação
das psicologias no campo educativo (PATTO, 1996; MOYSÉS e COLLARES,
1992; MACHADO, 1996).
A presença do discurso psicológico na educação é um fenômeno
recente, intensificado por volta de 1970, estando intimamente relacionado ao
avanço da lógica capitalista e à hegemonia do discurso técnico e cientificista da
atualidade. Neste sentido, as teorias psicológicas têm sido utilizadas com
finalidades adaptativas e normativas, estando a serviço da patologização da
educação, sendo o psicólogo o profissional à qual é atribuída uma função
prescritiva no campo educacional, passando a ditar as normas sobre o que deve
ser feito com o aluno com dificuldades.
Não é novidade o grande número de encaminhamentos das
escolas para as UBS’s sendo esta, desde muito tempo, a principal clientela dos
psicólogos nas unidades de Saúde Pública. Devido à psicologização dos
3
fenômenos sociais, a escola transferiu ao psicólogo a responsabilidade pelas
crianças com dificuldades de aprendizagem ou problemas de
comportamento/ajustamento. (Oliveira, 2005 p.224).
Morais (2000) em pesquisa realizada na região sul do município de
São Paulo nos informa que nos casos envolvendo escolares,
“independentemente da queixa, na conduta adotada pelos profissionais,
predominam o psicodiagnóstico (58,1%), a terapia com a criança (85%) e a
orientação familiar (73,2%)”, sendo raras as intervenções desenvolvidas nas
escolas (23,5%) – apontando para uma conduta patologizadora dos profissionais
(p.73).
Para justificar o atendimento clínico dos alunos sobre os quais recai o
“fracasso escolar” as explicações mais comumente usadas são: “distúrbios
emocionais, desestruturação familiar, hiperatividade, lentidão e incoordenação
motora, rebaixamento intelectual, falta de atenção dos pais, más condições de
vida, desnutrição, herança genética e distúrbios neurológicos”, explicações
essas que, em geral, negam a realidade dos alunos o que propicia o rótulo a eles
destinado. É importante frisar que se parte da ideia de um aluno abstrato e
idealizado “ignorando-se as conjunturas concretas de sua vida e de seu meio
social. E, muitas vezes, quando essas são conhecidas, são utilizadas para
justificarem seu fracasso” (MORAIS, 2000, p.82-83).
Isso ocorre porque se acredita que as crianças carregam em si – em seu
organismo - as dificuldades que geram o fracasso na escola ou que as suas
famílias são as responsáveis pelo mesmo. Com isso a reflexão para além da
4
esfera familiar deixa de existir, mantendo-se inalterados os âmbitos
institucionais, interinstitucionais, políticos e sociais geradores dos problemas.
Neste sentido a Psicologia aparece como uma profissão que
dependendo da forma de atuação que adote – patologizadora ou não – poderá
contribuir para o processo de exclusão de alunos quando do diagnóstico e
acompanhamento dos problemas de aprendizagem escolar. Principalmente no
momento atual em que as respostas aos problemas escolares têm sido
encontradas na farmacologia, através da utilização de psicotrópicos que são
prescritos e comercializados em escalas cada vez maiores, tendo como alvo
crianças e adolescentes em idade escolar.
Temos acompanhado – como psicóloga e pesquisadora - o processo
crescente de medicalização, principalmente no campo da educação, onde
alunos que não aprendem o conteúdo escolar ou não se comportam de acordo
com as normas institucionais são encaminhados para profissionais da saúde, em
geral médicos e psicólogos, que muitas vezes identificam neles “doenças”,
fazendo com que, não raramente, sejam medicados para que alcancem a
performance esperada pela escola.
Neste cenário as instituições saúde e educação se entrelaçam na busca
de solução para os problemas enfrentados pela escola. O problema se instaura
quando se transformam sensações físicas ou psicólogicas normais em sintomas
de doença provocando a formulação de diagnósticos medicalizadores que
acabam por transformar grandes contingentes de pessoas em pacientes
potenciais, tornando-os muitas vezes usuários de medicamentos. (MEIRA, 2012,
p.02).
5
Esse fenômeno vem ocorrendo em escala cada vez maior em nossa
sociedade e, no caso específico da educação, diz-se que as crianças não
aprendem ou não se comportam adequadamente na escola devido a transtornos
neurológicos que interferem em campos tidos como fundamentais para a
aprendizagem, dentre eles: percepção e processamento de informações,
atenção e habilidades sociais. Dentre os transtornos mais comumente
associados ao baixo desempenho escolar estão o TDAH (Transtorno de Déficit
de Atenção e Hiperatividade) e o TOD (Transtorno de Oposição e Desafio) que
tem levado um número cada vez maior de crianças e adolescentes a serem
medicados com um estimulante do sistema nervoso central conhecido pelos
nomes comerciais Ritalina® e Concerta®. Com isso, se dissimula falhas no
sistema educacional, transformando um problema de ordem político-pedagógica
em um problema de caráter individual, orgânico, do aluno, em nome da
normatização da conduta.
Tendo em vista essas questões apresentamos os resultados das
entrevistas da presente pesquisa. Estas apontam para as dificuldades do
psicólogo no atendimento em saúde pública. Dois motivos para essa dificuldade
foram desvelados, o primeiro ligado à formação deficitária do psicólogo no que
tange a atuação em instituições e, o segundo, a filiação profissional que aparece
negada em relação à instituição que o contrata, propiciando o atendimento
clínico, inspirado na atuação do profissional liberal, fundadas numa concepção
abstrata de indivíduo desconsiderando seu contexto social para além do grupo
familiar.
Muitas vezes o trabalho do psicólogo é desenvolvido de forma solitária em
detrimento de ações em equipe multidisciplinar. Devido a esse tipo de atuação
6
existe uma falsa percepção de autonomia no trabalho, levando a priorização do
atendimento clínico nos moldes do profissional liberal, muitas vezes
desconhecendo os programas instituídos pela Secretaria da Saúde. Isso se dá
devido à “herança” da formação acadêmica em Psicologia, que dá o tom da
atuação, deixando em segundo plano os programas de governo, que em geral
não são citados. Isso também ocorre devido à falta de subsídios teóricos
voltados à atuação em Saúde Pública, pouca difusão dos programas previstos
para atuação na atenção primária, falta de preparo conceitual que
instrumentalize o psicólogo a atuar com grupos e instituições, falta de clareza
das políticas públicas de saúde voltadas para essa área de atenção, políticas de
Saúde Púbica instituídas sem a devida discussão com os trabalhadores.
Devido à falta de investimento do governo nos profissionais na área da
Saúde Pública, incluindo supervisão, cursos e aquisição de materiais, detectou-
se que os psicólogos têm em sua atividade diária experiências de abandono,
impotência e frustração, muitas vezes impedindo o desenvolvimento do trabalho
que não seja o atendimento clínico voltado ao usuário considerado
individualmente. Como consequência ocorre um ataque ao enquadramento
institucional que é percebido muitas vezes como abusivo, levando a sensação
de desconforto. Essa sensação acaba gerando, como defesa, um afastamento
da experiência vivenciada no local de trabalho que vá além da atividade clínica,
fazendo com que os psicólogos passem a maior parte do tempo de sua atividade
profissional dentro da sala de atendimento junto com a sua clientela. Isso se
mostra quando o psicólogo trabalha sem utilizar o apoio de profissionais de
outros setores, inclusive o administrativo, sobrecarregando o profissional.
7
Devido à experiência despertada no cotidiano de trabalho os psicólogos
fazem de sua sala de atendimento um refúgio contra os ataques sofridos e
encontram conforto no seu ambiente privatizado, desenvolvendo um trabalho
que não contempla ações mais abrangentes voltadas à instituição, entre os
âmbitos da psicologia social, grupal e institucional. Com isso a atividade
prioritária dos psicólogos nessa área de atenção é a de realizar
psicodiagnósticos e psicoterapia. Essa também é a expectativa das instituições
que buscam o serviço desses profissionais, muitas vezes com o objetivo de
classificação e adequação social.
A questão que se coloca é que o psicólogo, incentivado por sua formação
acadêmica e também pela perspectiva a-histórica e apolítica dos fatores
implicados na queixa que trás o aluno para atendimento, ao receber a demanda
das escolas tende a abarcá-la sem uma reflexão critica prévia, podendo inclusive
auxiliar no processo de exclusão dos alunos e expropriação dos seus direitos a
uma educação de qualidade. Quando isso ocorre o profissional tende a entrar
em conivência com as instituições escolares, transformando em casos clínicos
os alunos que lhes são encaminhados. Dessa forma os problemas de
aprendizagem ou de comportamento dos alunos que são forjados no ambiente
escolar deixam de ser de responsabilidade das escolas, com isso, transfere-se
o problema aos psicólogos que atuam na rede pública de saúde.
Tendo em vista os resultados obtidos fica clara a necessidade de revisão
dos currículos de formação de psicólogos em nível de graduação para atender a
demanda da Saúde Pública no país e também para evitar atuações
patologizadoras nessa área de atenção. Faz-se necessária também uma
discussão com a categoria para que se reflita sobre a sua atuação nas UBS’s e
8
as vivências que esse trabalho desperta, bem como, se faça uma reflexão sobre
os pedidos de avaliação e tratamento que partem das instituições educacionais
para que se compreenda a serviço de que está a avaliação e o tratamento
solicitados, evitando assim que se rotule o aluno e que se patologize a vida, risco
que se corre já que o usuário não é visto em sua complexidade e as instituições
que solicitam a intervenção não são analisadas.
Referências Bibliográficas
Bleger, J. (1987). Temas de psicologia: entrevista e grupo. São Paulo: Martins
Fontes.
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Nova Fronteira.
Machado, A.M. (1996) Reinventando a avaliação psicológica. Tese (doutorado).
São Paulo: IPUSP.
Meira, M.E.M. (2009) A medicalização e a produção da exclusão na educação
brasileira à luz da Psicologia Histórico-Cultural. In: Anais de trabalhos completos.
Maceió. XV Encontro Nacional da ABRAPSO. pp..1-8.
Morais. M.L.S. (2000). Fórum de saúde mental. In: Saúde e educação: muito
prazer! São Paulo: Casa do Psicólogo.
Moyses, M. A.; Collares, C. A. (1997). Inteligencia abstraida, criancas
silenciadas: as avaliacoes de inteligencia. São Paulo: Psicologia USP (8).
______________ (1992) A história não contada dos distúrbios de aprendizagem.
Campinas: Cadernos CEDES, n. 28, p. 31-48.
9
Oliveira. I.F. (2005) A psicologia no sistema de saúde pública: diagnóstico e
perspectivas. Tese (doutorado) São Paulo: IPUSP.
PATTO, M. H. S. (1996) A produção do fracasso escolar: histórias de submissão
e rebeldia. 2. ed. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Pichon-Rivière, E. (1994). O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes.
Torre E.H.G.; Amarante P.D. (2001). Protagonismo e subjetividade: a construção
coletiva no campo da saúde mental. Rio de Janeiro: Revista Ciência & saúde
coletiva 6 (1):73-85.
Palavras-chave: Patologização da Educação, Atuação do psicólogo; Atenção
primária à saúde, Escola Pública e Instituições.
1
O TDAH e o metilfenidato: tecnologias subjetivas
Luciana Vieira Caliman (Programa de Pós-graduação em
Psicologia – Universidade Federal do Espírito Santo); Pedro
Henrique Pirovani Rodrigues; Pedro Henrique Sena Peterle,
Nathalia Domitrovic
Palavras chave: TDAH, metilfenidato, produção de subjetividade,
Políticas Públicas de Assistência Farmacêutica.
QUADRO CONCEITUAL
O consumo de medicamentos, a partir da segunda metade do século
XX, aumentou significativamente devido ao fortalecimento do paradigma
biomédico, ao crescimento da indústria farmacêutica, à ampliação do acesso
aos medicamentos, além da intensificação dos processos de mercantilização
da saúde e medicalização da sociedade (POLI NETO & CAPONI, 2007). O
medicamento foi transformado na principal tecnologia médica moderna em um
momento no qual o sofrimento humano e as insatisfações cotidianas têm sido
patologizadas e medicalizadas (CALIMAN, 2008; CONRAD, 2007; CAPONI,
2009). Neste panorama, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH) tem sido descrito como um dos diagnósticos que mais sustenta o
processo atual de medicalização da vida, associado ao consumo crescente de
metilfenidato (ORTEGA et al, 2010; ANVISA, 2010). Algumas das questões
apontadas como problemáticas são: o número excessivo de diagnósticos em
crianças e adultos; a patologização de questões que são de ordem educacional
e a expansão do uso não-médico do medicamento, no qual jovens e adultos
fazem uso do medicamento com o objetivo de melhorar a performance
cognitiva ou para fins recreativos (CALIMAN, 2008).
Diante desse cenário, a pesquisa realizada objetivou analisar os efeitos
da Política Estadual de Assistência Farmacêutica voltada para o TDAH na
produção de subjetividade dos sujeitos residentes em Vitória, que solicitam o
metilfenidato na Farmácia Cidadã Metropolitana. No Espírito Santo, a dispensa
de medicamentos essenciais e excepcionais tem sido realizada pelas
Farmácias Cidadãs. O cloridrato de metilfenidato, conhecido popularmente
2
como Ritalina1 e principal medicamento indicado para o TDAH, é dispensado
pelo Estado desde 2007, ano em que passa a integrar a Relação de
Medicamentos Essenciais e Excepcionais – REMEME. Embora a grande
maioria da população atendida seja a infantil, constatou-se um aumento
crescente da procura do metilfenidato por indivíduos maiores de 19 anos, o que
impõe novos desafios à análise do impacto das políticas de assistência
farmacêutica voltadas para o TDAH (CALIMAN & DOMITROVIC, no prelo).
Devido a sua expansão recente, o diagnóstico adulto de TDAH tem sido
pouco analisado e discutido, sendo ainda controverso. Ao mesmo tempo, a
análise do uso do metilfenidato por essa população foi pouco explorada.
Apesar do número exorbitante de livros, artigos e pesquisas publicados sobre o
TDAH, a maior parte da literatura têm como foco o diagnóstico infantil. O
diagnóstico do TDAH em adultos e seu tratamento medicamentoso trazem
novos problemas, que devem ser melhor discutidos e analisados.
Ao trazer a narrativa dos usuários de metilfenidato sobre seu tratamento
e sobre o impacto do diagnóstico em suas vidas busca-se preencher uma
lacuna nos estudos científicos sobre o tema: a investigação da experiência dos
sujeitos que vivem diretamente o impacto do diagnóstico e do medicamento.
Acredita-se que para análise e acompanhamento das políticas públicas torna-
se imprescindível considerar a experiência dos usuários desta política, além
dos profissionais e gestores que a viabilizam. Neste sentido, o diagnóstico de
TDAH e o metilfenidato são analisados como tecnologias subjetivas que
interferem na produção de subjetividade e de mundo dos sujeitos
diagnosticados e que fazem uso do medicamento.
OBJETIVOS
Ao trazer a narrativa dos usuários de metilfenidato sobre seu tratamento
e sobre o impacto do diagnóstico em suas vidas, esta pesquisa busca
preencher uma lacuna nos estudos científicos sobre o tema: a investigação da
experiência dos sujeitos que vivem diretamente o impacto do diagnóstico e do
medicamento. Acredita-se que para análise e acompanhamento das políticas
1 Atualmente no Brasil, também se encontra disponível no mercado para tratamento de TDAH outro medicamento que possui o metilfenidato como princípio ativo. Concerta, que é administrado com uma única dose diária, não está incluso na lista de medicamentos dispensados pela Assistência Farmacêutica do Espírito Santo.
3
públicas torna-se imprescindível considerar a experiência dos usuários desta
política, além dos profissionais e gestores que a viabilizam. Neste sentido, o
diagnóstico de TDAH e o metilfenidato são analisados como tecnologias
subjetivas que interferem na produção de subjetividade e de mundo dos
sujeitos diagnosticados e que fazem uso do medicamento.
METODOLOGIA
A pesquisa foi desenvolvida em duas etapas. Na primeira, associada
diretamente à Farmácia Cidadã Metropolitana, foram obtidos dados acerca da
dispensa pública do metilfenidato no Estado do Espírito Santo, além de
informações sobre os usuários desse medicamento que residem no município
de Vitória. Foram investigadas informações referentes ao número de processos
de solicitação do medicamento, de outubro de 2008 até janeiro de 2012 e ao
número de processos ativos de cada Farmácia Cidadã do Estado. Outros
dados importantes que não constavam nessas listas, como residência, idade e
telefone de contato dos usuários, foram obtidos através de consulta nos
prontuários. Desse modo, foram pesquisadas e registradas, em arquivo digital
e físico, informações de 622 usuários de metilfenidato que, até janeiro de 2012,
retiravam o medicamento na Farmácia Cidadã Metropolitana. Para realização
das entrevistas priorizou-se os usuários residentes em Vitória, maiores de 19
anos. Foram realizadas nove entrevistas, por um ou dois pesquisadores do
grupo, gravadas em áudio e posteriormente transcritas. É importante destacar
que esta pesquisa se realizou mediante aprovação do Comitê de ética em
pesquisa com seres humanos da Secretaria Estadual de Saúde do ES,
conforme a Resolução nº 196/96 do CNS.
Assim, a segunda etapa da pesquisa foi dedicada à construção e
realização das entrevistas, desde sua concepção metodológica até sua
realização com os usuários do medicamento em questão. Inicialmente, um
roteiro foi elaborado a fim de orientar as entrevistas, contendo eixos principais
trabalhados pela pesquisa. A saber:
1) Queixa/situação ou demanda que levaram ao diagnóstico de TDAH e a
prescrição de metilfenidato;
2) Experiência com o uso do medicamento;
3) Experiência do impacto do diagnóstico de TDAH;
4
Através da utilização destes eixos-guias, questões diversas foram sendo
pontuadas na entrevista no intuito de abordar a experiência da medicação e o
impacto do diagnóstico.
RESULTADOS
Experiência com o diagnóstico
De acordo com Hacking (2007), vivemos em um mundo de
classificações e estas têm efeitos particulares quando se referem a
comportamentos de pessoas. Pode-se dizer que sempre houve na história
formas de classificação, mas foi somente nos últimos 200 anos de nossa
história que o conhecimento científico tornou-se fundamental na definição do
que nós somos ou devemos ser e fazer. Hacking está interessado nas
classificações das ciências humanas, da medicina à sociologia. O autor utiliza a
expressão “making up people” para designar formas através das quais novas
classificações científicas (das ciências humanas especialmente) fazem emergir
novos seres, novas subjetividades, “tipos” de pessoas que não existiam antes
de serem classificadas. Poderíamos dizer que nos últimos 30 anos, no cenário
científico, as classificações biomédicas, baseadas nos saberes
neurocientíficos, têm ganhado cada vez mais legitimidade na definição do que
somos e de como devemos nos comportar (ROSE, 2007). O TDAH é um
diagnóstico biomédico e, portanto, uma classificação. Assim, analisamos o
diagnóstico do TDAH como uma tecnologia subjetiva que interfere diretamente
na produção da subjetividade dos indivíduos diagnosticados. Ele não
simplesmente revela o que estava oculto sobre a pessoa ou nomeia algo que já
presente de forma manifesta, mas interfere na sua constituição (HACKING,
2007).
A literatura sociológica tem destacado os diversos efeitos, muitas vezes
descritos como “benéficos”, do diagnóstico médico na vida das pessoas
diagnosticadas. Para muitos, ter um diagnóstico acena a possibilidade de cura
ou ao menos tratamento de uma situação geradora de sofrimento e mal-estar.
Nas palavras de uma entrevistada: “que bom saber que tudo tem hoje uma
solução, quando tem distúrbio, né?!”. O diagnóstico oferece ainda uma
resposta ou explicação para um comportamento que, por desviar da norma, é
experienciado como diferente e indesejado. Ele pode fazer com que uma
5
queixa ou demanda seja acolhida pelo sistema de saúde e garantir acesso a
outros direito. Um dos sujeitos da pesquisa, por exemplo, atesta receber passe
livre de ônibus, justificado pelo diagnóstico de TDAH. Quando se trata de
comportamentos vistos como desviantes ou socialmente indesejáveis, o
diagnóstico pode produzir um efeito desculpabilizante naqueles que eram
vistos e julgados como os únicos responsáveis pela conduta, agora explicada
em termos médicos (ROSE, 2007; CALIMAN, 2008; ORTEGA & ZORZANELLI,
2010).
Na literatura sobre o TDAH e nos sites da internet sobre o assunto, é
comum encontrarmos depoimentos de adultos diagnosticados destacando que
a identificação do diagnóstico mudou suas vidas de forma radical. Quase
sempre, esses depoimentos se dividem em dois grupos: o primeiro relata como
o diagnóstico do TDAH propiciou a constituição de um sentimento de
desculpabilização e alívio diante dos fracassos pessoais, antes vistos como
decorrentes da vontade individual. Nestes casos, aparentemente está em voga
um processo de identificação com o diagnóstico que produz o sentimento de
“ser um TDAH”. Diferentemente, o segundo grupo expõe o desconforto
individual e social no processo de passar a se ver (e ser visto) como um doente
mental, acometido por um transtorno cerebral, crônico e incurável.
As entrevistas realizadas colocaram em evidência que entre estes dois
polos, diversos outros efeitos são produzidos na experiência de ser
diagnosticado. Ao mesmo tempo, sentir-se desculpabilizado pelo diagnóstico
não impedia que a mesma pessoa descrevesse o peso ou desconforto de se
reconhecer ou ser reconhecido como portador de um transtorno mental, fosse
ele visto como “leve” ou “grave”. A relação estabelecida com o diagnóstico é
quase sempre mutante e não se assemelha aos relatos encontrados na
literatura. A dimensão experiencial parece portar, necessariamente,
sentimentos ambíguos e paradoxais.
A crença na cronicidade do transtorno é por vezes sentida como um
peso e, em alguns casos, surge atrelada à “possível” gravidade do problema: “o
que eu tenho é muito grave, [porque] não tem cura, é muito grave”. O fato de
considerar que o transtorno não tem cura e é muito grave faz com que o
tratamento medicamentoso ocupe um lugar central na vida destes sujeitos,
sendo vivenciado como uma necessidade da qual não se pode escapar.
6
Interrogado sobre os momentos nos quais seria desejável não tomar o
medicamento, um entrevistado declara que às vezes tem vontade de “se dar
férias”, mas interroga: “mas não tem cura, ‘né’?!”. Outra entrevistada, que
afirmava que seu caso era muito grave, também relatava que “sem o
medicamento não posso ficar”. Nestes casos, o tratamento medicamentoso
deixa de ser uma possibilidade terapêutica pontual para tornar-se uma
imposição da qual não se pode escapar.
Por outro lado, as pessoas que descreviam o TDAH como um “pequeno
transtorno” ou “apenas um déficit”, diferenciando-o de doenças “realmente
sérias”, apontavam para a possibilidade de uso circunstancial do medicamento.
Ao ser experienciado como situacional e pontual, o diagnóstico passa a
interferir menos na construção do que Ortega (2003) chamou de
bioidentidades. Nestes casos, se podemos falar que há uma identificação com
o transtorno, ela não é completa, na medida em que o diagnóstico é
transformado e apropriado pelos sujeitos de acordo com suas necessidades e
pode ser abandonado: “passou, hoje posso caminhar sozinha”. Percebe-se
aqui um uso ativo do diagnóstico, no qual os sujeitos deixam de ser vítimas de
uma classificação que aprisiona e impossibilita novas formas de produção de
subjetividade.
Em quase todas as falas surge o efeito “desculpabilizante” do
diagnóstico de TDAH. Uma entrevistada relata que, na faculdade, “se sentia a
burrinha da turma”. Ao receber o diagnóstico este sentimento é aliviado. Em
outro caso, no qual havia um relato de comparações na família, entre as
competências acadêmicas do jovem entrevistado e sua irmã, a explicação
diagnóstica fez com que “as coisas lá em casa ficassem mais tranquilas [...] eu
era a ovelha negra dos estudos”. Para outro entrevistado este efeito de
desculpabilização tornou-se aspecto crucial. O sentimento de culpa pelos
comportamentos indesejados, fracassos, impossibilidades esteve sempre
presente em sua vida. As cobranças e autocobranças eram constantes.
[...] quando eu descobri o transtorno eu falei assim, ‘pô, então eu não
sou incompetente, é um transtorno’ [...] e só isso já traz um alívio, que
tira um pouco o peso da incompetência, de você não ser compatível
com a sociedade, de você não ser capaz de produzir algo, quer dizer,
7
não, eu tenho limites pra produzir, mas eu posso produzir (Fala de um
entrevistado).
Impera em seu relato a lógica de uma sociedade culpabilizante e
competitiva, que responsabiliza cada um por seus sucessos e fracassos
(EHREMBERG, 2010). Nela, ser autônomo significa ser independente, o único
responsável pelo destino a ser individualmente traçado. Ao ser diagnosticado
com TDAH um pequeno desvio em tal lógica parece tornar-se possível. O
diagnóstico possibilita dizer que “não foi culpa sua”, “você não é o
responsável”. Para algumas pessoas, o impacto deste sentimento pode ser tão
marcante a ponto de sentir que “nasceu de novo”, quando recebeu o
diagnóstico de TDAH. Trajetórias profundamente marcadas pela culpabilização
e cobrança social parecem ganhar aqui uma redenção, mesmo quando há um
uso “consciente” da desculpa diagnóstica. Assume-se que, em certos
momentos, o diagnóstico é usado como uma autodefesa, “eu tenho que sair de
algum lado, alguém ‘ta’ me cobrando uma coisa que eu não consegui [...] eu
digo que o DDA não deixa eu fazer”. No entanto, um dilema ético passa a ser
vivenciado: “o que sou eu e o que é o TDAH? Quando é culpa minha e quando
meu comportamento resulta de uma incapacidade gerada pelo transtorno? Até
que ponto tenho usado do diagnóstico para justificar meu comportamento?”.
Como vimos na fala acima, o entrevistado acredita que o diagnóstico explica
que ele tem limites para produzir, mas que ele é capaz de produzir. Onde
estaria a fronteira? Esta é uma pergunta que ressoa nas falas, uma busca
continua: “É isso que eu preciso saber”. Ao responsabilizar o cérebro por certos
comportamentos, a explicação diagnóstica não possibilita completamente a
desconstrução da lógica individualista imbuída no culto à responsabilidade
individual. Permanece o sentimento de que, em alguma esfera, continuo sendo
o único responsável pelo meu destino.
Experiência com o uso do medicamento
As publicações médicas afirmam que o metilfenidato é imprescindível no
tratamento de TDAH (ORTEGA, 2010). As informações difundidas sobre o
medicamento em literatura científica e outros meios procuram destacar sua
eficácia e seus efeitos desejáveis. Sustentando estas posições está a crença
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em uma ação objetiva do medicamento sobre um corpo, independente de seu
caráter experiencial.
Todavia, estudos em Antropologia Médica têm contribuído para a
discussão das respostas individuais a psicofármacos e a seus efeitos, os quais
são experimentados em contextos reais de vida (SCHLOSSER &
NINNEMANN, 2012). Aponta-se aqui para a interação do medicamento com
um corpo biológico (zoé), que é também dotado de vida sociopolítica (bios),
sendo estes dois aspectos inseparáveis e em constante tensão (MA, 2012). Ao
mesmo tempo, estudos na área de farmacogenética apontam que, mesmo no
que poderia ser definido como efeito “químico” do medicamento, é preciso
considerar a singularidade de um organismo em interação constante com o
meio (NINNEMANN, 2012). É nesta direção que se critica a perspectiva
biomédica que descontextualiza o uso do medicamento da experiência de vida
desses usuários (SCHLOSSER & HOFFER, 2012).
Na pesquisa realizada, assim como o diagnóstico de TDAH é descrito
como uma tecnologia subjetiva, a Ritalina é pensada como um artefato que, em
relação com seus usuários, altera sujeito e mundo. O medicamento é
compreendido não como um “auxiliar externo às habilidades individuais”, mas
como um operador de transformações, “seja das habilidades cognitivas e das
tarefas, seja do próprio indivíduo e do seu mundo” (BRUNO, 2003). O
medicamento participa ativamente da própria construção da cognição2 e atua
sobre a atividade reflexiva dos sujeitos que o experimentam.
Destacam-se, nesse sentido, os relatos sobre a agressividade. Um dos
entrevistados, fortemente impactado pelo diagnóstico e pelo uso do
medicamento, traz questionamentos a respeito de quem ele realmente é.
Considera que o medicamento tem sido importante para as tarefas cotidianas,
mas com o uso do metilfenidato se defronta com a percepção de um novo “eu”.
Relata, a respeito da agressividade, que “não gostaria de me tornar essa
pessoa que eu to me tornando”. Em outra entrevista, a agressividade
2 O conceito de cognição aqui implicado baseia-se na compreensão de que os seres humanos são sistemas cognitivos constituídos por “uma topologia onde os limites entre o dentro e o fora, o interior e o exterior não são firmemente traçados pela pele dos indivíduos e não constituem dimensões espaciais estáticas e definidas de antemão, mas construídos e continuamente transformados ao longo de um processo de trocas e mediações” (BRUNO, 2003). Desse modo, tanto os processos mentais, como a linguagem, quanto os artefatos técnicos nos constituem como sujeitos e integram nosso pensamento, participando do modo como agimos sobre o mundo e de como concebemos a nós mesmos.
9
comparece de forma “desejável”. Em sua fala, o efeito do uso medicamento
comparece atrelado à luta por direitos e questionamentos em contexto
acadêmico. Neste caso, o efeito da Ritalina “parece que criou um novo mundo”.
O que seria o efeito de “melhora de comportamento” apontado pela literatura
médica? Percebemos que a experiência do uso do medicamento extrapola a
noção de eficácia medicamentosa, funcionando como uma tecnologia subjetiva
potente, alterando sujeito e mundo a um só tempo.
Destaca-se o uso do medicamento para fins de produtividade acadêmica
e de trabalho. Nestes casos, são relatados efeitos no estado de ânimo, que
retiram o sujeito da apatia – aqui a condição de “tônico do humor”, atribuída ao
medicamento em décadas passadas, conforme Dupanloup (2004), se faz
presente. Neste sentido, fala-se em um “up” produzido pelo medicamento, uma
energia para realização de tarefas. Entretanto, percebemos que esse efeito
produtivista de aumento do desempenho não está dado a priori. Uma das
entrevistadas, por exemplo, diz que com a Ritalina consegue “render mais”
para trabalhar, mas também para brigar. Outro entrevistado diz que, com a
Ritalina, tem sua capacidade de planejamento aumentada, mas que esta não
corresponde à efetiva execução da tarefa. A despeito de sentir que “rende
muito mais” sob o efeito do medicamento, uma entrevistada não sente o
mesmo especificamente em suas aulas de Inglês: “nem a Ritalina me segura
lá, é horrível”. Desse modo, a função de integração social dos psico-
estimulantes (EHREMBERG, 2010), característica de um uso para aumento da
performance produtiva, possui limites e não pode ser compreendida fora do
contexto de vida dos sujeitos que fazem uso do medicamento. Ainda que o
problema de concentração seja a principal queixa que leva ao uso do
medicamento, questões diversas da vida dos entrevistados ganham novos
contornos após o medicamento, resignificando a queixa inicial e modulando a
produção de si e de mundo dos sujeitos que fazem uso do metilfenidato.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da análise da experiência dos usuários percebemos que o
diagnóstico de TDAH e o uso de metilfenidato não produzem sempre o mesmo
efeito ou impacto na produção de subjetividade dos sujeitos diagnosticados.
Trata-se de uma relação na qual classificação e classificados transformam-se
10
mutuamente. Importa interrogar, portanto, a relação construída com o
diagnóstico e o medicamento e seus efeitos na vida dos sujeitos, que são
sempre circunstanciais e mutáveis. Não podemos desconsiderar, no entanto,
que vivemos em uma sociedade na qual impera o culto à performance
produtiva (EHREMBERG, 2010). Para muitos, é mais desejável ser
considerado doente ou portador de um transtorno do que carregar a culpa
advinda do processo de individualização e responsabilização dos nossos
sucessos e fracassos (COSTA, 2005; ROSE, 2007). Mas a que custo? É
preciso interrogar.
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11
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OS IMPACTOS IATROGENICOS DA MEDICALIZAÇÃO NA VIDA SOCIOEDUCACIONAL DA CRIANÇA EM IDADE ESCOLAR
Sílvia Ester Orrú1 – Universidade de Brasília
Ana Luiza Sá Alvarenga2 – Universidade de Brasília
Resumo
Este artigo é fruto de revisão crítica da literatura acerca dos impactos iatrogênicos da
medicalização na vida social e escolar de crianças que, indiscriminadamente,
recebem diagnósticos de supostas doenças, síndromes ou transtornos que as
caracterizam em sua essência como doentes ou anormais. O processo investigativo
partiu da análise conceitual no campo de ação social, cultural e educacional sobre os
efeitos iatrogênicos da medicalização como ferramenta para controle do
comportamento das pessoas frente à sociedade. O método empregado foi a
investigação documental e a análise de artigos que dizem respeito aos processos
iatrogênicos e seus impactos na vida de crianças em idade escolar. Tem como
objetivo promover à reflexão por meio de análise crítica sobre o tema que aponta a
propensão à medicalização exacerbada, à aniquilação do sujeito, além dos cuidados
sobre os efeitos iatrogênicos que podem prejudicar o desenvolvimento e a
aprendizagem de crianças em idade escolar.
Palavras-chave: iatrogenia; medicalização; crianças em idade escolar
Quadro Conceitual
O texto se constitui por uma reflexão acerca dos impactos iatrogênicos na
vida social e escolar de crianças que, indiscriminadamente, recebem diagnósticos de
1Docente do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Brasília. Contato: [email protected] 2 Mestranda do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Brasília. Contato: [email protected]
2
supostas doenças, síndromes ou transtornos que as caracterizam em sua essência
como “transtornadas”. O processo de construção do texto partiu da análise
conceitual no campo de ação social, cultural e educacional sobre os efeitos
iatrogênicos da medicalização como uma ferramenta de controle do comportamento
das pessoas frente à sociedade.
Objetivo
O principal objetivo é promover à reflexão por meio de análise crítica sobre o
tema desenvolvido que aponta a propensão à medicalização exacerbada, o controle
do comportamento da criança, à aniquilação do sujeito como ser social, além dos
cuidados sobre os efeitos iatrogênicos que podem prejudicar seriamente o
desenvolvimento da aprendizagem de crianças altamente medicalizadas a partir de
diagnósticos de supostos transtornos psíquicos.
Metodologia
Qualifica-se como revisão crítica da literatura cujo referencial teórico é
marcante e incisivo no tocante à análise construída acerca da temática proposta. O
método empregado foi a investigação documental e a análise de artigos nacionais e
internacionais que dizem respeito aos processos iatrogênicos da medicalização e
seus impactos na vida de crianças em idade escolar.
Discussão dos resultados da pesquisa
A realidade do impacto da medicalização na vida da criança com idade
escolar
A criança cujo diagnóstico lhe é imposto tem sua marca biológica espelhada
como um fator determinante para o fracasso em seu processo de aprendizagem. Ela
sofre o peso do estigma de ser percebida como alguém doente ou anormal, carrega
sobre si a culpa pelo não aprender e passa a ser invisível como sujeito singular. Ela
é a materialização da doença, síndrome, anormalidade ou transtornos imputados
pelo diagnóstico. Ao referirem-se a ela apontam ser a autista, o TDAH, o esquisito,
3
sua identidade é o reflexo da anormalidade. Nesta percepção é comum ouvirmos as
frases: “os autistas vivem isolados”, “os TDAHs são agressivos”, “Muitos Downs
aprendem”. Já não há mais a singularidade, a subjetividade do João, da Juliana, do
Marcos, há nomeações e classificações coletivas baseadas nos parâmetros
patológicos. Esse talvez seja o pior dos efeitos iatrogênicos que se perpetuam de
modo histórico, social e cultural na vida destas crianças.
A medicalização por sua vez, numa tentativa de contorlar, estirpar ou
modificar os comportamentos indesejáveis identificados a partir do diagnóstico da
suposta doença ou transtorno, submete a criança a sérios e comprometedores
efeitos colaterais. A exemplo do encontrado na bula da Ritalina, os efeitos colaterais
das drogas provocam sintomas similares aos de graves doenças mentais
consideradas graves e, inclusive, podem gerar outras doenças psíquicas e danos
cerebrais. Em nossa pesquisa analisamos os sintomas mais comuns em
psicotrópicos prescritos para crianças com algum tipo de transtorno mental, tal como
é entendido pela psiquiatria: Rivotril: xerostomia (Secura excessiva da boca devido à
secreção insuficiente ou deficiente de saliva), fraqueza muscular, tontura, amnésia.
Haloperidol: insônia, fraqueza, tremores, anemia, edema cerebral, tontura. Concerta:
dor de cabeça, dor de estômago, insônia e redução do apetite, náusea, vômito,
tontura, nervosismo, tiques, reações alérgicas, aumento da pressão arterial e
psicose (pensamentos anormais ou alucinações) (Ebah, 2013). A respeito do
Metilfenidato, o princípio ativo da Ritalina e Concerta, esses são seus efeitos
colaterais descritos:
Acatisia (agitação), Alopécia (queda de cabelos), Alteração da pressão e dos batimentos cardíacos (aumento ou redução), Alteração do humor, Angina (dor no coração devida a isquemia miocardíaca, resultante da falta de sangue, que aumenta a falta de suprimento de oxigênio nos músculos cardíacos), Arritmia cardíaca, Ataques de ansiedade ou pânico, Dilatação das pupilas, Dores de cabeça, Dores no estômago, Discinesia (presente em pacientes com mal de Parkinson), Enjôos, Hipersensibilidade (incluindo coceiras na pele, urticária), Insônia, Interrupção do crescimento, Letargia, Perda de apetite, Perda de sono, Palpitações, Perda de peso temporária, Ressecamento dos lábios (xerostomia), Sonolência, Sudoração excessiva, Taquicardia, Tonturas, Perda de peso, hepatoblastoma, anemia, leucopenia, hipersensibilidade, visão embaçada e convulsões.
4
Nesta direção, a criança assujeitada à medicalização descrita se encontra
numa condição passiva de apresentar quaisquer dos efeitos colaterais dispostos e,
cientificamente comprovados pelos laboratórios farmacêuticos. Portanto, ao invés da
sociedade (da escola) aprender a aceitar, a lidar, a trabalhar com as novas
configurações subjetivas que as crianças apresentam e com seus novos modos de
se relacionarem com o mundo que as cerca, preferem se render a psiquiatrização e
a medicalização da vida, sem se questionar sobre o impacto iatrogênico
socioeducacional na vida da criança, tampouco sem questionar sobre os interesses
comerciais da indústria farmacêutica.
Concretamente, o que podemos dizer é que o transtorno do déficit de atenção
e hiperatividade, o transtorno do espectro do autismo são apenas dois dos 374
transtornos mentais listados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM) da Associação Psiquiátrica Americana (APA). Contudo, segundo
Tana Dineen:
Ao contrário dos diagnósticos médicos que comunicam uma causa provável, tratamento apropriado e também prognósticos, os transtornos listados no DSM–IV (e CID–10) são termos a que se chegou através de consenso entre semelhantes” — literalmente, um voto pelos membros do comité da APA — e desenvolvido amplamente para propósitos lucrativos. (Eastgate, J, 2013, p. 1)
E ainda, segundo Paul R. McHugh, professor de psiquiatria na Escola de
Medicina da Universidade Johns Hopkins, por causa do DSM:
Pessoas incansáveis e impacientes são convencidas de que tem transtorno de déficit de atenção (ADD); pessoas ansiosas, alertas sofrem de stress pós–traumático (PTSD); pessoas teimosas, ordeiras e perfeccionistas sofrem com o transtorno obsessivo–compulsivo (TOC); pessoas tímidas, sensíveis, que manifestam transtorno de personalidade esquiva (APD), ou fobia social. Todos foram convencidos de que o que realmente importa sobre a sua individualidade são, pelo contrário, problemas médicos e que como tais devem ser resolvidos com drogas. E, o mais preocupante de tudo, onde quer que olhe, essas pessoas encontram psiquiatras
5
dispostos, e até ansiosos, para acomodá–los. Com a sua paixão recente por remédios sintomáticos e de prescrição automática, a psiquiatria perdeu o seu caminho, não só intelectualmente, mas também espiritual e moralmente. (Eastgate, J, 2013, p. 2)
É impressionante notar como a sociedade aceitou bem as classificações e
imposições do DSM sem questionar a real gênese dos transtornos nominados. De
acordo com Baughman, um neurologista pediátrico,
Muitos medicamentos psiquiátricos para o TDAH e outras questões da infância interferem com o desenvolvimento adequado do cérebro, que tem um impacto a longo prazo na vida da criança e de bem-estar. Enquanto os pais e encarregados de educação são esperados para defender a criança, na verdade, porque o sistema médico convencional tende a impotência do pai em tais decisões, muitos pais, incluindo os que não desejam a usar drogas aos seus filhos são oprimidos pela influência da escola e as figuras de autoridade que defendem o uso de medicamentos de primeira sobre seus filhos. O resultado é que uma criança não tem defensor eficaz e drogas viciantes e prejudiciais são forçados a ele sem o seu consentimento, apesar de haver muitos estressores potenciais tais como a negligência dos pais, a má nutrição, a comida lixo tóxico e intimidação que não tenham sido previamente eliminados. (Baughman, F. 2005/06)
Na verdade, o que realmente podemos afirmar é que até a presente data não
há comprovações da existência de uma doença neurológico-psiquiátrica que
realmente comprometa a aprendizagem.
Contribuições da abordagem histórico-cultural para uma concepção do sujeito
cujo fator biológico não é determinante para o desenvolvimento da
aprendizagem
Segundo a abordagem histórico-cultural no que diz respeito ao
desenvolvimento da criança e sua aprendizagem, esta ocorre mediante a
transformação construtiva de pensamentos, sentimentos e ações, envolvendo uma
6
interação entre conhecimentos preliminares e conhecimentos novos que constroem
outros significados psicológicos, resultantes em outras ações, pensamento e
linguagem. Desenvolvimento e aprendizagem são coisas distintas e relacionadas,
sendo preciso considerar o nível de desenvolvimento já conquistado e também o
nível de desenvolvimento emergente ligado à capacidade de resolução de
problemas, a partir do auxílio de outras pessoas que se encontram mais
experientes ou possibilitadas, indicando que a criança poderá ser autônoma no
porvir quando o nível de desenvolvimento da mesma permitir (Vigotsky, 1994). Com
relação ao desenvolvimento da atenção, o indivíduo durante toda sua vida constrói
signos que o possibilitam ter conhecimento sobre os estímulos diversos que lhe
exercem influência, igualmente, conhecer e dominar seus processos de
comportamento e desenvolver e tomar para si o autocontrole daquilo que faz, sente
e pensa (Vigotski, 1995).
Na perspectiva histórico-cultural, o aluno é sujeito ativo de seu processo de
formação e desenvolvimento intelectual, social e afetivo. O professor cumpre o papel
de mediador desse processo com o proporcionamento e favorecimento da inter-
relação (encontro/confronto) entre o sujeito, o aluno, e o objeto de seu
conhecimento, que é o conteúdo escolar (Orrú, 2010).
Nesse processo de mediação, o saber do aluno, enquanto sujeito ativo é
muito importante na formação de seu conhecimento. O ensino é compreendido
como uma intervenção repleta de intencionalidade, inferindo nos processos
intelectuais, sociais e afetivos do aluno, visando à construção do conhecimento por
parte do mesmo, sendo ele o centro do ensino, o sujeito do processo. Portanto,
neste sentido, o professor deve ser um mediador que explora a sensibilidade de seu
aluno a fim de perceber quais são os significados construídos por seus alunos com
referência aos conceitos que estão sendo formados, quer sejam conceitos mais
elementares ou complexos.
O fator biológico não deve ser considerado como determinante para o
desenvolvimento e aprendizagem da criança. Segundo as proposições de Vigotsky
(1997) acerca da criança com dificuldades de aprendizagem e seu desenvolvimento
são importantes com relação à determinação da maneira como essa condição deve
ser compreendida e trabalhada no contexto da educação, conferindo a este aluno o
7
direito a seu papel ativo na construção de seu desenvolvimento, a partir de sua
capacidade individual de apropriar-se e internalizar formas sociais de
comportamento como participante de seu processo de conhecimento como
sujeito histórico. Deste modo, esta criança passa a ser percebida e compreendida
como indivíduo possuidor de diferentes capacidades e potencialidades em
emergência que devem ser encorajadas para serem o alicerce do
desenvolvimento das funções superiores. (Orrú, 2008)
Sob este prisma, o professor deve ser um facilitador da aprendizagem, um
mediador envolvido e participante ativo de todo esse contexto e o aluno deve ser
concebido como sujeito ativo da construção de sua história, de seu aprendizado, um
sujeito com possibilidades de aprendizagem. A supervalorização dos diagnósticos
pela escola e seu apoio à medicalização da vida da criança são caminhos opostos
cujo enfoque é a desconsideração da subjetividade do sujeito e aniquilação de sua
personalidade. É a expressão mais nítida de barreiras atitudinais que adjetivam uma
escola excludente e esse não deveria ser o reflexo de uma instituição formadora de
cidadãos.
Conclusões
A partir da pesquisa realizada é conclusivo que a forte tendência à
medicalização da sociedade tem alcançado a vida de muitas crianças em idade
escolar. Essa medicalização indiscriminada que se justifica a partir dos critérios
diagnósticos que materializam supostos transtornos psíquicos na criança, tem as
conduzido às inúmeras dificuldades no processo de aprendizagem produzidas por
efeitos colaterais diversos. A medicalização nesses parâmetros sobressalta os
resultados iatrogênicos na vida sócio-educacional da criança numa tentativa de
homogeneização que acaba por aniquilar o sujeito.
Percebe-se também que a realidade educacional em que vivemos muitas
vezes impede que a criança com alguma necessidade especial ou dificuldades de
aprendizagem se desenvolva plenamente em razão de conclusões precipitadas,
preconceituosas e estigmatizantes acerca de seu processo de desenvolvimento e
aprendizagem.
8
Ao professor não cabe diagnosticar doenças, tampouco justificar suas falhas
a partir das singularidades de seus alunos e diagnóstico médico impetrado. O fator
biológico não é determinante para o fracasso escolar e até o momento presente não
há comprovações de que exista uma doença de cunho psiquiátrico que comprometa
o processo de aprendizagem das pessoas.
À escola cabe promover e favorecer a educação de todos e para todos a
partir da organização do meio social e a favor de um processo de ensinar e aprender
repleto de sentido e significado para os alunos.
As crianças com diagnósticos de supostos transtornos psíquicos devem ser
concebidas como sujeitos ativos de seu processo de aprender, sem desconsiderar
os aspectos: biológico, social, cultural, histórico e suas singularidades que as
constituem de modo pleno e integral.
Cabe à escola se preparar continuamente para uma prática pedagógica na
qual tanto a coletividade quanto a individualidade sejam favorecedoras e promotoras
do desenvolvimento da aprendizagem de todos os alunos de modo que todos se
relacionem, sejam acolhidos pela escola, participem e compartilhem de todas as
atividades desenvolvidas.
Finalmente, destacamos que as relações sociais são geradoras de
transformações no desenvolvimento humano. Por conseguinte, a escola não deve
focar suas práticas pedagógicas nos quadros sintomáticos, nas falhas, nos déficits,
como ocorre comumente nos critérios diagnósticos, ao contrário, deve prestigiar e
sobressaltar as possibilidades que podem ser desenvolvidas pelo sujeito que
aprende, tal como é próprio da espécie humana.
Referencias bibliográficas
AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION - APA. (1995). DSM-IV: Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Brasil, Porto Alegre: Artmed. BAUGHMAN, F. Porque Drogas Psicotrópicas não deve ser usado em crianças. Entrevista com Mike Adams, Editora Verdade, 2005/06. Disponível em: http://emaxilab.com/saude-e-bem-estar-artigo-2-7068.html Acesso em: 27/03/2013. EASTGATE, J. Distúrbios Inventados: Para Lucrar com as Drogas. Comissão dos Cidadãos para os Direitos Humanos Internacional. Disponível em:
9
http://www.cchr.pt/cchr-reports/inventing-disorders/introduction.html Acesso em: 27/03/2013. EBAH. Fármacos Psicotrópicos. Disponível em: http://www.ebah.com.br/content/ABAAAAzBIAD/farmacos-psicotropicos Acesso em: 27/03/2013. ORRÚ, S.E. Contribuições da abordagem histórico-cultural na educação de alunos autistas. Rev Hum Med v.10 n.3 Ciudad de Camaguey sep.-dic. 2010 ORRÚ, S.E. Os estudos da análise do comportamento e a abordagem histórico-cultural no trabalho educacional com autistas. Revista Iberoamericana de Educacion. n.º 45/3 – 25 de febrero de 2008. VIGOTSKI, L.S. (1995) Obras Escogidas III. Madri: Visor. VIGOTSKY, L. S. (1994). A formação social da mente. . São Paulo: Martins Fontes.
VIGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia. In: Obras completas. Tomo V.
Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1997.
1
Percepções acerca da medicalização na educação na cidade de Piracicaba
Ana Paula Witzel Beltrame – UNIMEP Camila Cobelhanski Evans Miras – UNIMEP
Marcelo Silveira Coury - UNIMEP Orientadora - Prof Drª Nilce Arruda Campos- UNIMEP
(Universidade Metodista de Piracicaba)
Palavras – chave: medicalização – percepções – entrevistas
QUADRO CONCEITUAL
O que se tem visto nos últimos tempos, com relação às dificuldades escolares de
grande parte das crianças das escolas públicas é o retorno das explicações biológicas para
justificar as defasagens no aprendizado. É a chamada medicalização da educação que é
definida por especialistas de educação, psicologia e pediatria como um processo que
transforma questões coletivas e sociais em questões individuais e biológicas, mais
especificamente em doença1.
As discussões críticas sobre a Medicalização do processo ensino/aprendizagem
começaram a ganhar corpo através das pesquisas realizadas, principalmente, por Maria
Aparecida Affonso Moysés e Cecília Azevedo Lima Collares. Segundo as autoras (2010) para
compreendermos o fenômeno da medicalização é, primordialmente, necessário conceitua-lo e
identificá-lo de acordo com sua historicidade.
No Brasil o termo medicalizar foi amplamente difundido, na década de 70, como
decorrência da prática de submeter às dificuldades escolares observadas em crianças de
baixa renda ao tratamento médico. Já nesta época, a utilização do termo ocorria para retirar o
foco dos problemas escolares que deveriam ser debatidos e resolvidos para deixar ocultas as
precárias políticas governamentais na área da educação.
Conforme Moyses e Collares (2010), no contexto no qual houve o surgimento do termo
“medicalização” a ciência médica empenhava-se em fornecer aos sintomas suas doenças,
suas causas. Contudo, no campo educacional medicalizar passou a ter o sentido reducionista
1 Página da internet do Forúm sobre medicalização da Educação e Sociedade (2011)
2
de encurtar caminhos, de patologizar um fenômeno crescente e isso vem ocorrendo até os
dias atuais. Para as autoras, a análise da problemática na aprendizagem em termos escolares
deveria ser abordada à luz da antropologia, sociologia, economia, história, ciências políticas,
psicologia e, também, medicina, e não exclusivamente desta última.
Ademais, é de se verificar que por não tratar-se verdadeiramente de uma doença, são
vários os riscos e consequências de se utilizar uma determinada droga, com o intuito de
supostamente cessar o problema hoje, criando, porém, sérias e danosas consequências
futuras diante da periculosidade e dos transtornos causados por essas drogas nos
organismos das crianças e adolescentes. Segundo Aguiar: (2004, p. 133)
“O conceito de medicalização, bastante usado na sociologia, foi inicialmente proposto por Irving Zola em 1972, e se referia à expansão da jurisdição da profissão médica para novos domínios, em particular àqueles que dizem respeito a problemas considerados da ordem espiritual/moral ou legal/criminal. (...) Os teóricos críticos à medicalização consideravam a medicina um agente de controle social, na medida em que ele traduzia fenômenos sociais – como o alcoolismo, a homossexualidade, o aborto e o uso de drogas – em conceitos médicos, incluindo esses problemas no domínio do saber e das instituições médicas. (...) Determinados problemas sociais foram, cada vez mais, sendo medicalizados, ou seja, vistos sob o prisma da medicina como “doenças” a serem tratadas.”
Hoje em dia medicalizar significa, segundo Moysés (2010): “definir em termos médicos,
problemas sociais e buscar sua origem na biologia.”2 Essa ação empregada por diversas
ciências vem ditando a reprodução das relações sociais, dentro de um sistema capitalista que
tende a uma homogeneização, uma adaptação dos indivíduos, docilizando e padronizando
comportamentos.
Moysés e Collares (2010) apontam que o TDAH e a Dislexia são hoje os dois principais
distúrbios na aprendizagem identificados em crianças que possuem o comportamento
contrário ao esperado. O grande problema é que estes transtornos diagnosticados por
profissionais multidisciplinares (neurologistas, psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos,
entre outros) estão sendo solucionados com a prescrição de medicamentos à base de
metilfenidato, que possuem o nome comercial de Ritalina® e Concerta®, acarretando muitos
2 Conselho Regional de Psicologia, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Organizador). Medicalização de Crianças e Adolescentes ‐ conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, (2010), pág. 150.
3
outros problemas, entre eles, a predisposição ao vício de outras drogas que possuem
anfetamina, como a cocaína e a heroína.
Ray Moynihan e Allan Cassels (2007), jornalista e pesquisador, respectivamente,
alertam quanto às estratégias da indústria farmacêutica, para perpetuar a medicalização
induzindo, cada vez mais pessoas saudáveis ao uso de medicação. Neste estudo os autores
identificam o “epicentro” das vendas como sendo os Estados Unidos, porém, apontam que a
venda de medicamentos ligados aos transtornos na aprendizagem, também, é bastante
expressiva no Brasil.
O tema da Medicalização e patologização da vida vem sendo incluso, também, nos
Projetos Integradores desde 2012 pelo CRP-SP (Conselho Regional de Psicologia-SP), sendo
uma temática que discute os efeitos deste processo. Conforme a atual gestão e das diretrizes
do planejamento estratégico, um dos seis projetos integradores, sobre o nome de
“Medicalização e Patologização da Vida”:
“Estes são exemplos de questões sociais que são artificialmente transformadas em problemas individuais. As soluções usualmente dotadas pela sociedade são consideradas pela Psicologia como adoecedoras e, muitas vezes, criminalizantes.” 3
Conforme os dados obtidos por Moysés e Collares (2010) podemos ter uma ideia do
montante econômico que mobiliza:
“A produção mundial de metilfenidato (MPH), a droga mais usada para pessoas rotuladas com TDAH, cresceu 400% entre 1993 e 2003. (...) Nesse ano [2008], ao preço no varejo, gastou-se cerca de 88 milhões de reais com a compra de metilfenidato.”4
Observa-se, portanto, que quando o esforço e o investimento na Educação das
crianças são ineficientes, muito trabalhosos ou excessivamente custosos, a saída mais prática
e rápida utilizada pelos profissionais da educação parece ser a de usar, ou apoiar o uso, de
medicamentos que alterando a atividade neuroquímica dos estudantes, controlem suas
atitudes e “domem seus impulsos”.
3 http://www.crpsp.org.br/portal/conselho/pis.aspx, acesso em 6/5/2013.
4 Conselho Regional de Psicologia, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Organizador). Medicalização de Crianças e Adolescentes ‐ conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São
Paulo: Casa do Psicólogo, (2010), pág. 96.
4
Atualmente vários são os movimentos que ocorrem com a finalidade de barrar esse
processo de medicalização das questões sociais. As mais diferentes áreas de atuação vêm se
juntando, através de seminários, simpósios e fóruns, a fim de denunciar e dar visibilidade
crítica às posturas medicalizantes entre vários profissionais ligados a saúde e a educação.
No entanto, infelizmente, a psicopatologização dos problemas escolares, que afirma
que os transtornos educativos devem ser tratados e medicalizados, parece ainda ter primazia
na maior parte dos discursos dos profissionais que lidam com os processos educativos, basta
ver as reportagens e artigos veiculados pela mídia nos últimos tempos que mostram o grande
número de crianças rotuladas como portadoras de TDAH ou Dislexias.
Com relação aos profissionais da educação observa-se que a patologização tem sido a
alternativa utilizada para explicar as dificuldades dos alunos em sala de aula. Essa postura
dificulta a ruptura com uma concepção de educação que tem produzido o fracasso escolar e
tem facilitado a medicalização. Segundo Valla (1992):
“Atribuindo a responsabilidade ao “outro”, profissionais de educação fazem da culpabilização do aluno uma solução mais fácil para não se exporem, fugindo à reflexão quanto ao seu papel na instituição escola. Desse modo o fracasso escolar transforma-se em uma questão de incapacidade pessoal.”
Foi a preocupação com as questões acima expostas que nos impulsionou a investigar
se os discursos medicalizantes, se encontravam absorvidos pelo cotidiano das escolas
públicas do Município de Piracicaba apresentado neste artigo.
Objetivos
O objetivo do presente trabalho é investigar as percepções de alguns profissionais
ligados à educação a fim de verificar como em seus discursos aparecem às questões
referentes à medicalização dos processos educativos.
Metodologia
A metodologia adotada para a realização deste trabalho foi à entrevista dirigida, a fim
de atender melhor à investigação e poder retirar conclusões da rotina escolar acerca do
assunto debatido. A focused interview tem como essencial objetivo abordar experiências
vividas à luz de determinado tema, por isso a nossa opção por esta modalidade de entrevista.
Assim, podemos conhecer o modo de pensar a medicalização daqueles que realmente se
deparam com o tema no dia-a-dia escolar.
5
As entrevistas foram realizadas no próprio ambiente escolar de trabalho dos
entrevistados por livre escolha. Os sujeitos foram escolhidos de forma aleatória. A coleta dos
dados foi realizada por estudantes de Psicologia, da Universidade Metodista de Piracicaba,
dois do 3º semestre do curso de Psicologia e um do 9º semestre. Foram entrevistados 20
profissionais da Educação pertencentes a quatro escolas: duas Públicas e duas particulares,
pertencentes à cidade de Piracicaba, interior do estado de São Paulo.
Foram elaboradas duas questões norteadoras das entrevistas: A primeira: “O que você
faz quando um aluno apresenta dificuldades de aprendizagem”. E a segunda: “Qual a sua
opinião a respeito do uso de medicamentos quando a criança apresenta alguma dificuldade
de aprendizagem?”.
É válido ressaltar que todos os integrantes da pesquisa, assinaram o termo de
consentimento. Foram utilizados para a mesma, gravadores e registro cursivo. A analise dos
dados foi realizado a partir de três eixos aglutinadores: respostas que concordam com o
processo de medicalização, respostas que negam esse processo e respostas que expressam
ambivalência com relação a utilização ou não utilização da medicalização.
Resultados
Com relação aos dados obtidos no levantamento de dados com relação a primeira
questão “O que você faz quando um aluno apresenta dificuldades de aprendizagem?”,
pudemos observar duas categorias de respostas: a primeira, que agrupa a maioria das
respostas refere-se aqueles profissionais que encontram a solução para as dificuldades de
seus alunos encaminhando o aluno diretamente ao médico. Vejamos alguns exemplos nos
fragmentos abaixo:
“Primeiro trabalho com atividades diferenciadas para que este supere sua dificuldade. Se não houver nenhum avanço na aprendizagem será conversado com a direção da escola e com os pais para que seja encaminhada ao neurologista (...). ou (...) caso o diagnóstico da criança for dificuldade cognitiva, a criança deve ser encaminhada para um psicopedagogo que poderá ajudar no desenvolvimento dos processos de aprendizagem. Se for gerador por um fator emocional, psicólogos e psicanalistas com especialização em clínica infantil, são os profissionais adequados para realizar uma avaliação e tratar da criança. Ainda o acompanhamento com o neurologista ou o fonoaudiólogo é indispensável diante deste diagnóstico.”
A segunda categoria, de respostas obtidas a essa questão aparece em menor número
e tende a expressar à compreensão do profissional de que a solução para as dificuldades da
6
aprendizagem depende de certo esforço do professor que deve alterar seu processo
pedagógico a fim de possibilitar alternativas para a aprendizagem da criança, porém assim
mesmo não deixam de explicitar dúvidas sobre a responsabilidade de o problema centrar-se
no próprio aluno devido a sua família. Vejamos alguns exemplos:
“Nem sempre a metodologia que o professor utiliza, é suficiente para garantir a aprendizagem do aluno. Lembre-se: Cada um aprende de um jeito. Se o aluno não conseguiu entender o que lhe foi passado, procuro explicar o mesmo conteúdo de outras maneiras. Uso outros exemplos, outros materiais, outras técnicas. E sempre me pergunto: será que o aluno está passando por algum problema emocional? ou (...) Procuro saber se o aluno esteve mentalmente presente na sala de aulas, se realmente esteve interessado, para fazer outras atividades e, ainda me pergunto se há um interesse dos pais pelo aprendizado do(a) filho(a) e como está sendo discutido: a importância do ensino e aprendizagem.”
Com relação à segunda pergunta “Qual sua opinião a respeito do uso de
medicamentos quando a criança apresenta alguma dificuldade de aprendizagem?”, pudemos
observar três categorias de respostas:
A primeira refere-se aos profissionais que aderem claramente ao uso de medicação
como solução para as dificuldades de aprendizagem. Cabe salientar, no entanto que esses
profissionais não compõe a maioria das respostas encontradas perfazendo 30% delas.
Vejamos alguns exemplos:
“Acredito que se o médico receitar é porque há a necessidade, não sou contra. Pelas experiências que já tive com alunos que tomavam medicamento e melhoraram bastante. (...) ou (...) sim, sou totalmente a favor, visto que podem acontecer várias situações, falta de Vitaminas do Complexo B, além de alimentos muito industrializados que provocam até queda de pressão arterial, atrapalhando inclusive a circulação normal de sangue no cérebro, dentre outras.”
A segunda categoria de respostas refere-se aqueles profissionais que recusam
totalmente ao uso de medicamentos. Como era de se esperar diante do histórico processo de
medicalização das questões educativas, o número de respostas aqui classificadas perfaz 10%
das entrevistas realizadas. Vejamos alguns exemplos:
“Sou totalmente contra medicamentos. Existem outras formas, por exemplo o esporte(...)”
Por fim, a última categoria, que perfaz 60% das respostas observadas refere-se ao que
denominamos de respostas ambivalentes que são aquelas que apesar de negarem a
7
medicalização, relativizam a possibilidade de utilização de remédios em alguns casos.
Vejamos alguns exemplos:
“Concordo com o uso de medicamentos que sane algum problema específico que possa levar à dificuldade de aprendizagem, entre outros danos. Só a dificuldade de aprendizagem, isoladamente, não é razão para medicar(...) ou (...) Acredito que existam certas dificuldades muito específicas, onde há a necessidade de medicação, mas para ser sincero em muitos casos presenciei dificuldades maiores ainda, além de "oscilações" por conta das trocas de e tentativas de novos medicamentos.(...) ou (...) Acho que os pais devem procurar um profissional que oriente, compartilhe e explique, de modo que eles tenham consciência das consequências positivas e negativas dos tratamentos com e sem medicação. Existem crianças que não precisam de drogas e estão tomando, assim como várias outras que precisam e não estão sendo medicadas.(...) ou (...)- Na minha opinião o uso de medicamentos tem que ser algo bem estudado. Acredito que a maioria com alguma dificuldade não precise de remédio e sim de atendimento.”
De modo geral podemos afirmar que as entrevistas realizadas com os profissionais da
educação expressam que a velha temática do fracasso escolar ainda é colocada na família
e/ou na criança. Pode-se perceber claramente uma biologização e medicalização do
comportamento da criança por parte dos profissionais entrevistados, assim como uma
responsabilização da família pelo fracasso dessa criança, por ser parte de um grupo
desestruturado, de pais alcoólatras, desatenciosos, isto é, referem-se a uma família
idealizada, totalmente distante da real.
Transparece nas respostas não haver entendimento de qual é a origem das dificuldades
– pois numa mesma entrevista pode-se encontrar argumentos referentes às causas de origem
orgânica, intelectual, cognitiva, emocional/comportamental, e outras que se fixam na base
educacional, relacional e estrutural da família. Pode-se afirmar que praticamente não há
reflexões e/ou questionamentos sobre o próprio fazer didático-pedagógico, sobre a relação
ensino/aprendizagem e a dificuldade do aluno em aprender. A necessidade de encontrar um
responsável pelo insucesso das crianças parece levar esses profissionais a , rapidamente,
estigmatizarem as crianças e a aderirem ao processo de medicalização.
Conclusão
Diante das análises acima realizadas podemos concluir que as concepções
medicalizantes, ainda, predominam como percepções por parte dos profissionais ligados à
educação. No entanto, ressalta-se que a ambivalência observada na maioria das entrevistas
parece nos dar indícios de que as discussões críticas desenvolvidas em âmbito nacional,
8
pelos atuais Seminários, Simpósios e Fóruns de Medicalização da Educação e da Sociedade
já estão produzindo alguns resultados, pois expressam estar abalando as certezas que levam
os profissionais a aderir de modo incondicional aos discursos medicalizantes.
Eventos como estes são de suma importância, pois coloca em cheque a visão
autoritária da indústria farmacológica, bem como a visão organicista que centra as
explicações apenas no indivíduo. A partir da investigação pode-se conjecturar que os
processos de discussão e tematização da medicalização da educação ainda devem percorrer
um longo caminho, uma vez que pode-se observar a ambivalência nas percepções dos
profissionais dessa área, mas é exatamente essa ambivalência que nos da a certeza de que
avanços já foram conquistados!
Bibliografia
Conselho Regional de Psicologia, Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Organizador). Medicalização de Crianças e Adolescentes - conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Ed. Casa do Psicólogo, 2010.
Moysés, Maria Aparecida Affonso; Garrido, Juliana. Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Ed. Casa do Psicológo. 2010, pág.151 a 159.
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RYAN, W. Blaming the victim. Nova Iorque, Random House, 1971.
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VALLA,V.V. Educação e cidadania:investigação científica e assessoria popular. Cadernos de saúde pública v. 8, n.1, jan/mar. Rio de Janeiro, 1992.
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http://www.crpsp.org.br/medicalizacao/, acesso em 6/5/2013.
Psicodiagnóstico Interventivo X Medicalização: possibilidades de
prevenção junto a uma constituição de família.
O presente trabalho tem como objetivo apontar as possibilidades de um
trabalho em psicodiagnóstico em uma clínica escola de Sorocaba no
enfrentamento do uso abusivo de medicalização, quando o jovem casal vem com
a queixa de suspeita de TDAH de sua filha de dois anos de idade. A mãe relata
que M. (como a chamaremos) já toma “passiflora” para acalmá-la, por
recomendação médica e que esta nos indicou para um psicodiagnóstico.
O incômodo dos pais era o de que a filha era muito agitada e se
autoagredia fisicamente, batendo contra seu rosto, em outras pessoas ou
arremessando objetos quando frustrada. Diziam que sua agressividade estava
mais dirigida á figura da mãe.
A família veio em busca de tratamento para o comportamento de sua filha,
que foi considerado por eles como agressivo, incômodo, hiperativo.
Contextualização do TDA neste contexto familiar
Os pais que aparecem na clínica com esta demanda, parecem ter instituído
a ideologia que subjaz à medicalização é a tendência em se discriminar condutas
tidas como “desviantes” – leia-se: intolerância à diversidade. Essa tendência
explica a fácil aceitação do discurso medicalizante.
A não existência de evidências científicas rigorosas e confiáveis de que
exista alguma anomalia anatômica, mesmo que sutil, em sujeitos com dificuldades
de aprendizagem também se aplica aos comportamentos agitados como no caso
referido de M. que tem apenas dois anos de idade.
O TDA (com ou sem hiperatividade) está sendo medicalizado de forma
generalizada com o Metilfenidato em nossa sociedade e a tendência é que sua
prescrição, assim como a de outras drogas similares, seja disseminada para a
dislexia. Os pais em questão procuram o serviço do psicodiagnóstico no intuito de
terem a resposta para suas dúvidas no que respeita à certeza do TDAH em sua
filha. Dar-lhes a certeza do diagnóstico esperado por eles é a mesmo que colocar
em risco o futuro do desenvolvimento psíquico e emocional da filha.
O que estes pais não sabem é que o mecanismo de ação do Metilfenidato e
de outras anfetaminas é o mesmo da cocaína, estimulando a atenção e a
produtividade. Aumentam os níveis de dopamina (responsável pela sensação de
prazer), bloqueando sua recaptação. Esse tipo de droga tem grande potencial
aditivo (viciante), pois os demais estímulos prazerosos passam por
dessensibilização – o sujeito passa a buscar apenas a droga.
As possíveis reações adversas dessa droga são inúmeras e graves, como
alucinações, depressão, ansiedade, agressividade, convulsão, problemas
cardíacos, pressão alta, anorexia, náuseas, disfunções gastrintestinais, alterações
endócrino-metabólicas, dentre outras.
Existem inúmeras formas para se aprender e se comportar, características
próprias à diversidade humana, e seus extremos não deveriam ser colocados
como doença neurológica sem evidências científicas rigorosas e concretas.
A verdade é que os pais de M. com um diagnóstico de TDAH em mãos,
estariam colaborando para que M., desde muito cedo, recebesse o metilfenidato
(Ritalina e Concerta), ainda que sob prescrição médica, como método de controle
familiar e, posteriormente, social.
Sabemos que, pais procuram ajuda profissional “quando a criança começa
a apresentar atitudes e comportamentos que rompem com algumas expectativas
dos pais” (YEHIA, 1998, p.117). M. se comportava de maneira que estava
causando sofrimento e incômodo à família.
Por esta razão o trabalho de Psicodiagnóstico com esta família teve um
caráter interventivo/preventivo desde o início de modo a garantir o direito da
criança de ser ela mesma alertando os pais para o cuidado com o excesso de
medicalização.
O psicodiagnóstico foi realizado sob o método fenomenológico-existencial.
O processo foi grupal, com 6 crianças de 2 a 4 anos e seus pais. No caso em
questão da menina M. Os dois pais participaram ativamente dos 11 encontros.
Apesar de não parecerem confortáveis perante pessoas desconhecidas, os
pais contaram sobre o motivo pelo qual procuravam ajuda. Mas também, segundo
Raymundo (2000), “pode ocorrer o fato de os pais verbalizarem o motivo, porém,
não o mais verdadeiro ou o mais autêntico, dentro de sua percepção” (p.39).
Para o nosso trabalho foi essencial a colaboração dos pais no fornecimento
de informações, pois, “existe a necessidade de definir quem são os clientes e
como responder adequadamente às demandas de cada um deles” (TAVARES,
2000, p.55).
Nos momentos iniciais discutimos acerca do caráter de cooperação do
processo, sendo extrema importância da participação dos pais. Neste encontro
também foram entregues o termo de consentimento para o uso ou não das
informações fornecidas por eles. Enquanto o atendimento ocorria, as crianças
brincaram com a caixa lúdica. M. não ficou na sala, pois começou a chorar e pai
saiu com ela. Ambos permaneceram fora da sala até o final do atendimento.
Dados da anamnese foram se esclarecendo e nos primeiros encontros já
sabíamos que M. é a única filha do casal, porém o pai tem mais um filho de outro
relacionamento, que tem dezoito anos, e que vem visitá-los nos fins de semana. A
única criança com a qual M. tem contato é com seu priminho, quatro meses mais
velho e nas suas brincadeiras ela gosta de mandar. A mãe deixou do trabalho
para cuidar de M. e o pai trabalha fora, mas almoça em casa todos os dias. Foram
levantadas hipóteses acerca da agressividade de M. como manifestação de
sofrimento e estresse. Aos poucos M. ia permanecendo na sala, mas sem interagir
e brincar com as demais crianças, apenas jogando os brinquedos no chão. M. se
auto-agrediu algumas vezes, mostrando-se bastante agitada; bebeu muita água e
comeu bastante bolacha.
A maioria dos relatos foi da mãe e o pai apenas concordava com a esposa.
Em um dos encontros, discutimos como se dava as diferentes constituições
familiares e como a psicologia a família, apontando para os papeis do pai, da mãe
e do filho, na importante construção de um diálogo entre as partes. Ao ouvir os
pais em seguida, ficou evidente o medo que paira sobre a relação que eles têm
com a filha. Neste encontro aproveitamos para dar alguns esclarecimentos e
orientações acerca de sua ansiedade. M. estava sonolenta neste atendimento,
brincou pouco e permaneceu mais tempo no colo dos pais, ouvindo as
intervenções, chegando a dormir.
A mãe relatou que estava tentando colocar em prática as orientações
recebidas no processo. Os pais trouxeram dados que, para eles, fundamentam a
questão do medo na relação com a filha: dois acidentes não com M., mas
diretamente ligados a ela e muito estressantes para a mãe. O primeiro, de uma
sobrinha da mãe que aos dois anos caiu de uma escada de sua casa, ainda em
construção e ficou com sequelas cerebrais que comprometeram seus movimentos
e sua fala até os dias de hoje (a sobrinha tem 15 anos); o segundo, quando a mãe
estava grávida de M. indo para o hospital para exames, pois estava prestes a ter o
bebê, quando um carro colidiu com o da família e ela pensou que todos iriam
morre, pois a batida na trazeira do veículo chegou a rodopiar o carro na avenida.
Neste encontro, M. interagiu bem com as outras crianças, tentando chamar a
atenção da mãe por diversas vezes.
Nesse primeiro momento, entendemos que M. uma criança carregada de
tensão e estresse. De acordo com Romaniuc e Rubio (2012), uma hipótese acerca
do comportamento de M., é a de que os gritos e a atitude agressiva são usados
como veículos de escoamento dessa tensão, visto que o estresse produz
respostas orgânicas. Ela lida com a situação de estresse com os mecanismos dos
quais dispunha.
Pensamos que, devido ao fato de M. ser uma criança que ainda nem
completou dois anos, podemos trabalhar a dinâmica familiar como um todo, todos
seus elementos e o papel que cada um ocupa na família.
Os pais acreditam que M. intensifica seu comportamento autoagressivo ou
os gritos diante da presença de mais pessoas que não os pais. Seu interesse
parece estar em ser o centro das atenções onde quer que vá.
Em certos momentos, a mãe parece apreciar o comportamento de
curiosidade da filha, dando-lhe ênfase. Porém, repudia seu comportamento
agressivo, repreendendo-a. “Os primeiros sinais de agressividade dirigida, nessa
fase, coincidem com a fase anal; igualmente cresce o sentimento de posse e
impulsiva avidez do bebe em relação à mãe” (MAHLER, 1982, p. 35). M. está na
fase de aprendizado de controle de esfíncteres e seus pais estão auxiliando-a.
Nesse período, são esperados os comportamentos agressivos voltados para si e
para os outros.
Outro fator a ser considerado, é o fato de M. não conseguir estabelecer
uma brincadeira e não ter interesse pelos brinquedos, o que pode estar
correlacionado com a queixa inicial dos pais (agressividade e agitação).
Observamos seu comportamento durante o atendimento. M. não interagia com as
outras crianças, somente chutava os brinquedos que estavam no chão. Algumas
vezes, pegou o brinquedo das mãos de outra criança e o jogou.
Segundo Aberastury (1992, p. 55): “A criança que brinca, investiga e
precisa ter uma experiência total que deve ser respeitada. Seu mundo é rico e, em
contínua mudança, inclui um intercâmbio permanente entre fantasia e realidade”.
E sob o pensamento de Mahler (1982) é comum, em crianças entre 18 e 24
meses, a busca pela exploração do mundo à sua volta, assim como o desejo e a
necessidade de que a mãe compartilhe de suas conquistas e suas novas
experiências.
O que chama a atenção de M. é a brincadeira com barulho das outras
crianças com seus estagiários-terapeutas. Quando as crianças ou os estagiários
gritavam ou faziam sons altos, M. se aproximava e queria interagir. Quanto mais
agitação, maior seu interesse. Por vezes, foi introduzida na brincadeira.
A experiência do brincar é apontada por vários autores como fundamental
na formação do indivíduo. Segundo Sakomoto (2008), na infância, o brincar é o
veículo da elaboração e manifestação da criatividade; e esta, por sua vez, está na
base das construções individuais importantes na vida do sujeito, também atrelada
aos sentimentos de felicidade, bem-estar e realização.
O brincar envolve a capacidade de estabelecer relações entre as
dimensões ‘fantasia e realidade’, capacidade esta que é construída na e a partir
da relação com o brinquedo. Algumas vezes, M. se interessou pela brincadeira
com os fantoches, onde representávamos os personagens. Sua interação e
brincadeira consistiam em abraçar e beijar os fantoches.
Em todos os encontros utilizamos o recurso da caixa lúdica, que é
constituída por brinquedos que acreditamos que possam provocar situações em
que as crianças tenham que dividir os brinquedos, aprender a ceder e
compartilhar. Essa estratégia lúdica se faz necessária para criar situações em que
o comportamento-problema possa ocorrer (EMIDIO, de-FARIAS e RIBEIRO,
2009).
M. já não apresentava comportamento agressivo em nenhum momento
durante o processo. Conseguiu estabelecer uma brincadeira criativa, assim como
suportar a ausência da mãe, fato que causou estranheza na mesma.
Não foram observados comportamentos de agressividade explícitos de M.
durante a visita domiciliar. Porém, houve um movimento no qual M. quis sentar-se
sobre uma foto da mãe, muito estimada por esta, e logo em seguida, o pai
percebeu que a filha havia feito cocô. Neste episódio, verificamos uma
agressividade implicitamente dirigida à mãe, fato que já havíamos hipotetizado em
atendimento e que foi, posteriormente, confirmado pela mãe.
No decorrer dos atendimentos, M. havia criado um vínculo com a estagiária-
terapeuta, dirigindo-se a esta quando precisava de algo, principalmente na
ausência da mãe. Podemos dizer que se construiu, aos poucos, uma relação de
confiança.
Segundo Scarpato (2001), o vínculo é baseado em confiança e protege a
abertura do espaço singular do indivíduo e “O vínculo terapêutico é também um
campo de experimentação de modos novos de vinculação, de diferenciações em
relação aos padrões conhecidos e de confrontação com os modos habituais.”
(p.107).
M. também começava a se interessar por brincadeiras mais organizadas,
como quando guardou os gizes de certa na embalagem para poder jogá-los no
chão e rir. Ela também se interessou por brincadeiras coletivas que as outras
crianças e estagiários desenvolviam, como brincar de fazer comida e jogar bola. O
que, segundo Rojas (2007) é o adequado para sua idade, já que “com menos de
três anos de idade, é essencialmente impossível envolver-se em uma situação
imaginária” (p. 24), uma vez que essa capacidade imaginária depende de um novo
comportamento não mais restrito ao ambiente imediato.
Uma dinâmica foi proposta para os pais, para que eles escrevessem em
sua linha do tempo, desde a primeira infância, inserção na escola e adolescência,
vida adulta até o dia atual, fatos que consideravam importantes em cada fase de
suas vidas, inclusive, da vida de M. A atividade exigia reflexão e conhecimento
deles próprios e o que se evidenciou foram muitos momentos de perda dos dois
lados da família. Enquanto realizavam a tarefa, M. explorou o ambiente: janela,
banheiro e conteúdo da caixa lúdica. Não interagiu com as outras crianças, mas
observou durante momentos as brincadeiras e pareceu divertir-se com isso. Fez
algumas atividades que não tínhamos visto ainda e inseriu o pai na brincadeira.
Em um dos encontros todas as crianças interagiram, brincando com a bola,
até que M. pegou a boneca de outra criança e esta começou a chorar fortemente.
Embora M. tivesse devolvido a boneca, a outra menina não quis mais brincar.
Comentamos com os pais sobre a capacidade de lidar com frustrações e sua
importância para o desenvolvimento infantil. M. brincou principalmente com o
fantoche, com a caixinha de giz de cera e com a bola e nas brincadeiras pareceu
divertir-se bastante. Neste encontro combinamos a visita domiciliar para nos
apropriarmos melhor de suas relações interfamiliares.
No dia da visita domiciliar as estagiárias-terapeutas que acompanharma o
caso foram bem acolhidas e M. ajudou os pais a mostrar a casa. Através da visita
pudemos estabelecer um maior contato com M. e seus pais, e também ampliar a
nossa percepção acerca do caso e da dinâmica familiar. Observamos que M. se
auto-agrediu apenas uma vez durante a visita.
Os pais também participaram de uma atividade (foram levados a outra
sala), a fim testarmos a capacidade da criança de se distanciar dos pais e vice-e-
versa, além de propor aos pais que assistissem um curta sobre consumismo
infantil (criança: a alma do negócio). Parte dos estagiários acompanhou a
professora-orientadora e os pais, e parte ficou em atividade com as crianças.
Todas as crianças conseguiram suportar a ausência de seus pais. M. chorou
pedindo pela mãe em determinado momento, mas logo começou a brincar e
pareceu divertir-se nas brincadeiras. Mostrou-se perceptiva e inteligente,
reproduzindo alguns movimentos e palavras direcionadas a ela. A brincadeira de
M. foi mais simbólica neste atendimento e não apresentou sinais de agressividade
mesmo em momentos difíceis ou de frustração.
Houve um momento do processo em que atendemos somente as M.,
pedindo aos pais que aguardassem na sala de espera. Nosso objetivo foi verificar
se conseguíamos separá-la um pouco dos pais e se M. conseguia suportar a
ausência deles durante alguns minutos e subir sozinha. M. desceu do colo da mãe
e nos acompanhou alegre, mas ao chegar na sala começou a pedir pela mãe.
Brincou um pouco durante o atendimento, não chorou, mas ficou constantemente
chamando pela mãe. Embora visivelmente contrariada, M. não manifestou
comportamentos agressivos. Após o atendimento, ao encontrar a mãe na sala de
espera, M. contou a todos que havia se separado da mamãe. Percebemos que a
mãe tem muita dificuldade em se separar da filha, pois ela acredita que M. irá
atrapalhar ou incomodar as pessoas com quem está devido a seu comportamento
agitado. É essencial para o desenvolvimento psíquico de M. que ela atravesse o
processo de separação-individuação. Que, no início, lhe causará sentimentos de
abandono, medo da perda da mãe, frustração, mas que estarão contribuindo para
seu crescimento e preparação para as fases seguintes de sua vida. “As fases que
propõem como sendo organizadoras do psiquismo, incluem uma etapa do
desenvolvimento no qual o eixo psicológico é a separação-individuação da criança
em relação à mãe” (MONDARDO; VALENTINA, 1998, s/p.).
Na entrevista de natureza devolutiva parcial aos pais, falamossobre nossa
percepção sobre M. e sobre a dinâmica familiar. Ressaltamos o quanto ela é
inteligente, perceptiva, comunicativa e cheia de energia. Falamos também sobre a
aparente dificuldade que a menina apresenta para lidar com emoções,
principalmente em situações limitadoras. Esclarecemos aos pais a necessidade de
continuarem o processo de psicodiagnóstico interventivo no próximo semestre, e
sobre a possibilidade da mãe fazer terapia. A mãe disse que gostaria de continuar
com o atendimento da filha e também começar um atendimento individual.
No último encontro, lemos com os pais e a criança o relatório final do
atendimento, finalizando a devolutiva. Com os pais discutimos sobre os pontos
positivos da relação com a filha, assim como apontamos alguns aspectos a serem
pensados, e na medida em que compreendiam, fornecemos algumas sugestões
de ações que poderiam melhorar a dinâmica familiar. Refletimos sobre suas
atitudes, por mais que imaginem ser boas, por vezes, podem causar sofrimento
em ambas as partes, como no caso de aplicar o castigo à M., quando mãe e filha
acabam sofrendo.
Para M., elaboramos uma “mini caixa lúdica” contendo os brinquedos que
mais lhe prenderam a atenção durante o processo e explicamos a ela que aquilo
era dela e que ela poderia brincar da maneira que quisesse.
Apontamos, por último que a medicalização usada atualmente é um fator
preocupante. A mãe ainda queria tirar sua dúvida sobre a filha ter TDAH e
ressaltamos que M. é uma criança saudável de apenas 2 anos de idade.
Descartamos a possibilidade de ela ser hiperativa, assim como mãe desconfiava.
Acreditamos que com a compreensão, esforço e colaboração dos pais é possível
atravessar essa fase se M. sem maiores comprometimentos e sem medicação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABERASTURY, A. A criança e seus jogos.Ed. Artes médicas, Porto Alegre, 1992. ANDRADE, M. L. de; MISHIMA-GOMES, F. K. T.; BARBIERI, V. Vínculos familiares e atendimento psicológico: a escuta dos pais sobre a alta da criança. Rev. SPAGESP, Ribeirão Preto, v. 13, n. 1, 2012 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702012000100002&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em: 17/05/2013. EMIDIO, L. A. S.; RIBEIRO, M. R.; de-FARIAS, A. K. C. R. Terapia infantil e treino de pais em um caso de agressividade. Rev. Bras. de Ter. Comp. Cogn., Campinas-SP, 2009, Vol. XI, nº 2, 366-385. MAHLER, E. O processo de separação-individuação. Ed. Artes Médicas, Porto Alegre, 1982. MONDARDO, A. H; VALENTINA, D. D. Psicoterapia infantil: ilustrando a importância do vínculo materno para o desenvolvimento da criança. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 11, n. 3, 1998 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721998000300018&lng=en&nrm=iso>. Acessado em: 12/05/2013.
RAIMUNDO, M. G. O contanto com o cliente. In: CUNHA, J. A. Psicodiagnóstico V. Porto Alegre: Artmed. 2000, Cap. 4. ROJAS, Jucimara. Jogos, brinquedos e brincadeiras: a linguagem lúdica formativa na cultura da criança. Campo Grande: UFMS, 2007. ROMANIUC, R.C; RUBIO, J.A.S. Stress Infantil: Causas e Efeitos do Stress na Criança. In: Revista Eletrônica Saberes da Educação – FAC- São Roque. Volume 3, nº 1, 2012. SAKAMOTO, Cleuza Kazue. O brincar da criança – criatividade e saúde. FAPCOM, Boletim Academia Paulista de Psicologia - Ano XXVIII, nº 02/08: 267-277. SCARPATO, Artur Thiago. Transferência Somática: A dinâmica formativa do vínculo terapêutico. Revista Hermes do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo, 2001, p. 107-123. Disponível em: http://www.psicoterapia.psc.br/scarpato/t_vinculo.html. Acessado em: 27/04/2013. TAVARES, M. A entrevista clínica. In: CUNHA, J. A. Psicodiagnóstico V. Porto Alegre: Artmed. 2000, Cap. 5. YEHIA, G. Y. Reformulação do papel do psicólogo no psicodiagnóstico fenomenológico existencial. In: ANCONA-LOPEZ, MA (org.) Psicodiagnóstico: Processo de intervenção. 2ª edição SP Cortez, 1998, p. 115-134.
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ciência médica in “Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos
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São Paulo
COLLARES, Cecília Azevedo Lima; MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso. A
Transformação do Espaço Pedagógico em Espaço Clínico (A Patologização da
Educação). Série Idéias, 23, pp. 25-31. São Paulo: FDE, 1994.
Conselho Federal de Psicologia – XV Plenário – Gestão 2011-2013
1
Saúde na Escola e Medicalização: análise do tema nos Projetos
Político-Pedagógicos das escolas municipais de Maringá.
Isabela Quaglia1 UniCesumar
Bárbara Magalhães Barros Arco-Verde2 UniCesumar
Lizia Helena Nagel3 UniCesumar
Ana Paula Machado Velho4 UniCesumar
EIXO 1: CIÊNCIA, IDEOLOGIA E MEDICALIZAÇÃO DOS DIFERENTES MODOS DE VIVER Palavras-chaves: Saúde; Escola; Medicalização; Projeto Político Pedagógico; Maringá. Introdução
Pensar em uma escola promotora da saúde é acreditar em uma instituição que
promove também qualidade de vida. Segundo Pelicioni e Torres (1999, p.09), pensar
neste modelo de escola é “implementar políticas práticas e outras medidas que se
referem à autoestima dos indivíduos, à provisão de múltiplas oportunidades para seu
sucesso e ao reconhecimento de bons esforços e iniciativas, bem como de realizações
pessoais”. Isto quer dizer: ela oferece informações fundamentais para que o sujeito se
construa saudavelmente. Em outras palavras, é impossível pensar a formação de um
sujeito social, político sem investir na educação e na saúde. Porém, a quantos
indivíduos está assegurado o direito de se construir como sujeito e atuar na sociedade
como cidadão crítico e reflexivo por meio da escola promotora da saúde? As unidades
educacionais de Maringá estão se estruturando por meio dos seus Projetos Político-
Pedagógicos como construtoras do conhecimento em saúde?
1 Mestranda do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR. 2 Mestranda do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR. 3 Professora doutora, co‐orientadora, do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR. 4 Professora doutora, orientadora, do Programa de Promoção da Saúde do UniCesumar – Maringá‐PR.
2
Para os autores a “promoção da saúde no contexto escolar deve enxergar o ser
humano de forma integral e multidisciplinar, considerando-o em seu contexto familiar,
comunitário e social” (PELICIONI E TORRES, 1999, p.03). Assim como afirmam
Collares e Moisés (1987), a educação e saúde trabalham com o mesmo sujeito: o ser
humano e também com um mesmo propósito: proporcionar o desenvolvimento do
bem-estar.
Partindo deste princípio, trabalhar com o tema saúde na escola implica não
somente em transmitir informações descontextualizadas, mas sim desenvolver no
educando conhecimentos, competências e habilidades para que sejam adotados
modos de vida saudáveis, de forma prática.
Mas não é isso que se tem visto no ambiente escolar na cidade de Maringá.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Educação (SEDUC), 4,94%, ou seja, 530
alunos da rede de ensino fundamental usavam medicação para o Transtorno de Déficit
de Atenção com Hiperatividade (TDAH), em 2012. Uma consulta feita recentemente
junto aos alunos do 4º ano de escolas de Ensino Fundamental de Maringá mostra que
18,75% dos 48 alunos que tomam medicação para o controle do TDAH, e
concordaram em participar da pesquisa5, foram “aconselhados” pelos professores6.
Os dados foram fornecidos pelos pais dos estudantes e coletados em abril de 2013.
No entanto, o problema pode ser maior, porque se sabe que, informalmente, a
escola está frequentemente encaminhando alunos para os neuropediatras da rede
pública. E só o fato do professor ser citado como quem indicou o tratamento com
medicamentos para a minimização dos efeitos de um comportamento hiperativo já é
um grande problema. Esse fato já vem sendo criticado por Collares e Moysés (1986),
que acrescentam que, além de indicar, professores e médicos vêm fazendo isso de
forma inadequada.
Enfim, as estatísticas acima ajudam a levantar a questão de que a escola está
contribuindo com o processo de medicalização, o que nos leva a propor a hipótese de
que as unidades escolares não estão lidando com o tema saúde de maneira adequada
desde o processo de planejamento das unidades, que se reflete nos Projetos Político-
Pedagógicos (PPP).
5 Em 2012, o total de alunos do quarto ano com TDAH que tomavam medicação era de 136, de um universo de 3.031, o que representa um percentual de prevalência na série de 4,49%. 6 Os dados desta pesquisa são inéditos e serão publicados em breve na dissertação da mestranda Bárbara Magalhães Barros Arco‐Verde, co‐autora deste artigo.
3
Nessa perspectiva, este artigo tem o objetivo de traçar um panorama de como
as informações sobre saúde aparecem nos Projetos Político-Pedagógicos das
Escolas Municipais de Maringá. Afinal, defende-se que ações que podem posicionar
a escola contra o movimento da medicalização na escola devem começar a ser
planejados nos Projetos. Será que o tema saúde consta nos Projetos Político-
Pedagógicos das instituições analisadas? Será que a construção de uma escola
promotora da saúde está mesmo entre as preocupações das equipes que elaboram
estes Projetos?
Para responder a estas questões, foi feita a análise de conteúdo em 13 Projetos
de escolas municipais de Maringá. A ideia foi verificar como são implementadas e
planejadas as atividades educativas, culturais, políticas, curriculares e
extracurriculares que visam uma educação de qualidade e a constituição de cidadãos
promotores de saúde. A proposta é utilizar esse levantamento para propor novas
estratégias de Promoção da Saúde para o Ensino Fundamental da cidade de Maringá,
entre elas, a de redução da medicalização dos alunos da rede municipal de Maringá.
Os problemas da pesquisa já começaram no início do levantamento
bibliográfico inicial que sustentou o projeto. A primeira preocupação que se teve foi
compreender a legislação que regulava a elaboração dos Projetos. Porém, as séries
iniciais do Ensino Fundamental possuem Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN´s),
que apenas orientam as decisões e ações dos gestores escolares na sua elaboração
e não propõem modelos a serem desenvolvidos.
Sabe-se que estes Parâmetros são fruto de políticas públicas, isto é, propostas
dos governos da União, dos Estados, dos Municípios para o atendimento de
necessidades e demandas advindas da sociedade. De acordo com Eyng (2010, p.38)
“as políticas educacionais são parte do conjunto das políticas públicas que as
englobam e tratam das questões relativas ao provimento da educação, seguindo
determinações da Constituição Federal, do Plano Nacional de Educação (PNE), da
Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e de resoluções e leis complementares”. Segundo a
autora, a LDB aponta nos artigos 12 e 13, que as escolas devem de forma coletiva
otimizar a comunidade e a equipe pedagógica a desenvolver sua proposta
pedagógica. Em seu art. 14, no qual trata da gestão democrática, a Lei apresenta o
termo Projeto Político-Pedagógico da escola, no qual enfatiza a importância da sua
intenção educativa.
4
Vasconcellos (2004) destaca que o Projeto Político-Pedagógico é o plano
global da instituição. Para o autor esse termo pode ser entendido como
a sistematização, nunca definitiva, de um processo de Planejamento Participativo, que se aperfeiçoa e se concretiza na caminhada, que define claramente o tipo de ação educativa que se quer realizar. Portanto, é um instrumento teórico-metodológico para a intervenção e mudança da realidade. É um elemento de organização e integração da atividade prática da instituição no processo de transformação (2004, p. 169).
Para Eyng (2010, p. 43), “o planejamento e desenvolvimento do currículo
escolar se orientam nas determinações emanadas das políticas curriculares”. Porém,
não há uma diretriz específica para adequação do Currículo da Educação Infantil e
dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Há, sim, alguns apontamentos. Essa falta
de modelo traz prejuízos ao conteúdo dos Projetos, como será visto mais a frente.
Metodologia
Diante de um documento norteador, que não propõe modelos estruturais para
os PPP, procurou-se perceber algum padrão estrutural nos Projetos escolhidos para
a análise aqui proposta, de forma que se pudesse sistematizar as observações sobre
como lidam com o tema saúde. Porém, e aí surge o segundo problema, não há
modelo, padrão e, muito menos, capítulos ou subtítulos que especifiquem as ações
de promoção da saúde nos projetos que chegaram às mãos das pesquisadoras. Desta
forma, a saída foi propor uma análise de conteúdo desses documentos, utilizando a
metodologia de análise de conteúdo de Bardin (2011). Segundo a autora “há
diferentes fases neste processo: 1) a pré-análise; 2) a exploração do material; e 3) o
tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação” (BARDIN, 2011, p. 125).
Desta forma, foi definida uma amostra por cotas das 49 Escolas Municipais de
Ensino de Maringá, que ofertam turmas de 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. A
amostra por cotas se baseou em Gil (1999). Para o autor a análise de cotas também
é desenvolvida em três fases: (1) classificação da população; (2) determinação da
proporção da população; e (3) fixação de cotas para cada observador ou entrevistador
(GIL, 1999, p. 104). Assim, como foi possível verificar que as unidades escolares
contemplavam características diferentes, a coleta de dados foi realizada em 13 das
5
49 escolas de Ensino Fundamental, divididas entre as quatro regiões da cidade: Norte,
Sul, Leste e Oeste, que apresentam diferentes características socioculturais. Nestas
regiões, foram selecionadas as escolas que apresentavam o maior número de
estudantes. A Secretaria Municipal de Educação, então, repassou os Projetos Político-
Pedagógicos das escolas para que fosse feita a análise. Destaca-se que documentos
oficiais como os PPP constituem-se numa fonte fidedigna de dados, visto que
representam oficialmente as escolas, junto à Secretaria de Educação. Coube às
pesquisadoras apenas selecionar o que lhe havia interesse e, apesar de não exercer
controle sobre a forma como os documentos foram criados, o material foi interpretado
e comparado de modo a poder traçar e apresentar a ação das instituições.
Foram determinados os descritores “saúde” e “prevenção” para a pesquisa. A
Constituição Brasileira de 1988 afirma que a saúde é direito de todos e dever do
Estado. Portanto, “deve ser garantida por políticas sociais e econômicas, reduzindo o
risco de doença e promovendo acesso universal e igualitário às ações e serviços em
promoção, proteção e recuperação da saúde. A saúde deve ser compreendida como
qualidade de vida e não apenas ausência de doenças” (BRASIL, 2005).
Os resultados da análise de conteúdo mostraram, então, que quando se fala
em saúde nos PPP das 13 escolas estudadas, não se foca especificamente prevenção
e nem se toca na questão comportamental, tão em voga nas escolas, como mostra o
índice de medicalização para o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
(TDAH) exposto acima.
O perfil dos Projetos Políticos Pedagógicos
O município de Maringá possui dez mil educandos, em cinquenta e sete
Centros Municipais de Educação Infantil, e dezessete mil educando dos anos iniciais
do Ensino Fundamental, em quarenta e nove Escolas Municipais, conforme apresenta
informações disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Educação (SEDUC, 2012).
Portanto, perante esse âmbito foi realizado o levantamento de dados em 13 Projetos
das Escolas Municipais e boa parte das 102 vezes em que a palavra “saúde” aparece
se refere a garantir a saúde no ambiente escolar. Um dos projetos aponta em
“valorizar a vida e sua qualidade como bens pessoais e coletivos, desenvolver atitudes
responsáveis com relação à saúde”, entendendo-a como “direito social” (31,37%).
Esses direitos sociais surgem misturados ao direito à educação, e à vida digna e
6
discorre-se sobre o fato de que devem ser garantidos a partir da participação civil da
escola “em associações civis, conselhos de escola, conselhos tutelares, conselhos de
saúde etc”.
A maior parte das ocorrências (37,25%) foca a discussão sobre saúde dentro
da Proposta Curricular, na disciplina de Ciências, sugerindo como tema o Corpo
Humano e Saúde. Há projetos que apontam a questão da estrutura institucional, que
deve atender às “práticas e normas de segurança; às condições e normas de higiene
e saúde” (16,66%). “Outros assuntos” somam 8,82%. E ainda há um grupo que,
quando fala em saúde, propõe conteúdos a serem trabalhados a partir de ações de
“atividade física” (5,8%), como proporcionar oportunidades de “alongamento e
relaxamento”.
Pouquíssimos apontam particularidades que consideram problemas psíquicos
e emocionais, apenas dois, na realidade, o que representa 1,96% do total de
ocorrência da palavra. Um Projeto sugere o estreitamento “da relação com os pais
quando o tema é saúde, sugerindo o acompanhamento e análise socioeconômica e
cultural das famílias que compõem a comunidade escolar e a inserção dos
responsáveis”. E acrescenta questões bastante focadas:
Um desenvolvimento integral depende tanto dos cuidados relacionais que envolvem a dimensão afetiva e dos cuidados com os aspectos biológicos do corpo, como a qualidade da alimentação e dos cuidados com a saúde, quanto da forma como esses cuidados são oferecidos e das oportunidades de acesso a conhecimentos variados. (2) A forma de cuidar, muitas vezes, é influenciada por crenças e valores em torno da saúde, da educação e do desenvolvimento infantil. (3) Os procedimentos de cuidado também precisam seguir os princípios de promoção da saúde (ESCOLA MUNICIPAL PROFESSORA PIVENI PIASSI MORAES – ENSINO INFANTIL E FUNDAMENTAL).
Outro Projeto é mais enfático no que diz respeito ao TDAH. Pondera que é
preciso envolver a família no ambiente escolar, no processo de ensino e
aprendizagem, “quanto à realização das tarefas de casa, comparecimento em
reuniões ou em outras convocações, falta de compromisso quanto à frequência, a
saúde dos filhos, principalmente, no que se refere aos problemas de hiperatividade”,
conforme abordado no Projeto Pedagógico da Escola Municipal Professora Odette
Alcântara Rosa. Por outro lado, há grupos que eximem a escola de responsabilidades.
7
“Discordamos [...] nas questões que não fazem parte da função da escola e sim da
área da saúde, pois o responsável em garantir o bem estar do filho é a família e não
a Escola, cabendo sim [a esta última] a oferta de um ambiente prazeroso para a
sistematização do saber”. Este trecho é parte do Projeto da Escola Municipal
Professor Renato Bernardi. Quando se fala em prevenção, a situação é ainda mais
complicada. Em 61,53% das 13 vezes em que a palavra aparece se refere à
"prevenção e erradicação das drogas” ou da “criminalidade”. Sendo que 30,76% das
aparições se referem de forma geral à busca da prevenção; e uma vez apenas (8,7%)
fala de promoção da saúde.
Diante dessa realidade todas as instâncias - família, sociedade e escola - têm
a responsabilidade de favorecer e fortalecer comportamentos que estimule e
promovam a saúde. Segundo Veiga (2004, p. 49), “a educação, assim,
contextualizada faz com que a escola, especialmente a escola pública, assuma
importância cada vez maior como espaço-tempo em que as prioridades
socioeducacionais dos cidadãos podem se concretizar”. Portanto a escola é um das
instâncias onde as informações em saúde devem estar em constante discussão.
Considerações finais
É importante destacar que se apresentou aqui uma breve discussão sobre as
questões de saúde na escola. Utilizou-se parte dos dados que estão sendo levantados
para uma dissertação que visa discutir em profundidade como os PPP refletem a
preocupação da comunidade em construir uma escola promotora da saúde. Sabe-se
que outros fatores compõem o que o universo de condições que vão produzir o sujeito
sadio. Estas questões passam pela alimentação, renda, meio ambiente, entre outros
aspectos. Mas, a frequência e o contexto que os Projetos Político-Pedagógicos
apresentam a palavra saúde já denotam uma profunda deficiência no que diz respeito
à questão do problema do comportamento dos estudantes na escola, que passa pela
discussão da medicalização e do TDAH.
Diante da prevalência do distúrbio na rede e da prática da medicalização, é
preciso que se reveja o debate desta questão nas unidades escolares. E mais: é
fundamental que se mude o comportamento também dos professores no que diz
respeito ao “aconselhamento” da medicalização. Como já foi dito, só o fato do
professor aparecer como um dos agentes incentivadores da indicação
8
medicamentosa já é um fator a de grande preocupação. Afinal, este não é o papel da
escola e nem do docente.
Sugere-se, então, que as autoridades de saúde cuidem mais da questão da
medicalização na escola, começando por fornecer modelos mais consistentes a serem
seguidos pelos Projetos Político-Pedagógicos e exigindo mais comprometimento das
equipes gestoras na produção deste documento. Este precisa, também, ir além das
proposições gerais e apontar de forma mais significativa ações concretas que dêem
conta dos problemas atuais que envolvem a educação. Entre eles, sem dúvida, está
a saúde.
REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. 1ª Edição. São Paulo: Edições 70, 2011. BRASIL. Ministério da Saúde. A educação que produz saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde. Departamento de Gestão da Educação na Saúde. – Brasília: Ministério da Saúde, 2005. COLLARES, C. A. L. e MOYSÉS, M. A. A. Educação ou Saúde? Educação X Saúde? Educação e Saúde! Cadernos CEDES no 15, São Paulo: Cortez, 1986, pp. 7-16. COLLARES, A. L., MOISÉS, A.A. Educação, saúde e formação da cidadania na escola. Trabalho apresentado no Congresso Nacional de Didática e Prática de Ensino, Recife, 1987. EYNG, Ana Maria. Currículo Escolar. Curitiba: Ibpex, 2010. GIL, Antônio Carlos. Métodos e Técnicas de Pesquisa Social.5ª ed. São Paulo: Atlas, 1999. MARINGÁ. Prefeitura do Município de Maringá. Secretaria Municipal de Educação. Currículo: Educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. Paraná, 2012. PELICIONI. Maria Cecília Focesi; TORRES. André Luis. Promoção da Saúde: A Escola promotora de Saúde. Monografia. Departamento em Prática em saúde pública, Universidade de São Paulo, Faculdade de Saúde Pública, São Paulo, 1999. VASCONCELLOS, Celso dos Santos. Planejamento: Projeto de Ensino-Aprendizagem e Projeto Político – Pedagógico: elementos metodológicos para a elaboração e realização. 12ª ed. São Paulo: Libertad, 2004. VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org). Projeto Político – Pedagógico da Escola: uma construção possível. Campinas: Papirus, 2004.
Saúde Mental, compromisso de todos:
tecer conhecimentos e redes para enfrentar desafios
Ivana Serpentino Castro Feijó
Osvaldo Cardoso Santana Filho
Prefeitura Municipal de São Paulo
1. Apresentação:
A reforma psiquiátrica propõe a substituição dos hospitais psiquiátricos por
uma rede de serviços composta por Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, Centro
de Convivência e Cooperativa – CECCO, leitos de observação e internação em
Hospital Geral, Residência Terapêutica - RT. Por outro lado, a Saúde Pública propõe
a Saúde da Família como estratégia da Atenção Básica, sendo responsável pela
saúde, e também pela saúde mental, da população adscrita em conformidade com
os princípios do SUS.
Há importantes pontos de convergência entre a Política de Saúde Mental e da
Atenção Básica, principalmente quando se trata da Estratégia de Saúde da Família:
constatamos que ambas se desenvolvem em um dado território, que não se limita
apenas um recorte geográfico, contemplando, também, dinamicidade e a dimensão
sociocultural das vidas das pessoas que nele habitam; o trabalho de ambos se
desenvolve através de relações democráticas e participativas de equipes
interdisciplinares, levando em conta os saberes dos diversos profissionais que as
compõem e os saberes de outros campos, como os das próprias comunidades;
ambos são norteados pelos princípios da responsabilização pela clientela adstrita ao
território, da consideração da singularidade do sujeito em sua complexidade e
integralidade, buscando o estabelecimento de vínculo para o cuidar e promover a
inserção sócio-cultural através de rede de assistência integrada profundamente à
vida diária dos usuários e da cidade, estimulando a participação e a autonomia,
promovendo um viver de modo saudável.
Considerando as profundas mudanças trazidas por este modelo de saúde, é
de fundamental importância que seja proporcionado um espaço de formação e de
reflexão entre todos os envolvidos, inclusive os usuários.
A região do Campo Limpo, atualmente com uma população em torno de
650.000 habitantes, possui cobertura de aproximadamente 95% para oferta de
cuidados em saúde na atenção básica através da Estratégia de Saúde da Família.
Há também equipes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF que apoiam o
trabalho das ESF junto à população para que grande parte das demandas de saúde
sejam atendidas nas Unidades Básicas de Saúde - UBSs. É sempre um desafio para
a ESF, manter equipes estáveis num contexto de trabalho que favoreça a
promoção de ações de saúde a partir de vínculo, marcadas pelo compromisso
e a corresponsabilidade destes profissionais com os usuários e a comunidade.
Seu desafio é o de ampliar suas fronteiras de atuação visando uma maior
resolutividade da atenção, muito mais ainda, superar o modelo biomédico que
é predominante na formação dos profissionais da saúde.
A retaguarda de saúde em nível terciário da região é o Hospital Municipal do
Campo Limpo e Hospital Municipal de M’Boi Mirim, ambos com leitos de saúde
mental: observação /ou internação. O trabalho em rede é um grande desafio para
todos os serviços de saúde devido à forte tradição hospitalocêntrica, mas
principalmente para os de saúde mental que tem como antecessor o hospital
psiquiátrico.
Temos também serviços de saúde mental comunitários, que na época eram:
um Centro de Atenção Psicossocial - CAPS, dois Centros de Convivência e
Cooperativa - CECCO e um Serviço Residencial Terapêutico – SRT. O desafio
desses serviços no Campo Limpo é consolidar novos dispositivos de cuidado em
saúde mental orientados pela reforma psiquiátrica, reinventando formas de
inserção social da loucura que se articulem nos territórios.
Os Conselhos Gestores das unidades de saúde são obrigatórios no município
de São Paulo, o que desencadeou um processo de articulação da discussão das
políticas de saúde junto aos representantes da população. Neste espaço dá-se o
confronto das demandas de saúde da população das quais os membros do
Conselho Gestor são porta-voz com as diretrizes das políticas de saúde pública de
superação do modelo biomédico e hospitalocêntrico porém com muitos problemas
na gestão da oferta de serviços e com recursos insuficientes. Temos o duplo desafio
de estabelecer espaços de diálogo entre os profissionais da saúde, gestão dos
serviços e representantes da população e constituirmos alianças em torno de lutas
por melhoria de qualidade de vida em relação à saúde, cujos objetivos, muitas
vezes, rompem com a expectativa e compreensão das necessidades de saúde da
população.
Como cenário dos desafios que se colocam para as ações de saúde na região
de Campo Limpo, temos uma região de alta vulnerabilidade social que sofre após
um período de longo desinvestimento das políticas públicas nas periferias da cidade
de São Paulo com fragilização na prestação de serviços de qualidade para todos.
A proposição de um curso de saúde mental para profissionais atuantes nos
diversos níveis de atenção à saúde de uma microrregião e representantes da
população através dos membros dos Conselhos Gestores das unidades de saúde
envolvidas foi o espaço proposto para integração entre os protagonistas do processo
de saúde na região de Campo Limpo. Como decorrência, o debate sobre as práticas
de saúde mental em suas continuidades e descontinuidades com a Reforma
Psiquiátrica e as necessidades de cuidados em saúde mental dos moradores da
região.
2. Objetivos:
Formação, atualização em saúde mental para profissionais da atenção
básica (ESF) e dos equipamentos especializados em saúde mental e realinhamento
político;
Integração entre profissionais de saúde mental do CAPS, NASF,
CECCO, Residência terapêutica, Hospitais e representantes da população como
membros dos Conselhos Gestores das unidades de saúde envolvidas;
Informar e discutir o modelo de saúde mental com representantes da
população e de outros setores que atuam no mesmo território;
Contextualizar os conceitos teóricos de modo a apresentar sua
dimensão prática e discutir práticas de saúde mental em seus fundamentos teóricos.
3. Metodologia de trabalho:
Foram realizados 4 grupos de profissionais e população, cada um deles
trabalhando e morando num mesmo território de aproximadamente 80.000
habitantes, o que na região de Campo Limpo significa um conjunto de 18 a 20 ESF
distribuídas em 2 ou 3 UBSs que são apoiadas por uma única equipe NASF além de
alguns profissionais do CAPS, CECCO e hospital de referência na proporção abaixo.
3 Profissionais de cada Equipe de Saúde da Família – ESF daquela
microrregião: 2 Agentes Comunitários de Saúde e/ou Técnicos de Enfermagem, 1
Enfermeiro ou Médico da equipe;
2 Profissionais do NASF da mesma microrregião: Psicólogos, Assistente
Social, Terapeuta Ocupacional, Nutricionista, Fonoaudióloga, Fisioterapeuta,
Educador físico
4 Profissionais da equipe do CAPS Jardim Lídia: Psicólogos, Assistente
Social, Médicos Psiquiatras e Profissionais de Apoio administrativo ou Auxiliares de
serviços gerais;
3 Profissionais dos Hospitais de referência de cada microrregião;
2 Profissionais da SRT;
2 Profissionais dos CECCOs de referência;
Membros dos conselhos locais de saúde dos equipamentos de saúde citados
acima
Cada grupo reuniu-se em cinco encontros semanais num total de 30 horas. A
primeira parte do encontro apresentava informações sobre os temas abaixo e a
segunda parte, era reservada para reflexão e discussão desses temas utilizando a
técnica de Grupo Operativo:
a. Reforma psiquiátrica: avanços e dificuldades vividas em Campo
Limpo e o contexto brasileiro;
b. A desinstitucionalização e o Projeto Terapêutico Singular (PTS):
invenção de novas formas de cuidar; o lugar do diagnóstico e da medicação
no PTS; Novos dispositivos clínicos;
c. A rede de serviços e a rede de apoio/social e atuação no
território;
d. Institucionalismo e cronificação: a importância do cuidado no
primeiro episódio psicótico e na abordagem preventiva do suicídio;
e. Levantamento de morbidade em saúde mental e a inclusão de
usuários graves na rede de serviços de saúde;
f. Painel de Experiências interessantes vividas pelas equipes.
Ao longo do curso, no momento do grupo operativo, realizávamos anotações
sobre o trabalho do grupo. A partir da análise desse material, produziamos, o que
chamamos de crônica, que era lida ao grupo no início do trabalho do grupo operativo
subsequente.
Outra função da crónica era apresentar a metodologia de trabalho do grupo
operativo de modo que os participantes se apropriassem desse dispositivo enquanto
membro do grupo. De forma, alguma havia intenção de formação técnica, mas de
compartilhamento da metodologia de trabalho utilizada e seus princípios
fundamentais.
O grupo operativo é uma proposta democrática de refletirmos o que fizemos, o que pensamos e o que sentimos e para além disso, é um dispositivo que se propõe a construir algo, a operar algo, a propor ações,soluções.
Não é a toa que na cidade de São Paulo, durante a instalação da política de reforma da assistência em psiquiatria, nos anos de gestão popular de 1989-1992, houve todo um incentivo para a formação de grupos operativos, bem como para a instrumentação dos agentes de saúde em abordagens grupais.
Ora grupos aprendemos fazendo grupos, conversando sobre grupos em grupo.
A premissa do grupo operativo é de que TODOS, do mais simples cidadão, até o mais erudito, todos temos algum saber, algum conhecimento que pode ser útil na soma, na contradição e na reflexão para a solução de problemas humanos. O que precisamos é pararmos, estabelecermos um lugar e hora para pensarmos, ousarmos sonhar e aí encarar a realidade do possível no aqui agora do momento em que estamos vivendo. Para Pichon Rivière, o idealizador dos grupos operativos, temos um compromisso histórico, temos um compromisso com o futuro, mas não devemos jamais deixar escapar o aqui e agora. Trata-se de um conceito de saúde mental;- de adaptação crítica à realidade. Não é um simples se adaptar que isto seria doentio, mas um modificar algumas questões hoje, aceitar algumas imobilidades para viabilizar o futuro.
Vamos ver então como produzimos teoria a respeito da Reforma Psiquiátrica, tema de nosso primeiro encontro do curso: “Saúde Mental compromisso de todos”.
A Reforma Psiquiátrica é um processo e se tem um lado positivo que aparece na fala de um membro do grupo como o retorno ao convívio familiar, o passear juntos, o reaprender a lidar com o dinheiro.tem um outro que é o seu negativo, temos usuário que tem ficado em situação de rua, desassistidos, desfamiliarizados. Enquanto equipes temos que enfrentar problemas sociais, econômicas. Como dar sustentação às famílias, às estruturas extra-hospitalares? É preciso aumentar o numero de equipamentos de saúde mental, melhor capacitar os profissionais de saúde da família.
Fica evidente através das falas, que a reforma psiquiátrica como processo, não está pronta,... ela se constrói nas suas contradições, nas suas brechas. E o belo que vemos neste grupo operativo é que isto aparece escancarado, de pronto logo nos primeiros momentos do grupo, o que chamamos de emergente de abertura... e é um momento de síntese, de obra= ópera.
Como toda obra-síntese que olhamos, segue-se um momento que chamamos de desenvolvimento ou análise que se instala com as falas que denunciam buracos, falhas nas propostas atuais da reforma.
São os usuários que têm que se adaptar aos dispositivos de cuidados
ou o contrário? Ou ambos teríamos que abrir mão de algo na construção de uma solução mutuamente satisfatória, suficientemente boa?
As famílias e as equipes são postas na posição de sustentáculos da reforma psiquiátrica e se demanda que a cada uma destas partes se dediquem ações de instrumentação e suporte, cuidado. As falas vão no sentido de pensar o PSF, os NASFs, os CAPSs.- sozinhos não temos pernas.- cuidar de pessoas não se aprende na escola. Pessoas falam, conversam e escutar/conversar não aprendemos na escola.
Elaboram a questão da necessidade de estabelecer pontes, aproximações, relações, comunicação e eventualmente se chegar ao vinculo. Falam do desconhecimento dos recursos da região, de um dar suporte ao outro. De trocarem conhecimentos; conhecemos bem o dia a dia do paciente, lá onde mora..., mas nos falta o conhecimento técnico, fazemos grupos, mas nos falta suporte, podemos até conversar.
Saem da questão de passar para o outro o problema, para como? Juntos resolvermos?
Começam a potencializar o que fazem “o conversar” e colocam este conversar inicial como a possibilidade do vínculo e este sim potencializador da Reforma Psiquiátrica.
Vincular o sujeito a seu território aos cuidadores de seu território. Não é a medicação que trata, mas sim o vinculo... se eu confio eu vou usar a medicação, eu vou seguir as orientações... eu acompanho, eu me deixo ser acompanhado.
Vão caminhando para o fechamento do grupo, no sentido de uma nova OBRA síntese.
A mudança de paradigma, de mentalidade, que a reforma traz a necessidade de vincular os serviços, de vincular os familiares aos serviços, de vincular os usuários entre si e conosco.
Sozinho ninguém tem a solução, mas no conjunto tecemos uma rede e esta potente, sim é capaz de no mínimo apontar soluções mais respeitosas para com seres humanos,e isto é Reforma Psiquiátrica.
4. Reflexões sobre a medicalização a partir de extratos do
trabalho do grupo
Destacaremos a seguir alguns aspectos do cotidiano dos trabalhadores e dos
serviços de saúde que aparecem na discussão do grupo e que precisam ser
apoiadas por ações da gestão pública para que as diretrizes das políticas públicas
se concretizem e enfrentem a questão da medicalização da sociedade.
O primeiro deles relaciona-se com a concepção de equidade que precisa
sustentar ações de saúde mental no território.
As questões sociais na região do Campo Limpo são muito importantes, e o
grupo vai trazendo várias facetas a serem consideradas, desde as relações de
causalidade entre pobreza e loucura perpassadas de preconceito até o
questionamento sobre a crescente padronização de condutas normais e a
consequente produção de diagnósticos:
Precisamos lembrar que estamos num país pobre. Acredito que não adianta colocar mais CAPS, pois as pessoas continuam vindo para cá e continuarão vindo enquanto ser miserável aqui for melhor que ser miserável em outro lugar. Acho que não é o número de profissionais que vai resolver esse problema.
Importante percebermos que estamos produzindo doença. As pessoas
vem para São Paulo e adoecem. ... com padrões de normalidade e felicidade bem definidos as pessoas
vão se diagnosticando e nos vemos infestados pela doença mental, pela população que migrando para São Paulo não pára de crescer... Por outro lado, os serviços vão diagnosticando, medicando e os pacientes vão de um lado a outro. O que estamos fazendo?
O conceito de saúde mental apresentado refere-se a um trabalho que
estuda o desenraizamento como produtor de adoecimento, a discriminação como fator de doença mental e física. O CECCO através da cultura e do encontro trabalha com isto, e então na mesma lógica do PSF que é promover a saúde.
Estou com a impressão de que se acabasse a migração, acabaria a
miséria e a doença mental. Isto para mim é preconceito. Eu não sou nordestina, mas meus pais são. O preconceito faz a gente adoecer.
As diversas concepções de saúde mental e a compreensão da relação com a
questão social, muitas vezes produz assistencialismo e, outras vezes, ações que
promovem equidade.
O especialista inicia o benefício e o clínico dá continuidade, mas muitas vezes é iatrogênico dar o laudo somente porque o paciente pediu. Não se trata de profissionais incompetentes, mas de excesso de demanda com muitos casos acompanhados.
Somente soube da proporção em que a doença mental abala a
população quando vim trabalhar na saúde pública. Percebo que a estrutura familiar se precariza muito quando o pai é o
doente mental, a família sofre demais. Não podemos ir aos extremos se naquele momento há uma fragilidade inerente à doença dele, muitas vezes parte do seu delírio.
O uso dos benefícios, de forma cuidadosa, é importante para apoiar
processos de cuidado em saúde. Pois, muitas vezes, premido por econômicas, seja
o gasto com transporte para comparecer ao CAPS ou o prejuízo com o afastamento
do trabalho, recorre-se à medicação como recurso principal do tratamento pela
ilusória rapidez de melhora clínica.
A discussão do grupo afirma em alguns momentos que os pacientes
psiquiátricos somente poderiam viver com seus familiares se tivessem condições
financeiras para sobreviver com aporte para o tratamento e com inserção social pelo
trabalho. Mas o dilema em relação às proposições da Reforma Psiquiátrica se
reconfigura com a contextualização dos problemas sociais e a atuação dos serviços
de assistência:
Dada a complexidade dessa questão, muitos atores são necessários. Ficamos imobilizados muitas vezes e então tudo piora. O que eu, enquanto profissional tenho disponibilidade de fazer, pois aos poucos, um pouco cada um, teremos avanços.
Não supriremos jamais todas as necessidades da população da
periferia, mas dentro dos nossos limites temos muito para melhorar.
Um segundo aspecto que gostaríamos de destacar é a importância
estratégica que o acesso facilitado aos novos dispositivos de cuidados de saúde e
saúde mental tem para a superação do modelo biomédico e da medicalização da
sociedade. Enquanto a medicação estiver mais acessível à população do que a
participação em grupos de acolhimento nas unidades de saúde ou em atividades
comunitárias, nenhuma mudança ocorrerá.
Nesse sentido, a ação capilar dos ACSs que cotidianamente visitam às
famílias, inclusive as que não frequentam as unidades de saúde é fundamental.
A afetividade, a solidariedade, e a emoção que perpassam o trabalho desse
profissional são elementos centrais nos mecanismos de produção de vida, de
sentido e de sociabilidade nas instituições que se pretendem terapêuticas. Basaglia
nos lembra ainda: mas é só a emoção que eu experimento diante do doente que me
impele a agir em sua direção. Eles(as) relatam:
É preciso ajudar, eu estou mensalmente nas casas e crio um vínculo de família. É lógico que absorvo o sofrimento daquela realidade, mas tento não me afundar e detectar o que acontece. Em relação a cada família, a gente já tem uma base. Vai devagar, mas não vou estacionar.
Neste trabalho é preciso familiaridade para compartilhar com as
famílias e estranheza para nunca desistir.
Vincular o sujeito a seu território aos cuidadores de seu território. Não é a
medicação que trata, mas sim o vinculo. Se eu confio eu vou usar a medicação, eu
vou seguir as orientações, eu acompanho, eu me deixo ser acompanhado.
Propomos o trabalho da saúde a partir do vínculo, mas quais os espaços que
oferecemos para cuidar da relação que ACSs estabelecem com seu trabalho que
possibilite elaboração para sentimentos de onipotência/impotência e que favoreça a
construção do lugar profissional desse trabalhador nessa nova ocupação?
Um terceiro aspecto é a reafirmação do principio da autonomia como diretriz
da política nacional de saúde e dos diversos programas de saúde de âmbito
nacional.
A frustração do trabalhador de saúde diante das escolhas que as pessoas
fazem revela meandros que precisam ser investigados e questões a serem
elaboradas para que se concretize e consolide a política no cotidiano dos
trabalhadores e da população que utiliza os serviços de saúde.
Algumas ESFs têm como proposta a imposição de um modelo positivo de
saúde. Essa atitude embasada na recusa do sentimento de omissão quando não
interferem mais incisivamente nas situações.
Em contraponto a isso, alguns profissionais problematizam:
Eu entendi diferente. É preciso discutir com o outro o que ele quer. Sabemos o que é melhor para todos?! O que ele traz como necessidade? A gente constrói tudo para depois perceber que não era o que ele queria. Para nós pode parecer absurdo ou insignificante o que o outro deseja. Ficamos na queixa do que ele não faz, ao invés de conversar para saber o que o outro quer. Em visita domiciliar para J., pensamos em inseri-lo no CECCO e em muitos outros espaços, mas o que ele queria? Ele queria se alfabetizar.
É preciso trabalhar a nossa cabeça. Há vários pontos de vista
possíveis e precisamos trabalhar nossa cabeça para aceitar. Eu não nomearia esse sentimento de culpa, mas de compaixão, porque
cada um tem um destino diferente com seus sofrimentos. Este é o segredo desta vida.
Há uma angústia em relação ao tempo que demora para isso
acontecer.
Essa mesma frustração e angustia tem importância no desencadeamento do
empurra-empurra entre os serviços. Quando superam o sentimento de frustração, as
falas vão no sentido de pensar que o PSF, os NASFs, os CAPSs. sozinhos não ”tem
pernas”. Saem da questão de passar para o outro o problema, para como? Como
juntos resolveremos?
Elaboram a questão da necessidade de estabelecer pontes, aproximações,
relações, comunicação e eventualmente se chegar ao vinculo. Falam do
desconhecimento dos recursos da região, de um dar suporte ao outro, de trocarem
conhecimentos. As ESFs afirmam que conhecem bem o dia a dia do paciente, lá
onde mora, mas lhes falta o conhecimento técnico, por outro lado, nos serviços de
retaguarda, acontece o contrário.
5. Conclusões
Não podemos pensar como solução o que já foi ultrapassado. O manicômio
trouxe a solução desejada em 1846 (fundação do primeiro hospital psiquiátrico no
Brasil) e parte da dificuldade atual é produto desse sistema anterior que se
perpetuou ao longo de séculos em contextos que já indicavam a necessidade de
investimento na construção de novos dispositivos de cuidado. A solução não está
pronta pois envolve o cotidiano e uma complexidade para a qual é preciso agenciar
muitas instâncias da sociedade: o sistema jurídico e legislativo, a escola, a igreja –
muitas parcerias ao invés de uma única resposta – manicômio – para todos os
problemas.
É importante sempre reafirmar os princípios que regem as políticas de saúde:
o acolhimento, trabalho no território e rede, equidade e autonomia e viabilizar os
meio para que transformem nosso cotidiano. Somente abriremos mão do antigo
quando realmente tivermos alternativas concretas fundamentadas em novas bases.
As concepções dos trabalhadores e da população usuária dos serviços de saúde por
vezes mantem o velho no novo, mas quando encontram espaço adequado podem
ser elaboradas e lançam perspectivas transformadoras do cotidiano.
Então teremos construído uma real mudança.
Palavras-chave: saúde pública, saúde mental, formação em serviço
6. Referências bibliográficas:
BRASIL. Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Brasília, 1990. BRASIL. Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001. Brasília, 2001. BRASIL. Lei nº 10.507, de 10 de julho de 2002. Brasília, 2002. BRASIL. Ministério da Saúde. Circular Conjunta 01/2003. O Vínculo e o Diálogo Necessários. Inclusão da das ações de Saúde Mental na Atenção Básica. Brasília, 2003. DRUMMOND JUNIOR, M. A. Ações de saúde mental por agentes comunitários de saúde - investigando uma experiência de saúde mental na atenção básica. Dissertação de Mestrado UFMG, MG, 2009. FONSECA, K, F. B. S. Saúde Mental: a percepção do grupo de agentes comunitários de saúde. Dissertação de Mestrado UNICAMP, SP, 2006. LANCETTI, A. (org). Saúde Mental e Saúde da Família. SaúdeLoucura; 7. 2ed. São Paulo: Hucitec. NICÁCIO, F. (org), Desinstitucionalização. SaúdeLoucura (TEXTOS) 1. São Paulo: Hucitec, 2001. PICHON-RIVIÈRE, E., 1982. O processo grupal. São Paulo: Martins Fontes
TDAH – O que pensam pais e professores?
Murilo Galvão Amancio Cruz – UNESP, Assis.
Mary Yoko Okamoto – UNESP, Assis.
1. Quadro conceitual
A discussão acerca do comportamento indesejado de crianças escolares
tem tomado caminhos sinuosos ao longo da história; alguns teóricos enfatizam
o problema no indivíduo, ao supor causas biológicas (GOMES et al, 2007);
outros acreditam que a causa está na vida social e familiar (LIMA, 2006;
RAMOS, 1954); e outros, ainda, apontam aspectos que envolvem a instituição
escolar. (PATTO, 2000). A preocupação com a profilaxia associa-se a essa
vasta gama de possibilidades causais que serve de base para a realização de
diagnósticos para a dificuldade de comportamento que deseja prevenir,
orientar, medicar e segregar.
Retomando alguns pontos históricos importantes, podemos localizar
uma importante influência conceitual em relação às crianças que apresentam
dificuldades de comportamento e fracasso escolar na obra de Arthur Ramos
(1907-1949), autor que influenciou o olhar para as dificuldades de
aprendizagem e comportamento da criança. Ele aponta, sobretudo, que muitas
crianças consideradas anormais não sofriam de anomalia cerebral ou orgânica,
mas eram afetadas por causas extrínsecas. Com esse olhar, ocorreu uma
importante mudança terminológica e conceitual: de criança anormal para
criança problema, sendo que este conceito indicava os desajustamentos de
conduta, pobreza, etc., englobando as dificuldades físicas, mentais e sociais, e
não apenas orgânicas.
E por que as crianças? Ora, para que haja adultos saudáveis é
necessário que tenhamos crianças saudáveis. Assim, a saúde mental infantil se
aproxima da educação, adentrando o ambiente escolar com a finalidade de
prevenir e corrigir as doenças mentais sob o lema “manter normal a criança
normal” (RAMOS, 1954, p. 22). Com essa modificação conceitual, há uma
ampliação na visão dos determinantes das questões da infância da época, para
a influência social no desenvolvimento infantil, quebrando a visão predominante
de que tudo é causado pelo biológico. Para esse autor, “enfermidade psíquica
é, pois, perturbação da capacidade de adaptação social” (RAMOS, 1954, p.
19).
Dentre as crianças problemas, Ramos (1954), já destacava a criança
turbulenta que, segundo ele, é o problema de comportamento escolar que mais
fere a atenção dos educadores. Para o autor, “A fachada motora é o traço mais
aparente (...) contrariando as “regras” da disciplina escolar. Sob esse termo
“turbulência”, acham-se compreendidos, aliás, (...) a turbulência simples, a
agressividade, a instabilidade, a impulsividade, etc.” (RAMOS, 1954, p. 193).
Essa criança turbulenta, descrita por Ramos (1954), foi se modificando e
passou a ser conhecida como a criança com defeito no controle moral; depois,
a criança portadora de uma deficiência mental leve; passou por hiperativa,
hipercinética; e a que possuía um cérebro moderadamente disfuncional;
chegando à criança com Déficit de Atenção; e, por fim, a criança com
Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH); um dos transtornos
mais associados à infância na atualidade que leva grande número de
encaminhamentos às clínicas médicas. Na história do TDAH, portanto, muitas
terminologias e explicações surgiram ao longo do tempo, na tentativa de
explicar as dificuldades de comportamento (CALIMAN, 2006). Notamos,
contudo, que atualmente há uma preponderância dos aspectos orgânicos para
compreender essas crianças.
Tal evolução pode ser notada ao verificar o Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais, ferramenta diagnóstica utilizada pela
psiquiatria. Em sua 2ª versão, o DSM II (1968), o transtorno aparecia apenas
com seu caráter motor e no DSM III (1980), onde as referências a autores e
teorias foram banidas de tal classificação, o número de diagnósticos foi
multiplicado e ele surge associado ou não a um déficit de atenção. Foi nessa
edição que a Reação Hipercinética foi renomeada para Desordem do Déficit de
Atenção/Hiperatividade (DDAH) e surge como uma categoria psiquiátrica que
chega ao DSM IV como TDAH, incluindo três subtipos (TDAH, tipo combinado;
predominantemente desatento e predominantemente hiperativo/impulsivo),
cujos critérios diagnósticos são avaliados através de uma entrevista (SNAP-IV)
realizada com pais/responsáveis que descrevem o comportamento da criança
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2000).
É comum encontrar, nos encaminhamentos, queixas sobre dificuldades
de aprendizagem justificadas e sustentadas por questões orgânicas e o
problema recai sobre o indivíduo, ao invés de se questionar e analisar o
contexto escolar, familiar, social e político envolvido como produtor desta
dificuldade ou fracasso (PATTO, 2000). Depositam-se os déficits em um único
sujeito considerado isento de relações institucionais que produzem déficits.
Dessa forma, surge o conceito de patologização, ou seja, a classificação em
forma de uma patologia de comportamentos indesejados, desconsiderando o
contexto no qual tais comportamentos surgem e estão associados.
Outro conceito importante é o de medicalização, que reduz e transforma
questões políticas e sociais a um único domínio: a medicina, transformando,
assim, questões sociais em problemas de origem e solução no campo médico;
processo este que interfere nas regras da higiene, normas de moral e
costumes prescritos e tenta apropriar o modo de vida dos homens,
transformando o sofrimento natural em doença, o que desresponsabiliza os
indivíduos pelos seus atos (CRP & GIQE (orgs.), 2010).
O que preocupa, acima de tudo, é a falta de conhecimento crítico acerca
deste assunto por pais e professores, ou seja, aqueles que estão próximos à
criança. São eles, também, os responsáveis por encaminhar aos consultórios
essas crianças a fim de conseguir uma “receita rápida” para os problemas.
Nessa busca, o consumo de metilfenidato – droga utilizada no tratamento de
TDAH – no Brasil aumentou 1.616% de 2000 a 2008 (IDUM, 2009); e segundo
boletim divulgado pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária
Brasileira) em 2013, houve um aumento de 75% no consumo de metilfenidato
por crianças e adolescentes de 6 a 16 anos (ANVISA, 2013). Conhecida como
“droga da obediência”, é usada como forma de controle social e
homogeneização da sala de aula.
Além disso, o método de observação transcritiva, utilizado pela
psiquiatria no DSM, amplifica a ordem de grandeza dos quadros clínicos
deslocando a posição dos pais para os especialistas, já que, supostamente, o
saber parental não pode reconhecer e cuidar do déficit do filho levando-o a
confiar na voz anônima da verdade da ciência (VORCARO, 2011).
Diante dessa problemática exposta de crescente banalização de
diagnóstico para a infância, sobretudo do TDAH; do fenômeno da
medicalização e patologização da infância e da crescente imersão da medicina
na vida escolar, associa-se outro aspecto, o qual se refere ao lugar ocupado
pela infância e a família no cenário atual.
Diante de todas as transformações históricas, sociais e políticas
ocorridas desde o séc. XVII e XVIII, a infância tornou-se um campo privilegiado
de geração de novos saberes e novas formas de controle, que ultrapassa os
contornos da família e da escola, sendo abarcado pelo discurso médico, em
especial sobre a saúde e a prevenção em busca de um adulto sadio e feliz.
Essa representação de futuro que a infância traz embutida assume importância
fundamental nos dias de hoje, revelando a necessidade em conhecê-la,
estudá-la e pesquisá-la profundamente e sob todos os ângulos,
[...] para que se previnam todos os riscos, superar os efeitos danosos do meio familiar ao seu florescimento eficaz, otimizar suas potencialidades são imperativos asseguradores do controle das incertezas do futuro da civilização, e esperança de garantia de estabilidade da ordem social (VORCARO, 2011, p. 220).
A crescente visão de que o meio familiar constituía-se num risco para o
desenvolvimento da infância desadaptada (DONZELOT, 1986), ao mesmo
tempo no qual enfraqueceu e destituiu o poder familiar quanto ao seu papel,
possibilitou o fortalecimento dos aparelhos do Estado e, especificamente a
psiquiatria, como um dispositivo disciplinar solicitado para avaliar e diagnosticar
a condição da criança e de sua família, fortalecendo a necessidade de um
diagnóstico precoce e de uma intervenção profilática sobre o conjunto de
causas que poderiam favorecer os fatores de degenerescência social. Esses
fatores foram essenciais para a saída da psiquiatria de seu campo de atuação
por excelência – o asilo – e sua inserção em aparelhos sociais em pleno
desenvolvimento, como a escola e o aparelho jurídico.
2. Objetivos
Objetivamos nessa pesquisa, em andamento, analisar a compreensão
de pais e professores sobre as causas e as repercussões do diagnóstico de
TDAH na vida familiar e escolar de quatro crianças de 6 a 12 anos.
3. Metodologia
A pesquisa, aprovada sob o parecer 35288, pelo Comitê de Ética local,
foi realizada em uma escola de ensino fundamental da rede pública do
munícipio de Assis. Após explicitação dos objetivos da pesquisa, a
coordenação da escola indicou quatro alunos que receberam o diagnóstico de
TDAH e posteriormente contatamos seus pais e/ou responsáveis e seus
respectivos professores para participarem das entrevistas. Iniciamos a coleta
de dados através da realização de entrevistas semidirigidas com
questionamentos básicos a respeito do TDAH; sua relação com a vida escolar
e o impacto do diagnóstico e do tratamento na vida da criança.
Foram entrevistados quatro professores e quatro pais e/ou responsáveis,
todos relacionados às crianças indicadas pela escola. A amostra dos pais e/ou
responsáveis foi composta por uma avó e três mães. Abaixo, iremos descrever,
de maneira geral, cada criança a partir de documentos analisados na escola,
como fichas de professores e relatórios, o discurso dos professores e dos pais.
Todos os nomes aqui utilizados são fictícios.
Pedro, tem 7 anos de idade, está matriculado no 2º ano e mora com a
avó. Segundo a avó, um médico “achou” (sic), que ele tinha um “problema” (sic)
de hiperatividade e receitou um remédio do qual a avó não lembra o nome.
Segundo relatório de uma professora da pré-escola, em 2009, a criança era
quieta e conversava pouco. Já no último relatório da pré-escola, escrito no ano
anterior ao ingresso ao ensino fundamental, 2011, Pedro apresentava
dificuldades em se concentrar e cooperar com os colegas e professora. Não
obtivemos acesso aos relatórios do 1º ano, mas segundo a coordenadora ele
era bastante inquieto e hiperativo. Segundo a sua atual professora, ele é um
aluno muito inteligente, mas não para quieto. De acordo com sua avó, ele
presta atenção por pouco tempo nas coisas e é muito agitado até para dormir.
Por conta disto, foi receitado outro remédio para ele acalmar e dormir à noite,
mas a avó não vê melhora. Relata ainda que é inteligente, mas não consegue
prestar atenção.
Carlos está no 3º ano e tem 8 anos. Possui dois diagnósticos médicos
em sua ficha, com um mês de diferença entre eles. No primeiro, uma
neuropediatra diagnosticou TDAH, da forma combinada: hiperatividade e
desatenção com prescrição de Ritalina e ajuda pedagógica individual. No mês
seguinte, a mesma médica diagnosticou transtorno de aprendizagem por
imaturidade cerebral, justificando que essas crianças não respondem ao
psicoestimulante e que há necessidade de ajuda pedagógica individual. A
professora relata que Carlos é uma criança agitada, movimenta-se o tempo
todo e não presta atenção em nada durante muito tempo. A mãe concorda com
essa agitação.
Samuel está no 4º ano e tem 11 anos. Já passou por vários médicos e
psicólogos, com os seguintes diagnósticos: transtorno de aprendizagem,
dislexia e déficit de atenção. Segundo a professora ele está em outro mundo e
basta passar um bichinho em sua frente para sua atenção voltar totalmente
aquilo. A mãe procurou ajuda médica devido a duas convulsões que ele teve
na escola, e a partir de então começaram as buscas por um diagnóstico. De
acordo com a mãe, ela procurou ajuda profissional após a solicitação da
professora do 1º ano. A criança passou a tomar Ritalina para ir à escola e
Amytril para ele se acalmar e dormir à noite. Segundo a mãe, ele usou a
Ritalina por dois meses, mas como não fazia efeito, ela voltou à médica para
retirar a medicação. Para ela, a criança apresenta maiores dificuldades na
escola e em casa ela acaba nem percebendo diferenças, embora ele também
seja agitado em casa. Vale ressaltar que a mãe, quando contatada, se negou a
participar da pesquisa, pois estava cansada de ir atrás disso tudo e nada
resolver. No entanto, ela compareceu no horário sugerido e cedeu a entrevista.
Henrique está no 5º ano, tem 10 anos, e diagnóstico de Déficit de
Atenção. Segundo a atual professora, ele tem muita dificuldade e é
desorganizado, embora seja muito esforçado, fato atribuído à família que é
bastante presente e dá total apoio ao filho. Foi medicado com Ritalina, porém,
a professora avaliou como negativo tal uso de medicação. A mãe relata que na
escola ele é de um jeito e na casa é totalmente diferente; os sintomas só
apareceram a partir do 3º ano na escola. Segundo a mãe, ele é agressivo e
não falta concentração; mas ela considera que ele está bem melhor agora no
5º ano, e que não foi chamada à escola nenhuma vez ainda.
4. Resultados e Discussões
Nesse momento, apresentaremos os dados analisados através das
entrevistas realizadas com os pais e professores.
4.1. Entrevistas com os professores
Todos os professores apontam, de alguma forma, a questão familiar
como causa da queixa apresentada pela criança. Para alguns, existem também
questões genéticas e psicológicas (rejeição, trauma), para uma, a família é
crucial e a genética influencia; para outra, a genética é a principal causa e a
família tem alguma influência. Apenas uma professora apontou a questão
socioeconômica:
“A gente não conhece as crianças fora daqui. Então, a maior parte tem
problemas sérios familiares, rejeição... A gente percebe, assim, muita pobreza,
né?” (sic). (Professora do Pedro).
“Seria um transtorno genético ou é.... Como colocaria? Em algum
momento da vida.... passado por um trauma ou algum outro tipo de transtorno
teria gerado esse problema a nível psicológico” (sic). (Professora do Carlos).
Em relação às mudanças percebidas após o diagnóstico/tratamento, os
resultados demonstram que apesar de todos os professores apontarem a
conscientização sobre o transtorno algo positivo, com relação ao tratamento
existe uma diversidade de opiniões. Chama a atenção o fato de que a melhora
está principalmente associada à participação em atividades tais como estímulo
pedagógico e natação, considerada uma atividade que “acalma” os alunos e
não necessariamente ao uso de medicação.
Quanto à mudança relativa ao uso de medicação, uma professora
referiu não perceber nenhuma mudança e duas consideraram o uso da
medicação como algo negativo, pelo fato de dopar a criança: “por que ter uma
criança dopada também aos 8 anos, 9 anos de idade não resolve nenhum
problema, né?” (sic). (Professora de Henrique).
Um dos professores entrevistados não respondeu a essa questão, pois
assumiu a classe nesse ano e não participou desse processo.
De modo geral, para os professores, as crianças não se sentem
diferentes dos outros alunos devido ao diagnóstico e dificuldades
apresentadas: “Acho que ele está bem adaptado à sala e a sala de aula
adaptado a ele” (sic). (Professora do Henrique).
Apenas uma professora aponta tal diferença: “Eu acho que ele já foi
rotulado” (sic). (Professora do Samuel).
Porém, apesar do discurso preponderante de que os alunos não
percebem claramente a diferença, quando indagados a respeito do modo como
lidam com essas crianças em sala de aula, todos afirmam colocar a carteira
próxima ao professor, chamar mais a atenção, uma professora tenta passar
atividades mais “lúdicas”, etc.
4.2. Entrevistas com os pais
Na compreensão de pais e/ou responsáveis, as causas atribuídas às
dificuldades apresentadas pelas crianças são variadas e de modo geral, os
mesmos apresentam-se confusos com relação a tal questão.
A avó de Pedro apresenta o fator psicológico como causa: “A rejeição eu
acho que se torna algum problema pra criança” (sic). (Avó de Pedro).
Embora demonstrassem desconhecimento, a genética foi apontada:
“Será que não é genético? De alguém que ele...” (sic). (Mãe de Carlos).
“Acho que é da própria criança, né? Não tem como a gente saber o que
passa no cérebro, né?” (sic). (Mãe de Samuel).
A mãe de Henrique não atribui causa alguma, ela não sabe, mas localiza
no âmbito do comportamento adquirido que da doença.
De acordo com os pais, algumas crianças apresentaram melhoras após
o diagnóstico e o tratamento, porém, em nenhum dos casos a melhora está
associada ao uso da medicação. Ao contrário, a melhora é apontada ao
atendimento psicológico ou à evolução e maturidade da criança, com a idade.
“Eu acho que lá com 8 anos ele não pensava pra fazer as coisas, agora
com 10 anos ele já tá amadurecendo, ele vai aprendendo...” (sic) (Mãe do
Henrique).
Em relação aos sentimentos das crianças, de maneira geral, os pais não
sabem responder ou nunca pararam para pensar sobre essa questão, mas
referem que as crianças não percebem muita diferença. De qualquer maneira,
o tratamento oferecido é compreendido como algo em favor da criança: “Se
mandar eu ir lá na psicóloga eu vou, se mandar.... ele vai no projeto de
natação..” (sic). (Mãe do Carlos).
Apenas a mãe de Samuel afirma que seu filho sente uma diferença,
percebida diante de uma afirmação do filho: “ah mãe, você não sabe que eu
sou diferente?” (sic).
5. Conclusões
Notamos, de maneira geral que, apesar dos relatos tanto de pais e
professores a respeito da ineficácia da medicação, a busca por uma solução
terapêutica é preponderante diante das dificuldades apresentadas ou notadas
nas crianças.
É importante ressaltar que no âmbito escolar, a medicalização é um
processo cada vez mais presente, independentemente do fato apontado nessa
pesquisa, no qual os professores não notaram “melhoras” no comportamento
da criança com o uso da medicação, porém, a busca por diagnóstico e uma
solução externa (medicação, psicoterapia, aulas de natação) é contínua. Tal
posicionamento corrobora a literatura que aponta que a partir desta
popularização do saber psiquiátrico, se exclui o saber parental constitutivo do
laço social e afetivo, reduzindo-se apenas ao saber médico. Considera,
portanto, uma lacuna no saber parental que busca sempre fora de seus
domínios a resolução dos conflitos e sofrimentos (VORCARO, 2011).
Com relação aos pais, nota-se o discurso de que os problemas surgiram
na escola, e de certa forma, após o apontamento do problema, todos buscaram
a ajuda e seguiram as recomendações oferecidas pelos especialistas
consultados (médicos e psicólogos).
Tal fato aponta para o processo de enfraquecimento do papel parental,
no qual notamos a confusão quanto ao lugar ocupado pelos pais na
configuração subjetiva dos filhos, acarretando uma busca em ajuda externa,
pois o problema apresentado pelos seus filhos extrapolou a capacidade em
exercer sua função. Ou seja, a resposta encontra-se com especialistas. Apesar
dos pais não perceberem mudança nem problema no comportamento dos
filhos em casa, continuam a buscar ajuda no qual se excluem.
Através dessa pesquisa, notamos que em nenhum momento existe uma
reflexão a respeito das relações para a compreensão da produção dos sujeitos,
no caso, as crianças diagnosticadas. Apesar do discurso sobre a existência de
possíveis dificuldades (rejeição, trauma, pobreza), tais aspectos não são
percebidos como relações, muito menos relacionadas à produção de relações
subjetivas na instituição escolar.
As dificuldades apresentadas são compreendidas e localizadas
unicamente no indivíduo, ou seja, na criança, uma visão na qual se reduz
qualquer aspecto do ser humano a um único saber e domínio. Larosa ressalta
que o sujeito individual, descrito pela pedagogia e pela psicologia da educação
como objeto de estudo, não é, em absoluto,
uma evidência intemporal e acontextual (...) esse sujeito não pode ser tomado como um “dado” não problemático. Mas ainda, não é algo que possa analisar-se independente desses discursos e dessas práticas, posto que é aí, na articulação complexa de discursos e práticas (pedagógicos e/ou terapêuticos, entre outros), que ele se constitui no que é (LARROSA, 2002, p. 40).
Assim, concluímos, que essa forma de compreender as pretensas
dificuldades dos alunos apenas confirmam a necessidade da utilização de
tecnologias e saberes para o controle do comportamento das crianças,
reduzindo as relações familiares, escolares e sociais a um diagnóstico e
portanto, a uma doença que necessita de tratamento e cura.
Palavras chaves: TDAH; medicalização; infância; pais; professores.
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TDAH e Atenção Voluntária na Psicologia Histórico-Cultural: entre a cristalização e a possibilidade de mudança
Sabrina Gasparetti Braga – Universidade de São Paulo Hilusca Alves Leite
Cristiane Toller Bray Marilene Proença Rebelo de Souza
Quadro Conceitual
Este trabalho apresenta um estudo de caso que buscou resgatar o processo de
escolarização de um estudante de ensino fundamental I com diagnóstico de Dislexia
e Transtorno Déficit de Atenção Hiperatividade. Enfocaremos a discussão das
possibilidades de desenvolvimento desta criança, especialmente no desenvolvimento
da função psicológica chamada atenção voluntária que possibilita ao sujeito
permanecer atento a uma determinada atividade de maneira arbitrária, isto é,
consciente. Partimos do pressuposto de que o não desenvolvimento da atenção
voluntária se expressa no que hegemonicamente atribui-se o nome de Transtorno de
Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Contudo, de acordo com a teoria
Histórico-Cultural, que embasa nossa análise, compreendemos que o fato desta
função psicológica não ter se desenvolvido adequadamente não se traduz em
transtorno ou na impossibilidade de vir a se desenvolver, pois a capacidade da
manutenção da atenção prescindindo de demais estímulos não decorre unicamente
da maturação orgânica, mas está intrinsecamente vinculada às apropriações culturais
e às mediações que a criança recebe no seu percurso de desenvolvimento.
Objetivos No presente trabalho buscaremos discutir a história do processo de
escolarização de uma criança diagnosticada como portadora de déficit de atenção
hiperatividade, como foi realizado o diagnóstico e como à luz da concepção de
desenvolvimento proposta pela Psicologia Histórico-Cultural pode-se compreender o
desenvolvimento da atenção voluntária não como um transtorno ou distúrbio, mas
como função psicológica superior construída socialmente ao longo do tempo, via
apropriações culturais e mediações.
Metodologia
Foram realizadas entrevistas com Vinicius1, sua mãe, suas professoras e com
a coordenadora pedagógica da escola. Buscou-se a partir da versão de cada um dos
participantes o acesso e compreensão da história de escolarização da criança.
Vinicius estudou a 1ª e 2ª séries com a professora Nanci. Repetiu a 2ª série e estudou
a 3ª com professoras que não conseguimos contatar. A 4ª série cursou com a
professora Fátima, e à época da pesquisa estava refazendo a 4ª série com a
professora Maria.
Luciana, a mãe de Vinicius, relata que quando ele estava com oito anos iniciou
o acompanhamento com um médico neurologista que diagnosticou hiperatividade,
prescrevendo medicação. No final do mesmo ano a criança foi atendida em uma
instituição especializada em dislexia que realizou uma avaliação com resultado de
“quadro de risco para dislexia” e “suspeita de Transtorno Déficit de Atenção”. Embora
as conclusões do laudo sejam apenas “suspeitas” tanto a criança, quanto sua mãe e
o próprio neurologista que acompanhava o caso atuavam como se o diagnóstico fosse
conclusivo para dislexia e TDA.
O laudo diagnóstico realizado pela associação especializada em dislexia foi
concluído por duas profissionais: uma psicóloga e uma fonoaudióloga, por meio da
aplicação de testes padronizados. O diagnóstico de TDAH (transtorno déficit de
atenção/hiperatividade) foi realizado pelo médico por meio de entrevista com a mãe
sobre o comportamento da criança. Não é possível afirmar se o profissional que
realizou o diagnostico fez uso de algum questionário específico, porém o Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR, 2003) afirma que a
identificação do TDAH deve basear-se num conjunto de sintomas relativos à
desatenção, hiperatividade e impulsividade2. A título de ilustração transcrevemos dois
dos sintomas listados pelo manual, o primeiro deles relativo a desatenção e o segundo
à hiperatividade: “Frequentemente não presta atenção a detalhes ou comete erros por
omissão em atividades escolares de trabalho ou outras”; “Frequentemente agita as
mãos ou os pés ou se remexe na cadeira”. Percebe-se que as respostas para estes
sintomas são bastante subjetivas. A respeito disto Moysés (2010) faz a seguinte
crítica:
1 Todos os nomes citados neste texto são fictícios. 2 Este conjunto de sintomas que o DSM IV lista, foi transformado em um questionário chamado SNAP IV. O leitor interessado pode encontrar um modelo deste no site da Associação Brasileira de Déficit de Atenção.
sair do lugar na sala de aula ou em situações em que se espera que fique sentado; aqui está posto o problema básico, que é o seguinte: quem espera que ele fique sentado? Quem disse que é normal uma criança de cinco anos ficar sentada na sala de aula? Quem disse que é normal um adolescente ficar sentado enquanto a gente espera que ele fique sentado? É o peso da autoridade de quem define o que o outro deve fazer e não o que é normal.( p.20)
Para que o diagnóstico do TDAH se confirme cinco critérios precisam ser
seguidos: ao menos seis dos sintomas de desatenção e/ou seis dos sintomas de
hiperatividade/impulsividade propostos pelo DSM-IV devem estar presentes na vida
da criança; os sintomas precisam ocorrer em diferentes ambientes frequentados pela
criança; manterem-se constantes; trazer prejuízo significativo para sua vida; e se
houver algum outro tipo de transtorno (mania, depressão, psicose, etc.) o quadro não
pode ser atribuído exclusivamente ao TDAH. Para concluir em qual categoria
diagnóstica enquadrar o paciente este profissional faria um diagnóstico diferencial,
excluindo outras patologias orgânicas ou problemas psicológicos (tal como um déficit
de inteligência significativo) por meio de avaliação neurológica e aplicação de teste de
inteligência.
Diante de todas as incertezas e indefinições do diagnóstico de hiperatividade,
questiona-se aqui também o profissional que realizou o diagnóstico de Vinicius que
não seguiu as orientações da sua própria área de atuação. Mesmo que este
procedimento diagnóstico acima descrito pudesse ser considerado válido o médico
não o fez de maneira correta, pois não poderia prescindir de uma entrevista com o
professor que é um dos critérios diagnósticos (os problemas causados pelos sintomas
devem estar presentes em pelo menos dois contextos diferentes). As professoras de
Vinicius, inclusive aquela da época em que o diagnóstico foi realizado, nem sequer
sabiam da existência do laudo, o que nos faz concluir que não responderam ao
questionário SNAP-IV.
Por sua vez, as considerações da mãe a respeito do comportamento do filho
pareciam estar em pleno acordo com os critérios e sintomas para TDAH. Ela queixava-
se que ele não ficava sentado, mexia nas coisas constantemente, desviava sua
atenção por qualquer motivo. Dizia também que as professoras reclamavam muito da
falta de atenção e da inquietude de Vinicius na sala de aula, que ele não fazia as
atividades por não conseguir parar quieto.
As ações descritas pela mãe são muito próximas àquelas que constam da lista
do DSM-IV. “Ele não para”, “não presta atenção”. Leonardi, Rubano e Assis, (2010)
falam sobre uma deficiência importante na classificação da hiperatividade que consta
no DSM-IV que é a categorização circular, isto é, estruturas inobserváveis (supostas
deficiências neurológicas) são inferidas a partir da observação de determinados
comportamentos, ao mesmo tempo em que são utilizadas para explicar a causa
destes comportamentos. Dessa forma, pode-se dizer que “um indivíduo tem
hiperatividade através da observação de determinados comportamentos e explica-se
que ele emite tais comportamentos porque é hiperativo.” (Leonardi et al, 2010, p.117)
Parte-se do pressuposto tanto em casa quanto na escola de que desde muito
cedo a criança seja capaz de focar sua atenção, controlar seus comportamento e
impulsos voluntariamente. Werner (1997) nos conta que a atenção voluntária, como
uma das funções psicológicas superiores, não é passível de ser compreendida
analogamente à atenção natural e instintiva dos animais, pois desenvolve-se por um
processo social e dependente de motivações e significados.
Cabe explicar um pouco melhor a respeito deste processo. A atenção é a
instância psíquica responsável por selecionar determinadas tarefas importantes ao
indivíduo, bem como as ações fundamentais para o cumprimento da referida tarefa
(Luria, 1979), ela não está dada desde o nascimento. Nos primeiros anos da infância,
predomina a chamada atenção involuntária – tipo de atenção que responde a qualquer
estímulo novo (luzes, cores, sons diferenciados) –, mas que se extingue conforme o
indivíduo se adapta à novidade. Paulatinamente, a atenção involuntária vai sendo
substituída pela atenção voluntária, responsável por fazer com que o indivíduo
permaneça em uma atividade mesmo que esta não seja inteiramente interessante
(Vygotski, 2000a).
Essa passagem da atenção involuntária à voluntária não acontece como um
simples processo de transposição ou transformação de uma forma em outra. Ocorre
um processo de superação por incorporação da primeira pela segunda. A esse
respeito Vygotski (2000b) afirma que as chamada funções psíquicas superiores são
primeiramente externas, pois decorrem da organização social3. Assim quando falamos
3 Não será possível nos alongarmos nesta questão, mas é importante destacar que Vygotski fundamenta sua teoria no método Materialista Histórico Dialético desenvolvido por Marx e Engels. Esta concepção metodológica compreende que o homem, ao modificar a natureza criando instrumentos que possam satisfazer suas necessidades, não modifica apenas o meio externo (natureza), mas modifica a si próprio e são estas mudanças que possibilitam sua humanização. Em termos psicológicos são estas mudanças que possibilitam o desenvolvimento das funções
em desenvolvimento, toda função aparece duas vezes, primeiramente no plano social
– interpsicológico – e mais adiante, enquanto função psicológica internalizada –
intrapsicológica. Isso ocorre com todas as funções superiores, atenção voluntária,
memória lógica, formação de conceitos, desenvolvimento da vontade (Vygotski,
2000b).
Para que ocorra a transposição do meio inter para o intrapsicológico, de uma
função superior é imprescindível que haja mediação, ou seja, é necessário que um
par superior (as figuras que cuidam e educam a criança) ensine a criança a utilizar os
instrumentos disponíveis na sua cultura, ensine-a a falar, a portar-se, etc. Pois ao
nascer, a criança encontra um ambiente dado, mas não é capaz de compreendê-lo
como algo criado por homens, utiliza-o conforme recebe indicações para fazê-lo
(Markus, 1974). A partir dessas indicações terá inicio o processo de desenvolvimento
das funções superiores.
No caso da atenção, os reflexos de orientação inatos na criança que
correspondem à atenção involuntária, pouco a pouco, passam a ser dirigidos por
fatores socioculturais. Ocorre um processo de superação da fase mais primitiva, por
incorporação às mais complexas, decorrentes da interação do indivíduo com seu
ambiente sociocultural, que lhe impõe tarefas para as quais necessitará da regulação
efetiva de seu comportamento e atenção. Neste processo tem especial importância a
aquisição e desenvolvimento da linguagem. Inicialmente a criança divide seus atos e
atenção voluntários com a linguagem da mãe que lhe indica objetos, nomeia-os, e a
criança realiza a ação de pegá-los.
Com o desenvolvimento da linguagem da própria criança, suas ações passam
a ter caráter ativo, já que ela mesma pode nomear objetos, identificá-los e destacá-
los dentre tantos outros que estejam a sua volta. Pode da mesma forma, dar ordens
a si própria. Estas inicialmente ocorrem de forma extensa, porque a linguagem ainda
é externa, mais adiante a linguagem é interiorizada pela criança, as ordens acontecem
de forma abreviada e interna. A linguagem interna tem a função de regulação da
conduta, com isso, desenvolve-se a ação voluntária consciente na criança, mediada
superiores. Resgatamos o exemplo de Leontiev (1994) para explicitar a constituição social das formas voluntarias de atenção e controle voluntário do comportamento. O autor explica que, os homens das tribos primitivas, quando saiam para exercer a atividade da caça, precisavam submeter o controle do próprio comportamento de acordo com a organização estabelecida para o grupo a fim de garantir a caça. A atividade de trabalho consistiu em algo indispensável para o desenvolvimento da atenção, enquanto que esta se tornou imprescindível para o desenvolvimento da atividade de trabalho desdobrada nesses povos primitivos.
pelo pensamento verbal, conforme Luria (1986). Observa-se, portanto que, “A ação,
antes compartilhada por duas pessoas, se converte em procedimento de organização
da atividade psíquica, a ação interpsicológica adquire uma estrutura intrapsicológica”
(Luria, 1979, p. 58).
Mais adiante, com a inserção da criança na escola, a atenção voluntária tende
a se tornar mais estável, porque o ambiente escolar impõe tarefas que exigem do
aluno voluntariedade na atenção, na memória, no comportamento, etc. No entanto,
não se pode esperar que já nas primeiras etapas da escolarização a criança seja
capaz de manter-se atento e controlar voluntariamente seu comportamento em todas
as atividades (Smirnov e Gonobolin, 1960). Da mesma forma que nas primeiras
etapas do desenvolvimento em que ocorre aquisição da linguagem oral é necessária
a participação da figura cuidadora para destacar elementos importantes no que diz
respeito aos conteúdos cotidianos, nos conteúdos escolares, também é necessário
que a atenção da criança seja constantemente guiada. Neste período ocorre o
desenvolvimento dos conteúdos científicos – dentre eles a aquisição da escrita – que,
de acordo com Vigotsky (2009) promovem saltos qualitativos no desenvolvimento da
criança.
Havia uma preocupação da professora em relação a atenção de Vinícius, pois
ela relata que o colocava sentado logo a frente, para que realizasse as próprias
atividades ou para que permitisse que os colegas o fizessem. No entanto, ela parecia
desconhecer o impacto fundamental que a mediação do professor e a aquisição de
conhecimentos tem para o desenvolvimento do sujeito, pois relata que identificava a
hiperatividade em outros alunos da sala, além de Vinícius. Sentia-se “aliviada” ao ter
um nome para os comportamentos de Vinícius e que a partir do laudo passou a
compreender melhor o que acontecia, o que o deixava tão distraído.
Enquanto a mãe de Vinicius e as primeiras professoras o descrevem
principalmente como uma criança que “não para”, “não fica sentado”, “incomoda os
colegas”, a professora Maria destaca principalmente sua falta de atenção (“muito
disperso”, “é complicado fazer com que ele preste atenção”). Em conversa breve com
a psicopedagoga que o atendeu4 esta o descreve: “ele era um menino muito ativo,
4 Em razão da dificuldade para obter autorização de acesso ao prontuário e aos profissionais de saúde que atenderam Vinicius
no contra turno escolar, em uma organização não governamental, foi realizada uma conversa telefônica breve com a
profissional psicopedagoga que o atendeu, e esta descreveu de forma sucinta suas impressões no contato com a criança,
tomando‐se todos os cuidados éticos de autorização por termo de consentimento livre esclarecido.
muito alegre, muito, ele era assim muito carinhoso, falava muito, se expressava,
queria se expressar”. O discurso da mãe e das primeiras professoras coincide com o
momento que Vinicius foi atendido no programa social, pela psicopedagoga. Talvez,
ele não fosse “uma criança agitada, que não parava, que não dava, muito danado”,
mas sim aquela descrita pela psicopedagoga: uma criança que queria se expressar,
curiosa pelo mundo, por isso procurava sempre algo novo para prestar atenção. Com
o tempo, esta ânsia foi diminuindo dando lugar a uma apatia e distração, principal
queixa da professora mais recente. Daquele menino que se dizia apenas ser “agitado”,
mas que era também expressivo e curioso pelo mundo o processo de medicalização
retirou a energia vital, característica das crianças que tanto contagia os adultos.
Quando se perguntou a mãe a respeito das preferências do menino ela disse
que ele não conseguia parar assistir a um filme, ou ficar na igreja assistindo ao culto
inteiro. Contudo o próprio Vinícius conta a respeito de um filme (inteiro) que já assistiu.
O encontro de versões evidencia que Vinicius passou por um processo de
desenvolvimento que não foi testemunhado pela mãe. Diagnosticado como incapaz
de manter atenção quando ainda estava com oito anos (e talvez não se interessasse
tanto por filmes), aos 12 anos a ideia a respeito do filho havia se cristalizado e a voz
do diagnóstico manteve sua força com a certeza: ele é hiperativo, ele não consegue.
Entre as professoras houve o questionamento sobre a validade do diagnóstico,
se Vinicius seria de fato disléxico e hiperativo. Fátima e Nanci parecem perder-se em
meio às afirmações de que ele tem tanto TDAH quanto Dislexia, porém,
contraditoriamente afirmam que outros casos muito semelhantes ao de Vinícius já
puderam ser resolvidos somente com trabalho pedagógico. Sem saída, afirmam: o
problema dele está na falta de concentração.
Dizer “ele não tem concentração” (discurso da professora Nanci) parece ser
diferente do discurso “não tem o hábito de se concentrar” (discurso da professora
Fátima), isto é, concentrar-se não é uma prática frequente para Vinicius. Se não é
uma prática frequente, quer dizer que ele não pôde aprender e desenvolver a função
psicológica superior correspondente. Hábito é algo que pode se adquirir por meio de
aprendizagem, experiências propiciadoras que talvez ele não tenha tido oportunidade
de vivenciar. Dizer que Vinicius não tem concentração soa taxativo e pressupõe algo
que ele já deveria ter e não terá possibilidade de construir, pois que é de sua
constituição individual. Importante relembrar que foi a professora Fátima, que concebe
de maneira um pouco diferenciada o desenvolvimento das capacidades de atenção e
concentração, quem o alfabetizou. Como relatado no item sobre a história do processo
de escolarização de Vinicius até o ano de 2010 as professoras não tinham
conhecimento do diagnóstico, portanto não houve na relação professor-aluno e no
desempenho de Vinicius em seu processo de alfabetização influência do laudo, mas
sim da concepção de desenvolvimento humano de cada professora.
Vinicius por sua vez, apropriou-se da sua condição de criança com problema,
afirma que não consegue ficar parado e não consegue ler por conta da dislexia, sem
conseguir diferenciar o que seria o TDAH e o que seria Dislexia. Porém, quando
questionado porque está parado concedendo a entrevista, consegue elaborar que o
que lhe falta são motivos. As situações de inquietude surgem justamente quando se
encontra diante de uma tarefa que considera desagradável, ou quando está em aula
com um professor com quem não tem afinidade (como o de artes, por exemplo).
Para a Psicologia Histórico-Cultural toda atividade, seja ela de estudo ou não,
deve ter um sentido pessoal, envolvendo os motivos e significados sociais
correspondentes a atividade. Asbahr (2011) amparada nessa teoria realizou uma
pesquisa que nos auxilia na compreensão dessa questão. A autora explica que a
atividade pedagógica, para cumprir sua finalidade, não pode estar separada dos
motivos e ações (do estudo) nem distante dos significados e sentidos da atividade de
estudo. Por isso, o papel do professor nesse processo é fundamental, inclusive
durante o planejamento e organização da atividade pedagógica. Atividades de estudo
“não motivadas” e sem finalidade das ações podem gerar ações esvaziadas de
sentido, não permitindo a formação dessa atividade. Valorizar os motivos, ou seja,
“produzir ações geradoras de motivos” na atividade educativa, é a possibilidade de
tornar o conteúdo escolar em conteúdo realmente vivido pelo estudante, provido de
sentido. Conforme discutimos, para a Psicologia Histórico-Cultural, o desenvolvimento
das funções psicológicas dependem das mediações. Além disso, a aprendizagem está
à frente do desenvolvimento e para que essa aprendizagem ocorra a ação/interação
do educador é fundamental.
Conclusões Historicamente, a escola tem demandado ações no âmbito da saúde quando
necessita de auxílio para cumprir com a sua função de socialização do saber. Neste
movimento, os profissionais de saúde demandados acabam por produzir diagnósticos
que não auxiliam, mas justificam a não aprendizagem ou dificuldades encontradas
pela criança na instituição escolar. Desse modo, assim como aconteceu com Vinicius,
crianças acabam em consultórios médicos e dos mais diversos especialistas, em
serviços públicos e particulares, sendo diagnosticadas como portadoras de
transtornos ou distúrbios. O que nos preocupa é a afirmação de transtornos ou
distúrbios que estariam localizados no corpo individual do estudante diante de um
problema que tem sua produção social ignorada. A Psicologia Histórico-Cultural ao
compreender a atenção voluntária como uma função superior que se desenvolve e
que depende de mediações e condições culturais apropriadas desconstrói a
concepção de que uma criança possua um transtorno e abre a possibilidade de auxiliar
a instituição escolar na compreensão e solução do fenômeno, pois passa a considerar
o contexto social em que a dificuldade se produziu. Portanto, em um processo de
avaliação diagnóstica há que se reverem as condições concretas que podem estar
propiciando à criança apresentar comportamentos diversos daqueles esperados pela
escola. A investigação da história do processo de escolarização e a compreensão do
desenvolvimento da atenção voluntária a partir da Psicologia Histórico-Cultural nos
conduz a considerar processos históricos e sociais envolvidos nos fenômenos
escolares, e acaba por desconstruir concepções que depositam apenas na criança a
responsabilidade pelas dificuldades encontradas em seu processo de escolarização.
Referências Asbahr, F.S.F. (2011) “Por que aprender isso professora?” Sentido pessoal e atividade de estudo na Psicologia Histórico-Cultural. Tese de doutorado – Programa de Pós-graduação em Psicologia, Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. DSM IV-TR. (2003). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4ªed. Texto revisado). Porto Alegre: Artes Médicas. Leonardi, J.L, Rubano, D.R. & Assis, F.R.P. (2010). Subsídios da Análise do Comportamento para avaliação de diagnóstico e tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) no âmbito escolar. In Conselho Regional de Psicologia de Saõ Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (orgs). Medicalização de Crianças e Adolescentes. Conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Leontiev. A. N. Actividad, conciencia, personalidad. Cidad de La Havana: Editorial Pueblo Y Educacion, 1983.
Leontiev, A.N. (1994). The development of voluntary attention in the child. In Vigotskii, L.S. The Vigotsky reader (cap. 11, pp. 288-312) Edited by René van der Veer and Jaan Valsiner. Obra original publicada em 1932. Luria, A.R. (1979c). Las funciones psíquicas superiores del hombre y el problema de su localizacion. In: A. R. Luria El cérebro humano y los processos psiquicos. Analisis neuropsicológica de la actividade consciente (pp. 53-66). Barcelona: Fontanela. Luria, A.R. (1986). Pensamento e linguagem: as últimas conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas. Markus, G. (1974). Teoria do conhecimento no jovem Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Smirnov, A.A. & Gonobolin, F.N. (1960). La atencion In: A.A. Smirnov; S.L. Rubinstein; A.N. Leontiev y B.M. Tieplov (Orgs. Florêncio Villa Landa, trad.) Psicologia (Cap. VI, pp. 177-200). México: Tratados y Manuales Grijalbo. Vygotski, L.S. (2000a). Dominio de la atención. In: L.S. Vygotski. Obras escogidas. (tomo III, Cap. 9, pp. 213-245). Madrid: Visor (obra original publicada em 1931). Vygotski, L.S. (2000b). Génesis de las funciones psíquicas superiores. In: L.S. Vygotski. Obras escogidas. (tomo III, Cap. 5, pp. 139-168). Madrid: Visor (obra original publicada em 1931). Vigotsky, L.S. (2009). A construção do pensamento e da linguagem (2ª ed. Trad. Paulo Bezerra). São Paulo: WMF Martins Fontes. Werner J., J. (1997) Transtornos hipercinéticos: contribuições do trabalho de Vygotsky para reavaliar o significado do diagnóstico. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP.
1
TDAH e Infância contemporânea: algumas considerações
críticas
Rosana Vera de Oliveira SCHICOTTI1 Jorge Luis Ferreira ABRÃO2
Sérgio Augusto GOUVEIA JÚNIOR3
Contextualizar e compreender o crescente número de diagnósticos do
Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade, bem como o aumento da venda de
medicamentos para este transtorno, tem sido uma empreitada comum de muitos
autores que se dedicam ao tema da infância. O presente trabalho é uma síntese de
uma pesquisa de doutorado4 cujo objetivo principal foi compreender os significados e
as peculiaridades da sintomatologia do TDAH, elucidando a polissemia imbricada na
singularidade de cada caso particular. A perspectiva teórica adotada foi a
psicanálise. Esta se enquadra em um modelo de pesquisa qualitativa, visto que -
neste enquadre - o conhecimento tem um caráter interpretativo, na medida em que é
construído em um processo de atribuição de sentidos.
Para concretizar os objetivos, realizou-se um trabalho de psicodiagnóstico
com crianças que foram encaminhadas para atendimento psicológico em uma
cidade do interior paulista. Desta forma, no presente trabalho, após esclarecer os
caminhos desta pesquisa de doutorado, pretende-se trazer os principais sentidos
que foram apreendidos por meio dos psicodiagnósticos realizados e, a partir daí,
oferecer algumas sugestões para os profissionais e instituições que atuam com a
infância.
No município onde se realizou a pesquisa, as psicólogas escolares atuavam
diretamente nas escolas e faziam diagnósticos das crianças que eram
encaminhadas para o setor de psicologia. Nesse trabalho, elas costumavam
1 Psicóloga e Profª Draª da Faculdade de Psicologia da Unoeste. E-mail: [email protected] 2 Psicólogo e Profº Livre-Docente do Departamento de Psicologia Clínica da Unesp/Assis e docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da mesma instituição. E-mail:[email protected] 3 Professor do Ensino Médio, Mestrando no Programa de Pós-graduação em Educação na Unesp/Presidente Prudente 4 SCHICOTTI, R.V.O. TDAH e infância contemporânea: um olhar a partir da psicanálise.Tese de Doutorado, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis- SP, 2013.
2
identificar, grosso modo, os seguintes diagnósticos: TDAH, Transtornos de
Aprendizagem e Transtornos de ordem emocional.
Após realizarem essa triagem, essas profissionais encaminhavam as crianças
aos diversos serviços especializados do município. No período em que se fez o
trabalho de campo, puderam-se encontrar tais encaminhamentos e diagnósticos no
departamento de saúde onde atuavam os psicólogos clínicos da cidade e, assim,
atenderam-se três casos de crianças diagnosticadas com TDAH, todas medicadas
com Ritalina5 e outros medicamentos, as quais tiveram seus diagnósticos
referendados por médicos neuropediatras e psicólogos.
Esses casos estavam na lista de espera do ambulatório de saúde mental do
município para atendimento psicológico. Após o consentimento da família, foi
realizado um trabalho de psicodiagnóstico com essas crianças. Tal procedimento
enquadra-se na denominação descrita por Trinca (1984) como processo diagnóstico
do tipo compreensivo, descrito pelo autor como um bom recurso para a pesquisa
psicológica.
Segundo Trinca (1984), a ideia de um processo diagnóstico de tipo
compreensivo justifica-se pela necessidade de abranger uma multiplicidade de
fatores que estão em jogo na realização de estudos de casos. Esta forma de
designar o processo diagnóstico possibilita:
[...] encontrar um sentido para o conjunto das informações disponíveis, tomar aquilo que é relevante e significativo na personalidade, entrar empaticamente em contato emocional e, também, conhecer os motivos profundos da vida emocional de alguém (TRINCA, 1984, p.15).
Tornando nossas as palavras de Tsu (1984), queremos esclarecer que,
apesar deste trabalho ter se apropriado de instrumentos ou ferramentas para captar
o mundo interno infantil, bem como alguns fenômenos que emergem no campo
relacional, as crianças não foram vistas como objetos submetidos a exame ou à
pesquisa, mas sim como pessoas que mereciam ser escutadas com muita atenção.
Deste modo, apesar de não ter sido possível fazer um trabalho de
psicoterapia posterior com as crianças atendidas, todos os envolvidos na pesquisa
(criança, família e escola) receberam uma devolutiva e um espaço para dialogar
5 Nome comercial do cloridrato de metilfenidato, psicoestimulante do sistema nervoso central.
3
sobre os sentidos das queixas escolares e da sintomatologia apresentada pela
criança. A pesquisa realizada buscou questionar com os envolvidos a forma tão
preconizada em nossa sociedade de transformar sintomas em doenças e, assim,
esvair-se de um real enfrentamento e de uma mais ampla compreensão das
diversas causas de manifestações de sofrimento e descontentamento humanos.
Além disso, em virtude de trabalharmos principalmente com o tema da
infância e consequentemente escutarmos meninos e meninas, também gostaríamos
de salientar, de acordo com Zornig (2000), que não devemos recorrer a soluções ou
reflexões simplistas que desconsiderem a inserção da criança em um discurso
parental e social. Ela está atrelada a um discurso que a nomeia, que a constituiu e
ocupa um lugar na fantasia parental. O grande desafio é encontrar “[...] as
possibilidades de fazer operar uma clínica que coloque a criança numa posição de
sujeito perante sua história”. (ZORNIG, 2000, p.13).
Vincent (2003), psicanalista francesa, mostrou que mesmo um país como a
França – considerada pelos não-franceses uma nação onde se vive muito bem - tem
enfrentado suas mazelas em relação à falência da autoridade em geral e aos novos
sintomas escolares. Ela discorreu que, ali, o médico generalista costuma nomear
como depressão tudo aquilo que não vai bem com a criança. Em decorrência de
nossa pesquisa e de nossa experiência, podemos afirmar – parafraseando a autora
– que, no contexto onde trabalhamos, o TDAH tem sido a nomeação mais frequente
utilizada pela medicina para expressar o sofrimento infantil.
Na realidade, pouco importa a nomenclatura; por meio deste estudo pudemos
verificar que essa forma de compreender os problemas da criança e seu entorno faz
parte de um profundo processo social de medicalização do Ocidente, iniciado há
cerca de duzentos anos, e que atualmente está em seu ápice. Em linha oposta a
essa postura, a psicanálise tem outra proposta para a escuta do mal-estar expresso
pela criança ou pelos adultos mais próximos a ela, como seus pais e professores.
Os sintomas da desatenção, da impulsividade e da hiperatividade investigados nas
crianças diagnosticadas puderam exprimir - por meio do método psicanalítico –
angústias de separação, falhas na constituição do eu e do superego e,
consequentemente, denotaram falhas na capacidade de pensamento.
Pudemos, ainda, perceber que tais modos de subjetivação são mais
propensos em uma cultura na qual, de acordo com autores que nos acompanharam,
as proibições são cada vez menos respeitadas, a escola não assegura mais a
4
disciplina e os laços familiares não desempenham seu papel regulador. (VINCENT,
2003; GUARIDO, 2011). Em outras palavras, o contato das crianças e adolescentes
com seus pais e professores tem sido de pouca intensidade e de sentido
empobrecido, pois há uma série de fatores que contribuem para isso, dentre os
quais destacam-se a falta de sentido significativo nas relações sociais no
contemporâneo (LA TAILLE, 2009), as falhas nos processos de formação dos
professores (PIMENTA, 2002) e a situação de isolamento e desestímulo em que a
maioria dos profissionais da educação se encontram (LESSARD; TARDIF, 2007).
Com efeito, em determinado contexto cultural, não é possível dar uma
resposta rápida ou apressada às diversas questões que têm afligido a todos. Em
verdade, nosso compromisso ético (enquanto educadores, pesquisadores,
psicólogos, psicanalistas, etc) nos obriga a dizer que temos mais perguntas do que
respostas e, diante de tantas dores, uma das saídas é resgatar a função do
pensamento e aprender com a experiência. Entretanto, há muitas lacunas entre a
nossa análise – ainda insuficiente – sobre os problemas que vivenciamos e a
possibilidade de ação no combate às dificuldades que vemos. Sendo assim,
colocaremos a seguir alguns exemplos ilustrativos, de modo que facilitem a
compreensão dessas proposições.
Primeiramente gostaríamos de enfatizar que uma instituição voltada para a
criança e o adolescente precisa renunciar ao apelo medicalizante e tornar-se um
lugar mais propício à criação e à interpretação. Onde o educando tenha, de fato a
oportunidade de ouvir, ser ouvido, ler-se, ler seu mundo e dialogar com tudo isso,
sentindo a possibilidade real de criar e recriar-se, de superar uma tendência de
padronização cultural e comportamental e de superar as situações de opressão e
transmissão de informações (FREIRE, 1975) para se conquistarem momentos em
que se possam executar novas ações educativas e sociais (FREIRE, 1976) e, assim,
construa-se uma aprendizagem com a qual o educando se relacione (CHARLOT,
2000) e dialogue com o contemporâneo.
No entanto, há uma tendência de boa parte dos envolvidos nos processos de
ensino-aprendizagem de fixarem-se na patologia dos alunos, buscando
principalmente estratégias individualizantes para lidar com os comportamentos
desviantes que percebem em seu meio. É muito difícil para a equipe escolar rever
suas estratégias pedagógicas e propor novas formas de atuação e de
relacionamento com sua clientela. Se a escola conquistar maior espaço para o
5
planejamento e para a boa execução de manifestações culturais e criativas, os
professores terão mais instrumentos para lidar com o contemporâneo e com a
heterogeneidade de seus alunos.
Winnicott (1975, p. 9) afirma que: “A experiência cultural não encontrou seu
verdadeiro lugar na teoria utilizada pelos analistas em seu trabalho e em seu
pensar.” O trabalho de discriminação entre aquilo que é objetivamente percebido e
aquilo que é subjetivamente concebido é para a vida inteira. Para o autor, o alívio
desta tensão, isto é, de relacionar a realidade interna e externa, é proporcionado por
uma área intermediária de experiência que não é contestada. Esta área abrange as
artes, a religião, os jogos, a literatura, e outras formas de diversão e ocupação
reflexiva.
O pensamento de Winnicott (1975) também nos remete à ideia de que nossa
cultura - predominantemente imagética e produtora de ilusões – não facilita o alívio
da tensão apontada pelo autor, pelo contrário, acentua-o. Assim, assistimos
cotidianamente ao surgimento de constantes “epidemias”: de TDAH, de anorexia e
bulimia, de adicção às drogas, de violência, de dislexia, etc. (A lista é infinita e a
nova versão do DSM promete muito mais!).
Birman (2006) também demonstrou que a modernidade forjou mitos que
desafiam o criador e reafirmam a autonomia e soberania do indivíduo. O autor cita
os mitos de Fausto, Prometeu e Frankenstein, todos eles simbolizando a força do
humano e sua capacidade ilimitada de realização e transformação do mundo. Esses
mitos também sinalizam a onipotência da ciência enquanto estatuto da verdade e
trazem em seu bojo a ideia de que tudo é possível em uma sociedade onde reina a
racionalidade científica. A modernidade faz os indivíduos pensarem que o sujeito é o
único responsável por suas conquistas e assumir que, quando seus planos não se
realizam, ele é um derrotado. O sujeito moderno pensa (ou é levado a pensar) que
as possibilidades são infinitas.
Se sugerimos que na escola haja um espaço maior para as manifestações
culturais e criativas, é porque também acreditamos que a arte tem o poder de
expressar e ajudar a resolver nossos conflitos contemporâneos de um modo
bastante significativo. Por exemplo, o filme de Almodóvar - “A pele que habito” -
expõe claramente o mito de Frankenstein. Roberto Ledgard (Antonio Banderas) é
um conceituado cirurgião plástico que, após a morte de sua esposa, interessa-se em
criar uma pele sintética, cultivada em laboratório. É um filme bastante rico em
6
sentidos e representações, o qual denuncia a negação da morte na sociedade
contemporânea, a negação da distinção entre os sexos, a busca da perfeição
estética e corporal e outros fatores cuja análise não é o foco deste trabalho. Em
suma, Ledgard cria uma Afrodite a seu bel prazer, ele é o próprio doutor
Frankenstein, o cientista todo-poderoso.
Há “doutores Frankenstein” por toda parte. Implicitamente a pesquisa de
doutorado e os autores que nos acompanharam neste trajeto trouxeram um pouco
desta problemática. A questão da otimização da atenção, ideal buscado por
acadêmicos ou executivos que buscam uma melhora da função atentiva por meio de
medicamentos, trazida por Caliman (2008), é um modo “Frankenstein” de solucionar
as impotências ou procurar um desenvolvimento maior de nossas faculdades
mentais.
Também as crianças que participaram da pesquisa puderam expressar - por
meio de seus desenhos - suas dores e horrores diante da negação da nossa
humanidade. Wendy fez um desenho onde duas crianças foram representadas
somente com suas cabeças, sem corpo e sem vitalidade; demonstrando talvez que
todos só estavam preocupados com a cabeça dela. Miguel fez um menino pequeno,
solto no espaço e com braços mecanizados. Ele sinalizou o quanto a inteligência
pode ficar dissociada do afeto em nossa sociedade narcisista.
Buchianeri colocou na introdução de sua tese de doutorado que “[...] em 25
anos, os chips de computadores serão milhões de vezes mais poderosos que os
atuais, tornando-se comparáveis em eficiência a setores do córtex humano”.
(OLIVEIRA, 2007 apud BUCHIANERI, 2012, p.1). É o homem querendo ocupar o
lugar do Criador e, para realizar o seu intento, ele não tem medido esforços; nem
respeitado regras.
Estas questões nos colocam novamente com o tema da função paterna,
compreendido por Vincent (2003, p.73-74) da seguinte forma: “Pode-se dizer que o
papel do pai consiste em dizer e mostrar que nem tudo é possível. O interdito do
incesto é o primeiro de todos estes interditos.”. Ou seja, tal papel entra em
contradição com o ideal moderno, pois contraria o desejo de tornar-nos um sujeito
capaz de solapar todas as impotências humanas.
Todavia, é necessário frisar o seguinte: se a ideia de declínio da função
paterna faz sentido em nossa cultura atual, isto não deve ser tomado como um
chavão que explica todos os quadros sintomatológicos do TDAH. Se pensarmos
7
assim, corremos o risco de nos distanciarmos do papel que tem a academia: o de
pensar sobre os múltiplos fatores que geram um problema e de buscar formas que,
considerando a complexidade da situação e não isolando um elemento, amenizem
as angústias sociais que vivemos ou, ao menos, apontem caminhos biopsicossociais
para isso.
A psicanálise não pretende eliminar a dor humana, mas sim capacitar o
sujeito para tolerá-la, poder pensá-la e suportar o desconhecido. Nas palavras de
Salomonsson (2008), o psicanalista não pode ter uma posição baseada
fundamentalmente na etiologia, tal como definida na ciência natural. Os sintomas da
criança com diagnóstico de TDAH devem ser vistos como qualquer outro sintoma;
eles refletem conflitos e a maneira da criança responder a eles. Os mundos internos
dessas crianças podem ter aparências muito diferentes e a homogeneização do
diagnóstico não tem contribuído para ajudá-las.
Se atualmente as instituições responsáveis pela educação de crianças e
adolescentes - como a escola e a família - têm presenciado comportamentos
violentos, indisciplinados e intolerantes ao estudo e ao desenvolvimento do
pensamento e à convivência entre seus pares, alguma coisa isto tem a nos dizer. As
formas de resistência ao pensamento medicalizante têm sido raras, mas nem por
isso menos significativas. O filme “Escritores da Liberdade”, do diretor Richard
LaGravenese, também pode nos dar importantes pistas e caminhos de reflexão: ele
relata a história de uma professora iniciante, Erin (interpretada por Hilary Swank)
que vai lecionar Língua Inglesa e Literatura para uma turma de adolescentes
predominantemente negros e latinos. Alguns de seus alunos cumprem pena judicial
e a grande maioria mostra-se bastante hostil ao ensino convencional e às tentativas
da professora de criar um vínculo com eles.
Lima (2008)6 pontua que, diferentemente de outros filmes americanos sobre
escola, este filme diferencia-se porque mostra o incentivo da professora para que
seus alunos leiam literatura, escrevam em seus diários sobre conteúdos de seu
cotidiano, objetivando que os mesmos ressignifiquem suas vidas. Neste sentido, Erin
vai além de uma prática pedagógica eminentemente transmissora/bancária
(FREIRE, 1975), na medida em que aplica dinâmicas de grupos, leva os alunos a
visitarem o museu do holocausto e ler o livro “O Diário de Anne Frank”.
6 Ao leitor que quiser uma análise mais aprofundada sobre o filme “Escritores da Liberdade”, pesquisar em: http://www.espacoacademico.com.br/082/82lima.htm
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O acesso à cultura e à história universal; o contato com outras histórias de
violência e superação fizeram com que esses adolescentes fossem estimulados a
usar a função do pensamento. Isto não pôde ser feito segundo os moldes
tradicionais, visto que os adolescentes carregavam histórias de muito sofrimento e
desamparo e não tinham condições de desenvolverem-se sem um trabalho anterior
de vinculação e acolhimento. Eles necessitaram de uma professora amorosa e
presente com a qual puderam se identificar e construir um vínculo de confiança.
É nesse contexto que se encontram a clínica e a escola com crianças que
sofrem de uma irrepresentabilidade, possuem uma perturbação ou inibição na
formação de símbolos ou não conseguiram renunciar à violência pulsional. E ela
exige do psicoterapeuta ou psicanalista algumas atitudes específicas. Pretendemos
aqui nos apropriar das sugestões de Minerbo (2009) e Salomonsson (2008) que
oferecem algumas recomendações técnicas para atuarmos com pacientes que
possuem essas características. Apesar desses autores atuarem com clientelas bem
diferentes, a primeira trabalha com adultos e o segundo com crianças, suas
orientações foram escolhidas devido à clareza e à forma didática como escreveram
a respeito da clínica psicanalítica.
Minerbo (2009) afirma que as intensidades afetivas dos pacientes precisa ser
contida por meio de experiências emocionais que criam uma rede de representações
mais firme e significativa. Com esses casos, o analista não vai representar o objeto
primário, ele se tornará o próprio objeto.
Salomonsson (2008) apresenta sua experiência de atendimento clínico com
crianças diagnosticadas com TDAH e nos auxilia a compreendermos a orientação
acima. Seus pacientes rejeitavam violentamente o conteúdo de suas interpretações
e percebiam suas palavras como se fossem coisas concretas lançadas sobre eles.
Ao questionar sobre o que deveria fazer para que suas interpretações fossem
compreendidas como uma forma de tradução da realidade psíquica e não como um
ataque, ele compreendeu que primeiramente era necessário construir com a criança
um objeto interno bom e continente que pudesse abrigar as representações.
Nesses casos, o analista vai “emprestar” seu próprio equipamento mental
para o analisando de modo que o mesmo possa construir, paulatinamente, o seu
próprio continente. O analista será o próprio objeto primário de seu paciente e
promoverá principalmente as ligações que não puderam ser estabelecidas no início
de seu desenvolvimento.
9
Podemos tomar como exemplo o caso de João, atendido por meio do
psicodiagnóstico, o qual apresentou uma formação simbólica precária, com
tendência maior à evacuação da frustração do que à sua elaboração. Nas formações
psíquicas características do caso de João, podemos inferir que um trabalho analítico
mais atento à situação de transferência-contratransferência pode auxiliar melhor
crianças como ele. Isto é, um analista mais sensível aos mecanismos de
identificação projetiva de seu paciente, com maior capacidade de reverie, ajudará a
prover uma experiência capaz de suportar a dor da entrada na posição depressiva.
As recomendações e sugestões oferecidas aos profissionais que têm
enfrentado a problemática discutida neste trabalho são, com certeza, insuficientes
para abarcar a imensa complexidade do trabalho realizado com crianças, seja na
escola ou na clínica. O melhor uso que se pode fazer delas é pensá-las como
inspiração para novas pesquisas nesta área. Ainda carecemos de pesquisas que
tragam relatos de análise ou de psicoterapia com crianças diagnosticadas com
TDAH. Contudo, pudemos constatar em nosso trabalho que, externamente, as
crianças diagnosticadas com esse transtorno podem ter alguns aspectos em comum
que refletem o atual estado das relações intersubjetivas na sociedade
contemporânea. Além disso, o mundo interno de cada uma delas retratou um
universo rico e diversificado; porém infelizmente bastante cerceado pelas
identidades psicopatológicas que lhe são atribuídas.
Palavras - chaves: 1. Infância; 2. Psicanálise; 3. Distúrbio da falta de atenção com hiperatividade; 4. Contemporâneo.
REFERÊNCIAS
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1
O DISCURSO DE PROFICIONAIS DA SAÚDE E EDUCAÇÃO NA COMPREENSÃO DO DESENVOLVIMENTO DE ALUNOS
DE ESCOLA ESPECIAL
Tatiana Platzer do Amaral – UMC
Luciano Nunes Sanchez Cores – UMC Algacir José Rigon - UMC
Anderson Borges de Santana - UMC
O objetivo principal desta pesquisa é compreender a condição de especial de
alunos regularmente matriculados em uma escola de educação especial, a partir do
registro de diferentes especialistas, tanto no encaminhamento como na justificativa
de permanência na escola especial.
Historicamente, a educação especial é marcada pelo domínio das instituições
particulares e a evolução do atendimento em educação especial se deve à influência
de várias dessas instituições, bem como uma perspectiva de atendimento centrada
na deficiência do aluno. Para Ferreira (1998) a inserção da educação especial nos
textos oficiais vem para reclamar um maior compromisso da escola pública com
essa modalidade de ensino. Reflete um interesse maior das políticas públicas em
educação e dos especialistas da área em desmistificar o caráter assistencialista que
acompanha essa modalidade desde sua origem. Busca-se romper com o
atendimento ao excepcional restrito a conceitos como caridade e filantropia que
desconsidera termos como “organização curricular” e “desenvolvimento cognitivo”.
De acordo com Ferreira (2004), “independente das peculiaridades desses
alunos, a educação a eles destinada deve revestir-se dos mesmos significados e
sentidos que ela tem para os alunos que não apresentam deficiência” (p.40). Essa
afirmação reflete o caráter das atuais políticas públicas voltadas à questão dos
educandos com necessidades especiais, a qual propõe uma plena integração
dessas pessoas em todas as áreas da sociedade, conforme o Plano Nacional de
Educação, em seu capítulo voltado à Educação Especial.
Método
A pesquisa caracteriza-se por uma abordagem qualitativa que se configurou
com algumas características de Estudo de Caso. Os dados foram coletados no
arquivo-morto de uma escola especializada no atendimento a crianças com
2
deficiência mental. A escola oferece atendimento pedagógico de acordo com a fase
escolar e o grau de deficiência do aluno, bem como atendimentos de fonoaudiologia,
terapia ocupacional, psicológico, médico, assistente social, fisioterapeuta entre
outros. Foram analisados documentos da secretaria da escola que possibilitaram a
sistematização do processo de matrícula e desligamento, bem como os prontuários
de 6 alunos disponíveis no arquivo morto da escola. Foram selecionados com base
na data de seus desligamentos, últimos dois anos. Segue análise dos dados.
Motivo do encaminhamento
A escola pesquisada acolhe alunos com variados níveis de deficiência mental.
Até outubro de 2006 haviam 678 alunos matriculados na escola. No mesmo período
o ingressaram 60 alunos e foram desligados 20. Vale ressaltar que essas
informações foram colhidas nos cadernos de controle utilizados pela secretaria e
pela coordenação pedagógica, visto que não estavam informatizadas até o momento
dessa coleta de dados.
Destes 20 desligados, foi possível analisar os prontuários de seis alunos já
desligados da escola especial. São 2 alunas do sexo feminino e 4 alunos do sexo
masculino com idade entre 7 e 28 alunos.
Alunos Sexo
Data de nascimento
Data da 1ª matrícula
Idade na matrícula
Após a saída da escola especial
JACS
Masculino. 17/09/1983 23/12/1998 14 anos
Foi enviado à Educação de Jovens e
Adultos.
JGV
Feminino 02/03/1992 22/02/2002 9 anos
Foi enviada à escola regular com recursos
especiais.
JRAR
Masculino 06/01/1993 18/07/2000 7 anos
Foi enviado à escola regular.
JS
Masculino 24/06/1995 22/07/2003 8 anos
Foi enviado à escola regular. Sabe-se,
informalmente, que permaneceu pouco
tempo.
LHS
Masculino 11/05/1994 20/12/2002 8 anos
Foi enviado à escola regular. Sabe-se,
informalmente, que não permaneceu e que
estava na fila de triagem da escola especial.
MSC
Feminino 01/11/1976 10/07/2003 28 anos
Não se matriculou em outra escola.
Caracterizados os ex-alunos cabe a análise do motivo de encaminhamento à
escola especial.
Motivo do Encaminhamento
Psicólogo Fonoaudióloga Assist. Social Médico
JACS Atraso no desenvolvimento. Encefalopatia
Atraso no desenvolvimento
Atraso no desenvolvimento e nervosismo
3
JGV Fica brincando sozinha, parece que é surda.
Deficiência auditiva
JRAR Atraso no desenvolvimento
Atraso no desenvolvimento/ Dificuldade de aprendizagem. (pediatra)
JS
Dificuldade de Aprendizagem; Não fala direito, é agressivo na escola
Encaminhado pela diretora da escola pois tem dificuldade de aprendizagem, freqüenta a 2ª série.
Atraso no desenvolvimento
Dificuldade de aprendizagem, as vezes é agressivo. (pediatra)
LHS Não acompanha a escola. Dificuldade na fala.
Atraso no desenvolvimento
MSC
Atraso no desenvolvimento, não consegue acompanhar a escola.
Atraso no desenvolvimento
Não foi encontrado nenhum documento de encaminhamento para a escola
especial. Não há registro de informações por parte dos seguintes profissionais:
Coordenação Pedagógica, Fisioterapia e Terapeuta Holística. Sobre o que foi
possível coletar como informação no registro da psicóloga, fonoaudióloga, assistente
social e médica, podemos perceber que os motivos apontados envolvem, de forma
unânime, atraso no desenvolvimento. Apenas JGV tem a especificidade da
deficiência auditiva, apontada por apenas dois profissionais. É necessário relembrar
que a escola especial tem como foco de atendimento a deficiência mental, o que não
possibilitaria que JGV fizesse parte de seu corpo discente.
O motivo de encaminhamento evidencia-se como um problema individual do
aluno, sem que seja considerado o contexto em que o egresso estava inserido. Para
Souza (1997) questões referentes ao processo de escolarização são tomadas como
problemas de aprendizagem e comportamentais. Em pesquisa realizada pela autora
pôde perceber que professores e diretores de escolas públicas tendem a localizar as
causas dos problemas de escolarização nas crianças e suas famílias, de forma que
há uma culpabilização do aluno pela sua própria condição de insucesso na escola.
Uma parcela expressiva dos participantes da pesquisa apontou como causa
problemas biológicos/neurológicos, desnutrição, problemas emocionais. Poucos
apontaram as distorções crônicas do sistema educacional. Conseqüentemente, a
alternativa possível diante do que é chamado dificuldade de aprendizagem é o
encaminhamento para atendimento psicológico e médico. Feito um “diagnóstico”
centrado nas dificuldades do indivíduo, a partir de um modelo clínico, cabe o
encaminhamento ao atendimento educacional especializado.
Considerando-se que estes alunos estavam matriculados em uma escola
especial, que têm como premissa o direito à vivência da escolarização com os
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mesmos significados e sentidos da escola comum, fica evidente a fragilidade do
registro do profissional da educação. É um registro que remete a pouca esperança
de aprendizagem dos alunos especiais diante de um discurso centrado na
dificuldade do aluno.
Justificativa de permanência na escola especial
Partimos da constatação de que a qualidade do registro na escola era
precária, marcada por lacunas comprometedoras do entendimento da história de
escolarização dos alunos na instituição, bem como da própria prática pedagógica
desenvolvida na escola especial. Nos documentos pesquisados não encontramos
informações detalhadas acerca do histórico pedagógico dos alunos, ou mesmo uma
avaliação feita pela coordenação pedagógica que possibilitasse entender o processo
diagnóstico pedagógico. As informações eram bastante sucintas:
DIAGNÓSTICO (COORD. PEDAGÓGICA)
J.A.C.S. O aluno poderá freqüentar o Núcleo Raro. Coloco, porém uma ressalva pois está na 4ª série e tem bom nível de escolaridade.A mãe prefere que ele freqüente escola. É agitado e não se concentra muito. Logo fica cansado. Fica ansioso e perguntando se acertou a lição.
J.G.V.
Trata-se de menor (grifo do pesquisador!) apresentando atraso em seu desenvolvimento cognitivo, com acentuada dificuldade auditiva. Durante a avaliação mostrou-se calma e cooperante, realizou as atividades mediante ajuda (demonstrando como deve ser feito). Não fala, conhece cores, formas, números e letras. Faz cópia. Segundo a avó é independente nas atividades de vida diária. Dorme bem, alimenta-se pouco. Atualmente freqüenta a escola “Dr. Washington Luís”. Enquadra-se no trabalho desenvolvido em sala de 3ª série – ensino fundamental adaptado desta instituição. A melhora em seu desempenho está atrelado ao uso do aparelho auditivo. A avó foi orientada neste sentido, pois tem uma grande expectativa no trabalho da instituição.
J.R.A.R.
Trata-se de menor com dificuldade em acompanhar o ensino de 1ª série. Durante a avaliação mostrou-se calmo e cooperativo. Reconhece cores e formas. Confunde números e letras. Não lê, apenas copia. Possui boa manipulação com materiais de encaixe. Encaixa-se no trabalho desenvolvido em sala de Prontidão B.
J.S. J. necessita dos atendimentos oferecidos nesta instituição e enquadra-se nos trabalhos realizados em sala de aula de 2ª série adaptada
L. H.S.
Trata-se de menor apresentando atraso no seu desenvolvimento. Durante a avaliação mostrou-se cooperante, porém um pouco impaciente. Entende e atende ordens. Realizou encaixes e quebra cabeças simples, identifica cores, formas. Possui noção corporal básico. Lateralidade não definida. Identifica cores. Reconhece as figuras geométricas. Não lê, não escreve. Copiou algumas letras e números com dificuldade. Segundo a mãe é independente nas atividades de vida diária, necessitando de supervisão. Freqüenta a sala de 2ª série, sem acompanhar. Enquadra-se em sala de 2ª série adaptada desta instituição.
M. S. C.
Trata-se de jovem apresentando atraso em seu desenvolvimento. Freqüentou escola até os 10 anos, posteriormente alfabetização no SESI, parando por ser a noite, fez até a 3ª série. Freqüentou por um pequeno período o TRADEF, não continuando devido a distância. Durante a avaliação mostrou-se calma, adaptada. Realizou as atividades adequadamente. Está alfabetizada. Lê e escreve. Faz ditado. Interpreta pequenos textos. Faz contagem, reconhece numerais, associa a quantidade. Faz as operações de adição, confunde-se na subtração, realiza com ajuda. Segundo relato da sua mãe é independente nas atividades de vida diária, auxilia nas tarefas da casa. Não conhece dinheiro, auxilia em pequenas compras. Enquadra-se no trabalho realizado em sala do EJA pré-profissionalizante, período da tarde.
Considerando-se as informações acima descritas, percebe-se que remetem
ao enquadramento dos alunos nos serviços oferecidos na instituição ou relatos
comportamentais. Evidencia-se a fragilidade do pedagógico na educação especial.
5
Evidencia-se também uma participação diminuta da equipe pedagógica na triagem,
claramente baseada no modelo clínico. Para Ferreira (2004):
Nesse contexto, os alunos com deficiência podem ser ainda mais penalizados pela combinação de três percepções: uma visão otimista de uma escola que se tornou democrática e que não mais reprova; a premissa de que não são mais necessários apoios ou serviços específicos para quaisquer grupos; e, mesmo que de forma não explícita, o pressuposto de que a educação escolar ocupa um espaço apenas secundário no processo de formação de pessoas com deficiência, principalmente aquelas com limitações mais marcantes. (grifos meus) (p. 35)
Os documentos referentes ao desenvolvimento pedagógico dos prontuários
contêm informações semestrais da coordenação pedagógica, que sintetizam as
informações dos professores e as análises da psicóloga escolar. Sempre baseados
no desenvolvimento comportamental do aluno, acompanhadas de informações de
outros profissionais que por ventura tenham atendido o aluno durante o período. É
preciso esclarecer que forma retirados alguns trechos do processo de
desenvolvimento pedagógico na escola especial, uma vez que eram repetitivos.
Desenvolvimento Pedagógico na Escola EspecialCoord. Pedagógica Psicóloga Escolar
J A
C S
1º e 2º s 2002 Ótima compreensão e assimilação dos conteúdos. Apresenta um bom desempenho nas atividades pedagógicas, porém nas atividades profissionalizantes não tem força de vontade nem atenção. Seu grau de responsabilidade anda baixo. Está disperso do serviço e desmotivado. É preguiçoso e interesseiro. (2) É muito inteligente e comunicativo. Gosta de realizar tarefas diversificadas, não tem muita paciência de ficar tempo grande em uma só atividade, se cansa fácil e desmotiva rapidamente. É lento para atividades profissionalizantes. Gosta muito de conversar e pouco de trabalhar.
1º semestre de 2000 Aluno do Núcleo Raro que participou junto aos outros alunos, de grupos psicoterápicos tanto para aconselhamento, orientação geral, com a finalidade preventiva de obter um equilíbrio intrapsíquico do indivíduo, melhorando o ajustamento familiar e social. E assim sendo, levá-lo a ter uma melhor qualidade de vida. Medida profilática. 2º semestre de 2002 Passou algumas vezes pelo setor para orientações no relacionamento familiar. A monitora recebeu orientações em sala de aula.
J G
V
º semestre de 2005 Realiza-se cópia da lousa com capricho. Participa das AVDs. Boa coordenação motora grossa e fina. Reconhece as vogais e algumas consoantes. Identifica numerais até 10. Obtêm sucesso nos jogos de memória e quebra-cabeça. Freqüenta a 3ª série adaptada.
2º semestre de 2005 Atingiu vários objetivos da sala neste semestre. Boa compreensão dos conteúdos, copia tudo da lousa com capricho. Participa das AVDs, possui boa coordenação motora ampla. Freqüentará a 3ª série básica no próximo ano.
1º semestre de 2005Recebe acompanhamento (em sala de aula). Tem dificuldade de aprendizagem devido a sua deficiência auditiva e não tem domínio da língua de sinais. Menos resistente em entrar para aula, tem bom comportamento. Socializa-se pouco. A avó recebeu orientações.
2º semestre de 2005 Recebe acompanhamento em sala de aula e individual quando necessário. Seu comportamento somente se altera devido a situações familiares conflituosas. Mostra-se mais interessada pelas atividades escolares. A professora esforça-se para incentivá-la. A avó recebeu orientações.
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J R
A R
1º s 2001 O aluno freqüenta a sala de Prontidão B. Durante o semestre apresentou bom aproveitamento no trabalho pedagógico. 2º s 2001 - O aluno freqüenta a sala Prontidão B, onde foram trabalhadas durante o semestre atividades visando seu desenvolvimento cognitivo e social, treino de AVDs e tarefas ocupacionais. 1º s 2002 Recebe atendimento escolar em sala de 2ª série do ensino fundamental básico. 2º s 2002 Durante esse ano foi atendido em sala de 2ª série do ensino fundamental básico, sendo promovido para a 3ª série
1º s 2001 J, no grupo de atendimento quinzenal, porta-se de forma interessada, falando muito, reproduzindo comentários adultos ou “fantasiando” (caso com os pais em outra cidade). Demonstra ser “carinhoso” e bastante educado, interesse infantil e muito “delicado”. Mora com a avó, a quem respeita muito.
2º s 2001 J tende a fazer apenas o que lhe agrada. Mesmo em termos de relacionamento exige dos colegas que se comportem da forma que ele quer. Percebemos desatenção da família para adequar limites.
J S
UNICAS INFORMAÇÕES 2º semestre de 2003 Em atendimento escolar em sala de 2ª série adaptada A, passando para 2ª série adaptada B.
1º semestre de 2004 Bom vocabulário, boa compreensão dos conceitos básicos. Quando tem interesse realiza muito bem todas as atividades propostas
Em acompanhamento em sala de aula, apresentou dificuldade em aceitar regras e limites, resistente e agressivo. A mãe foi orientada quanto a forma de lidar com J. em uma visita domiciliar. Seu quadro comportamental é controlável e ele trata-se de criança carente afetivamente.
L H
S
1º semestre de 2003 Coordenação Pedagógica: Em atendimento escolar em sala de 2ª série do ensino fundamental adaptado. 2º semestre de 2003 Coordenação Pedagógica: “Em atendimento escolar em sala de 2ª série adaptada, atingiu os objetivos propostos. Passará a freqüentar a sala de 1ª série do ensino fundamental, no próximo semestre.”.
1º semestre de 2003 Psicóloga (escolar): Em acompanhamento em sala de aula, sem intercorrências.
2º semestre de 2003 Psicóloga (escolar): Em acompanhamento em sala de aula, sem intercorrências.
M S
C
1º semestre de 2005 “Gosta de ler e escrever, apesar de trocar letras. Realiza contas e numerais. É participativa e demonstra interesse nas atividades. Apresenta dificuldade em trabalhar com valor monetário. Gosta de computação e trabalhos das oficinas. Freqüenta o EJA 7 com qualificação.”
2ºsemestre de 2005 “Demonstra interesse por atividades envolvendo valores monetários. Lê e escreve bem, com apenas algumas trocas de letras. É crítica, comunicativa e alegre. Foi reclassificada a freqüentar o EJA 8 no próximo ano
1º semestre de 2005 “Recebe acompanhamento em sala de aula. Passou pelo setor para a orientação geral. Participa do grupo da bijuteria. Excelente comportamento e socialização.”
2ºsemestre de 2005 “É acompanhada em sala de aula. Bom comportamento e adaptação. Também participa muito bem do curso de bijuteria.”
O desenvolvimento pedagógico se resume às características
comportamentais da criança, que acaba sendo a única informação da condição de
especial da criança. Permanecendo distantes as discussões acerca dos métodos de
ensino de sua escola anterior. Uma vez, negada a possibilidade de aprendizagem
dos alunos cabe resgatar as contribuições de Vygotsky (1996) que divide as
crianças em dois grupos: fisicamente retardadas e socialmente retardadas. Em sua
visão, a maioria se enquadra na segunda categoria; tais crianças têm atraso de
desenvolvimento devido a condições adversas em sua vida e na escola. Nesses
casos se as circunstâncias são alteradas, muitas começam a florescer e a exibir
talentos. O que não é o caso dos alunos que freqüentaram a escola especial – os
alunos passaram por ela e não foi possível ir além de um diagnóstico rígido e
7
inflexível. De modo geral, podemos afirmar que a condição de especial desses
alunos é descrita de maneira que parece estar diretamente relacionada com o
desenvolvimento cognitivo aliado às características sociais, sem qualquer indicação
dos aspectos pedagógicos. A fim de discutirmos algumas características do
processo e a condição de especial dessas crianças, explicitaremos aqui o caso de
JRAR.
DIAGNÓSTICO
Psic.
Pode se observar que trata-se de uma criança com problemas de estrutura familiar onde os pais estão ausentes e foram substituídos pela avó materna. Demonstra ser um lar conturbado, muitas pessoas morando na mesma casa. Observou-se também que J. é tímido, mas tem iniciativa e criatividade nas brincadeiras. No teste observa-se que a criança provavelmente terá possibilidades boas de progredir no 1º ano, porém mostra-se necessário atenção quanto à possível lentidão da criança. Sugiro verificar a possibilidade de acompanhamento diferenciado em sala, sendo necessário atendimento psicológico no momento, para adaptação na escola. Sugiro também, posteriormente uma visita domiciliar.
Assist.
Social
Família desestruturada. Mãe ao se separar foi embora deixando os filhos c/ (avó materna) que é responsável por eles. Dos filhos só a D. foi desejada, os filhos J. e N. sempre foram desprezados pela mãe. Genitora fazia uso do álcool, entrou na prostituição. Genitor tem pouco contato com os filhos. Irmãos de Jonas fazem tratamento psicológico
Coord.
Pedag.
Trata-se de menor com dificuldade em acompanhar o ensino de 1ª série. Durante a avaliação mostrou-se calmo e cooperativo. Reconhece cores e formas. Confunde números e letras. Não lê, apenas copia. Possui boa manipulação com materiais de encaixe. Encaixa-se no trabalho desenvolvido em sala de Prontidão B.
Méd. Encefalopatia fixa da infância por desnutrição (intra-útero) e pós natal Dislexia. Síndrome cromossomo “X” frágil. (neurologista)
T. Holística Desequilíbrio energético. Indicado uso dos Florais de Bach.
Mais uma vez evidencia-se o diagnóstico baseado nos padrões sociais acerca
da instituição família, ressaltando-se aqui também a explicação médica para as
supostas dificuldades de aprendizagem e o imediatismo do diagnóstico pedagógico,
cujas conclusões parecem ser baseadas somente no comportamento e exercícios
realizados durante um breve momento. Sobre o conceito o limiar entre anormalidade
e anormalidade que permeia o relato dos profissionais é preciso resgatar as
contribuições de Glat (1989):
(...) a sociedade estabelece regras ou padrões dos atributos físicos e comportamentais considerados “normais”, e os indivíduos que se desviam dessa norma são rotulados de “anormais”, e estigmatizados. O conceito de normalidade, por sua vez é determinado pelas exigências de cada momento histórico; portanto, os critérios de desvio, excepcionalidade ou deficiência estão sempre relacionados com o contexto social. (p.20).
Neste contexto, Collares (1996) nos remete à força do discurso médico nesse
processo de normatização da sociedade e, conseqüentemente, do ensino:
Nesta maneira de pensar o processo saúde/doença, não há espaço para determinantes como políticas públicas, condições de vida, classe social. A ignorância é a grande responsável pelas altas prevalências de doença. Então, a solução só pode ser por meio do “ensino”. Neste campo, a Medicina exerce seu papel normatizador com grande eficiência. E essas idéias perduram até hoje, seja na formação de profissionais, seja no famoso “senso comum”, reflexo das concepções ideológicas dominantes. (p.74)
8
O aluno e sua família sempre são os responsáveis por seu problema de
aprendizagem. As discussões sobre as condições de ensino nas escolas não ficam
em segundo plano, pois simplesmente não há o que se questionar, uma vez que há
a crença de poucas possibilidades de desenvolvimento cognitivos dos alunos.
Durante o processo de triagem, todos os profissionais falam pela criança, que é vista
não como sujeito, mas sim como objeto de análise no processo de sua identificação.
A leitura dos registros dos especialistas acerca dos alunos, de modo geral,
revela a repetição do discurso dos profissionais nos processo de triagem dos alunos,
principalmente no que diz respeito às características consideradas como “negativas”
na vida do educando. A pobreza e vinculada aos problemas familiares parecem, por
várias vezes, serem os principais fatores para a condição diferenciada e permanente
do aluno, estando presente no discurso de vários profissionais:
ALUNOS PROFISSIONAIS
JACS
O pai é alheio à educação do filho, de acordo com relato da mãe. É ela quem sempre buscou os tratamentos para J. O convívio familiar é bom. J. briga com o irmão do meio e se da muito bem com o irmão mais velho. (Psicóloga)
JGV
Avó cuida da neta desde seu nascimento, mãe de J. tem problemas mentais psiquiátricos, já foi internada mais de 20 vezes. Avó reclama muito, pois precisa trabalhar e não pode. Passava com Dra. J. no P.S., J. não tem limites (mexeu em tudo), segundo sua tem surdez profunda (fez BERA). Avó parece ser muito ansiosa, falando muito e sendo repetitiva. Disse estar passando por dificuldade financeira. Avó freqüenta a Igreja Universal. (Assist Social)
JRAR
Família desestruturada. Mãe ao se separar foi embora deixando os filhos c/ (avó materna) que é responsável por eles. Dos filhos só a D. foi desejada, os filhos J. e N. sempre foram desprezados pela mãe. Genitora fazia uso do álcool, entrou na prostituição. Genitor tem pouco contato com os filhos. Irmãos de Jonas fazem tratamento psicológico. (Assist Social)
JS A mãe da criança tem hoje 7 filhos com 6 homens diferentes e um deles está preso por assalto a banco. (Terapeuta Holística)
LHS
De acordo com a mãe, a gestação foi agitada c/risco de perder a criança. O marido bebia e ela tomou apenas medicamentos para segurar o bebê. Fez pré-natal. Parto cesária. Sofreu anóxia. Sentou aos 6 meses andou com 1 ano r 5 meses e iniciou a fala com 1 ano e 6 meses, apenas palavras isoladas como “mama”, “papa”. Aos 3 anos entrou na escola, e a mãe percebeu dificuldades, não se interessava, só dormia e teve problemas com a professora e a diretora da escola. (Fonoaudióloga)
Os problemas de ordem social e familiar são aqui evidenciados, em
detrimento das questões pedagógicas. A respeito das normas acerca da família,
Collares (1996) afirma que:
Os que não se ajustam à norma, por usufruírem de valores diferentes, ou talvez pela ausência de bens materiais, de herança (...) ou, simplesmente por viverem um padrão distinto de família, passam a ser considerados, rotulados como “desajustados”. E a família se torna “desestruturada”, perniciosa para a sociedade, sem afeto, sem qualidades... Quase agrupamentos subumanos.” (p. 176)
Considerando-se o fato de todas as crianças dessa pesquisa pertencerem às
classes baixa e média baixa, cabe a nós questionar se os registros em questão
seriam os mesmos – ou seriam repetidos com a mesma intensidade – caso os
9
problemas em questão fossem encontrados em uma família de classe alta. Collares
(1996) ilustra bem essa questão:
(...) esse discurso moralizador não se aplica indistintamente a todos. O mesmo comportamento tem significados diferentes, segundo o estrato social. Ninguém ousaria chamar de promíscuas as pessoas que trocam de parceiros, ou companheiros, ou maridos, se elas pertencerem à classe alta, por exemplo. E se elas morarem na periferia, o que se fala (p. 177)
Antes de mostrar alguns dados coletados, torna-se necessário explicitar aqui
o significado dessa “medicalização”. Segundo Moysés e Collares (1992), esse
processo caracteriza-se pela biologização dos problemas pedagógicos, tornando as
questões educacionais em questões de ordem médica, seja por meio dos distúrbios
de aprendizagem ou das disfunções cerebrais:
Portanto, distúrbio de aprendizagem remete, obrigatoriamente, a um problema, ou, mais claramente, a uma doença que acomete ao aluno – o portador – em nível individual, orgânico. Para um problema individual, só podem surgir soluções individuais. Para um problema médico, soluções médicas. (...) A biologização – e conseqüente patologização – da aprendizagem escamoteia os determinantes políticos e pedagógicos do fracasso escolar, isentando de responsabilidades o sistema social vigente e a instituição escolar nele inserida. (p. 31 e 32)
Para elucidar essa afirmação, trazemos aqui parte do diagnóstico médico dos
alunos pesquisados, os quais, ainda que não estejam fechados, já apontam um
distúrbio biológico existente nos educandos:
ALUNOS NEUROLOGISTA (DIAGNÓSTICO)
JACS Encefalopatia fixa infância por sofrimento pré e perinatal. CD: Creio que a criança se adaptaria melhor em oficina ou núcleo rural, ou sala especial com acompanhamento pedagógico
JGV
Desde 01 ano de idade com epilepsia. As vezes com alteração no comportamento, atualmente sem medicação. Emagrecida, não está se alimentando corretamente, pálida. Criança fica mais agressiva quando mãe está perto. HD: Encefalopatia fixa da infância por sofrimento pré-natal Surdez congênita
JRAR Encefalopatia fixa da infância por desnutrição (intra-útero) e pós natal. Dislexia??? Síndrome cromossomo “X” frágil. (neurologista)
JS Encefalopatia a esclarecer. Desnutrição (?). Torches (?) (neurologista)
LHS HD: Encefalopatia fixa infância – seqüela anóxia neo natal. Cardiopatia congênita ?
Fica evidente que todos os alunos dessa pesquisa tem algo em comum, a
encefalopatia, que envolvem uma ampla possibilidade de apresentação, mas com
uma característica central: gera a incapacidade nos alunos. Essa parece ser a
explicação final para a história de fracasso escolar de cada um dos alunos, em
detrimento da escassez de informações referentes às escolas anteriores, seus
métodos e a conseqüente influência desses na vida de cada educando. Segundo
Collares (1996):
Para praticamente todos os segmentos que compõem a sociedade brasileira, os problemas de saúde constituem uma barreira para a aprendizagem e, logicamente, uma das principais causas do fracasso escolar. Inclusive para os profissionais da Educação (p.76)
10
As explicações médicas para o fracasso escolar são comuns à própria equipe
pedagógica, que se coloca de forma subordinada às determinações do discurso
médico. Merece destaque a indiferenciação dos discursos dos profissionais, que
sem a identificação de suas especialidades poderiam ser afirmações de qualquer
pessoa ou profissional. Causa estranheza a presença no espaço escolar de uma
terapeuta holística, mas o seu discurso não. Como já apontado por Moysés e
Collares (1992) são discursos calcados no senso-comum, em preconceitos e mitos
que culpabilizam os alunos da própria incapacidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio dessa pesquisa foi possível perceber que não há diferenciação, em
termos de informação, entre o registro dos profissionais, o que dificulta o
reconhecimento das especificidades de cada área. A discussão da condição de
especial dos alunos centra em características individuais, principalmente rendimento
escolar, comportamento e organização familiar. Em contrapartida, não encontramos
nos prontuários quaisquer registros voltados ao questionamento dos determinantes
pedagógicos que contribuíram para o fracasso escolar do aluno.
Nos documentos analisados o discurso dos profissionais da saúde e demais
profissionais se sobrepõe à contribuição diminuta da equipe pedagógica, diante da
força do modelo médico de compreensão da condição de especial. Revela o
processo de biologização do ensino, marcado pelo enfraquecimento do
conhecimento educacional. De acordo com Padilha (2001), os “desvios de conduta”
aqui são transformados em doenças, reduzindo-se questões do âmbito pedagógico
a questões patológicas:
(...) ainda estamos vendo desvios do que é considerado padrão de conduta (valorizado pela classe dominante, e que professores, psicólogos e legislação continuam a defender) serem apontados como sintoma de doença, indício de patologia. Estes mesmos indícios vêm justificando o encaminhamento de crianças para as classes especiais destinadas a deficientes mentais e vêm negando os determinantes sociais de tais “desvios”, sem perguntar o que é que a escola tem a ver com tudo isso. (p.39)
Para finalizar, não se pretende com esta pesquisa negar a existência de
educandos com necessidades especiais, todavia é preciso reafirmar constantemente
o direito de todos a uma educação que seja capaz de garantir a constituição da
humanidade. Requer ousadia e formação capazes de romper com o discurso de
senso comum permeado por preconceitos e mitos que responsabilizam e penalizam
o indivíduo pela sua própria incapacidade.
11
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1
Teoria social em psicanálise: destinos éticos da clínica e implicações na inserção social do sujeito
Luiz Paulo Leitão Martins Psicólogo e Mestrando em Teoria Psicanalítica pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (Bolsista pela CAPES)
Palavras-chave
Psicanálise; teoria social; reconhecimento; sujeito; alteridade.
Resumo
Esta pesquisa pretende explorar algumas consequências do discurso
psicanalítico para a teoria social. Não obstante ao fato de historicamente a
psicanálise ter sido alocada em geral junto à experiência particular da clínica ou da
terapêutica individual, apontaremos já em Sigmund Freud alguns elementos que
indicam a necessidade de uma outra conjunção teórica, esta entre sujeito e
coletividade em psicanálise. Essa nova disposição seria fundamental para a
intervenção de Jacques Lacan, uma vez que ele parece se utilizar dela sobretudo
para sustentar uma certa especificidade na articulação que promove entre a
constituição do sujeito e a esfera social. A experiência da psicanálise deveria, num
primeiro momento do ensino do autor, promover o reconhecimento da verdade do
inconsciente num plano intersubjetivo de análise, para depois, num segundo
momento, propor a destituição subjetiva somente possível pela aposta na hipótese
de travessia da fantasia fundamental. Em ambos os casos na teoria lacaniana, o que
parece estar em questão, no fundo, é o modo pelo qual o sujeito lida com a
dimensão do grande Outro, de forma que a psicanálise se configuraria, nesses
termos, como uma intervenção que para além da esfera individual da clínica supõe
questões éticas que tocam profundamente a relação entre a produção da
subjetividade e o modo pelo qual este sujeito se insere no espaço social.
Controvérsias em psicanálise: saber, ciência e sociedade
Antes de começar devemos reconhecer que durante um longo período a
comunidade psicanalítica depois de Freud silenciou-se a respeito das possíveis
contribuições da psicanálise para a teoria social. Não obstante os diversos textos
2
freudianos que abordam explicitamente essa questão (e outras relacionadas a ela,
como política, religião, antropologia etc.), tais como: Totem e tabu (1913), Psicologia
das massas e a análise do eu (1921), Mal-estar na civilização (1937), O homem
Moisés e a religião monoteísta (1939), para apenas citar alguns, os pós-freudianos
de um modo majoritário falaram muito pouco a esse respeito, praticamente excluindo
as temáticas da sociedade e da política do arquivo discursivo psicanalítico (BIRMAN,
2008). Esse procedimento coletivo findou por distanciar a psicanálise de disciplinas
como teoria social, economia política e filosofia, restringindo-a, como uma
experiência do particular, à referência terapêutica da clínica. Ora, sabe-se desde
Michel Foucault (1963) do perigo de se pensar uma intervenção direta e sem
conceito de uma dada disciplina diante de certo objeto de pesquisa, como é o caso
da clínica, como se esse atuação fosse possível num espaço isolado,
independentemente da distribuição a priori estabelecida no nível do discurso entre
visibilidade e enunciação. Numa crítica a tal falácia predominante no discurso
histórico da medicina, o filósofo francês irá denunciar sob a ideia de uma soberania
da descrição clínica a especulação e a parcialidade intrínsecas às proposições
científicas, defendendo a necessidade de se pensar efetivamente os jogos de força
presentes e mascarados por uma abordagem positiva e pretensiosamente neutra.
Com efeito, devemos entender que por mais singular que seja a clínica na
psicanálise não deve seguir como exceção à regra nesse caso. Apesar de
consentirmos que sua experiência possa dar lugar a uma compreensão
completamente outra do dispositivo clínico, de fato, ela pode também incorrer no
mesmo perigo narrado por Foucault ao equacionar a sua atuação apenas no nível
isolado política e socialmente do encontro clínico, restando tão somente uma
suposta dualidade hermética entre analista e analisando. Quando as palavras de
Freud dizem ser “um trabalho de civilização” (FREUD, 1933/1996, p. 84.) o advento
do eu diante do isso do inconsciente, para nós, consiste em pensar, no fundo, como
a psicanálise numa discussão íntima com os diversos campos que compõem a
cultura e a civilização pode oferecer uma contribuição significativa na disposição da
subjetividade frente às exigências do social. Ou seja, em outros termos, entendemos
que para o pai da psicanálise realizar pesquisa e prática clínica em psicanálise
implica necessariamente em gerar destinos específicos na relação entre o individuo
e a coletividade a que pertence para que ele possa amar, trabalhar e criar
socialmente.
3
Com efeito, a psicanálise há algumas décadas tem se deparado com
questões oriundas tanto de seu interior quanto de seu exterior que têm levado os
pesquisadores da área a repensarem o seu papel enquanto representantes de uma
certa proposta de intervenção, por assim dizer, psicológica na sociedade. Para
abordar de um modo bastante breve, diríamos que na esfera pública a
especificidade teórica da psicanálise em sua dimensão de eficácia terapêutica vem
sendo tomada constantemente como alvo de avaliações negativas. Esse diagnóstico
é corroborado pelas pesquisas de um determinado grupo da comunidade científica,
predominantemente da área médica, da ciência neurológica e da análise do
comportamento, malogradas as tentativas por parte de alguns psicanalistas em
defendê-la discursivamente, proporcionando, assim, um verdadeiro debate quanto
ao reconhecimento dos procedimentos metodológicos em questão no dispositivo
psicanalítico1. Para o psicanalista Joel Birman (2011b), o projeto do DSM IV (1995),
representaria a expressão máxima das operações de medicalização do espaço, de
psiquiatrização dos normais e de controle social dos indivíduos presentes no espaço
social da atualidade, de modo que qualquer outro discurso que, ao inverso, valorize
a singularidade das subjetividades e considere a responsabilização do sujeito
relativamente ao seu ato tenderia a se tornar marginal, para não dizer excluído dos
ditos cânones da ciência moderna. Entendemos tal projeto de exclusão e denegação
da psicanálise como o reflexo sintomático de uma proposta de tratamento da
dimensão psicológica individual, na qual o sujeito encontra-se propriamente ausente,
e, nesse ponto, seguimos a leitura empreendida por Jacques Lacan, ao entender a
retomada da temática do sujeito pela psicanálise (LACAN, 1965/1966, p. 857).
Assim, defendemos que uma agenda da ordem do dia na psicanálise, para resistir a
um tal processo, trata-se de dar razões de seus procedimentos reflexivos e justificar
suas metodologias de pesquisa e de prática terapêutica no interior desta realidade
social, que atravessaria a sua experiência, e isso não necessariamente pela
comprovação de sua eficácia, mas pela positivação e demonstração da devida
consistência de uma outra abordagem de produção e de construção de si.
Por outro lado, ainda no tempo presente, a psicanálise, internamente à sua
reflexão, estaria lidando com agenciamentos psíquicos pouco convencionais no que
1 A esse respeito, vemos a polêmica coletânea de artigos críticos organizada por Catherine Meyer, Le
livre noir de la psychanalyse (2005), e as respostas em defesa da psicanálise de Elisabeth Roudinesco, Pourquoi tant de haine? Anatomie du livre noir de la psychanalyse (2005), e de Jacques-Alain Miller, L'Anti-Livre noir de la psychanalyse (2006).
4
concerne à tradicional abordagem das psiconeuroses que Freud desenvolvera. Em
decorrência das transformações no espaço social contemporâneo, para o
psicanalista Joel Birman (2006), novas modalidades de dor e de sofrimento se
fizeram valer: daí, por exemplo, um deslocamento ostensivo, claramente observável,
da sintomática associada à categoria da palavra para aquela ligada à dimensão da
ação, denotado de uma forma bastante apropriada pela expressão da “passagem ao
ato”. Tais mudanças teriam sido responsáveis por fundar outras formas de ser das
subjetividades, sendo correlata disso toda uma interpretação médica
intrinsecamente vinculada tanto ao registro da normalidade, quanto ao processo de
patologização da diferença. De qualquer modo, tudo se passa como se na atual
conjuntura a psicanálise fosse convocada a repensar sua operação e a
problematizar sua convencional forma de atuação no cenário social. A comunidade
psicanalítica, assim, parece ser chamada a responder às novas situações de doença
mental e a alargar suas perspectivas de intervenção e de transformação no social.
Para dar conta dessa demanda, entretanto, torna-se necessário que a psicanálise
invista na formulação teórica de sua proposta de saber sendo capaz de equacionar a
extensão de suas proposições às dimensões sociais e políticas da esfera coletiva. O
presente trabalho apresenta uma proposta de vínculo entre psicanálise e teoria
social a partir de duas perspectivas diversas formuladas ao longo da obra de Lacan,
e desse modo quer pensar as consequências éticas e políticas da produção
subjetiva em questão na psicanálise.
Psicanálise como teoria do reconhecimento: a esfera social do psiquismo e a
clínica no plano intersubjetivo
Desde sua tese de doutoramento em 1932, o médico Jacques Lacan
entendera a temática da experiência social como fator principal na elaboração de
uma proposta conceitual para pensar os fenômenos da personalidade e da paranoia.
Numa crítica ao modelo vigente da psicologia na compreensão da personalidade, de
sua origem, vinculada aos aspectos individuais observáveis, Lacan sustentaria sua
formação calcada no tripé do desenvolvimento biográfico, da concepção de si e das
relações sociais (LACAN, 1932/1975). Para ele, o grande desafio da psiquiatria,
como um problema de tópica causal, seria o de fornecer, nesses termos, um modo
teórico de apreensão da experiência da personalidade que fosse deslocado para o
lugar mesmo de sua determinação, a saber, o da sociedade. É preciso notar que
5
essa leitura lacaniana esteve profundamente marcada pela reflexão desenvolvida
por Georges Politzer (1927/1978) a respeito da psicanálise, em que, no objetivo de
constituir os fundamentos de uma psicologia concreta, em oposição ao modelo
clássico da psicologia, valorizou o complexo de Édipo freudiano em detrimento à
metapsicologia a fim de pensar o drama humano como marca da experiência
subjetiva na relação com os outros. É por isso que para Lacan, contra a ideia
psicanalítica de um inconsciente individualizado, se existia no sujeito um
desconhecido que o fundava existencialmente este deveria advir não de outro lugar
senão da incorporação subjetiva, pela identificação, da estrutura social que o
perpassa.
A influência decisiva para Lacan, com efeito, para o estabelecimento da
importância do inconsciente teria sido a da linguística estrutural tal qual incidira na
teoria antropológica de Claude Lévi-Strauss. Entendendo a organização da
experiência subjetiva como dada em torno de estruturas simbólicas de parentesco
(LÉVI-STRAUSS, 1949/1982), o antropólogo atribuiu ao inconsciente definitivamente
o caráter social, de modo que para falar do quadro das patologias do psiquismo, ele
pensaria justamente nas posições da subjetividade frente à sua inserção no espaço
social (LÉVI-STRAUSS, In: MAUSS, 1950/2003). Responsável por tal organização, a
estrutura inconsciente se revelaria sobretudo pela distribuição linguística e
antropológica entre o eu e o Outro. Longe do padrão psicologizante, Lacan pôde
aceitar o conceito de inconsciente de modo a incorporá-lo em sua experiência
teórica. É pensando a linguagem do inconsciente e o desejo em termos estruturais
que o social será tomado como um dado importante e até mesmo fundamental para
a teorização de Lacan do psiquismo e para seu projeto de retorno à Freud.
Mas haveria uma terceira influência decisiva na experiência de Lacan. Esta
consistira na retomada que o psicanalista faz da filosofia dialética de Hegel, tal qual
fora transmitida no cenário intelectual francês principalmente por Alexandre Kojève e
Jean Hyppolite. Conforme Birman (2011a), tratava-se de uma versão pantrágica da
filosofia hegeliana que se utilizando da Fenomenologia do espírito (1807) tomava
como centrais as noções de negatividade, alienação, dialética e reconhecimento. A
estratégia de Kojève (1947/2002), resumidamente, consistia numa leitura
antropológica da fenomenologia que transformava a filosofia hegeliana numa
verdadeira filosofia da práxis humana. O trabalho, enquanto categoria prática,
detinha um papel fundamental no progresso da consciência à sua realização como
6
Espírito Absoluto. Operando sobre a natureza pela negatividade, a consciência
passaria do estado ingênuo da certeza sensível à reconciliação transcendental com
a verdade do objeto. O desejo individual passaria da condição de necessidade, ou
seja, do desejo de objetos naturais, para a condição superior de desejo do desejo,
uma vez que importava menos o vínculo deste com os objetos do mundo e mais a
sua relação de superioridade e de conquista frente às demais consciências. Em
Lacan, essa luta assumiria a dimensão do imaginário, que poderia ser devidamente
reconhecido pelo registro simbólico na análise e a sua verdade trazida à tona pela
interpretação simbólica do signo da negativa. Nesse sentido, a interpretação de Jean
Hyppolite para a Negativa (1925) de Freud seria fundamental, já que ele iria
identificar a estrutura inconsciente ao momento de desconhecimento da consciência,
que poderia passar do “isto eu não pensei” ao isto “eu sempre soube” pela estratégia
de reconhecimento num plano intersubjetivo (HYPPOLITE, 1971, p. 211). Assim, a
incorporação à sua maneira operada por Lacan dessas referências discursivas se
desdobrará principalmente numa acepção da experiência clínica como uma
“maiêutica analítica” (LACAN, 1948/1966, p. 109), de modo que, procedendo por um
diálogo de estrutura dialética, a análise viabilizaria o desvelamento do inconsciente
pela assunção subjetiva do desejo num espaço intersubjetivo. O sujeito terminaria a
análise falando de si – podendo reconstituir historicamente as lacunas
transindividuais do inconsciente desconhecido (LACAN, 1953/1966, p. 257; 1953-
1954/1996, p. 20) – ao analista – ficando demonstrada, assim, a necessidade
dialética de isso se dar num processo intersubjetivo, por assim dizer, entre duas
consciências de si (1954a/1966, p. 373).
As implicações dessa perspectiva para a esfera social devem ser tomadas
como que incorporadas na estrutura prévia inconsciente imaginária da relação entre
o eu e os objetos. Ou seja, o indivíduo se relacionará com o mundo das coisas sob a
marca imagética do complexo das identificações e do estádio de espelho (LACAN,
1938/1984; 1949/1966), submetendo o outro ao papel de rival em sua busca
desejante por objetos de satisfação. Trata-se de relações marcadamente narcísicas,
cuja mediação se dá apenas pela forma ilusória do imaginário. Frente a isso, a
operação analítica buscaria resgatar como base para um diálogo entre sujeitos a
categoria do simbólico, necessária para o reconhecimento do que fora rejeitado
pelas identificações, por exemplo, a carência estrutural do corpo do infante, e
remanejar o imaginário para transformá-lo. O sujeito da psicanálise lacaniana
7
deveria assim advir a partir dessa mediação, única possível, como troca simbólica e
reconhecimento intersubjetivo. Essa passagem, do imaginário para o simbólico,
pode ser definida como que constituinte do programa para a clínica pensado por
Lacan nesse primeiro momento que definimos.
Sujeito e alteridade: a destituição da identidade e a experiência do amor
A partir de 1960, o que vai acontecer no ensino de Lacan, sobretudo com o
seminário sobre A transferência, é a recusa completa da intersubjetividade enquanto
paradigma da operação clínica (LACAN, 1960-1961, p. 9). Ora, se antes o
reconhecimento da verdade do inconsciente se daria diante de um analista que
assume a figura de sujeito, agora seria necessário que ele saísse justamente dessa
posição a fim de que como um objeto opaco e resistente às determinações
simbólicas mostrasse aquilo que para o analisando rompesse com os protocolos de
relação imaginaria entre eu e outro. No primeiro caso, a dimensão ética do encontro
analítico parecia estar regida por um modelo de relação em que as duas
consciências ingênuas podem se tornar consciências de si e se relacionar a partir de
um Outro pleno, daí a reconciliação no simbólico, resultando disso uma espécie de
respeito e de dignidade subjetiva. E nesse sentido, a descrição realizada por Axel
Honneth para tal momento relativamente à teoria do reconhecimento e à ética do
amor na filosofia hegeliana é bastante ilustrativa:
Hegel entendeu a vida ética como um tipo de relação social que surge quando o amor é refinado sob as impressões cognitivas da lei e no interior da solidariedade universal entre os membros de uma comunidade. Uma vez que todos que tem essa atitude podem respeitar ao outro em sua particularidade individual, é nessa atitude que a forma mais avançada de reconhecimento mútuo é realizada (HONNETH, 1995/1992, p. 91).
Ora, no segundo caso, para Lacan não seria por essa via que o sujeito
alcançaria a sua verdade – uma vez que esta estaria obscurecida pelo sintoma –,
mas por um tipo de encontro nu e, portanto, por assim dizer, traumático com um
Real que é radicalmente Alteridade. Estando excluído do campo simbólico, por uma
operação de forclusão originária, regida pelos protocolos do prazer (FREUD,
1925/2007, p. 148; LACAN, 1954b/1966, p. 388), tais conteúdos retornariam na
experiência subjetiva sob a forma da repetição, que como inquietação abalaria as
estruturas narcísicas da subjetividade (FREUD, 1919/2010). A descrição de Lacan
8
para isso segue a indicação do texto O inquietante (1919) de Freud, de modo que irá
afirmar:
Existem momentos de aparição do objeto que nos jogam numa dimensão totalmente outra que aquela dada na experiência e merece ser destacada como primitiva na experiência. Trata-se da dimensão do estranho. Este não será de nenhuma maneira apreendido, como deixando diante de si o sujeito transparente para seu conhecimento. Diante desse novo, o sujeito literalmente vacila, e tudo é colocado em questão na dita relação primordial do sujeito a todo efeito de conhecimento (LACAN, 1962-1963/2004, p. 73-74).
Trata-se de uma modificação na relação, por assim dizer, natural do eu com
os objetos, já que esta pressupõe toda uma disposição do conhecimento a partir da
identidade de um eu narcísico e da referência do simbólico na relação de objeto.
Conforme o psicanalista francês, a partir do encontro subjetivo com um objeto tal
objeto, capaz de carregar consigo a dimensão mortífera da pulsão, de fato, o sujeito
se vê questionado em suas posições até então assumidas no plano do saber, de
modo que outra posição da subjetividade é exigida (LACAN, 1964/1973, p. 162),
para além daquela dada por um Mesmo. É por isso que Lacan irá caracterizar o
sujeito ao fim da análise como:
Ser do não-ente: é assim que advém Eu [Je] como sujeito que se conjuga da dupla aporia de uma substância verdadeira que se abole por seu saber e de um discurso no qual é a morte que sustenta a existência (LACAN, 1960/1966, p. 802).
A pergunta que fazemos, portanto, é, como o reconhecimento do sujeito
nessa experiência de confrontação com o objeto da pulsão pode, por fim, intervir
sobre a realidade social que o perpassa? Se formos retomar a perspectiva aqui
apenas indicada de Honneth, sob o ponto de vista da ética da relação de amor numa
coletividade, poderíamos estender essas questões para: como o encontro subjetivo
com um objeto imerso no amor de transferência pode, por assim dizer, a partir daí
influenciar na formação de um sujeito capaz de operar vínculos para além de uma
experiência da identidade? Como se daria sua ligação com o outro pela formulação
de sua autonomia como diferença radical?
A hipótese dessa experiência do amor para além da estrutura narcísica quer
propor a possibilidade da constituição de uma relação de objeto que tome o outro
como diferença não submissa aos protocolos autoidênticos dado por um eu. A
9
presença do outro como manifestação daquilo que no objeto resiste aos protolocos
simbólicos de síntese da fantasia, nesse sentido, deve recair sobre o sujeito da
relação como desvelamento de um núcleo de indeterminação na alteridade e em seu
próprio ser subjetivo. De modo que seria somente por meio de uma tal experiência,
de um reconhecimento da falha simbólica do Outro e de uma travessia da fantasia,
que o sujeito poderia se estabelecer numa relação com a alteridade que independe
da constatação de sua ineficácia relativamente à pretensão de completude da
relação sexual. É por isso que Alain Badiou, ao discorrer sobre o famoso aforismo
de Lacan: “não há relação sexual”, irá dizer:
O amor é alguma coisa que vem ao encontro dessa não relação. [...] Isso significa acima de tudo que o amor é uma operação articulada com um paradoxo. O amor não alivia esse paradoxo, mas lida com ele. Mais precisamente, ele faz de sua verdade o próprio paradoxo (BADIOU; TRUONG, 2009, p. 28; BADIOU, In: ZIZEK, 2003, p. 56).
A partir dessa compreensão, na destituição do círculo de identidade fundada
pelo objeto fantasmático e na revelação da falta constitutiva no Outro, a inserção do
sujeito no espaço social pode acontecer, de fato, pela produção singular da
subjetividade e pelo acolhimento da diferença na relação com a alteridade.
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A Produção da Marca-Mancha (anormalidade) na Escola.
Bruna Pontes (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP)
Prof. Drª Anelice Ribetto (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/FFP)
RESUMO:
O presente ensaio é um desdobramento do “Projeto de Pesquisa Diferenças e
Alteridade na Educação: saberes, práticas e experiências (inclusivas) na rede de
ensino pública em São Gonçalo”.1 Faz parte do Projeto de Iniciação Cientifica “Quando
o olhar mancha: a marca da anormalidade (na escola) através dos laudos” e se
apresenta como parte da Monografia de final do Curso de Pedagogia do mesmo nome,
ainda em andamento. Propõe uma primeira escrita como exercício de pensamento
sobre a produção da anormalidade no espaço escolar, perguntando-se por que se
produz essa marca em alguns sujeitos e quais são as características que os agrupam
no discurso da anormalidade. Discute conceitos como anormalidade, diferença,
relações na diferença e principalmente formas de produção da subjetividade na tensão
da relação normal-anormal. Este exercício levou-me a discutir o paradigma médico
clínico como fonte de cura, questionando-me acerca do olhar sobre a diferença, do
controle e homogeneização dos alunos e da necessidade de padronização. Pensando
a história da educação especial (na perspectiva médico-clínica) enquanto campo de
saberes que funciona como mecanismo de solução para a anormalidade, como elo de
exclusão e classificação. A temática insere-se no campo de discussão da pedagogia
das diferenças e aborda a construção da escola enquanto espaço de subjetivação e
as relações que produzem os chamados anormais. A pesquisa aborda a construção
de um dispositivo pedagógico – os laudos médicos - que reforça a marca da
anormalidade nos sujeitos definidos como diferentes. Dessa preocupação constante
com as diferenças e não uma simples e continua obsessão pelos diferentes, pois “de
1 Projeto coordenado pela professora Anelice Ribetto na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro que tem como principal objetivo estudar as formas como se materializam as chamadas políticas da inclusão no cotidiano escolar e os efeitos destas nas relações pedagógicas. Bruna Pontes é Bolsista de Iniciação Cientifica da UERJ neste projeto.
fato, o problema não está em saber que e quais são as diferenças, ou qual é a “melhor”
definição de “diferenças”, mas em como inventamos e reinventamos,
quotidianamente, os outros “diferentes”, a alteridade “diferente”. (SKLIAR, 2005, p.
53). Presos no paradigma da normalidade reproduzimos uma forma padronizada de
ver-estar-pensar-aprender o mundo. Na escola reforçamos a uniformização como se
todos fossem ser e aprender da mesma forma, ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
Os que não conseguem fazê-lo de forma igual e dentro das normas são classificados
e rotulados de anormais.
PALAVRAS CHAVE: diferença, normalidade, paradigma médico-clínico.
Futucando bem
Todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho
Só a bailarina que não tem
Nem unha encardida
Nem dente com comida
Nem casca de ferida
Ela não tem. (Ciranda da Bailarina Chico Buarque)
Não parece que a Escola2 vem se preocupando com as relações com o “outro”,
mas sim e apenas em diferenciar, classificar e rotular os chamados diferentes. Ou
seja, a Escola, em geral e como instituição homogeneizadora não tem pensado esse
“estar juntos na educação” (Skliar, 2005), mas apenas, resolver a “questão do outro”.
Os discursos sobre a inclusão ou as propostas encontradas para incluir os sujeitos
ditos diferentes se constroem, principalmente, idealizando a convivência (entre) como
uma relação harmoniosa, sem atritos. Porém muitas vezes essa suposta inclusão vem
mascarada por uma forma determinada de entender a convivência. Um discurso vazio
e frio associado apenas à tolerância ou aceitação. "E a convivência é ‘convivência’
porque sempre há - inicial e definitivamente - perturbação, intranquilidade, conflito,
turbulência, diferença, afeição e alteridade". (SKLIAR, 2011, p. 31). A busca obsessiva
pela tranquilidade e harmonia entre alunos e professores não contempla a
multiplicidade de existências do e no espaço escolar, não permite uma convivência.
2 Chamaremos de Escola com letra maiúscula a instituição moderna como generalidade discursiva, mas não descartarei as práticas de resistência que acontecem nas escolas, aí propositalmente com letra minúscula.
Como nos diz Skliar "a soma presente de presenças, mas não de existências" 3Nos
preocupamos em incluí-los (aos ditos diferentes), mas não nos preocupamos em
discutir a ideia de normalidade construída socialmente e encarnada em cada um de
nós, nos subjetivando e produzindo um olhar que marca e mancha (SKLIAR 2009)
esse sujeito. Pensamos nas nomenclaturas e nas classificações. Nos observamos e
policiamos quanto aos nossos olhares, nossos gestos, para não dizer “essas” ou
“aquelas” palavras para esconder os conflitos existentes entre nós.
A pesquisa contribuiu para questionarmos nossas práticas e percepções
acerca da normalidade/anormalidade, das diferenças, da relação com o outro,
entendida como relação entre, sendo em especial o conceito de experiência
(LARROSA, 2002) do qual me utilizei nessa pesquisa para pensar e experimentar
intensamente o caminho. É justamente pensando(nos) na experiência
(experimentando) que entremos no campo da pesquisa. Com o cuidado de ouvir e
estar disponível para enxergar o que a correria do dia-a-dia nos impossibilita de
perceber... ficar atentos e problematizar o obvio. É ouvir-nos, pensar sobre o que sinto
e o que faço sentir, e também sobre o que acontece no encontro com o outro. É esse
encontro que vem me possibilitando um novo pensar, não um certo pensar, mas um
pensar diferente, um questionamento dos discursos sobre as deficiências, sobre as
ditas “verdades” sobre os outros.
A metodologia utilizada nessa pesquisa não corresponde à construção
tradicional do método de pesquisa no qual inicialmente definem-se os passos para
posteriormente efetivar o caminhar. Obviamente que o incomodo inicial da escrita
corresponde a uma pergunta, o despertar de uma questão, um problema, e que
implicitamente ninguém parte do zero, mas a construção metodológica surge do
encontro, nas relações, no efetivo trânsito do campo de pesquisa considerando as
questões e inquietações que surgiram no rascunho desse trabalho. Poderíamos dizer
que acompanhamos o processo de construção da pesquisa e que, esse
acompanhamento desenha-se, experimenta-se como uma cartografia.
Como será que pensamos a diferença? O que aconteceu para que ousássemos
rotular- julgar as diferenças como boas ou ruins? Compartilho a algumas ideias de
Clímaco (2010) que, inspirada em Skliar, propõe em virar o espelho para o nós e nossa
3 SKLIAR, Carlos. Op., Cit., p.32.
busca incessante pela normalidade, repensar o lugar que reservamos a nós e aos
outros. Deixar de pensar, caracterizar e esmiuçar a dita anormalidade para
problematizar e desconstruir a normalidade. De que forma temos olhado e marcado?
Conhecer e discutir a produção da normalidade nos possibilita transitar um
outro caminho, uma outra forma de estar e de pensar o mundo. Talvez, de olhar sem
manchar, sem impedir, sem assassinar. “Educar la mirada también es um ejercicio de
repensar y reelaborar cómo miramos a quien miramos” (SKLIAR, 2009, meio digital).
Mas para educar esse olhar é preciso conhecer como o constituímos até agora, como
o naturalizamos, a quem chamamos de “outro” e que manchas temos projetado sobre
eles.
Diz Climaço –inspirada em Davis (1995)-
Considerar que o normal é construído e não um dado natural é dizer que esse conceito nem sempre existiu, ou pelo menos não como se apresenta hoje. Temos a ideia de que algum tipo de norma e de normalidade sempre existiu. (2010, p. 21).
E historicamente a diferença tem sido conservada por um conjunto de
normas constituídas. Uma relação de poder que alimenta a diferenciação e a
construção do juízo: do bom e do ruim, do apto e do inapto, do sadio e do doente.
Assim foi tratada a diferença –atribuída à deficiência-.
A palavra norma etimologicamente surge do latim norma e se refere a um
esquadro, uma régua usada por carpinteiros para verificar se as peças de madeira
estavam em ângulo reto4. Quando as peças de madeira não estavam retas, dizia-se
então que elas estavam anormais (com o prefixo grego de negação a-). Parte desse
processo histórico de construção da norma, da normalidade contrapõe-se a
anormalidade, pois na construção desse padrão as diferenças delimitam não somente
quem está fora dele, mas principalmente quem está dentro do limite da normalidade,
construindo uma forte relação de poder e superioridade.
Podemos então pensar que o conceito da norma, tal qual o percebemos hoje,
emergiu no contexto da modernidade, pela prática de vigilância e de controle
constante. Para isso utilizou-se das ciências como forma de legitimação e aceitação
de um modelo “normal”. Na medida em que nos transformamos em agentes da
4 Clímaco, 2010.
normalização, passamos a exigir para nos e para os outros uma adequação aos
padrões. Para Foucault a disciplina fabrica corpos submissos e adestrados, corpos
"dóceis". “A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de
utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)"
(FOUCAULT, 2010, p.133 e 134).
Foucault também nos chama a atenção para a construção histórica das
patologias do corpo, que está diretamente ligada ao campo político e a história das
sociedades e mesmo que hoje não nos façamos valer dos castigos físicos ainda nos
utilizamos de formas sutis de ordená-los, corrigi-los, doutriná-los com objetivo de
dominação e submissão.
A construção discursiva em torno desses sujeitos os descaracteriza enquanto
indivíduos pensantes, com ideias e desejo. Para a sociedade eles “não falam por si,
são objetos da fala, sujeitos de um descaso que não lhes pertence” (CLÍMACO, 2010
p.32). Um corpo incompleto, incapaz, imperfeito, inacabado. Sua existência resume-
se a deficiência entendida como falha. A descoberta do corpo como objeto de poder
trouxe a modernidade a importância da norma, a necessidade de padronizar para
progredir – “o corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde,
se torna hábil ou cujas forças se multiplicam” (FOUCAULT 2010, p. 132).
Inicialmente pensava-se a Escola como fonte de controle como um mecanismo
de coerção sem folga, sem possibilidades. Posteriormente a escola foi pensada como
objeto, enquanto linguagem e eficácia, a repetição como forma de padronização. Por
fim a modernidade apresentou uma escola ininterrupta. Essa nova metodologia que
pretende domesticar e docilizar os corpos é chamada por Foucault de “disciplina”.
“Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos
exércitos, nas oficinas também” (FOUCAULT 2010, p. 133). A disciplina, portanto, é
uma das técnicas da modernidade perpetuadas para a construção e manutenção do
padrão. Os regulamentos e normas vieram posteriormente apenas para delimitar o
espaço da normalidade... “o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas
parcelas da vida e do corpo [...] e desses miuçamentos, sem dúvida, nasceu o
humanismo moderno” (FOUCAULT 2010 p.136).
O olhar da normalidade nos obriga a incessante e cansativa busca pelo padrão,
pois não há lugar para o meio termo, ou se está dentro ou fora dele, ou somos normais
ou somos anormais. Não há tensão. Não há possibilidade histórica que nos permita
ficar sobre a linha fronteiriça da norma, da normalidade. Clímaco nos atenta para a
necessidade de afirmação dessa fronteira como forma legítima de delimitar “o que é
aceito e o que é marginalizado, o que é desejado e o que deve ser evitado; quem pode
falar e quem é sentenciado pelo nosso olhar soberano: o olhar da norma” (2010, p.34).
E assim, o sujeito anormal “El individuo a corregir, paradójicamente
denominado también como el incorregible […] quem demonstrou-se ser incapaz de
aprender [...] perfilándose en el interjuego entre la familia, la escuela, el taller, la
policía, la parroquia; contemporáneo a la valoración del espacio cerrado al servicio de
la domesticación y el adiestramiento de los cuerpos”(VALLEJOS, 2009, p. 97-98).
Na Escola isso não é diferente, pois ela faz parte dessa rede de verdades e
saberes. Afinal é uma instituição social filha da modernidade. E não é difícil identificar
nos espaços escolares padrões e normas que buscam incessantemente dominar e
controlar os alunos, professores, pais e etc. “Um local heterogêneo a todos os outros
e fechado em si mesmo” (FOUCAULT, 2010, p. 137). Não distante dos modelos de
conventos e de estrutura semelhante aos das prisões. Os encarceramentos, as
clausuras, o internato se assemelham no aparelho da disciplina como uma das
ferramentas para o controle e domesticação.
O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quando corpos ou elementos há a repartir É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração (FOUCAULT, 2010, p.138).
Não é despretencioso que os espaços escolares sejam construídos a fim de
possibilitar a vigilância e manutenção da ordem. A possibilidade de observação
constante facilita a aplicação da disciplina. Dentro das salas de aula a distribuição de
alunos obedece à clara regra de aproximar da professora os mais bagunceiros ou os
que potencialmente podem causar problemas.
Reproduzimos ainda hoje esse sistema de compensações e distinções. Onde
cativamos os lugares dos que merecem (ou os que têm futuro) e os que – segundo
nosso olhar que marca-mancha - não correspondem às expectativas e não progridem
como esperado.
Algumas outras características da Escola nos alertam quanto à permanência
da norma: a organização das carteiras, a localização da mesa da professora, a
uniformização dos alunos, a ordem de entrada, a organização em filas, a vigilância
constante, entre outros. Torna-se fundamental entender a construção histórica desse
espaço, bem como problematizar a permanência desses aspetos normalizadores que
delimitam o espaço da normalidade. Uma representação ideológica da sociedade,
fabricada e mantida pelas relações de poder.
E talvez voltar o espelho para nós não seja tão tranquilo ou simples como
possamos pensar. Posto que constitui-se em uma nova possibilidade de olhar o
espaço escolar; um novo olhar carregado de experiências (LARROSA), de emoção,
que cultiva a arte do encontro, que nos provoca, nos derruba, nos enverga e que nos
transforma. Uma nova leitura interna, sem palavras ... leitura de pensamentos, de
coisas não ditas, de atitudes impensadas. Um olhar que nunca está acabado,
terminado, que não se bloqueia frente ao medo. O medo de ser politicamente
incorreto, de não dizer palavras “feias” que nos possa rotular como cruéis e
insensíveis. A leitura de um aforismo “uma leitura que força o olhar para trás, não para
adiante; uma leitura destemperada, desnuda, tão irreverente quanto impossível”
(SKLIAR, 2012, p.29).
A educação especial tem passado por fortes mudanças paradigmáticas
tensionadas pela relação com o campo das políticas públicas. Uma mudança
significativa que lança luz sobre a necessidade de minar os processos de afastamento
da convivência em sociedade. Por muito tempo o isolamento social e posteriormente
os cuidados médicos implicaram uma visão borrada sobre a deficiência.
Na história da educação especial percebemos o reconhecimento jurídico
gradativo dos direitos desses sujeitos. Porém essa mudança de olhar veio sobre o
viés médico, que inicialmente os classificava para sentenciar os intelectualmente
superdotados, os que possuíam possibilidade de convívio em sociedade, os treináveis
e os que precisariam de cuidados eternos, os incapazes. Parâmetros da medicina que
referenciaram e ainda referenciam a produção de normalidade. Essas pessoas
deixaram de ser encarceradas para serem consideradas inaptas para o pleno
desenvolvimento em sociedade.
A prática que vemos hoje nas escolas é decorrente de um caminho histórico,
um hábito crescente de transpor as dificuldades da vida para problemas orgânicos,
que, aparentemente, podem rapidamente ser diagnosticados e tratados. De certa
forma traz a segurança de uma resposta concreta, afasta o medo e a incerteza das
impossibilidades.
A medicalização da vida de crianças e adolescentes articula-se com a medicação da educação na invenção das doenças atribuídas ao fracasso escolar. A medicina afirma que os graves – e crônicos- problemas do sistema educacional seriam decorrentes de doenças que ela, medicina, seria capaz de resolver; Cria, assim, a demanda por seus serviços, ampliando a medicalização. (MOYSÉS e COLLARES, 2011, p.3).
Nesse estreito espaço de normalidade, onde nega-se qualquer possibilidade
de diferenças, não constitui-se apenas quem encontra-se fora dela, mas também
quem está dentro, em uma relação de poder que alimenta-se das marcas que se
evidencia no encontro com o outro.
Mesmo que hoje os espaços físicos de exclusão “estejam em processo de
extinção, por uma série de lutas políticas travadas” (CLÍMACO, 2010, p. 36), ainda
continuamos delimitando espaços que impedem, nomeiam e rotulam esses sujeitos,
o lugar da anormalidade. Sendo assim a discussão do paradigma médico clínico
fundamental para o debate no campo da educação especial. A construção de um
paradigma clínico para justificar o desvio. Uma prisão, um encarceramento, um rótulo,
um laudo ... que aprisiona as possibilidades e as singularidades.
E é esse um dos objetivos dos laudos na escola “de acalmar os conflitos que
um aluno que não-aprende-na-escola gera” (MOYSÉS, 2011, p. 10). Um rótulo, uma
marca que o diferencia de “mim”, que justifica para todos os motivos que o leva a ser
diferente de “nós”. Um triângulo do poder, direito e verdade como nos disse Foucault.
Uma produção de verdade que se perpetua pelo silenciamento de outras verdades.
Uma mancha.
A medicina tomou para si, como seu objeto, o conhecimento do homem
saudável, embutindo em si mesma a autoridade de lançar o olhar sobre o homem que
entende doente e legitimando sua busca pela cura das doenças. Apontando o que é
saúde e doença a medicina enraizou e instrumentalizou sua intenção no campo da
vida social. “Tomando para si a tarefa de definir o homem modelo, a medicina
constituiu-se, por sua vez, em modelo epistemológico para as ciências do homem”.
(MOYSÉS, 2001, p. 152).
Tudo que está fora da norma, o que não alcança o estipulado, não atende as
necessidades é transformado em doença. O mau comportamento é um dos sintomas
tomados pela medicina como características de infinitos transtornos e distúrbios.
Quando limitamos nosso olhar sobre o outro, quando negamos nossos sentimentos,
não os enfrentamos ou os questionamos, quando restringimos sua presença ao
sentimento de pena e aceitação, reforçamos voluntariamente o pré-conceito que
construímos e constituímos em nós ao longo dos tempos. Muitas das vezes
silenciamos sua voz com a nossa presença e insistência em manchá-los com nosso
olhar e nossas atitudes. Assim o fazemos quando simplificamos essa relação tensa a
uma rápida e eficaz solução que falsamente pretende dar conta desse encontro.
Encontro inoportuno, que por vezes negamos, talvez porque assim tenhamos a
sensação de que podemos seguir adiante, manter o curso previsto.
E o laudo, dispositivo que reforça o paradigma médico clínico, uma folha, um
pedaço de papel, um lugar de discurso, um espaço em que vozes ecoam e
sentenciam, é ao mesmo tempo o lugar em que a voz da normalidade se mantém.
Uma palavra que mancha o outro.
A partir deste ensaio tentamos experimentar e sistematizar um exercício de
pensamento inicial sobre a produção da marca-mancha (anormalidade) na Escola e
trazer publicamente os efeitos de um trabalho de iniciação cientifica em andamento
no intuito de contribuir não mais para, apenas, uma discussão “obsessiva com os
diferentes” (SKLIAR, 2005), mas politicamente preocupada com a problematização da
normalidade.
Referencias Bibliográficas
CLÍMACO, J.C. Discursos Jurídicos e Pedagógicos sobre a Diferença da Educação Especial. Argentina: Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales, 2010. 146 p.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 29ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
LARROSA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. IN: Revista Brasileira de Educação, 2002 Nº 19.
MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso e COLLARES, Cecília Azevedo Lima. Dislexia, TDAH e outros Transtornos: ciência ou mito?. In: VI Seminário Internacional – Redes Educativas e as Tecnologias, 2011, Rio de Janeiro.
SKLIAR, Carlos. A questão e a obsessão pelo outro em educação. In: GARCIA, Regina Leite; ZACUR, Edwiges; GIAMBIAGI, Irene (orgs). Cotidiano: diálogos sobre diálogos. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
SKLIAR, Carlos. Conversar e Conviver com os Desconhecidos. Políticas Públicas, Movimentos Sociais: desafios à Pós-graduação em Educação em suas múltiplas dimensões. Helena Amaral da Fontoura (org.), Rio de Janeiro: ANPEd Nacional, p. 27-37, 2011.
SKLIAR, Carlos. Educar La mirada. Revista Sin puntero, n.3, 2009. Disponível em: http://www.laescuelaylosjovenes.blogspot.com.br201002educar-la-mirada.html
SKLIAR, Carlos. Experiências com a palavra; notas sobre linguagem e diferença, Rio de Janeiro: Wak Editora, 2012.
VALLEJOS, Indiana. La categoria de normalidad: uma mirada sobre viejas y nuevas formas de disciplinamiento social. In: ANGELINO, María Alfonsina. Discapacidad e Ideologia de La normalidad: desnaturalizar el déficit. María Alfonsina Angelino y Ana Rosato (orgs). 1ª ed. Buenos Aires: Centro de Publicaciones Educativas y Material Didáctico, 2009.
UMA ANÁLISE DA DISPENSA PÚBLICA DO METILFENIDATO
NO BRASIL: O CASO DO ESPÍRITO SANTO
Luciana Vieira Caliman (Programa de Pós-graduação em
Psicologia – Universidade Federal do Espírito Santo);
Nathalia Domitrovic
Palavras chave: Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade;
Metilfenidato; Assistência Farmacêutica.
QUADRO CONCEITUAL
Comercializado no Brasil sob os nomes Concerta® ou Ritalina®, o cloridrato de
metilfenidato é o psicoestimulante mais consumido no mundo, superando todos os
outros somados (ITABORAHY, 2009). Atualmente encontra-se disponível no
mercado em apresentações de liberação imediata, cujo efeito é de curta duração, ou
de liberação prolongada, que se mantém durante mais tempo no organismo. O
metilfenidato é o principal medicamento prescrito para o tratamento do Transtorno
do Déficit de Atenção/Hiperatividade – TDAH, sendo indicado também para
narcolepsia. (ANVISA, 2009; LIMA, 2005; CALIMAN, 2006; ITABORAHY, 2009).
Frequentemente descrito como uma desordem global do comportamento, o
TDAH se caracteriza pela tríade sintomatológica composta por desatenção,
hiperatividade e impulsividade (BARKLEY, 1998; ROHDE et al, 2004; FARAONE,
2003). Embora os sistemas classificatórios atualmente utilizados, CID-10 e DSM-IV,
apresentem critérios semelhantes para o diagnóstico, há algumas diferenças que
merecem especial atenção. A CID possui critérios mais exigentes, tendo como
condição para o diagnóstico, por exemplo, a existência mútua dos quadros de
desatenção e hiperatividade. Por sua vez, o DSM IV traz a possibilidade da
classificação em três subtipos: o TDAH com predomínio de sintomas de desatenção;
TDAH com predomínio de sintomas de hiperatividade/impulsividade; TDAH
combinado.
Apesar de ser aclamado como um dos diagnósticos psiquiátricos mais
estudados atualmente no campo biomédico (BARKLEY, 1998; ROHDE et al, 2000,
2004; FARAONE, 2003), o TDAH também tem sido descrito como um diagnóstico
controverso, a espera de uma melhor definição (CONRAD, 2006; DUPANLOUP,
2004; RAFALOVICH, 2002; ROSE, 2006; ROSEMBERG, 2002; SINGH, 2006,
2007). Dados sobre o número de sujeitos diagnosticados nos últimos anos e o
alarmante aumento do consumo de metilfenidato em várias regiões do mundo
deflagram a necessidade da análise cautelosa acerca do diagnóstico.
Em 1998, o Instituto Nacional de Saúde Americano (National Health Institute –
NHI, 1998) publicou um documento intitulado Consensus Development Statement on
Diagnosis and Treatment of Attention Deficit Hyperactivity, que faz importantes
considerações sobre o TDAH e seu tratamento. O documento revela que, embora
haja um grande volume de pesquisas direcionadas para o desenvolvimento de
medicamentos e intervenções psicossociais, são raros os estudos que investigam os
riscos e benefícios em longo prazo de tais intervenções. Neste sentido, não é
possível afirmar que tipos de impactos provocam nos desempenhos educacionais e
profissionais, queixas principais dos indivíduos com TDAH terapêuticas utilizadas. O
documento do NHI atesta ainda que pacientes com problemas diversos de
desatenção e não diagnosticados com TDAH respondem positivamente ao
medicamento. Neste caso, alerta-se para o risco do uso não-médico do
metilfenidato, fenômeno que tem sido comum entre jovens universitários de diversos
países, inclusive no Brasil (ANVISA, 2009; BARROS, 2011).
O tratamento medicamentoso do TDAH vem sofrendo transformações, quanto
à sua complexidade e duração. Até o ano 2000, a maioria das crianças
diagnosticadas com TDAH era tratada com medicamentos de liberação imediata,
apenas no período escolar e durante 1 ou 2 anos. Atualmente, muitas crianças já
fazem uso das drogas de liberação prolongada, de forma a permanecer sob seu
efeito durante e depois o período escolar. Segundo Parens e Johston (2009), o
posicionamento recente de um número considerável de especialistas se centra no
uso cada vez mais precoce da medicação, “pelo tempo que for necessário” (p. 2,
tradução nossa), de forma que a tendência é que as crianças diagnosticadas no
momento atual recebam doses muito mais altas do que as diagnosticadas no
passado.
Ao mesmo tempo, verifica-se que o diagnóstico vem se expandindo em várias
regiões do globo. Em uma pesquisa recente, o US Centers for Disease Control
estimou que aproximadamente 4.600.000 (8,4%) das crianças americanas, entre 6 a
17 anos, em algum momento de suas vidas receberam o diagnóstico de TDAH.
Entre elas, 59% estão fazendo uso de algum medicamento. A pesquisa indica que
tem crescido o número de pré-escolares sob medicação, principalmente nos EUA,
onde 0,44% destes já estão recebendo tratamento medicamentoso (PARENS &
JOHNSTON, 2009). Entre a população adulta o TDAH vem também ganhando
destaque: a prevalência do transtorno em 4% dos adultos nos EUA levou ao
reconhecimento oficial do TDAH enquanto um dos problemas mais graves da saúde
pública americana (CALIMAN, 2006).
No Brasil, o uso de metilfenidato também tem crescido ao longo dos anos. Em
2000, o consumo nacional foi de 23kg. Segundo documento da ONU, apenas seis
anos depois, o Brasil fabricava 226kg e importava outros 91kg (LIMA, 2005). O
medicamento vem também sendo ponto de pauta constante nos boletins da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que lançou recentemente um documento
dedicado exclusivamente a ele. A publicação mais recente da ANVISA sobre o
metilfenidato demonstra que o seu consumo continua a crescer: o aumento
percentual de caixas consumidas, somente por via particular, foi de 28,2% de 2009 a
2011. Já o aumento de miligramas alcançou a taxa de 74,6%, indicando que este
consumo tem se dado em doses cada vez maiores também no Brasil (ANVISA,
2012).
No que tange às políticas de assistência farmacêutica voltadas para o TDAH,
alvo deste trabalho, é importante ressaltar que o Ministério da Saúde não financia a
dispensa do metilfenidato no âmbito do Sistema Único de Saúde. No entanto, no
Espírito Santo, o metilfenidato está incluído na Relação Estadual de Medicamentos
Essenciais e Excepcionais – REMEME, desde 2007 (ESPÍRITO SANTO, 2007).
Embora seja o psicoestimulante mais consumido no Brasil e no mundo, a
maior parte dos dados e pesquisas sobre o metilfenidato se refere à realidade de
outros países, principalmente dos EUA. Além disso, a literatura científica brasileira
sobre o medicamento não diferencia o consumo via particular de sua dispensação
pública. Assim, dado o caráter polêmico e controverso do TDAH e seu tratamento
medicamentoso, acredita-se que o crescimento na produção e no consumo do
metilfenidato no Brasil, em tão pouco tempo, torna imprescindível a compreensão
dos usos do medicamento em território nacional, principalmente no que diz respeito
à sua dispensação pelo SUS. Espera-se, portanto, que as análises oferecidas sobre
o Espírito Santo possam estimular a investigação das Políticas Públicas da
Assistência Farmacêutica voltadas para o TDAH em outros estados e municípios.
OBJETIVOS
Este trabalho resulta de uma pesquisa realizada entre 2010 e 2012 que visou
investigar a dispensa pública do cloridrato de metilfenidato pelo Sistema Único de
Saúde brasileiro (SUS). Analisou-se principalmente o caso do estado do Estado do
Espírito Santo, que, desde 2007, incluiu o metilfenidato em sua Relação Estadual de
Medicamentos Essenciais e Excepcionais - REMEME. Para tanto, foi investigado o
processo de inclusão do medicamento nas políticas públicas de assistência
farmacêutica do Estado e como esta inclusão tem sido avaliada pela gestão da
assistência farmacêutica, após 4 anos de dispensação. Além disso, foi traçado o
perfil da dispensação pública do metilfenidato no Espírito Santo, identificando as
variações regionais no que se refere tanto à demanda quanto à retirada do
medicamento. Tal investigação é fruto de um projeto de pesquisa ainda em
atividade, que visa criar subsídios técnicos e teóricos para a avaliação e análise das
políticas públicas de saúde voltadas para o TDAH, especialmente no que tange as
Políticas da Assistência Farmacêutica.
METODOLOGIA
A pesquisa em questão é de cunho predominantemente qualitativo. Para uma
melhor compreensão do panorama brasileiro das Políticas Públicas de Assistência
Farmacêutica voltadas para o TDAH, foi construído um mapa da dispensação
pública do metilfenidato no país, utilizando-se de informações coletadas por meio de
ligações telefônicas junto às Assistências Farmacêuticas estaduais. As ligações
tinham como principal objetivo esclarecer sobre a existência de uma relação
estadual de medicamentos incluídos na dispensação pública e, em caso de resposta
positiva, se o metilfenidato encontrava-se entre os elencados.
Com o intuito de investigar o processo de inclusão do metilfenidato na
REMEME e, a partir de então, o posicionamento da Gerência da Assistência
Farmacêutica do Espírito Santo (GEAF) sobre sua dispensação, foram realizadas
entrevistas semi-estruturadas com 3 profissionais da GEAF. Todas as entrevistas
foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas para então serem analisadas.
Em seguida, mapeou-se as características da demanda e da dispensação
pública de metilfenidato no Estado do Espírito Santo. Para tanto, foram coletados os
seguintes dados: número de abertura de processos de solicitação, entre 2009 e
2011, nas oito Farmácias Cidadãs Estaduais do Espírito Santo; quantidade média de
comprimidos dispensados por mês em cada Farmácia; gasto anual da secretaria
estadual de saúde com o medicamento, de 2008 a 2011.
Após o tratamento e análise dos dados, os resultados da pesquisa foram
apresentados, discutidos e validados em reunião com a GEAF e coordenadores das
8 farmácias cidadãs do Estado do Espírito Santo. Esta pesquisa se realizou sob
aprovação do Comitê de ética com Seres Humanos da Secretaria Estadual de
Saúde do ES, conforme a Resolução nº 196/96 do CNS.
RESULTADOS
A Dispensa Pública do Metilfenidato no Brasil
No primeiro semestre de 2010, dez das 27 Assistências Farmacêuticas
Estaduais do País não possuíam listagens próprias de dispensação pública de
medicamentos, adotando, portanto, as definições nacionais. O Espírito Santo, por
sua vez, se destaca entre os 11 estados que possuem elencos próprios de
medicamentos, estando, ainda, entre os únicos quatro que incluem o metilfenidato.
É importante considerar que tais dados não trazem informações conclusivas
sobre a dispensa pública do metilfenidato no Brasil, mas indicam como estão
organizadas as Assistências Farmacêuticas estaduais. O fato de o metilfenidato não
estar padronizado em certos estados não garante que a dispensa pública do mesmo
não ocorra. Tal afirmação se explica, em parte, pela possibilidade da existência de
listagens municipais que contemplem o medicamento. O Estado de São Paulo, por
exemplo, possui lista de medicamentos estaduais, mas não inclui nela o
metilfenidato. A cidade de Santos, no entanto, dispensa o medicamento a nível
municipal (SANTOS, 2009). Além disso, mesmo quando o medicamento não é
incluído nas listas estaduais e municipais, a dispensa pública pode ocorrer via
abertura de processos judiciais pelos usuários, para a solicitação de medicamentos
não padronizados. As entrevistas realizadas revelaram que no Espírito Santo, antes
de 2007, a demanda pelo metilfenidato era motivo freqüente de processos judiciais
impetrados contra o Estado, sendo este um fator motivador para a inserção do
medicamento no elenco padronizado.
Além dos processos judiciais, a entrada do metilfenidato na REMEME foi
também impulsionada pela solicitação formal de um médico especialista. Diante
destas demandas e após uma revisão da literatura sobre as evidências científicas
que aprovavam o uso médico do metilfenidato, o medicamento passou a constar na
lista de medicamentos estaduais, na medida em que a comissão responsável
acreditava que, “tendo o diagnóstico bem feito, é um recurso terapêutico que pode
melhorar, promover qualidade de vida para ela [criança]” (Entrevistado 1).
No entanto, alarmada com o aumento de solicitações do medicamento e com
problemas nos critérios de sua dispensação, dois anos após sua inclusão na
REMEME, a GEAF decide rever o protocolo clínico que regularizava a dispensa
pública do metilfenidato. O protocolo regularizador da dispensação pública do
metilfenidato no Espírito Santo encontra-se, portanto, em sua segunda versão,
homologada em setembro de 2010 (ESPÍRITO SANTO, 2010). O primeiro protocolo
data de 2007, ano em a REMEME entrou em vigor. Entre as motivações para a
revisão do protocolo, os entrevistados apontam, ainda, o grande número de
processos solicitando o metilfenidato de liberação prolongada, em detrimento do de
liberação imediata, além de uma expressiva demanda por parte de adultos.
A leitura comparativa entre os dois protocolos evidencia um movimento de
abertura dos critérios de dispensação do medicamento, principalmente no que se
refere à população atendida: o CID F90.1 (Transtorno hipercinético de conduta) é
incluído junto ao F90.0 (TDAH) na classificação de usuários habilitados a solicitarem
o medicamento, assim como usuários adultos passam a ser também aceitos, já que
antes o medicamento era dispensado somente para o público infantil. Além disso, no
segundo protocolo, o acompanhamento psicoterápico deixa de ser exigência para a
retirada do medicamento, decisão motivada, segundo um dos entrevistados, não
pela negação de sua importância, mas pela dificuldade de acesso à psicoterapia por
parte dos usuários na rede pública.
No novo protocolo, as posologias de duração prolongada passaram a ser
também padronizadas, mas sob exigências mais rígidas para sua dispensação,
como comprovação da dificuldade de adesão ao tratamento de liberação imediata.
Se o paciente fez uso do metilfenidato 10mg durante 3 meses com a posologia de pelo menos 3 tomadas diárias e este indivíduo apresentou dificuldade de adesão ao tratamento, com o comprometimento da eficácia, comprovado por laudo médico, a gente entende que está justificado que ele faça uso de um medicamento que permita menos tomadas, que facilita a adesão. Fora isso não. A gente entende que [o uso do medicamento] fica mais racional desta forma (Entrevistado 1).
Assim, o novo protocolo, embora mais abrangente em termos de público
atendido e posologias disponíveis, sugere, por outro lado, uma tentativa de maior
regulação da dispensação, principalmente diante da constatação do aumento
“explosivo” dos pedidos do medicamento de liberação prolongada.
Tanto as entrevistas realizadas quanto contatos posteriores com a gestão da
GEAF demonstraram que, no Espírito Santo, a dispensação pública do metilfenidato
é acompanhada de incertezas e tensões. Ao falar da situação paradoxal do
metilfenidato para a assistência farmacêutica, um profissional da CEFT afirma: “ruim
com ele, pior sem ele”. O medicamento é descrito como um recurso importante para
o tratamento do TDAH, demandado pelas associações médicas e usuários, mas ao
mesmo tempo é envolto em polêmicas que alertam para o perigo de seu uso isolado,
não acompanhado por outras medidas que abrangeriam a rede pública de saúde e
educação. Por outro lado, o próprio diagnóstico de TDAH é descrito como complexo
e incerto.
O metilfenidato se constitui enquanto objeto de preocupação para a
Assistência Farmacêutica capixaba, que atesta a necessidade de criação de
dispositivos de regulação da dispensa e acompanhamento de seu uso terapêutico.
Em reunião de devolutiva, realizada para a apresentação dos dados desta pesquisa
à GEAF e aos coordenadores das 8 Farmácias Cidadãs do Estado, tal postura de
alerta se fez ainda mais presente diante do mapeamento da demanda estadual pelo
medicamento. Apesar de constatar o aumento das solicitações do medicamento e
este ser um fator de preocupação da GEAF, até então as características deste
aumento não tinham sido alvo de um estudo pormenorizado.
A demanda e dispensa pública pelo metilfenidato no Espírito Santo
Os números abaixo se referem às aberturas de processos de solicitação de
metilfenidato em todas as Farmácias Cidadãs estaduais do Espírito Santo, de 2009
a 2011. Portanto, expressam a demanda pelo medicamento à dispensa pública do
estado:
Observa-se que houve um aumento crescente na procura pela dispensa
pública do metilfenidato no ES entre 2009 e 2011, chegando ao acréscimo de quase
duas vezes e meia no último ano em relação ao primeiro. Tal crescimento na
demanda vem acompanhado de um robusto aumento dos gastos com o
metilfenidato pela secretaria: em 2009 o gasto anual na compra do psicoestimulante
totalizou R$ 1.699.254,20. Dois anos depois, o investimento para sua compra havia
sofrido um aumento de 178%, alcançando a cifra de R$ 3.026.167,80 (GEAF,
mensagem obtida em 24 fev. 2012).
No entanto, a mesma configuração não se reproduz em todas as Farmácias
Cidadãs Estaduais, quando analisadas separadamente. O número de abertura de
processos de solicitação de metilfenidato variou de forma significativamente
heterogênea nas diferentes localidades do Espírito Santo no período entre 2009 e
2011. Apenas duas das Farmácias Cidadãs Estaduais concentraram 69% da
demanda total do ES nos três anos estudados.
A variação no consumo do medicamento no Espírito Santo encontra também
paralelo com os dados nacionais, advindos do relatório sobre a rede privada de
farmácias publicado pela ANVISA em 2012. Segundo a ANVISA (2012), os estados
do Brasil apresentam perfis variados de consumo do medicamento durante o triênio
estudado. Em algumas Unidades Federativas houve aumento do consumo, e em
outras, ocorreu uma redução. O Distrito Federal registrou o maior consumo de
metilfenidato, chegando a 114,59 caixas dispensadas a cada mil crianças, em 2011.
A diferença regional do consumo do metilfenidato encontrada no âmbito
brasileiro acompanha, ainda, os dados sobre a prevalência do diagnóstico de TDAH
que variam amplamente entre os países e também no interior de cada nação nas
quais dados epidemiológicos encontram-se disponíveis (ROSE, 2006; SINGH,
2006). A análise de tal discrepância oscila entre a denuncia de banalização do
transtorno e o excesso de diagnósticos em alguns países e regiões (COLLARES;
MOYSES, 2010) e a defesa de que, em certos lugares, o TDAH seria ainda sub-
diagnosticado (ROHDE, 2004; FARAONE, 2003), por efeito de informação
insuficiente de alguns profissionais da saúde e educação sobre a doença, “e / ou
equívocos quanto ao seu impacto negativo sobre crianças” (FARAONE, 2003, p.
104, tradução nossa).
Por outro lado, outros autores apontam para a interferência de questões
culturais, sociais, políticas e subjetivas na definição do diagnóstico de TDAH e na
opção pelo seu tratamento medicamentoso (CONRAD, 2006; PARENS &
JOHNSTON, 2009; RAFALOVICH, 2002; ROSEMBERG, 2002). É preciso lembrar,
ainda, que próprio o manual diagnóstico adotado produz resultados diferentes, além
de que a própria existência ou não de políticas educacionais, de saúde e da
assistência farmacêutica direcionadas para o TDAH podem interferir na maior ou
menor demanda pelo diagnóstico. Em todo caso, os dados apresentados reforçam a
importância de se afirmar que o debate em torno do transtorno e seu tratamento
permanecem em aberto, e que as políticas públicas envolvidas devem ser melhor
analisadas e acompanhadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Amplamente presente no meio científico e midiático, a discussão em torno do
TDAH e o metilfenidato tem ganhado também espaço no âmbito das Políticas
Públicas de Saúde brasileiras. A presença do medicamento nos últimos boletins da
ANVISA (2010; 2012), bem como no interior das políticas de Assistência
Farmacêutica são demonstrativos de tal fato.
Tanto o vertiginoso aumento do consumo do metilfenidato em várias regiões
do mundo quanto a discrepância numérica e regional de seu uso alertam para a
importância de uma análise cuidadosa do fenômeno. Uma vez que tal quadro se
mostra presente na realidade brasileira, seu estudo se faz fundamental,
principalmente a fim de se embasar a formulação de políticas e o funcionamento de
serviços no contexto da saúde pública. Como aponta a ANVISA, para tanto é
indispensável a análise cuidadosa da realidade de cada região.
Este trabalho visou demonstrar que não somente o uso abusivo ou não-
médico do metilfenidato deve ser alvo de análise cuidadosa, como também aquele
autorizado pela identificação médica e social do diagnóstico de TDAH, uma vez que
a fronteira entre este e aquele nem sempre é claramente demarcada. Ao mesmo
tempo, destaca-se que tal análise deve ser ampliada, considerando os múltiplos
aspectos que interferem tanto na constituição do diagnóstico de TDAH quanto no
uso do metilfenidato, a as experiências singulares que aí se engendram.
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