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1. INTRODUÇÃO
Este trabalho surgiu a partir de questões levantadas pela pesquisa “Quem são, o que
pensam e como julgam os desembargadores paranaenses? Um estudo sociológico do Tribunal
de Justiça do Paraná”, iniciada em 2004, no âmbito do Núcleo de Pesquisa em Sociologia
Política Brasileira (NUSP), do Departamento de Ciências Sociais (DECISO), da Universidade
Federal do Paraná (UFPR).
Entre os vários achados, a pesquisa constatou a forte presença do curso jurídico da
Universidade Federal do Paraná na formação dos desembargadores entrevistados (36,6%
numa amostra de 71), o que autoriza e justifica o interesse científico por esta instituição
escolar, ainda mais quando sua presença faz-se sentir também, como revelou um
levantamento preliminar, em outros setores da “elite”, em particular da “política”.
A intenção teórica, por detrás do estudo de uma instituição escolar como esta, é
superar a mera descrição dos atributos dos grupos de “elite” – que os estudos sincrônicos
registram – por meio de uma análise específica dos processos sociais através dos quais estes
atributos lhes foram de fato transmitidos. Quer-se, com isto, ir além de uma pesquisa
meramente substancialista dos “recursos” ou “propriedades” dos agentes, ou mesmo de uma
análise exclusivamente institucionalista das “regras do jogo”, e passar a uma análise que tome
como objeto os mecanismos sociais que garantem a reprodução da “estrutura de relações de
poder”; ou, melhor, da estrutura de distribuição das diferentes espécies de “capital”.
Se o ideal seria tomar a trajetória do curso jurídico da UFPR em seu conjunto,
preferencialmente em comparação com a de outros cursos jurídicos paranaenses, os
constrangimentos e convenções ligados ao dispositivo avaliativo da “monografia” obrigam a
uma delimitação um tanto forçada: neste trabalho, optou-se por tomar, como objeto de
análise, apenas o momento de fundação do curso. Uma vez descoberto, contudo, por meio de
pesquisa bibliográfica, que este surgiu em meio a um projeto de “universidade”, não houve
outra alternativa senão transformar a pesquisa num estudo da gênese social do “projeto
universitário”, projeto que deu origem à, então, Universidade do Paraná, instituição particular
de ensino que só viria a ser federalizada em 1950. O fato de fundar-se, na Curitiba de 1912,
uma universidade, e não apenas uma faculdade de direito, tornou-se, ele mesmo, uma questão
de pesquisa.
2
O presente trabalho foca-se, portanto, nos processos sociais que levaram à fundação da
Universidade do Paraná. No primeiro capítulo, explicita-se o viés teórico a partir do qual este
evento histórico – o da fundação – foi analisado: o de uma sociologia praxiológica – aquela
centrada no conceito de habitus – que tome, para análise, a reprodução da estrutura de
relações de poder ao longo do tempo. No segundo capítulo, opera-se a transformação do
evento histórico em objeto teórico, segundo os instrumentos da sociologia praxiológica;
apresenta-se, além disso, os problemas científicos que o objeto assim construído suscita, bem
como as hipóteses que pretendem respondê-los. Por fim, realiza-se um balanço do rendimento
heurístico deste processo de construção do objeto e uma avaliação da sustentabilidade das
hipóteses.
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2 O ENSINO SUPERIOR E O CAMPO DO PODER
Os processos sociais reunidos sob o substantivo “educação” não se resumem a uma
simples transmissão de “saberes”. Há uma dimensão oculta no processo educacional,
dimensão esta que permanece dissimulada sob representações coletivas como as mitologias do
dom e do mérito. O que as instâncias de socialização – família, escola, profissão –
transmitem, para além dos saberes (formais ou práticos), é um conjunto de propriedades que
funcionam como títulos de consagração social: a educação não apenas capacita os agentes
recém-chegados ao jogo social, ela também os autoriza (ou desautoriza). Desta forma, o que
se passa de uma geração a outra não são apenas competências, mas autoridades; é, portanto,
toda a estrutura de relações de força que se transmite, como que de lambujem, no processo de
capacitação cultural dos novos membros de uma dada sociedade.
Tudo isto não é menos verdadeiro para as formações sociais que organizam a
transmissão cultural por meio de uma instituição explicitamente guiada para este fim, como é
o caso da escola. Nestas sociedades dotadas de sistemas de ensino mais ou menos
diversificados, o que está em jogo é a administração das posições sociais mais raras e
rentáveis, material e simbolicamente. É no sistema escolar que se dá a mediação entre as
posições de origem (posição familiar) e as posições de chegada (cargo ou profissão),
mediação esta realizada por uma infinidade de ritos de consagração (os exames, as
premiações, as solenidades) e pelo outorgamento, ao final da trajetória, de um título escolar,
que contém em si mesmo todo um destino social em potencial.
Quando se fala de um tipo específico de educação, como é o caso do ensino superior,
esta face oculta do processo educacional, definida como a transmissão de uma autoridade que
determina certos destinos sociais como mais prováveis do que outros, faz-se sentir ainda mais
àquele apto a desvendá-la.
No caso brasileiro, o liame entre os cursos superiores (em particular, os jurídicos) e a
reprodução das elites nacionais, desde pelo menos o século XVIII, já tornou-se um topos
historiográfico; e isto, quem sabe, porque a análise desta realização histórica particular que é
o ensino superior no Brasil permite trazer à luz, com menos obstáculos do que outros casos
particulares, a conexão fundamental entre o campo escolar e a dinâmica estrutural das
relações de força entre as classes e frações de classe.
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No presente trabalho, o processo social de institucionalização do ensino superior no
Brasil é analisado por este viés, ou seja, em sua conexão com o sistema de relações objetivas
que ligam os diferentes tipos de elites, sistema a que chamamos, com Pierre Bourdieu, de
campo do poder1.
2.1 POR UMA SOCIOLOGIA DA REPRODUÇÃO SOCIAL
Assim como nas ciências biológicas a transmissão de caracteres hereditários (tais
como a cor da pele e a dos olhos) é um objeto fundamental de estudo, de Mendel à engenharia
genética (com o momento crucial da descoberta da estrutura molecular do DNA na década de
1950), também nas ciências sociais a transmissão inter-geracional da informação acumulada
ao longo da história (a língua e os mitos, por exemplo) deve ser tratada com especial atenção.
Por possuir uma configuração biológica que o torna capaz de ser duravelmente
modificado pela experiência (capacidade esta muito mais elevada do que em outros animais),
o homo sapiens contém algo além de uma simples memória biológica: ele possui também uma
memória propriamente social (ou cultural, como é comumente chamada). Se o primeiro tipo é
regido pelas leis da genética, o segundo o é pelas do aprendizado. Se um é rígido, o outro é
ágil e muda ao longo da história: “Estranhamente, a memória biológica parece-se mais com a
memória eletrônica do que com a memória nervosa, cerebral”, diz Jacques Le Goff, “pela
agilidade dos seus mecanismos, a memória nervosa presta-se particularmente bem à
transmissão dos caracteres adquiridos; pela sua rigidez, a memória hereditária opõe-se a tal”
(2000, p.52).
Esta capacidade extraordinária de aprendizado (entenda-se: de ser duravelmente
modificado pela experiência), encontra-se no princípio da diversidade de modos de ser que a
espécie humana ostenta e a qual as ciências sociais registram. Mas mais do que simplesmente
capaz de aprender (cultura), o homo sapiens depende do aprendizado (da cultura) para
sobreviver: “Toda a estrutura de crença, expressão e valor em que vivemos, fornece-nos os
mecanismos para uma conduta ordenada, mecanismos estes geneticamente estabelecidos no
corpo dos animais inferiores, mas não no nosso” (Geertz, 1966, p.41), e isto porque “os
estágios finais da evolução biológica do homem ocorreram após os estágios iniciais do 1 Cf. Wacquant, L. “From Ruling Class to Field of Power: An interview with Pierre Bourdieu on La Noblèsse d’État”. Theory, Culture and Society, vol. 10, p. 19-44, 1993.
5
desenvolvimento da cultura” (idem, p. 41), o que fez com que nossa configuração neurológica
e anatômica fosse em parte o produto de desenvolvimentos sociais como a linguagem, a
organização familiar e a tecnologia de caça.
Sendo assim, se à biologia cabe a elucidação dos mecanismos de transmissão da
memória genética, à sociologia cabe desvendar como se dá a perpetuação da memória social
(ou cultural), essa “memória nervosa” que é inculcada nos indivíduos biológicos por meio da
socialização e cujo produto é o agente socializado, ou seja, adaptado às exigências do mundo
social em que está inserido2. Dito de forma mais precisa, cabe desvendar como um
determinado grupo humano conserva suas propriedades sociológicas (língua, mitos,
tecnologia) e garante, para além da finitude dos indivíduos biológicos que o compõe, a
permanência de seu ser social específico.
Uma sociologia orientada por tal problemática deve necessariamente tomar por objeto
de estudo o conjunto das relações que unem a geração estabelecida (os pais ou os adultos) à
geração recém-chegada (os filhos ou as crianças), bem como os processos sociais que
comandam a transformação desta, naquela. Trata-se, em suma, de tomar como objeto o “modo
de reprodução social”3 vigente em uma sociedade específica num dado momento – modo que
inclui não apenas a reprodução biológica, com a necessária renovação dos indivíduos
biológicos, mas também a reprodução cultural, com a inculcação, em cada nova geração, dos
códigos culturais (formas de classificação e hierarquização) acumulados ao longo da história.
2.1.1 Educação e integração moral em Durkheim
De certa forma, a problemática da reprodução social sempre acompanhou o
pensamento sociológico. Em Durkheim, ela ocupava até mesmo uma posição central em seu
empreendimento científico, como o prova o lugar de destaque que dava à sociologia da
educação e aos temas da integração cultural e moral. Em sua definição de “educação”, isto
fica bastante claro:
A educação não é, pois, para a sociedade, senão o meio pelo qual ela prepara, no íntimo das crianças, as condições essenciais da própria existência. [...] é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade
2 Vê-se, assim, o absurdo de dicotomias como indivíduo/sociedade ou individual/coletivo, já que o agente socializado nada mais é do que a sociedade feita corpo, ou melhor, habitus. 3 A expressão é de Bourdieu e será abordada mais adiante no texto.
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política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine (DURKHEIM, 1978, p. 41).
Neste trecho, observa-se a centralidade que Durkheim atribuía à ação educativa no
processo de reprodução social, já que é ela que garantiria, segundo ele, o desenvolvimento, na
nova geração, de determinados “estados físicos, intelectuais e morais” indispensáveis à
transmissão e à conservação do legado social. A educação consistiria, portanto, em tornar os
corpos biológicos aptos a se apropriarem dos códigos culturais e, por meio desta apropriação,
a responderem às exigências que as regras e as regularidades do mundo social impõem.
O que a educação garantiria, em outras palavras, é a própria sobrevivência da
“sociedade”, entendida por Durkheim como uma “entidade moral duradoura” (Ibidem, p. 46),
ou seja, como uma solidariedade inter-individual baseada no compartilhamento de uma
mesma estrutura moral e intelectual. Esta integração (moral e intelectual) se alça, por meio da
educação, não apenas sobre os indivíduos de uma mesma época, mas também sobre os das
sucessivas gerações: o “social” é, sob este ponto de vista, uma espécie de “transcendência”,
um “todo” que não pode ser reduzido às suas “partes” (os indivíduos), e um modo de ser que
“nos lança fora de nós mesmos, que nos obriga a considerar outros interesses que não os
nossos, que nos ensina a dominar as paixões, os instintos, e dar-lhes lei, ensinando-nos o
sacrifício, a privação, a subordinação dos nossos fins individuais a outros mais elevados”
(Ibidem, 45).
Mas a argumentação de Durkheim não cessa aí. Se a educação é a responsável por
garantir a homogeneidade mínima necessária à comunicação e à solidariedade entre os
indivíduos, ela também é a responsável por garantir certa heterogeneidade sem a qual as
“sociedades avançadas” não poderiam existir – às diferentes exigências colocadas pela divisão
do trabalho, o ensino só pode contrapor uma igual diferenciação (ou especialização):
Cada profissão constitui um meio sui generis, que reclama aptidões particulares e conhecimentos especiais, meio que é regido por certas idéias, certos usos, certas maneiras de ver as coisas; e, como a criança deve ser preparada em vista de certa função, a que será chamada a preencher, a educação não pode ser a mesma, desde certa idade, para todo e qualquer indivíduo. Eis por que vemos, em todos os países civilizados, a tendência que ela manifesta para ser, cada vez mais, diversificada e especializada (Ibidem, p. 39).
A educação responde, portanto, a necessidades sociais e é por conta disso que o ensino
altamente especializado se torna o único possível numa sociedade afetada em larga escala
pelo princípio da divisão do trabalho.
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Mas cabe agora perguntar: e quanto à moral? Que configuração ela adquire nestas
sociedades diferenciadas? Como ela as mantêm coesas, apesar de toda a heterogeneidade?
Para estas questões, Durkheim dedicou todo um livro, Da Divisão do Trabalho Social,
publicado em 1893. Nesta obra, entre outros feitos, o sociólogo descreve o novo tipo de
solidariedade que emergiu a partir do aumento da divisão do trabalho (principalmente, após a
Revolução Industrial): longe de ser uma integração social baseada na similitude, como era o
caso nas “sociedades inferiores”, esta nova solidariedade baseia-se na diferença, ou melhor,
na complementaridade. Daí Durkheim chamá-la “orgânica”, numa referência à fisiologia e ao
funcionamento do corpo humano. O que a divisão do trabalho faz é criar laços de dependência
mútua entre os indivíduos, laços estes que moderam seu egoísmo e que controlam seus
ímpetos, o que permite a Durkheim designar a diferenciação do trabalho como “moral”, pois
geradora de solidariedade: “por ela [a divisão do trabalho], o indivíduo retoma consciência de
seu estado de dependência para com a sociedade; é dela que vêm as forças que o retêm e o
contêm. [...] ela se torna [...] a base da ordem moral” (Durkheim, 1999, p. 423).
Mas mesmo que se concorde com a visão durkheimiana quanto a este ponto, não se
pode ignorar que o processo histórico de intensificação da divisão do trabalho (e da
diferenciação social em geral) não se esgota de maneira alguma num simples arranjo de
cooperação coletiva. Não se pode ignorar, por exemplo, que os diferentes meios profissionais
(eles próprios desigualmente valorados) estão desigualmente disponíveis às diferentes classes
de agentes, e isso mesmo em uma sociedade em que a instituição social encarregada da ação
educacional (o sistema de ensino público) está formalmente ao alcance de todos, como é o
caso no período da Terceira República Francesa.
Para que a divisão do trabalho pudesse ser descrita, simplesmente, como um arranjo de
cooperação coletiva (e para que se neutralizassem, aí, todas as questões relativas ao “poder”),
seria necessário que as diferentes especialidades estivessem igualmente disponíveis a
qualquer agente, e que estes fossem submetidos exatamente à mesma ação educacional, não
apenas na escola, mas, antes disso, na própria família, espaço primeiro da socialização. Uma
sociedade que atendesse a tais exigências teria de ser, evidentemente, de indiferenciação
social absoluta.
Ora, Durkheim não ignorava tais questões. Sua obra científica foi profundamente
marcada pelos embates políticos do século XIX – aqueles resumidos sob o rótulo de “questão
social” –, ou seja, os conflitos entre o “capital” e o “trabalho”. Mas, ao procurar uma solução
para tais problemas (ao mesmo tempo, científicos e políticos) –solução esta que fosse também
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uma alternativa ao marxismo e a outras doutrinas socialistas –, Durkheim acabou por destituir
a divisão do trabalho justamente do que ela tem de “social”, naturalizando-a:
[...] a divisão não é necessariamente o efeito de uma coerção. É o que se dá mesmo sob o regime de castas, enquanto ele está fundado na natureza da sociedade. De fato, essa instituição não é sempre e por toda parte arbitrária. [...] quando ela funciona numa sociedade de maneira regular e sem resistência, é porque exprime, pelo menos em linhas gerais, a maneira imutável como se distribuem as aptidões profissionais. É por isso que, embora as tarefas sejam repartidas pela lei, cada órgão desempenha a sua espontaneamente. A coerção só começa quando a regulamentação, não correspondendo mais à verdadeira natureza das coisas e, em conseqüência, já não tendo base nos costumes, só se sustenta pela força (Ibidem, p. 394-5).
Paradoxalmente, o sociólogo acusado de “sociologismo” esqueceu-se do “social”: ao
reduzir a “coerção” à violência física, às relações de força, Durkheim só pôde enxergar o
“consenso” como uma forma de correspondência perfeita e “espontânea” entre a distribuição
das aptidões profissionais e a divisão do trabalho estabelecida, ou melhor, entre as aspirações
(dos diferentes agentes) e as possibilidades sociais (de realizar tais aspirações).
Ora, não é preciso apelar a tal correspondência mágica para explicar o “consenso
social” – como não ver, por exemplo, que a distribuição das aptidões é o produto dessa forma
particular de coerção que é a “educação”? É útil lembrar aqui a definição de Bourdieu e
Passeron para a “ação pedagógica”: “toda ação pedagógica é objetivamente uma violência
simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural” (1982, p.
20). Por “arbitrário”, entenda-se tudo aquilo que não pode ser deduzido de algum princípio
natural. Nesse sentido, todas as significações que a ação pedagógica transmite são
“arbitrárias”, assim como ela própria depende, para realizar-se, de uma autoridade
injustificada, ou melhor, que também não pode ser deduzida de nenhum princípio da natureza.
Ao ampliar-se o conceito de “coerção” ou “violência”, fazendo entrar, aí, a dimensão
simbólica do poder – sua faceta quase mágica “que permite obter o equivalente daquilo que é
obtido pela força (física ou econômica)” (Bourdieu, 2003, p. 14), justamente por ser
reconhecido como legítimo (e não como arbitrário) – tornamo-nos capazes de apreender em
sua verdade sociológica todas as situações de “consenso”, desnaturalizando-as.
A “espontaneidade” dos agentes em aderir à divisão do trabalho estabelecida é o
produto, portanto, de uma violência simbólica perpetrada por todas as instâncias de
socialização: família, escola ou clã. A secularidade do “costume” ou da “tradição” não altera a
verdade objetiva da educação como imposição de arbitrários culturais, mas apenas reflete a
permanência, ao longo do tempo, de um mesmo modo de reprodução social.
9
2.1.2 A transmissão da herança: a reprodução social em Bourdieu
O que a educação, entendida como o conjunto dos mecanismos de violência simbólica
a que a geração estabelecida (os adultos) expõe a geração recém-chegada (os jovens),
transmite é algo mais do que meras competências técnicas ou habilidades profissionais. A
socialização é a inculcação, nos recém-chegados, de todo um senso prático do jogo social, de
formas de classificação e hierarquização dos objetos do mundo, em suma, de um habitus.
O conceito escolástico de habitus, recuperado e retrabalhado por Pierre Bourdieu,
permite apreender o processo de socialização em toda a sua riqueza, ou seja, como o “modo
como a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis, [...]
propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados, que então as guiam
nas suas respostas criativas aos constrangimentos e solicitações do seu meio social”
(Wacquant, 2004).
Ao contrário das sociedades pouco diferenciadas, que oferecem aos seus membros
condições de existência bastante semelhantes e, portanto, um conjunto de condicionamentos
bastante homogêneo, as sociedades com alto grau de diferenciação caracterizam-se por
abrigarem múltiplas formas de existência social em seu interior, o que gera, por conseqüência,
um conjunto bastante heterogêneo de habitus.
A transmissão da memória cultural nestas sociedades diferenciadas não é, portanto, a
reprodução de uma cultura una, comum a todos os seus membros, mas a reprodução de um
conjunto de arbitrários culturais concorrentes entre si. Mesmo percebendo que a educação em
tempos de divisão do trabalho seria necessariamente diferenciada, Durkheim não foi capaz de
atentar para o fato de que as diferentes “especialidades educacionais”, ao invés de ocuparem
um mesmo nível (como funções numa organização), estavam hierarquizadas, ou seja,
diferenciadamente valoradas nos mercados econômico, cultural e escolar.
É a hierarquia existente entre os diferentes arbitrários culturais de uma sociedade
diferenciada que faz com que alguns destes arbitrários funcionem como “capital” (ou como
“trunfo”, para utilizar a metáfora do jogo), enquanto outros, pelo contrário, atuem como
“capital negativo”, handicap ou “estigma”. É o caso, por exemplo, dos diferentes usos sociais
de uma língua: ainda que não tragam nada em si mesmos que permita uma hierarquização de
valor, os usos que as diferentes classes de agentes fazem de um determinado idioma (inglês,
francês ou português) dão acesso a posições sociais bastante distintas e, portanto, a ganhos
materiais e simbólicos bastante desiguais:
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A linguagem dos adolescentes dos guetos negros pode conter análises teológicas tão requintadas como o discurso eruditamente palavroso e eufemizado, por vezes impenetrável, dos estudantes de Harvard. Contudo, isso não deve fazer com que se ignore, por exemplo, que, em lugar do discurso dos alunos das escolas de elite, a linguagem inventiva e cheia de colorido, logo capaz de propiciar intensas satisfações estéticas, dos adolescentes do Harlem permanece inteiramente desprovida de valor nos mercados escolares e em quaisquer situações sociais análogas, a começar pelas entrevistas para obtenção de empregos (BOURDIEU, 2001, p. 92-3).
Mas não são apenas as diversas formas de utilizar a língua que estão hierarquizadas:
todas as características do habitus, bem como as práticas e os produtos que ele engendra,
recebem valorações diferenciais nos vários mercados – econômico, cultural, escolar etc. Pode-
se citar, como exemplos, as diferentes maneiras de se portar, ou melhor, de administrar o
corpo: ao andar, ao conversar, à mesa; os diferentes gostos: na alimentação, no vestuário e no
esporte, mas também nas artes, na música e no cinema. Em suma, são as diferentes
“propensões estruturadas para pensar, sentir e agir”, ou seja, os diferentes tipos de habitus
existentes numa determinada sociedade em um dado momento que estão hierarquizados e
classificados.
Sob este ponto de vista, um determinado arbitrário cultural tem tanto mais valor
quanto mais próximo estiver do arbitrário dominante, ou seja, das exigências, explícitas ou
tácitas, que os mundos sociais mais bem posicionados na estrutura de distribuição do poder
fazem: para se obter sucesso, no mundo escolar ou no econômico, é preciso possuir
determinadas disposições sem as quais não é possível responder corretamente às demandas
impostas. Estas disposições, que funcionam como conhecimentos práticos, ou seja,
conhecimentos que não precisam operar ao nível da consciência para se fazerem sentir,
permitem que se faça aquilo que é preciso no momento em que é preciso, ou melhor,
permitem antecipar o futuro do jogo (escolar ou econômico), seu devir, de tal maneira estão
adaptados à sua lógica, e assim obter os ganhos mais raros.
Para caracterizar estes arbitrários culturais – ou as disposições por eles formadas – que
permitem aos seus detentores desempenhar uma conduta adaptada ao meio social, como
“peixes na água”, Bourdieu cunhou o conceito de “capital cultural”. É por meio deste
conceito, segundo ele, que se pode escapar aos erros da visão durkheimiana a respeito da
reprodução cultural:
Tais teorias [entre elas, a de Durkheim] baseiam-se no postulado tácito de que as diferentes ações pedagógicas que operam em uma formação social, vale dizer, tanto aquelas que as famílias das diferentes classes sociais exercem como aquela que a escola exerce, colaboram harmoniosamente na transmissão de um patrimônio cultural concebido como uma propriedade indivisa do conjunto da “sociedade”. De
11
fato, a estatística de freqüência ao teatro, ao concerto e sobretudo ao museu [...] bastam para lembrar que o legado de bens culturais acumulados e transmitidos pelas gerações anteriores, pertence realmente (embora esteja formalmente oferecido a todos) aos que detém os meios para deles se apropriarem (BOURDIEU, 1974, p. 297)
A divisão do trabalho, sob este ponto de vista, adquire um sentido diferente daquele
propalado por Durkheim: ela não é apenas uma diferenciação social em funções ou
especialidades, uma espécie de arranjo coletivo de cooperação, que a educação deve então
transmitir aos membros recém-chegados (segundo suas “aptidões profissionais”), mas uma
divisão de poderes, de autoridades, de capitais, e, por esta via, de ganhos materiais e
simbólicos. Se em sociedades pouco diferenciadas a educação consiste na transmissão de
um patrimônio indiviso a todos os seus membros recém-chegados, nas sociedades da divisão
do trabalho (e dos poderes) é cada grupo ou classe de agentes que procura legar o seu
montante particular de capital (acumulado nas lutas anteriores) a seus descendentes. A enorme
diferença nos montantes destas “heranças” encontra-se no princípio da desigualdade de
probabilidades de sucesso com que os diferentes agentes, recém-chegados ao jogo social,
partem, logo de saída, em suas lutas pelas posições sociais mais raras e rentáveis.
2.2 A ESCOLA E A REPRODUÇÃO
Como dito anteriormente, uma sociologia da reprodução social deve tomar como
objeto o conjunto das relações que unem a geração estabelecida (os adultos, os pais) à geração
recém-chegada (os jovens, os filhos), em especial os processos sociais que comandam a
transformação desta, naquela. O conjunto de tais processos de transformação dos “recém-
chegados” em “estabelecidos” pode ser chamado, apropriadamente, de “modo de reprodução
social”, ou seja, a forma como, numa sociedade determinada em um dado momento, é
socialmente administrada a transmissão dos poderes ou capitais, sejam eles de que tipos
forem: culturais, econômicos, sociais, etc.
O “modo de reprodução”, ainda que varie enormemente no espaço e no tempo, pode
ser classificado, como o faz Bourdieu, em três tipos principais, de acordo com a natureza dos
agentes envolvidos no processo social de transmissão: o modo “difuso”, em que todos os
membros estabelecidos da sociedade ou do grupo exercem de maneira homogênea a ação
pedagógica sobre os recém-chegados, com o objetivo de transmitir um patrimônio coletivo e
12
indiviso; o modo “familiar”, em que a transmissão é administrada majoritariamente pelos pais
ou outros membros do clã familiar; e, finalmente, o modo de reprodução “escolar”, em que tal
administração é feita, ao menos parcialmente, por uma instituição social explicitamente
guiada para este fim: o sistema de ensino (Bourdieu, 1982, p. 20).
Cada um destes modos de reprodução corresponde, obviamente, a tipos de sociedade
bastante diversos: o modo “difuso”, por exemplo, só é possível em sociedades de baixa
diferenciação e divisão do trabalho, em que o patrimônio que se visa transmitir é de produção
e posse coletivas; já o modo “familiar” pode ser encontrado em todas as demais sociedades,
variando apenas o seu grau de predominância; o modo “escolar” de reprodução social, ao
contrário, é uma característica exclusiva das sociedades altamente diferenciadas, ou seja, com
forte processo de industrialização e urbanização.
Todas estas maneiras de reproduzir a ordem social, contudo, não passam de diferentes
manifestações particulares de uma mesma “questão absolutamente fundamental em toda a
sociedade que é a ordem das sucessões, ou seja, a gestão da relação entre pais e filhos e, mais
precisamente, da perpetuação da linhagem e de sua herança, no sentido mais amplo do termo”
(Bourdieu, 2003b, p. 231). Em cada sociedade e momento histórico, esta gestão das relações
entre gerações toma a forma de um certo número de instituições sociais, cristalizadas nos
costumes e/ou nas leis, cujo objetivo é orquestrar o processo de transmissão de privilégios e
poderes e diminuir ao máximo o perigo de degradação do patrimônio passado: é assim que
podem ser entendidas, por exemplo, todas as leis de herança econômica ou de sucessão
política.
Nas sociedades dominadas pelo modo de reprodução familiar, são as famílias que
administram diretamente a transmissão da herança, segundo as regras (legais ou costumeiras)
em vigor: pode-se dividir a herança econômica, por exemplo, igualmente entre todos filhos;
pode-se excluir dela apenas as mulheres ou os filhos caçulas; ou, ainda, legá-la integralmente
ao primogênito. A mesma multiplicidade de arranjos institucionais pode ser encontrada nas
políticas de sucessão das diferentes nobrezas e dinastias ou nas estratégias de aliança
matrimonial. Em todos estes casos, são os clãs familiares que comandam o processo.
A particularidade do modo de reprodução em sociedades altamente diferenciadas
consiste na existência, ao lado das famílias, de uma outra instituição capaz de fazer-lhes frente
na condução do processo sucessorial: a escola. Nestas sociedades, o sistema de ensino impõe-
se como instância máxima de consagração e legitimação, cujos veredictos e títulos possuem
13
validade universal dentro dos limites de sua jurisdição (geralmente nacional, mas, em muitos
casos, global).
A transmissão dos capitais, mesmo do econômico (embora esta espécie ainda guarde
alguma independência), passa, assim, pelo caminho desviado da consagração escolar – prova
disso é o fato da maioria das posições sociais mais raras e rentáveis cobrarem um “preço de
entrada” bastante alto em “capital escolar”, como pode ser visto nos casos do alto
funcionalismo público, dos executivos das grandes empresas, dos políticos profissionais, etc.
Nestas sociedades dominadas pelo sistema de ensino, a trajetória de todos os agentes
depende do sucesso ou fracasso escolares, assim como os veredictos produzidos por este
sistema funcionam como verdadeiras sentenças de destino e de identidade sociais. Não há, em
suma, como ignorar a escola, pois ela detém, como braço do Estado, o monopólio do poder de
violência simbólica legítima.
A legitimidade do sistema de ensino, e, portanto, a eficiência de todo o modo escolar
de reprodução, é reforçada pela forma dissimulada com que ele perpetua a distribuição
desigual dos poderes e privilégios: ao cobrar de todos os alunos um arbitrário cultural (e as
disposições correspondentes) que apenas os membros das classes favorecidas possuem de
antemão (como capital cultural herdado da família), a escola ratifica as diferenças sociais e as
transfigura em diferenças de natureza – o desfavorecido em capital cultural (por herdar um
arbitrário cultural por demais afastado do arbitrário dominante) é, desta forma, transformado
em incapaz, em responsável por seu próprio fracasso, enquanto os favorecidos, que já
adentram o jogo escolar com todos os trunfos, por possuírem como “cultura nativa”
justamente aquela que a escola exige (em sua disciplina, em seus exercícios), são
transfigurados em capazes, inteligentes ou meritórios, únicos responsáveis por seu próprio
sucesso. As ideologias do dom e do mérito encontram-se no centro do dispositivo escolar,
pois funcionam como o véu que dissimula aos olhos de todos, vencedores e perdedores, a
verdade objetiva da escola como reprodutora da ordem social:
Dentre as soluções historicamente conhecidas quanto ao problema da transmissão do poder e dos privilégios, sem dúvida a mais dissimulada e por isto mesmo a mais adequada a sociedades tendentes a recusar as formas mais patentes da transmissão hereditária do poder e dos privilégios, é aquela veiculada pelo sistema de ensino ao contribuir para a reprodução da estrutura das relações de classe dissimulando, sob as aparências da neutralidade, o cumprimento desta função (BOURDIEU, 1974, p. 296).
Quanto a seus traços sociologicamente pertinentes, o sistema de ensino pode ser então
definido como o conjunto dos mecanismos sociais responsáveis pela mediação, em sociedades
14
altamente diferenciadas, entre a posição social de origem (a posição familiar) e a posição de
chegada (o cargo ocupado ou a profissão), mediação esta feita não apenas por meio do
outorgamento de um diploma, mas também pela inculcação de aspirações diferenciais às
diferentes classes de agentes: juntamente aos títulos, a escola concede também essa confiança
em si, característica de toda sociodicéia de elite, que torna o herdeiro apto e digno, aos seus
próprios olhos, de herdar seu patrimônio de poderes e privilégios. É assim que a “sociologia
das instituições de ensino e, em particular, das instituições de ensino superior, pode trazer
uma contribuição decisiva à ciência da dinâmica da estrutura das relações de classe, problema
muitas vezes negligenciado pela sociologia política” (Ibidem, p. 296).
2.3 O ENSINO SUPERIOR E AS ELITES NACIONAIS NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Vários trabalhos já ressaltaram o papel dos cursos superiores (os jurídicos, em
especial) na formação das elites nacionais (Carvalho, 1996; Adorno, 1988; Falcão Neto,
1978; Venâncio Filho, 1982; Hendricks e Levine, 1981; Barman e Barman, 1976),
especialmente durante o período imperial, mas também nos anos anteriores à Independência.
Em comum, todos eles chamam a atenção para a centralidade das instituições escolares
superiores na construção do Estado nacional, ou seja, no suprimento das necessidades
surgidas a partir do crescimento do aparelho burocrático, da institucionalização de um espaço
propriamente público e da autonomização de um campo político nacional.
Em A construção da ordem, José Murilo de Carvalho chega a situar o ensino superior
como um dos fatores responsáveis pela unidade política do país (em contraste com a
fragmentação da América espanhola), bem como pelo tipo de sistema de governo aqui
adotado. Sua hipótese explicativa não dá margem a interpretações equívocas:
[...] a adoção de uma solução monárquica no Brasil, a manutenção da unidade da ex-colônia e a construção de um governo civil estável foram em boa parte conseqüência do tipo de elite política existente à época da Independência, gerado pela política colonial portuguesa. Essa elite se caracterizava sobretudo pela homogeneidade ideológica e de treinamento. Havia sem dúvida certa homogeneidade social [...]. Mas quanto a isto não haveria muita diferença entre o Brasil e os outros países. [...] a homogeneidade ideológica e de treinamento é que iria reduzir os conflitos intra-elite e fornecer a concepção e a capacidade de implementar determinado modelo de dominação política (CARVALHO, 1996, p. 17-8).
15
E como se formou tal “homogeneidade ideológica e de treinamento”? Graças ao tipo
de socialização a que a elite do país foi submetida: quase toda ela passou por escolas de
ensino superior (em especial, as de direito), que estavam submetidas a um estrito controle por
parte dos governos de Brasil e de Portugal. O fato de existirem poucas destas escolas (até a
Independência, a Universidade de Coimbra era praticamente a única opção dos brasileiros),
também aumentava a homogeneidade desta formação escolar predominantemente jurídica. O
posterior treinamento profissional na magistratura e/ou na carreira política apenas vinham
reforçar a integração cultural e moral desta elite.
Ora, tal monopólio da formação intelectual, concentrada, até a criação dos primeiros
cursos jurídicos nacionais, numa única instituição, a Universidade de Coimbra, torna no
mínimo plausível a hipótese da homogeneidade ideológica ou cultural da elite brasileira.
Segundo dados coletados por Barman e Barman (1976, p. 428), entre 1776 e 1830, 489
brasileiros se graduaram no curso de direito de Coimbra (as graduações nas demais áreas de
estudo, como medicina ou matemática, somam 133). No período distendido, de 1772 a 1872,
são 1.242 brasileiros formados em algum curso da universidade portuguesa (Carvalho, 1996,
p. 63), embora apenas 20% destes tenham se matriculado após a instalação dos primeiros
cursos jurídicos no Brasil, em 1827.
Se observarmos, por exemplo, que, entre 1822 e 1831, 86,67% dos ministros do
governo de D. Pedro I possuíam algum título de ensino superior, e que, destes, 71,80% o
haviam conseguido em Coimbra (Ibidem, p. 68 e 71), fica claro que a universidade portuguesa
(em especial, o curso de direito) representava o instrumento de reprodução social mais
eficiente àqueles que pretendiam manter suas posições sociais de origem (ou melhorá-las) e
ingressar na vida política ou na vida da magistratura (quase sempre extensões uma da outra),
ao menos durante o período anterior à Independência.
Com a fundação dos cursos jurídicos de São Paulo e de Olinda (depois transferido para
Recife), em 1827 (a primeira turma ingressou em 1828), quebra-se o monopólio português
sobre a consagração escolar e, conseqüentemente, sobre todo um dispositivo social que
mantinha o Brasil dependente de Portugal ao obrigar sua elite a recorrer a um instrumento de
reprodução sob controle português (a Universidade de Coimbra) a fim de poder reproduzir-se.
A percepção de que a fundação de cursos superiores nacionais representava a
emancipação cultural do império nascente transparecia, por exemplo, nos discursos de boa
parte dos constituintes de 1823: “É preciso tirar os brasileiros da penosa necessidade de irem
mendigar as luzes nos países remotos”, dizia o Deputado Almeida e Albuquerque, “para que a
16
nação tenha filhos dignos dela, é indispensável facilitar-lhes todos os meios deles adquirirem
conhecimentos, sem o que os homens pouco ou nada são” (Pereira, 1978, p. 146).
Eram mais do que “luzes” ou “conhecimentos” o que os filhos da elite nacional
buscavam em Coimbra: como detentor do monopólio da violência simbólica legítima, do
poder de nomeação e de categorização, o Estado português, e, por extensão, o sistema de
ensino a ele submetido, era a instância máxima de consagração e legitimação sociais a que
todos os habitantes do Império (e, por procuração, de suas colônias), quisessem ou não,
estavam sujeitos. Ao funcionar como uma espécie de “banco central do capital simbólico”, o
Estado “constitui o lugar por excelência da imposição do nomos, como princípio oficial e
eficiente de construção do mundo, seguido, por exemplo, por todos os atos de consagração e
de homologação que ratificam, legalizam, legitimam, “regularizam”” (Bourdieu, 2001, p.
227).
O que os filhos da elite brasileira buscavam em Coimbra era o reconhecimento oficial
de sua dignidade estatutária, ou melhor, de sua aptidão, a um só tempo técnica e social, de
ocupar posições de destaque nos campos sociais em processo de crescimento e autonomização
no Brasil: burocrático, político, jurídico, médico, jornalístico, etc. Por tal reconhecimento,
eram capazes de tolerar, apesar de sua posição social dominante na colônia, os “mais duros
tratamentos e opressões” na universidade portuguesa, como diz outro constituinte de 1823,
José Feliciano Fernandes Pinheiro, futuro Visconde de São Leopoldo (Venâncio Filho, 1982,
p. 15). E tudo isso para acompanhar, nas palavras de Plínio Barreto, estudioso da cultura
jurídica brasileira, o curso “acanhado e rude que se processava na Universidade de Coimbra”
(Ibidem, p. 13).
Com os cursos superiores de Olinda e São Paulo, o Império brasileiro viu-se livre, ao
menos parcialmente, de sua dependência simbólica em relação a Portugal, ao produzir ele
próprio os títulos escolares que consagravam suas classes dominantes, em especial seus
profissionais da política e da magistratura4. Este processo de emancipação pode ser descrito
como uma verdadeira “substituição de importações”: no caso, não de bens de produção
material ou econômica, mas de bens simbólicos, por meio da produção nacional em série de
títulos de consagração social e de legitimação do poder e dos privilégios.
4 No período de 1840 a 1853, o número de ministros formados em Coimbra cai para 45% do total, mesma porcentagem dos formados em São Paulo ou Olinda/Recife. Duas décadas depois, durante o período de 1871 a 1889, a porcentagem dos formados em solo nacional chega quase ao total, com 98,40% dos ministros (Carvalho, 1996, p. 71).
17
Mas a quebra do monopólio de Coimbra ameaçou de alguma forma a “homogeneidade
ideológica e de treinamento” da elite nacional, a que se refere Carvalho? De forma alguma.
Ao contrário, o que se viu foi em grande parte uma continuidade entre o ensino português e o
brasileiro: “Os cursos de direito foram criados à imagem do predecessor coimbrão. Os
primeiros professores eram ex-alunos de Coimbra e alguns dos primeiros alunos vieram de lá
transferidos”, mas ainda assim houve “adaptação no que se refere ao conteúdo das disciplinas.
O direito romano foi abandonado em benefício de matérias mais diretamente relacionadas
com as necessidades do novo país, como os direitos mercantil e marítimo e a economia
política” (Carvalho, 1996, p. 66).
Somado ao continuísmo que caracterizou o ensino jurídico nacional, outro fator que
manteve a solidariedade intra-elite, apesar da interrupção do processo de agregação e
homogeneização que se dava em Coimbra, foi a política do Governo Central, ao longo de todo
o período imperial, de limitar ao máximo a proliferação de escolas superiores e concentrá-las
em apenas algumas capitais provinciais: no caso, Rio de Janeiro, São Paulo, Olinda
(posteriormente, Recife) e Ouro Preto. Nisso, sua relação com as províncias não diferia da que
Portugal mantinha com o Brasil, ao controlar o monopólio da consagração escolar e, portanto,
o acesso às posições de poder.
Nos cursos de Olinda e São Paulo, os filhos das classes dominantes das diferentes
províncias conviviam e estreitavam laços que perdurariam por toda a vida, notadamente na
carreira política e profissional. Sobre isto, diz Sérgio Adorno:
O bacharel acabou por constituir-se, portanto, em sua [do Estado brasileiro] figura central porque mediadora entre interesses privados e interesses públicos, entre o estamento patrimonial e os grupos sociais locais. A criação de uma verdadeira intelligentzia profissional liberal, nascida do bojo da sociedade agrário-escravista, compreendida, na sua grande maioria, de bacharéis, promoveu a ampliação dos quadros políticos e administrativos, sedimentou a solidariedade intra-elite de modo a rearticular as alianças entre os grupos sociais representantes do mundo rural e do mundo urbano (1988, p. 78).
As escolas recém-fundadas, longe de se converterem em fatores de desagregação,
substituíram Coimbra na tarefa de unir as diferentes elites provinciais e de garantir a
estabilidade relativa (ao menos se tivermos em mente a história da América espanhola), bem
como a unidade política e territorial do Brasil durante o período monárquico.
Quando se salienta o poder das escolas superiores, em especial as de direito, na
formação de uma “comunidade de espírito” entre os membros oriundos das diversas
províncias, não se quer por isso dizer que tal processo se desse exclusivamente por meio da
ação pedagógica do professor sobre os alunos, com a conseqüente inculcação de um arbitrário
18
cultural comum. Pelo contrário, os trabalhos que focam qualitativamente o ensino ministrado
nestas escolas (Venâncio Filho, 1982; Adorno, 1988) são unânimes em apontar o baixo
rendimento pedagógico das aulas que lá se davam: “A atividade magisterial era para poucos
[...] uma atividade importante, e, terminado o concurso para lente substituto, a maioria deles
se voltava para as atividades da política, da magistratura ou da advocacia” (Venâncio Filho, p.
116).
A prática das “aulas lidas”, por exemplo, era um expediente pedagógico comum no
ensino jurídico imperial, segundo relata Clóvis Beviláqua, jurista e magistrado cearense, ele
próprio testemunha deste expediente: “Ouvidas na aula, as preleções de Silveira de Souza
[professor da Faculdade de Direito do Recife] eram, antes, monótonas do que atraentes
porque, segundo testemunhei em 1878 e era o seu sistema, ele as levava escritas e as lia”
(Ibidem, p. 118). A precariedade estendia-se ainda ao aspecto físico do ensino: as instalações
encontravam-se em péssimas condições, com goteiras, paredes deterioradas, pisos manchados
pelas poças de água, bibliotecas precárias, etc. (Ibidem, p. 115 e 116).
Se a comunicação pedagógica entre professores e alunos não era instrumento de
grande relevância na formação intelectual e profissional dos alunos, o mesmo não se pode
dizer do ambiente exterior à sala de aula. Ao contrário, é justamente nele que os autores
mencionados localizam o lugar por excelência da socialização dos bacharéis brasileiros à
época em questão: “Nunca houve efetivamente ensino jurídico no Império, porém uma vida
acadêmica bastante agitada e controvertida; isto é, um ambiente extra-ensino, independente da
relação didática estabelecida entre aluno e professor, que foi responsável pela
profissionalização do bacharel” (Adorno, 1988, p. 26-7). Parte fundamental desta vida
acadêmica fora da sala de aula se dava através da militância política no jornalismo, para cuja
análise Adorno dedica todo um capítulo de Os aprendizes do poder5.
Mas se o ensino jurídico foi um pilar da estabilidade imperial, ao unificar por meio de
laços sociais e de uma formação comum as diferentes elites provinciais, bem como ao
conciliar o mundo rural com o mundo urbano nascente, e ao prover a máquina burocrática em
expansão com agentes socialmente dignos de dela fazerem parte, o mesmo não se pode dizer
da educação militar, por exemplo.
Na Escola Militar, sucessora da Academia Real Militar fundada em 1810 por D. João
VI, a oposição intelectual e política ao regime monárquico tomou forma. Se as escolas
jurídicas aglutinavam as elites econômicas e intelectuais, as militares o faziam com grupos
5 Cf. o capítulo 4, “A profissionalização da política e o bacharelismo liberal”.
19
sociais econômica e politicamente dominados: “seus alunos vinham em geral de famílias
militares ou famílias remediadas, quase nunca de famílias ricas; sua educação era técnica e
positivista, em oposição à formação jurídica e eclética da elite civil” (Carvalho, 1996, p. 65).
E foi especialmente o positivismo, sugere Carvalho, que “deu aos militares a perspectiva
filosófica que lhes permitiu articular intelectualmente sua oposição política à elite civil”
(Ibidem, p. 66).
As escolas de ensino superior funcionaram, portanto, ao longo de todo o século XIX,
como espaços de constituição de grupos sociais, e isto por meio da produção de identidades
coletivas (o engenheiro militar positivista ou o bacharel liberal, por exemplo), dotadas de
interesses distintos e de soluções próprias para os problemas do país; estas escolas foram,
juntamente com o campo jornalístico em formação, os vetores de estruturação do espaço
público que então se formava; ora como forças conservadoras, ora como forças subversivas.
Com o final do império, o ensino superior ganhou novo impulso. À época da fundação
da Universidade do Paraná, objeto do presente trabalho, já contavam-se 114 cursos superiores
em território nacional, divididos entre os estados de Amazonas, Bahia, Ceará, Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio Grande do Sul e São Paulo. É este novo momento da
relação entre o campo escolar e o campo do poder, caraterizado pela expansão do número de
escolas e de vagas e pelas conseqüentes alterações no modo de reprodução das diferentes
classes e frações de classe, que exploraremos no capítulo seguinte, ao tomar para análise um
caso particular dessa relação, o paranaense.
2.4 A BIBLIOGRAFIA SOBRE OS PRIMÓRDIOS DO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
Do ponto de vista de uma sociologia da reprodução social, há pelo menos três aspectos
relevantes a serem levados em conta quando se estuda escolas de ensino superior. Em
primeiro lugar, a questão da gênese de tais escolas e de sua reprodução ao longo do tempo, ou
melhor, das suas condições sociais de possibilidade. É imprescindível, para isto, uma análise
de seus agentes fundadores e mantenedores, seus habitus e suas posições no espaço social,
variáveis explicativas dos interesses que movem suas práticas e produções. Um segundo
aspecto diz respeito à posição das escolas no campo escolar e às suas relações com o espaço
social em geral e com o campo do poder em particular. O objetivo, aqui, é o mapeamento da
20
clientela que faz uso de tais instituições em suas estratégias de reprodução, bem como as
trajetórias sociais favorecidas pela passagem por estas escolas. O último aspecto é aquele que
remete às instituições escolares como produtoras de determinados tipos de habitus. Desta vez,
o foco da análise deve recair sobre todas as forças formadoras de disposições (currículos,
métodos pedagógicos, organizações disciplinares, métodos avaliativos, etc.), que fazem parte
do ambiente escolar.
Ao analisar a bibliografia que toma como objeto as instituições precursoras do ensino
superior brasileiro, não é difícil perceber que raramente estes três aspectos são igualmente
contemplados. Geralmente, os trabalhos concentram-se em apenas um ou dois deles. É o caso,
por exemplo, de Alberto Venâncio Filho (1982), que concentra-se basicamente na dimensão
pedagógica do ensino jurídico (a evolução curricular, organizacional); de Barman e Barman
(1976), que focam a função das escolas superiores na consagração das elites e na definição de
destinos sociais, orientação semelhante à de Coradini (1997), sem dar grande atenção ao tipo
de formação que tais escolas transmitiam e às suas conseqüências, por exemplo, na prática
política ou jurídica dos formados; há ainda o trabalho de Wachowicz (1983), com o qual
compartilhamos o mesmo objeto de pesquisa (os primórdios da Universidade do Paraná, nas
primeiras décadas do século XX), que concentra-se na análise dos agentes fundadores e
mantenedores da instituição, especialmente em suas relações com a política do período.
Entre os trabalhos que conjugam mais de um foco de análise, pode-se citar Adorno
(1988) e Hendricks e Levine (1981), já que ambos interessam-se tanto pelos aspectos
pedagógicos e de formação intelectual dos alunos, quanto pela função das escolas em relação
à reprodução das elites e de suas posições sociais. Para comparação com um caso estrangeiro,
pode-se consultar Damamme (1987), que analisa as condições sociais de possibilidade de uma
instituição escolar francesa, a École Libre des Sciences Politiques, por meio de uma
sociologia posicional, filiada a Bourdieu, de seus agentes fundadores. Além do interesse pela
gênese social, o trabalho foca o lugar que tal instituição passou a ocupar, uma vez criada, no
campo escolar e no sistema de relações com o campo do poder. Contudo, o autor não se detém
nos processos de produção de disposições a que, é legítimo imaginar, a escola deve ter
submetido seus alunos.
A conjugação dos três aspectos de análise destacados realiza-se, dentre os trabalhos
consultados, apenas em A Escola de Minas de Ouro Preto, o peso da glória, de José Murilo
de Carvalho. Nesta obra, há uma preocupação de igual intensidade tanto com relação ao
contexto, cultural e econômico, de criação da escola, com um estudo detido de seu agente
21
fundador, o politécnico francês Claude Henri Gorceix, quanto com o tipo de formação que a
escola imprimiu e com o destino social dos alunos que por ela passaram.
Embora a conjugação destes três diferentes focos seja a única capaz de reconstruir o
sistema de ensino em toda a sua complexidade (ou seja: inserindo-o no modo de reprodução
vigente), no presente trabalho, por razões de economia, nos limitaremos exclusivamente ao
primeiro deles, aquele que se concentra nas condições sociais de possibilidade das instituições
escolares; neste caso particular, da Universidade do Paraná, primeira instituição de ensino
superior fundada em território paranaense.
22
3. SOCIOLOGIA DE UM EMPREENDIMENTO CULTURAL: A GÊNESE SOCIAL
DA UNIVERSIDADE DO PARANÁ
A análise sociológica tem tanto mais chances de ser compreendida como um discurso
iconoclasta, motivado pelo prazer perverso de desiludir (no sentido de dissipar as ilusões),
quanto mais seus interesses de pesquisa aproximem-se de objetos socialmente valorizados –
literatura, arte, religião, direito etc. Mas se a sociologia de fato desilude, ela o faz mesmo que
não tenha tal objetivo como um fim: no caso da análise científica do passado, por exemplo, o
simples fato de apontar-se as armas da historicização para os eventos e personagens
eternizados pelo discurso celebrante (das memórias, dos romances, da historiografia
tradicional), tende a funcionar automaticamente como um ato de heresia sacrílega e, como tal,
a suscitar toda uma gama de reações defensivas por parte dos guardiães da tradição.
A Universidade do Paraná, assim como seus mais famosos fundadores – Victor
Ferreira do Amaral, Nilo Cairo, Hugo Simas etc. – são um exemplo deste processo de
eternização promovido sistematicamente pelo discurso celebrante, o qual, entre outras coisas,
tem como efeito tornar mais difícil a apreensão correta das especificidades históricas:
Victor Ferreira do Amaral e Nilo Cairo! Dois nomes, gigantes do espírito e vontade férreas, integraram-se como duas forças que se conjugam na luta por um mesmo ideal – “elaborar plano que teria nascido como nascem concepções grandiosas, para mergulhar no esquecimento, se peito e ombros resolutos não se colocassem ao seu serviço” (COSTA & LIMA, 2007, p. 19).
Tais dificuldades são redobradas pelo efeito de oficialização promovido pelo Estado,
instituição capaz de transformar o particular em universal, em todos os sentidos da expressão:
seja por tornar pública o que antes era uma instituição privada de ensino6, seja pela
transubstanciação desta em símbolo da cidade, e de seus fundadores em nomes de ruas e
avenidas7.
O efeito destes processos convergentes – de eternização celebrante e oficialização – é
uma autêntica des-historicização, ou seja, uma negação da gênese histórica particular que deu
origem aos objetos celebrados e oficializados: negação, por exemplo, dos interesses
6 “Mobilizam-se as forças paranaenses, culturais e políticas, neste sentido e, assim, a 4 de dezembro de 1950, por dispositivo da Lei n. 1.254, era federalizada a Universidade [...]. Assinavam a Lei, o Presidente Eurico Gaspar Dutra e o Ministro da Educação Pedro Calmon” (Westphalen, 1987, p. 12). 7 A Lei municipal 10.236, da Câmara de Vereadores de Curitiba, instituiu o prédio histórico da Universidade Federal do Paraná, localizado na praça Santos Andrade, como “Símbolo da cidade de Curitiba”.
23
específicos que moviam tais agentes e moldavam suas práticas, para além da universalidade
do discurso de um grupo de agentes que tinha como particularidade, justamente, fundar uma
universidade.
Mas esta recusa do discurso celebrante ou oficial, em favor da análise científica –
discurso ao mesmo tempo mais modesto e exigente –, não significa de forma alguma negar o
papel destes agentes (os “grandes homens” da historiografia tradicional) nos processos
históricos. Quanto a este ponto, diz José Murilo de Carvalho: “existem grupos minoritários
que realmente têm influência decisiva em certos acontecimentos [...]. Se é verdade que a
historiografia tende a magnificar esse papel, seria ingênuo achar que se pode resolver o
problema reformando a historiografia” (1996, p. 17).
Em outras palavras, a ruptura (legítima) com uma historiografia dos “grandes homens”
e de seus “grandes feitos” não deve implicar uma negação do papel dos agentes, em geral, e
das elites, em particular, na definição dos “rumos” da história: não se trata, portanto, de
reduzir a história geral à econômica, nem de contentar-se com o populismo de uma “história
de todos os homens”, mas de reconhecer, com Marx, que “os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim
sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX,
1977, p.17).
3.1 OBJETIVISMO, SUBJETIVISMO E SOCIOLOGIA PRAXIOLÓGICA
A forma mais segura de se escapar aos automatismos e impensados que sustentam o
discurso historiográfico tradicional, em sua versão oficiosa ou romanceada, é tomar como
objeto de reflexão justamente as condições teóricas por meio das quais pode-se transformar o
objeto pré-construído ( o “fato histórico” da fundação da Universidade) em objeto
sociológico, ou seja, produzido por meio de um processo de construção teórica. Antes,
contudo, que se passe à explicitação desse processo de construção do objeto sociológico,
cumpre introduzir o leitor ao tema, por meio de uma apresentação bastante sumária dos
“fatos”, tais como os seqüenciam a historiografia tradicional.
A chamada República Velha, inaugurada em 1889, testemunhou uma oscilação
desconcertante entre períodos de monopolização estatal do ensino superior e outros de
24
liberalização deste para os empreendimentos privados. A Reforma Benjamin Constant, de
1891, implementada pelo Ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos Benjamin
Constant Botelho de Magalhães, por exemplo, garantia o reconhecimento dos cursos
superiores privados, de acordo com o espírito federalista daqueles primeiros anos
republicanos: “A Reforma Benjamin Constant provocou dentro do espírito de
descentralização política uma aspiração pela descentralização educacional, podendo-se
parificar ao federalismo político o federalismo educacional” (VENÂNCIO FILHO, 1977, p.
185).
Esta desoficialização do ensino superior duraria, contudo, apenas até 1901, ano em
que foi aprovado o Código dos Institutos Oficiais do Ensino Superior e Secundário, o qual
restaurava o controle estatal sobre a organização dos cursos superiores, restauração que, por
sua vez, seria também revogada em 1911, com a Reforma Rivadávia Correa, que trazia
novamente a descentralização.
Nestes ínterins de liberalização e enfraquecimento do controle por parte da União,
pipocavam as chamadas “faculdades livres”, cursos superiores privados de direito, medicina
ou engenharia; mas foram também nestes períodos que surgiram as primeiras tentativas de
organização de universidades em território nacional, primeiramente em São Paulo e Manaus
(ambas por iniciativa privada, malogradas em pouco tempo), e depois em Curitiba, com a
Universidade do Paraná, única delas a sobreviver àqueles anos.
Assim como suas congêneres paulista e amazonense, a universidade fundada no
Paraná também nasceu como um empreendimento da iniciativa privada, muito embora tenha
desde o primeiro ano de funcionamento (1913) recebido apoio dos governos municipal e
estadual:
Reconhecida pela Lei n. 1284, de 27 de março de 1913 [através da qual foi efetuada doação de 80:000$000 rs], logo também o Governo do Estado do Paraná, pela Lei n. 1367, de 5 de março de 1914, concede o auxílio anual de 36:000$000 à Universidade Federal [sic] do Paraná, ficando esta obrigada à matrícula de até 10 alunos, gratuitamente, em seus diferentes cursos. Declarada de utilidade pública pela Lei n. 1456, de 11 de abril de 1914, recebe da Prefeitura Municipal de Curitiba, a doação do terreno à Praça Santos Andrade (WESTPHALEN, 1987, p. 10-11).
Como grandes artífices desta fundação, a literatura sobre o tema (WACHOWICZ,
1983; WESTPHALEN, 1987; PILOTO, 1976; COSTA & LIMA, 2007) é unânime em
apontar os nomes de Victor Ferreira do Amaral e Silva e de Nilo Cairo da Silva; ambos
médicos paranaenses, o primeiro foi também político de destaque no estado, enquanto o
segundo provinha da carreira militar. Liderando, num primeiro momento, grupos separados e
25
sem conhecimento mútuo, ambos compartilhavam o anseio de fundar uma universidade em
Curitiba, objetivo que concretizou-se apenas com a união dos dois grupos: “à fusão [...] deve-
se indiscutivelmente o sucesso da empreitada. Se permanecessem isolados e divididos,
provavelmente a Universidade não passaria das primeiras iniciativas” (WACHOWICZ, 1983,
p. 40).
Aproveitando-se da brecha liberalizante surgida a partir da Reforma Rivadávia Correa,
de 1911, cada um dos dois grupos de paranaenses ilustres lançou-se na empreitada de
organizar um projeto universitário: “Em fins de julho [de 1912], Victor Ferreira do Amaral
dirigiu-se ao Rio de Janeiro e São Paulo a fim de conhecer in loco as escolas superiores da
capital da República, entre outras. Os estatutos e o material coletado foram entregues a
Pamphilo de Assumpção, a fim de que redigisse o pré-projeto” (ibidem, p. 36). Como dito
anteriormente, neste mesmo momento, outro grupo, desta vez liderado por Nilo Cairo,
também se movimentava em torno de projeto semelhante: “Nos mesmos dias em que Victor
Ferreira do Amaral planejava os primeiros passos [...], um outro grupo, sem conhecimento do
primeiro, começava também a trocar idéias no mesmo sentido. Neste predominavam militares
positivistas” (ibidem, p. 36).
Uma vez tendo tomado conhecimento, por meio da imprensa, da existência de um e de
outro, os dois grupos, por iniciativa de Nilo Cairo, unem-se, ainda em 1912, com a
presidência da comissão organizadora então instituída sendo entregue a Victor Ferreira do
Amaral. Apresentado o projeto ao presidente do estado Carlos Cavalcanti de Albuquerque, e
com o apoio deste, a sessão solene inaugural da Universidade do Paraná é marcada para o dia
19 de dezembro, data da emancipação política do estado, e a Assembléia Legislativa é
escolhida para abrigar a cerimônia (ibidem, p. 40-1).
Mas a explicação sociológica do fato histórico da “fundação” exige, evidentemente,
que se vá além da descrição até agora esboçada: embora exista uma quantidade significativa
de obras a respeito do surgimento da Universidade do Paraná, poucas são as que se arriscam
além desta linguagem descritiva que enumera acontecimentos sem qualquer critério de
pertinência ou causalidade.
A grande exceção e único trabalho que constrói uma autêntica explicação para o fato
da “fundação” é, sem dúvida, o livro de Ruy Wachowicz, Universidade do Mate, o qual,
apesar de meritório, reúne um conjunto de erros bastante ilustrativos das dicotomias que
comandam as análises históricas, dicotomias estas que merecem ser discutidas em detalhe a
fim de serem evitadas.
26
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentou-se, neste trabalho, abordar o tema da fundação da Universidade do Paraná
através dos instrumentos de uma sociologia praxiológica que recusa, a um só tempo, tanto as
explicações de cunho economicista, quanto aquelas centradas na idéia de motivações ou
ideologias. Em outras palavras, rechaçou-se a falsa causalidade que procura ligar o
surgimento da Universidade ao desenvolvimento da economia ervateira (o perfil social do
grupo de agentes fundadores de forma alguma se restringe à elite produtora da erva-mate);
mas também a tentativa de se imputar o interesse na fundação da Universidade como um
simples da adesão a uma ideologia positivista ou paranista.
Defendeu-se uma explicação centrada no mapeamento da posição que os agentes
fundadores ocupavam no espaço social, em geral, e no campo do poder, em particular, bem
como da trajetória social que os levou até elas. Mostrou-se como tais agentes deviam suas
posições ao fato de deterem um forte capital cultural e escolar e como suas trajetórias
marcadas pelo sistema de ensino serviram para lhes incutir uma crença persistente na
educação e na “cultura” como fontes de desenvolvimento para a jovem província do Paraná,
cujas elites ainda se sentiam abaladas pela perda territorial ao fim da querela do Contestado.
Procurou-se mostrar, além disso, como estes agentes são o produto de um contexto
mais geral de transição de um modo de reprodução familiar, em que a transmissão do capital é
comandada pelo clã familiar, para um modo de reprodução escolar, em que a escola exerce
um papel preponderante neste processo de transmissão. Aventou-se a hipótese de que esta
transição foi acelerada por conta do processo de institucionalização político-administrativa
que se seguiu à emancipação, em 1853. Este processo de institucionalização, defendeu-se
aqui, teria criado uma demanda por investimentos culturais, ao abrir, para a elite local, um
novo mercado de postos de poder, mercado em que os títulos escolares eram tacitamente
(quando não explicitamente) exigidos.
A profusão de instituições culturais surgidas a partir da emancipação torna plausível
esta hipótese. O surgimento de uma estrutura política e administrativa (Assembléia
Legislativa, Tribunal de Justiça, Secretarias etc.) incentivava, quando não exigia, a conversão
do capital econômico, acumulado por meio da economia ervateria ou campeira, em capital
escolar, num processo que pode também ser descrito como de profissionalização e
burocratização das elites regionais.
27
Para reforçar estas hipóteses, contudo, seria preciso mostrar a mudança exata no perfil
da elite política estadual durante o período, a fim de evidenciar a transição de um perfil
coronelista para um perfil profissionalizado, detentor de títulos escolares de profissões
liberais. De qualquer forma, deu-se aqui um primeiro passo nesta direção.
28
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