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" L-..::_.->. ,,' Título original: Cliffs Notes on Roman ClassÍC8 Tradução de Maria Georgina Segurado Tradução portuguesa © de P. E. A ,,'. Capa: estúdios P. E. A © 1988,by C. K Hillegass Direitos reservados por Public?-ções Europa-América, Lda. Nenhuma parte desta publicàção pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer pl'O!:esso, electrónico; mecânico ou incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do' editor. Exceptua-se a transcriçãO de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textosemrecolhasantoló_ gicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial Editor: Francisco Lyon de Castro;. PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, L.DA Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edição n.!! 152307/5896 Execução técnica: Gráfica Europam, L. da, Mita-Sintra':"" Mem Martins Depósito legal n.1! 67460/93 j $ i } IJ #{ !j j l 1 J f f _.L I' 51\l O .úG1b\5 S, 611elll. elA Ss.fCOS 00 UY\i.,v. da.. de rJr;-,k. ÍNDICE Pág. Introdução •.•.•..•.•..•••.•••••.•••••..••••••.•••..••..•..•..•.••.• .... •..•••••.•.• 9 Os PRIMÓRDIOS DA LITERATURA ROMANA (514-240 a.C.) ............................................................................. . lffenaeehmi (Os Gémeos Meneemo) ............................... Oaptivi (Os Prisioneiros) ••••••••••••••••••• •••••••••••••••••••••••••••• A.ulularia (O Pote do Ouro) ........................................... Amphitryon. ....................................................................... ,1- ,1 A REPúBLICA ROMANA a.C.) ENIO .••.•••...••.•••••••.•••.••••.•.•••••••••••••..••••••..•••.••••••.•••••••••••••••••• l0. Annale. . ... .... .. _ " DJlAMA: ROMANO ••••••••••••••••••••.•.•••••••••••••••••••••••••••••••.•••.• - -j Teatro Romano ............................................................ I ' Guarda-Roupa •••••••••..•...••••...•••..•••••••.•.••••••••••••••.• ••••.•. : Representação .............................................................. , A TERENCIO .................................................................. •••... IAcIelphi (Os Irmãos) ................ _ ................ _ ............... . 17 18 21 23 25 33 34 39 42 44 . 45 49 50

Mary Ellen Snograss_Clássicos Romanos

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Enxertos de textos clássicos.

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Tradução de Maria Georgina Segurado Tradução portuguesa © de P. E. A

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Capa: estúdios P. E. A

© 1988,by C. K Hillegass

Direitos reservados por Public?-ções Europa-América, Lda.

Nenhuma parte desta publicàção pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer pl'O!:esso, electrónico; mecânico ou fo~gráfico; incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do' editor. Exceptua-se naturalmen~ a transcriçãO de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpretada como sendo extensiva à transcrição de textosemrecolhasantoló_ gicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro;.

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, L.DA

Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL

Edição n.!! 152307/5896

Execução técnica: Gráfica Europam, L. da,

Mita-Sintra':"" Mem Martins

Depósito legal n.1! 67460/93

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ÍNDICE

Pág.

Introdução •.•.•..•.•..•••.•••••.•••••..••••••.•••..••..•..•..•.••.•....•..•••••.•.• 9

Os PRIMÓRDIOS DA LITERATURA ROMANA (514-240 a.C.)

~LA.UTO ............................................................................. . lffenaeehmi (Os Gémeos Meneemo) .............................. . Oaptivi (Os Prisioneiros) ••••••••••••••••••• ~ •••••••••••••••••••••••••••• A.ulularia (O Pote do Ouro) ......................................... .. Amphitryon. • ...................................................................... .

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,1 A REPúBLICA ROMANA (24~ a.C.)

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DJlAMA: ROMANO ••••••••••••••••••••.•.•••••••••••••••••••••••••••••••.•••.• - -j Teatro Romano .......................................................... ..

I' Guarda-Roupa •••••••••..•...••••...•••..•••••••.•.••••••••••••••.• ~ ••••.•. : Representação ............................................................. . , A

TERENCIO .................................................................. ~ •••... IAcIelphi (Os Irmãos) ................ _ ................ _ ............... .

17 18 21 23 25

33 34

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,; CÍCERO

. VIDA E OBRA

Marco Túlio Cícero foi o equivalente romano do homem da Renascença. llm;tre orador, estadista, ensaísta, político, advogado e erudito, Cícero foi simultaneamente produtor e produto da época, assim como uma grande voz durante a Época Áurea de Roma. A sua morte ignóbil, um exemplo clássico da repressão da velha aristocra­cia epl. relação a um estranho em ascensão, deixa antever o enorme preço a pagar pelo poder e pela influência.

Cícero nasceu em 106 a.C., em Arpino, naregião da colina volsca, noventa quilómetros a sueste de Roma. O seu pai, um aristocrata rural, ambicionava mais para o filho e mudou-se com a família para ~oma, cerca de 92 a.C. Não olhou a despesas para contratar os melhores mestres para Cícero, que era brilhante em literatura e retórica, direito e filosofia. Infelizmente, mas sem qualquer surpre­sa, a agitação política de Roma entre as facções de Mário e Sila trouxeram o caos à vida de Cícero. O seu mestre, Scalvola, foi assassinado, bem como o seu parente Mário Gratidiano.

Idealista e republicano no seu íntimo, Cícero preferiu a neutra­lidade, mas viu-se obrigado a alinhar com o partido de Sila. Casou com Terência, abastada matrona romana, foi eleito para o quaes­torado em 75 a.C., e cumpriu o seu mandato na Sicília. Após a sua

I brilhante condenação de Gaio Verres, astuto vigarista e demagogo, Cícero passou a aediZe em 69 a.C. e apraetor em 66 a.C. Para dar o salto final até ao consulado, Cícero, estrangeiro por nascimento, necessitava de uma aliança com os mais endinheirados de Roma ..

I Fortaleceu os seus laços com Pompeu, antigo companheiro do exército, e, através de manobras políticas inteligentes e não muito

. escrupulosas, venceu por esmagadora maioria de votos. Cícero cerrou fileiras com os conservadores em defesa da reforma

agrária. Quando descobriu que Catilina chefiava uma conspiração para fomentar as rebeliões, Cícero atacou-o com toda a suá força política. O seu discurso mais famoso, «Contra Catilina», teve como

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II /_

~

A ÉPOCA ÁUREA

resultado a queda da cabala, que Cícero exagerou, a fim de realçar o seu contributo para o estado. No auge do seu triunfo, Cícero, um pouco à semelhança de Winston Church:ill, sentiu-se constrangido ao ver onde o poderia levar a vitória política, pois a corrente .da opinião pública virou-se contra ele. Deixou de ser considerado o homem do momento depois de ClódioPulcro ter organizado uma facção contra ele e Cícero ganhar a reputação de carrasco ao ordenar as mortes imediatas de cinco conspiradores.

Quando Pompeu se afastou da esfera política de Cícero, aliando- . -se a Júlio César e Crasso, tornou-se inevitável a queda de Cícero. No auge da sua carreira, encarregado da execuçã!l de cidadãos romanos sem julgamento, foi banido para além de um raio de quatrocentas milhas de Roma e passou quinze meses no exílio, primeiro em Tessalónica, na Macedónia, e depois em Épiro. Na sua ausência, a mulher foi vítima de perseguição; a sua casa destruída e erigido no local um templo à Liberdade. A sua imagem melhorou em 57 a.C., quando Pompeu o voltou a chamar. No entanto, Cícero não conseguiu evitar o crescente poder do Primeiro Triunvirato e viu os seus princípios comprometidos ao ser obrigado a sancionar a càmpariha de Júlio César, aliado de Pompeu, na Gálla, em 56 a.C.

Durante este período conturbado das questões políticas roma­nas, de 55 a 51 a.C., em que as liberdades da República diminuíam rapidamente, Cícero fez convergir as suas energias para a investi­gação e produziu algum do seu trabalho mais incisivo. Chamado novamente ao exercício de funções em 51 a.C., cumpriu mandato como governador da Cilícia, no sueste da Ásia Menor. Quando eclodiu a guerra civil entre César e Pompeu, em 50 a.C., Cícero, com alguma reserva, escolheu Pompeu, o vencido. Sicofanta involuntá­rio numa época de veneração a César, Cícero era um homem derrotado.

O isolamento afectou bastante a sua vida pessoal. Divorciou-se ao cabo de trinta anos de casamento, discutiu com o irmão, sofreu por causa do seu filho inútil e homónimo e com a morte da sua querida filha, Túlia. Tal como noutras épocas, encontrou consolo no estudo.

Quando César foi assassinado em 44 a.C., Cícero, que não interviera na conspiração, exultou e felicitou os assassinos. Recupe­rado o seu entusiasmo· político, apoiou Bruto e Cássio e dirigiu catorze Filípicas estridentes e mal-avisadas contra António. Sem se dar conta, Cícero era um brinquedo nas mã.os da dupla mais poderosa de Roma. Quando António e Octávio eÍnpreenderam o

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CíCERO

saneamento, Cícero vinha à cabeça da sua lista de vítunas. Em Fórmias, nos arredores de Roma, foi encurralado como um animal e assassinado. A cabeça e a sua mão direita foram cortadas e exibidas publicamente no rostro do Fórum.

ENSAIOS, CARTAS & DISCURSOS

A produção literária de Cícero caracteriza-se pela linguagem enérgica, o estilo formalista, o envolvimento emocional e o patriotis­mo fanático; nos seus discursos finais encontra-se a dedicação a um único assunto, que se aproxima da monomania. Ao longo da sua vida, correspondeu-se com uma série de amigos, colegas e membros da fâmília, fazendo observações de natureza legal e jurídica, ad­moestações respeitantes à moralidade e à conduta adequada e encorajando pessoas iguais a si que passavam por tempos difíceis ..

Para Ápio Pulcro, o censor, começa com a saudação abreviada e não pontuada, típica de uma carta comercial romana:

«M T C S D Apio Pulchro ut spero censorj Marco Túlio Cícero envia saudações a Apio Pulcro [que

ainda éJ, espero, Censor.»

Tendosabido que Ápio fora absolvido de uma acusação de com­portamento ilegal para com o povo romano, Cícero r~jubila: «[. .. ] longe como estavas, abracei-te em pensamento e cheguei a beijar a carta. .. »

Numa amigliveltrocadepalavras com Cícero em Maio de 45 a.C., Lúcio Luceio começa com a frase estereotipada de abertura:

i I

«Si vales bene est ego valeo sicut soleo '" Se estás bem, é bom; estou bem como sempre ... »

\ Passando logo a observações de carácter pessoal sobre o afasta-\,mento de Cícero da vida citadina, Lúcio comenta:

\: «[ ... ] nada pode ser mais refrescante do que essa solidão, !. não só ~esses tempos tristes e lúgubres [isto é, a ditadura de \ César, que deplorava] mas mesmo em época de tranquili­

dade ... »

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,. ,7' A ÉPOCA ÁUREA

Na volta do Gorreio, Cícero revelà a constante inquietação e insatisfação que perturbava a sua vida pública e privada durante os anos de declínio: «Assim, refugio-me no trabalho literário com que ocupo todo o meu tempo - não para obter uma cura duraddura, mas para esquecer um pouco a minha desgraça.»

Nesse' mesmo ano, Cícero fala um pouco mais abertamente da sua dor, comentando numa longa carta a Aulo Mânlio Torquato, respeitável juiz exilado em Atenas:

«Conquanto a afiitação generalizada leve todos a queixa­rem-se da sua dita como pior do que a do próximo, e não haja uma pessoa que não preferisse estar algures no mundo do que onde se encontra, continuo a não ter dúvidas de que, actual­mente, o pior sofrimento para um cidadão honesto é estar em Roma.» '

Cícero encoraj a Torquato a pôr de lado o desespero e o receio, mas não pode negar que Roma está, na verdade, em péssima situação. Como diz Cícero, «A presente crise t .. ] mantém-nos todos sem fôlego, na expectativa». Não tendo quaisquer ilusões sobre a preca­ridade do seu próprio bem.:...estar, conclui que nenhuma situação pode impedir uma pessoa de fazer algum bem. '

Cerca de ano e meio antes do seu assassínio, Cícero escreveu um dos seus mais famosos tratados, Sobre a Velhice, que dedicou a Tito 'Pompónio Ático, também autor e amigo de longa data. Descreve a rigorosa tarefa que se propôs - a composição de uma história de Roma, a revisão dos seus discursos, uma abordagem ao direito romano e o estudo contínuo da literatura grega. Estas tarefas, afirma, «são a minha ginástica intelectual» 'que mantém a mente em forma.

Para aplacar os receios daqueles que temem a insegurança que muitas vezes acompanha o avanço dos tempos, Cíéero declara com vigor: «[ ... ] não me pesa a minha muita idade [ ... ] e não só não me incomoda como me deixa feliz.» Com o espírito prático que lhe é característico, vê a aproximação da morte tanto pelo lado positivo como pelo negativo. Se existe uma vida depois da vida, está ansioso por se juntar «às hordes de almas divinas e deixar este mundo de luta e pecado!». Se, por outro lado, não houver nada para além da vida, «é desejável que um.homem se apagile no momento certo. Pois, CQmo a Natureza traçou o'~ limites de tudo o mais, também traçou os limites da vida.»

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CíCERO

Um ensaio igualmente optimista, o de Cícero Sobre a Amizade, escrito pouco depois de Sobre a Velhice, mantém idêntica posição sobre a vida ap6s a vida. Opondo-se aos cépticos da sua época, Cícero retoma o optimismo dos seus antecessores, que acreditavam que

«[ ... ] ao separarem-se do corpo, fica em aberto [aos mortos] um regresso ao céu, e nessa proporção, como cada alma era virtuosa e justa, o regresso seria fácil e directo.»

Igualmente optimista a respeito da vida na terra, Cícero acredita que as pessoas deviam esforçar-se por encontrar amigos a quem amar, «pois se a boa-vontade e o afecto desapareceram; a vida perde toda a alegria.»

Em contraste com as cartas e ensaios introspectivos de Cícero estão as Filípicas, os seus ousados ataques condenando Ant6nio. Estes foram os documentos que provocaram a ruína de Cícero. Da mesma pena que em tempos escrevera cartas de esperança aos amigos em apuros brota a amargura do desencanto político. Depois de se deter na sua revolta pessoal contra o revés político em Roma, Cícero põe de rastos o status quo:

«É uma. glória ser-se cidadão querido de todos, ser bem tratado pelo estado, ser elogiado, receber atenções, ser ama­do; mas ser temido e objecto de ódio é abominável, detestável,

I uma prova de fraqueza e decadência.» I , I António preparou uma resposta formal a este ataque público tão I aguerrido, feito em 2 de Setembro de 44 a. C., retirando-se para casa i de Cipião até 19 de Setembro, a fim de compor a sua resposta, que I Cícero descreve como sendo «vomitada» em vez de falada. I

I Nada intimidado, Cícero preparou mais treze ataques contra o I homem a quem atribuía os múltiplos males da República moribun­Ida. Nas Segundas Filípicas, acusa António do vício desgraçado de l«beber,jogar, vomitar». Nas Terceiras, assevera a António que todo 1,0 cidadão leal defenderia a destruição de Ant6nio. Nas Quintas IFilípicas descreve Ant6nio como um selvagem belicista - «apaixo­!nado, insultuoso, arrogante, sempre a agarrar, sempre a pilhar, lsempre ébrio.» I Depois' de Cícero descarregar a sua cólera, ficou reduzido à retórica exageradamente patriota que se afastava da situação real ,-o o desmor~nar de um sistema de governo. Envolto em nobres

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" .' A ÉPOCA ÁUREA

sentimentos, Cícero exigiu que o Senado proclamasse um período de acção de graças de cinquenta dias, acontecimento sem precedentes, e em homenagem aos veteranos da guerra civil, pagando «a devida recompensa a todos». Exigiu um monumento «com a mais nobre forma possível» e consolação para as fanullas dos mortos, os «firmes baluartes do estado», e a fim de «enxugar as lágrimas dos seus amos». O comentário final' de Cícero, u,m mero desejo de que «o estado tivesse sido restabelecido», provou, infelizmente, não passar de uma ilusão.

64 'Hiper Aponramêritos'1 - 5

. JÚLIO CÉSAR

De BelIo GalIico (A Guerra da Gália)

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VIRGÍLIO

VIDA E "OBRA

Nascido na pequena aldeia setentrional de Andes, entre Mântua e o rio PÓ, em 15 de Outubro de 70 a.C., Públio Virgílio Maro veio a ser um homem alto e magro, de olhos escuros, de aspecto e compor­tamento. um pouco descuidados,. tímido com os estranhos e nas reuníões públicas. Teve dois irmãos, Silo, que morreu em criança;e Flaco~ que viveu até à virilidade. O pai de Virgílio, laborioso oleiro e criador de gado, casou com a filha do senhorio, trabalhou como apicultor e ínvestiu na indústria da madeira. Homem ambicioso, esforçou-:-se por dar ao filho. uma educação aristocrática que o preparasse para a carreirajurídicá.. Logo cedo Virgílio deu mostras de grandiosidade, mas, não obstante ter alcançado a fama entre os ricos e illfluentes, absorveu o suficiente do ambiente ao ar livre do Norte dà Itália paia se conservar um entusiasta da natureza e preferiu a vida simples no campo ao clamor da vida como celebridade em Roma.

Quando concluiu os seus estudos em Cremona e Milão, foi para Roma por volta de 53 a.C. e estudou direito e retórica na academia de Epídio, onde terá conhecido Octávio (mais tarde Augusto), sete anos mais novo do que ele. Cerca de 48 ou 47 a.C., durante a guerra de César com Pompeu, parece que Virgílio cumpriu o serviço militar, uma experiência que não deixou de o abalar, como refere em Catalepton (Insignificâncias), uma colectânea de poemas menores que por vezes lhe é atribuída.

De Roma, Virgílio foi para Nápoles. em 47 a.C. estudar filosofia com Siro. Como consequência da sua amizade, VirgI1.io ter-se-á provavelmente servido do seu mestre para a personagem de Sileno nas Éclogas. Nesta altura, VirgI1.io aderiu a um círculo de pensado­res epicuristas fora de Nápoles, na Campânia, num retiro conhecido por «O Jardim», sob a direcção de Siro. Após a morte do mestre em 42 a.C., Virgílio herdou a casa dele, a mais apreciada das suas

i resid~ncias, onde viveu com a mãe e o único irmão sobrevivente,

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• I .),. A ÉPOCA ÁUREA

Flaco. É possível que V~gJ.llO, amante da paz, se estivesse a afastar do tumulto que se seguiu ao assassinato de Júlio César, à execução de Cícero e ao miasma de dez anos que precedeu o estabelecimento do Império.

Enquanto VirgIllo viveu em Nápoles, as terras do pai foram con­fiscadas e cedidas aos veteranos da Batalha de Filipos em 42 a.C. O poeta ficou profundamente desanimado com a expulsão do pai da sua propriedade - ainda mais perturbado do que com o banho de sangue que se seguiu ao assassinato ou com as intrigas políticas do período de interregno. Nas suas Éclogas, sentiu-se inspirado a es­crever com graça mordaz sobre o carinho do agricultor pela sua terra. Provavelmente, Virgílio nunca regressou à sua terra natal, viajando arites por grande parte da Península Itálica e Sicília, apesar de se refugiar uns tempos na Gália Cisalpina, entre amigos. Homem calmo e simples, que padecia de uma doença crónica, possivelmente tuberculose, Virgílio desistiu cedo dos seus planos de exercer direito depois de defender apenas um caso em tribunal, e dedicou-se à filosofia e à literatura. Passou a maior parte da sua vida na tranquilidade da Campânia, a província que abrangia Nápoles, Pompeia e I:Ierculano. Além disso, mantinha uma casa na Colina do Esquilino, 'em Roma, que lhe fora oferecida por Mecenas, e dava-se com patrícios, estadistas, homens de letras, incluindo Augusto e Horácio. O seu estilQ foi fortemente influenciado por De Rerum Natura de Lucrécio e pela poesia de Catulo, um dos «novos poetas» que inovou em matéria de epigramas, elegias e epopeias curtas.

Apesar de grande parte da poesia ligeira no Appendix Vergilia­na, incluindo Culex (O Mosquito), Catalepton (Insignificâncias), Aetna (Monte Etna) e Ciris (A Garça), 'ser atribuída ao período jovem de Virgílio, a opinião avalizada sobre a sua identidade vacilou em ambas as direcções durante o séc. xx. Faz sentido a actual base racional da sua rej eição. VirgI1io era um escritor lento e metódico. De acordo com Suetónio, seu biógrafo, ditava os versos todas as manhãs e passava o resto do.dia a reduzi-los à perfeição apurada.Conse­quentemente, não escrevia de forma apressada ou leviana; aos trinta e três anos tinha publicado apenas um volume de versos.

A principal obra de Virgílio foi composta entre 42 e 37 a.C. Um poema pastoral em dez'volumes conhecido de forma diversa por as Bucólicas (Poemas Rurais) ou as Éclogas (Selecções), seguiu o mo-

o delo dos Idílios de Teócrito, um grego siciliano do séc. IV. A tónica de VirgJ.1io é nos ritmos fluentes e num cenário idealizado no Norte de

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VIRGÍLIO

Itália, mas inclui também muitos pormenores reais - em particu­lar, Virgílio preocupou-se com a confiscação política das proprieda­des :r:urais na sua terra natal. Desde o princípio, é claro que Virgílio pretendia que o seu poema fosse lido em voz alta, segundo o costume romano; consta que gostava de o ler aos amigos e colegas de profissão.

 parte mais conhecida, a Écloga 4, contém uma profecia mística sobre uma Época Áurea de paz e boa-vontade, trazida pelo nasci­mento de uma criança divina. Os críticos têm estabelecido ligações concretas entre as personagens fictícias de Virgílio e pessoas de carne e osso, e sugeriram, por exemplo, que o pastor Dáfni;s é um nome alegórico de Júlio César e que o nascimento divino se refere ao filho. de Pólio (a quem é dedicada a obra); especularam também que o mlscimento divino é o de Marco António ou possivelmente de Octávio, amigo de Virgílio que se tornou Augusto, primeiro impera­dor romano. Outros críticos vêem a quarta écloga cOmO uma referên­cia a Cristo.

Durante a fase seguinte da carreira de Virgílio, de 37 a 30 a.C., dedicou o seu tempo a escrever as Geórgicas, um manual técnico e filosófico sobre a agricultura, recheado de divagações encantadoras e poéticas. Em matéria de informação e estilo, VIrgílio baseou-se bastante em textos anteriores, particularmente gregos - Aristóte­les, Teócrito e Hesíodo - e determinados autores romanos - Marco Pórc~o Catão, Marco Terêncio Varrão e Lucrécio. O poema em quatro vohúnes debruça-se sobre as sementeiras, o tratamento dos poma­res e vinhas, a criação de gado e a apicultura, mas realça os valores inerentes da vida romana - em particular a ética do trabalho. Mais

i tarde, os grandes temas da obra literária de Virgílio - o trabalho árduo e a piedade - transformaram-se nos temas essenciais da Eneida 1. Por estes motivos, as Geórgicas são consideradas um" exemplo acabado da poesia romana.

Virgílio é mais conhecido pela sua última obra, a Eneida, uma 'epop~ia que escreveu entre 30 e 19 a.C., em doze volumes de hexãlnetros, segundo o modelo da epopeia de Homero, e dedicado a AugUsto e à sua ilustre descendência. Pensa-se que VirgJ.1io se desviou dos temas rurais para os históricos depois de presenciar o grande triunfo de Júlio César, à espectacular parada de acção de

1 Tradução portuguesa de P. E. A., colecção «Livros de Bolso - Série Grandes Obras;'. (N. doE.)

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~~, A ÉPOCA ÁUREA

graças que assinalou a derrota. de Pompeu no Egipto. Para associar a sua obra à poesia heróica de Homero, VirgIllO escolheu para

, persoriagem central 't;I.m herói troiano, Eneias (filho do rei Príamo e da rainha Hecuba). "A capacidade de Virgílio integrar história, profecia e pormenores estilísticos de muitas fontes resultou numa obra coesa e legível, não obstante ser também um tributo político a Augusto, o cri~dor do Império.

Toda a Roma, em particUlar a faID.llla real, acompanhou o desenrolar da Eneida. Augusto, sua irmã Octávia (mulher de Marco António), e Mecenas, ministro de Augusto, ouviram VrrgI1io ler alto dos rascunhos. Enquanto burilava a obra durante os seus últimos anos, o poeta teve uma vida confortável, livre de preocupações,' dedicando-se à investigação histórica e a disfrutar dos luxos que o pai lhe deixara e da protecção que o imperador lhe porporcionara. Infelizmente, porém, em Megara, na primeira etapa de uma missão de três anos de pesquisa de factos à Grécia e Ásia, em 21 de Setembro de 19 a.C., Virgílio adoeceu com febre. Augusto acompanhou o seu velho amigo até Brundísio, onde'morreuantes de a sua epopeia poder ser revista e aperfeiçoada a seu contento.

Para evitar que fosse lida na sua forma inacabada, o poeta deixou instruções no seu testamento para que a Eneida fosse destruída. Porém, Augusto interveio e nomeou dois poetas amigos de Virgílio, Vário Rufo e Plócio Tuca, para prepararem o manuscrito para publi­cação, e recomendou-lhes que não acrescentassem' nada. A obra ficou concluída cerca do final de 18 a. C. Teve aceitação imediata em todo o mundo'mediterrânico como a definitiva epopeia romana. No seu leito de morte, Virgílio imortalizou-se num breve epitáfio muito adequado, que os amigos colocaram sobre a sua sepultUra próximo da 'casa nos' arredores de Nápoles; acaba com o verso «Cantei os pastos, os campos e os governantes», uma s'Q,mula enternecedora das três grandes obras de VrrgIllO, que relatam a história de Roma - de pastores a agricultores e de agricultores a soldados.

Encontramos a influência de VirgIllO CQ:mo um dos maiores autores épicos da literatura mundial nos grandes poetas - Dante, Chaucer, Spenser, Milton; Dryden, Tannyson e Eliot. Enquanto que grande parte da literatura antiga foi eliminada com a difusão do cristianismo pelo m~do civilizado, Virgílio, conhecido como «pagão virtuoso», conservou a sua superioridade, em'parte devido à previ­são messiâniCa de um nascimento milagroso. A Eneida serviu de compêndio nas escolas europeias e durante uns tempos foi conside­rada uma obra mágica, capaz de prever o futuro.

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VffiGÍLIO

o apelido de Virgílio, que evoluiu do original «Vergilius», pode ter sido alterado intencionalmente para transmitir a palavra virga, «a varinha do mágico», ou fazer eco da palavra virgo, a tradução romana da sua alcunha grega, «Parthenias», ou «donzela», referin­do-se à sua natp.reza tímida e modesta. Ironicamente, a palavra veio a reverenciar Virgílio como o «Homero romano, não obstante a sua:rejeição dos modos citadinos e a adulação pública de Roma. Apesar de Virgílio ser famoso nos últimos vinte anos da sua vida, preferiu a sua casa suburbana e o pequeno círculo de amigos 'íntW,lOS, em p{ITticular Mecenas, Horácio e Augusto. A sua voz tímida, que vacilava com <;> acanhamento da conversa, saiu em alto e bom som ao revelar, em verso, ao mundo civilizado, a ilustre história de Roma.

VIRGÍLIO E A ENEIDA

ÀEneida não éuma epopeia pessoal sobre Eneias; pelo contrário, é uma epopeia nacional, uma glorificação e exaltação de Roma e'uma saga sobre, o destino do povo romano. o poema 'não se debruça propriamente s9bre as aventuras do seu herói, mas sobre o seu papel na fundação do estado romano e no modo como Eneias representa as qualidades e atributos pessoais romanos mais importantes, em particular ,o sentido romano do dever e da responsabilidade.

Como pensador, Virgílio tem um conceito de Roma, uma cidade que considera majestosa e' sagrada, fadada pelo destino e pela Providência para governar o mundo. Para Virgílio, todos os assun­tos humanos são controlados por forças sobre-humanas e, assim, os deuses devem ter predestinado Roma a alcançar a grandeza de que ele fala. Viu uma nova Época Áurea da vida humana a sair durante o reinado de Augusto, uma Época Áurea que louvara já na sua quarta écloga «messiânica». Consequentemente, aEneida destina­-se a exaltar Roma, a mostrar a força representada pelo elemento divii:lO na sua fundação, e, a enaltecer as suas virtudes e as suas melhores características expressas em Eneias, um herói épico que vem, represent~ o arquétipo do Romano.

O público romano aceitou rapidamente a Eneida como a sua epopeia nacional, não obstante determinadas falhas menores devi­do 8'0 estado inacabado do poema na altura da morte de Virgílio.

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-.. A ÉPOCA ÁUREA .. '" Ao longo dos restantes séculos do Império, os leitores estudaram,

admiraram e imitaram a Eneida; serviu de manual em todas as escolas. Mais tarde, escritores e críticos romanos influentes, a partir de Horácio e Petrónio, consideraram Virgl1io o maior poeta danação.

Com a difusão do cristianismo pelo mundo civilizado, a maior parte da literatura pagã grega e romana foi posta de lado, admirada apenas por alguns antiquários e inconformistas religiosos. Ao bra de Virgl1io, porém, conservou a sua posição de destaque. Tal deveu-se em parte ao facto de, conforme o que foi anteriormente referido, Virgl1io prever na sua quarta écloga que nasceria uma criança, durante cuja vida a humanidade viveria uma nova Época Áurea. Parece agora provável que Vrrgr1io quisesse homenagear César Augusto, mas muito cristão da época leu-a como uma profecia do nascimento de Cristo. No seu estudo das obras de Virgílio, os

. .,primeiros cristãos descobriram algumas semelhanças entre esta /' ideia e a do profeta hebraico Isaías. Decidiram que Virgílio era um

dos poucos pagãos virtuosos: que fora recompensado com uma antevisão da época messiânica'. . I

Desde o momento em que foram alcançadas tais conclusões, a poesia de Virgílio ganhou um ar de santidade religiosa. As suas obras foram preservadas das invasões bárbaras que levaram à queda do Império; foram reverenciadas quase no mesmo pé de igualdade que a Bíblia e outros textos cristãos.

Na Idade Média, a lenda de Virgílio atingiu proporções fantás­ticas. Entre os homens de letras foi enaltecido como o maior dos poetas e as suas obras foram os modelos mais importantes para novos autores. Por exemplo, Dante, ria suaDivina Comédia, elogiou

. Virgl1io como mestre onde fora buscar toda a sua técnica e arte e, na epopeia de Dante, VIrgílio serve de guia ao poeta através do Inferno e do Purgatório.

No Renascimento foram redes cobertas e estudadas as obras de outros autores gregos e romanos, mas a Eneida manteve-se em destaque. Chaucer considerou Virgl1io como o mestre perfeito, um escritor que todos os poetas deveriam respeitar e tentar igualar.

Nos anos que se seguiram, a Eneida continuou a manter um lugar central na literatura europeia. A epopeia de Virgílio é quase um apelo universal; todas as épocas redes cobriram os conhecimen­tos de Virgl1io sobre a natureza do homem e a sua relação com o uIDverso.

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SÉNECA

VIDA E OBRA

. Escritor prolífero, filósofo e político consumado, Lúeio A !Séneca, filho de Lúcio Aneu Séneca Sénior, nasceu em Corduua I (actual Córdoba), Espanha, cerca de 4 a.C., numa família da classe I alta, com meios e influência. Os laços familiares ficaram célebres IPor uma série de razões: o pai foi um retórico muito conhecido e a 'mãe, Hélvia, um modelo de virtudes e educação; o irmão mais velho, IN ovato (ou Gálio, como se veio mais tarde a chamar), é lembrado por I presidir ao processo-crime de São Paulo; e o irmão mais novo, MeIa, ifoi o pai do brilhante mas malfadado poeta Lucano. Toda a sua I família foi, de uma maneira ou de outra; vítima das maquinações dos I corruptos imperadores de Roma. I . Tal como as outras crianças da classe equestre, Séneca veioípara tRoma na infância para receber educação jurídica e militar. Era

'I previsível a sua ascenção à categoria de senador e quaestor, devido .à facilidade com que falava e discutia em público. Consta que ICalígula, que designou os discursos de Séneca de «areia sem calcá­jrio», terá condenado Séneca à morte por inveja da sua eloquência no Isenado; felizmente, Calígula reconsiderou, ao que se supõe, por ISéneca ter uma saúde debilitada. I No entanto, as intrigas na corrupta família de Cláudio e Calígula Iresultaram no desterro de Séneca para a Córsega por alegado I adultério com Júlia Livila, irmã de Calígula. Durante o exílio de oito Ilanos, Séneca escreveu a sua obra lamentosa, Consolação, e enviou-a à mãe, Hélvia. Em 49 d.C., Agripina, nova imperatriz de Cláudio,

Imandou regressar Séneca para que pudesse servir de tutor e conse­lheiro do seu filho de 11 anos, Domício, mais tarde conhecido como I Nero. . . I Foi durante este período que surgiram as perplexas incongruên­,eias entre as crenças e as práticas de Séneca, provavelmente em

lvirtude das tensões, Invejas e lutas de poder existirem na família ,real. Através de cuidadosas manobras financeiras, Séneca tirou partido da sua época e tornou-se um dos homens mais ri~os do

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A ÉPOCA. ARGÊNTEA

mundo mediterrânico, e governou praticamente o Império Romano através da sua influência sobre.N ero. ,

Quando Nero foi coroado imperador após a morte de Cláudio, Séneca escreveu <<A Aboborização», uma sátira irreverente baseada no endeusamento de anteriores imperadores. Séneca e Sexto Afrâ­nio Burro, chefe da Guarda Pretoriana, aliaram-se para controlar, -Nero, mas Agripina congeminou esquemas para governar através do filho facilmente iniluenciável. Devido ao longo conflito entre Nero e Agripina, estas duas forças cataclísmicas e imprudentes, Séneca escreveu uma carta ao senado ajustificar o assassínio de Agripina por Nero.

No entanto', após a morte de Burro, a influência política de Séneca começou a desmoronar-se quando Nero se socorreu de Popeia, sua segunda mulher, para o orientar. Séneca apercebeu-se da precaridadeda sua posição e, antes de ser vítima da ~vareza e crueldade de Nero, retirou-se para o campo com a bênção do imperador. Três anos depois, esteve implicado na conspiração abor­tada de Gaio Calpúrnio Pisão e ordenaram-lhe que se matasse. Em 65 d.C., ele e a mulher, Paulina, cortaram as veias e aguardaram a morte. Os escravos conseguiram salvar Paulina, mas Séneca, que ditou um longo tratado sobre a moralidade no seu leito de morte, teve uma prolongada agonia, que acabou com a asfixia no banho.

Não obstante as estratégias políticas comprometedoras, Séneca foi, sem dúvida, o mais brilhante pensador da sua época. A sua enorme sabedoria e o seu estilo sóbrio e epigramático serviram de modelo às gerações posteriores. A sua filosofia baseou-se no estoi­cismo, apesar de os padres da Igreja inicial desconfiarem, incorrec­tamente, que ele era um cristão e confidente de São Paulo, que tentara canonizar.

Das obras que nos chegaram, as mais memoráveis incluem doze diálogos sobre o preceito moral, três livros sobre a clemência, vinte de correspondência e sete sobre fisica, intitulados Questões Naturais. As suas nove tragédias - destinadas arecitação dramática e não ao palco - influenciaram bastante os dramaturgos franceses, italianos e ingleses do séc. XVI. A «tragédia sangrenta>, espanhola teve o seu começo na espectacularidade bombástica das peças de Séneca. Influen­ciaram também Shakespeare, Webster, Abelardo e Roger Bacon.

A sua maior força residiu no renascer da filosofia na literatura romana e na humanização e vitalização do estoicismo. Séneca abraçou uma crença no humanismo e nos laços fraternais do homem. Oondenavaas competições de gladiadores, a escravatura e a crueldade por que ficou conhecida a sua época.

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SÉNECA

ENSAIOS MORAIS

Os comentários iniciais de Séneca abrangem um tem~ que há muito atormentava o pensamento humano - por que sofrem os bons. Séneca sustenta que o mundo «não resiste se não houver alguém a guardá-lo ... ". Uma divindade, a que Séneca chama Provi­dência, «não transforma uma criança mimada num homem bom; põe-no à prova, endurece-o e molda-o em seu próprio proveito>,. Tal como um progenitor atento, a Providência ultrapassa as trivialida­des . do quotidiano, procurando um momento de êxito retumbante, que chega quando uma pessoa é capaz de <<triunfar sobre as calami­dades e os terrores da vida mortal,>.

Num tratado posterior dedicado ao Imperador Nero, Séneca refere a misericórdia como meio de instruir o jovem governante no <~maior de todos os prazeres". O seu argumento é forte e apelante:

«[ ... ] tal como os doentes recorrem à medicina, que é rejeitada pelos saudáveis, o mesmo sucede com a misericórdia: apesar de invocada por aqueles que merecem o castigo, no entanto até os inocentes a acalentam.»

A crueldade, diz ele, é inapropriada no comportamento de um monarca. Para se mostrar digno de governar, um, monarca sensato realça o seu poder de conceder a vida:

«Salvar a vida é o privilégio característico de uma posição elevada, que só tem direito a enorme admiração quando, por sorte, possui o mesmo poder que os deuses, em virtude de cuja benemerência todos nós, os maus e também os bons, somos conduzidos à luz.»

A misericórdia, conclui Séneca, está acima da lei pelo facto de introduzir justiça e beneficência nas questões cívicas. Tal como o'

, chefe do viveiro, o governante misericordioso trata todas as~árvores no pomar, as fr~cas assnn como as fortes, para que todas possam dar boxr' frutos.

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A ÉPOCA ARGÊNTEA

TRAGÉDIAS

. As tragédias de Séneca, que são a antítese dos seus ensaios cordatos e humanos, são famosas pela sua tónica na vingança, na violência e na calamidade. Escritas entre 49 e 65 d.C., as peças, na sua maioria baseadas em obras com títulos semelhantes de Eurípe­des, não foram representadas em vida. do dramaturgo. Só com o aparecimento do teatro renascentista é que foram apresentadas em palco.

O Hércules Furioso, baseada em Herácles, de Eurípedes, segue um enredo previsível. Hércules, regressando a Tebas para salvar a esposa, Megara, os filhos e o pai, Anfitrião, do tirano Lico, assassina o usurpador, mas é acometido de loucura e mata a mulher e os filhos. Vem a si, apercebe-se do seu crime e pensa suicidar-se. Convencem­-no a refugiar-se em Atenas, na corte de Teseu.

Séneca dá colorido à tragédia através de longos discursos melo­dramáticos, como a admissão de Hércules do sel). procedimento errado: -

«Apresso-me a purificar a terra de outros iguais a mim. Agora, há muito tempo que paira diante dos meus olhos aquela forma monstruosa do pecado -. tão ímpio, selvagem, cruel e louco. Vem, então, minha mão, tentar esta tarefa, bem maior do que a anterior.»

Confortado pelo seu amigo, Teseu, Hércules aceita redimir-se da sua culpa num local onde.a clemência promove a misericórdia.

Em Mulheres Troianas, Séneca, numa imitação do tema grego preferido, apresenta os múltiplos sofrimentos das nobres mulheres de Tróia, em particular Polixena, Hécuba e Andrómaca. Esta, ajoelhada diante de Ulisses, suplica uma comutação da condenação do filho e desperta no firme líder grego recordações da pátria:

«Assim possas ver de novo a tua fiel esposa; assim possa Laertes viver para te saudar de novo; assim possa o teu filho contemplar o teu rosto e [ ... ] suplantar a bravura do pai e os anos do velho Laertes. Tem pena da minha aflição: o único consolo que me resta na minha desgraça é o meu filho.»

Andrómaca apercebe-se de que Ulisses tenciona matar o seu filho, herdeiro ao trono de Tróia e uma ameaça ao poderio grego.

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SÉNECA

Manda levar o rapaz, murmurando que a dor de Andrómaca é infinita e que a armada está à espera enquanto çliE;i~t~m clemência.

Séneca considerou Fedra e Medeia as duas peças de minôfêXifô: A sua Medeia, divergindo das versões gregas, condói-se do herói, J asão, cuja mulher perversa mata os filhos; Séneca realça a magia diabólica da personagem principal. No V Acto, quando Jasão se prepara para matar Medeia, ela grita vitoriosa:

«Agora, agora, recuperei o meu estado régio, meu senhor;meu irmão! L .. ] E pela magia desta hora sou novamente donzela. Ó forças celestes, finalmente apaziguadas! Ó hora de festa! Ó dia nupCial! Oh, não! Cometido está o pecado, mas não a recompensa.»

o raciocínio· de Medeia é a prova arrepiante da sua aberração mental, que faz com que a sua liberdade sem limites execute actos vis.

Também em Fedra Séneca se demora na psicologia de uma mulher infeliz. Os seus discursos rígidos e informais deixap1 trans­parecer a emoção de versões anteriores, como se constata na sua confissão de uma paixão indescritível pelo enteado:

«Plenamente consciente, a minha alma percorre o seu cami­nho descendente, muitas vezes olhando para trás, procuran­do ainda o conselho sensato, sem qualquer fruto. Assim, quando o marinheiro se fizer com o navio às vagas alterosas, o seu esforço será em vão até que, completamente vencido, o navio é arrastado na maré precipitada.» .

Quando Fedra vê o cadáver mutilado de Hipólito, tem também uma atitude pouco asisada, jurando «enterrar a espada vingadora no meu peito pecador» e seguir H;ipólito «por lagos tártaros, pelo Estige, por torrentes de fogo líquido».

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MARCIAL ~

VIDA E OBRA

Marco Valério Marcial, o cosmopolita malicioso e descarado, 'I apesar de ter uma origem humilde e rural, causou alguma sensação j em Roma, possivelmente em virtude de ter sido patrocinado por três 'I gigantes literários, Lucano, Séneca e Quintiliano. Com a sua ajuda, , ganhou a fama de produtor prolífico de poesia epigramática, os '[ versos curtos e picantes que foram inscritos em monumentos, ! túmulos, presentes e oferendas aos templos. Foi Marcial quem \ elevou esta forma de expressão literária ao nível da arte; criou I versos aparentemente singelos que colhiam de surpresa os seus .Ileitores quando o poema culminava numa observaç:ão sarcástica iniprevista. , Filho de Valério Frontão e Flácila, Marcial, cujo nome vem de \Março (o mês em que nasceu), é natural de Bílbilis, Espanha, cidade imineira famosa pelas suas armaduras, cerca de cento e cinquenta 1 quilómetros a Oeste de Barcelona. Ali recebeu educação literária, e :imigrou para Roma em 64 d.C., para exercer direito. 1 . Pouco se sa~e da sua existência ~~ial. Desdenhando dos tribu­:jnrus,' levou a VIda pobre do poeta tipIcamente esfomeado, numas , águas-furtadas, no terceiro andar de uma casa pouco segura no IQuirinal. Mais tarde, adquiriu uma propriedade próximo de N 0-

jmento, vinte e dois quilómetros a Norte de Roma, possivelmente Idoação da viúva de Lucano ou de Séneca, também espanhol. AEesar ide Marcial possuir escravos, vivia frugalmente no seu pedaço de rerra estéril, que ele descreve como suficientemente pequeno para se ~condei:' sob uma asa de grilo. I ! Marcial é acusado de servilismo e amoralidade pelo facto de moldar as suas opiniões e os seus actos às conveniências do momento b bajular quem quer que estivesse no poder, em particular Domicia­ho, muito embora semelhante comportamento fosse comum em kscritores que vivessem sob protecç~Marcial parece ter despreza­do o trabalho, pr~ferindo viver à sombra de pessoas' abastadas e

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influentes, alimentando-se nosjantares e, tal como um comediante, insinuando-se através de réplicas iriteligentes e observações espi­rituosas. Coberto de andrajos, mas orgulhoso, nunca hesitou em se comparar aos melhores poetas de Roma e em se gabar de que os seus poemas iniciais, que não nos chegaram, eram iguais aos de Lucano e Catulo.

Sob o imperador Tito, Marcial alcÇl.nçou os títulos honorários de tribuno militar, cavaleiro e «pai de três filhos», apesar de ter sido um solteirão. Nem mesmo estes êxitos discretos conseguiram afastar a sua desilusão com a vida citadina, em particular quando uma mudança na estrutura do poder fez com que o seu elogio de Domi­ciano fosse impopular. A mudança em Marcial, que ele afirma ter encanecido a sua farta cabeleira preta, levou-o a regressar a Espanha. Em 98 d.C., após trinta e cinco anos em Roma, voltou a Bílbilis, com a ajuda de Plínio, o Novo, que lhe pagou a viagem. Na sua pequena propriedade no campo, viveu com l\1arcela, a protecto­ra espanhola com quem terá casado pouco antes de morrer.

Entre as obras de Marcial incluem-se Liber Spectaculorum (O Livro dos Espectáculos), uma colectânea de trinta e três poemas breves publicada em 80 d.C., comemorando a inauguração do Anfiteatro Flaviano, agora conhecido· por Coliseu. Os dois livros de poemas que se seguiram, Xenia (Oferendas dos Convidq,dos) .e Apophoreta (Favores das Festas), publicados em 84-85 d.C., contêm um total de trezentos e cinquenta distichs, ou copIas, que acompa­nham as oferendas das Saturnálias, o festival das colheitas, come­moràdo de 17 a 23 de Dezembro.

A última, e de longe a mais importante das publicações de Marcial, os seus Epigrammata (Epigramas), que surgiram de 86 a 102 d.C. em doze volumes, contêm 1172 versos curtos e incisivos, tendo os últimos sido enviados para Roma do seu retiro em Espanha. Marcial afirma, a respeito do seu espírito notável: «As minhas páginas sabem à vidà.humana.» Na verdade, a amplitude dos seus temas abrange as personagens mais baixas e mais dignas de Roma, desde mendigos a nobres, profissionais pomposos a escravos, e caçadores de fortunas a prostitutas, que ele descreve objectivamen­te, com todo o rigor.

Hábil mestre da palavra, Marcial chega aos nossos dias em virtude da fluência do seu frasear. Os seus versos despreocupados, às vezes com não mais de doze a quinze palavras, criticam acerba­mente os nobres e intelectuais, os humildes e a escória da sociedade. Uma das vítimas da sua língua viperina é Estácio, poetà rival cujos

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MARCIAL

poernas épicos tão propalados enfastiaram Marcial. Apesar de justamente acusado de lascívia e obscenidades, que estão presen.tes em apenas um décimo da sua obra, Marcial suplanta outros autores satíricos no seu desprezo pela hipocrisia e na sua liberalidade e carinho para com os amigos.

A perícia de Marcial no uso conciso e gracioso das palavras requer uma paciência e um dom natural para a expressão. Com o estilo certo ou o mot jus te cáustico, consegue falsas humilhações, jogos de palavras, comentários enérgicos e gargalhadas sonoras e grosseiras com cada inscrição. Compôs em várias veias; no entanto, os s,eus versos satíricos influenciaram autores posteriores,. em particular Juvenal e epigramatistas mais recentes, como Oscar Wilde, Ogden Nash e Dorothy Parker.

Dois factos indicam que Marcial foi um poeta laborioso, apesar de ganhar uma miséria com os seus livros. Parece que foi o primeiro poeta do Ocidente a publicar as suas obras em volumes encader­nados em vez dos rolos de pergaminho mais tradicionais. Ornamen­tou também os seus esforços criativos com publicidade, incluindo o preço, o tipo de encadernação e a loja onde podiam ser adquiridos.

LIBER SPECTACULORUM (O LIVRO DOS ESPECTÁCULOS)

A visão oportuna que Marcial tem do Coliseu, uma das sete maravilhas do mundo, é um presente raro para os tempos modernos - uma breve panorâmica das cerimónias de inauguração:

«Não deixem a bárbara Mênfis falar das maravilhas das suas Pirâmid~s, nem os árduos Assírios gabar a sua Babilónia; não deixem os compassivos Jónios ser despojados da fama de Trívia; não deixem os Cários exaltar aos céus, com infinitos louvores, o Mausoléu firmado no vazio. Todo o trabalho se curva perante o Anfiteatro de César: uma obra, e não todas, deverá a Fama cantar.»

As suas vinhetas de espectadores amontoados, atacantes muti­lados, animais traiçoeiros e areia ensanguentada pormenorizam a selvajaria por que o império ficou famoso. No verso XIV, uma porca

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prenhe tomba e da sua ferida fatal saem porquinhos vivos. Agradam igualmente à multidão as simulações de combates no mar e os esquadrões de ninfas nadando em uníssono.

* EPIGRAMMATA (EPIGRAMAS)

Marcial inicia o seu primeiro volume de epigramas com uma advertência ao leitor susceptível ou demasiado exigente:

«[. .. ] se houver alguém tão pretensiosamente hipócrita a ponto de aceitar que lhe falem em latim simples, que se contente com a epístola introdutória, ou melhor , com o título.»

Em estilo romano grandioso, Marcial começa com uma afirma­ção excessivamente confiante, a de que é «conhecido em todo· o mundo pelos seus livrinhos de espirituosos epigramas». O comentá­rio seguinte, igualmente egoísta, sugere que o tamanho e o estilo do livro são perfeitos para os viajantes, que podem encontrar exempla­res no quiosque de Segundo, «por detrás da entrada para o Templo da paz e o Forum de Palas». .

Marcial combina os versos, misturando sátira com humor, mor­dacidade com crítica social. A uma vítima, oferece quatro versos de ridicularização:

«Se bem me lembro, Élia, tinhas quatro dentes: com um ataque de tosse, saltaram dois, e com outro mais dois. Agora podes tossir em paz: um terceiro ataque já não terá nada para libertar.»

Noutro, ataca Milão, cuja mulher o engana durante as suas viagens:

, «Milão não está em casa: Milão foi-se embora, e

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MARCIAL

Os seus campos estão abandonados; No entanto, a sua mulher não é menos fértil. Já que a sua terra é estéril e a sua mulher fértil, Então direi: À terra dele falta um cultivador, Mas à da mulher não.»

Para outros, alguns versos são suficientes:

«Aquele que acha que Acerra cheira Ao vinho da véspera, está errado. Acerra bebe sempre até de manhã.

Diaulo tem sido médico, Mas agora é cangalheiro. À sua boa maneira eficaz, Começa por meter os doentes na cama.

Filénide sempre chora com.um olho Perguntais-vos, Como realiza semelhante proeza? Só tem um olho.»

. Sejam longos, sejam breves, os epigramas de Marcial avançam rapidamente para a essência da questão, guardando para o fim o golpe de misericórdia. De vez em quando, recorda às tias escanda­lizadas, rapazes e virgens que os seus poemas não se destinam às sabichonas nem aos de coração mole.

Esporadicamente, Marcial surpreende o leitor fortuito, introdu-

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-: zindo uma lírica melancólica ou um poema bucólico agradável no . meio dos epigramas mais mordazes. Um poema que reflecte a

., influência de H?rácio é o N.!! 58, no IH Volume, uma pequena obra t enaltecendo a VIda de campo: "

«Nem tão pouco vem o visitante do campo de mãos vazias: Traz puro mel no favo E uma pirâmide de queijo do bosque de Sassina; Que se dá aos arganazes sonolentos; Esta é a progenitura balinte de uma mãe desnaturada; Outra, capões privados do ~or. E as robustas filhas dos agricultores honestos oferecem Num cesto de verga os presentes das mães.»

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A ÉPOCA ARGÊN1EA

Para Marcial, enojado pela ostentação insalubre de Roma, é preferível a generosidade da gente do campo às mesas pródigas das matronas da sociedade. Até os escravos são bem alimentados. A profusão de «couves, ovos, galinhas, maçãs, queijo» leva-o a pergun­tar: «Deveríamos chamar a isto uma quinta ou. uma casa citadina longe da cidade?»

Marcial dá-nos uma breve visão do seu lado terno numa despe­didajunto à sepultura da pequena Erotion, uma menina de seis anos

. que enfrenta as «magníficas manmôulas do Cão do Tártaro». La­menta que ela não passasse o «sexto Inverno frio» e refere que falava com um encantador murmúrio. O exterior carrancudo do poeta bon vivant oculta uma simpatia por crianças, conforme o demonstra a sua intervenção no funeral dela:

«E não deixes duros torrões sobre os seus ossos tenros, Nem sejas má: para ela, ó Terra: Ela não era assim para contigo!»

No volume X, Marcial condensa para os amigos os seus conselhos sobre a maneira de aproveitar a vida ao máximo:

«São estas as cilisas que tornam a vida melhor, mais feliz, mais agradável: dinheiro não ganho, mas. herdado; uma quinta produtiva, uma lareira sempre aquecida por um bom fogo; nunca uma acção em tribunal, raramente exercer acti­vidade; paz de espírito; força interior, um corpo são; prudência e honestidade, amigos iguais a si próprio; prazeres informais, uma mesa simples; uma noite não embrutecida, mas livre de preocupações; uma cama não puritana, nas decente; sono que faz p.assar depressa a noite; o desejo de se ser o que se é e de não exigir nada mais; nem temer nem desejar a morte.» .

Os versos captani. a sua despreocupação; no entanto, não há dúvida de que observou bastante o tumulto e a tensão da cidade, a ponto de lhe apetecer voltar aos ritmos lentos da vida no campo. A Juvenal, seu protegido, Marcial expressa o seu contentamento com Bílbilis, onde às vezes dorme até às nove para se libertar do cansaço que Roma lhe causou: .

«Talvez, meu Juvenal, os teus pés passeiem Por alguma ruidosa rua de Roma, [. .. ]

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. Enquanto eu, ao cabo de muitos anos de Roma, Regressei ao meu lar es·panhol. Bílbilis, rica em aço e ouro, Faz ,de mim um camponês consagrado.»

Ao fim de três anos, conclui o seu último volume de epigramas em ,102 d.C. O livro, rico em sugestões de alimentos e culinária, aponta para a:profusão de tentadores manjares que uma despensa rural está apta a armazenar. I . PlíIiio,. o Novo, elogia Marcial em 104 d. C., referindo que ele era talentoso, enérgico e subtil, misturando a sátira com a candura. iA análise ·do próprio Marcial reflecte uma atitude semelhante. No volume V, xiü, compara-se a Calístrato, um homem rico'cujo ~<telhado está assente em cem colunas». Manifestamente, o poeta kfirma«Sempre fui pobre», mas a sua notoriedade é recompensa

. ku:ficiente. Como caracteriza Marcial a sua carreira, «Sou ampla­inente lido, e os meus admiradores dizem a meu respeito, 'Ei-lo'» .. I

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TÁCITO

VIDA E OBRA

Julgado pelos críticos como o mais ilustre historiador de Roma, Públio Cornélio Tácito, que Thomas Jefferson venerou como o «primeiro autor no mundo sem uma única excepção», terá nascido cerca de 55 d.C. na GáliaN arbonense, perto da actual N arbonne, em França, apesar de não existirem muitas provas que confirmem a data ou o local. São bastantes as conjecturas sobre os pormenores da sua vida, jucluindo o seu praenomen (o primeiro dos três nomes habituais de um romano), que Apolinário indica como Gaio.

Afamília de Tácito pertencia à hierarquia militar, e o pai terá sido o Cornélio Tácito que desempenhou as funções de governador da Gália belga. Tácito transformou-se num homem decente e

. temente aos deuses e um fiel seguidor do republicanismo e da aristócracia. Em 78 d.C., casou com a filha de Gneu Júlio Agrícola, o gen~ral mais competente de Domiciano, e contou com a protecção de três imperadores, Vespasiano, Tito e Domiciano, apesar de vir a desprezar a opressão que Domiciano exercia sobre Roma. .

Tácito recebeu a educação romana tradicional em retórica e iniciou uma brilhante carreira jurídica. Conhecido pela sua retórica forte e incisiva, criou considerável fama como orador nos tribunais. Em 88 d.C., Tácito prestou serviço como praetor, oujuiz, e terá sido promovido a praetor provincial, pois ele e a rimlher estavam ausen­tes de Roma na ocasião da morte do sogro dele. Em 79 d.C., Tácito

I foi nomeado cônsul, sucedendo a Virgínio Rufo, que elogiou num discurso memorável. Amigo chegado de Plínio,o Novo, cujas cartas descrevem em pormenor algurilas das suas proezas, Tácito foi nomeado governador da Ásia, um sinal de honra para um membro da hierarquia senatorial.

O primeiro manuscrito de Tácito, o Diálogo dos Oradores, foi. composto durante o domínio de Tito (79-81 d.C.), mas terá sido publicado por volta de 105 d.C. Escrito em estilo clássico, o debate centra-se no declínio da eloquência. Tácito defende que o desenvol-

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A ÉPOCA ARGÊNTEA

vimento da oratória depende da liberdade de palavra, que só pode prosperar numa envolvente republicana (em virtude da aversão de' Tácito aos imperadores, Napoleã.o Bonaparte, um dos seus mais notáveis depreciadores, apelidou-o de «sensacionalista»).

Durante os anos de terror do domínio de Domiciano, Tácito nã.o publicou nada, mas; no começo de 98 d. C., concluiu as obrasAgricola e Germania. A primeira, uma biografia do sogro, que Tácito admi­rava e reverenciava, é genericamente aceite como a melhor biografia em latim. Escrita em prosa elegante e ritmada, contrasta com as obras mais pesadas de Tácito, o que reflecte a influência de Cícero. Agricola caracteriza-se também por uma longa divagação sobre a história da Bretanha, área que Tácito afirma que Agrícola explorou e pacificou.

A segunda obra, Germania, um tratado em duas partes sobre .o estilo de vida e os costumes germânicos, aborda um aspect.o de enorme interesse para.os Romanos. A primeira parte, Volumes 1-27, trata d.os German.os em geral, enquanto que a segunda parte, Volumes 28-45, se debruça sobre as tribos individualmente. Como Germania não conseguiu integrar informações actualizadas, os críticos espe­cularam que Tácitd'pretendia que a sua obra fosse um comentário sobre .os bárbaros amantes da liberdade, em contraste com os Romanos cínicos e corruptos da sua época.

As Hist6rias e os Anais, que c.onstituem os seus principais con­tributos para a história universal, são obras sérias e rigorosas e c.oncentram-se na causa e efeito e na natureza da autocracia. As Hist6rias, uma obra em catorze volumes que descreve a época de 68 a 96 d.C., desde a morte de N er.o até à de Domiciano, contém informações sustentadas pelas cartas de Plínio, o Novo. asAnais, que vão desde a morte de Augusto até a.os factos ocorridos em 116 d.C., sugerem que o historiador possa ter morrido em 117 d.C., deixando inacabados os seus planos para um estudo profundo da era de Augusto e dos reinos de Nerva e Trajano.

Muito embora Tácito desenvolvesse uma ~tipatia pelos impera­dores flavianos durante o domínio de Domiciano, ,e realçasse as fraquezas do sistema imperial, é impecável a sua credibilidade. Os seus longos comentários sobre tirania, injustiça e devassidão vie­ram influenciar o pensamento das gerações seguintes sobre a Roma imperial. Em contraste com a sua «nobreza selvagem» idealizada em Germania, o tom duro com que Tácito caracteriza o cidadão roman.o . do séc. I não deixa dúvidas de que o' historiador sentiu a morte iminente de uma civilização nobre. .,.

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TÁCITO

ANAIS

Na sua introdução aos Anais, Tácito apresenta uma breve pa­norâmica de Roma - da monarquia, instituída em 753 a.C., até ao começo do Império em 31 d.C. Propõe-se descrever a «maré alta do sic.ofaP.tismo» 'c.om .os quatr.o sucessores de Augusto - Tibério, Gaio (normalmente menci.onad.o como Calígula), Cláudio e Nero. Para a geração mais nova, aqueles que nasceram após a Batalha do Áccio, afirma que Roma se assemelhava pouco à grandeza inicial. Em virtude da dizimação da guerra civil,

. «[ ... ] na verdade, poucos foram os que ficaram que tivessem visto a República. a mundo estava mudado, e não restavam vestígios do melhor carácter romano. A qualidade era um credo sem valor, e todos estavam postos no mandato do soberano. [. .. ] Desde que Augusto se mantivesse no poder, estava tudo bem; no entanto, a sua idade avançada e a falta de salÍde levaram os líderes romanos a pensar num sucessor.»

N a sua juventude, Tibério, criado na arrogância da família de Cláudio, dava já mostras do seu carácter cruel e lascivo. Após a morte de Augusto, que Tácito sugere ter sido abreviada por Lívia, mulher do imperador, Tibério assassinou o seu parente e rival, AgripaPóstunio, alegando que fora uma última vontade de Augusto, e instalou-se no trono. ,Tácito refere-se ao segundo imperador de Roma como um «intruso que singrara até ao poder por intermédio de intrigasc.onjugais e um act.o de ad.opçã.o senil». '

a principal vilão durante o domínio de Tibério foi Sejano, capitão da Guarda Pret.oriana, de quem o imperador gostava e simultanea­mente temja, Durante os últim.os an.os de Tibéri.o, este retir.ou-se para a Ilha de Capri e nome.ou Sejano seu representante. Com o controlo absoluto dos contactos do imperador com o mundo exterior, Sejano manipulou acontecimentós e pessoas a seu bel-prazer. N.o entanto, Sejano c.oncedeu alguma rédea à famosa liberdade sexual de Ti~ério.Coni a morte de Sejano, Tibério deu asas ao seu tempe­ramento licencioso, cometendo inúmeros actos de crueldade. Infeliz­mente, falta a maior parte do quinto volume dos Anais, o que deixa

: uma grave lacuna em matéria de informação sobre Tibério. , ' Os Volumes XI-XVI debruçam-se sobre os reinados de' Cláudio e Nerc;>. Em contraste com a perfídia obstinada do seu antec~ssor,

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~ <! A ÉPOCA ARGÊNlEA

Cláudio, gago e coxo, parece meio idiota. Numa significativa divag:;t­ção pessoal, Tácito c(;!menta:

«Quanto mais estudo a história passada e presente, mais me apercebo do ridículo de todas as esperanças e sonhos huma­nos, pois em matéria de reputação, expectativa e respeito geral, qualquer um seria candidato mais provável ao cargo máximo do que o homem que a Sorte reservou como impera­dor do futuro.»

De acordo com Tácito, Cláudio era facilmente manobrado pelo pessoal do palácio, bem como pela sua libidinosa esposa, Messalina, famosa pelas suas escapadelas sexuais, que levaram à sua execução.

O Volume XII descreve as manobras de Agripina, sobrinha e última mulher de Cláudio, que manipulou a situação política a fim de colocar o seu filho, Nero, no trono. Diferente dos seus precursores, que buscavam a excelência na retórica, o ideal romano do homem culto, já na infância Nero fazia convergir o seu espírito vivo para outros interesses:

«[. .. ] esculpia, pintava, cantava ou conduzia, e esporadica­mente mostrava, nos versos, que possuía dentro de si os rudimentos da cultura.»

Em contraste com Tibério, revelou-se ao povo, e deixou que os seus excessos faIas sem por si mesmo: «Era um velho desejo seu conduzir a quadriga e uma ambição igualmente acalentada cantar com uma lira, à moda dos artistas.» O público romano, acostumado a vícios, estava desejoso de fomentar o exibicionismo de Nero.

O Volume XIV inicia-se com uma descrição da relação anti­-natural entre ~ero e a sua ambiciosa mãe. Como descreve Tácito a situação, «[. . .] todos ds homens ansiavam a quebra do poder da mãe; nenhum acreditou que o ódio do filho pudesse ir ao extremo do assassínio». Ao tentar garantir a sua influência sobre Nero, Agri­pina vestia-se e representava muitas vezes o papel de coquette, cobrindo o filho de carícias e beijos, preâmbulo de relações incestuo- , sas. Nero, pretendendo pôr cobro ao controlo férreo que ela exercia sobre a sua carreira e vida pessoal, atraiu Agripina' a Baias, desarmou-a com beijos apaixonados e enviou-a numa vi~gem fatal de barco.

Agripina, possivelmente avisada da traição do filho, escapou à

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TÁCITO

armadilha e nadou até terra. Antes que a multidão preocupada acorresse à sua casa e a felicitasse por ter escapado por um triz, Nero mandou que assassinos contratados cercassem a casa e matassem a mãe. Quando o carrasco ergueu a espada para desferir o golpe, Agripina apontou dramaticamente para o baixo ventre e gritou: «Enterra-a aqui.» Apesar de Nero ignorar os seus ritos fúnebres, os servos sepultaram....:.nanum túmulo humilde. Tácito termina o relato com uma história muitas vezes repetida de que Agripina sabia que o filho seria imperador e mataria a mãe, ao que ela retorquira: "Pois que mate, para poder reinar.»

Nero começou a perder a noção da realidade à medida que maiores fantasias exigiam uma encenação pública. Convidava toda a cidade para banquetes, e um dos mais extravagantes contou com uma mesa flutuante numa jangada no lago de Agripa:

, «Mandara vir aves e airimais selvagens dos confins da terra, , e animais marinhos do próprio oceano. Havia nos ancoradou­, ros do lago bordéis cheios de mulheres de elevada estirpe; e, ; do outro lado, prostitutas nuas assistiam.»

A:sequência de acontecimentos processa-se a um ritmo rápido, ,da mera obscenidade à depravação e abominação. Alguns dias após a festa, Nero cumprIu todos os ritos numa cerimónia tradicional de casamento romano, em que assumiu o papel de «esposa de Um do bando de degenerados, que dava pelo nome de Pitágoras».

Pouco depois deste bizarro acontecimento, Roma foi incendiada, começando pelo Circo Máximo e chegando aos montes Palatino e

i Célio. Como os que haviam perdido as suas casa fugiam aterrados, i procurando sobreviver,

«nenhum arriscou combater o fogo, pois havia ameaças reite­, radas por uma série ,de pessoas que proibiam a extinção e outras atiravam abertamente tições, gritando que 'possuíam autoridade' - possivelmente para terem maiores hipóteses

, de saquear, possivelmente devido a ordens recebidas.»

Muito embora Nero oferecesse abrigo temporário às vítimas no Campo dê Marte e nos seus própriosjardins, enlameou para sempre a sua: reputação montando um palco e dechlmando versos sobre a destrUição de Tróia. ,

Afim de evitar boatos de' que o fogo fora posto por ordem do

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A ÉPOCA ARGÊNTEA

imperador, Nero escolheu os cristãos como bodes expiatórios e perseguiu-os com requintada malvadez:

(o seu fim era acompanhado de ridicularização: cobriam-nos com peles de animais selvagens e eram despedaçados até à morte por cães; ou eram amarrados em cruze.s e, quando se acabava aluz do dia, queimados para servirem de candeeiros à noite.» .

Vestido como uni condutor de quadriga, Nero desfilava por entre os espectadores reunidos. No entanto, este espectáculo abisIllal revelou-se nocivo à sua popularidade, pois os Romanos, apesar de aborrecidos por os cristãos terem incendiado a cidade, apercebiam­-se de que o sacrifício dos cristãos por Nero era um meio cobarde de aplacar um monstr9'

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* HISTÓRIAS

De uma forma puramente analista, Tácito começa as suas Histórias em 1 de JanelrÇ)-de 69 d.C., um ano cataclísmico que conheceu o domínio de quatro imperadores, começando por Galba e acabando em Vespasiano. Tácito introduz uma ressalva na obra, referindo que

«[ ... ] enquanto os homens se afastam rapidamente de um historiador que procura captar as boas graças de alguém, dão atenção à calúnia e ao despeito, pois a lisonja está sujeita ao fardo vergonhoso do servilismo, mas a maldade dá falsas mostras de independência.»

Para que conste, afirma não ter tido qualquer contacto directo com Galba, ou algum dos seus dois sucessores, Otão e Vitélio.

Tácito reconhece a sua dívida para com os três imperadores que

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TÁCITO

se seguiram, Vespasiano e os seus dois filhos, Tito e Domiciano. Pensando nos volumes futuros, Tácito propõe-se reservar para a sua velhice as histórias dos reinados de N erva e Traj ano, apesar de não existirem provas de que alguma vez os tenha escrito. Preferiu as condições mais pacíficas dos últimos imperadores, «um assunto mais rico e menos perigoso [. .. ] em que podemos sentir o que queremos e dizer o que sentimos». ~

-Em contraste, Tácito apresenta a época mms recuada, «um período rico em catástrofes, terríveis batalhas, dilacerado por guer­ras civis, horrível mesmo em tempo de paz». Numa torrente de descontentamento, faz a súmula de um período .de anos péssimos em que imperavam o fogo posto, a profanação, o adultério, a crueldade e a corrupção:

«.As recompensas dos informadores não eram menos odiosas do que os seus crimes; para alguns, a ascensão aos cargos de sacerdote e cônsul; para outros, o acesso a posições como agentes imperiais e influência secreta nos tribunais causa­vam destruição e tumulto em todo o lado, inspiravam o ódio e o terror.» . - .

Os escravos prestavam-se à corrupção contra os seus senhores, os homens libertos contra os seus protectores; e aqueles que não tinham inimigos eram esmagados p'elos amigos.

Não obstante este prefácio desanimador, apresenta um discreto louvor aos poucos romanos que se mantiveram íntegros. Retomando o ~eu tema lúgubre, insiste que os deuses lançaram o devido aviso através de sinais e presságios, .como os raios e as profecias.

Tácito dedica trinta e oito capítulos ao reinado de Galba e revela a maneira como ele, ao escolher Pisã9 Liciniano para herdeiro ao trono, inspirou Otão a conspirar com a Guarda Pretoriana o derrube do imperador. Fraco e velho, Galba não conseguiu fortalecer o Imp.ériovacilante. Os apoiantes de Otão fizeram com que Galba deixasse a sua fortaleza com a notícia falsa da morte de Otão. À medida que a guarda palaciana se reunia em redor do chefe escolhido, Otão

«[ ... ] estendeu as mãos e mostrou obediência' aos sêldados, atirou beijos e prestou-se de todas as maneiras ao papel de escravo ~ara garantir o lugar do senhor.»

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JUVENAL

VIDA E OBRA

o mais famoso crítico social do Império Romano, Décimo Júnior 'Juvenal, Viveu de cerca de 60 d.C. a cerca de 140 d.C. Começou a

:[' escrever tarde na vida, possivelmente à volta de 110 d. C., e publicou

I os seus versos mordazes e explosivos até 127 d.C. A maior parte do

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descontentamento reflectido na sua obra centra-se no reinado de Domiqiano, um período que conheceu a repressão e o absolutismo i levado.s a extremos tais que membros da família do imperador,

I incluindo a esposa, tramaram o seu assassinato.

I Apesar de a informação respeitante a Juvenal ser escassa e i contráditória, parece que terá nascido em.Aquino, cerca de setenta

I' milhas B; sueste de Roma, filho natural ou adoptivo de um abastado liberto. E lembrado como um homem: bem educado - um estóico, um

, mestre na arte de deClamar, um retórico e um poeta. Indivíduo .1 bastante reservado, parece ter passado por dificuldades financeiras I e a consequent~ amargura, muito embora mais tarde viesse a '11 ,possuir uma propriedade rural em Tibur e recebesse amigos na sua casa de Roma.

,I Informações desgarradas colocam Juvenal à cabeça de uma \ missão militar no Norte da Bretanha. Pode ter sido também magis­I trado menor e flamen (sacerdote de Júpiter) em Aquino. De acordo 'I com as fontes medievais, aos oitenta anos foi mandado para o exílio , por Domiciano, para um cargo militar menor no Egipto, como castigo

I não oficial por ridicularizar Páris, actor de mima e favorito do imperador. O poeta sat'..rico terá morrido ali pouco depois, de

I desgosto e frustração, apesar de circular em Roma uma: outra versão I sobre à sua morte, de desespero pela morte de Marcial. I O seu estilo próprio e epigramático deixouinÚIDel,"as observações

.[ que podem ser citadas e sobre as quais gerações posteriores medi­I tam, como «A honestidade é louvável, mas frágil», «O homem nunca I s~ con!enta com um crime», «Alma sã em corpo são», «Comida e 'diversoes» e «Nunca um homem se tornou extremamente mau de um

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~. "!fI A ÉPOCA ARGÊNTEA

momento para o outro». De uma forma particularmente severa, per­gunta-se em alto e bom som por que razão os Romanos, que elevam o dinheiro às alturas divinas, se esqueceram de erigir um altar à riqueza «para igualar o seu culto de Pax, Fides, Victoria, Virtus e Concordia [paz, fé, vitória, força e harmonia]!»

Dos seus versos apenas restam dezasseis sátiras, estando as últimas incompletas. A mais citada, a sexta, é uma djatribe contra as mulheres. Outras das preferidas são «Sobre a vida de Roma» e «Sobre a Oração». Juvenal procura denunciar os vícios romanos do séc. I apresentando elementos de decadência social- corrupção, perversão, cinismo, práticas comerciais desonestas, gula, parasi­tismo e, logicamente, o declínio das artes. Apesar de carregadas de preconceito e pessimismo, as suas sátiras influenciaram autores posteriores, em particular Chaucer, Boileau, Dryden, Pope, Johnson, Addison, Steele e Byron.

SÁTIRAS

As queixas exacerbadas e ressentidas de Juvenal diminuem um pouco para o fim da sua vida, como se o autor tivesse passado de uma fase de indignação justificada para a passividade associada à avançada idade. No começo da carreira, os seus versos estavam repletos da escória da sociedade romana - eunucos; espoliadores, barbeiros novos-ricos, estrangeiros vistosos, sádicos, gigolos, enve­nenadores e uma série de impostores. Infelizmente, as suas referên­cias enigmáticas aos famosos da época requerem imensas notas de rodapé para fazerem sentido aos leitores modernos.

A sua primeira sátira serve de introdução à sua carreira. Em estilo sardónico e desconexo, conduz à revelação circunstancial:

«Mas se me derdes tempo e escutardes tranquilamente· a razão, dir-vos-ei porque prefiro percorrer o mesmo caminho por que a grande criação de Aurunca [Lucílio, o primeiro poeta satírico de Roma] conduziu os seus' corcéis.».

Os seus versos espontâneos e fáceis fluem, criticando primeiro um absurdo, depois outro. Conclui que; com pessoas como estes bobos que percorrem as ruas de Roma, «é dificil não escrever sátiras».

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J(JVENAL

tIm alvo da sua ridicularização, os novos-ricos que assumem uma atitude afectada são-lhe particularmente odiosos, talvez por ter problemas filianceiros, e descarrega neles a sua inveja. Um idiota típico pergunta:

«Se então os grandes oficiais do estado somarem no fim do ano o quanto as ofertas lhes trazem, a quanto ascende o .seu rendimento, o que faremos nós, protegidos, que, com as ·mesmíssimas ofertas, temos de pagar as roupas e os sapatos, o pão e a lenha para os nossos lares?»

Mestre da ingenuidade jocosa e da pergunta retórica, a sua escrita leva constantemente ao aviso extremo. «Por isso, pensem bem nestas coisas antes de soar a trombeta», conclui ele, deixando poucas dúvidas de que acredita que já é demasiado tarde para o arrependimento.

Juvenal aplica os seus sarcasmos insistentes e inflamatórios na sátira VI, a sua famosa invectiva contra as mulheres. Fingindo consternação por Póstumo, um hipotético noivo que está p~estes a casar, o poeta e misógino descarrega o seu veneno sobre as mulheres:

«Sois capazes de vos submeter a uma tirana quando há tanta corda para agarrar, tantas janelas altas que estão abertas, e quando a ponte emiliana se apresenta a jeito? [ ... ] quão melhor seria aceitar um jovem companheiro, que nunca discute convosco durante a noite, que nunca vos pede presen­tes quando está na cama e· nunca se queixa de que vos aproveitastes e fostes indiferentes às suas solicitações!»

Apresentando finalmente exemplos de esposas que procederam de modo errado, garante à vítima crédula que «toda a rua tem a sua Clit~mnestra».

Num ataque geral a toda a série de loucuras humanas, Juvenal escarnece da devoção, em particular das preces oferecida~ pelos gananciosos Romanos: .

«Assim, sucede que aquilo por que oramos e pelo qual é justo e devido que carreguemos os joelhos dos deuses com cera, ou é inútil ou pernicioso.»

A prece mais inadequada, diz ele, é aquela que pede longevidade.

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~ A ÉPOCA ARGÊN1EA

Esta prece é típica da juventude e dos bons momentos, antes que a velhice e a doença tornem o rosto irreconhecível, «as faces pendura_ das e as rugas como as que uma matrona babuína das florestas sombrias da [Numídia] apresenta nas suas mandíbulas velhas».

O que deveria então o suplicante pedir? Juvenal responde Com extrema sinceridade: «Deixa que os próprios deuses nos dêem o que

. é bom para nós», o que se adapte às nossas necessidades. Deus , insiste o poeta, é benevolente com os seres humanos. Devem dirigir--se-lhe preces de «mens sana in corpore sano» (<<alma sã em corpo são») e coragem para enfrentar a morte. Despoj ando-se do escárnio e do humor falso, Juvenal anuncia: a conclusão clássica: a única via para a serenidade é através da rectidão.

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MARCO AURÉLIO

VIDA E OBRA

Marco Aurélio Antonino (121-180 d.C.) distinguiu-se por gover­nar Roma durante vinte e oito anos numa altura em que as legiões romanas já não eram invencíveis face às enormes hordes de inva­sores bárbaros e cabeludos; entretanto, conservava um livro de apontamentos de alguma da filosofia universal mais profunda" e inspirada. Estes dois aspectos parecem excluir-se mutuamente, mas terão resultado um do outro, pois Marco Aurélio abraçou uma crença simples e sincera na indulgência e na moderação, qualquer que fosse a situação.

Nascido Marco Ânio Vero, de descendência espanhola e com o mesmo nome do pai, foi criado pelo avô "com a morte daquele. Despertou a atenção do imperador Adriano, que tratou da educação do rapaz, colocando-o sob a tutela de um conjunto dos melhores professores, incluindo o estimado Marco Cornélio Frontão e Herodes Ático. Depois, o imperador decidiu que Aurélio deveria seguir o sacerdócio e convenceu-o a casar-se com a filha de Lúcio Élio César, que se seguia na sucessão ao trono. Como homenagem à paixão de Aurélio pelo saber, Adriano mudou o apelido de Marco de Vero (<<verdadeiro») para Veríssimo (<<mais verdadeiro»).

Após as mortes de Adriano e Élio em 138 d.C., Antonino Pio sucedeu a Adriano e adoptou Marco Aurélio, mudando o seu nome para Marco Élio Aurélio Vero César e, simultaneamente, ~doptou

"Lúcio Ceiónio Cómodo, que escolheu o nome de Lücio César. Aurélio conquistou o campo político com a aquisição de um questorado em 139 d.C., dois consulados em 140 e 145 d.C. e um tribunado em 147 d.C. Casou bem, garantindo a sua posição sob a protecção do imperador ao desposar Faustina lI, filha de Antonino, em 138 d.C.

Durante catorze anos, Marco Aurélio foi companheiro e confiden­te do imperador e contactou directamente com as responsabilidades do Império. Durante este período, desenvolveu os seus conhecimentos filosóficos (em parte, através da assídua correspondência com o seu preceptor, Frontão, e em parte através da leitura das obras de

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o FIM DO IMPÉRIO

Epicteto) e tornou-se um dos mais proeminentes filósofos estóicos do mundo antigo. Foi durante este período, de 147 a 161 d.C., que escreveu a primeira das suas Meditações, uma série de doze volumes com comentários sobre a moralidade e a vida digna. .

Quando Aurélio se tornou imperador em 161 d.C., estabeleceu um precedente ao designar o seu irmão adoptivo, Vero, co-regente e governar com ele até à morte de Vero em 169 d.C. Durante os últimos quatros anos como imperador, Aurélio compartilhou o trono com o filho, Cómodo. O acto de maior realce da carreira de Aurélio revelou-se negativo, pois manchou para sempre o seu nome culpan­do os cristãos por uma grave peste que as legiões trouxeram das Guerras Partas. A resultante era de perseguição cruel foi um dos últimos e mais brutais esforços de Roma para travar o avanço do cristianismo.

Felizmente, Aurélio impôs o seu nome como governante be!lévo-19, semelhante ao rei-filósofo que Platão descr~veu durante a Epoca Aurea da Grécia. Sob a orientação do imperador, as escolas abriram as suas portas aos pobres de Roma, orfanatos e hospitais libertaram a cidade da fome e da doença, e uma extensão geral da lei romana fez com que Roma ascendesse do seu anterior nível de semi-bar­barismo. No entanto, a sua dependência dos serviços públicos . sobrecarregou a cidade com uma pesada burocracia.

Marco Aurélio morreu no campo, em Viena, em 180 d.C., dei­xando Cómodo, seu filho caprichoso e dissoluto, como herdeiro. O contraste entre os dois imperadores fortaleceu imenso a memória de Marco Aurélio, pois os excessos de Cómodo levaram rapidamente o que o reinado aureliano conseguira realizar. Os romanos que podiam adquirir uma cópia da estátua de Aurélio colocavam-na em lugar de honra entre os deuses familiares e falavam com ele como se fosse um santo. O mundo moderno pode contemplar os feitos militares de Aurélio, pois estão representados na Coluna de Marco Aurélio em Roma, na Piazza Colonna. A sua estátua equestre, que se encontra ainda no monte Capitolino, chama a atenção para quem passa em virtude da sua benevolente mão estendida.

MEDITAÇÕES

Marco Aurélio registou nas suas Meditações momentos tran­quilos de contemplação e auto-análise, que manteve em grego num

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MARCO AURÉLIO

1 .1 livro de apontamentos pessoal ao longo de um período de dezanove • anos, possivelmente como guia para o seu filho indisciplinado. A

li obra, que obviamente nunca tencionou publicar, revela não só a sua .: percepção da filosofia estóica, mas também um desejo consciente e

intelectual de governar o império romano de uma forma justa e i· esclarecida. O tom é modesto e despretensioso, às vezes quase abjecto, . como se o pensador observasse o seu próprio reflexo e criticasse as

suas imperfeições. Nas palavras de John Stuart Mil, as Meditações são «quase iguais em elevação ética ao Sermão da Montanha».

Começa o Tomo I com uma homenagem ao avô, que lhe ensinou a moral e a sobriedade. Prosseguindo com uma lista de influências sobre o seu carácter, atribui a modéstia e a firmeza ao pai e a piedáde, a beneficência e a abstinência à mãe, Lucila. Outras figuràs que ajudaram a moldar a sua natureza foram Diogneto, que encora­jou o rapaz a «familiarizar-se com a filosofia», e o irmão de Aurélio, Severo, que lhe incutiu «congruência e inabalável firmeza no meu respeito pela filosofia e uma predisposição para o bem e a dar prontamente aos outros e a alimentar boas esperanças e a acreditar que sou estimado pelos amigos».

OTomo 11 estabelece os preceitos quotidianos que nortearam a vida do imperador. Como sabedoria pragmática, Aurélio procura convencer-se· das virtudes positivas:

«Começa o dia dizendo a ti próprio, enfrentarei o intrometido, o ingrato, o arrogante, o hipócrita, o invejoso, o insociáveL. não me deixarei afectar por qualquer deles, pois ninguém me pode impor o que é feio, nem zangar com o meu próximo, nem odiá-lo; pois existimos para colaborar, como os pés, as mãos, as pálpebras, as filas de dentes superiores e inferiores.»

Encoraja-se a agradecer à Providência o que quer que ela coloque no seu caminho e a «pensar firmemente como romano e como

! homem». Lembrando a importância do momento, refere: <<[ ••• ] o presente é a única cQisa de que o homem pode ser privado, se for verdade que é a única coisa que possui.» A sequência de admonições simples e conselhos práticos desafia o plano geral. Pelo contrário, as Med~tações deveriam constituir um livro de homilias de cabeceira,

. semelhante aPoor Richard's Almanac ou aos Provérbios de Salomão. Um manancial de sabedoria, o seu valor é fortuito, surpreendendo o leitor com verqades do momento. Algumas destas preciosidades repetem-se·.na filosofia moderna, como «O universo é mudança; a no~sa vida terá a forma que os nossos pensamentos lhe deram» e ,

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:J. o FIM DO IMPÉRIO

«A morte, tal como o nascimento, é um segredo da natureza». Uma das afirmações mais fortes da vida boa recorda a doutrina da simplicidade de,Thoreau: «Não esqueçam - não é preciso muito para se ser feliz.»

De um modo geral, Marco Aurélio consola-se, não obstante os momentos difíceis d;a sua vida e reinado - as mortes dos filhos, a morte da mulher em 174 d. C., as derrotas sofridas pelo Império e as incapacidades'fisicas que lhe tiraram o vigor para chefiar os exérci­tos romanos - com uma filosofia integral com reminiscências do misticismo oriental:

«Considera sempre o universo como um ser vivo, possuidor de uma substância e de uma alma; observa como todas as coisas se referem a uma percepção, a percepção deste mesmo ser vivo, e observa como todas as coisas funcionam a um só tempo, como todas as coisas são as causas cooperantes de tudo o que existe; observa também o constante tecer do fio e a contextura da teia.»

Em contraste com esta afirmação pormenorizada, outros aforis­mos seus são breves e singelos:

«Olha para dentro. [ ... ] Sou constituído por um pequeno corpo e uma alma. [ ... ] Não tenhas vergonha de seres ajudado. [ ... ] Retira-te para ti mesmo. [ ... ] Elimina a imaginação. Deixa de puxar os cordéIs. Limita-te ao presente.»

No estoicismo Marco Aurélio encontra a força para fazer face aos tempos dificeis, para evitar o pensamento e a abnegação, para valorizar o mérito intrínseco e para apreciar o :momento.

O seu último registo respeita à morte, que considerou um fim ' natural, nada a temer. O seu conselho é directo:

«Homem, tu que foste um cidadão neste grande estado do mundo:, que diferença te faz se por cinco ou três anos? [ ... ] Parte então, satisfeito, pois também aquele que te liberta está satisfeito.»

É extraordinárió que estas palavras tenham vindo de um impe­rador romano cuja'~da, em contraste com os sibaritas e monstros que governaram o Império durante o século antenor, tenha servido de modelo na sua própria época e às gerações posteriores.

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APULEIO

VIDA E OBRA

Considerado o maior romancista de Roma, Lúcio Apuleio l\fricano foi um eterno viajante, produto bilingue do império greco-romano. Devido à sua posição no cânone da literatura latina, Apuleio foi chamado de «a última voz de Roma», apesar de, efectivamente, quase não ter sido romanizado pela sua permanência na sua cidade de origem. Nascido em Madauros, na N umídia, na fronteira com a Getúlia, cerca de 125 d.C., de Teseu, um dignitário local, e Sálvia, ilustre parente de Plutarco, Apuleio era um homem atraente - alto, louro e de olhos cinzentos. Tinha imenso orgulho na sua terra natal, que designava por uma «colónia de muita distinção».

Tendo recebido uma educação liberal em Cartago e Atenas, Apuleio viajou pela Grécia e Próximo Oriente e viveu durante algum tempo em Roma, onde exerceu direito e aperfeiçoou o seu latim provinciano. A herança da propriedade do pai permitiu-lhe seguir durante algum tempo interesses eclécticos, mas a sua generosidade bem documentada levou uma parte considerável dos dois milhões de sestércios que dividiu com o irmão. Ao cabo de um ano de doença que o manteve em Ea (Trípoli) sob os cuidados de Liciano Ponciano, um amigo da escola, Apuleio regressou ao Norte de África, onde se casou com ,Emília Pudentila, a mãe viúva e rica de Ponciano.

Pouco depois do casamento, Ponciano morreu. Como consequên­cia, os sogros de Apuleio mandaram-no prender e foi julgado em Sábrata pelo assassúrio de Ponciano, e enfeitiçaram Pudentila, a fim de lhe roubarem a fortuna. Não obst~te o seu interesse pela magia, conseguiu a absolvição desmascarando a venalidade e a vulgaridade de todo o clã e regressou a Cartago para viver em paz a sua vida.

Apuleio foi \.lm chefe religioso, advogado, filósofo, escritor e conferencista bastante respeitado. Vêem-se ainda no Norte de África diversas estátuas em sua honra e também por todo o mundo

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mediterrânico. Foi nomeado sacerdote honorário de Esculápio, um cargo importante na época, e iniciado nos ritos de Ísis e Osms.

A sua actividade estende-se a várias dimensões literárias, desde tratados sobre o platonismo a teorias do universo, de discursos e ensaios ao seu rorriance O Asno de Ouro 1, um conto popular bastante elaborado que põe a ridículo o sacerdócio e a loucura humana em geral. Grande parte dos seus textos mais académicos foi marginali­zada, mas o romance, em pàrticular o episódio de Cupido e Psique, que ocupa a maioria dos Tomos IV-VI, influenciou autores posterio­res, como Boccaccio, Cervantes, Rabelais e Robert Graves.

o ASNO DE OURO

Na dedicatória ao filho, Faustino, Apuleio pede desculpa pela sua maior fraqueza literária - a sua linguagem exagerada, que é um misto de latim antigo, dialecto provinciano e prosa artificial estudada. Caracteriza a sua história como um «discurso milésio», esperando que atinja o seu objectivo primeiro, a diversão. Ao explicar a sua fonte de informações no Tomo I, Apuleio apresenta uma «autobiografia» condensada.

O narrador, Lúcio, apaixona-se por Fótis, uma feiticeira, que quer transformar o amante numa ave. Serena os seus receios de última hora garantindo a sua capacidade de «restabelecer tais formas segunda vez em figuras humanas». No meio de uma certa agitação, Fótis purifica-se com uma água de ervas antes deapresen­tar a poção mágica, que está numa arca no seu quarto. Lúcio unge­-se abundantemente e sacode os braços, na esperança de se elevar até aos céus.

No entanto, em vez de asas e penas, Lúcio vê os pelos engrossa­rem, a pele endurecer em couro e apêndices que formam cascos. De uma extremidade pende uma cauda; da outra, .

f «[ ... ] o meu rosto torna-se enorme, e a boca se rasga, as ventas se abrem, e a beiçada fica pendente; as orelhas, com descom­pensado aumento, estão hirtas de hórridos pêlos [ ... ] e vejo-me não· ave mas burro.»

1 Tradução portuguesa de P. E. A., colecção «Clássicos». (N. doE.)

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APULEIO

Procura atribuir as culpas a Fótis, mas vê que não lhe resta outra alternativa. Ela promete-Ihe que tudo pode ser remediado, assim que apanhar rosas, o antídoto para o unguento.

São muitas as provações de Lúcio. Primeiro, o moço de estrebaria bate-lhe com um pau; depois, um bando de ladrões rebenta as portas do estábulo e leva o burro e os outros habitantes iguais a si. Após uma·série de atribulações, Lúcio ouve uma velha contar a história de Cupido e Psique. Segundo reza a mesma, Psique é uma donzela tão bela e pura que os adoradores esquecem Vénus e seguem Psique pelas ruas, enchendo de flores o caminho. A deusa, furiosa por os seus altares estarem desertos e vazios, chama o filho para se vingar da infortunada rapariga .

. Psique é condenada a apaixonar-se por um marido cujo rosto nunca deverá ver. É verdadeiro o seu amor por ele, mas a curiosida­de das irmãs leva-a a desobedecer à ordem, e olha para o seu corpo adormecido durante uma das suas visitas nocturnas:

«Vê a natural coma da loira cabeça espirando ambrósia, e as madeixas de cabelo vagueando pelo alto colo [ ... ] e, ainda que a última penugem terna e delicada esteja sem movimento, ela tremulante se agita e brinca lasciva e inquieta. O resto do corpo resplandecente é tal que V énus tinha de estar orgulhosa de o ter gerado.»

Curiosa com as armas do marido, tira uma seta da aljava, e, sem querer, pica o dedo e «se inflamou de amor por Amor». .

Cai do candeeiro uma nota de azeite a ferver e Cupido desperta e voa dali sem dizer uma palavra. Psique agarra-lhe a coxa, é transportada até às nuvens, mas cansa-se e cai na terra. Louca de dor, tenta afogar-se, mas o rio recusa-se a levá-la e deposita-a na margem.

Psique vagueia pela terra em busca de Cupido, a quem Vénus recolheu e cuidou da queimadura. Vénus atormenta a patética rapariga mandando-a efecfuar tarefas impossíveis. Portim, Cupido consegue escapar à influência sufocante da mãe ejunta-se a Psique. Co;memoram a sua união num banquete celestiàl:

«[ ... ] Júpiter com a sua Juno, e depois os maif? deuses, segundo a sua ordem. Então, oferece a Júpiter o copo de néctar, que é o vinho dos. deuses, aquele moço camponês seu escanção; porém aos mais era Baco quem os servia. Vulcano fazia a ceia,

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as Horas purpuravam tudo com rosas e outras flores, as Graças espargiam perfumes e as Musas faziam ouvir a sua voz melodiosa. Apolo cantou à cítara, Vénus dançou graciosa­mente com passos cadenciados com a sua suave música. Ele ordenou a festa a seu gosto, de maneira que as Musas cantassem em coro, que os Sátiros tangessem as flautas e que Panisco se acompanhasse ao som da gaita.»

Lúcio, um pouco aliviado da sua situação embaraçosa pela história cativante, lamenta não dispor de papel e pena para a registar.

Por fim, Lúcio consegue encontrar Ísis, a deusa egípcia e irmã! esposa de Osíris, e recupera de novo a forma humana depois de retirar uma rosa dé uma grinalda:

«[. .. ] a deforme e brutal figura imediatamente me deixou. Primeiramen~e o esquálido pêlo me caiu, e depois o grosso cairo se adelg~çou, o meu obeso ventre baixou e as plantas dos pés saíram em' dedos pelos cascos. As minhas mãos já não são patas mas estendem-se para os seus serviços mais elevados, o meu comprido pescoço encurta-se, a boca e a cabeça arre­dondam-se, as minhas enormes orelhas voltam à sua antiga pequenez, os meus sáxeos dentes voltam à dimensão humana; e o que antes principalmente me atormentava, a cauda, desapareceu totalmente.»

Cheio de gratidão pela sua liberdade, Lúcio ingressa no sacer­dócio. Depois de aprender o culto às divindades egípcias, viaja pelo mundo, estudando e aperfeiçoando-se. Finalmente, o deus Osíris aparece a Lúcio e ordena-lhe que exerça direito.

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Um dos primeiros quatro que foram designados Doutores da Igreja, e um dos cristãos mais influentes do seu século, Eusébio SofrónioJerónimo(ca.347-419d.C.),ouSãoJerónimo,comoémais frequentemente mencionado, nasceu em Stridon, Dalmácia, próXÍ-

. mo de Aquileia, quartel-general de Roma no Inverno, entre as actuais Trieste e Veneza. Os pais eram cristãos, mas J erónimo só se tornou um crente baptizado quando tinha quase vinte anos.

Tendo recebido uma educação clássica em Roma com Élio Donato, J erónimo estudou retórica e leu obras-primas da literatura grega e romana, mas concentrou as suas energias exclusivamente na litera­tura. cristã. Sentiu-se atraído pelas catacumbas dos primeiros mártires cristãos, mas acabou por se afastar do paganismo romano a fim de abraçar o cristianismo.

Viajou bastante pelo Reno e na Gália, onde se deixou influenciar pelo ascetismo. Regressou a Aquileia em 370 d.C. e fundou uma efémera sociedade de ascetas. Em 373 d.C., Jerónimo estabeleceu­-se em Antioquia, na Síria. Foi aqui que teve um sonho em que lhe apareceu Cristo e o acusou de ser mais romano do que cristão. No meio do tumulto espiritual, renunciou à sua cultura pagã e retirou-· -se para o deserto de Cálcis, e ali viveu quatro anos como eremita.

Purificando o seu espírito da licenciosidade de Roma, Jerónimo ganhou forças com a sua rigorosa abnegação, mortificação da carne, penitência rigorosa e dedicação ao estudo da história da Igreja, do he­braico, do aramaico e do grego. Diz-nos, a respeito da sua experiência:

(~Costumava sentar-me sozinho, pois estava cheio de amar­gura. Os meus membros desleixados estavam cobertos com serapilheira informe; a minha pele, devido ao longo abandono, tornara-se áspera e negra como a de um etíope. As lágrimas e os gemidos eram a minha sorte diária e, se o sono conseguia vencer a minha resistência e assentava nos meus olhos, esfolava os meus ossos irrequietos contra a terra nua.»

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Acabou por se dedicar ao estudo e à investigação bíblicos. Ultrajado pela controvérsia local dentro da seita, voltou a Antio­quia, foi ordenado pelo bispo Paulino e partiu para Constantinopla a 'fim de estudar com os bispos Gregório de Nissa e Gregório de Nazianzo. '

Depois de se deslocar aRoma como delegado a um concílio da Igreja, J erónimo ocupou o cargo de conselheiro e secretário do papa , Dâmaso, que ficou impressionado com o domínio de línguas do ' jovem. Enquanto esteve ao serviço de Dâmaso, Jerónimo escreveu exegeses, tratou dos assuntos gregos do papa e reviu o texto latino dos Evangelhos, organizando-os pela sua presente ordem (Mateus, Marcos, Lucas, João) e aperfeiçoando e melhorando a sua tradução sem proceder a alterações radicais. Tendo concluído os Evangelhos cerca de 384 d.C., Jerónimo fez convergir a sua atenção para o Liuro dos Salmos, e em 392:d.C. apresentou ,um novo arranjo que nunca mereceu a aceitação qúe as suas anteriores obras haviam conseguido.

Jerónimo desempenhou também as funções de professor de ricas matronas romanas que queriam aprender as Sagradas Escrituras. Duas das suas alunas, Paula e Marc~la, que o sustentavam finan­ceiramente, enviaram-lhe epístolas teológicas, que são invulgares para a época, em virtude de demonstrarem o saber e a devoção de mulheres patrícias. Com a morte de Dâmaso, Jerónimo, inimigo do papa Sirício, sucessor daquele, regressou à Palestina ,após o furor com a morte de Blesila, filha de Paula e uma das suas convertidas.

Paula, herdeira do abastado e distinto clã Emiliano, e a sua filha Eustóquia seguiram Jerónimo até ao Oriente em 386 d.C. Ali, fundou um mosteiro em 'Belém, que administrou até à sua morte. Deixou Paula e Eustóquia encarregadas do seu conventq. Juntas, ' administraram uma igreja e um hospício para os peregrinos que vinham em busca de consolo espiritual. Tanto Paula como Jerónimo esgotaram as suas heranças no financiamento destes projectos. Não obstante os seus deveres de administrador e a sua constante parti­cipação nas polémicas, religio,sas locais, J erónimo dedicou-se à tradução de uma versão latina do Antigo Testamento, que concluiu em quinze anos. '

J erónimo estava preocupado com a crescente irascibilidade, alienação imposta a si mesmo, falta de vista e de saúde nos seus últimos anos. Era pequeno e frágil, mas extraordinariamente ale­gre, sobrevivendo a Paula e Eustóquia e recuperando' do choque inícial do brutal saque de Roma em 410 d.C .. Foi sepultado na gruta da Natividade, em Belém, ao lado de Paula. Mais tarde, o seu corpo

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SÃO JERÓNIMO

foi transferido para a Igreja de Santa Maria Maior em Roma, e diz­-se que operou muitos milagres.

AS capacidades mentais de Jerónimo, alimentadas pela tremenda curiosidade intelectual e um génio para as línguas, impressionaram os seus contemporâneos, em particular quando disCutia aspectos teoló~cos ínfimos com citações de uma infinidade de fontes.l\1ergu­lhou completamente na fé cristã; no entanto, a sua personalidade foi ensombrada pela irascibilidade, sarcasmo mordaz, ódios prolonga­dos e falta de respeito por aqueles que divergiam das suas crenças.

As cartas de Jerónimo registam o fermento religioso e social da época, dando ao mundo moderno uma imagem mais clara da sociedade romana do séc. IV. Dois anos depois de os Godos destruí­rem Roma, escreveu:

<<A minha voz fica presa na garganta, e, mesmo ao ditar esta carta, os soluços cortam-me a fala. A cidade que conquistara todo o mundo foi conquistada; não, mais, a fome antecipou-se à espada, e apenas alguns cidadãos ficaram como prisionei­ros. No seu frenesi, as pessoas esfomeadas recorriam à comida horrível e despedaçavam os membros umas às outras para terem carne que comer. Nem sequer amãe poupava o bebé que amamentava.»

Atacando com o aguilhão de Marcial ou Juvenal, criticou severa­mente a corrupção entre os sacerdotes, cuja exigência e diletantismo o levfU"am a afirmar que «mais pareciam potenciais noivos do que clérigos».

A Eustóquia escreveu palavras de encorajamento para que mantivesse a virtude entre tantas mulheres dissolutas e sem prin­cípios:

«É enfastiante contar quantas virgens caem diariamente, quantas pessoas notáveis a Igreja-Mãe perde do seu seio: sobre quantas estrelas o inimigo orgulhoso instala o seu trono, em quantas rochas ocas a serpente penetra e faz o seu ninho. [ ... ] Sê o gafanhoto da noite. Lava a tua cama e rega o teu divã todas as noites com lágrimas. Está atenta e sê como um pardal sozinho no telhado. Deixa o teu espírito ser a tua harpa e a tua mente juntar-se aos salmos, 'Abençoado o Senhor, óminha alma, e não esqueças todos os seus bene­fícios'.»

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Para Jerónimo, cujos encontros com a vida secular em Roma foram suficientes para colorir a sua perspectiva da humanidade com lúgubres suspeitas, a decência era uma simples questão de afasta­mento e dedicação à fé através do controlo rigoroso dos desejos e leitura fervorosa das escrituras.

As obras de Jerónimo, que enchem onze volumes, incluem traduções e comentários da Bíblia, obras de investigação sobre a Bíblia, Vida dos Eremitas, O Livro dos Homens Ilustres, diálogos e discussões, história e imensa correspondência.

OSVULGATE

A maior obra de J erónimo é uma tradução do Antigo Testamento para latim. Os Vulgate, como veio a ser chamada após o Concílio de Trento (1545-63), substituíram. as versões hebraicas e são ainda uma fonte principal para os estudiosos da Bíblia.

Um excerto conhecido da sua tradução, o «Dies Irae», que se en­contra no Zefanias 1: 14-16, figura nas grandes missas litúrgicas da época clássica. As palavras, comoventes e terríveis, prestam-se à interpretação musical dramática:

«Iuxta est dies Domini magnus~ iuxta est et velox nimis: Vox ."" diei Domini amara, tribulabitor ibi fortis. Dies Irae, dies illa,

dies tribulationis et angustiae, dies calamitatis et miseriae, dies tenebrarum et caliginis, dies nebulae et turbinis: Dies tubae et clangoris super civitates munitas et super angulos excelsos.» ~

Como traduziu J erónimo:

«O grande dia do Senhor está próximo, cada vez mais perto: nesse dia, amarga será a palavra do Senhor, um poderoso joeireiro.»

O excerto inspirou o grande fresco de Miguel Ângelo, O Juízo Final, assim como o Requiem de Mozart, e incide sobre a perplexi­dade e a confusão daquelas almas que duvidam da inexorável vontade de Deus no Dia do Juízo Final. .

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A Cidade de Deus

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SANTO AGOSTINHO

VIDA E OBRA

Filho de Patrício, burocrata e pagão romano, e Mónica, cristã, Aurélio Agostinho (354-430 d.C.) ascendeu a uma posição que se situa imediatamente abaixo de São Paulo na igreja cristã. Nasceu em Tagaste, na Numídia, a sul da Sicília, na costa de África, próximo da Tunísia. Teve um irmão, N avígio, e uma irmã, Perpétua. A sua preparação inicial foi fraca; consequentemente, nunca aprendeu grego, apesar de os seus conhecimentos de literatura latina terem melhorado quando se inscreveu na escola de Madauros aos doze anos.

Aos quinze anos, Agostinho leu Hortensius, de Cícero, que o in­fluenciou no estudo da filosofia. No ano seguinte, Romaniano pagou as propinas de Agostinho numa escola de Cartago, onde o rapaz arranjou uma amante e teve um filho ilegítimo chamado Adeodato.

Agostinho aderiu à seita maniquefsta, que mistura a filosofia persa de Zoroastres com o pensamento cristão, e procurou conver­tidos em Cartago. Durante onze anos, ensinou gramática e retórica, primeiro em Tagaste e depois em Cartago, e tentou fundar acade­mias em Roma e Milão. Mais ou menos nesta altura, abandonou as crenças maniqueístas.

Em 387 d. C., Santo Ambrósio, conhecido neoplatónico e eclesias­ta, despertou a fé de Agostinho através de estimulantes sermões e baptizou-o e ao filho, Easter. Agostinho regressou a África com a sua família. Durante a viagem, a mãe morreu em Hostia. Agostinho

. tinha uma saúde debilitada, mas dedicou-se a um rigoroso regime I académico de estudo, oração e escrita. Nas suas Confissões, afirma que Deus fortaleceu a sua vontade durante aqueles tempos árduos.

Decidido a mudar o seu antigo estilo de vida, Agostinho denun­ciou a sua relação de quinze anos com a amante, casou com uma

i rapariga, vendeu as suas terras em Tagaste, e doou o produto a uma comuna monástica. O filho era um dos seus colaboradores mais entusiastas.

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Em 391 d.C., Agostinho foi ordenado sacerdote por exigência popular em Hipona e a partir daí passou a ser mencionado como Santo Agostinho. Foi bispo da cidade, um zeloso conversor e defen­deu resolutamente a fé entre povos de raças e religiões mistas.

Os últimos anos da vida de Agostinho foram um desafio. Os Vândalos, que saquearam Roma em 410.d.C., tomaram Cartago e avançaram para Hipona em 430 d.C. Como a violência pagã abundava em seu redor, o velho morreu de forma pacífica, satisfeito com a sua fé. Os Vândalos destruíram a maior parte da cidade, mas deixaram a catedral e a biblioteca de Agostinho intactas. Agostinho foi sepultado a sul de Milão, em Pavia, na Itália.

A influência de Agostinho sentiu-'-se particularmente nos pensa­dores dà Idade Média, sobretUdo São Tomás de Aquino. A sua produção literária, contida em duzentos e trinta e dois volumes, inclui comentários religiosos, sermões e correspondência, assim como reflexões pessoais e biografia. Alguns dos seus títulos mais

. conhecidos, para além de Confissões eA Cidade de Deus, são ensaios sobre a Santíssima Trindade, a vida feliz, a ordem, a imortalidade da alma, o ensino, o livre arbítrio, Fausto, a natureza e a graça. Em primeiro lugar entre as suas inovações encontram-se a tónica na fé, o estudo da encarnação e da redenção e a descrição da Igreja como o corpo místico de Cristo. .

CONFISSÕES

Agostinho inicia as suas Confissões .com sucessivos hinos e pre­ces a Deus e um pedido para que o Espírito Santo o guie nas suas reminiscências. Recordando a infância, em que pedia atenção e alimento, Agostinho compara essa necessidade e luta com o seu tumulto interior como homem, procurando ainda alimento para a alma. A pessoa que atendeu ao' seu pedido foi Mónica, a mãe:

«Como a minha mãe estava muito perturbada (cujo coração e fé puros deram origem.à minha eterna salvação), procurei converter-me e baptizar-me nos Teus sacramentos repara­.dores [ ... ]»

Não consegue compreender à. razão de a sua conversão ter

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SANTO AGOSTINHO

demorado tanto~ vinda, como veio, após uma doença que o deixou muito debilitado.

Agostinho confessa logo as suas faltas, em particular a paiXão pelos versos amorosos de Virgílio quando estudou literatura romana e o seu subsequente desejo por mulheres aos dezasseis anos. Conclui:

«Mas estava demasiado ansioso (como malandro que era) de seguir o rumo violento do meu desejo, tendo-Te abandonado completamente: sim, excedi todas as Tuas leis; não escapei

. aos Teus castigos. Qual o mortal que os pode evitar? Pois Tu i estavas sempre comigo, um pouco austero, e sempre a tempe­rar os meus passatempos clandestinos com o mais profundo

, descontentamento [ ... ]»

ConClui que as suas passagens pelo mundo pecaminoso lhe permitiram amar Deus ainda mais, tendo provado a separação da santidade que vem por via da imersão nos prazeres carnais .

Numa homenagem à sua dedicação e devoção, o livro termina em tom positivo com a afirmação de fé de Agostinho:

«Tu, Ó Deus, és bom e não precisas do bem. Estás sempre em repouso, porque és o próprio repouso. E qual o homem que irá ensinar outro a compreendê-lo? Qual o anjo que ensina outro anjo? E qual o anjo que ensina um homem? Que te peçam, procurem em ti, batam à tua porta: assim será recebido, assim será encontrado, assim será aberto.»

As palavras fazem eco das suas constantes tranquilizações do leitor de que Deus aguarda a conversão de cada mortal e confere graça e perdão a todos os que insistem em arrastar os seres humanos para a destruição.

* A CIDADE DE DEUS

In:iciada em 413 d.C. e concluída em 426 d.C., «a grande e árdua obra»' de Agostinho foi impulsionada pelo saque de Roma em

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410 d.C. e por uma apreensão geral de que o fim do mundo estaria próximo. O filósofo pretendeu reincutir a fé nas pessoas durante um período de cisma e dúvida. Foi mais longe do que esperava, e desenvolveu nos crentes uma força tal que transformou o medo da queda do Império Romano na esperança triunfal da vida para além das questões temporais na terra. Em seu abono, a obra teve a preferência de Carlos Magno, que a lia repetidamente.

Uma das afirmações mais fanÍosas de Agostinho é a declaração de que o sexo é o castigo pelo pecado de Adão e Eva. Antes da Expulsão, afirma,

«o seu amor a Deus era claro, o amor um pelo outro era o dos companheiros que vivem em sincera e fiel união, e deste amor provinha um maravilhoso prazer, pois o objecto do seu amor era sempre por eles disfrutado. Evitavam tranquilamente o pecado; e, enquanto assim fosse, nenhum outro mal os poderia acometer vindo de onde viesse e trazer pesar.)~

No Livro X, tece idêntico comentário a respeito da corruptibilida­de da carne:

«Carnais que somos, fracos, susceptíveis de pecar, e envoltos na escuridão da ignorância, por certo seríamos totalmente incapazes de vislumbrar este princípio se ele não nos purifi­casse e curasse através daquilo que não somos. Pois somos humanos, mas não fomos íntegros [ ... ]»

No entanto, para realçar as tendências imutáveis dos seres humanos, Agostinho tranquiliza o leitor dizendo que Deus é sempre o mesmo, não conhecendo nem passado, nem presente, nem futuro, e que Ele, o «artífice perfeito», estende a sua luz a todos os cantos da habitação humana. .

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Cronologia

Imperadores Rom.anos

Bibliografia Seleccionada