Marx Estava Certo - Terry Eagleton

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • 12-2904.

    03.05.12035280

    Ttulo original: WHY MARX WAS RIGHT Copyright 2012 by Terry Eagleton Copyright da traduo 2012 by Editora Nova Fronteira Participaes S.A. Direitos de edio da obra em lngua portuguesa no Brasil adquiridos pelaEDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAES S.A. Todos os direitosreservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada emsistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio,seja eletrnico, de fotocpia, gravao etc., sem a permisso do detentor docopirraite. EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAES S.A. Rua Nova Jerusalm, 345 Bonsucesso CEP 21042-235Rio de Janeiro RJ BrasilTel.: (21) 3882-8200 Fax: (21)3882-8212/8313www.ediouro.com.br

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTE

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    E11m Eagleton, Terry, 1943-

    Marx estava certo / Terry Eagleton ; traduo Regina Lyra. - Rio de Janeiro : NovaFronteira, 2012.

    Traduo de: Why Marx was rightISBN 978-85-209-3649-8

    1. Marx, Karl, 1818-1883. 2. Comunismo. 3. Capitalismo. I. Ttulo.

    CDD: 335.4CDU: 330.8514.05.12

  • Para Don e Hadi

  • Sumrio

    CapaFolha de RostoFicha catalogrficaDedicatriaPrefcio da edio brasileira, de Luiz Felipe PondPrefcioCaptulo ICaptulo IICaptulo IIICaptulo IVCaptulo VCaptulo VICaptulo VIICaptulo VIIICaptulo IXCaptulo XConclusondiceNotas

  • Prefcio da edio brasileira Contra a caricatura: do estilingue bomba atmica

    Luiz Felipe PondFilsofo Marx estava certo? No sou marxista, por isso acho que a resposta a esta pergunta nem sempre. Este livro de Terry Eagleton, que voc tem em mos, um esforo paradizer que ele acertou em tudo. Para alm do fato de se Marx acertou em tudo que disse,coisa sobre a qual discordamos Eagleton e eu, no h dvida de que Marx indispensvelpara entendermos o mundo em que vivemos. Sem ele, somos, de certa forma, cegos.

    Nesse sentido, Eagleton est coberto de razo ao escrever um livro que combate acaricatura do pensamento de Marx, nos oferecendo uma compreenso do grande crtico docapitalismo, para alm de simplificaes a servio do debate empobrecido. O autor nos duma lupa para enxergarmos para alm da caricatura feita, muitas vezes, por crticasapressadas, e, por isso, trata-se de uma obra que serve tanto a marxistas quanto a nomarxistas. Dessa forma, um texto formador, servido aos homens de boa vontade semeles, no haveria mundo.

    Formar algum dar a esta pessoa as ferramentas necessrias para elacompreender melhor o mundo em que vive e poder, no mnimo, sofrer nomeando as razesde seu sofrimento. E desde a Bblia hebraica, hebraica como o velho Marx (comoreconhece o prprio Eagleton ao nomear Marx um profeta judeu), sabe-se que nomear ascoisas do mundo um mandamento divino que faz de ns humanos.

    O melhor Marx, em minha opinio, o Marx que nos ajuda a nomear nossosofrimento no mundo contemporneo, no qual tudo que slido desmancha no ar. Ao lado,talvez, do diagnstico de Freud acerca do mal-estar na civilizao, eu no conheo outramaior verdade sobre nossa vida contempornea do que essa dissoluo da vida diante dalgica absoluta do dinheiro, dinheiro este que nos olha com olhos vermelhos cheios desangue como um deus monstruoso e implacvel. Dinheiro este que desejamos como onctar dos deuses, mas que nos consome como um vampiro consome sua vtima.

    Diro os no marxistas (como eu) que sempre sangramos. Mas direi, como osmarxistas (que no sou), que imperativo identificar sempre as novas faces dosofrimento humano. E, nesse sentido, Marx urgente. Portanto, se voc quiser aprofundarde modo atento e claro o pensamento do grande crtico do capitalismo Karl Marx, leiaEagleton.

    O autor organiza sua desconstruo da caricatura de Marx a partir de dez captulos

  • que discutem, cada um deles, uma crtica comum ao pensamento de Marx. Eagleton, naminha opinio, acerta em muitas de suas respostas as crticas que seleciona comoexemplo da caricatura de Marx, mas nem sempre escapa da devoo que todo intelectual,que escolhe uma teoria como sua, costuma cair. Os vcios da devoo em qualquersituao na vida so sempre muitos, mas seguramente o autor tem aqui muito maisvirtudes do que vcios. Um exemplo dos efeitos de sua devoo a Marx quando ele tentanegar que existam traos de profetismo utpico em Marx e que ele, Marx, acima detudo, era um investigador do presente e no um orculo do futuro. Apesar de que isto seja,em grande parte, verdade incontestvel (ele d inmeros exemplos em sua argumentaocontra o Marx orculo), no h como negar os estremecimentos profticos em Marxquando ele imagina um mundo sem um Estado que represente uma classe em detrimentoda outra, portanto, no autoritrio. Minha dvida, para alm de se Marx era ou no algumque via a si mesmo como orculo, em que medida a assimilao de seu pensamentopelos marxistas no tambm efeito de caricaturas, na medida em que a maioria deles,parece-me, treme de louvor diante do mundo melhor que o marxismo nos legaria seaceitssemos sua prxis.

    A pergunta que fica : a desconstruo da caricatura de Marx no serviria comoantdoto, no apenas para no marxistas, mas tambm para os prprios marxistas maisdevotos?

    A seguir, as crticas que Eagleton enfrenta. O marxismo acabou e s serviu paracriticar um capitalismo de chamins inglesas no sculo XIX. O marxismo s serve nateoria porque na prtica s serviu para realizar a violncia em grande escala. Portanto, sermarxista hoje ser iludido historicamente ou simplesmente uma falha de carter. Omarxismo apenas mais uma forma de determinismo que faz de homens e mulheresseres autmatos, dominados pela Histria econmica do mundo. O marxismo umdelrio utpico e, como toda utopia, um desastre histrico. O marxismo reduz tudo economia e nega todas as outras dimenses humanas, como a psicologia, a biologia, aespiritualidade, a arte, laos sociais no econmicos, enfim, toda e qualquer forma humanaque no seja condicionada pelos laos e interesses econmicos. O marxismo ummaterialismo filosfico que nega tudo que no seja tomos e por isso reduz os homens condio ontolgica de pedras. O marxismo obcecado pela luta de classes e a histriano luta de classes apenas. Por exemplo, como deduzir o amor da luta de classes ou umacidente de carro? O marxismo prega a poltica da violncia e, portanto, moralmentecruel e desumano. O marxismo acredita num Estado todo-poderoso que determina todasas dimenses da vida. O marxismo nada tem a ver com os movimentos sociais maisimportantes das ltimas dcadas porque no foi a inspirao do feminismo, doambientalismo, do movimento gay e de outros.

    Enfim, o marxismo seria uma teoria ultrapassada que fez mais mal do que bem equalquer que seja o bem que tenhamos conseguido nos planos polticos e sociais no so

  • devedores do marxismo.Deixo ao leitor o prazer de acompanhar Eagleton em seu enfrentamento terico da

    caricatura do marxismo que ele mesmo desenha na abertura de cada captulo. Mas adiantoque, seguindo um dos maiores marxistas do sculo XX, Theodor Adorno, citado peloprprio Eagleton, parece-me evidente que um dos grandes ganhos do marxismo escapardos fetiches do mundo moderno burgus e sua crena rasa na razo iluminista e na tecno-cincia progressista. E reafirmo, com Eagleton e Adorno, que a histria humana no umasimples histria que vai das ideias falsas, como as ideias religiosas, a ideias claras edistintas do racionalismo burgus, mas sim, que a histria humana muito mais umapera de sangue que, como dizia o prprio Adorno, vai do estilingue bomba atmica.

    Luiz Felipe Pond professor da PUC-SP e da FAAP, professor convidado da EscolaPaulista de Medicina da Unifesp, pesquisador da Fapesp e professor convidado daUniversidade de Marburg, da Universidade de Sevilla e do Kings College de Londres.

  • Prefcio

    Este livro teve origem em uma nica e extraordinria ideia: e se todas as objees maisconhecidas obra de Marx forem equivocadas? Ou, no mnimo, se no equivocadas detodo, o forem em sua maior parte?

    Isso no significa sugerir que Marx jamais tenha dado um passo errado. Noperteno quela leva esquerdista que piamente proclama que tudo est aberto crtica edepois, quando instada a produzir trs grandes crticas a Marx, se recolhe a um silnciotruculento. Que tenho minhas dvidas sobre algumas de suas ideias algo que deve ficarbastante claro a partir deste livro. Mas Marx estava certo boa parte do tempo sobrequestes importantes o suficiente para fazer com que o ato de algum se denominarmarxista fosse razovel. Nenhum freudiano imagina que Freud jamais tenha cometido umerro crasso, assim como nenhum f de Alfred Hitchcock defende toda e qualquer cena domestre. Estou aqui para apresentar as ideias de Marx no como perfeitas, mas comoplausveis. Para demonstrar isso, neste livro lano mo de dez das crticas maisfrequentes a Marx, sem nenhuma ordem especfica de importncia, e tento refut-las umaa uma. No processo, tambm pretendo fornecer uma introduo clara e acessvel aopensamento de Marx para aqueles que desconhecem sua obra.

    O Manifesto comunista j foi descrito como sem dvida o texto mais influenteescrito no sculo XIX.1 Ao contrrio de estadistas, cientistas, soldados, figuras religiosase congneres, pouqussimos pensadores mudaram o curso da histria corrente de formato decisiva como o autor do Manifesto. No existem governos cartesianos, guerrilheirosplatnicos ou sindicatos hegelianos. Nem mesmo os mais implacveis crticos de Marxnegariam que ele transformou nossa compreenso da histria humana. O pensadorantissocialista Ludwig von Mises descreveu o socialismo como o movimento reformistamais poderoso que a histria j conheceu, a primeira tendncia ideolgica no limitada auma parcela da humanidade, mas apoiada por gente de todas as raas, naes, religies ecivilizaes.2 No entanto, circula uma noo curiosa de que as teorias de Marx podemagora estar seguramente enterradas e isso na esteira das crises mais devastadoras jregistradas da histria do capitalismo. O marxismo, durante muito tempo a crtica maisteoricamente rica e politicamente descomprometida desse sistema, est agora relegado deforma complacente ao passado primevo.

    Essa crise tem, no mnimo, significado que o termo capitalismo, em geraldisfarado sob algum pseudnimo recatado como Idade Moderna, industrialismo ou oOcidente, tornou-se corrente outra vez. Pode-se dizer que o sistema capitalista est comproblemas quando as pessoas comeam a falar de capitalismo. Isso indica que o sistemadeixou de ser to natural quanto o ar que respiramos e pode ser visto, pelo contrrio,como o fenmeno histrico bastante recente que . Ademais, tudo que nasce sempre pode

  • morrer, razo pela qual os sistemas sociais gostam de se apresentar como imortais.Assim como um surto de dengue nos d uma conscincia renovada de nosso corpo, umaforma de vida social pode ser vista como de fato quando comea a ruir. Marx foi oprimeiro a identificar o objeto social conhecido como capitalismo a mostrar como elesurgiu, segundo que leis funcionava e como poderia ser levado a seu fim. Assim comoNewton descobriu as foras invisveis conhecidas como leis da gravidade e Freud desnudouo funcionamento de um fenmeno invisvel conhecido como inconsciente, Marx tirou amscara da vida cotidiana para revelar uma entidade imperceptvel conhecida como modocapitalista de produo.

    Pouco falo neste livro sobre o marxismo como crtica moral e cultural, j que issoem geral no levantado como objeo ao marxismo e, portanto, no se encaixa em meuformato. A meu ver, porm, o corpo extraordinariamente rico e frtil na obra marxistanessa linha , em si, razo suficiente para que nos alinhemos com o legado marxista. Aalienao, a comoditizao da vida social, a cultura de ganncia, a agresso, o hedonismoinsensato e o crescente niilismo, a distoro constante do significado e do valor daexistncia humana: difcil encontrar uma discusso inteligente desses temas que noesteja seriamente em dbito com a tradio marxista.

    Nos primeiros tempos do feminismo, alguns autores inbeis, embora bem-intencionados, costumavam escrever: Quando digo homens, quero dizer, claro, homense mulheres. Devo ressaltar, na mesma linha, que, quando digo Marx, quase sempre estouquerendo dizer Marx e Friedrich Engels. Mas o relacionamento dos dois outra histria.

    Sou grato a Alex Callinicos, Philip Carpenter e Ellen Meiksins Wood, que leram umesboo deste livro e fizeram algumas crticas e sugestes inestimveis.

  • Captulo I

    O marxismo acabou. Supostamente ele deve ter tido alguma relevncia em ummundo de fbricas e de escassez de comida, de mineiros de carvo e limpadoresde chamins, de misria disseminada e da massa das classes operrias. Noentanto, decerto no exerceria nenhuma influncia sobre as sociedades ocidentaiscada vez menos classistas, mais socialmente mveis e ps-industriais dopresente. o credo daqueles que so teimosos, medrosos ou iludidos demais paraaceitar que o mundo mudou para melhor, em ambos os sentidos do termo.

    O suposto fim do marxismo deveria soar como msica aos ouvidos dos marxistas emtodo canto. Eles poderiam recolher suas marchas e piquetes, voltar para suas famliasenlutadas e aproveitar a noite em casa em vez de ir a mais uma tediosa reunio decomit. O que os marxistas mais desejam deixar de ser marxistas. Nesse sentido, serum marxista nada tem a ver com ser budista ou milionrio, assemelhando-se mais a sermdico. Os mdicos so perversos, criaturas autossabotadoras que promovem o prpriodesemprego curando pacientes, que, depois, no mais precisam deles. A tarefa dosradicais polticos, igualmente, chegar ao ponto em que no mais sejam necessriosporque suas metas foram alcanadas. Esto, ento, livres para se retirar, queimar seuspsteres de Che Guevara, voltar ao violoncelo h muito esquecido e falar sobre algo maisintrigante do que o modo de produo asitico. Se ainda existirem marxistas ou feministasdaqui a vinte anos, ser lamentvel. O marxismo se destina a ser uma atividadetemporria, razo pela qual quem molda toda a sua identidade nele no ter entendido oesprito da coisa. A existncia de uma vida aps o marxismo precisamente a ideia domarxismo.

    Existe apenas um problema com essa viso sedutora. O marxismo uma crticado capitalismo a crtica mais investigativa, rigorosa e abrangente j feita. tambm anica crtica que transformou grandes setores do mundo. Assim que, enquanto ocapitalismo ainda continuar em atividade, o marxismo precisar fazer o mesmo. Somentedepois de aposentar seu oponente ele ser capaz de se aposentar. E em sua ltimaapario o capitalismo parecia to combativo como sempre.

    A maioria dos crticos do marxismo atualmente no refuta isso. Seu argumento ,sim, o de que o sistema se modificou quase a ponto de se tornar irreconhecvel desde osdias de Marx e que por isso suas ideias j no so relevantes. Antes de esmiuarmos talargumento, vale a pena notar que o prprio Marx tinha total conscincia da naturezamutante do sistema que desafiou. ao prprio marxismo que devemos o conceito dediferentes formas histricas de capital: mercantil, agrrio, industrial, monopolista,

  • financeiro, imperial e da por diante. Por que, ento, o fato de o capitalismo ter mudadosua forma nas ltimas dcadas deveria desqualificar uma teoria que encara a mudanacomo a prpria essncia desse sistema? Ademais, o prprio Marx previu um declnio daclasse trabalhadora e um aumento acentuado no trabalho dos colarinhos-brancos.3Abordaremos esse assunto um pouco frente. Marx tambm previu a chamadaglobalizao o que estranho para um homem com um raciocnio supostamentearcaico, embora talvez a caracterstica arcaica de Marx seja o que o torne aindarelevante nos dias de hoje. Ele acusado de ultrapassado pelos defensores de umcapitalismo que rapidamente vem regredindo aos nveis vitorianos de desigualdade.

    Em 1976, um bocado de gente no Ocidente achava que o marxismo defendia umargumento razovel. J em 1986, muitas delas no pensavam mais assim. O que ocorreunesse nterim? Ser que essas pessoas estavam enterradas debaixo de uma pilha decrianas sadas das fraldas? Teria a teoria marxista sido desmascarada como falsa poralguma nova pesquisa retumbante? Ser que esbarramos em algum manuscrito h muitosumido em que Marx confessava que tudo no passava de uma piada? No quetenhamos descoberto, para nossa decepo, que Marx era sustentado pelo capitalismo.Disso sempre soubemos. Sem a fbrica Ermen & Engels em Salford, de propriedade do paide Engels, fabricante de tecidos, o Marx cronicamente empobrecido poderia muito bem noter sobrevivido a polmicas literrias contra fabricantes de tecido.

    Alguma coisa realmente aconteceu no perodo em questo. A partir de meados dadcada de 1970, o sistema ocidental sofreu mudanas radicais.4 Houve uma guinada daproduo industrial tradicional para uma cultura ps-industrial de consumismo,comunicaes, tecnologia da informao e da indstria de servios. Empreendimentos depequena escala, descentralizados, versteis e no hierrquicos entraram na ordem do dia.Os mercados foram desregularizados, e o movimento da classe operria, submetido a umselvagem ataque jurdico e poltico. As alianas de classe tradicionais foram enfraquecidas,enquanto as identidades locais, de gnero e etnia ficaram mais insistentes. A polticatornou-se mais e mais administrada e manipulada.

    As novas tecnologias da informao tiveram um papel-chave na crescenteglobalizao do sistema, quando um punhado de corporaes transnacionais distribuiu aproduo e o investimento por todo o planeta em busca dos lucros mais imediatos. Boaparte da produo industrial foi terceirizada, com emprego de mo de obra de regies combaixos salrios no mundo subdesenvolvido, levando alguns ocidentais de menteprovinciana a concluir que a indstria havia sumido por completo do planeta. Migraesinternacionais macias de mo de obra surgiram na esteira dessa mobilidade global, e comelas houve um ressurgimento do racismo e do fascismo, medida que imigrantesempobrecidos inundavam as economias mais avanadas. Enquanto os pases perifricoseram submetidos ao trabalho nas sweatshops [locais de trabalho insalubres], em fbricasprivatizadas, a uma previdncia social inoperante e a condies comerciais surrealmente

  • desiguais, os executivos das naes metropolitanas arrancavam suas gravatas, abriam oscolarinhos e se preocupavam com o bem-estar espiritual de seus empregados.

    Nada disso ocorreu porque o sistema capitalista gozava de um humor esfuziante.Ao contrrio, sua nova postura belicosa, como a maioria das formas de agresso, brotoude uma ansiedade profunda. Se o sistema enlouqueceu foi porque se viu acometido poruma depresso latente. O que provocou tal reorganizao foi, acima de tudo, o sbitoesmaecimento do boom do ps-guerra. A competio internacional intensificada foravapara baixo os ndices de lucro, secando as fontes de investimento e reduzindo a taxa decrescimento. Mesmo a social-democracia era uma opo poltica radical e onerosa demais.O cenrio, assim, estava pronto para Reagan e Thatcher, que ajudariam a desmontar aindstria tradicional, reprimir o movimento operrio, deixar o mercado solta, fortalecer obrao repressivo do Estado e defender uma nova filosofia social conhecida como gannciadescarada. O deslocamento do investimento da manufatura para as indstrias de servios,de finanas e de comunicaes foi uma reao a uma crise econmica prolongada, no aoabandono repentino de um velho mundo mau em troca de um corajoso mundo novo.

    Ainda assim, duvidoso que a maioria dos radicais que mudaram de ideia quantoao sistema entre as dcadas de 1970 e 1980 o tenha feito apenas porque havia menosfbricas de algodo. No foi isso que os levou a descartar o marxismo juntamente comsuas costeletas e bandanas, mas, sim, a crescente convico de que o regime queconfrontavam era simplesmente duro demais para ser rompido. No foram as ilusessobre o novo capitalismo, mas a desiluso quanto possibilidade de mud-lo que mostrouser o fato decisivo. Houve, decerto, um grande nmero de ex-socialistas queracionalizaram seu pesar sustentando que, se o sistema no podia ser mudado, noprecisava s-lo. Mas isso era falta de f numa alternativa que se revelou conclusiva. Comoo movimento da classe operria havia sido to massacrado e a esquerda poltica toconsistentemente rechaada, o futuro parecia ter desaparecido sem deixar vestgios. Paraalguns membros da esquerda, a queda do bloco sovitico no fim da dcada de 1980 serviupara aprofundar o desencantamento. O fato de a corrente radical mais bem-sucedida daIdade Moderna o nacionalismo revolucionrio estar a essa altura bastante exauridano ajudou. O que alimentou a cultura do ps-modernismo, com seu descarte daschamadas grandes narrativas e seu anncio triunfal do Fim da Histria, foi, acima de tudo,a convico de que o futuro seria apenas uma repetio do presente. Ou, como declarouum exuberante ps-modernista, o presente acrescido de mais opes.

    Assim, o que ajudou a desacreditar o marxismo foi, sobretudo, uma sensaoarrepiante de impotncia poltica. difcil manter a f na mudana quando a mudanaparece no constar da agenda, ainda que nesse momento seja mais do que nunca crucialmant-la. Afinal, se no resistirmos ao que aparentemente inevitvel, jamais saberemosquo inevitvel era o inevitvel. Se tivessem conseguido se apegar a suas antigas noespor mais duas dcadas, em 2008 os desistentes teriam visto um capitalismo to

  • exultante e imbatvel que praticamente era capaz apenas de administrar os caixasautomticos instalados nas grandes avenidas. Tambm teriam visto todo um continente aosul do Canal do Panam dar uma guinada decisiva para a esquerda poltica. O Fim daHistria chegava, ento, ao fim. De todo modo, os marxistas deveriam estar mais do queacostumados derrota. Conheceram catstrofes maiores do que essa. A vantagem polticasempre pertence ao sistema no poder, simplesmente porque ele possui mais tanques doque ns. Mas as vises estonteantes e as esperanas efervescentes do fim da dcada de1960 transformaram esse revs numa plula especialmente amarga para os sobreviventesdaquela era.

    O que fez o marxismo parecer implausvel, ento, no foi o fato de o capitalismoter alterado sua posio, e sim o oposto o fato de que, no que tangia ao sistema, tudofuncionava como de hbito, e at melhor. Ironicamente, o que ajudou a derrubar omarxismo tambm acabou dando certo crdito a seus argumentos. Ele foi relegado margem porque a ordem social que confrontava, longe de se tornar mais moderada ebenigna, ficou mais cruel e extrema do que antes. E isso tornou a crtica que lhe fazia omarxismo ainda mais pertinente. Numa escala global, o capital se encontrava maisconcentrado e predatrio do que nunca, e a classe operria havia, com efeito, crescido.Comeava a parecer possvel imaginar um futuro em que os megarricos se abrigariam emsuas comunidades armadas e gradeadas, enquanto cerca de um bilho de moradores defavelas ficariam sitiados em seus ftidos barracos, cercados por torres de vigilncia earame farpado. Nessas circunstncias, afirmar que o marxismo havia acabado era mais oumenos como dizer que o Corpo de Bombeiros estava ultrapassado porque os incendiriosestavam cada vez mais hbeis e criativos.

    No nosso tempo, conforme previu Marx, a desigualdade de riqueza cresceu deforma dramtica. A renda de um nico bilionrio mexicano equivale hoje aos rendimentosdos 17 milhes de seus compatriotas mais pobres. O capitalismo criou mais prosperidadedo que a histria jamais testemunhou, mas o preo em especial a quase penria debilhes de indivduos foi astronmico. Segundo o Banco Mundial, 2,74 bilhes de pessoasem 2001 viviam com menos de dois dlares por dia. Enfrentamos um futuro provvel deEstados munidos de armas nucleares guerreando devido escassez de recursos, e aescassez , em grande medida, uma consequncia do prprio capitalismo. Pela primeiravez na histria, nossa forma prevalente de vida tem o poder no apenas de alimentar oracismo e disseminar o cretinismo cultural, nos levar guerra ou nos tocar comorebanhos para os campos de trabalho, mas tambm de nos riscar do planeta. Ocapitalismo se comportar de maneira antissocial se considerar essa atitude lucrativa, eisso atualmente pode significar a devastao humana numa escala inimaginvel. O queantes no passava de fantasia apocalptica agora realismo sbrio. O tradicional sloganesquerdista Socialismo ou barbrie nunca foi mais sombriamente adequado e nuncaequivaleu menos a um mero floreio retrico. Nessas sombrias condies, como escreve

  • Fredric Jameson, o marxismo precisa necessariamente voltar a ser verdade.5 Desigualdades espetaculares de riqueza e poder, beligerncia imperialista,

    explorao intensificada, um Estado cada vez mais repressivo: se tudo isso caracteriza omundo de hoje, trata-se, tambm, de questes sobre as quais o marxismo atuou e refletiudurante quase dois sculos. Seria de esperar, ento, que ele tivesse algumas lies aensinar ao presente. O prprio Marx ficava especialmente impressionado com o processosuperviolento pelo qual uma classe operria urbana havia sido forjada a partir de umaclasse camponesa erradicada em seu prprio pas de adoo, a Inglaterra processo queo Brasil, a China, a Rssia e a ndia esto vivenciando no momento. Tristram Hunt chamaa ateno para o fato de que o livro de Mike Davis Planeta favela, que documenta asfedorentas montanhas de merda conhecidas como favelas que se veem em Lagos ouDhaka hoje, pode ser considerado uma verso atualizada de A situao da classetrabalhadora, de Engels. Conforme a China se transforma na oficina do mundo, comentaHunt, as zonas econmicas especiais de Canto e Xangai parecem reminiscnciasassombradas de Manchester e Glasgow nos anos 1840.6

    E se ultrapassado no estiver o marxismo, mas, sim, o prprio capitalismo? NaInglaterra vitoriana, Marx via o sistema em processo de perda de flego. Tendo promovidoo desenvolvimento social em seu auge, ele funcionava ento como um entrave a ele. Marxconsiderava a sociedade capitalista impregnada de fantasia e fetichismo, mito e idolatria,por mais que se orgulhasse de sua modernidade. Seu esclarecimento a crena arrogantena prpria racionalidade superior no passava de uma espcie de superstio. Se, porum lado, foi capaz de certo progresso retumbante, por outro precisava correr muitoapenas para continuar no lugar. O derradeiro limite para o capitalismo, comentou Marxcerta vez, o prprio capital, cuja reproduo constante uma fronteira alm da qual eleno pode se aventurar. Existe, assim, algo curiosamente esttico e repetitivo a respeitodesse regime histrico mais dinmico de todos. O fato de que sua lgica subjacentepermanece bastante constante uma das razes por que a crtica que lhe fazia Marxcontinua vlida em grande medida. Apenas se o sistema fosse genuinamente capaz deromper suas prprias fronteiras, inaugurando algo novo, nunca antes sequer imaginado,deixaria esse de ser o caso. Mas o capitalismo incapaz de inventar um futuro que noreproduza seu presente ritualmente. Desnecessrio dizer que com mais opes...

    O capitalismo trouxe grandes avanos materiais. Entretanto, embora essa maneirade organizar nossos negcios tenha tido muito tempo para demonstrar que capaz desatisfazer as exigncias humanas por todo lado, ela aparentemente no est mais pertodisso do que antes. Quanto tempo estamos preparados para aguardar que o capitalismoproduza os bens? Por que continuamos a nutrir o mito de que a riqueza fabulosa geradapor esse modo de produo se tornar disponvel para todos no devido tempo? Ser que omundo trataria reivindicaes similares vindas da extrema esquerda com a mesmatolerncia cordial, esperando para ver o que vai acontecer? Os direitistas que admitem que

  • sempre haver injustias colossais no sistema, mas que, apesar disso, as opes soainda piores, so ao menos mais honestos em seu jeito inflexvel do que aqueles quepregam que tudo dar certo afinal. Se existe tanto gente rica quanto gente pobre, comoexiste tanto gente negra quanto branca, as vantagens dos abonados podem muito bem,com o tempo, chegar aos desprovidos. Mas observar que alguns so miserveis enquantooutros so prsperos mais ou menos como afirmar que o mundo contm ao mesmotempo detetives e criminosos. E verdade, mas isso encobre o fato de que existemdetetives porque existem criminosos...

  • Captulo II

    O marxismo pode ser timo na teoria. Sempre que foi posto em prtica, porm,resultou em terror, tirania e assassinato em massa numa escala inconcebvel. Omarxismo poderia parecer uma boa ideia para os acadmicos ocidentais abastados,que so capazes de contar com a certeza da liberdade e da democracia. Paramilhes de homens e mulheres comuns, ele tem sido sinnimo de fome,dificuldades, tortura, trabalhos forados, uma economia falida e um Estadomonstruosamente opressivo. Aqueles que continuam a defender a teoria apesar detudo isso ou so obtusos, iludidos, ou moralmente vis. Socialismo significa falta deliberdade; significa, tambm, falta de bens materiais, j que est fadado a ser oresultado da abolio dos mercados.

    Muitos homens e muitas mulheres no Ocidente so defensores ardorosos de cenriossangrentos. Os cristos, por exemplo. Tambm no raro ver pessoas decentes,generosas, defendendo civilizaes inteiras encharcadas de sangue, como fazem os liberaise os conservadores, entre outros. As naes capitalistas modernas so o fruto de umahistria de escravido, genocdio, violncia e explorao to abominvel quanto a da Chinade Mao Zedong ou a Unio Sovitica de Josef Stlin. O capitalismo tambm foi forjado comsangue e lgrimas. A diferena que ele sobreviveu tempo bastante para esquecer boaparte desse horror, o que no foi o caso do stalinismo e do maoismo. Se Marx foi poupadodessa amnsia, em parte isso se deveu ao fato de ele ter vivido enquanto o sistema aindase encontrava em fabricao.

    Em Os ltimos holocaustos vitorianos, Mike Davis escreve sobre as dezenas demilhes de indianos, africanos, chineses, brasileiros, coreanos, russos e outros quemorreram em consequncia de surtos de fome, de seca e de doenas inteiramenteprevisveis no fim do sculo XIX. Muitas dessas catstrofes resultaram do dogma do livremercado, como (por exemplo) no caso dos preos exorbitantes dos gros que tiraram acomida do alcance do cidado comum. Todas essas monstruosidades tambm no so tovelhas quanto as vitorianas. Durante as duas ltimas dcadas do sculo XX, o total depessoas que vivem com menos de dois dlares por dia aumentou em quase cem milhes.7Uma em trs crianas na Gr-Bretanha hoje vive abaixo da linha da misria, enquanto osbanqueiros fazem cara feia se o bnus anual que recebem cair para um reles milho delibras.

    Juntamente com essas abominaes, claro que o capitalismo nos legou algunsbens preciosos. Sem as classes mdias que Marx to profundamente admirava, noteramos um legado de liberdade, democracia, direitos civis, feminismo, republicanismo,

  • progresso cientfico e um bocado mais, bem como uma histria de fracassos, sweatshops,fascismo, guerras imperialistas e Mel Gibson. Mas o chamado sistema socialista tambmobteve suas conquistas. A China e a Unio Sovitica arrancaram seus cidados do atrasoeconmico para um mundo industrial moderno, por mais que o custo humano tenha sidopavoroso, em parte, to alto em virtude da hostilidade do Ocidente capitalista. Essahostilidade tambm forou a Unio Sovitica a embarcar numa corrida armamentista quealeijou ainda mais sua economia debilitada e por fim a pressionou at o colapso.

    Nesse nterim, porm, a Unio Sovitica conseguiu, juntamente com seus satlites,prover moradia, combustvel, transporte e cultura baratos, emprego pleno e serviossociais impressionantes para metade dos cidados da Europa, bem como um grauincomparavelmente maior de igualdade e (no fim) bem-estar material do que aquelasnaes haviam gozado. A Alemanha Oriental comunista podia se gabar de ter um dosmelhores sistemas de creche do mundo. A Unio Sovitica teve um papel heroico nocombate ao mal do fascismo, bem como na ajuda prestada para derrubar poderescolonialistas. Alm disso, fomentou o tipo de solidariedade entre seus cidados que asnaes ocidentais parecem capazes de fazer brotar apenas quando esto matando osnativos de outras terras. Naturalmente, nada disso substitui a liberdade, a democracia e oslegumes e as verduras na mercearia, mas esses feitos tambm no devem ser ignorados.Quando a liberdade e a democracia finalmente chegaram para salvar o bloco sovitico,fizeram-no na forma de terapia de choque econmico, uma forma de roubo luz do diaeducadamente conhecida como privatizao, desemprego para dezenas de milhes,aumento colossal da pobreza e da desigualdade, fechamento de creches gratuitas, perdados direitos das mulheres e quase runa das redes de bem-estar social que haviam servidoto bem a esses pases.

    Ainda assim, os ganhos do comunismo dificilmente superam as perdas. Pode serque algum tipo de governo ditatorial fosse praticamente inevitvel nas condies atrozesda Unio Sovitica inicial, mas isso no justificaria o stalinismo nem nada similar.Tomados como um todo, o maoismo e o stalinismo foram experincias mal-acabadas,sangrentas, que fizeram com que a mera ideia de socialismo fedesse nas narinas demuitos daqueles que, em outras partes do mundo, mais tinham a ganhar com ele. E quantoao capitalismo? Enquanto escrevo, o desemprego no Ocidente j est na casa dos milhese cresce com constncia, e as economias capitalistas foram poupadas da imploso apenaspor meio da apropriao de trilhes de dlares de seus cidados sacrificados. Osbanqueiros e financistas que levaram o sistema financeiro mundial beira do abismoesto, sem dvida, fazendo fila em frente s clnicas de cirurgia plstica para no serreconhecidos e ter seus membros arrancados um por um por cidados enraivecidos.

    verdade que o capitalismo funciona parte do tempo, no sentido de que levou umaprosperidade indizvel a alguns setores do mundo. Mas fez isso, como Stlin e Mao, a umcusto humano avassalador. No se trata apenas de genocdio, fome, imperialismo e

  • comrcio de escravos. O sistema tambm se revelou incapaz de criar abastana semcriar enormes faixas de privao ao mesmo tempo. verdade que isso talvez no contemuito a longo prazo, j que o estilo de vida capitalista agora ameaa destruir por completoo planeta. Um eminente economista ocidental descreveu a mudana climtica como amaior falncia de mercado na histria.8

    O prprio Marx jamais imaginou que o socialismo pudesse ser alcanado emcondies empobrecidas. Um projeto assim exigiria um salto quase to bizarro quanto ainveno da internet na Idade Mdia. Igualmente, nenhum pensador marxista at Stlinimaginou que isso fosse possvel, inclusive Lnin, Trtski e o restante dos lderesbolchevistas. No possvel reorganizar a riqueza para beneficiar a todos se existepouqussima riqueza para ser reorganizada. No se podem abolir as classes sociais emcondies de escassez, j que os conflitos por um excedente material escasso demaispara satisfazer as necessidades de todos acabariam por reviv-las. De acordo com Marxem A ideologia alem, o resultado de uma revoluo em condies assim que aquelevelho negcio sujo (ou, numa traduo de menos bom gosto, aquela merda de sempre)simplesmente reaparecer. Tudo que se h de conseguir uma escassez socializada. Sefor preciso acumular capital partindo mais ou menos do nada, ento a melhor maneira defaz-lo, embora brutal, por meio da busca de lucros. O vido interesse prprio provavelmente capaz de acumular riqueza com uma notvel velocidade, embora talveztambm seja capaz de acumular, ao mesmo tempo, uma pobreza espetacular.

    Os marxistas tambm jamais imaginaram que fosse possvel alcanar osocialismo em um nico pas. Ou o movimento seria internacional, ou no seria coisaalguma. Essa era uma reivindicao materialista obstinada, e no altruisticamenteidealista. Se uma nao socialista no conseguisse apoio internacional em um mundo ondea produo fosse especializada e dividida entre diferentes naes, ela seria incapaz deutilizar os recursos globais necessrios para abolir a escassez. A abastana produtiva deum nico pas provavelmente no seria suficiente. A noo extica de socialismo em umnico pas foi inventada por Stlin na dcada de 1920, em parte como uma racionalizaocnica do fato de que outras naes haviam sido incapazes de sair em socorro da UnioSovitica. Essa nao no encontra respaldo em Marx. As revolues socialistas, claro,precisam comear em algum lugar, mas no podem ser concludas dentro das fronteirasnacionais. Julgar o socialismo por seus resultados em um pas desesperadamente isoladoseria como tirar concluses sobre a raa humana a partir de um estudo sobre ospsicopatas em Kalamazoo.

    Construir uma economia a partir de nveis muito baixos uma tarefa exaustiva edesanimadora. improvvel que homens e mulheres se submetam livremente sdificuldades que isso envolve. Assim, a menos que tal projeto seja executado de formagradual, sob controle democrtico e de acordo com valores socialistas, um Estadoautoritrio pode intervir e forar seus cidados a fazer o que eles relutam em assumir

  • voluntariamente. A militarizao do trabalho na Rssia bolchevista um caso tpico. Oresultado, numa ironia medonha, ser a sabotagem da superestrutura poltica dosocialismo (democracia popular, autogoverno genuno) na tentativa de construir sua baseeconmica. Seria semelhante a ser convidado para uma festa e descobrir que precisono s bater os bolos e produzir a cerveja, mas tambm escavar as fundaes e assentaro assoalho do local. No sobraria muito tempo para a diverso.

    Idealmente, o socialismo exige um povo habilidoso, instrudo e politicamentesofisticado, instituies cvicas desenvolvidas, uma tecnologia bem-evoluda, tradiesliberais esclarecidas e o hbito da democracia. provvel que nada disso estar mo seno for possvel sequer consertar as pouqussimas autoestradas existentes ou dispor deuma poltica de seguro contra doenas ou contra a fome, alm de um porco no quintal.Naes com histrico de regime colonial so especialmente vulnerveis a estar privadasdos benefcios que acabei de listar, j que os poderes coloniais no se destacam pelo zelona implantao de liberdades civis ou de instituies democrticas entre seus vassalos.

    Como insiste Marx, o socialismo tambm exige um encurtamento da jornada detrabalho em parte para permitir aos homens e s mulheres lazer para a realizaopessoal, em parte para gerar tempo para a atividade do autogoverno poltico e econmico.Isso no possvel se as pessoas no tm sapatos, e distribuir sapatos por milhes decidados provavelmente exigir um Estado burocrata centralizado. Se uma nao estsofrendo a invaso de um leque de poderes capitalistas hostis, como aconteceu com aRssia na esteira da revoluo bolchevista, um Estado autocrata parecer ainda maisinevitvel. A Gr-Bretanha durante a Segunda Guerra Mundial estava longe de ser umaautocracia, mas no era, de forma alguma, um pas livre, e no seria de esperar quefosse.

    Para se tornar socialista, preciso estar razoavelmente bem de vida, tanto nosentido literal quanto no sentido metafrico do termo. Nenhum marxista, de Marx e Engelsa Lnin e Trtski, jamais sonhou com outra coisa. Ou, se no se est individualmente bemde vida, ao menos um vizinho solidrio, um tanto pujante em termos de recursosmateriais, precisa estar disposto a correr em seu socorro. No caso dos bolchevistas, issoteria implicado que tais vizinhos (em especial a Alemanha) tambm fizessem suasprprias revolues. Se as classes operrias desses pases pudessem derrubar seussenhores capitalistas e pr a mo em seus poderes produtivos, seriam capazes de utilizartais recursos para evitar que o primeiro Estado operrio na histria afundasse sem deixarvestgios. No se tratava de uma proposta to improvvel quanto pode parecer. A Europana poca estava incendiada pela esperana revolucionria, conforme os conselhos (ousovietes) de deputados operrios e soldados trabalhadores surgiam em cidades comoBerlim, Varsvia, Viena, Munique e Riga. Uma vez derrotadas essas insurreies, Lnin eTrtski perceberam que sua prpria revoluo estava em maus lenis.

    No que a construo do socialismo no possa comear em situaes de privao,

  • mas, sem recursos materiais, a tendncia ser a de que ele seja deturpado e vire acaricatura monstruosa de socialismo conhecida como stalinismo. A revoluo bolchevistalogo se descobriu sitiada pelos exrcitos imperiais do Ocidente, bem como ameaada pelacontrarrevoluo, pela fome urbana e por uma guerra civil sangrenta. Estava deriva emum oceano de camponeses em boa parte hostis, relutantes em entregar, sob a mira deuma arma, s cidades famintas seu excedente obtido com esforo. Com uma estreitabase capitalista, nveis desastrosamente baixos de produo material, parcos vestgios deinstituies civis, uma classe operria dizimada e exaurida, revoltas camponesas e umaburocracia inchada que se rivalizava com a do czar, a revoluo viu-se em apuros desde oincio. No fim, os bolchevistas haveriam de levar seu povo faminto, desanimado e cansadode guerras modernidade sob a mira de uma arma. Muitos dos operrios politicamentemais militantes haviam perecido na guerra civil bancada pelo Ocidente, deixando o partidobolchevista com uma base social frgil. No demorou para que o partido usurpasse osoviete dos operrios e banisse uma imprensa independente, bem como o sistema judicial.Ele sufocou a dissenso poltica e os partidos opositores, manipulou as eleies emilitarizou o trabalho. Esse programa cruelmente antissocialista surgiu em um cenrio deguerra civil, fome disseminada e invaso estrangeira. A economia da Rssia jazia emrunas, e seu tecido social se desintegrara. Numa ironia trgica, que viria a marcar osculo XX como um todo, o socialismo revelou-se menos possvel onde era maisnecessrio.

    O historiador Isaac Deutscher retrata a situao com sua habitual eloqunciaincomparvel. A situao na Rssia poca

    significava que a primeira e at ento nica tentativa de construir o socialismoteria de ser feita nas piores condies possveis, sem as vantagens de uma divisointernacional intensiva de trabalho, sem a influncia fertilizante das tradiesculturais antigas e complexas, em um ambiente de pobreza, primitivismo e cruezamateriais e culturais tamanho que a tendncia seria macular a prpria luta pelosocialismo.9

    preciso ser um crtico extraordinariamente atrevido do marxismo para afirmar que nadadisso relevante, j que o marxismo , de todo jeito, um credo autoritarista. Se eleconquistasse amanh o interior britnico, como argumentam, haveria campos de trabalhoem Dorking antes do fim da semana.

    Como veremos, o prprio Marx era um crtico do dogma rgido, do terrorismomilitar, da supresso poltica e do poder estatal arbitrrio. Ele acreditava que osrepresentantes polticos deveriam prestar contas a seus eleitores e reprovava a social-democracia alem da poca por sua poltica estatizante. Insistia na livre expresso e nas

  • liberdades civis, horrorizava-se ante a criao forada de um proletariado urbano (no casodele, na Inglaterra, em vez de na Rssia) e defendia a tese de que a propriedade coletivano campo deveria ser um processo voluntrio, e no coercivo. No entanto, como algumque reconhecia que o socialismo no pode florescer em condies de extrema pobreza, eleteria entendido perfeitamente por que a Revoluo Russa acabou perdida.

    Com efeito, existe um sentido paradoxal em que o stalinismo, em vez dedesqualificar a obra de Marx, testemunha sua validade. Se algum quiser um relatoconvincente de como o stalinismo surgiu, ter de recorrer ao marxismo. As merasdenncias morais quanto besta no bastam. preciso saber em que condies materiaisela surge, como funciona e como pode fracassar, e esse conhecimento tem sido maisbem-obtido por meio de certas correntes dominantes do marxismo. Esses marxistas,muitos deles seguidores de Leon Trtski ou de um ou outro tipo de socialismo libertrio,diferem dos liberais ocidentais em um aspecto vital: suas crticas das chamadassociedades comunistas tm sido bem mais arraigadas. Eles no se satisfazem com apelosesperanosos por mais democracia ou direitos civis. Ao contrrio, tm exigido a derrubadade todo o sistema repressivo, agindo assim precisamente como socialistas. Ademais, taisexigncias vm sendo feitas praticamente desde o dia em que Stlin assumiu o poder. Aomesmo tempo, eles alertaram para o fato de que, caso o sistema comunista russe, seriapossvel muito bem cair nos braos de um capitalismo predatrio que estaria aguardando,faminto, para catar os pedaos entre as runas. Leon Trtski previu de forma precisa talfim para a Unio Sovitica, e h cerca de vinte anos ficou provado que ele estava certo.

    Imaginemos uma forma um pouco enlouquecida de capitalismo que tentasse transformaruma tribo pr-moderna em um conjunto de empreendedores agressivamente aquisitivos,tecnologicamente sofisticados e que falasse o jargo dos profissionais de relaes pblicasou da economia de livre mercado, tudo isso em um perodo curtssimo de tempo. Ser queo fato de a experincia muito provavelmente vir a se revelar menos bem-sucedidaconstituiria uma condenao justa do capitalismo? Claro que no. Pensar assim seria toabsurdo quanto afirmar que a organizao das bandeirantes deveria ser dissolvida por noser capaz de solucionar problemas complexos de fsica quntica. Os marxistas noacreditam que a linhagem liberal arrogante de Thomas Jefferson a John Stuart Mill sejaanulada pela existncia de prises secretas administradas pela CIA para torturarmuulmanos, ainda que tais prises faam parte da poltica das sociedades liberais dehoje. No entanto, os crticos do marxismo quase nunca se dispem a admitir quejulgamentos circenses e terrorismo de massa no o refutam.

    Existe, porm, outro sentido que faz o socialismo ser considerado invivel poralguns. Mesmo se algum pretendesse implant-lo sob condies de abastana, como seriapossvel administrar uma complexa economia moderna sem mercados? A resposta paraum nmero crescente de marxistas que isso no necessrio. Os mercados, na viso

  • destes, continuariam a ser parte de uma economia socialista. O chamado socialismo demercado vislumbra um futuro em que os meios de produo pertenceriam sociedade,mas no qual cooperativas autogeridas competiriam entre si.10 Dessa maneira, algumasdas virtudes do mercado seriam conservadas, enquanto alguns de seus vcios seriamdescartados. No nvel dos empreendimentos individuais, a cooperao garantiria maiseficincia, j que os indcios sugerem que ela quase sempre to eficiente quanto osempreendimentos capitalistas e, com frequncia, muito mais eficiente. No nvel daeconomia, a competio garante que os problemas de informao, de alocao e incentivoassociados ao modelo stalinista tradicional de planejamento central no ocorram.

    Alguns marxistas afirmam que o prprio Marx era um socialista de mercado, aomenos no sentido de que acreditava que o mercado se manteria durante o perodo detransio seguinte a uma revoluo socialista. Marx tambm considerava que os mercadoshaviam sido emancipadores tanto quanto exploradores, ajudando a libertar homens emulheres da dependncia anterior de senhores e patres. Os mercados tiram a aura demistrio das relaes sociais, desnudando sua realidade rida. Marx era to perspicazquanto a essa questo que a filsofa Hannah Arendt certa vez descreveu as pginas deabertura do Manifesto comunista como o maior elogio j visto ao capitalismo.11 Ossocialistas de mercado tambm observam que os mercados de forma alguma so umacaracterstica especfica do capitalismo. Possivelmente surpreendendo alguns de seusdiscpulos, at Trtski apoiava o mercado, embora apenas no perodo de transio para osocialismo e em combinao com o planejamento econmico. Trtski considerava omercado necessrio ao controle da adequao e da racionalidade do planejamento, j quea existncia de contabilidade econmica impensvel sem relaes de mercado.12 Comoa Oposio de Esquerda, ele era um crtico ferrenho da chamada economia planificada.

    O socialismo de mercado extingue a propriedade privada, as classes sociais e aexplorao, e pe o poder econmico nas mos dos verdadeiros produtores. Por tudo isso, um avano bem-vindo em relao a uma economia capitalista. Para alguns marxistas,contudo, ele conserva demasiados aspectos dessa economia para ser palatvel. Sob osocialismo de mercado continuaria a haver produo de commodities, desigualdade,desemprego e oscilao das foras de mercado fora do controle humano. Como garantirque os trabalhadores no fossem simplesmente transformados em capitalistas coletivos,maximizando seus lucros, cortando a qualidade, ignorando as necessidades sociais edescambando para o consumismo na nsia de acumulao constante? Como evitar ocrnico imediatismo dos mercados, seu hbito de ignorar o quadro social geral e os efeitosantissociais de longo prazo de suas decises fragmentadas? A educao e a monitoraoestatal talvez reduzissem tais perigos, mas alguns marxistas se voltam, ao contrrio, parauma economia que no contemple o planejamento centralizado nem o regulado pelomercado.13 Nesse modelo, os recursos seriam alocados mediante negociaes entreprodutores, consumidores, ambientalistas e outros agentes relevantes, em redes nos locais

  • de trabalho, na comunidade e em conselhos de consumidores. Os parmetros amplos daeconomia, includos a as decises sobre a alocao dos recursos, as taxas de crescimentoe investimento, a energia, o transporte e as polticas ecolgicas, seriam fixados porassembleias representativas em nveis local, regional e nacional. Essas decises geraissobre, digamos, alocao tornariam a voltar aos nveis regional e local, nos quais umplanejamento mais detalhado seria aos poucos desenvolvido. Em cada estgio, o debatepblico acerca de polticas e planos econmicos alternativos poderia ser determinado pelanecessidade social em lugar de s-lo pelo lucro privado. No capitalismo, somos privados dopoder de decidir se desejamos produzir mais hospitais ou cereais para o caf da manh.No socialismo, tal liberdade seria constantemente exercida.

    O poder em tais assembleias seria atribudo por eleio democrtica de baixo paracima, e no de cima para baixo. Conselhos democraticamente eleitos para representarcada rea do comrcio ou da produo negociariam com uma comisso econmicanacional para chegar a um conjunto de decises de investimento. Os preos no seriamdeterminados de maneira centralizada, mas por unidades de produo com base noestmulo de consumidores, usurios, grupos interessados e da por diante. Algunsdefensores de uma economia participativa nesses moldes aceitam um tipo de economiasocialista mista: bens que sejam de interesse vital para a comunidade (alimentos, sade,produtos farmacuticos, educao, transporte, energia, produtos relativos subsistncia,instituies financeiras, a mdia e congneres) precisam ficar sujeitos ao controle pblicodemocrtico, j que aqueles que os regulam tendero a agir antissocialmente se farejarema chance de obter mais lucros. Bens socialmente menos indispensveis (itens de consumo,artigos de luxo), porm, poderiam ser entregues s operaes do mercado. Algunssocialistas de mercado acham todo esse esquema complexo demais para ser vivel. Comoobservou certa vez Oscar Wilde, o problema do socialismo gastar noites demais. Noentanto, preciso ao menos levar em conta o papel da moderna tecnologia da informaono azeitamento da engrenagem de tal sistema. Mesmo o ex-vice-presidente da Procter &Gamble (P&G) j reconheceu a capacidade desse sistema de tornar o autogerenciamentodos operrios uma possibilidade real.14 Alm disso, Pat Devine nos faz lembrar do volumede tempo consumido hoje pela administrao e organizao capitalistas.15 No existenenhum motivo bvio para inferir que o volume de tempo gasto por uma alternativasocialista seria maior.

    Alguns defensores do modelo participativo argumentam que todos deveriam serigualmente remunerados pelo mesmo volume de trabalho, a despeito da diferena detalento, treinamento e ocupao. Como diz Michael Albert:

    O mdico que trabalha em um ambiente luxuoso em condies confortveis egratificantes ganha mais do que o operrio de linha de montagem que trabalha em

  • meio a uma barulheira horrvel, arriscando a vida e a sade e suportando o tdio ea depreciao, independentemente do tempo e da energia que cada um despenda notrabalho.16

    H um argumento forte em defesa de remunerar melhor os que executam trabalhotedioso, pesado, sujo ou perigoso do que os mdicos e acadmicos, por exemplo, cujaatividade consideravelmente mais gratificante. Boa parte desse trabalho sujo e perigosotalvez pudesse ser executada por ex-membros da famlia real. Precisamos rever nossasprioridades.

    J que acabo de comentar que a mdia est madura para ser de propriedadepblica, tomemos este como um caso exemplar. H mais de meio sculo, em umexcelente livrinho intitulado Communications,17 Raymond Williams esboou um planosocialista para as artes e a mdia que rejeitava o controle estatal de seu contedo, por umlado, e a soberania do lucro como motivao, por outro. Em vez disso, os contribuintesativos nessa rea teriam controle sobre seus meios de expresso e comunicao. Averdadeira fbrica das artes e da mdia emissoras de rdio, salas de concerto, redesde televiso, cinemas, redaes de jornais e da por diante passaria a ser depropriedade estatal (que existe sob uma variedade de formas), e sua administrao seriaassumida por conselhos democraticamente eleitos, que incluiriam, ao mesmo tempo,membros do pblico e representantes da mdia ou de conselhos artsticos.

    Tais comits, que seriam estritamente independentes do Estado, ficariamresponsveis pela concesso de recursos pblicos e pelo leasing das instalaespertencentes sociedade, tanto a pessoas fsicas quanto a grupos de atores, jornalistas,msicos etc. independentes e democraticamente autogeridos. Esses homens e mulherespoderiam ento produzir seu trabalho sem se sujeitar s regras estatais ou s pressesdistorcidas do mercado. Entre outras vantagens, seria possvel evitar a situao em queum punhado de valentes avaros e enlouquecidos pelo poder ditasse por meio de seuscanais de mdia de propriedade privada aquilo em que o pblico deve acreditar ou seja,suas opinies comprometidas e o sistema por eles apoiado. Saberemos que o socialismose estabeleceu quando formos capazes de olhar para trs com absoluta incredulidade paraa ideia de que um punhado de capangas comerciais recebeu carta branca para corromper amente da opinio pblica com ideias polticas neandertais convenientes a seus prpriosextratos bancrios e a pouco mais do que isso.

    No capitalismo, boa parte da mdia evita o trabalho difcil, controverso ou inovadorporque isso ruim para os lucros. Ao contrrio, opta, por comodismo, pela banalidade, pelosensacionalismo e pelo preconceito profundo. J a mdia socialista no baniria tudo que nofosse Schoenberg, Racine e incontveis verses de O capital de Marx. Haveria, de sobra,teatro, TV e jornais populares. Popular no significa, necessariamente, inferior. NelsonMandela popular, mas no inferior. Um monte de gente comum l jornais altamente

  • especializados com jarges ininteligveis para quem est de fora. S que esses jornaiscostumam tratar de pesca, equipamentos agrcolas ou criao de ces em lugar deabordar esttica ou endocrinologia. O popular se transforma em lixo e kitsch quando amdia sente a necessidade de sequestrar uma grande fatia do mercado da forma maisrpida e indolor possvel. E essa necessidade, quase sempre, tem motivao comercial.

    Os socialistas sem dvida continuaro a discutir os detalhes de uma economiaps-capitalista. Por ora, no h modelo perfeito em oferta. Pode-se contrastar essaimperfeio com a economia capitalista, cujo funcionamento impecvel e que jamais foiresponsvel pelo mais nfimo toque de pobreza, desperdcio ou colapso. Foi, sim,reconhecidamente responsvel por alguns nveis extravagantes de desemprego, mas aprincipal nao capitalista do mundo descobriu uma soluo engenhosa para tal falha. Hoje,nos Estados Unidos, cerca de um milho a mais de pessoas estariam buscando empregocaso no estivessem na cadeia.

  • Captulo III

    O marxismo uma forma de determinismo. Ele v homens e mulheres comosimples instrumentos da histria, o que os despoja de sua liberdade eindividualidade. Marx acreditava em certas leis frreas da histria, as quais sedesenvolvem com fora inexorvel e s quais nenhuma ao humana capaz deresistir. O feudalismo estava fadado a dar luz o capitalismo, e o capitalismoinevitavelmente ceder lugar ao socialismo. Como tal, a teoria da histria de Marxno passa de uma verso secular da Providncia ou do Destino. ofensiva liberdade e dignidade humanas, assim como os Estados marxistas.

    Podemos comear perguntando o que distingue o marxismo. O que o marxismo tem quenenhuma outra teoria poltica possui? Nitidamente no se trata da ideia de revoluo, queem muito precede a obra de Marx. Tambm no se trata da noo de comunismo, que de origem antiga. O movimento da classe operria na Europa j chegara a ideiassocialistas enquanto o prprio Marx ainda era um liberal. difcil pensar em uma nicacaracterstica poltica exclusiva de seu pensamento. Definitivamente no se trata da ideiado partido revolucionrio, que nos chegou com a Revoluo Francesa. De todo modo, Marxtinha incrivelmente pouco a dizer sobre isso.

    E quanto ao conceito de classe social? Tambm no serve, j que, de formacorreta, o prprio Marx negava ter inventado a ideia. verdade que, de forma relevante,ele redefiniu todo o conceito, mas a cunhagem no foi sua. Como tambm no nasceucom ele a ideia do proletariado, familiar a vrios pensadores do sculo XIX. Sua ideia dealienao derivava sobretudo de Hegel e tambm foi antecipada pelo grande socialista efeminista irlands William Thompson. Veremos mais adiante que Marx no o nico a dartamanha prioridade questo econmica na vida social. Ele acredita numa sociedadecooperativa livre de explorao gerida pelos prprios produtores e defende a tese de queisso s seria atingvel por meios revolucionrios. Mas assim tambm pensava o grandesocialista do sculo XX Raymond Williams, que no se considerava marxista. Muitosanarquistas, socialistas libertrios e outros endossariam a viso social, mas rejeitam Marxcom veemncia.

    Duas grandes doutrinas residem no mago do pensamento de Marx. Uma o papelprimordial da questo econmica na vida social; a outra, a ideia de uma sucesso demodos de produo ao longo da histria. Veremos mais adiante, porm, que nenhuma dasduas foi inovao de Marx. Ser, ento, que a peculiaridade do marxismo o conceito deluta de classe, e no o de classe? Decerto isso est mais prximo da essncia dopensamento de Marx, mas no mais original do que a ideia de classe em si. Vejamos

  • esta estrofe, que fala de um rico senhor de terras, tirada do poema A aldeia abandonada,de Oliver Goldsmith:

    O robe que envolve seu corpo em tecido macioRoubou dos campos vizinhos metade do plantio.18

    A simetria e a economia das frases, com sua anttese muito bem-equilibrada, contrastamcom o desperdcio e o desequilbrio da economia descrita. A estrofe fala, nitidamente, deluta de classes. O que serve de robe ao proprietrio rouba seus inquilinos. Tomemos,agora, estas linhas tiradas de Comus, de John Milton:

    Se todo homem justo que agora definha por no terPossusse ao menos um quinho modesto e decenteDaquele luxo todo que, obsceno,Amontoa-se agora, excessivo, sobre um grupo pequeno Todas as bnos da natureza seriam bem-repartidasEm uma proporo equilibrada e no descabida...19

    Boa parte do mesmo sentimento expressa por Rei Lear. Na verdade, Milton roubou essaideia de Shakespeare. Voltaire acreditava que os ricos inchavam com o sangue dos pobrese que a propriedade era o cerne do conflito social. Jean-Jacques Rousseau, como veremos,argumentou um bocado nessa linha. A ideia de luta de classes de forma alguma exclusiva de Marx, como ele prprio bem o sabia.

    Ainda assim, bastante central para ele. To central que ele a v como nadamenos do que a fora que move a histria humana. Ela o motor ou a dinmica dodesenvolvimento humano, ideia que no teria ocorrido a John Milton. Enquanto muitospensadores sociais encaram a sociedade humana como uma unidade orgnica, na viso deMarx, o que a constitui diviso. Ela feita de interesses mutuamente incompatveis. Sualgica de conflito, no de coeso. do interesse da classe capitalista, por exemplo,manter baixos os salrios e do interesse dos assalariados pressionar para empurr-lospara cima.

    Marx declara no Manifesto comunista que a histria de toda a sociedade existenteanteriormente a histria de lutas de classes. Claro que no se deve interpret-lo ao pda letra. Se o fato de eu escovar os dentes na quarta-feira passada conta como parte dahistria, difcil considerar tal ato como uma questo de luta de classes. Executardeterminado arremesso no crquete ou ter obsesso patolgica por pinguins no fundamentalmente relevante para a luta de classes. Talvez essa histria se refira a

  • acontecimentos pblicos, no a acontecimentos privados, como a escovao de dentes.Mas aquela briga no bar de ontem noite foi pblica. Assim, talvez a histria se limite agrandes acontecimentos pblicos. Mas segundo a definio de quem? Seja como for, comodizer que o Grande Incndio de Londres foi uma situao de luta de classes? Poderia serum caso de luta de classes se Che Guevara tivesse sido atropelado por um caminho, masapenas na hiptese de o motorista pertencer CIA. A histria da opresso feminina seentrelaa com a histria da luta de classes, mas no apenas um aspecto dela. O mesmoacontece com a poesia de Wordsworth ou de Seamus Heaney. A luta de classes no podeabranger tudo.

    Talvez Marx no levasse a prpria afirmao ao p da letra. O Manifestocomunista, afinal, prope-se a ser um item de propaganda poltica, e como tal cheio defloreios retricos. Ainda assim, existe uma indagao importante sobre o volume depensamento marxista nele presente. Alguns marxistas aparentemente o encaram comouma Teoria de Tudo, mas decerto no se trata disso. O fato de o marxismo no ter nadade muito interessante a dizer sobre usque ou sobre a natureza do inconsciente, sobre afragrncia de uma rosa ou a razo pela qual existe algo em vez de nada existir no odesacredita. Ele no pretendia ser uma filosofia absoluta. No nos d conta da beleza, doerotismo ou do porqu de o poeta Yeats conseguir uma ressonncia curiosa em seusversos. Praticamente nada diz sobre as questes do amor, da morte e do significado davida. Tem, verdade, uma imponente narrativa a fazer, que se estende desde a aurora dacivilizao at o presente e o futuro. Mas existem outras narrativas imponentes alm domarxismo, como a histria da cincia, a da religio ou a da sexualidade, que interagemcom a histria da luta de classes, mas no podem ser reduzidas a isso (os ps-modernistas costumam pressupor que exista uma narrativa grandiosa ou, ento, apenasum monte de mininarrativas, mas no esse o caso). Assim, seja o que for que Marxpensasse, a afirmao de que toda a histria tem sido a histria da luta de classes nosignifica que tudo que j aconteceu uma questo de luta de classes, mas, sim, que aluta de classes o mais fundamental para a histria humana.

    Fundamental em que sentido, porm? Como, por exemplo, ela mais fundamentaldo que a histria da religio, da cincia ou da opresso sexual? As classes no so,necessariamente, fundamentais no sentido de gerar o motivo mais forte para a aopoltica. Pensemos no papel da identidade tnica, nesse aspecto, qual o marxismo poucaateno prestou. Anthony Giddens afirma que os conflitos interestatais, ao lado dasdesigualdades raciais e sexuais, tm a mesma importncia para a exploraoclassista.20 A mesma importncia para qu? Tm a mesma importncia moral e polticaou so igualmente importantes para a viabilizao do socialismo? s vezes chamamosalguma coisa de fundamental quando ela a base necessria para outra coisa, mas difcil imaginar que a luta de classes seja a base necessria para a f religiosa, para adescoberta cientfica ou para a opresso feminina, por mais que esteja envolvida em tudo

  • isso. No parece fato que, se chutarmos esse alicerce para longe, o budismo, a astrofsicaou o concurso de Miss Universo cairo por terra. Eles tm histrias relativamenteindependentes que lhes so exclusivas.

    Ento para que a luta de classes fundamental? A resposta de Marx pareceriadupla. A luta de classes d forma a muitssimos acontecimentos, instituies e linhas depensamento que, primeira vista, passam a impresso de isentos dela, alm de ter papeldecisivo na turbulenta transio de uma poca da histria para outra. Com histria, Marxno quer dizer tudo que j ocorreu, mas uma trajetria especfica que lhe subjacente.Ele usa histria no sentido do curso significativo de acontecimentos, no como sinnimopara o todo da existncia humana at hoje.

    Ser, portanto, a ideia de luta de classes que distingue o pensamento de Marx deoutras teorias sociais? No exatamente. Vimos que tal noo no lhe original, semelhana do conceito de modo de produo. O que mpar em seu pensamento aligao dessas duas ideias luta de classes e modo de produo a fim de fornecer umcenrio histrico novo de fato, assim como o modo como as duas ideias se juntam temsido um tema de discusso entre os marxistas, e o prprio Marx no chega a esbanjareloquncia sobre a questo. Mas, se estamos buscando o que peculiar sua obra, nadamelhor do que fazer uma pausa aqui. Em essncia, o marxismo uma teoria e umaprtica da mudana histrica de longo prazo. O problema, como veremos, que o maispeculiar ao marxismo tambm o mais problemtico. Falando de forma mais ampla, um modo de produo para Marx significa a combinao dedeterminadas foras de produo com determinadas relaes de produo. Uma fora deproduo significa qualquer instrumento por meio do qual vamos trabalhar o mundo a fimde reproduzir nossa vida material. A ideia abrange tudo que promova o domnio humano ouo controle da natureza com finalidade produtiva. Computadores so uma fora produtiva setm papel na produo material como um todo, em lugar de serem usados apenas parapapear com serial killers disfarados de estranhos amistosos. Os asnos na Irlanda dosculo XIX eram uma fora produtiva. A mo de obra humana uma fora produtiva.Essas foras, porm, jamais existem em forma bruta. Sempre esto ligadas a certasrelaes sociais, com o que Marx quer dizer relaes entre classes sociais. Uma classesocial, por exemplo, pode deter e controlar os meios de produo, enquanto outra pode seconsiderar explorada.

    Marx acredita que as foras produtivas tm tendncia a se desenvolver conforme ahistria se desenrola. Isso no significa que elas progridem o tempo todo, j que eleaparentemente tambm defende que essas foras podem atravessar longos perodos deestagnao. O agente desse desenvolvimento qualquer classe social no comando daproduo material. Nessa verso da histria, como se as foras produtivasselecionassem a classe mais capacitada a expandi-las. Chega-se a um ponto, contudo,

  • em que as relaes sociais prevalentes, longe de promover o crescimento das forasprodutivas, comeam a agir como um entrave. As duas entram em total contradio, e ocenrio est pronto para a revoluo poltica. A luta de classes se agua, e uma classesocial capaz de levar adiante as foras de produo assume o poder das mos de seusantigos senhores. O capitalismo, por exemplo, cambaleia de crise em crise, tropeo emtropeo, graas s relaes sociais que ele envolve; e, a certa altura em seu declnio, aclasse operria est mo para assumir a propriedade e o controle da produo. Adeterminada altura de sua obra, Marx chega a afirmar que nenhuma classe social novaassume at que as foras produtivas tenham sido desenvolvidas tanto quanto possvel pelaclasse anterior.

    O caso apresentado de forma mais sucinta na seguinte passagem bastanteconhecida:

    Em determinado estgio de seu desenvolvimento, as foras materiais produtivas dasociedade entram em contradio com as relaes de produo existentes ou oque no passa de uma expresso legal da mesma coisa com as relaes depropriedade dentro das quais vm funcionando at ento. De formas dedesenvolvimento das foras produtivas, essas relaes se transformam em seusgrilhes. Ento tem incio uma poca de revoluo social.21

    Existem vrios problemas com tal teoria, como os prprios marxistas no demoraram aapontar. Para comear, por que Marx supe que, de modo geral, as foras produtivascontinuam evoluindo? verdade que o desenvolvimento tecnolgico tende a ser cumulativo,no sentido de que os seres humanos relutam em abandonar quaisquer avanos feitos emtermos de prosperidade e eficincia. Isso porque, como espcie, somos um tantoracionais, mas tambm levemente indolentes e, portanto, inclinados a poupar trabalho(esses fatores determinam que as filas nos caixas costumem ter aproximadamente omesmo tamanho). Uma vez inventado o e-mail, no provvel que voltemos escrita empedras. Tambm detemos a capacidade de transmitir tais avanos a geraes futuras. Oconhecimento tecnolgico raramente se perde, mesmo quando a tecnologia em si destruda. Isso, porm, uma verdade to ampla que no serve para jogar muita luz sobreo assunto. No explica, por exemplo, por que as foras de produo evoluem muitorapidamente em determinada poca, mas podem passar sculos estagnadas, de outrafeita. A existncia ou no de grande desenvolvimento tecnolgico depende das relaessociais existentes, no de algum impulso embutido. Alguns marxistas no veem acompulso para melhorar as foras de produo como uma lei geral da histria, mas comoum imperativo especfico do capitalismo. Eles implicam com a suposio de que todomodo de produo deve ser seguido por outro mais produtivo. Se Marx se inclua entre

  • esses marxistas um ponto discutvel.Alm disso, no se sabe claramente por meio de que mecanismo certas classes

    sociais so selecionadas para a tarefa de promover as foras produtivas. Essas foras,afinal, no so um personagem-fantasma capaz de supervisionar o cenrio social e chamardeterminado candidato para ajud-las. As classes governantes, claro, no promovem asforas produtivas movidas por altrusmo, assim como no assumem o poder com opropsito expresso de alimentar os famintos e vestir os desnudos. Ao contrrio, elastendem a correr atrs dos prprios interesses materiais, recolhendo um excedente dotrabalho dos outros. A ideia, contudo, que, ao faz-lo, elas adiantam involuntariamente asforas produtivas como um todo e, junto com elas (ao menos a longo prazo), a riquezaespiritual, bem como a material, da humanidade. Elas geram recursos inacessveis maioria nas sociedades classistas, mas, ao faz-lo, constroem um legado que homens emulheres um dia herdaro no futuro comunista.

    Marx nitidamente acha que a riqueza material pode prejudicar nossa sade moral.Ainda assim, no v um abismo entre o moral e o material, como alguns pensadoresidealistas. Para ele, o desabrochar das foras produtivas envolve a ecloso de habilidades edo poder criativo humanos. Em certo sentido, a histria no , de forma alguma, umahistria de progresso. Ao contrrio, passamos, vacilantes, de uma forma de sociedadeclassista, de um tipo de opresso e explorao, para outra. Em outro sentido, porm, essanarrativa sinistra pode ser encarada como um movimento adiante ou para cima, medidaque os seres humanos adquirem necessidades e desejos mais complexos, cooperam demaneiras mais intrincadas e gratificantes e criam tipos de relacionamento e degratificao.

    Os seres humanos recebero essa herana no futuro comunista, mas o processode constru-lo inseparvel da violncia e da explorao. No fim, sero estabelecidasrelaes sociais que distribuam essa riqueza acumulada para o benefcio de todos. Oprocesso de acumulao, porm, envolve a excluso da maioria de homens e mulheres dogozo de seus frutos. Para Marx, assim a histria progride por meio de seu lado mau. como se a injustia hoje fosse inevitvel para haver justia mais tarde. O fim est emdesacordo com os meios: se no houvesse explorao, no haveria a expansosignificativa das foras produtivas, e, se tal expanso no existisse, no haveria basematerial para o socialismo.

    Marx sem dvida est certo ao ver que o material e o espiritual se conflitam ecolidem. Ele no apenas condena a sociedade classista por suas atrocidades morais,embora tambm o faa, mas reconhece que a gratificao espiritual demanda um alicercematerial. No se pode estabelecer uma relao decente quando se est morrendo de fome.Toda extenso de comunicao humana traz consigo novas formas de comunidade e novostipos de diviso. Tecnologias novas podem frustrar o potencial humano, mas tambm socapazes de aument-lo. A modernidade no deve ser louvada de forma leviana, mas no

  • deve tambm ser ignorada com desdm. Suas caractersticas positivas e negativas so, namaior parte, aspectos do mesmo processo. por isso que apenas uma abordagemdialtica, uma abordagem que perceba como a contradio faz parte de sua essncia,poder lhe fazer justia.

    No obstante, existem problemas reais com a teoria da histria de Marx. Por que,por exemplo, o mesmo mecanismo o conflito entre as foras e as relaes de produo opera na guinada de uma era de sociedade classista para a outra? O que responsvelpor essa estranha coerncia ao longo de enormes perodos do tempo histrico? De todaforma, se a oposio poltica for poderosa o suficiente, no ser possvel derrubar umaclasse dominante enquanto ela ainda se encontra em seu apogeu? Realmente precisoesperar at que falseiem as foras produtivas? O crescimento das foras produtivas noser capaz de sabotar a classe prestes a assumir criando, digamos, novas formas detecnologia opressora? verdade que, com o crescimento das foras produtivas, ostrabalhadores tendem a se tornar mais capacitados, mais bem-organizados, instrudos e(talvez) politicamente confiantes e sofisticados. Pela mesma razo, porm, talvez hajatambm mais tanques, cmeras de vigilncia, jornais de direita e modos de trabalhoterceirizado. Novas tecnologias podem jogar mais gente no desemprego e,consequentemente, na inrcia poltica. De todo modo, para descobrir se uma classe socialest madura para fazer uma revoluo no necessrio apenas saber se ela tem o poderde promover as foras de produo. As habilidades classistas so moldadas por todo umleque de fatores. E como saber se um conjunto especfico de relaes sociais ser tilpara essa finalidade?

    Uma mudana nas relaes sociais no pode simplesmente ser explicada por umaexpanso das foras produtivas. Nem necessariamente mudanas inditas nas forasprodutivas resultam em novas relaes sociais, como bem ilustra a Revoluo Industrial.As mesmas foras produtivas podem coexistir com diferentes conjuntos de relaessociais. O stalinismo e o capitalismo industrial, por exemplo. Quando se trata deagricultura camponesa, desde a poca antiga at a Idade Moderna, um amplo leque derelaes sociais e formas de propriedade provou ser possvel. Ou o mesmo conjunto derelaes sociais pode promover diferentes tipos de foras produtivas. Tomemos aindstria capitalista e a agricultura capitalista. As foras produtivas e as relaesprodutivas no danaram em harmonia ao longo da histria. A verdade que cada etapa dodesenvolvimento das foras produtivas abre todo um leque de relaes sociais possveis, eno existe garantia de que uma delas venha a acontecer. Como tambm nada garante queum agente revolucionrio potencial estar convenientemente mo quando a crisehistrica se apresentar. s vezes, simplesmente no h classe alguma capaz de levaradiante as foras produtivas, como aconteceu no caso da China clssica.

    Mesmo assim, a conexo entre as foras e as relaes esclarecedora. Entreoutras coisas, ela nos permite reconhecer que s possvel haver determinadas relaes

  • sociais se as foras produtivas tiverem evoludo at certo nvel. Se a alguns couber viverde maneira muito mais confortvel do que a outros, ser preciso gerar um saldoeconmico considervel, e isso s possvel em determinado ponto do desenvolvimentoprodutivo. No se pode sustentar uma imensa corte real, com menestris, pajens, bufes etesoureiros, se todos precisam apascentar cabras ou cavoucar a terra o tempo todoapenas a fim de sobreviver.

    A luta de classes , basicamente, uma luta pelo excedente, e como tal est fadadaa prosseguir enquanto no houver o bastante para todos. As classes surgem sempre que aproduo material est organizada a ponto de motivar alguns indivduos a transferir oexcedente de seu trabalho para outros a fim de sobreviver. Quando h pouco ou nenhumexcedente, como no chamado comunismo primitivo, todos precisam trabalhar, ningumpode viver da labuta de outros, e no h espao para classes. Mais tarde, a existncia deum excedente suficiente permite o estabelecimento de classes, como a dos senhoresfeudais, que vivem custa do trabalho de seus vassalos. Apenas com o capitalismo possvel gerar saldo suficiente para abolir a escassez e, consequentemente, as classessociais. No entanto, somente o socialismo capaz de pr isso em prtica.

    No fica claro, porm, por que as foras produtivas devem sempre ganhar dasrelaes sociais por que as ltimas parecem to humildemente condescendentes sprimeiras. Alm disso, a teoria no parece em acordo com a forma com que Marx de fatoretrata a transio do feudalismo para o capitalismo ou, em alguns aspectos, daescravido para o feudalismo. igualmente verdade que as mesmas classes sociais quasesempre se conservam no poder durante sculos apesar de sua incapacidade de promover ocrescimento produtivo.

    Um dos defeitos bvios desse modelo seu determinismo. Nada parece capaz deresistir marcha das foras produtivas. A histria se resolve por uma lgica interna.Existe um nico agente da histria (as foras produtivas em crescimento constante) quese estende por toda ela, criando cenrios polticos diversos conforme a histria progride.Essa uma viso metafsica. No entanto, no um cenrio simplrio do Progresso. Nofim, os poderes e talentos humanos que evoluem com as foras produtivas produzem umtipo melhor de humanidade. O preo a pagar por isso, contudo, avassalador. Cada avanodas foras produtivas uma vitria tanto para a civilizao quanto para a barbrie. Se trazem seu rastro novas possibilidades de emancipao, tambm chega coberto de sangue.Marx no era um ingnuo progressista. Estava perfeitamente ciente do terrvel custo docomunismo.

    verdade que existe tambm luta de classes, o que aparentemente sugeriria quehomens e mulheres so livres. difcil imaginar que greves, locautes e atividades sejamditados por alguma fora providencial. Mas e se essa prpria liberdade fosse, por assimdizer, programada, j incorporada na marcha irrefrevel da histria? H uma analogia aquicom a interao crist entre a providncia divina e o livre-arbtrio humano. Para os

  • cristos, algum age livremente quando estrangula o chefe de polcia local, mas Deusprevira essa ao desde sempre e a inclura em seu projeto para a humanidade. Ele nome obrigou a me vestir de empregadinha na sexta-feira passada e adotar o nome de Milly,mas, sendo onisciente, sabia que eu faria isso e podia assim moldar seus esquemascsmicos com a questo de Milly em mente. Quando rezo para Ele pedindo um ursinho depelcia de aparncia melhor do que aquele surrado e manchado de cerveja que atualmentedorme em meu travesseiro, no que Deus jamais tivesse pretendido me conceder umfavor tal e depois de ouvir minha prece mudasse de ideia. Deus no pode mudar de ideia.Ocorre que Ele decidiu desde sempre me dar um novo ursinho por causa da minha prece,que ele igualmente anteviu desde sempre. Em certo sentido, a chegada do futuro reino deDeus no preordenada: ele chegar apenas se homens e mulheres trabalharem para issono presente. Mas o fato de que eles trabalhem para isso voluntariamente ser em si umresultado inevitvel da graa de Deus.

    Existe uma interao similar entre a liberdade e a inevitabilidade em Marx, que svezes parece pensar que a luta de classes, embora em certo sentido livre, esteja fadada ase intensificar sob determinadas condies histricas e que s vezes esse resultado podeser previsto com segurana. Tomemos, por exemplo, a questo do socialismo. Marxaparentemente encara o advento do socialismo como inevitvel. Ele diz isso mais de umavez. No Manifesto comunista, a queda da classe capitalista e a vitria da classe operriaso descritas como igualmente inevitveis. Isso no se deve, porm, ao fato de Marxcrer que exista alguma lei secreta gravada na histria que h de promover a chegada dosocialismo independentemente do que faam ou deixem de fazer homens e mulheres.Nesse caso, por que ele insistia na necessidade de luta poltica? Se o socialismo realmente inevitvel, seria de imaginar que no precisamos seno esperar que ele chegue,talvez escolhendo molhos ou colecionando tatuagens enquanto isso. O determinismohistrico uma receita para a quietude poltica. No sculo XX, teve um papel-chave nofracasso do movimento comunista em combater o fascismo, seguro como estava durantealgum tempo de que o fascismo no passava do estertor da morte de um sistemacapitalista beira da extino. Pode-se argumentar que, embora para o sculo XIX oinevitvel s vezes fosse aguardado com ansiedade, esse no o nosso caso. Frases quecomeam com inevitvel agora que... em geral soam meio agourentas.

    Marx no acha que a inevitabilidade do socialismo signifique possamos todos ficarrefestelados na cama. Ele cr, sim, que, uma vez que o capitalismo fracasse emdefinitivo, os trabalhadores no tero motivo algum para deixar de assumir o poder etodos os motivos para faz-lo. Eles reconhecero que de seu interesse mudar o sistemae que, sendo uma maioria, tambm tero poder para tanto. Por isso agiro como osanimais racionais que so e estabelecero uma alternativa. Por que diabos levar umaexistncia miservel sob um regime que voc capaz de mudar em proveito prprio? Porque deixar o p comichar insuportavelmente quando voc pode co-lo? Assim como para

  • os cristos a ao humana livre, embora faa parte de um plano preordenado, tambmpara Marx a desintegrao do capitalismo h de levar inescapavelmente homens emulheres a varr-lo para longe por livre e espontnea vontade.

    Marx, ento, est falando sobre aquilo que homens e mulheres livres esto fadadosa fazer sob determinadas circunstncias. Mas isso decerto uma contradio, j queliberdade significa que no h nada criando obrigao. Voc no obrigado a devorar umacosteleta de porco suculenta se suas entranhas estiverem sofrendo terrveis clicas defome. Como muulmano devoto, talvez voc prefira morrer. Se existe apenas um curso deao possvel, e se para mim for impossvel no adot-lo, no sou livre. O capitalismopode estar balanando beira do abismo, mas talvez no seja o socialismo que venha asubstitu-lo. Talvez seja o fascismo ou a barbrie. Talvez a classe operria fiqueenfraquecida e desmoralizada demais pelo desmoronamento do sistema para agir demaneira construtiva. Em um momento incomumente sombrio, Marx pondera que a luta declasses pode resultar na runa coletiva das classes contendedoras.

    Ou uma possibilidade que ele no pde antecipar plenamente talvez osistema seja capaz de rechaar a insurreio poltica por reforma. A social-democracia um quebra-mar entre ela mesma e a catstrofe. Dessa maneira, o excedente colhido dasforas produtivas desenvolvidas pode ser usado para calar a revoluo, o que no seencaixa perfeio no esquema histrico de Marx. Ao que parece, ele acreditava que aprosperidade capitalista pode to somente ser temporria, que o sistema acabar, umahora ou outra, fazendo gua e que a classe operria, ento, inevitavelmente se insurgir eassumir o controle. Isso, porm, para comeo de conversa, no leva em conta as muitasmaneiras (muito mais sofisticadas em nossa poca do que na de Marx) pelas quais atum capitalismo em crise capaz de garantir o consentimento de seus cidados. Marx noconsiderou a existncia do canal Fox News e do jornal Daily Mail.

    Existe, claro, outro futuro vislumbrvel, a saber, nenhum futuro. Marx no podiaprever a possibilidade de um holocausto nuclear ou de uma catstrofe ecolgica. Ou talveza classe dominante viesse a ser derrubada ao lhe cair na cabea um asteroide, destino quealguns de seus membros talvez considerassem prefervel revoluo socialista. Mesmo ateoria mais determinista da histria pode naufragar sob acontecimentos to imprevisveis.De todo modo, continuamos a poder indagar quo determinista em termos de histria Marxrealmente . Se nada mais houvesse em sua obra alm da ideia das foras produtivasdando origem a determinadas relaes sociais, a resposta seria simples. Isso correspondea um determinismo absoluto, algo que pouqussimos marxistas hoje estariam preparadospara apoiar.22 Para tal viso, no so os seres humanos que criam sua histria, mas asforas produtivas, que levam uma vida estranha, fetichista e independente.

    Entretanto, existe uma corrente diversa de pensamento na obra de Marx, para aqual so as relaes sociais de produo que detm prioridade sobre as foras produtivas,e no o contrrio. Se o feudalismo preparou o caminho para o capitalismo, no foi porque

  • este poderia promover as foras produtivas de forma mais eficiente, mas porque asrelaes sociais feudais no campo foram aos poucos banidas pelas capitalistas. Ofeudalismo criou as condies em que a nova classe burguesa pde crescer, mas essaclasse no surgiu como um resultado do crescimento das foras produtivas. Ademais, seas foras de produo se expandiram no feudalismo, no foi porque havia nelas algumatendncia para se desenvolverem, mas por interesse de classe. Quanto ao perodomoderno, se as foras produtivas cresceram to rapidamente ao longo dos dois ltimossculos, foi porque o capitalismo no capaz de sobreviver sem constante expanso.

    Nessa teoria alternativa, os seres humanos, na forma de relaes sociais e lutasde classe, so os autores da prpria histria. Marx certa vez comentou que ele e Engelshaviam enfatizado a luta de classes como a fora propulsora imediata da histriadurante cerca de quarenta anos.23 O problema da luta de classes que seu resultado nopode ser previsto e o determinismo no pode, por isso, encontrar respaldo. Sempre possvel argumentar que o conflito de classes determinado que caracterstico danatureza das classes sociais buscar interesses mutuamente conflitantes e que isso regido pelo modo de produo. No entanto, apenas de vez em quando esse conflitoobjetivo de interesses toma a forma de uma batalha poltica de grande escala, e difcilver como tal batalha possa ser pr-esboada. Marx talvez pensasse que o socialismo erainevitvel, mas com certeza no achava que as leis trabalhistas ou a Comuna de Paris ofossem. Se de fato tivesse sido um determinista puro-sangue, talvez pudesse nos ter ditoquando e como o socialismo surgiria. Mas era um profeta no sentido de denunciar ainjustia, no no sentido de ler uma bola de cristal.

    Escreve Marx: A histria nada faz, no possui uma riqueza imensa, no promove batalhas. ohomem, o homem vivo, de verdade, que tudo faz, tudo possui e que luta; ahistria no , com efeito, uma pessoa independente, que utiliza o homem comomeio para atingir seus objetivos, a histria nada mais seno a atividade dohomem em busca de seus objetivos.24

    Quando comenta sobre as relaes de classe no mundo antigo, medieval ou moderno,quase sempre Marx escreve como se estas fossem primordiais. Ele tambm insiste emque cada modo de produo, da escravido ao feudalismo, e deste ao capitalismo, temsuas leis de desenvolvimento. Se assim , no mais carece pensar em termos de umprocesso histrico rigorosamente linear, em que cada modo de produo segue atrs dooutro segundo alguma lgica interna. No existe nada endmico no feudalismo paratransform-lo intrinsecamente em capitalismo. J no existe um fio nico que atravesse atapearia da histria, mas, sim, um conjunto de diferenas e descontinuidades. a

  • economia poltica burguesa, no o marxismo, que pensa em termos de leis universais deevoluo. O prprio Marx protestou contra a acusao de estar tentando reunir o todo dahistria sob uma nica lei. Era profundamente avesso a tais abstraes dbeis, comoconvm a um bom romntico. O mtodo materialista se transforma em seu oposto,insistia, se for adotado, no como o princpio de investigao orientador, mas comopadro pronto pelo qual algum molda os fatos da histria como lhe convm.25 Ele avisaque sua viso das origens do capitalismo no deveria ser transformada em uma teoriahistrico-filosfica do rumo geral recomendado pelo destino para todas as naes,quaisquer que sejam as circunstncias histricas em que se encontrem.26 Se existiamdeterminadas tendncias em ao na histria, existiam tambm contratendncias, o queimplica a impossibilidade de garantir os resultados.

    Alguns marxistas subestimaram a primazia das foras produtivas esuperestimaram a teoria alternativa que acabamos de examinar, mas isso, provavelmente, defensivo demais. O primeiro modelo pode ser reconhecido em pontos importantes naobra de Marx, sugerindo que ele o levava muito a srio. No parece uma aberraomomentnea. Essa tambm a maneira como marxistas como Lnin e Trtskicostumavam interpret-lo. Alguns coment