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CRÍTICA MARXISTA 113 CRÍTICA marxista )RTIGOS Marx, Engels e o sistema de poder mundial no século XIX MUNIZ FERREIRA * O presente artigo se ocupa da produção de Karl Marx e Friedrich Engels referente às relações diplomáticas entre os Estados nacionais europeus durante as décadas de 50 e 60 do século XIX. No curso destes anos, os iniciadores da tradição marxista tiveram a oportunidade de exercitar suas aptidões como analistas dos assuntos internacionais em publicações européias e norte-americanas, em particu- lar nas páginas do diário estadunidense New York Daily Tribune, do qual foram correspondentes na Europa entre 1851 e 1862. O New York Daily Tribune foi fundado em 1841 e publicado até 1924. Até meados dos anos 50 do século XIX, orientava-se por posições liberais de esquerda tornando-se, a partir de então, órgão do Partido Republicano. Quando deflagrou a Guerra Civil norte-americana, o Tribune, coerente com a posição adotada pelo Partido Republicano, perfilou clara- mente ao lado das forças abolicionistas, apoiando os estados setentrionais em sua luta contra a secessão sulista. Entretanto, em virtude de dificuldades financeiras sofridas no curso da guerra, dispensou todos os seus colaboradores internacionais, interrompendo a correspondência de Marx em 1862. Os primeiros artigos que Marx e Engels dedicaram às relações diplomáticas entre os Estados europeus no Tribune tiveram, como pano de fundo, o refluxo dos movimentos revolucionários que se haviam disseminado ao longo do continente no período 1847-1849 e o estabelecimento do Segundo Império Francês sob a direção de Luiz Bonaparte, no ano de 1851. Foi justamente à atividade deste últi- mo personagem que os dois articulistas dirigiram suas primeiras observações em matéria de diplomacia internacional. Contudo, no primeiro ano de colaboração de Marx e Engels para com o Tribune, a emergência nacional das populações da Europa Centro-Oriental e o balanço dos movimentos democrático-radicais no * Professor de História Moderna e Contemporânea da UFBA. E-mail: [email protected].

Marx Engels Sistema de Poder Mundial

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    O presente artigo se ocupa da produo de Karl Marx e Friedrich Engelsreferente s relaes diplomticas entre os Estados nacionais europeus durante asdcadas de 50 e 60 do sculo XIX. No curso destes anos, os iniciadores da tradiomarxista tiveram a oportunidade de exercitar suas aptides como analistas dosassuntos internacionais em publicaes europias e norte-americanas, em particu-lar nas pginas do dirio estadunidense New York Daily Tribune, do qual foramcorrespondentes na Europa entre 1851 e 1862. O New York Daily Tribune foifundado em 1841 e publicado at 1924. At meados dos anos 50 do sculo XIX,orientava-se por posies liberais de esquerda tornando-se, a partir de ento, rgodo Partido Republicano. Quando deflagrou a Guerra Civil norte-americana, oTribune, coerente com a posio adotada pelo Partido Republicano, perfilou clara-mente ao lado das foras abolicionistas, apoiando os estados setentrionais em sualuta contra a secesso sulista. Entretanto, em virtude de dificuldades financeirassofridas no curso da guerra, dispensou todos os seus colaboradores internacionais,interrompendo a correspondncia de Marx em 1862.

    Os primeiros artigos que Marx e Engels dedicaram s relaes diplomticasentre os Estados europeus no Tribune tiveram, como pano de fundo, o refluxo dosmovimentos revolucionrios que se haviam disseminado ao longo do continenteno perodo 1847-1849 e o estabelecimento do Segundo Imprio Francs sob adireo de Luiz Bonaparte, no ano de 1851. Foi justamente atividade deste lti-mo personagem que os dois articulistas dirigiram suas primeiras observaes emmatria de diplomacia internacional. Contudo, no primeiro ano de colaboraode Marx e Engels para com o Tribune, a emergncia nacional das populaes daEuropa Centro-Oriental e o balano dos movimentos democrtico-radicais no

    * Professor de Histria Moderna e Contempornea da UFBA. E-mail: [email protected].

  • interior do mundo germnico constituram os temas privilegiados da correspon-dncia jornalstica dos dois pensadores revolucionrios alemes com o dirioestadunidense.

    Somente a partir do binio 1853-1854, as articulaes poltico-diplomticasentre os principais Estados nacionais europeus situaram-se no centro das preocu-paes internacionais dos dois companheiros de lutas e letras. Os interesses inter-nacionais tangidos pelo movimento de unificao italiana, o destino da Turquia eas aes da Rssia, tais foram os temas internacionais que mais catalisaram a aten-o de Marx e Engels neste perodo.

    No escaparam ao olhar dos dois crticos alemes os objetivos restauracionistase conservadores que presidiram fundao do sistema internacional da Conven-o de Viena1. Interessados como estavam nos destinos do movimento revolucio-nrio europeu, Marx e Engels no pouparam crticas s concepes e aos mtodosdas cinco potncias (ustria, Prssia, Rssia, Inglaterra e Frana), que constituamo ncleo duro deste sistema. Para os dois autores, por detrs da verborragia altisso-nante dos homens de Estado europeus do perodo ocultavam-se dois objetivosinconfessveis: o desejo de supremacia e o repdio revoluo. Para eles, portanto,tais desgnios no poderiam inspirar outras atitudes internacionais se no aquelascaracterizadas pela hipocrisia e a simulao entre as grandes potncias, o desrespei-to soberania nacional e a prtica sistemtica de chantagens e intimidaes notratamento dispensado por estas aos Estados menores. Como regra geral, vigorava,portanto, a prtica da interferncia recproca nos assuntos internos de outros Esta-dos, limitada apenas pelo equilbrio de poder nas relaes entre eles.

    Ainda naquele contexto, Marx e Engels j percebiam o aprofundamento dastenses entre as potncias europias com relao aos problemas do Oriente Prxi-mo. Verificava-se ento um deslocamento da ateno dos principais Estados euro-ocidentais para as perspectivas geradas pela deteriorao do poder do ImprioTurco. O que significava possibilidades reais de absoro de parcelas valiosas doantigo imprio dos sultes como aquelas situadas na regio dos Balcs, bem comonas imediaes do Estreito de Bsforo e dos Dardanelos. Destarte, uma extensasrie de artigos dos dois autores versou sobre a chamada Questo Oriental, pon-to nodal da futura Guerra da Crimia.

    1 Ordenamento poltico internacional pactuado na capital austraca ao final das guerrasnapolenicas do incio do sculo XIX. Teve como seus principais protagonistas a Inglater-ra, o Imprio Austraco, a Prssia e a Rssia, sendo a Frana incorporada aps a restaura-o monrquica. Seu principal objetivo foi constituir um sistema de segurana coletivaque preservasse os regimes monrquicos e absolutistas da Europa de ento da ameaarevolucionria.

  • Avaliao do papel desempenhado pela Rssia no sistema internaacionalA forma obstinada com que Marx e Engels se dedicaram a denunciar e com-

    bater o czarismo traz tona o tema da pretensa russofobia destes autores. Nosescritos que dedicaram ento chamada questo oriental, Marx e Engels no selimitaram a atacar as aes da diplomacia moscovita, como tambm procuraramdesnudar os propsitos conservadores e anti-revolucionrios das potncias ociden-tais. De acordo com seus pontos de vista, a finalidade da poltica externa das po-tncias euro-ocidentais consistia em enfraquecer a Rssia como rival na disputapela supremacia nas regies do Oriente Prximo e dos Balcs, ao mesmo tempoem que procuravam preservar o poderio russo para que o pas continuasse a de-sempenhar seu papel de gendarme dos movimentos democrtico-revolucionriosnessas mesmas regies. Segundo a percepo de Marx e Engels, portanto, a atua-o do Ocidente frente questo oriental caracterizava-se por desgnios ao mes-mo tempo anti-revolucionrios e hegemonistas. Interessava aos planos estratgicosanglo-franceses a existncia de uma poltica de conteno recproca entre o czar eo Sulto capaz de tensionar e paralisar os dois Estados rivais, sem lhes subtrair acapacidade de esmagar pela fora os movimentos revolucionrios que porventurase insinuassem no mbito das reas sob sua possesso.

    Enquanto partidrios e militantes ativos dos movimentos revolucionrios euro-peus os quais, bom lembrar, possuam, em termos continentais, carter predomi-nantemente democrtico-republicano , opunham-se natureza contra-revolucion-ria do czarismo. Na condio de analistas das relaes internacionais, combatiam osobjetivos expansionistas e desestabilizadores da poltica externa da Rssia Imperial,voltada para a conquista e a subordinao dos povos situados no campo de projeoestratgica desta potncia. A multidimensionalidade de tal perspectiva contribua parainseri-los no mago da intelectualidade progressista europia, ao lado, simultaneamen-te, de outras personalidades e tendncias socialistas, democrticas e liberais.

    David Riazanov, cujo nome verdadeiro era David Goldenbank, foi talvez o pri-meiro marxlogo da histria. Nascido na Rssia em 1870, ingressou no movimentorevolucionrio em 1889. Trabalhou na recuperao e organizao dos manuscritosinditos de Marx e Engels, ento em poder do SPD, sendo responsvel pela sua trans-ferncia para Moscou aps a revoluo russa. Organizou as primeiras edies de textoscomo a Ideologia Alem e os Manuscritos Economico-filosficos de 1844, trabalho emque contou com a colaborao de Gyorgy Luckcs. Em seu estudo, Origens da Hege-monia da Rssia na Europa2, o erudito russo historicizava as razes da oposio irredutvel

    2 D. Riazanov, Origine de lHgemonie de la Russie en Europe. Estudo introdutrio coletnea de escritos de Marx e Engels. La Russie. Paris, Union Gnrale Dditions,1974, pp. 15-58.

  • de Marx e Engels ao czarismo. Segundo ele, tal postura havia sido adotada pelosdemiurgos da filosofia da praxis no curso de suas experincias frente da Nova GazetaRenana, rgo do republicanismo radical alemo nos anos 1848-1849. O fracasso darevoluo na Alemanha, bem como em outras partes da Europa, haveria cristalizadono pensamento de Marx e Engels uma dada interpretao acerca do papel contra-revolucionrio que estaria sendo desempenhado, naquele momento, pelas principaispotncias europias. Como escrevera na poca o jovem Friedrich Engels:

    A Prssia, a Inglaterra e a Rssia so as trs potncias que mais temem arevoluo alem e sua conseqncia primordial a unificao alem: aPrssia, porque deixaria de existir, a Inglaterra, porque o mercado alemoseria subtrado sua explorao, a Rssia, pelo fato de que a democraciano deixaria de progredir no somente at o Vstula, porm at mesmo smargens do Duna e do Dniepr3.

    Datam desta poca, portanto, no apenas a construo de uma imagem vi-olentamente anticzarista, como tambm uma convico acerca da inevitabilidadedos alinhamentos contra-revolucionrios da Inglaterra. Para Marx e Engels, haviaduas ordens de fatores que conduziriam o primeiro pas capitalista do mundo aperfilar ao lado das autocracias mais reacionrias da Europa. O primeiro delesseria o monoplio do processo de formulao e execuo da poltica externa brit-nica por parte dos representantes da aristocracia territorial daquele pas. O segun-do deles seria o fato de que, para Marx e Engels, qualquer triunfo revolucionriona Europa continental, em particular na Frana e na Alemanha, fortaleceria inco-mensuravelmente o cartismo no interior da prpria Inglaterra. O fracasso da uni-ficao alem sob a gide de uma repblica democrtica e cada derrota da revolu-o na Frana significariam, segundo Marx e Engels, aos olhos da aristocracia edos crculos conservadores da poltica britnica, derrotas do prprio cartismo in-gls. A corporificao humana desta poltica seria Lord Palmerston, Henry JohnTemple Palmerston. (1784-1865), homem de Estado britnico e uma das maisdestacadas personalidades da poltica inglesa no sculo XIX.

    Marx e Engels conceberam que suas tarefas, primeiro enquanto partidriosda unificao da Alemanha sobre bases democrticas, e tambm comopropugnadores da revoluo europia, consistiriam em: a) desmascarar o oportu-

    3 Friedrich Engels, O Armistcio Prusso-dinamarqus. Nova Gazeta Renana, 9 de setem-bro de 1848, apud Marx e Engels, La Russie, op. cit. 17. curiosa nesta citao a ausnciada ustria, pedra angular do sistema internacional de Viena e apontada por Marx e Engelsem outras passagens como a mais reacionria das monarquias da Europa Centro-Oriental.

  • nismo da diplomacia inglesa presidida por Palmerston (que se fazia passar interna-cionalmente como campeo do constitucionalismo e das liberdades), denuncian-do seu carter reacionrio e pr-autocrtico; b) intensificar o combate polticocontra os crculos dirigentes prussianos em prol da unificao da Alemanha sob aforma de uma Repblica democrtica; e c) denunciar e conclamar ao combatetodas as foras democrticas contra o czarismo russo, visto como a quintessnciada reao europia, e inimigo jurado da revoluo alem. muito significativoobservar o fato de que essas avaliaes produzidas no curso das malogradas inicia-tivas revolucionrias alems dos anos 40 marcariam profundamente as leituras deMarx e Engels sobre o papel histrico-poltico desempenhado pelas principaispotncias europias nas dcadas seguintes. O fato de que o engajamento no pro-cesso revolucionrio alemo e europeu dos anos 40 tenha constitudo de fato aprimeira experincia de atuao poltica concreta de Marx e Engels explica, emgrande medida, a longevidade das impresses recolhidas naquele processo. Tal fatodeterminaria que os temas da revoluo alem e as lies retiradas dali marcari-am indelevelmente as vises polticas de Marx e Engels at o fim de suas vidas.

    Riazanov observa que, apesar do desservio prestado por Palmerston fracassadarevoluo alem do final dos anos 40, o homem de Estado britnico ainda desfrutavade expressiva simpatia junto aos crculos liberais alemes. Reivindicando a herana deGeorge Canning4, que fora uma espcie de contraponto liberal e constitucionalista linha dura reacionrio-conservadora do Clube de Viena nos primeiros anos da dca-da de 20 do sculo XIX, Palmerston era visto por amplos segmentos liberais como umcampeo do constitucionalismo. Desmascarar Palmerston constitua, acima de tudo,uma forma de solapar sua influncia junto a importantes segmentos polticos inseridosno campo da revoluo democrtica alem.

    O destino da Turquia no sistema de VienaMarx e Engels dedicaram Turquia Otomana um complacente desprezo.

    Para eles, a entidade turca era pouco mais do que uma relquia do passado, umvestgio decadente e quase inofensivo de um imprio outrora agressivo e orgulho-so. No interior de sua sociedade, identificavam uma fuso do despotismo asiticocom o anacronismo bizantino. Destitudos de qualquer idlio em relao s forma-

    4 George Canning (1779-1827) foi um destacado poltico e estadista Whig na Inglaterra daprimeira metade do sculo XIX. Substituiu Castlereagh, - poltico profundamente conservadore o principal responsvel pela estruturao da Qudrupla Aliana (Inglaterra, ustria, Prssia eRssia) que derrotou Napoleo em 1814 frente da Chancelaria Britnica. Inverteu a pautada poltica externa inglesa, substituindo a nfase nos temas continentais por um enfoque maisinsular, o que resgatava a centralidade das preocupaes britnicas com seu comrcio martimoem detrimento do policiamento da Europa contra possveis perturbaes.

  • es orientais ou pr-capitalistas, os dois pensadores alemes eram incapazes decompartilhar as simpatias que certos intelectuais do Ocidente dedicavam Porta.De fato, este antigo Estado muulmano, que um dia alvoroara a Europa com seuflego anexionista, no passava, em meados do sculo XIX, de uma potncia mo-ribunda. Dividida entre o avassalamento pelo czar e a dependncia poltica e eco-nmica frente s potncias ocidentais, a ptria do Sulto de Constantinopla nopassava de simples objeto da poltica internacional. Marginalizada das decises pol-ticas mundiais e corroda por seus conflitos internos, como na questo das naciona-lidades balcnicas, essa formao histrica encontrava-se em adiantado processo dedecomposio. Aos crculos dirigentes ocidentais interessava, naturalmente, tirarproveito do esfacelamento do Imprio Otomano, incorporando territrios e popula-es at ento subordinados soberania deste, s suas hegemonias. Mas interessavatambm impedir que o vazio de poder legado pelo refluxo otomano gerasse umquadro de instabilidade generalizada nas imediaes do Mar Mediterrneo. Piorainda, temiam que a absoro das antigas provncias por parte de outras potncias em primeiro lugar a Rssia, mas tambm, em menor medida, a ustria e a Prssia propiciasse condies para um acmulo excessivo de poder por uma destas potn-cias, em detrimento dos prprios desgnios hegemonistas anglo-franceses.

    Marx e Engels imprimiram Questo Oriental, um enfoque semelhantena forma, porm distinto no contedo. Receavam que o recuo turco deixasse oczarismo de mos livres para empreender uma escalada anexionista em direo aocentro do continente europeu. Compreendiam tambm que o fortalecimento daRssia no leste da Europa reforaria o poder das foras sociais mais conservadorasnaquela regio, inviabilizando assim uma soluo democrtico-revolucionria parao problema da unidade alem, bem como no que se referia emergncia nacionaldos eslavos meridionais. Por outro lado, avaliavam que, do ponto de vista daspretenses hegemonistas e contra-revolucionrias das potncias ocidentais, oalijamento da Turquia da Conveno de Viena constitua um certo embarao.Particularmente aps a ascenso de Luiz Bonaparte ao trono francs, certos crcu-los diplomticos do Ocidente, sobretudo ingleses e austracos, teriam passado atemer os resultados das tentativas de tutela da Turquia por Napoleo III. A intimi-dade das relaes entre o imperador dos franceses e o sulto de Constantinoplaantes e durante a guerra da Crimia teria estimulado os gestores da Santa Alianaa buscarem uma incorporao da Turquia ao sistema emanado da Conveno deViena. Em seu artigo Excentricidades da poltica5, Marx, aps delinear tal cen-

    5 Karl Marx, Eccentricities of politics. New York Daily Tribune, no 4437, 10 de julho de1855, Marx e Engels, Collected Works, op. cit. vol. 14, pp. 283-286. Publicado comoartigo principal.

  • rio, afirma que uma das conseqncias da Guerra da Crimia seria a produo deuma clusula suplementar que garantiria a incluso turca nos protocolos de 1815.Tal previso, por mais sugestivo que fosse seu embasamento, acabaria no se veri-ficando historicamente.

    Engels e Marx defendiam em seus artigos no Tribune que as chancelariasocidentais no cogitavam a possibilidade de restaurao do decadente ImprioOtomano, mas sim que o seu gradativo desaparecimento no engendrasse o colap-so da estabilidade poltica nas regies ento sob sua autoridade, nem possibilitasseum acrscimo desproporcional de poder por parte da Rssia. Inversamente, cadaqual seguindo seus prprios objetivos nacionais, buscava estabelecer a prpria in-fluncia da forma mais profunda e abrangente possvel nas reas abandonadas pelorecuo do sulto. Neste aspecto, Londres e Paris privilegiavam formas distintas dematerializar as mesmas ambies. A potncia britnica privilegiaria, embora demaneira no exclusiva, o exerccio do papel de mediador das controvrsias russo-turcas, procurando aparecer como um suposto peace maker nos antagonismos en-tre os dois imprios eurasiticos. J a Frana de Napoleo III, a quem Marx eEngels j haviam estigmatizado asperamente por seu aventureirismo, teria opta-do por uma poltica mais claramente engajada ao lado da monarquia otomana,desempenhando, destarte, o papel de principal instigador da Guerra Russo-Turca.No artigo: A imprensa londrina A poltica de Napoleo acerca da questo tur-ca, publicado no Tribune, no dia 19 de abril de 18536 , Marx investia mais umavez contra as posturas adotadas por Luiz Bonaparte frente questo turca. Paraele, o aventureirismo manifestado pelo governante do Segundo Imprio Francsdiante daquele problema teria por objetivo conquistar o reconhecimento das po-tncias monrquicas europias para as quais, tanto ele quanto seu finado tio, nopassariam de usurpadores de tronos. Ademais, buscava tambm granjear para aFrana um lugar de destaque no interior do concerto das naes.

    O papel da diplomacia britnicaMarx, como j foi dito, dedicou vrios escritos ao exame da ao do Foreign

    Office ante o chamado problema oriental. Nesses artigos, desenvolvia uma tenta-tiva de caracterizao da diplomacia britnica do ponto de vista de seuscondicionantes sociais. De acordo com tal definio, a poltica externa da Gr-Bretanha burguesa seria formulada e executada tendo como horizonte os inte-resses sociais dos crculos aristocrticos daquela sociedade. Concepo que, por

    6 Karl Marx, The London Press Policy of Napoleon on the Turkish Question. NewYork Daily Tribune, no 3.746 de 19/04/1853, publicado como artigo principal. CollectedWorks, Vol. 12, op. cit. pp. 18-20.

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    sua vez, se sustentava sobre as seguintes idias: a) no obstante o carter capitalistada economia e da preeminncia burguesa no interior da sociedade britnica, opoder poltico naquele pas repousaria sobre a base de uma coalizo aristocrtico-burguesa; b) tendo em vista o monoplio do poder poltico e da representaopela coalizo das classes dirigentes mencionadas, a poltica britnica, tanto internaquanto externamente, possuiria um carter essencialmente oligrquico; c) as pers-pectivas Tory e Whig em matria de poltica externa representavam, respectivamen-te, uma alternativa aristocrtica, conservadora e protecionista outra alternativaburguesa, liberal e livre-cambista, sendo que, tradicionalmente, e at aquele mo-mento, a tendncia aristocrtico-conservadora fora amplamente dominante. Talconcepo produziria dois efeitos significativos nas anlises marxianas sobre a di-plomacia britnica: em primeiro lugar, possibilitaria a Marx o desenvolvimento deinterpretaes que acentuariam a autonomia relativa do Estado britnico em rela-o dimenso econmico-social vigente naquele pas. Em segundo lugar, permi-tir-lhe-ia a percepo da no subordinao mecnica dos movimentos da diplo-macia inglesa aos interesses do prprio capitalismo britnico. Essas nuances con-duziriam o terico do socialismo proletrio a uma caracterizao da poltica exter-na britnica como contra-revolucionria, pr-aristocrtica e, inclusive, lesiva aosinteresses econmicos do capitalismo ingls. Tais anlises adquiriam pleno con-torno nos artigos que Marx dedicou performance de Lord Palmerston nas pgi-nas do Tribune e do Peoples Paper7.

    Esses textos foram publicados sob a forma de brochura independente naInglaterra, ainda durante a vida de seu autor. Marx baseou suas formulaes noexame de uma ampla coleo de documentos diplomticos, atas do parlamento ematerial jornalstico. O trabalho que resultou da possui como uma de suas pecu-liaridades principais a descrio aguda dos mecanismos de tomada de deciso,sobretudo em matria de poltica exterior, utilizados pelo governo britnico nosculo XIX. Efetuou-se uma apreciao minuciosa dos processos de definio docomportamento da diplomacia britnica frente aos mais importantes conflitosinternacionais do perodo como a luta pela unificao da Itlia, a emergncia naci-onal na Polnia e na Hungria, o problema irlands, as reformas liberais na Grcia,em Portugal e na Espanha. O aspecto mais controvertido destes textos a fixaode Marx em comprovar a russofilia de Palmerston a todo custo.

    7 Estes artigos podem ser consultados em sua verso original nas Collected Works, vol. 12(1853-1854) op. cit. pp. 341-406, ou na traduo espanhola, antecedida por uma apre-sentao de Robert Payne, El desconocido Carlos Marx, Barcelona, Editorial Bruguera, 1975,pp. 147-231.

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    A guerra da Crimia e seus desdobramentosA Guerra da Crimia ops Frana, Gr-Bretanha e o Imprio Otomano

    Rssia czarista. Mais do que isso, foi resultado de uma aproximao entre a Gr-Bretanha, tida como a mais liberal e constitucionalista das potncias do SistemaInternacional do Congresso de Viena, com a Frana, eterno outsider e supostofator de desestabilizao do mesmo, confrontando a Rssia, guardi de primeirahora da ordem internacional ps-napolenica.

    O escrito que mais bem expressa as percepes de Marx acerca do significa-do da Guerra da Crimia do ponto de vista das relaes de poder entre as potnci-as gestoras do sistema internacional da Conveno de Viena o j citado artigoExcentricidades da Poltica, publicado no Tribune em julho de 19558. Este arti-go se baseia na leitura de dois livros: Du Congrs de Vienne (Sobre o Congresso deViena) do abade Dominique Dufour de Pradt e Denkschrift, betreffend dieGleichgewichts-Lage Europas, beim Zusammentritte des Wiener Congress verfasst(Memorial relativo situao de equilbrio da Europa, redigido durante as reuni-es do Congresso de Viena), do marechal prussiano K. F. Knesebeck. Na primeiraobra, o autor defende a idia, apoiada por Marx, de que o Congresso de Vienahavia lanado as bases para o estabelecimento da supremacia russa na Europa. Deacordo com aquele autor, a guerra de independncia da Europa contra a Frana,ou seja, as Guerras Napolenicas, foram concludas com a sujeio da Europadiante da Rssia. Corroborando tal argumento, cuja inspirao anti-revolucion-ria dispensa qualquer observao, Marx acentua que

    A guerra contra a Frana, que foi ao mesmo tempo uma guerra contra aRevoluo, uma guerra anti-jacobina, conduziu a uma transferncia da in-fluncia do Ocidente para o Oriente, da Frana para a Rssia. O Congressode Viena foi o resultado natural da Guerra Anti-Jacobina, o Tratado deViena, o produto legitimo do Congresso de Viena e a supremacia russa, afilha natural do Tratado de Viena9.

    Em seqncia, Marx acorria em defesa de Frederico Guilherme III da Prssiadiante das acusaes a ele imputadas de haver, atravs de sua dedicao cega aosoberano russo, solapado as bases do projeto concebido por Castlereagh, Metterniche Talleyrand, no sentido de erguer barreiras territoriais seguras contra as usurpaesrussas10. Segundo Marx, no se deveria responsabilizar solitariamente o prncipe

    8 Karl Marx, Eccentricities of Politics. New York Daily Tribune, no 283, 21 de junho de1955 (publicado como artigo principal), in: Collected Works, op. cit. vol. 14, pp 283-286.9 Idem, p. 283.10 Idem, p. 283.

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    prussiano por uma situao (a supremacia russa) inevitavelmente engendrada pelosistema internacional aprovado no Congresso. Para Marx a supremacia russa naEuropa estava de tal forma vinculada s resolues do Congresso de Viena quemesmo uma guerra contra a Rssia que no se propusesse expressamente a revogaras disposies daquele tratado s faria reforar a situao vigente. Era sob essatica que ele interpretava naquele momento o significado da Guerra da Crimia,ento em curso, como um conflito que, longe de representar a superao do statusquo aprovado em 1815, efetuaria apenas um pequeno reparo no mesmo, de modoa permitir a introduo da Turquia no esquema das cinco potncias gestoras dosistema internacional.

    Do panfleto de Knesebeck, Marx retira citaes que engendram uma defesaapaixonada do fortalecimento da Turquia para o exerccio do papel de barreira irrupo de populaes incivilizadas e brbaras atravs do continente europeu efator de estabilidade dos limites orientais da Europa contra a anarquia inata dospoloneses e as perturbaes provocadas pelos gregos. Marx interpreta esse libelofuribundo como uma simples ratificao dos propsitos inspiradores da Guerra daCrimia: a extenso e a consolidao do Tratado de Paris de 1815.

    Na concluso do artigo, Marx no perde a oportunidade de estigmatizarLuiz Bonaparte, segundo ele, um dos atores centrais da mascarada ento em curso,indivduo que, em seu oportunismo, era capaz de decepcionar as expectativas maiselementares no que concerne coerncia e fidelidade para com a prpria legendabonapartista:

    Durante todo o perodo da Restaurao e da Monarquia de Julho haviauma iluso disseminada na Frana de que o napoleonismo (sic) significavaa abolio do Tratado de Viena, que havia colocado a Europa sob a tutela daRssia e a Frana sob a surveillance publique11 da Europa. Agora, o atualimitador do prprio tio, assombrado pela ironia inexorvel de sua posiofatal, est provando ao mundo inteiro que o napoleonismo significa guerra,no para emancipar a Frana do, mas para submeter a Turquia ao Tratadode Viena. Uma guerra no interesse do Tratado de Viena e sob o pretexto decolocar em cheque o poder da Rssia!12

    Tendo-se estendido formalmente ao longo de trs anos (1853-1856), masproduzindo na verdade um nmero relativamente reduzido de operaes milita-res, a guerra da Crimia contou ainda, a partir da 1855, com a adeso do reino da

    11 Em francs, no original, vigilncia pblica.12 Idem, p. 286.

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    Sardenha coalizo anglo-franco-otomana contra os exrcitos do czar. Seu fatorde deflagrao foi um motivo aparentemente inusitado: as disputas entre as auto-ridades das igrejas Catlica Romana e Grega Ortodoxa pelo controle dos lugaressagrados da Palestina. Tal querela externava inquestionavelmente o choque entreas aspiraes expansionistas russas em relao aos territrios subordinados Portanas regies balcnica e mediterrnea e o temor ocidental frente a essa ameaa.Papel cardeal foi desempenhado pela Frana do Segundo Imprio Napolenico,ansiosa por neutralizar as disposies antifrancesas do Congresso de Viena e enxer-gando no Imprio Russo o maior obstculo a tal reverso. Ademais, segundo Marxe Engels, o papel de incendirio da guerra representado pelo imperador dos fran-ceses respondia a necessidades mltiplas: a) granjear reconhecimento de seu poderimperial, tido como ilegtimo e usurpador pelas demais monarquias europias; b)desviar a ateno do povo francs dos problemas internos atravs do empreendi-mento de aventuras no exterior; c) aproveitar a excepcionalidade da guerra parapromover um saque contra o tesouro francs e d) conquistar junto s nacionalida-des oprimidas da Europa o prestgio de libertador, um dia reivindicado por seutio. Uma traduo mais contempornea das ambies de Luiz Bonaparte poderiacaracteriz-las abstraindo suas implicaes mistificadoras e manipulatrias emrelao ao prprio povo francs e s nacionalidades oprimidas da Europa comoum esforo pela conquista de uma posio de protagonista da ordem internacionalde ento, revertendo a situao de alijamento das decises e conseqentemarginalizao no interior do sistema internacional, relegado Frana pelos ven-cedores de Napoleo.

    A neutralidade austro-prussiana constitua para Marx e Engels uma mani-festao de covardia e uma reafirmao do carter anti-revolucionrio das classesdirigentes destes dois Estados alemes. Para os dois pensadores socialistasgermnicos, a causa principal do no engajamento tanto da Prssia quanto daustria na guerra fora o temor de seus governantes de que a luta contra a Rssia seconvertesse em uma guerra revolucionria dos povos europeus contra as autocraci-as do continente. Essa interpretao considerava, sobretudo, as foras revolucio-nrias que um colapso do imprio ortodoxo liberaria nas reas ocupadas pelasnacionalidades revolucionrias, ento carentes de um Estado nacional unificadona Europa, em grande parte, segundo eles, devido atividade da diplomacia e dasarmas russas: Alemanha, Polnia, Hungria e Itlia.

    Seguindo o mesmo balizamento terico, os correspondentes europeus doTribune consideravam que a neutralizao das influncias reacionrias do czarismono continente europeu, ao debilitar as foras sociais conservadores que em grandemedida se apoiavam em seu poderio militar, estimularia a ao das foras revoluci-onrias, inclusive socialistas, em pases como a Inglaterra e a Frana. Decorreria

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    da, portanto, a vigncia da atitude, em ltima anlise, contemporizadora das clas-ses dirigentes destes pases em relao ao Imprio czarista, mesmo diante de seusmais ousados empreendimentos. Esta postura generalizada de contemporizaoconheceria manifestaes radicalizadas na ao de crculos polticos e elementosacerbamente pr-russos, como Lord Palmerston, grande aliado do czarismo naEuropa Ocidental, segundo a inclemente e no poucas vezes exagerada acusaode Marx. Sendo assim, a poltica das potncias ocidentais com relao Rssiadeveria se orientar, na interpretao de Marx e Engels, por um duplo enfoque: a)no que se referia vigncia das preocupaes sociais de suas classes dirigentes,atemorizadas diante da possibilidade de revolues polticas e/ou sociais na Euro-pa, tratava-se de preservar, a todo custo, a existncia da autocracia czarista paraque esta pudesse desempenhar, sempre que preciso, seu papel de polcia contra-revolucionria no continente e b) do ponto de vista estrito da raison dtat, trata-va-se, no entanto, de conter o avano russo nas reas mediterrnea e caucasiana,impossibilitando o acmulo pelo Estado russo de um excesso de poder queinstabilizasse o equilbrio de foras do sistema internacional em seu benefcio e emdetrimento das potncias ocidentais.

    Peculiar, porque combina elementos que se plasmariam posteriormente emtradies de pensamento e ao freqentemente dissonantes. este posicionamentoera caracterizado por aquilo que tento definir como uma perspectiva realista revo-lucionria. Realista porque interpretava a evoluo das relaes internacionais,observando as correlaes de fora entre os Estados, os interesses nacionais daspotncias e suas projees estratgicas. Revolucionria porque orientada pela idiade que as transformaes necessrias gerao de um sistema de relaes interna-cionais mais justas e democrticas, adequadas ao pleno desenvolvimento dos po-vos, seriam produzidas pela ao das foras revolucionrias. Que tipo de revolu-es? No restam dvidas de que para a Inglaterra e a Frana, Marx e Engelsapostavam, seno em curto, pelo menos em mdio prazo, na ocorrncia de revolu-es proletrias orientadas para o socialismo e o comunismo. Mas no que se referiaaos Estados alemes, nacionalidades eslavas euro-orientais e aos imprios russo eotomano, as expectativas de Marx e Engels se concentravam na criao de repbli-cas democrticas em substituio s autocrticas monarquias ento existentes. Po-rm, tambm no so estranhas a tais consideraes, apreciaes antediluvianasquanto a uma retomada bem prxima dos movimentos revolucionrios e umaforte dose de germanocentrismo, herana de suas iniciaes polticas no seio dassublevaes revolucionrias que haviam sacudido o mundo de fala alem na dca-da anterior.

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    A diplomacia europia aps o Tratado de ParisNos artigos que dedicaram ao desenvolvimento da poltica externa francesa

    no contexto da Guerra da Crimia, Marx e Engels no se mostraram muito indul-gentes. Trata-se tambm aqui de todo um vasto repertrio de denncias e acusa-es contra o governo encabeado por Louis Bonaparte13 . Neles, Marx descarre-gou suas baterias contra o que considerava ser a degenerescncia do exrcito fran-cs, estimulada pelo carter supostamente aventureiro, demaggico e corrupto deNapoleo III. Situao exemplificada pela descrio da trajetria de St. Arnaud,Marechal do Exrcito Francs e Ministro da Guerra, quem, segundo o articulista,construra sua reputao militar servindo na Legio Estrangeira na Arglia, ao ladode bandoleiros, mercenrios e desertores de vrios pases, o rebotalho dos exrci-tos europeus. O prprio imperador francs, caracterizado como um indivduoofuscado por iluses opersticas acerca de sua prpria grandeza, era estigmatizadocomo a caricatura oficial de um passado glorioso. A virulncia antibonapartista deMarx e Engels no pouparia tambm os lderes polticos liberais e democratas,franceses e estrangeiros, que dedicavam confiana aos protestos de Luiz Bonaparteem defesa da liberdade das nacionalidades oprimidas da Europa. Em conseqn-cia, com a mesma falta de cerimnia com que impingiram a outros militantes daesquerda democrtica e revolucionria europia o estigma de colaboradores daautocracia czarista, Marx e Engels imputavam a personalidades como Barbs, Kosuthe os emigrados poloneses, a acusao de contriburem para a legitimao de LuizNapoleo.

    As polticas interna e externa dos dois maiores Estados alemes da poca, austria e a Prssia, tambm no escaparam s atenes dos correspondentes doTribune14 . Atravs de seu sistema comum de anlise da processualidade histrica,consideravam que, aps a deflagrao da Guerra da Crimia, a Prssia, desejosa deenfraquecer a influncia russa em sua fronteira euro-oriental e assegurar suprema-cia plena sobre a maior parte do territrio polons compartilhado por ambos,poderia declarar guerra Rssia. Ao se engajar em um confronto com o principalbastio das autocracias europias, os dirigentes prussianos despertariam as energi-as democrticas e revolucionrias das populaes alems, adormecidas desde omalogro revolucionrio da dcada anterior, desencadeando um movimento que

    13 K. Marx. Reorganisation of the British War Administration. The Austrian Summons. Britains Economic Situation. St. Arnaud. New York Daily Tribune, no 4.144, 24 deJunho de 1854. Reproduzido em Collected Works, vol. 13, pp. 227-233.14 Karl Marx, The Treaty Between Austria and Prussia Parliamentary debates of May29 (O Tratado entre a ustria e a Prssia Debates Parlamentares do dia 29 de maio).New York Daily Tribune, no 4.103, 12 de Junho de 1854. Reproduzido em Collected Works,vol. 13, pp. 215-219.

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    poderia conduzir to sonhada soluo republicano-democrtica para o problemada unificao nacional alem. Ao assim faz-lo, a Prssia dos aristocratas junkersestaria desempenhando o papel de instrumento inconsciente da histria, segun-do a concepo histrico-dialtica que Marx e Engels herdaram e reelaboraram apartir de Hegel.

    J no que concerne ustria, as perspectivas no eram to otimistas. Noartigo intitulado A bancarrota austraca15 , Marx avaliava que a debilitao eco-nmica por que passava o Estado dos Habsburgo naquele momento, combinadacom a emergncia nacional na Galcia, na Hungria e na Itlia, inviabilizava a par-ticipao austraca em qualquer aventura alm fronteiras. Ademais, o crescimentoda preocupao dos crculos dirigentes desse Estado germnico meridional com apreservao de seu imprio empurraria sua diplomacia em direo s posiesmais conservadoras possveis. Por essa razo, ainda que temessem a irradiao dopoderio russo atravs da pennsula balcnica, no desejavam qualquer enfraqueci-mento mais srio do czarismo, segundo eles, porque nesse caso os Habsburgo noteriam um amigo a quem recorrer por ocasio da prxima ofensiva revolucionria.Por outro lado, segundo a expectativa de Marx e Engels sobre uma retomada emi-nente das aes revolucionrias no continente, o ingresso da ustria na guerrapoderia significar um deslocamento das operaes militares para o corao daEuropa, gerando uma escalada de insurgncia revolucionria por parte dos povosoprimidos da regio. Segundo eles, as populaes mais imediatamente interessa-das na questo das complicaes orientais seriam, alm dos alemes, os hngaros eos italianos, apreciao que acentua, no s o germanocentrismo revolucionriodos fundadores da filosofia da praxis, como seu persistente apelo concepoacerca do carter potencialmente revolucionrio das nacionalidades histricas.

    A idia de que aos crculos dirigentes das potncias do ocidente no interes-sava o colapso da Rssia aparece reiterada em uma srie de artigos publicados nobinio 1855-1856, quando se desenrolou a ltima e decisiva fase da Guerra daCrimia. Marx e Engels se empenharam em demonstrar que as operaes militaresanglo-francesas encontravam-se condicionadas pelas aspiraes contra-revolucio-nrias de suas cpulas governamentais. De acordo com tais desgnios, os combatescontra as foras do czar deveriam ocorrer em reas perifricas, afastadas dos prin-cipais centros da vida poltica e social russa, neutralizando com isso qualquer pers-pectiva de que, uma vez conduzida a estas regies, a guerra pudesse se converterem uma sublevao popular. A partir desse ponto de vista, reinterpretavam asdiretivas francesas e britnicas voltadas para o desenvolvimento das operaes mi-

    15 New York Daily Tribune, no 4.033, de 22 de maro de 1854. Collected Works, vol. 13, pp.43-49.

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    litares em nveis estritamente locais. Segundo os governos e os comandos militaresdestes pases, tratava-se de limitar a extenso dos combates de modo a restringir onmero de perdas, mas, para Marx e Engels, o objetivo almejado era evitar que aguerra de conteno enfraquecesse excessivamente aquele baluarte da Santa Ali-ana e evitasse a subverso de suas estruturas internas. Em um artigo assinado poreles, inicialmente publicado no peridico alemo Neue Order Zeitung16 e maistarde reproduzido parcialmente no Tribune, os dois autores acentuavam suas opi-nies sobre o carter paradoxal e inusitado da Guerra da Crimia em seu terceiroano de deflagrao.

    A guerra da coalizo anglo-francesa contra a Rssia ir, indubitavelmente,figurar nos anais da histria militar como a guerra incompreensvel. Omximo de conversaes combinado com o mnimo de aes, extensas pre-paraes e significados insignificantes, uma precauo que beira a timidezseguida de atos temerrios gerados pela ignorncia, generais mais do quemedocres frente de tropas mais do que corajosas, revezes quase deliberadosna seqncia de vitrias obtidas em meio a equvocos, exrcitos inicialmentearruinados pela negligncia posteriormente salvos pelo mais estranho dos aci-dentes um grande conjunto de contradies e inconsistncias17.

    A tibieza das potncias ocidentais sugerida neste texto haveria de se transfe-rir, na futura avaliao dos dois autores, dos campos de batalha para as mesas denegociaes ao trmino da contenda. E, com efeito, nas reunies preparatrias daassinatura do Tratado de Paris, que ps termo ao conflito, a diplomacia russa teriahabilmente se aproveitado das indecises e divergncias dos dois grandes aliadosocidentais para assegurar termos que lhe fossem mais favorveis. O Tratado deParis foi firmado em 30 de Maro de 1856, pelos representantes dos Estados quese confrontaram na Guerra da Crimia de 1853-1856 (Gr-Bretanha, Frana,Rssia, Sardenha e Turquia). Sua assinatura considerada um ponto de inflexonas relaes internacionais do sculo XIX, na medida em que encerrava de fato o

    16 Jornal publicado pelos crculos democrticos radicais da Alemanha. Um dos primeiros asurgir no ambiente de reao poltica que se seguiu ao fracasso das revolues germnicasdos anos 1847-1848. Marx colaborou com ele entre dezembro de 1854 e novembro de1855; durante este perodo, parcela significativa dos artigos produzidos por Marx e Engelsforam publicados, simultnea ou alternadamente no Tribune e no Neue Order Zeitung.17 Karl Marx e Friedrich Engels, The Anglo-French War Against Russia, Neue OrderZeitung, nos 385 e 387, 20 e 21 de agosto de 1855, reproduzido de forma abreviada comoeditorial no New York Daily Tribune, no 4.483 de 1o de setembro de 1855. Collected Works,vol. 14, pp. 484-488.

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    sistema de alianas estabelecido pelo Congresso de Viena de 1815. Polarizado pe-las figuras de Bismarck, Cavour e Gorchakov, o encontro que originou o Tratadogarantiu a independncia formal e a integridade territorial do Imprio Otomano,obrigava a Rssia a devolver a cidadela de Kars aos turcos, cedia parte da Bessarbia Turquia, institua a regio do Mar Negro como zona de neutralidade. A Rssia,em compensao, confirmou sua condio de protetora dos principados doDanbio, formalmente submetidos tutela das grandes potncias, e de guardi detodos os cristos residentes no interior do Imprio Otomano; alm disso, assegu-rou a livre navegao atravs do Danbio.

    O perodo imediatamente posterior ao Tratado de Paris registra um refluxona produo de Marx e Engels dedicada aos temas da poltica e da diplomaciainternacionais nas pginas do Tribune. Pode-se inferir que o mencionado Tratadosignificou uma reestabilizao da ordem internacional europia, fundada em umdeterminado alinhamento de foras. Por outro lado, o prprio desenrolar da guer-ra da Crimia provocou, inequivocamente, uma certa exausto dos principais pro-tagonistas da poltica europia, naquilo que se referia aos movimentos poltico-diplomticos de mbito continental. Mesmo a ustria e a Prssia, ausentes daque-le conflito, provavelmente no deixaram de perceber nele uma oportunidade dedemonstrao do poderio militar de seus parceiros no concerto das naes, oque pode lhes haver sugerido cautela e concentrao, visando ao acmulo de for-as para os enfrentamentos que inevitavelmente estariam por vir.

    Porm, afora tais contingncias, uma associao de processos polticos e di-plomticos interfeririam de forma determinante na moldura das relaes de poderentre as grandes potncias europias no imediato ps-guerra da Crimia.

    Quanto ao comportamento das demais grandes potncias europias no per-odo, podemos constatar a ocorrncia de algumas inflexes muito significativas noque concerne aos papis at ento desempenhados, ou pelo menos reivindicados,do ponto de vista da gesto da ordem internacional em vigor. A ustria, um dosprincipais basties continentais do Sistema Internacional da Conveno de Viena,experimentaria um processo acentuado de isolamento poltico e diminuio deinfluncia. Tal movimento se iniciara ainda na dcada de 1830, quando o ImprioAustraco, fiel aos inegociveis princpios do legitimismo que orientavam suaatividade internacional, aliara-se solitariamente Turquia contra os nacionalistasgregos. Foi quando, pela primeira vez desde a formao da Santa Aliana,posicionara-se em campo distinto de suas consortes Rssia e Inglaterra, que, apropsito, perfilaram no mesmo campo que a perigosa Frana. Mais tarde, veriasua estabilidade interna significativamente abalada em conseqncia das insurrei-es revolucionrias do perodo da Primavera dos Povos, quando tivera seu im-prio salvo de um eminente desmembramento (revoluo hngara) pelas tropas

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    do czar. Porm, o pior momento de sua diplomacia ocorrera por ocasio da Guer-ra da Crimia, quando a ustria conseguiu desagradar as potncias ocidentais comsua recusa de combater a Rssia e, mais tarde, desagradar a Rssia com as pressespara que esta aceitasse os termos do Tratado de Paris. Ademais, as relaes entre osHabsburgos austracos e os Romanovs russos tendiam a deteriorar-se gradualmen-te, na medida em que evidenciavam as suas divergncias quanto situao dosprincipados do Danbio e das provncias balcnicas, entregues proteo russapeloTratado de Paris, mas cobiados com cerimnia cada vez menor pelos germanosdo sul. O resultado geral do enfraquecimento da ustria como potncia, de suaperda de influncia e isolamento poltico internacionais foi a sua converso de umdos pilares fundamentais do sistema em um ator insignificante.

    A Rssia emergiu da guerra da Crimia dominada por sentimentos de frus-trao, humilhao e ressentimento. Frustrao por no haver consumado seuobjetivo de desferir um golpe de misericrdia na incmoda entidade otomana,que em sua letargia ps-imperial obstrua a marcha russa em direo ao Mar Ne-gro e ao Mediterrneo. Humilhao por ter sua secular trajetria de conquistasmilitares interrompida pela coalizo anglo-francesa, a qual lhe imps o respeito integridade turca e a evacuao dos principados do Danbio (Moldvia e Valquia),alm de lhe vetar a construo de sua to sonhada esquadra no Mar Negro,desguarnecendo militarmente suas fronteiras meridionais. Porm, poucos senti-mentos devem ter sabido mais amargamente s cpulas russas do que o ressenti-mento do czar Nicolau I em relao ao prncipe Schwarzenberg, que retribuiu aoapoio decisivo prestado pelos russos no esmagamento da sublevao dos revoluci-onrios hngaros liderados por Louis Kossuth em 1848 com o abandono do velhoaliado no momento do enfrentamento com as potncias ocidentais e, pior ainda,atuando como agente ocidental no convencimento dos estadistas russos aceita-o dos termos do Tratado de Paris. O resultado final do processo, no que se refereao comportamento da Rssia, foi a transformao do principal bastio da ordemconservadora europia em revisionista do sistema internacional.

    A Frana de Napoleo III aparece neste momento como a potncia maisativa do sistema internacional. Como Marx e Engels observaram diversas vezes, anecessidade de conquistar legitimidade no mbito de uma famlia de potncias aris-tocrticas, a tentativa de reeditar a trajetria internacional gloriosa de Napoleo I e oesforo de divertir a opinio pblica francesa dos problemas internos vividos pelopas imprimiam ao Segundo Imprio Francs a marca do militantismo no que sereferia s questes da poltica e da diplomacia europias. A participao na coali-zo vencedora durante a guerra da Crimia conferiria ao imprio bonapartistaapreciveis dividendos diplomticos. O mais elementar de todos: foi a primeiravez, desde Waterloo, que o Estado Francs se envolveu diretamente em uma con-

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    flagrao blica continental, triunfando militar e diplomaticamente sobre a Rs-sia, importante inimigo do passado, cuja vitria sobre as foras francesas em 1812iniciou o processo de desagregao do imprio de Napoleo I. Em segundo lugar,o fato de que nessa guerra a Frana teve como sua aliada a Inglaterra, arquiinimigade antanho, primeira potncia mundial e a nica capaz de assegurar o isolamentoeconmico francs no cenrio internacional. Em terceiro lugar, o maior de todosos triunfos franceses: o pas, que fora marginalizado quando da Conveno deViena, chancelava agora um novo pacto internacional que desmontava as bases dosistema anterior, dividia seus antigos adversrios e relegava quase todos eles (us-tria, Rssia e Prssia) a uma inequvoca marginalizao poltica.

    Ora, se esses sucessos atualizavam a mstica do sucessor de NapoleoBonaparte, devolvendo Frana a posio de gestora dos negcios europeus, aqual um dia lhe fora tomada, por outro lado no fazia seno estimular NapoleoIII a novas arremetidas internacionais. Afinal, a Frana se autoproclamava umimprio e o modo de vida dos imprios a conquista territorial. Freqentador decrculos carbonrios em seu exlio italiano, subproduto poltico da emerso liberalde 1848 na Frana, Luiz Napoleo exprimiria suas ambies poltico-territoriaisna Europa nos termos de um apoio afirmao nacional das nacionalidades opri-midas naquele continente. Reivindicao essa que, se j o conduzira antes a dispu-tar a proteo das populaes crists do imprio otomano com o czarismo russo, oconduziria agora a afrontar o imperador Habsburgo no apoio causa nacionalitaliana.

    Marx, que analisara com acuidade singular as circunstncias que presidirama inaugurao do chamado II Imprio Francs, jamais conseguiu divisar qualquertrao positivo na personalidade poltica de Luiz Bonaparte18. Para Marx, por de-trs das declaraes de Napoleo III em defesa dos direitos das nacionalidadesoprimidas da Europa, ocultava-se pura e simplesmente o desgnio de obter aquisi-es territoriais. Em alguns artigos publicados no perodo 1856-1858, Marx reite-rava as qualificaes estigmatizadoras acerca de Luiz Bonaparte e seu governo,inicialmente delineadas na brochura de 52.

    ConclusoPensadores dialticos, Engels e Marx compreendiam as implicaes que o

    movimento particular dos Estados, impulsionados por interesses nacionais noexpressamente vinculados s necessidades do capital e s aspiraes econmicas

    18 Os motivos originais da repulsa que Marx dedicou a este estadista francs podem serapreciados in loco na obra The Eighteen Brumaire of Louis Bonaparte de 1852. CollectedWorks, op. cit. vol. 11, pp. 99-197.

  • das classes dirigentes europias, poderia produzir para o desenvolvimento histri-co revolucionrio do continente. Ademais, vivendo no contexto poltico-culturalanglo-saxnico e tendo como interlocutoras privilegiadas as opinies pblicas in-glesa e norte-americana, os dois autores no poderiam deixar de moldar suas an-lises internacionais segundo temas e, sob certo aspecto, valores caractersticos dastradies anglo-americanas em matria de poltica e diplomacia internacionais.Isto, porm, no significa que a compreenso dos fenmenos internacionais emtermos de uma poltica de poder protagonizada pelos Estados nacionais e nopelas classes sociais , impulsionados por seus interesses estratgicos, desenvolvi-da pelos colaboradores europeus do Tribune tenha significado apenas uma ade-quao oportunista aos padres de anlise dominantes. A especificidade da visode Marx e Engels consiste justamente em sua capacidade singular de articular essasduas dimenses distintas, porm interligadas e situadas na base do desenvolvimen-to das relaes internacionais de seu tempo: a esfera dos interesses sociais conflitantes,motor da luta de classes e catalisador de possveis revolues poltico-sociais nointerior dos Estados e no marco europeu, e a esfera da ao dos Estados nacionais,determinada por interesses estratgicos de poder e geradora das configuraes dossistemas internacionais.