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MARLCIA SANTOS DE SOUZA
ESCAVANDO O PASSADO DA CIDADE
Histria Poltica da Cidade de Duque de Caxias
UFF - NITERI
2002
2
NDICE
Introduo
A produo sobre a Baixada Fluminense
A produo sobre a Histria do Municpio de Duque de Caxias
Captulo I. Antecedentes histricos: o passado agrrio e escravista de Iguau e
Estrela. I.1 A lgica da ocupao portuguesa em Iguau e Estrela
I.2 Os caminhos da f
I.3 Os caminhos do ouro e do caf em Iguau e Estrela
I.4 Os elementos da desordem no sculo XIX
I.5 Novos deslocamentos e a crise do escravismo fluminense em Iguau e
Estrela
Captulo II. Entre o rural e o urbano-industrial: a produo de uma regio
moderna e as disputas polticas locais II.1 A expanso urbana em Caxias e o poder poltico local nas primeiras
dcadas do sculo XX
II.2 A trajetria de Tenrio Cavalcanti: situao exemplar
II.3 A disputa poltica em Caxias no Ps-30
II.4 As marcas do projeto de colonizao e modernizao do Estado
Novo
II.5 Os ncleos coloniais: cinturo verde da capital
II.6 Caxias: uma cidade para menores
II.7 A Fbrica Nacional de Motores e a cidade imaginada
Captulo III. O tenorismo por meio da Luta Democrtica e as disputas pelo poder
poltico local e regional III.1 Tenrio na corte da rainha UDN
III.2 As trs faces da Luta Democrtica
III.2.1 A face udenista
III.2.2 A face trabalhista
III.2.3 A terceira face: o retorno conservador e o silncio
Captulo IV. Caxias: lugar do trabalhador e da desordem IV.1 A presena comunista em Caxias
IV.2 A presena comunista no movimento campons
IV.3 A presena comunista no movimento operrio da FNM
IV.4 A disputa pela representao operria e camponesa
IV.5 Evas agitadoras e vermelhas
IV.6 O debate tnico e a Unio Cultural dos Homens de Cor
IV.7 O saque de 62: movimento operrio e polcia privada
3
IV.8. O golpe militar e a consolidao da ordem
Concluso
Anexos
Bibliografia
AGRADECIMENTOS
A realizao deste trabalho s foi possvel por conta das contribuies
recebidas de diversas pessoas e instituies de pesquisa. Portanto, gostaria de agradecer
a:
Prof. Dra. Vrgnia Fontes, pela competncia, partilha, carinho e calmaria nos
momentos de minhas tormentas;
Prof. Dra. Sonia Regina de Mendona, pela contribuio quando o trabalho
ainda era incipiente;
CNPq e CAPES, pela ajuda financeira dispensada a esta pesquisa;
Associao de Professores Pesquisadores de Histria Clio e Centro de
Memria, Histria e Documentao da Histria da Baixada Fluminense/FEUDUC, pelo
acesso ao acervo e pela solidariedade incondicional de Antnio Jorge, Antnio Augusto,
Alexandre Marques, Maria do Carmo, Claudinei, Nielson, Erclia, Ndia, Auzenir,
Paulo Pedro, Marize de Jesus, Shirley, Sandra, Elizabete, Maria Jos e Ceclia;
Arquivo da Arquidiocese de Petrpolis, Biblioteca Nacional, Instituto Histrico
e Geogrfico Brasileiro e Arquivo Nacional, e todos os seus funcionrios, sempre
dispostos a contribuir quando solicitados;
Instituto Histrico de Duque de Caxias e o de Nova Iguau, em especial nas
pessoas de Tnia M. Almeida e Ney Alberto, pelo acesso ao acervo e pelo carinho no
atendimento;
Jos Cludio Souza Alves, pela reviso final do trabalho, pela contribuio nas
discusses e pela presena qualitativa e afetiva nos momentos difceis;
Companheiros do Sindicato dos Profissionais da Educao SEPE/Ncleo de
Duque de Caxias, pelo incentivo e compreenso de minhas ausncias. Meu
agradecimento especial a Ftima Davi, Elosa, Marisa, Soneli, Ndia, Dalva, Rodnei,
Neide, Arilson, Daniela, Cristina, Nilda, Ruth, Leontina, Ktia Veillard e Tuninhos;
4
Todos que concederam entrevistas e, em especial, Rogrio Torres, pela
disponibilidade, carinho e acesso a seu acervo pessoal;
Meus pais, Hilda e Souza, desbravadores desta cidade, meu filho, Gabriel, e
toda a minha famlia, pelo amor eterno;
Meus amigos e companheiros de luta que ainda sonham com um mundo
diferente do atual: Marlene, Zoraida, Tereza Duarte, Romildo, Fernando, Luciene, Leu,
Viviane, Deise, Miguel, Celso, Paulinha, Marina, Maria, Solange, Joo, Nina, Tereza
Franco, Joana, Rita, Edna, Ivanete, lvaro, Darcy, Alair, os arcamundianos e meus
irmos baianos;
Meus amigos da Ps-graduao da UFF, que partilharam comigo seus projetos
e saberes, em especial Mrcia, Dbora, Marcela e Ccero.
5
INTRODUO
O presente trabalho teve origem em minha dissertao de Mestrado em Histria
na Universidade Federal Fluminense. Consiste no esforo de escavar o passado da
cidade de Duque de Caxias no perodo de 1900 a 1964, privilegiando o mapeamento dos
diferentes grupos de poder e dos projetos polticos em disputa no seu interior.
Memrias silenciadas das organizaes e experincias dos trabalhadores, assim
como de seus projetos de mundo e de lugar, so partes significativas deste livro.
Consideradas igualmente importantes so as trajetrias das principais lideranas locais e
regionais, as memrias das disputas polticas entre o Amaralismo e o Tenorismo,
entre aqueles que disputavam a representao e o voto dos trabalhadores.
Escavar o passado da cidade um esforo de desenterrar as runas da estrutura
arquitetnica do poder em Duque de Caxias. Um difcil trabalho de levantamento de
dados e fontes, de apresentao do processo de ocupao e do dilogo estabelecido entre
a sociedade com esse espao na longa durao. O mapeamento dos vrios grupos de
poder e a identificao das tenses, contradies e disputas operadas no espao local
revelam um conjunto de projetos polticos e de interpretaes da cidade que requer uma
anlise mais aprofundada. Esta pesquisa realizou mais um levantamento. Um trabalho
caleidoscpico de momentos, movimentos e conflitos a serem analisados.
Duque de Caxias um dos municpios que compem a Baixada Fluminense. No
entanto, as definies do que vem a ser Baixada Fluminense so mltiplas.
Geograficamente, a Baixada Fluminense corresponderia regio de plancies que se
estendem entre o litoral e a Serra do Mar, indo do municpio de Campos, no extremo
Norte, at o de Itagua, prximo cidade do Rio de Janeiro.1 Outro conceito fisiogrfico
utilizado pelos gegrafos e tambm recorrente o de Baixada ou Recncavo da
Guanabara, restrito regio do entorno da Baa de Guanabara, indo de Cachoeira de
Macacu a Itagua.2
Em 1962, o jornalista do Dirio ltima Hora, Maurcio Hill, conceituou a
Baixada Fluminense como o Nordeste sem seca, ao compar-la com regies do pas
com gritante situao de misria e onde proliferavam as ligas camponesas. Mrio
1 GEIGER, P. Pinchas e SANTOS, Ruth Lyra. Notas sobre a evoluo da ocupao humana da Baixada
Fluminense. Rio de Janeiro: IBGE, 1955, pp. 292-293. 2 SOARES, M. T. S. Nova Iguau. Absoro de uma Clula Urbana pelo Grande Rio, Revista Brasileira de Geografia, n 2, ano XVII, Rio de Janeiro: IBGE, 1955.
6
Grynszpan partiu dessa concepo para estudar a mobilizao camponesa na Baixada
Fluminense, definindo-a em funo dos conflitos agrrios estudados e abrangendo:
Duque de Caxias, Nova Iguau, Mag, Itagua, Itabora e Cachoeira de Macacu.3
J a Fundao para o Desenvolvimento da Regio Metropolitana do Rio de
Janeiro (FUNDREM), adotando critrios como grau de urbanizao, violncia e
densidade populacional, restringiu a Baixada ao que ela denominou de Unidades
Urbanas Integradas a Oeste (UUIO) do Rio de Janeiro. Segundo esse critrio, a Baixada
Fluminense seria composta pelos atuais municpios de Duque de Caxias, So Joo de
Meriti, Nilpolis, Nova Iguau, Belford Roxo, Queimados, Japeri e Mesquita (ver
Anexo 1).
Recentemente, o Centro de Memria da Histria da Baixada
Fluminense/FEUDUC elaborou um roteiro de visitao denominado Os Caminhos da
F e do Barroco na Baixada Fluminense, em funo da exposio Devoo e
Esquecimento. Presena do Barroco na Baixada Fluminense, realizada pela Casa
Frana-Brasil, em parceria com a FEUDUC. A denominao de Baixada Fluminense
utilizada na exposio e no roteiro abrangia os oito municpios citados pela
FUNDREM, acrescida por Mag e Guapimirim, ou seja, as cercanias da Guanabara,
excluindo-se Rio de Janeiro, Itabora e Niteri. justamente nesse territrio da Baixada
que a presena de uma arte colonial de influncia barroca teve presena significativa,
com um acervo exuberante e esquecido. As mais importantes igrejas de estilo barroco,
quase sempre de frente para o mar ou para os rios, favorecem o entendimento da lgica
ordenada no perodo colonial e dos caminhos que integravam a sede do governo-geral
com o planalto mineiro.
O recorte utilizado pelo poder pblico na dcada de 1990 e no incio do sculo
XXI o fisiogrfico e compreende os municpios de Nova Iguau, Duque de Caxias,
So Joo de Meriti, Belford Roxo, Queimados, Mesquita, Japeri, Nilpolis, Mag,
Guapimirim, Paracambi, Seropdica e Itagua.
Est evidenciado que o conceito de Baixada Fluminense possui mltiplas
definies e seu recorte se altera a partir do objeto do pesquisador, dos objetivos das
instituies de pesquisa e dos rgos pblicos. Logo, mesmo no campo fisiogrfico, as
fronteiras da regio ora so alargadas ora se encurtam.
3 GRYNSPAN, Mrio. Mobilizao Camponesa e Competio Poltica no Estado do Rio de Janeiro (1950-1964). Rio de Janeiro, 1987, pp. 17-20. Dissertao de Mestrado pelo Museu Nacional.
7
A Baixada Fluminense aqui empregada se aproxima das UUIO elaboradas pela
FUNDREM. No passado colonial, esses municpios fizeram parte de Iguau e Estrela, e
foram pensados enquanto um conjunto. No sculo XIX, esse territrio foi organizado a
partir da criao de duas Vilas, a de Iguau e a de Estrela, tendo sua histria articulada.
No incio do perodo republicano, uma reforma administrativa transformou esse
territrio num nico municpio, o de Nova Iguau, que, a partir da dcada de 1940,
experimentou um processo de fragmentao, com o surgimento dos municpios de
Duque de Caxias, Nilpolis, So Joo de Meriti, Belford Roxo, Japeri, Queimados e
Mesquita. Alm disso, no passado agrrio, o territrio do atual municpio de Duque de
Caxias localizava-se nos limites de Iguau e de Estrela. Parte do territrio das
Freguesias de Meriti e Jacutinga compe atualmente o primeiro e o segundo distritos de
Caxias. A Freguesia do Pilar atualmente compe o segundo e o quarto distrito. J o
territrio da antiga Vila de Estrela, que foi partilhado entre o municpio de Mag e o de
Nova Iguau aps a sua extino, deu origem ao terceiro distrito.
Hoje, o municpio de Duque de Caxias est dividido administrativamente em
quatro distritos: Duque de Caxias, Campos Elseos, Imbari e Xerm. Caxias
atualmente o terceiro municpio mais populoso do Estado do Rio de Janeiro, ficando
atrs de So Gonalo (889.828) e do municpio do Rio (5.851.914). Sua populao est
estimada atualmente em 770.865 habitantes,4 concentrados praticamente no primeiro e
no segundo distritos. Seu territrio recortado pelas Rodovias Washington Lus e Rio-
Mag, formando corredores de expanso populacional e de atrao de investimentos
pblicos e privados. Tais investimentos tm favorecido a produo de uma imagem da
cidade em vias de integrao lgica modernizadora promovida pelo mercado (ver
Anexo 2).
Sua proximidade com a cidade do Rio de Janeiro (ver Anexo 3) foi facilitada
pela construo das Linhas Vermelha e Amarela. A duplicao da Rodovia Washington
Lus e os incentivos municipais atuaram como atrativos a novos investimentos,
principalmente na ampliao do plo petroqumico e na inaugurao do plo gs-
qumico. Um outro setor que se vem destacando o do consumo, retratado pelos
investimentos na instalao de shoppings, hipermercados e lojas de marca que
concorrem com os pequenos e mdios comerciantes locais.
4 Censo de 2000 (IBGE). In: MARTINS, Alex e SOARES, Sergio. Cidades Lotadas. IBGE Divulga os Primeiros Nmeros do Censo de 2000. Baixada Fluminense a Regio que mais Cresceu. Jornal O Dia, Rio de Janeiro, 20 de maio de 2001.
8
Apesar de Duque de Caxias ser o segundo municpio do Estado do Rio de
Janeiro em arrecadao de ICMS, so visveis a ausncia de infra-estrutura urbana e as
precrias condies de vida de sua populao. Segundo o Mapa da Excluso Social,
elaborado em 1991 pelo IPPUR/UFRJ,5 a Baixada Fluminense concentrava 26% da
populao total do estado, sendo o segundo colgio eleitoral. O rendimento mdio dessa
populao situava-se em torno de um salrio-mnimo, contra 5,5 salrios da Zona Sul
carioca e de Niteri, alm de 1,4 da mdia do estado. A Baixada Fluminense detinha
apenas 10% do total da renda familiar, o que revela uma segregao espacial e
econmica brutal.
A segregao construda historicamente nessa periferia e a utilizao da
violncia como instrumento de manuteno do domnio do poder poltico local e de
proteo propriedade geraram a produo de dois fenmenos que tm sido marcas de
identificao da Baixada, principalmente nas ltimas duas dcadas: o extermnio e a
ascenso de matadores no domnio do Legislativo e do Executivo local.6
A Folha de So Paulo publicou, no dia 17 de outubro de 1999, uma lista dos
municpios mais violentos do Brasil. Caxias se enquadra na lista como a cidade mais
violenta do estado do Rio de Janeiro e a dcima quarta do pas, com uma taxa de 76,6
homicdios por cem mil habitantes. Uma guerra oculta e sem direito solidariedade ou a
julgamento, se considerarmos que a ONU estipulou o ndice de cinqenta mortos por
cem mil habitantes para que uma regio seja definida como em estado de guerra e
receba ajuda internacional.
A revista poca, de 30 de agosto de 1999, comparou o nmero de homicdios na
Baixada Fluminense com os mortos na guerra de Kosovo, entre 24 de maro e 9 de
junho. Morreram mais pessoas exterminadas na Baixada Fluminense do que nos ataques
da Otan em Kosovo. Aproximadamente 606 pessoas foram mortas durante os
bombardeios a Kosovo. Durante o mesmo perodo, 647 pessoas foram executadas na
Baixada Fluminense, uma mdia de oito mortos por dia, um a cada trs horas. No
municpio de Duque de Caxias foram executadas 183 pessoas em apenas quatro meses.7
Aparentemente, poderamos afirmar a existncia de um paradoxo: uma cidade
portadora de um oramento significativo e de um crescimento econmico relevante para
5 Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. 6 Para saber mais, ver ALVES, Jos Cludio Souza. Baixada Fluminense: a violncia na construo de
uma periferia. So Paulo: USP, 1998. 7 Os dados foram obtidos por Alexandre Medeiros. Ele comparou os dados fornecidos pelo relatrio Who
Nato Killed, divulgado pelo Ministrio da Informao da Srvia, com os dados obtidos nos livros de
ocorrncias dos Institutos Mdico-Legais dos municpios da Baixada Fluminense.
9
a conjuntura fluminense, com ndices de pobreza e violncia to altos. Todavia, o que
temos o retrato de uma periferia, no uma periferia qualquer, mas de uma periferia do
principal porto de escoamento de ouro do planalto mineiro do sculo XVIII, do centro
poltico do Imprio e da Repblica at os anos 60. Atualmente, periferia de uma
importante metrpole brasileira, o que j indica a relevncia da pesquisa no campo da
historiografia.
A opo pela anlise do processo histrico da produo dessa periferia se deu
tambm por conta de minha atuao nos movimentos sociais, no Sindicato dos
Profissionais da Educao (SEPE), no Centro de Memria da Histria da Baixada
Fluminense e na Associao de Professores Pesquisadores de Histria (APPH-Clio).8
A militncia poltica possibilitou-me o acesso a dados e discusses acerca da
realidade social do municpio. J a atuao no Centro de Memria e na Associao de
Professores permitiu o contato com produes historiogrficas acerca da Baixada
Fluminense. A preocupao com a memria local, a necessidade de compreender a
Histria da regio e a inquietao frente ao esquecimento e ao silncio dessa Histria
nos bancos escolares me levaram a participar de mltiplas experincias de divulgao
dos trabalhos existentes e a produzir material que facilitasse o acesso a eles. Ao mesmo
tempo, fez surgir a necessidade de um estudo dinmico de uma Histria da produo
dessa periferia, vista aqui no como exceo, mas como produto e meio de produo e
reproduo da vida social.
Caxias no visto aqui como um lugar esterilizado, desprovido de Histria, e
sim como um lugar modelado pelas condies materiais e naturais herdadas, bem como
pela ao contnua dos diferentes sujeitos histricos. Milton Santos aponta a
necessidade de pensarmos o territrio como espao usado, carregado de heranas
culturais e materiais do passado e do tempo presente. No esforo de compreender o
territrio e seu uso, faz-se necessrio incluir os diferentes atores sociais e o dilogo
estabelecido com o lugar.9
O processo de ocupao do territrio da Baixada Fluminense, particularmente de
Duque de Caxias, foi desenhado a partir dos interesses dos grupos dominantes locais
subordinados aos ncleos centrais de poder e dos interesses dos grupos que detinham o
controle do aparelho burocrtico e poltico do poder central. Ao mesmo tempo, foi
8 A Associao foi criada por um grupo de professores de Histria preocupados com a produo
acadmica da Histria da Baixada Fluminense. 9 Territrio e Sociedade. Entrevista com Milton Santos. So Paulo: Fundao Perseu Abramo, 2000.
10
produzido pelas formas de ocupao popular, por meio de autoconstruo de moradias,
ocupaes urbanas, formao de favelas, lutas dos lavradores pela terra e prticas de
movimentos sociais que buscavam a implantao de equipamentos urbanos como
saneamento, pavimentao, passarelas, escolas, postos, hospitais pblicos etc.
Mike Davis, em seu livro Cidade de Quartzo, instiga a pensar as formas
encontradas e aplicadas pelo capitalismo nos espaos geogrficos.10
No caso vertente,
escavar o passado tambm nos coloca frente a frente com as mltiplas facetas do
capitalismo em uma periferia muito prxima a um importante centro poltico do pas,
uma periferia modelada por um processo de industrializao fortemente impulsionado
pela verba pblica. Ao mesmo tempo, uma periferia desprovida de investimentos
pblicos em polticas que garantam o mnimo de condies de vida para o conjunto dos
trabalhadores.
Maurcio de Abreu apontou, em seu estudo sobre a evoluo urbana da cidade
carioca, que grande parte dos recursos pblicos tem privilegiado apenas os locais que
asseguram um retorno financeiro ao capital investido, isto , as reas ricas, promovendo
uma disparidade em relao s periferias, que, quanto mais distantes das reas
privilegiadas da cidade, mais se afastam do acesso oferta de meios de consumo
coletivo e de renda.11
O que podemos observar nessa periferia que os parcos investimentos pblicos
em equipamentos urbanos beneficiaram os setores privados envolvidos no controle da
propriedade rural, do comrcio e da especulao imobiliria. A ausncia de polticas
pblicas que atendessem s necessidades do conjunto dos trabalhadores fortaleceu
prticas polticas clientelsticas, beneficiando aqueles que promovem o assistencialismo.
J os investimentos estatais na produo foram mais significativos em Caxias, onde
reas vazias e baratas foram utilizadas para implementar os projetos de
desenvolvimento industrial, de abastecimento agrcola e de colonizao, transformando
essa rea em lugar de transbordo populacional do aglomerado urbano carioca.
A concentrao de trabalhadores pobres em uma regio desprovida de infra-
estrutura, assim como a luta pela terra e por melhores condies de trabalho,
transformaram a regio em espao de tenses, onde constantemente o consentimento
no se consolidava e o uso da coero tornou-se a nica estratgia de controle social.
10 DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo. So Paulo: Pgina Aberta, 1993. 11 ABREU, Maurcio. Evoluo urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p. 11.
11
Francisco de Oliveira nos alerta ainda, em seu ensaio Crtica Razo Dualista,
para a simbiose, a organicidade, a unidade entre um setor atrasado e um setor
moderno, ou seja, o moderno se alimenta do atrasado. Em Caxias, o que se verifica
em todo o seu processo de modernizao a sua imbricao com o arcaico, isto , com
a violncia, o autoritarismo, o clientelismo, o paternalismo e o assistencialismo. Mesmo
no caso dos projetos getulistas que se apresentavam como modernizadores, encontra-se
a permanncia de prticas polticas e alianas que poderiam ser classificadas de
atrasadas.
Nesse sentido, analisar o processo histrico de produo e controle dessa
periferia implica: problematizar as condies de sua construo, considerar a simbiose
existente entre o moderno e o arcaico, mapear as diferentes foras polticas, identificar
as relaes estabelecidas entre o centro e a periferia, e entre os vrios grupos de poder
que se articulam ou que disputam o controle do poder local.
A produo sobre a Baixada Fluminense
O debate acerca da definio do que seria a Baixada Fluminense acaba nos
remetendo s variadas interpretaes recebidas ao longo do tempo. Diferentes grupos de
estudiosos, pesquisadores e instituies falaram sobre a Baixada a partir de abordagens
especficas.
As primeiras obras sobre a Baixada, de carter histrico, relataram os aspectos
da ocupao da regio no perodo colonial at o sculo XIX. So memrias12
ou relatos
de viajantes13
que descreveram a geografia, a organizao administrativa e religiosa das
freguesias e o cotidiano encontrado. Essas memrias e relatos, assim como os relatrios
do Marqus do Lavradio, tornaram-se o lugar de visitao do memorialista iguauano
Jos Maia Forte.
A obra Memria da Fundao de Iguassu foi um marco da produo sobre a
Baixada Fluminense e inaugurou uma tradio baseada na afirmao da Baixada como
lugar de memria e de Histria. Uma Histria que privilegiava a compilao dos
12 Inventrios e memrias histricas de Pizarro. As memrias histricas foram publicadas em 1945. Ver
ARAJO, J. de S. A. Pizarro. Memrias histricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945, vv. 1, 2 e 3. 13 SAINT-HILAIRE, Augusto. Segunda viagem do Rio de Janeiro a Minas Geraes. Rio de Janeiro:
Companhia da Editora Nacional, 1932 [Coleo Biblioteca Pedaggica Brasileira, srie V, V.V.]; SILVA,
Danuzio Gil Bernardino da (org.). Os dirios de Langsdorff, v. I Rio de Janeiro e Minas Gerais. Campinas: Associao Internacional de Estudos Langsdorff/Rio de Janeiro: FIOCRUZ e Casa de
Oswaldo Cruz, 1997.
12
documentos oficiais, o relato dos fatos, a exaltao da importncia poltica da regio e
dos grandes personagens polticos.14
Maia Forte privilegiou em sua composio o
passado colonial e a fundao da Vila. Baseando-se principalmente em Monsenhor
Pizarro, realizou um trabalho de investigao, identificando as freguesias constitudas
no territrio iguauano. O trabalho realizado por Maia tornou sua obra pioneira na
historiografia da Baixada Fluminense.
A obra de Maia Forte foi acompanhada pela publicao de Polyantha
Comemorativa ao Primeiro Centenrio do Municpio de Nova Iguau. Ambas fizeram
parte de um conjunto de iniciativas de comemorao do centenrio do municpio,
fundado em 1833. Enquanto a obra de Maia Forte descrevia as memrias da fundao
da Vila de Iguau, Polyantha apresentava as caractersticas do municpio naquele
momento.
O material era composto pelo mapa e pelo braso do municpio, por fotos do
interventor federal no estado do Rio de Janeiro, Ary Parreiras, e seus auxiliares, fotos do
Chefe do Governo Provisrio, Getlio Vargas, e de polticos locais como: do interventor
do municpio, Arruda Negreiros; do Deputado Federal, Manoel Reis; de membros da
Associao dos Fruticultores; de juristas; do Baro do Tingu e do Coronel Bernardino
Soares, smbolos do passado glorioso.
Havia ainda um conjunto de fotos dos vrios distritos, das melhores residncias,
dos prdios pblicos, das igrejas, dos investimentos do Governo Provisrio no
melhoramento das estradas, das inauguraes que contaram com a presena de Vargas,
comparando a Nova Iguau de antes com a de 1933, ou seja, aps a interveno do
governo de Vargas. Na parte final da obra, havia um conjunto de textos e artigos de
jornais que exaltavam o municpio e seus distritos, os homens iguauanos de projeo
nacional e regional, como Duque de Caxias, o Comendador Francisco Soares, o
Mrquez de Itanhaem e o liberal Rangel Pestana. Todo esse acervo publicado afirmava
uma imagem triunfante do municpio, exaltava a figura dos interventores e
principalmente do lder nacional. 14 MAIA FORTE, J. Mattoso. Memria da fundao de Iguau. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do
Commercio, 1933; LUSTOSA, Jos. Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histrico do
municpio - dados gerais. Rio de Janeiro: IBGE, 1958; MEDEIROS, Arlindo de. Memria histrica de
So Joo de Meriti. So Joo de Meriti: Edio do Autor, 1958; VELHO, Las Costa. Caxias ponto a ponto. Duque de Caxias: Agora, 1965; PEIXOTO, Rui Afrnio. Imagens iguauanas. Nova Iguau:
Edio do Autor, 1968; PEREIRA, Waldick. A mudana da Vila. Nova Iguau: Arsgrfica, 1970, e Cana,
caf e laranja. Rio de Janeiro: FGV/SEEC do Rio de Janeiro, 1977; MORAES, Dalva Lazaroni. Esboo
histrico-geogrfico do municpio de Duque de Caxias. Duque de Caxias: Arsgrfica, 1978; PEREZ,
Guilherme. Baixada Fluminense: os caminhos do ouro. Rio de Janeiro: Impresso Brasil Grfica Register,
1993.
13
Na dcada de 1940, foi publicado o artigo Geografia dos Transportes no
Brasil, de Moacir M. F. Silva,15 editado pela Revista Brasileira de Geografia. O artigo
estabelece apenas uma descrio dos caminhos do ouro e das estradas que integravam o
porto carioca ao planalto mineiro e ao Vale do Paraba cafeeiro. Em sua descrio, so
relatados em detalhes os caminhos que cortavam a Baixada Fluminense, sem, contudo,
estabelecer qualquer anlise acerca das marcas desses caminhos na Baixada e em
Petrpolis.
As obras dos memorialistas que foram produzidas nas dcadas de 1950 a 1970
esto relacionadas ao esforo de construo da Histria dos municpios recm-
emancipados de Nova Iguau.16
Orientados pela leitura da obra de Maia Forte e das
fontes por ele utilizadas, elaboram uma Histria para So Joo de Meriti e Duque de
Caxias. Alm do passado agrrio, descrevem aspectos acerca dos grandes vultos e
heris do municpio, dos prdios importantes e da vida pblica, exaltando a grandeza
dessas localidades.
Uma historiografia que tentava reagir s conturbaes experimentadas nessa
imensa periferia urbana como: o rpido crescimento populacional, a subalternizao, a
violncia, a idia de atraso, a viso de lugar desprovido de identidade e de Histria.
Pretendia-se negar a imagem de periferia meramente depositria de mo-de-obra barata
e desqualificada, ou seja, de uma periferia nomeada de dormitrio, imagem to
veiculada pela imprensa.17
No mesmo perodo, um grupo de gegrafos ligados ao Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatstica (IBGE) passou a produzir vrias interpretaes da Baixada.18
O
lugar de produo dos gegrafos se distinguia dos memorialistas pelas teorias e
metodologias aplicadas, pela escrita e apresentao dos objetos, e principalmente pelo
distanciamento da interferncia do poder poltico local em suas pesquisas. Enquanto as
produes locais caracterizavam-se pelo tom ufanista e apaixonado, as dos geogrficos
possuam um carter mais crtico e analtico.
15 SILVA, Moacir M. F. Geografia dos Transportes no Brasil. Revista Brasileira de Geografia, Rio de Janeiro, ano II, n 2, abril de 1940. 16 Caxias se emancipou em 1943; So Joo e Nilpolis, em 1947. 17 LUSTOSA, Jos. Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histrico do municpio - dados gerais.
Rio de Janeiro: Servio Grfico do IBGE, 1958; MEDEIROS, Arlindo. Memria histrica de So Joo de Meriti. Rio de Janeiro: Edio do Autor, 1958, e Reportagens fluminenses. So Joo de Meriti: Edio
do Autor, 1929; VELHO, Las Costa Velho. Caxias ponto a ponto (1953-57). Duque de Caxias: Agora,
1965; LAZARONI, Dalva. Esboo histrico-geogrfico do municpio de Caxias. Duque de Caxias:
Arsgrfica, 1978. 18 GEIGER e SANTOS, 1955; GEIGER e MESQUITA, 1956; SOARES, 1962; LAMEGO, 1945, 1963 e
1964; GEIGER, 1978.
14
Atento relao da Baixada com a metrpole carioca, a produo dos gegrafos
esteve centrada na anlise do processo de ocupao humana na regio, levando-se em
considerao as condies ambientais herdadas, a base econmica constitutiva do
passado agrrio e a anlise do processo de transio do rural para a absoro da Baixada
enquanto clula urbana incorporada ao Rio de Janeiro. A obra de Geiger e Ruth Santos,
Notas sobre a evoluo da ocupao humana; a de Geiger e Mesquita, Estudos rurais; a
de Terezinha Segadas Soares, Absoro de uma clula urbana; e a de Geiger,
Loteamentos na Baixada Fluminense, compem um conjunto de obras do perodo
mencionado que focalizou a estrutura agrria da Baixada Fluminense e o processo de
sua urbanizao at os anos 50, mantendo-se ainda na atualidade referenciais de
relevncia para os pesquisadores.
Apesar da importncia das obras dos gegrafos, os memorialistas que
produziram no mesmo perodo no estabeleceram uma mediao com essas produes,
exceto com as de Lamego: O homem e o brejo, O homem e a serra e O homem e a
Guanabara.19
Por desconhecimento ou pelo desejo de mant-las no esquecimento, a
contribuio dos gegrafos ficou restrita academia. Esquecer, silenciar as falas de
fora, ou seja, dos que no eram interlocutores do local, era algo tambm associado ao
fato de que a contribuio dos gegrafos no servia proposta de exaltao da Baixada
e de suas memorveis lideranas polticas.
O mesmo processo pode ser identificado nas obras produzidas nos anos 70
acerca de Estrela: um artigo do IHGB e uma dissertao de mestrado da UFF.20
O artigo
de Azevedo Pond, O Porto Estrela, apresenta uma narrativa das condies
fundadoras do porto, de seu apogeu e decadncia no sculo XIX. Segundo ele, a
decadncia produzida fora provocada pelo trmino da escravido e das condies de
insalubridade. Interessante ressaltar que o discurso da decadncia tambm estava
presente nas obras dos memorialistas locais, isto , a idia de um passado glorioso
quando os bares viviam seu apogeu e a idia de decadncia ps-abolio e o
impaludismo.
J a dissertao de Vnia Fres, O Municpio de Estrela (1846-1892),
dedicou-se ao estudo do processo de fundao e desmantelamento da Vila de Estrela.
19 LAMEGO, Alberto Ribeiro. O homem e o brejo. Rio de Janeiro: Geogrfica Brasileira, 1945; O homem
e a serra. Rio de Janeiro: IBGE-CNG, 1963; O homem e a Guanabara. Rio de Janeiro: IBGE, 1964. 20 AZEVEDO POND, F. de P. O Porto Estrela, Revista do IHBG, v. 293, Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1972; FRES, Vnia. Municpio de Estrela (1846-1892). Rio de
Janeiro, 1974. Dissertao de Mestrado pela UFF.
15
Apesar de no desconsiderar as condies ambientais existentes, a autora aponta outras
causas para o desmonte da estrutura administrativa do municpio de Estrela: a
implantao da Estrada de Ferro Pedro II, que beneficiou o cafeicultor, mas tambm
desviou a via de circulao Rio e Minas Gerais para outras reas. Ela aponta indicativos
para que se pense acerca do impacto dos interesses do centro nessa periferia.
Mesmo diante da importncia da obra de Vnia Fres para pensar a regio no
sculo XIX, apenas o artigo de Azevedo Pond foi citado por um dos memorialistas. A
constatao feita indica tambm outra possibilidade: os memorialistas tinham mais
facilidade de acessar as publicaes do IHBG e do IBGE. As dissertaes e teses
pareciam distantes, sem um mltiplo reconhecimento, raras eram as excees. O
distanciamento empobrecia as interpretaes construdas no local, mantendo-as ainda
prisioneira de uma Histria factual com um amontoado de dados compilados.
Ainda nos anos 60 e 70, alguns iguauanos, professores e proprietrios de
escolas em Nova Iguau, compunham um grupo que poderamos nomear de Guardies
da Memria de Nova Iguau.21 Colecionavam peas e documentos cartoriais, jornais,
iconografias e obras j produzidas acerca de Iguau no Instituto Histrico. Organizaram
uma exposio permanente, encontros de normalistas para rememorar a Histria
regional, publicaram pequenos artigos narrando aspectos da Histria Iguauana,
refizeram e fotografaram o trajeto das Estradas do Comrcio e da Polcia.
Alm disso, eles divulgaram no peridico local, Jornal de Hoje, uma coluna
titulada Histria Cronolgica de Nova Iguau, escrita pelo professor Rui Afrnio
Peixoto, contendo os principais marcos cronolgicos da Histria local desde 1500 at
fins da dcada de 1980. Longe de ser uma obra historiogrfica, tornou-se mais um
banco de informaes consideradas por ele importantes.
Rui Afrnio tambm reuniu em uma publicao titulada Imagens iguauanas
uma coletnea de diversos artigos relativos a assuntos abordados por ele. Os artigos so
referentes aos homens ilustres do passado e aos do tempo mais recente, ao Executivo
municipal, descrio das nobiliarquias, dos caminhos, das ferrovias, das igrejas, dos
procos e at da reproduo de um romance iguauano do sculo XIX. Os artigos no
possuam uma ordem cronolgica ou uma temtica; apresentavam informaes e
curiosidades acerca de lugares e pessoas. A preocupao central era a de fornecer
informaes acerca do passado de Nova Iguau para os professores sem a preocupao
21 Os principais nomes desse grupo eram Rui Afrnio Peixoto, Waldick Pereira e Ney Alberto.
16
de analis-las ou de produzir um sentido para elas. Poderamos classific-la como um
ba de coisas que podem ser acessadas pelo pesquisador.22
Apesar da importncia do trabalho do grupo, apenas duas obras historiogrficas
foram produzidas, ambas por Waldick Pereira: A mudana da Vila e Cana, caf e
laranja. Sua primeira obra, datada de 1970, trata das causas que promoveram a
mudana da sede de Iguau Velho, isto , Vila de Cava, para Maxambomba, no entorno
da estao ferroviria. Aparentemente, poderamos afirmar que A mudana da Vila
pouco se diferenciaria das demais obras memorialistas. Entretanto, tornou-se clssica
no apenas por apresentar as justificativas para a transferncia, mas principalmente
pelas cenas apresentadas do cotidiano da Vila de Iguau no sculo XIX. Podemos ver na
obra o objeto perseguido pelo autor, o caminho construdo, as fontes utilizadas e a
explicao apresentada para a transferncia. Nesse sentido, possvel apontar certo
rigor investigativo dos documentos e um esforo de interpretao, marcando, dessa
forma, sua diferena em relao s demais obras memorialistas produzidas at o
momento.
J a segunda obra, datada de 1977, publicada pela Fundao Getlio Vargas e
pela Secretaria Estadual de Educao e Cultura, apresenta um perfil acadmico. O autor
estabeleceu um dilogo com outras produes cientficas da poca, recorrendo tambm
ao uso de um corpus documental representativo. Na introduo de Cana, caf e laranja,
Ovdio de Abreu Filho reconhece o pioneirismo de Pereira no que tange produo de
uma Histria Econmica de Nova Iguau e a importncia da abordagem do processo da
produo de laranja, da decadncia da estrutura agrria e do retalhamento das fazendas e
chcaras para compor os loteamentos urbanos. Entretanto, chama a ateno para o fato
de a obra estar aprisionada ao modelo dos ciclos econmicos e metfora bionaturalista
(idia de ciclo vital: incio, apogeu e decadncia), que naturaliza a economia,
desconsiderando as diferenas no nvel de produo.23
Se, de um lado, a obra pioneira de Waldick indicou possibilidades de pesquisas,
apresentou informaes significativas, revelou a importncia do estudo do processo da
transio do rural para o urbano em Nova Iguau e fortaleceu a Baixada como lugar
possvel de ser investigado; por outro, limitou-se a analisar o quantitativo e os
problemas do produto no mercado, ou seja, a circulao em detrimento da produo e
das relaes de trabalho.
22 PEIXOTO, Ruy Afrnio. Imagens iguauanas. Nova Iguau: Tip. do Colgio Afrnio Peixoto, 1968. 23 PEREIRA, 1977, p. 6.
17
Um outro aspecto a ser considerado o silenciamento do processo de
fragmentao experimentado em Nova Iguau. Os impactos provocados pelas
emancipaes de Caxias, So Joo de Meriti e Nilpolis no se constituram naquele
momento objeto de pesquisa nem de escritos por parte dos memorialistas. Porm, cada
vez mais, a Histria de Nova Iguau foi-se constituindo pelo estreitamento de suas
fronteiras e, conseqentemente, os processos histricos dos vizinhos deixam de ter
importncia nos escritos do perodo, o que explicaria, no que tange economia, por
exemplo, falar da laranja, e no da Fbrica Nacional de Motores ou da produo
agrcola dos lavradores da regio. O mesmo ocorre com os memorialistas que
investiram na produo de uma Histria para So Joo de Meriti e Caxias, partilharam
de um passado agrrio comum a Nova Iguau e traaram histricos recentes
desvinculando-se da relao regionalizada, quer seja da relao com o conjunto da
Baixada, quer seja da relao com a metrpole carioca.
Em nvel regional, a conjuntura da dcada de 1970 ficou marcada tambm pela
transferncia da sede da capital federal para Braslia e pela criao, em 1960, do estado
da Guanabara. Ao perder o estatuto de sede do poder central, a cidade carioca, agora
estado da Guanabara, recupera, de certa forma, uma maior autonomia poltica e, ao
mesmo tempo, mantm a posio de importante centro poltico do pas. De 1960 a 1975,
pensar a cidade carioca restringia-se a pensar os prprios limites do estado da
Guanabara, apesar das interferncias dos municpios-satlites.
O escritrio de Arquitetura M. Roberto, ao elaborar, em 1970, um Plano de
Desenvolvimento para Duque de Caxias, ressentiu-se da ausncia de um plano de
mbito metropolitano que apontasse diretrizes gerais de polticas de desenvolvimento
integrado para o conjunto da regio metropolitana. Entretanto, a partir da fuso do
estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro em 1975, a conjuntura foi alterada
e colocava como questo poltica e econmica central a construo do que seria a
Regio Metropolitana do Rio de Janeiro.
Durante o Governo Faria Lima, foi criada a Fundao para o Desenvolvimento
da Regio Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM), o que favoreceu a produo
de vrias pesquisas e levantamentos de dados sobre a Baixada Fluminense, culminando
com a produo dos planos diretores das Unidades Urbanas Integradas de Oeste
(UUIO).24
Nos planos, cada municpio analisado na relao com as outras unidades
24 Os planos diretores dos municpios de Duque de Caxias, Nova Iguau, So Joo de Meriti e Nilpolis
formavam o conjunto do documento Planejamento Urbano-Baixada Fluminense.
18
administrativas da Regio Metropolitana, principalmente com as UUIO (Baixada
Fluminense) e a cidade carioca, estabelecendo-se um quadro comparativo e analtico.
As pesquisas revelaram as carncias e distores quanto ao uso do solo, ao sistema
virio e aos transportes, sade da populao, educao, ao lazer e infra-estrutura
urbana.
Na dcada de 1980, as vrias dissertaes de mestrado em planejamento urbano
da Coordenao dos Programas de Ps-Graduao de Engenharia (COPPE) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) estiveram centradas na concepo da
impossibilidade de se pensar a metrpole carioca isoladamente. Logo, qualquer proposta
de planejamento urbano para a cidade do Rio de Janeiro deveria estar balizada pela ao
integrada da Regio Metropolitana. Ao analisar diferentes temas como investimentos
pblicos, localizao residencial, renda familiar, urbanizao, industrializao,
migraes e distribuio populacional, esses trabalhos, embora tratando, em sua
maioria, da cidade do Rio de Janeiro, incorporam informaes e quadros comparativos
do interior da Regio Metropolitana. Conseqentemente, as pesquisas realizadas
forneceram uma quantidade de informaes e dados acerca da Baixada Fluminense e
revelaram as profundas desigualdades intra-regionais.
A concepo terica que se tornou central para este conjunto de anlises foi a que interpreta a Regio Metropolitana a partir da relao ncleo-periferia. Dessa
forma, a Baixada deixa de ser a rea incorporada dos gegrafos, tornando-se a
periferia urbana dos urbanistas. Suas deficincias de infra-estrutura, suas
populaes carentes e o abandono do poder pblico receberam uma interpretao relacionada com o ncleo privilegiado, formado pelo Centro e
pela Zona Sul da cidade carioca.25
Partindo do mesmo pressuposto terico, o programa de estudos do Centro de
Pesquisas Urbanas do Instituto Brasileiro de Administrao Municipal (IBAM) iniciou
um conjunto de pesquisas para analisar a influncia das polticas pblicas sobre a
distribuio espacial da populao de baixa renda na Regio Metropolitana do Rio de
Janeiro. Maurcio de Abreu, um dos responsveis pela pesquisa, buscou os elementos
histricos para a discusso da estrutura urbana atual.
Seu trabalho centrou-se na anlise do processo de construo/transformao do
espao metropolitano carioca de forma integrada, ou seja, que analisasse as aes dos
agentes modeladores do Rio de Janeiro no conjunto de suas inter-relaes, conflitos e
25 ALVES, Jos Cludio. Baixada Fluminense: a violncia na construo de uma periferia. So Paulo:
USP, 1998.
19
contradies.26 Parte do resultado dessa pesquisa foi publicada sob o ttulo de
Evoluo Urbana do Rio de Janeiro e representou um marco diferenciador nas
interpretaes acerca da Baixada Fluminense. Incorporada Regio Metropolitana
como rea perifrica, passa a ser interpretada como rea segregada, reservada como
espao de ocupao de trabalhadores pobres e desprovida de investimentos pblicos.
Em 1995, o Observatrio de Polticas Pblicas e Gesto Municipal,27
vinculado
ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ, em
parceria com a Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional (Fase),
organizou um seminrio titulado: Baixada Fluminense: Povo, Cultura e Poder.28 Nele,
foi apresentado o Mapa da Excluso Social da Baixada Fluminense, que comparava
padres de renda, infra-estrutura urbana, servios e composio tnica entre a cidade
carioca e a Baixada Fluminense.29
Os dados apresentados denunciavam a imensa desigualdade inter-regional
existente e, ao mesmo tempo, apontavam a emergncia de se pensar em polticas
pblicas para reunir condies de superar essa desigualdade. Durante os dias em que o
seminrio foi realizado, um conjunto de trabalhos tratou de temticas que
problematizaram a realidade social e econmica, tais como: saneamento, impactos dos
processos de emancipaes, disputas polticas, votaes do eleitorado da Baixada,
aspectos da Histria e da economia local, o que favoreceu um intercmbio de vrias
pesquisas em curso, voltadas principalmente para planejamento urbano, poder poltico,
meio ambiente e polticas pblicas, que apontassem alternativas para o desenvolvimento
da Baixada. Apesar do pioneirismo das instituies que promoveram o evento, no
foram asseguradas a realizao de outros seminrios e a continuidade do frum de
debates.
Cabe ainda ressaltar que, durante a realizao do seminrio, os memorialistas
ficaram de fora das discusses, afirmando a diferena entre eles e a fala da academia. A
Histria mais recente ou os debates que envolviam o poder poltico local no tempo
presente no eram considerados por eles.
26 ABREU, Maurcio. A evoluo urbana do Rio de Janeiro. 3 ed. Rio de Janeiro: IPLANRIO, 1997, p.
11, e Natureza e sociedade no Rio de Janeiro (org.). Rio de Janeiro: PCR/SMCTE/DGDIC/DE, 1992. 27
O Observatrio representou um instrumento sistemtico de estudo, pesquisa, organizao e difuso sobre, de um lado, os novos padres de desigualdades e excluso social surgidos nas cidades com a crise
de reestruturao econmica, e de outro, os novos modelos de polticas urbanas e gesto local. 28 O seminrio foi realizado no perodo de 2 a 6 de outubro, no Centro de Formao de Lderes de Nova
Iguau. 29 A Fase publicou, ainda em 1995, uma obra organizada por Jorge Florncio, intitulada Saneamento
ambiental na Baixada: cidadania e gesto democrtica.
20
Durante as dcadas mencionadas, 1980 e 1990, dissertaes e teses foram
elaboradas em diferentes instituies acadmicas. Socilogos, antroplogos, urbanistas,
gegrafos, assistentes sociais e historiadores realizaram estudos especficos, nos quais a
Baixada emerge como importante campo de pesquisa. Trabalhos sobre movimentos
reivindicatrios dos moradores, baile funk, mobilizao camponesa entre 1950 e 1964,
presena do proletariado urbano nas ocupaes de terra, atuao poltica da Igreja
Catlica, transio da fruticultura para os loteamentos urbanos, organizao dos
quilombos de escravos foragidos no sculo passado, violncia na construo do poder
poltico local, atuao de militantes femininas, trajetria de lideranas polticas etc.30
Os trabalhos recentes revelaram uma pluralidade de perspectivas disciplinares e
um novo conjunto de interpretaes sobre a regio, principalmente no que se refere s
mltiplas formas de resistncia dos trabalhadores, dinmica da estrutura agrria, s
disputas pelo poder poltico existentes no interior da Baixada Fluminense e s trajetrias
de vida. No que se refere ainda trajetria de indivduos, foi produzido um conjunto de
relatos, de depoimentos e biografias de atores sociais considerados importantes na
histria local, seja impresso, seja em filmes de curta e longa metragem. Eles foram
produzidos pelos atores envolvidos ou familiares, pelos rgos pblicos locais, por
instituies polticas e de preservao da memria.31
30 Respectivamente: BERNARDES, Jlia Ado. Espao e Movimentos Reivindicatrios: O Caso de Nova Iguau. Rio de Janeiro, 1983. Dissertao de Mestrado pela UFRJ; BELOCH, Israel. Capa preta e Lurdinha: Tenrio Cavalcanti e o povo da Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Record, 1986; VIANNA
JR, Hermano Paes. O Baile Funk Carioca: Festas e Estilos de Vida Metropolitanos. Rio de Janeiro, 1987. Dissertao de Mestrado pelo Museu Nacional; GRYNSZPAN, Mrio. Mobilizao camponesa e
competio poltica no estado do Rio de Janeiro (1950-1964). Rio de Janeiro: Museu Nacional, 1987;
RAMALHO, Jos Ricardo. Estado patro e luta operria. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989; LIMA, Ulisses. Luta armada na Baixada Fluminense. Rio de Janeiro: Edio do Autor, 1991; ALVES, J.
Cludio. Igreja Catlica: Opo pelos Pobres, Poltica e Poder: O Caso da Parquia do Pilar. Rio de Janeiro, 1991. Dissertao pela PUC/RJ; SOUZA, Sonali Maria de. Da Laranja ao Lote: Transformaes Sociais em Nova Iguau. Rio de Janeiro, 1992. Dissertao de Mestrado pelo Museu Nacional; GOMES, Flavio dos Santos. Histrias de Quilombolas: Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro. Sc. XIX. Cap. I. So Paulo, 1992. Dissertao de Mestrado/UNICAMP; ALVES, J. Cludio. Baixada Fluminense: A Violncia da Construo de uma Periferia. So Paulo, 1998. Tese de Doutorado pela USP; BURDICK, John. Procurando Deus no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998; MIGNOT, Ana C. V.
Ba de Memrias, Bastidores de Histrias. O Legado Pioneiro de Armanda lvaro Alberto. Rio de Janeiro, 1997. Tese de Doutorado pela PUC; MACEDO, Elza D. V. Ordem na Casa e Vamos Luta. Movimento de Mulheres no Rio de Janeiro: 1945-1964. Lydia da Cunha: Uma Militante. Niteri, 2001. Tese de Doutorado pela UFF. 31 Entre as trajetrias, podemos destacar: SILVA, Arlindo. Memria de Tenrio Cavalcanti segundo a
narrativa a Arlindo Silva. Rio de Janeiro: Edies O Cruzeiro, 1954; PUREZA, Jos. Memria
camponesa. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982; CAVALCANTI, Sandra Tenrio. Tenrio, meu pai. Rio
de Janeiro: Global, 1986; FORTES, Maria do Carmo. Tenrio, o homem e mito. Rio de Janeiro: Record,
1986; GHELLER, Elza M. (org.) Josefa, a resistncia de uma camponesa brasileira. So Paulo: Paulinas,
1996.
21
Alm das trajetrias individuais, os relatos de memria da violncia, da
impunidade e das experincias profissionais da promotora Tnia Maria Salles Moreira e
do jornalista e delegado Santos Lemos revelam possibilidades de leituras da realidade
social e das disputas polticas operadas na regio.32
No incio dos anos 90, um grupo formado por professores da Faculdade de
Filosofia, Cincias e Letras de Duque de Caxias, da rede pblica de ensino e por ex-
alunos do curso de graduao e ps-graduao em Histria da FEUDUC iniciou um
levantamento de fontes e obras j produzidas acerca da Baixada Fluminense. Fundaram,
ento, o Centro de Memria e Documentao da Histria da Baixada Fluminense e a
Associao de Professores Pesquisadores de Histria (APPH-Clio).
Transitando entre o produzido pelos memorialistas e pela academia, o grupo
iniciou um conjunto de prticas para favorecer o acesso aos conhecimentos elaborados e
fomentar novas pesquisas. Para circular a produo local, foi criada uma revista, a
Hidra de Igoassu. O grupo organizou, ainda, cursos para professores da rede pblica;
estabeleceu parcerias com outras universidades; e promoveu os Congressos de
Professores Pesquisadores da Histria da Baixada Fluminense, em que diferentes
produes e instituies acadmicas renem-se a cada dois anos para comunicar
pesquisas em curso, divulgar as j produzidas e promover debate acerca da Histria do
tempo presente, at ento no considerada pelos memorialistas.
Um conjunto de novos grupos que se dedicam Histria da Baixada Fluminense
surgiu nesta dcada, constituindo uma rede de memria e histria na Baixada
Fluminense. Revistas, vdeos, livros, exposies, cadernos de textos tm sido
produzidos pelos diferentes grupos, disputando concepo de mundo, de memria e de
Histria da Baixada Fluminense.
Temos ainda os governos municipais, com suas publicaes, propagandas e
slogans de exaltao de suas localidades e de seus mandatos, e a imprensa, com sua
produo cotidiana de matrias sobre a regio, sua influncia sobre as interpretaes da
Baixada, sua lgica institucional, suas vinculaes polticas.
32 LEMOS, Santos. Sangue no 311. Rio de Janeiro: Reper, 1967; O negro Sabar. Rio de Janeiro:
Destaque, 1977; Os donos da cidade. Rio de Janeiro: Caxias Recortes, 1980; MOREIRA, Tnia Maria
Salles. Chacinas e falcatruas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
22
A produo sobre a histria do municpio de Duque de Caxias
A primeira obra sobre a Histria de Duque de Caxias foi construda em 1958,
por Jos Lustosa. A obra Cidade de Duque de Caxias: desenvolvimento histrico do
municpio: dados gerais foi publicada pela grfica do IBGE, com a intermediao de
Barbosa Leite. Barbosa era funcionrio do instituto, poeta, pintor e membro do grupo
cultural caxiense ARCO-Arte Comunicao.33
Esse grupo atuou em Caxias no final dos
anos 50 e na dcada de 1960, participando de lutas por biblioteca, por melhoria da
educao e pela valorizao da cultura local. Organizava vendas e divulgaes de livros,
exposies de arte e criou o Jornal O Grupo. Era composto por estudantes, fotgrafos,
artistas e comunistas preocupados com a cultura e a memria da cidade. Apesar de
Lustosa no possuir uma participao orgnica no grupo, mantinha uma relao de
proximidade, sendo sua obra incentivada, divulgada e vendida pelo ARCO.
Lustosa era dentista, residia em Caxias e possua um consultrio dentrio no
local. Era um memorialista preocupado em construir uma Histria para a cidade. Foi
largamente influenciado pela obra de um outro memorialista iguauano, Jos Mattoso
Maia Forte. Uma memria de um passado agrrio glorioso ameaado constantemente
pelo impaludismo.
Essas marcas tambm aparecem na obra de Lustosa. A diferena que Maia
Forte restringiu sua obra memria do passado agrrio e da fundao da Vila de Iguau,
enquanto Lustosa traou um panorama da Histria de Caxias do perodo colonial at a
dcada de 1950. Alm das fontes utilizadas por Maia Forte, Lustosa utilizou-se de fotos
e dados fornecidos pela Cmara Municipal e pelas secretarias da cidade, transformando
sua obra em um dos lugares guardadores de imagens e registros de memrias da cidade.
A segunda obra, Caxias, ponto a ponto (1953 a 1957), foi escrita por Las Costa
Velho e publicada por sua Editora Agora, em 1965. Las Costa Velho era mineiro,
jornalista, radialista e poltico de Caxias, e se apresentava como irmo de f de Hydekel
de Freitas. O prprio autor refere-se sua obra como um simples registro de fatos e
33 O grupo era composto por Barbosa Leite, Newton Menezes, Guilherme Perez, Rogrio Torres,
Armando Valente, Solano Trindade e outros. Barbosa Leite publicou poemas, produziu pinturas e artigos
nos jornais locais, incentivou o teatro. Guilherme Perez e Valente organizaram uma exposio de fotos na FUNARTE, denominada Caxias, uma Cidade. Rogrio Peres produziu pinturas, artigos para a imprensa local e militou no Partido Comunista juntamente com Newton Menezes, um dos fundadores do Sindicato
dos Petroleiros. Newton e Rogrio Torres produziram posteriormente o livro Sonegao, fome e saque,
obra importantssima para a compreenso da Histria da Baixada nos anos 60. Solano Trindade era
comunista, publicou poemas, escreveu artigos para a imprensa local e atuou em diversos eventos culturais
da cidade.
23
coisas do municpio, um amontoado de coisas e mais nada. Refere-se a Maia Forte e s
fontes utilizadas por ele, procurando compilar uma srie de informaes sem se
preocupar em articul-las. Em alguns momentos, a obra parece ser composta por um
conjunto de pequenos artigos e charges e, em outros, um dirio contendo anotaes de
acontecimentos que o autor julgou importantes para os que futuramente desejarem
escrever a Histria da cidade. Homenageia o prefeito de Caxias, Joaquim Tenrio
Cavalcanti, e critica os erros das altas autoridades, pelo desamparo do que ele chama de
Grandioso Municpio.
O terceiro trabalho tem como autora Dalva Lazaroni de Moraes e foi publicado
pela Arsgrfica Editora Ltda., em 1978. Irm de um importante poltico local, Elias
Lazaroni, era professora em Caxias e diretora da Biblioteca Municipal. Esse cargo e
suas relaes pessoais possibilitaram a formao de um grupo para a realizao de um
levantamento de obras e documentos sobre a cidade.
Sua obra est marcada, primeiramente, pelas informaes que aparecem em
Maia Forte e em Lustosa. Em segundo, pela transcrio integral dos relatos deixados
por Monsenhor Pizarro, do Cdigo de Postura de Estrela (ocupando 22 pginas do
livro), de leis municipais, de documentos da Cmara, das secretarias, das escolas locais,
sem a preocupao com uma leitura problematizadora dos documentos. Isso sem contar
com o dicionrio de palavras indgenas presentes nos logradouros e ruas do municpio,
que contm 101 pginas e trazido no final da obra.
O Esboo histrico-geogrfico do municpio de Duque de Caxias foi organizado
em trs captulos. O primeiro contm informaes sobre a geografia, a gente e a
economia. O segundo, sobre a Histria do municpio, e o terceiro, acerca dos aspectos
tursticos do municpio. O conjunto do material reafirma a exaltao da cidade,
reverencia as famlias poderosas e os grandes personagens. O maior de todos eles,
segundo a autora, foi o patrono da cidade, Duque de Caxias, ao qual dedicou 11 pginas
com transcrio de documentos relacionados sua vida pessoal e militar.34
Apesar da contribuio dos trs memorialistas, suas obras so marcadas pela
ausncia de rigor acadmico, pela influncia de uma Histria orientada pelo paradigma 34
A autora publicou ainda, na dcada de 1990, uma obra titulada Quilombo e Tiradentes na Baixada Fluminense: uma homenagem a Solano Trindade, em que editou trs textos. O primeiro se referia ao trfico e escravido na Baixada, integrando-os histria macro e fazendo referncia a historiadores conceituados como Dcio Freitas. O segundo uma homenagem bem escrita da trajetria potica de
Solano Trindade. O terceiro, um texto que menciona a atuao de Tiradentes quando fora nomeado para
fazer a segurana do caminho do ouro. Como a obra no se props a tratar da histria da cidade, optamos
por mencion-la apenas aqui.
24
rankeano, pela vinculao dos autores com o aparato burocrtico municipal e com os
grupos dominantes locais. O lugar social dos autores, revelado por suas origens, ofcio,
formao e compromissos polticos, explica o silncio existente acerca das lutas
camponesas em Xerm, do movimento operrio na FNM/FIAT, do processo de
urbanizao da cidade e das disputas violentas pelo controle do poder poltico local.
O trabalho aqui apresentado se prope, em primeiro lugar, a consolidar uma
Histria que, por meio de sua primeira sntese, possa fugir dos limites temporais at
ento impostos pela maioria das obras acadmicas, embora sejam elas as que mais
contriburam para esta pesquisa. O caminho escolhido apresenta limites e indica
pesquisas que ainda carecem de realizao para uma melhor compreenso da Histria da
cidade. Entretanto, possibilita-nos tambm um olhar de longa durao para o conjunto
da vida social de uma periferia muito prxima da cidade carioca.
Em segundo lugar, visa estabelecer uma crtica a esse modelo predominante de
historiografia sobre a cidade de Duque de Caxias, escavando, assim, seu passado e
revelando os meandros das disputas polticas e dos projetos de poder que nela existiram.
Este livro organizou-se da seguinte maneira:
O Captulo I constitudo de um antecedente histrico em que realizamos o
estudo do passado agrrio e escravista da regio. Por meio dele, ser-nos- possvel
descrever o processo de ocupao, dos ordenamentos e deslocamentos tecidos no
tabuleiro poltico e econmico da Baixada Fluminense, bem como identificar as
transformaes que ocorreram no campo administrativo e poltico durante o sculo XIX.
Essa compreenso se faz necessria elaborao da anlise da produo da regio
moderna no decorrer da primeira metade do sculo XX, sobre a qual se detm o
segundo captulo. Desse modo, no primeiro captulo foi utilizado um corpus documental
variado: inventrios, censos oficiais, ordenamentos de compromissos das irmandades
religiosas, assentos de batismo, de matrimnio e de bitos, processos criminais,
documentos do Exrcito, relatos de viajantes, obras de memorialistas, dissertaes e
teses.
O Captulo II apresenta uma abordagem do processo formador de Caxias em
uma regio moderna, ou seja, urbana industrial. Nesse captulo, traamos o perfil dos
diferentes projetos e as disputas pelo controle do poder poltico local, assim como
identificamos os vrios agentes modeladores desse espao e construtores do conjunto da
vida social. As fontes para a construo desse captulo foram as obras bibliogrficas de
Tenrio Cavalcanti, os documentos oficiais, as dissertaes e teses, as narrativas de
25
memria, os depoimentos orais e peridicos, principalmente a Luta Democrtica e O
Grupo.
O Captulo III trata das disputas pelo poder poltico local entre o amaralismo e o
tenorismo nos anos 50 e 60. Analisa, sobretudo, as ambigidades e as concepes
polticas de uma das mais polmicas lideranas polticas da regio, Tenrio Cavalcanti.
Nele, utilizamos os dados do Tribunal Regional Eleitoral e da Cmara Municipal de
Duque de Caxias; a coluna Escreve Tenrio, produzida durante todo o ano de 1958,
perodo em que Cavalcanti era udenista, e o de 1962, quando se tornou candidato das
esquerdas nas disputas ao governo do estado do Rio de Janeiro; os depoimentos orais e
outros peridicos.
O Captulo IV constitui-se de um mapeamento das diferentes organizaes dos
trabalhadores rurais e urbanos, de uma descrio das disputas pelas representaes
polticas em seu interior, bem como da organicidade dos movimentos sociais nos anos
50 e 60. Ainda nesse captulo, o saque de 1962 revisitado a partir da Luta
Democrtica e da revista Fatos e Fotos. Registram-se o esforo de identificarmos as
disputas operadas em um acontecimento decisivo para a vida poltica da cidade e da
Baixada Fluminense e a anlise das marcas deixadas pelo golpe militar na vida social e
no poder poltico local. Para construir esse captulo, utilizamos os depoimentos orais
dos militantes, dissertaes e teses, peridicos, relatos de memria de militantes e
documentos dos movimentos.
26
CAPTULO I
ANTECEDENTES HISTRICOS: O PASSADO ESCRAVISTA DE IGUAU
E ESTRELA
Nas margens dos rios Iguau e Meriti, habitavam os ndios Jacutingas,35
que
chamavam essa regio de Trairaponga.36
Seu principal rio, o Iguau, foi utilizado como
entrada para a ocupao colonizadora do recncavo e seu nome foi emprestado a uma
das sesmarias, criada posteriormente pelos portugueses.
No relatrio do Marqus do Lavradio ao Vice-Rei de Vasconcelos,37
consta que,
em 1503, Gonalves Coelho e o navegador Amrico Vespcio levaram para Portugal
quarenta escravos indgenas, em que mais da metade eram mulheres seqestradas da
aldeia Jacutinga. Portanto, a histria dos primeiros habitantes das terras iguauanas no
difere do que ocorreu em quase toda a colnia: extrao de madeira, escambo,
escravido, doenas bacteriolgicas e aproveitamento das dissenses internas entre
naes indgenas, a fim de que o europeu pudesse impor seu domnio.
Houve uma ocupao mais permanente com a presena francesa no Rio de
Janeiro.38
Eles se instalaram no Fundo do Rio, implementando um trabalho
missionrio e estabelecendo uma relao de escambo com os Jacutingas. Em troca de
madeira e alimentos, os Tupinambs recebiam dos franceses produtos manufaturados.
Segundo as cartas do padre Jos de Anchieta de 1584,39
havia cerca de sete a
oito beneditinos franceses, que vestiam os meninos gentios com seus hbitos brancos,
realizando um trabalho de catequizao e de plantio nas margens do rio Iguau. Porm,
a atuao francesa foi interrompida em 1564, durante a guerra contra os portugueses.
35 Os Tupinambs eram chamados de Jacutingas por utilizarem as penas da jacutinga para se enfeitar. As
jacutingas so conhecidas como aves cantadoras por emitirem um som que vem de suas asas quando se
deslocam ou se acasalam. 36 Anteriormente presena dos Jacutingas, h vestgios da presena de sambaquieiros na regio.
Entretanto, sabemos muito pouco sobre eles. Recentemente, foi criado um Laboratrio de Arqueologia na
FEUDUC e este grupo vem realizando pesquisas arqueolgicas na Baixada Fluminense, em parceria com
o Museu Nacional. 37 O relatrio est datado de 1769-1779. Ver MAIA FORTE, Jos Mattoso. Memria da fundao de
Iguass. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Commercio & Companhia, 1933. 38 NIGRA, D. Clemente M. da Silva. A Antiga Fazenda de So Bento de Iguau, Revista do SPHAN, n 7, 1943, pp. 257-258. 39 Cartas Jesuticas III. Cartas de Joseph de Anchieta S. J. Publicao da Academia Brasileira, p. 313.
[Coleo Afrnio Peixoto].
27
Aps essa guerra sangrenta, os portugueses fundaram a cidade do Rio de
Janeiro. O confronto levou morte mais de doze mil40
pessoas de ambos os lados. Os
Jacutingas sofreram com a guerra e a ocupao lusa, que os reduziram escravido e
motivaram a fuga para o interior, na direo das matas da Serra dos rgos, da Serra do
Tingu e da Serra da Taquara.
Em 1565, o Ouvidor-mor, Cristvo Monteiro, recebeu a doao de parte das
terras da Sesmaria de Iguau, em agradecimento sua atuao na luta contra os
franceses. Monteiro construiu o primeiro engenho aucareiro da regio em sua Fazenda
de Aguassu ou Iguassu.41
No mesmo perodo, Cristovo de Barros recebeu tambm
sesmarias nas margens da Baa da Guanabara, localidade que atualmente compreende o
municpio de Mag. A ocupao portuguesa nas cercanias da Guanabara tornou-se
necessria para a defesa da cidade e tambm para assegurar o domnio luso na regio.
Trs anos depois, Martim Afonso fez a doao de outra vasta rea da Sesmaria de
Iguau42
a seu primo Brs Cubas. Apesar de ele ter sido o maior concessionrio da
sesmaria, nunca se apossou dessas terras e novas doaes foram realizadas.
Jorge Lus R. da Silveira analisou a estrutura fundiria de Iguau e identificou
46 doaes realizadas no sculo XVI, em que 43 possuam mais de 1.000 braas, sendo
a maior com 3.000 de frente por 9.000 de fundos. A partir de 1569, as novas doaes de
terras foram reduzidas, concentrando-se no interior da regio, e a extenso das
propriedades era menor, demarcando a diminuio das opes de escolha de terras e a
interiorizao das fronteiras agrcolas.43
Alguns proprietrios ampliaram suas ocupaes
mediante o desinteresse inicial dos sesmeeiros por suas terras e a ausncia de controle
da demarcao dos limites territoriais das propriedades.
J as terras que margeavam os rios Inhomirim, Imbari e Estrela foram doadas a
partir da ltima dcada do sculo XVI aos sesmeeiros Antnio Fonseca, Domingues
Fernandes, Joo e Simo Botelho etc. Essa rea passou a ser conhecida por Piedade de
Inhomirim e, posteriormente, por Estrela. Durante todo o sculo XVI e XVII, novos
40 RIBEIRO, Darcy. A formao e o sentido do Brasil. So Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 33. 41 A fazenda de Iguau conhecida atualmente por So Bento. No final do sculo XVI, ela foi doada aos
beneditinos, isto , os religiosos membros da Ordem de So Bento. Somente no sculo XVII foi construdo o Mosteiro de So Bento. 42 A Sesmaria atingia parte do atual centro de Duque de Caxias, So Joo de Meriti at a Estrada de
Santos. (Livro de Tombo 63, PI. Registro de Monsenhor Pizarro. Revista do Instituto Histrico. Apud:
MAIA FORTE, 1933, pp. 8-9.) 43 SILVEIRA, J. L. R. da. Transformaes na Estrutura Fundiria do Municpio de Nova Iguau durante a Crise do Escravismo Fluminense. Niteri, 1988, pp. 123-131. Dissertao de Mestrado pela UFF.
28
colonos chegaram, ampliando a ocupao lusa e afirmando as cercanias da Guanabara
como reas de produo agrcola voltadas exportao e ao comrcio intercolonial.
I.1 A lgica da ocupao portuguesa em Iguau e Estrela
No lugar das aldeias indgenas, foram sendo instalados engenhos, capelas,
mosteiros, tabernas, portos e estradas. A topografia da regio era propcia ao plantio da
cana, e os rios facilitavam o escoamento da produo e a comunicao com a cidade
porturia do Rio de Janeiro. Alm disso, a existncia de uma reserva de madeira
considervel viabilizou sua extrao e comercializao, permitiu a construo dos
engenhos e das embarcaes e estimulou a produo de carvo. A extrao de madeira
manteve-se como atividade comercial vantajosa na regio pelo menos at meados do
sculo XX.
No inventrio do Comendador Bento Rodrigues Vianna, datado de 1869, consta
que uma poro de madeira para a construo, de maior parte estragada, estava
calculada em quinhentos mil ris (500$000). Utilizando o mesmo inventrio, podemos
comparar esse valor com o de outros bens. O valor de um escravo nesse perodo, em que
o trfico externo j havia sido extinto, variava entre trezentos a um conto de ris e
duzentos mil ris (300$000 e 1.200$00, respectivamente). Com um conto de ris,
comprava-se um escravo ladino;44
com um conto e duzentos ris, um escravo barqueiro
que conhecia bem a geografia da localidade, era hbil na conduo de embarcaes e
nas negociaes com os quilombolas, evitando-se, dessa forma, possveis saques.
Tais dados mostram, de um lado, a importncia das vias fluviais, que, ainda em
1869, articulavam a circulao de produtos na localidade. De outro, permite-nos
perceber o quanto poderia ser rendosa uma poro de madeira em bom estado, o que
tornava sua extrao lucrativa.45
A economia da regio se integrava, de um lado, aos interesses da metrpole
portuguesa, tornando-se uma rea de produo agroexportadora, fornecedora de madeira
e de alimentos para abastecer a Capitania do Rio de Janeiro. De outro, favorecia o
acesso de um pequeno grupo de pessoas propriedade da terra e explorao da fora
de trabalho das populaes indgenas e, posteriormente, dos escravos africanos.
44 Era comum chamar o escravo analfabeto e sem especializao de boal. J o que possua certa
especializao era chamado de ladino e era mais valorizado no mercado. 45 Inventrio de Bento Domingos Vianna. Comarca de Iguassu, 1 Ofcio. Estado do Rio de Janeiro,
Repblica dos Estados Unidos do Brasil. Tombo n 196, Mao n 7, 1869.
29
Segundo Joo Fragoso,46
a acumulao de riqueza realizada na Capitania do Rio
de Janeiro iniciou-se com as doaes de terras e a explorao da mo-de-obra escrava
indgena, j que o preo do escravo africano era alto e a ausncia de liquidez impedia
inicialmente o acesso a ele. Para Elmo da Silva Amador, a fora de trabalho que movia
a economia do recncavo no sculo XVI era a mo-de-obra indgena.
Ao final do sculo XVI, eram segundo Anchieta (1585), 3.850 os moradores da
cidade do Rio de Janeiro, sendo trs mil ndios e mamelucos e apenas cem negros. Nas povoaes que foram sendo criadas na Baixada, junto aos rios que
demandavam para o recncavo, deveriam ser provavelmente vinte mil
habitantes, com o predomnio absoluto de ndios.47
Os nmeros de Anchieta podem no expressar uma realidade exata da poca,
mas so demonstrativos. A cidade do Rio, no perodo citado, era porturia. As
construes voltadas para o mar marcavam seu lugar de trocas comerciais e somente no
sculo XVII a populao da cidade do Rio cresceu, chegando a vinte mil habitantes,
ampliando, assim, sua ocupao, seu carter urbano e sua importncia.
J o recncavo era lugar de produo agrcola; portanto, necessitava de um
contingente maior de fora de trabalho, por meio da aquisio de mo-de-obra escrava
africana, facilitada, posteriormente, pela pequena acumulao realizada com a extrao
de madeira, a produo aucareira e de alimentos. Essa aquisio beneficiava os
mercadores da Provncia do Rio de Janeiro, que enriqueciam com o trfico e com os
crditos fornecidos aos proprietrios de terra da regio fluminense. Por outro lado, os
proprietrios poderiam ampliar a produo agrcola local, a criao de animais e a
extenso de seu domnio. A presena escrava do africano tornou-se, gradativamente,
cada vez mais significativa na Baixada Fluminense; porm, isso no representou o
desaparecimento absoluto da populao indgena. Ainda no sculo XVIII, encontramos
em vrios assentos de bitos, de batismo e de matrimnio a presena de ndios na
regio.
Aos quinze de novembro de mil e setecentos e sete annos, nesta Freguezia de
Nossa Senhora da Piedade de Aguass, faleceu Pedro, ndio, cazado com Ignez,
preta escrava de Igncio Ozrio, com todos os sacramentos, foi por mim
46 FRAGOSO, Jos L. A Espera das Frotas: Hierarquia Social e Formas de Acumulao no Rio de Janeiro Sc. XVII, Cadernos de Laboratrio Interdisciplinar de Pesquisa em Histria Social. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 1995, pp. 53-62. 47 AMADOR, Elmo da Silva. Baa de Guanabara: Um Balano Histrico. In: ABREU, Maurcio de Almeida (org.). Natureza e sociedade no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PCR/SMCTE/DGDI/DE, 1992,
p. 216.
30
encomendado pelo amor de Deus e sepultado no adro desta matriz de que fiz
este assento. Proco Joo Furtado Salvador de Mendona.48
A descoberta de ouro no planalto mineiro no sculo XVIII transformou a regio
porturia do Rio de Janeiro no principal centro econmico e poltico da colnia.
Segundo Joo Fragoso, durante as trs primeiras dcadas, o aumento da importao de
africanos e, conseqentemente, da comercializao de escravos a transformou em um
ncleo de acumulao interna significativa.
[...] no seria de todo absurdo postular que o porto carioca tenha absorvido, no mnimo, a metade do total de exportao de africanos para o Brasil durante o
sculo XVIII, ou seja, mais ou menos 650.000 indivduos.49
O aquecimento das atividades mercantis e a posio de centro do poder poltico
colonial a partir de 1763 transformaram a cidade no principal plo de atrao
populacional. No final do sculo XVIII, sua populao j atingia os sessenta mil
habitantes, tornando-se o principal centro urbano de toda a colnia. Salvador, que foi a
sede do Governo-Geral e a principal cidade durante o sculo XVI, somente no sculo
XIX atingiu a marca dos cinqenta mil habitantes.50
A importncia econmica do Sudeste refletiu-se tambm em Iguau, sendo
realizadas novas concesses de terras durante o sculo XVIII. O repasse representou,
segundo Silveira, uma concentrao de terras, j que, das 68 concesses, 32 possuam
mais de 3.000 braas e 18 delas foram entregues a pessoas que j possuam terras em
Iguau.51
Assim, o modelo escravista instaurou uma estrutura agrria em Iguau,
beneficiando um pequeno grupo de proprietrios que se dedicava produo agrcola
para atender o mercado da nova sede da colnia e a economia agroexportadora.
A sustentao do modelo escravista em Iguau foi assegurada tambm pela
instalao de um aparato administrativo e de controle com base religiosa, imposta pela
metrpole. Nas reas principais de transbordo das mercadorias, formaram-se ncleos
articulados.
48 Livro de Assentos de bitos da Freguezia de Nossa Senhora da Piedade de Aguass, de 1761-1766. 49 FRAGOSO, J. L. e FLORENTINO, Manolo. O arcasmo como projeto. Rio de Janeiro: Sete Letras,
1996, p. 35. 50 Os dados do Rio foram extrados do texto j citado de Amador Elmo da Silva, 1992, p. 229. O referente
a Salvador foi encontrado na obra SCWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na
sociedade colonial. Cia das Letras, 1988, pp. 77-94. 51 SILVEIRA, 1988, p. 124.
31
Nas margens dos principais rios, foram instalados portos e capelas. Construdas
de pau a pique, freqentemente novas capelas substituam as anteriores, o que explica
datas diferentes para a construo de uma mesma capela. Com o crescimento do arraial,
as capelas construdas nos engenhos, juntamente com uma matriz, passavam a formar
uma parquia. A matriz erguida tornava-se instrumento de organizao de seus
fregueses, registrando nascimentos, casamentos, bitos e outros acontecimentos nos
Livros de Tomo.
Os livros de assentos de batismo, matrimnio e bitos so valiosas fontes de
investigao do passado escravista da regio. Os assentos das Freguesias do Pilar, de
Inhomirim, de Suru, de Guia de Pocababa e das demais freguesias que compem
atualmente o Municpio de Mag podem ser encontrados no Arquivo do Bispado de
Petrpolis. A partilha dessa documentao se deu a partir da criao da Diocese de
Petrpolis, em 1946 (ver Anexo). O territrio de abrangncia da diocese era constitudo
pela rea de serra e pela rea do Recncavo da Guanabara, onde atualmente situam-se
os municpios de Mag, Duque de Caxias e parte de So Joo de Meriti.
Os assentos de Jacutinga, Marapicu, Piedade de Iguau e de Meriti podem ser
encontrados no Arquivo do Bispado da Diocese de Nova Iguau, criada em 1960.
Apesar de a Parquia de Meriti fazer parte da Diocese de Petrpolis, a Freguesia de
Meriti abarcava parte do atual territrio de Nilpolis e de reas que passaram a compor
o territrio de abrangncia da Diocese de Nova Iguau, o que explica o fato de os livros
de assento de Meriti estarem no Arquivo do Bispado dessa diocese.
A matriz paroquial estabelecia uma sede religiosa territorial, na qual seus
fregueses se relacionavam por meio de quermesses e cultos. A partir do sculo XVII, a
organizao paroquial estabeleceu as bases para a estrutura administrativa e a criao
das freguesias. Durante os sculos XVII e XVIII, seis freguesias foram organizadas na
regio de Iguau e Estrela: N. Senhora do Pilar do Aguassu (1612), N. S. da Piedade de
Aguassu (1619), So Joo Batista do Trairaponga (1644) que depois passou a ser So
Joo Batista de Meriti , N. S. da Piedade de Anhum-mirim (1677), Santo Antnio de
Jacutinga (1657) e N. Senhora da Conceio de Marapicu (1737).52
Elas funcionavam
52 As datas apresentadas so das primeiras igrejas das freguesias. As datas da fundao das freguesias so:
Pilar (1637), Jacutinga (1657), Piedade de Iguau (1719), Meriti (1747) e Marapicu (1759), Anhum-
Mirim (1677).
32
como normatizadoras da ordem portuguesa e articulavam os interesses daqueles que
controlavam os meios de produo na regio (ver Anexo 4).53
As Freguesias do Pilar, Meriti, Anhum-mirim e Jacutinga ocupavam parte do
atual territrio do municpio de Duque de Caxias. Os limites de cada uma foram
traados sem muito rigor e sofreram diversas alteraes ao longo do tempo. No sculo
XVIII, as Freguesias de Pilar e Meriti pertenciam ao Distrito de Iraj; Piedade,
Jacutinga e Marapicu, ao Distrito de Guaratiba.
As condies ambientais e o modelo implantado exigiam o uso permanente da
mo-de-obra do escravo africano para desobstruir os rios; construir canais, diques e
pontes; abrir estradas, assegurar a produo de tijolos e aguardente; lidar com a
manufatura do acar, o cultivo de alimentos para a subsistncia da fazenda e para a
comercializao com o porto carioca; levantar os prdios da casa grande, das capelas e
das olarias; criar gado; transportar as mercadorias e conduzir as embarcaes.
As linhas divisrias dos engenhos eram traadas a partir das fronteiras
demarcadas pelos rios que cortavam a regio. A exemplo do Recncavo Baiano, onde
a gua dominava essas terras, penetrando em toda parte e controlando o ritmo e a
organizao das atividades humanas,54 no Recncavo Guanabarino a geografia exerceu
uma influncia similar na estrutura econmica.
O desmatamento realizado pela extrao de madeira e pela instalao das
fazendas intensificou o encharcamento das reas mais baixas. Os proprietrios de terra e
de escravos conviviam com a presena de muitos trechos de manguezais, e os
sedimentos nessas plancies limitavam a expanso aucareira. Por outro lado, era essa
mesma geografia que favorecia o escoamento da produo e a articulao com a cidade
do Rio de Janeiro, principal rea porturia colonial do sculo XVIII.
A produo da regio era escoada por pequenas embarcaes nos portos55
instalados nas proximidades dos engenhos. Ao chegar ao porto principal da freguesia
mais prxima, transportava-se a produo para as embarcaes maiores com destino ao
Rio de Janeiro. Dessa forma, era necessrio disponibilizar um grupo de escravos que
conhecesse a geografia da regio, a fim de garantir um bom trnsito e a segurana das
mercadorias. Nas reas mais distantes dos rios, o transporte dos produtos at os portos
53 Observe que, estrategicamente, os portugueses nomearam os arraiais com os nomes dos padroeiros de
suas igrejas matrizes e incorporaram como segundo nome referncias indgenas como: Meriti, Iguau.
Jacutinga, Anhum-mirim etc. 54 SCHWARTZ, 1988, p. 9. 55 A Freguesia de Meriti possua 14 portos; a de Jacutinga, 9; a do Pilar, 9; a de Piedade de Iguau, 2; e a
de Estrela, 2.
33
principais era feito no lombo de burros, o que favoreceu a criao de animais tanto para
garantir o fornecimento de carne como para realizar o transporte.
Os principais portos localizavam-se nas margens dos rios Iguau, Pilar, Meriti,
Estrela e Sarapu.56
O primeiro foi o principal escoadouro colonial da Baixada
Fluminense durante o sculo XVI. Por ele, chegava-se s guas da Baa da Guanabara
em direo ao porto do Rio de Janeiro, para embarcar a produo agroexportadora com
destino Europa ou para a comercializao no mercado interno.
A dificuldade existente para analisar a economia agrria da Baixada Fluminense
est relacionada escassez de dados sobre os sculos XVI e XVII. Para esse perodo, as
informaes obtidas limitam-se s Cartas de Doao de Sesmaria, aos registros de
Monsenhor Pizarro em suas Memrias Histricas do Rio de Janeiro, aos Inventrios
de Transmisso de Abadia da primeira e mais importante fazenda da Baixada: a de
Iguau, pertencente aos beneditinos. A fazenda de Monteiro foi instalada no atual bairro
de So Bento, em Duque de Caxias. Em 1591, com a morte do proprietrio, suas terras
foram repassadas para a Ordem de So Bento.57
Em 1645, foi construda a capela de N.
S. das Candeias, que, no sculo seguinte, recebeu nova denominao: N. S. do Rosrio
de Iguau.
A partir do sculo XVII, os beneditinos ampliaram seus limites e sua produo
aucareira. Construram o sobrado58
nas proximidades da capela, a fim de impedir que
esta desmoronasse, ergueram uma olaria, um engenho de farinha, aumentaram a criao
de gado e de aves. Segundo o documento de transmisso da abadia de Frei Francisco
das Chagas para o Frei Rosendo do Rosrio, constava no inventrio de 1685 um total de
48 escravos, 780 arrobas de acar, 5 pipas de aguardente, 113 cabeas de gado etc.
Ainda no sculo XVII, foi registrada na fazenda a presena de 25 escravos trabalhando
diariamente nos trs fornos de sua olaria.59
56 Principais portos localizados nas atuais fronteiras do municpio de Duque de Caxias: Porto Estrela (na
divisa com Mag, perto da Fazenda Fragoso; atendia a ela e carga que vinha de Mag nos lombos de
burros); Porto da Chacrinha (rea prxima ao atual centro de Duque de Caxias, conhecida como
povoamento de Trairaponga); Porto de Pau Ferro (margens da Baa da Guanabara, entrando pelo Rio
Meriti at os Portos da Pedra, do Bento e do Pico); e Porto Pilar e Anhang (cortava o litoral da fazenda
Iguau, desaguava no Rio Iguau, defrontava-se com os Portos Retiro e Piaba). Ver PEIXOTO, Rui
Afrnio. Imagens iguauanas. Nova Iguau: Edio do Autor, 1968. 57 A escritura foi assinada em 1596. 58 O sobrado de estilo barroco foi construdo de 1754 a 1757. Na parte de cima, foram instalados os
quartos dos beneditinos e um varando; embaixo, uma oficina, a cozinha com fogo e forno lenha, o
refeitrio e um depsito de mantimentos. 59 PEREIRA, Waldick. Cana, caf e laranja: histria econmica de Nova Iguau. Rio de Janeiro:
FGV/SEEC do Rio de Janeiro, 1977, p. 20.
34
Apesar da limitao dos dados, possvel tecer algumas consideraes acerca da
economia a partir das informaes contidas nas Estatsticas do Marqus do Lavradio
referentes ao sculo XVIII. Os engenhos constitudos nas Freguesias de Iguau eram
predominantemente de mdio porte, com cerca de dez a quarenta escravos.60
Essa
predominncia no excluiu a presena de engenhos de grande porte, como o do Capito
Luciano Gomes, com 74 escravos; o de Madureira e o de Mato Grosso, com 70; e o de
Cachoeira, com 80.
possvel perceber, a partir dos dados apresentados pelo Marqus de Lavradio,
a presena de um mesmo proprietrio para mais de um engenho, a de parentes prximos
controlando outros engenhos e a de padres proprietrios. Os engenhos de Marapicu e
Cabussu estavam vinculados ao Morgadio dos Ramos e concentravam duzentos
escravos. O Engenho de Santo Antnio do Mato foi arrematado pelo proprietrio do
Engenho de Mato Grosso, pertencente a Igncio de Andrade Souto Maior Rendon. O
arremate j indicava uma pequena capacidade de concentrao de terra de alguns dos
proprietrios da localidade.
Engenhos, e