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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros CORREA, MR. Cartografias do envelhecimento na contemporaneidade: velhice e terceira idade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 125 p. ISBN 978-85- 7983-003-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. Linhas cartográficas a velhice e a terceira idade Mariele Rodrigues Correa

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros CORREA, MR. Cartografias do envelhecimento na contemporaneidade: velhice e terceira idade [online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 125 p. ISBN 978-85-7983-003-7. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

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Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

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Linhas cartográficas a velhice e a terceira idade

Mariele Rodrigues Correa

2LINHAS CARTOGRÁFICAS: A VELHICE E A

TERCEIRA IDADE

A gestão do envelhecimento nas políticas públicas

“Os países em desenvolvimento envelhecerão antes de se tor-narem ricos.” Foi com um tom quase profético que a coordenadora do Estudo Global sobre o Envelhecimento e a Saúde Adulta da Organização Mundial da Saúde (OMS), Somnath Chatterji, deu sua declaração por ocasião da divulgação de um estudo realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o envelhecimento da população mundial, em 11 de abril de 2007. De acordo com a pesquisa, no ano de 2050, a população idosa será maior do que a de crianças pela primeira vez na História. Para Chatterji, as consequ-ências econômicas e sociais motivadas por essas projeções devem ser objeto de preocupação pública e política: “(...) minha mensagem é que o envelhecimento da população é algo que deve ser abordado. Há uma mudança dramática que atingirá tanto o mundo em desen-volvimento como o desenvolvido” (idem, ibidem).

Os dados da pesquisa demonstram que, no ano de 2050, as pes-soas com mais de 60 anos representarão 32% da população mun-dial, triplicando dos 705 milhões atuais para quase dois bilhões. As projeções indicam um signifi cativo aumento do número de idosos, em nível global. A Europa deverá ter 35% de sua população idosa;

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a América do Norte, 27%; a África, 10%; a América Latina, 24%, enquanto a população infantil deve diminuir um terço, chegando a 19% nos países em desenvolvimento e a 16% nos chamados países desenvolvidos.

Dados como esses e tantos outros que dizem respeito à vida humana não são novidades na imprensa ou no meio científi co. O emprego de estatísticas e de projeções em pesquisas que envolvem indicadores humanos constitui-se em uma estratégia para sensibilizar e mobilizar tanto os indivíduos quanto os governos para o que parece ser imprescindível no corpo social: é preciso gerir a vida da população.

Essa gestão (Castel, 1987; Foucalt, 2003 e 2006) envolve uma série de expedientes que auxiliam a construção de um modelo de gerência da vida humana. A demografi a é um desses pilares. De acordo com o Dicionário Aurélio, demografi a é o “estudo estatístico das populações, no qual se descrevem as características de uma coletividade, sua natalidade, migrações, mortalidade etc.”. Para a gestão da população, essa ferramenta torna-se imperiosa, visto que está ligada aos dimensionamentos econômicos e sociais, ou seja, aos custos despendidos no governo das populações. Com base em indi-cadores, são elaboradas as políticas públicas que ditam as formas de organização e gestão da vida humana.

Os dados destacados pela ONU na recente pesquisa sobre o envelhecimento mundial mais uma vez buscam alertar para a ne-cessidade de elaborar políticas para a velhice. Projeções como essa datam de algumas décadas atrás, quando a população idosa adquiriu visibilidade por meio da divulgação de estatísticas como as realiza-das pela ONU, pela OMS e pelo Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística (IBGE). Os dados levantados por essas organizações buscavam alertar os governos para a necessidade de um plano de gestão do envelhecimento populacional, atribuído aos avanços da medicina, ao aumento da expectativa de vida e à diminuição da taxa de natalidade. Dessa maneira, a inversão da pirâmide etária acabou por transformar-se em um problema de ordem pública, principal-mente por acarretar demandas de investimento econômico dirigido para a atenção a essa população tida como economicamente inativa.

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No caso do Brasil, a preocupação com a temática do envelheci-mento populacional também se traduziu na divulgação de pesquisas cujos dados demográfi cos apontavam um aumento da população idosa em nosso país (a este respeito ver Canoas, 1985; Haddad, 1986; Kaufmann, 1982; Magalhães, 1986; Martins, 1997; Salgado, 1978; Simões, 1998; Veras, 2003). Atualmente, segundo os dados do IBGE, o Brasil conta com uma população de 13 milhões de habitantes com mais de 60 anos, com estimativas de que, após o ano de 2020, o País terá aproximadamente trinta milhões de idosos e poderá ser consi-derado o sexto em população idosa no mundo. A partir de pesquisas como essa, que destacavam o inexorável aumento do número de idosos, a velhice acabou por transformar-se em um novo problema social para o País.

Desde a década de 1950, as pesquisas que abordam o envelhe-cimento populacional são amplamente divulgadas, com o intuito de chamar a atenção para o problema social emergente na época. No entanto, não é o fato isolado do aumento do número de idosos no país que constitui por si só uma problemática. Enquanto objeto construído e produzido historicamente pela sociedade, a velhice tem implicações políticas, econômicas e sociais que dizem respeito, inclusive, à necessidade de dar visibilidade e de engendrar uma po-lítica de gestão e controle dessa população em franco crescimento. O crescimento do número de idosos criou uma preocupação em diversos segmentos da sociedade acerca dos velhos: o que fazer com esse contingente humano?

Para Milnitzky et al., “a velhice ganha visibilidade quando se põe em xeque a própria sociedade, impondo-se como um risco social, que deve ser enfrentado com políticas públicas” (2004, p.59, grifos nossos). Que riscos sociais a velhice poderia trazer ao mundo público? Ao ser enquadrada como categoria de risco, a velhice torna-se um objeto de gestão e controle social, já que o envelhecimento da popu-lação tornou-se uma espécie de ameaça à continuação da sociedade (Debert, 1998 e 2004).

Uma das grandes preocupações de diversos governos refere-se à previdência social. No Brasil, essa questão tem suscitado muitas

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discussões e reformas, sem que as medidas tomadas revertam na pretendida melhora do que se denomina “grande rombo” nos cofres da previdência. O aumento do número de idosos, nesse sentido, é tido como um risco à própria continuidade dos benefícios da apo-sentadoria, hoje um direito universal em nosso país.

A emergência da aposentadoria no contexto brasileiro pode ser compreendida como resultado de modifi cações ocorridas nas práticas de assistência à população carente (Groisman, 2001). Aos poucos, as empresas e o próprio Estado assumiram um papel até então ocupado pelas entidades fi lantrópicas. A institucionalização da aposentadoria, com base no critério da idade, promoveu uma homogeneização dessa camada da população ao relacionar a velhice à incapacidade para o trabalho:

(...) a aposentadoria causou uma profunda modifi cação nos signifi -cados da velhice. Associando a velhice à invalidez, tornou a idade um fator determinante para o afastamento do indivíduo do trabalho, independentemente de suas reais condições de saúde (idem, p.53).

A palavra inativo, de acordo com o Dicionário Aurélio, signifi ca inerte, ou seja, aquele que não age. Essa designação é bastante utiliza-da no Brasil para referir-se aos aposentados. Inativos no trabalho ou na economia, como são chamados, muitos idosos aposentados têm-se dedicado atualmente, contudo, a outras atividades de complemen-tação de renda. Em algumas cidades, há agências especializadas em empregar esse tipo de mão de obra. A necessidade econômica ou o desejo de não se tornar inativo têm ajudado a promover outras pos-sibilidades de vivência da aposentadoria que, presentemente, é um importante meio de sobrevivência de diversas famílias sustentadas por idosos, além de constituir questão preocupante para alguns espe-cialistas, os quais acreditam ser necessária uma preparação adequada para entrar nessa nova fase da vida.

A preocupação com a aposentadoria para a velhice, no Brasil (Haddad, 1986), data de 1923, quando foram criadas as Caixas de Aposentadoria e Pensões (CAPs), inicialmente destinadas aos

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ferroviários, estendendo-se aos estivadores, em 1926. Desde 1930, somaram-se às CAPs os Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), fundados pelo Estado a fi m de atender apenas a algumas parcelas da população urbana economicamente ativa, de acordo com determinadas categorias profi ssionais. Elaborada no governo de Getúlio Vargas (1951-1954), a Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS) foi promulgada em 1960, no governo de Juscelino Kubits-chek, com o intuito de uniformizar a legislação previdenciária com relação às contribuições salariais.

Leis e portarias sobre a previdência social foram construídas, der-rubadas e aprimoradas segundo diferentes governos que ocuparam a presidência do País. É possível notar que, aos poucos, a previdência social dirigida aos idosos adquire status de política governamental, sendo necessária sua gerência e controle. Os contornos de uma ve-lhice como um problema de Estado começam a se delinear.

Em 1966, foi criado o Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e, em 1973, foi garantida ao segurado da previdência a apo-sentadoria aos 60 anos para as mulheres e aos 65 para os homens. A chamada aposentadoria por velhice foi estabelecida a partir dos 65 anos para mulheres e dos 70 para os homens. As garantias de apo-sentadoria normalizadas pela lei acontecem em um momento em que a sociedade civil inaugura o Movimento Pró-Idoso (Mopi), no ano de 1972, o qual, junto a entidades públicas e privadas, buscava promover a integração e a participação do idoso no campo social. Nota-se que há uma busca pelo reconhecimento do homem idoso como parte integrante da sociedade, pleiteando-lhe um lugar e algum modo de participação.

É nos anos de chumbo da ditadura militar, mais especifi camente em 1974, que o então presidente General Geisel assina a Lei no 6179, que dispõe sobre o “amparo previdenciário” para idosos acima de 70 anos e para inválidos incapacitados pelo trabalho. O direito a meio salário mínimo vigente ou a 60% do salário do local de trabalho era garantido aos trabalhadores contribuintes do INPS por um período de pelo menos 12 meses. Esse benefício, na época muito comemorado e elogiado, foi concedido em um momento em que se apregoava,

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com ufanismo o “milagre brasileiro”. Sob a máscara de seguridade social, seu objetivo era reduzir a mendicância na velhice, tida como um problema nessa época de domínio militar e de atos institucionais. Ou seja, mais uma estratégia para abrandar, mascarar a miserabi-lidade social com medidas populistas e paliativas, ainda hoje em-pregadas na máquina de produção de políticas de assistência social.

A criação, ainda em 1974, do Programa de Assistência ao Idoso (PAI), ligado inicialmente ao INPS, procurou formar grupos de convivência com idosos segurados da previdência, com o objetivo de criar condições de promoção social dos participantes por meio de uma série de ações como atividades físicas, recreativas, culturais etc. (Silva, 2006). No ano de 1977, esse programa foi expandido para a Legião Brasileira de Assistência Social e, em 1979, passou a ser responsável pela assistência ao idoso em todo o País, em parceira com ONGs, estados e municípios. Aos poucos, a velhice começa a tornar-se objeto de gestão do Estado por intermédio de medidas que visavam criar uma imagem de envelhecimento ativo com base em uma série de programas direcionados aos idosos (Cardoso, 2004), como o já mencionado PAI, embrião dos atuais clubes voltados para o segmento chamado de terceira idade.

A preocupação com o processo de envelhecimento populacional levou, em 1978, à criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), na Câmara dos Deputados Federais, a fi m de investigar soluções e práticas para a problemática do idoso, uma vez que as estatísticas já alardeavam o crescimento do número de velhos no País (Salgado, 1978). Na ocasião, o professor de Administração Regional do SESC-SP, Marcelo Antônio Salgado, foi convidado pelos parlamentares para prestar depoimento sobre a atuação da referida entidade com seu programa direcionado à população idosa.

De acordo com a declaração de Salgado à Comissão, a velhice não se constitui por si só em um problema social e se diferencia das demandas sociais de outros níveis etários. Na ocasião de seu depoi-mento, o professor questionou a falta de iniciativas políticas para com os idosos, alegando que os governantes se voltavam somente para a juventude, e alertava-os para a urgência de uma política para

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a velhice, principalmente no preparo do indivíduo para a aposenta-doria, mantendo-o ativo e útil, pois quando o aumento do número de idosos no país não é processado pela sociedade, a velhice passa a ser um problema social e objeto de intervenção política.

Sob a égide do processo de envelhecimento populacional, perce-bemos que essa fase da vida acabou por transformar-se em uma nova demanda social, com a necessidade da atuação direta do Estado na elaboração de políticas no direcionamento da última etapa da vida, para além da questão previdenciária. Além disso, a aposentadoria já é sinalizada na fala de Marcelo Salgado como um objeto problemá-tico, e seria necessária a preparação do indivíduo para esse ritual de passagem para a velhice. Nesse sentido, a preocupação da medicina e do Estado também se voltará para esse aspecto da aposentadoria, principalmente na gestão e administração do tempo ocioso do idoso aposentado, conforme veremos mais adiante.

No Estado de São Paulo, em 1981, o então governador Paulo Ma-luf propôs a criação do Programa Pró-Idoso, cujas diretrizes gerais focalizavam a necessidade de conscientização e mobilização social no atendimento ao idoso institucionalizado ou não, além de treinamento de recursos humanos, levantamento de dados sobre a condição do ido-so e estabelecimento de contratos e convênios (Haddad, 1986, p.35).

Com o objetivo de fomentar ações de promoção, prevenção e assistência, o programa visava, por meio da conscientização e mo-bilização popular, resgatar o papel da comunidade e da família no cuidado ao idoso, a fi m de mantê-lo no seio familiar. Essa estratégia demonstra que a velhice adquire um status de preocupação política com o reconhecimento da necessidade de uma intervenção do Estado no papel da família na sua relação com o idoso. De acordo com Guita Debert, “durante muito tempo considerada como própria da esfera familiar, uma questão de previdência individual ou de associações fi lantrópicas, ela (a velhice) se transformou numa questão pública” (apud Groisman, 2001, p.44).

Além disso, com o treinamento de recursos humanos para o atendimento das pessoas idosas, é possível vislumbrar a tentativa de construir uma mão de obra especializada para a educação da velhice.

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Foi na década de 1980 que a geriatria e a gerontologia começaram a ganhar força e abrangência dentro do campo da ciência. Dessa forma, tornou-se necessário formar e sensibilizar profi ssionais de diversas áreas da saúde não somente para o cuidado específi co dos idosos, mas também para a consolidação de um saber e de uma categoria social que emergia dentro do âmbito da saúde.

Outras diretrizes do Programa Pró-Idoso suscitaram outros pro-cedimentos de gestão da velhice, como a atividade de levantamento de dados sobre as condições dos idosos. Ora, para gerir os corpos é preciso que se saiba quem se está governando. É possível que, na épo-ca da elaboração desse programa houvesse poucos dados referentes aos modos de vida do idoso, gerando a necessidade de conhecer esse objeto, que começava a ter visibilidade. Esse modelo de pesquisa com levantamento de perfi l de população é ainda bastante utilizado, prin-cipalmente com o intuito de conhecer as demandas da comunidade e implementar programas para a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. Tais demandas não deixam de ser socialmente produzidas e incitadas, inclusive pelos mecanismos de gestão que atuam por meio de programas de assistência, como os direcionados para a velhice. É interessante notar que a diretriz seguinte do programa de Paulo Maluf refere-se à criação de contratos e convênios possivelmente para a execução de projetos de intervenção.

O plano elaborado para o idoso contou, ainda, com a elaboração de dois subprogramas: o de Assistência Social ao Idoso Institucio-nalizado e o de Assistência ao Idoso em Meio Aberto. Essa medida constitui uma tecnologia de controle social amplo, com vistas à gestão dos corpos, seja nas instituições fechadas (asilos), seja em espaços sociais abertos. Dentre os objetivos desses dois programas, destacamos a valorização do idoso como um ser socialmente útil e vinculado à família e à comunidade, por intermédio de atividades ocupacionais, grupos de convivência, recreação etc. Nesse sentido, a velhice começa a emergir como um objeto com destinação utilitária no meio social, de alguma serventia ou proveito.

O Programa Pró-Idoso não chegou a se concretizar enquanto política pública, mas confi gura-se como um importante meio para

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compreender a visão do Estado sobre a velhice, especialmente em uma época em que ela começa a se tornar um problema social devido ao aumento do número de idosos no país.

No mesmo ano em que a ONU alertou os países quanto ao in-discutível aumento do número de velhos no mundo, foi instituído o Ano Internacional do Idoso (Kaufmann, 1982; Martins, 1997). Na ocasião, os países integrantes dessa organização foram convidados a participar da Assembleia Mundial sobre o Envelhecimento, na cidade de Viena, de 26 de julho a 6 de agosto de 1982, com a presença de geriatras e gerontólogos de mais de cem países.

Ao fi nal do evento, foi redigida a Carta de Viena, com um plano de ação internacional sobre o envelhecimento, incluindo cerca de 120 recomendações aos países participantes de sorte a alertar para a necessidade de um planejamento de uma política de atendimento ao idoso nas áreas social, econômica, médica e legal. Nesse documento, a afi rmação de que o envelhecimento bem-sucedido seria possível somente se houvesse uma parceria entre o Estado e a sociedade civil já apontava a urgência de adesão social frente aos planos de gestão da velhice, que deveria contemplar os campos da cidadania, da saúde, moradia, trabalho e bem-estar. O Brasil, atendendo à proposição da ONU, instituiu no país o Ano Nacional do Idoso, pelo decreto pre-sidencial no 86.880, de 27 de janeiro de 1982, e criou uma Comissão Nacional para estudar a problemática da velhice que se delineava no campo social brasileiro. No estado de São Paulo, a Lei Complemen-tar no 3.464, de 26 de julho de 1982, instituiu o Dia do Idoso, a ser comemorado no dia 21 de setembro.

A preocupação mundial com o envelhecimento global, conforme podemos perceber, data de mais de vinte anos, com divulgação de estatísticas, previsões, alertas e pesquisas que cada vez mais afi rmam a necessidade de ter o controle social da população que envelhece. De acordo com Edna Martins,

pesquisas sobre o envelhecimento e as várias fases da vida adulta são relativamente recentes. Consideradas incipientes nas primeiras décadas desse século (XX), foi a partir dos anos 50 que se assiste à

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explosão de trabalhos científi cos sobre o envelhecimento, ganhando força e se fi rmando nos anos 70 e hoje, em todas as áreas, estão em franca expansão, revelando a preocupação gerada pelo acelerado aumento de sexagenários do mundo. (1994, p.22)

Ao mesmo tempo em que se produz o aumento da expectativa de vida, atribuído principalmente às ciências, tem-se uma preocupação generalizada com esse contingente humano que exibe uma série de implicações que serão tomadas como objeto de gestão da velhice: grande número de aposentados, que representam um problema para os cofres da previdência; uma população que possui amplo tempo livre, o que também pode ser visto como uma questão de gestão; com o aumento do número de velhos, há também um aumento de gastos com essa população no sistema de saúde pública. Dessa maneira, a criação de políticas públicas para a velhice respondeu a uma neces-sidade frente ao grande desafi o na direção e controle dos rumos do envelhecimento.

Ainda no ano de 1982, no Estado de São Paulo, foi assinada a portaria no 2.864 (Haddad, 1986), que dispunha sobre uma série de justifi cativas para uma política assistencial para a velhice. Dentre elas, destacamos os serviços prestados pelas entidades assistenciais do governo que, de acordo com a referida portaria, seriam de natureza preventiva, terapêutica e promocional no atendimento às pessoas idosas. As ações de natureza preventiva deveriam ser dirigidas para o desenvolvimento de atitudes positivas frente ao envelhecimento. No caso das ações terapêuticas, elas se orientariam para o tratamento de difi culdades e de problemas referentes aos idosos. Por fi m, as atitudes promocionais deveriam proporcionar ao idoso condições de ser socialmente útil junto à família e à sociedade.

Percebe-se que as políticas públicas assistenciais se dirigem no sentido de uma tentativa de otimização da fi gura do idoso, tornando-o, de alguma forma, útil à sociedade. O discurso dos estudiosos do envelhecimento (Debert, 2004), na década de 1980, enfatizava que o Estado, o sistema capitalista e a cultura brasileira eram responsáveis pela desvalorização do idoso, um sujeito sem lugar na organização

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social, por ser considerado inativo economicamente, um ônus para a sociedade. Assim, as políticas voltadas para a velhice começam a ter a tônica de propor programas de promoção de uma nova imagem do idoso, com ações preventivas que conduzam para uma visão positiva do envelhecimento.

O modelo de assistência tradicional à velhice seria modifi cado por volta da década de 1980, partindo de uma política que atendia à parte pobre da velhice com outras modalidades de ações, com ênfase, sobretudo, em programas que ampliassem

as possibilidades de integração social do idoso; a necessidade do envolvimento da participação da família, da comunidade e das entidades assistenciais públicas e privadas que atuam na área de atendimento ao idoso; a necessidade de planejar, coordenar e con-trolar os planos e programas a fi m de garantir o funcionamento har-mônico das ações em todos os níveis da administração das entidades do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Haddad, 1986, p.65).

Aos poucos, o envelhecimento passa a ocupar outro espaço dentro das preocupações da gestão pública, cujo olhar se volta para uma política principalmente preventiva e promocional. Nessa época, surgem, ainda, leis específi cas para a questão dos maus-tratos na velhice e a iniciativa de criação de um espaço voltado para o idoso. Em São Paulo, em abril de 1986, por decreto do então governador do Estado Franco Montoro, foi criado o Conselho Estadual do Idoso, regulamentado no ano seguinte pela Lei no 5.763 (Martins, 1997). A função principal desse conselho seria formular diretrizes para a implantação de ações voltadas à defesa dos direitos do idoso, como organização de debates para a promoção da cidadania, elaboração de medidas normativas junto ao legislativo, orientação de idosos e estimulação na implantação dos Núcleos Regionais do Idoso (NRI) no interior paulista.

Essa iniciativa visava estimular a atenção e o apoio da comunidade regional e local para os idosos por intermédio de núcleos, centros de

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convívio, clubes e/ou postos de atendimento para a terceira idade. Atividades tais como

seminários, excursões, cursos, gincanas, grupos de teatro, corais, atividades físicas, modalidades esportivas, [eram] promovidas com o objetivo de extinguir-se – pela convivência com seus pares ou com ou-tras gerações – a imagem do idoso como um ser incapaz. (idem, p.68)

É nesse cenário que emerge a terceira idade, grupo etário que se caracteriza por outras materialidades sobre o envelhecimento, não mais visto como uma fase de doenças ou do ócio, mas de produtivida-de, realizações e juventude. Aliás, Magalhães (1986) a denomina de “segunda juventude”. O próprio conceito de terceira idade também traz em seu bojo uma revitalização da imagem do envelhecimento (Debert, 1998), como pôde ser notado em uma ocasião em que um clube da terceira idade do interior paulista criou um lema que ex-pressa muito bem essa nova condição: “Com a idade envelhecemos, com a terceira idade rejuvenescemos”.

As associações da terceira idade que derivaram desse movimento, hoje presentes na maior parte das cidades, constituem um gran-de meio propagador dessa imagem, veiculada principalmente nas atividades oferecidas. Nota-se que os Núcleos Regionais do Idoso surgem com a ideia de promover uma série de ações que imprimem diferentes marcas: seminários, debates e cursos que demonstram a necessidade de ter um envelhecimento bem informado e conscienti-zado; as excursões, um meio de promover maior presença do idoso na cidade e no turismo e também de realização pessoal; as olimpíadas, gincanas, atividades físicas etc. reforçam que é preciso ter uma velhi-ce saudável, higiênica e forte. Os núcleos, associações e clubes vol-tados para os idosos estão, atualmente, em grande parte das cidades brasileiras.

É preciso ressaltar que tais entidades representam um importante meio de associatividade dos idosos, sempre carentes de possibilidades de circular e habitar diferentes espaços na cidade. No entanto, muitas vezes esses espaços correm o risco de funcionar como um gueto de

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idosos. De fato, o próprio espaço urbano é produtor de guetifi cações (Maffesoli, 1998), quando vislumbramos, por exemplo, os lugares de circulação da população jovem em determinadas ruas e avenidas, casas noturnas e bares. Nesses lugares, difi cilmente encontramos a presença de idosos. A eles restam os clubes, já que lá permanecem entre os seus iguais, tal como acontece em vários outros espaços da cidade.

A criação dos núcleos para a terceira idade, no Estado de São Pau-lo, estimulada pela Lei no 5.763/1987, é de extrema importância para a análise da revitalização da fi gura do idoso. Ao longo das políticas públicas analisadas neste livro, percebemos que o envelhecimento do homem cada vez mais se torna objeto de intervenção do Estado, desde a instituição da aposentadoria até as formas de utilização do tempo livre. Os contornos dessa nova imagem de terceira idade con-fi guram-se à medida que essa categoria passa do plano do assistencia-lismo para o da revitalização, reutilização e otimização da fi gura do idoso.

A década de 1980 foi, no Brasil, a da descoberta da velhice nas organizações privadas e na gestão pública (Debert, 2004). Além disso, é nessa época que surgem, também, as Universidades Abertas à Terceira Idade (Martins, 1997; Santos, 1997). Com projetos que objetivavam o oferecimento dos recursos das universidades para a melhoria da qualidade de vida e ampliação das possibilidades de cir-culação dos espaços sociais dessa população, as Unatis colocaram-se entre as grandes propagadoras dessa nova materialidade do processo de envelhecimento.

Hoje em dia, essas organizações estão presentes em grande parte das universidades públicas e particulares e continuam sendo funda-mentais para a difusão dessa imagem ativa, saudável, empreende-dora, capaz de produzir, consumir e participar de outros campos da sociedade. E é por meio da instituição universitária, que representa a ciência e o saber, que se tem procurado demonstrar que há possibi-lidade de vida saudável para os idosos e que estes devem manter-se ativos no meio social, desfazendo estereótipos de uma fase marcada

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pela caduquice, invalidez e inutilidade. Mais uma vez, há uma pre-ocupação em refuncionalizar a fi gura do velho e redimensionar os processos de envelhecimento.

A apreensão com os rumos da velhice expressa-se com mais in-tensidade principalmente a partir de 1982, quando a ONU, conforme mencionamos, decretou o Ano Internacional do Idoso (Kaufmann, 1982). É nessa época que a imagem propagada em relação a essa fase da vida foi profundamente marcada pelos signos da miséria e abandono desses cidadãos na sociedade brasileira. Para a Associação Nacional de Gerontologia, apesar do comprometimento do governo brasileiro com o Plano Internacional de Viena, fi rmado em assembleia da ONU, os anos seguintes a 1980 foram marcados por denúncias da pauperização material e física da velhice, sendo que as instituições assistencialistas eram o único reduto para uma grande parcela da população idosa (Silva, 2006).

Dessa maneira, aos poucos houve uma tentativa de reconfi guração dos rumos dessa população, que cada vez mais ganhou espaço dentro do cenário social por meio de diversas ações. Frente à velhice pau-perizada, abandonada e asilada, criaram-se políticas de assistência terapêuticas. Uma nova imagem foi se desenhando, com traços mais revitalizadores, por ações de promoção e prevenção, no sentido de transformar o idoso em um cidadão de direitos e protegido por lei, útil à sociedade, com maior participação na família e na comunidade, apresentando o envelhecer como uma fase positiva da vida.

Em virtude das determinações da constituição de 1988, que propiciou a participação da sociedade civil no desenvolvimento de políticas públicas por meio de conselhos, foi elaborada, em 1994, a Lei no 8.842, que dispõe sobre a Política Nacional do Idoso, regula-mentada, em 1996, pelo Decreto no 1.948 (Martins,1997; Milnitzky, 2004; Silva, 2006). Um dos objetivos dessa política voltada ao idoso foi estabelecer uma “política de direito”, com garantia de renda, de vínculos relacionais, proteção social e promoção da cidadania, em ações executadas nos municípios com parceria da sociedade civil. Por meio dessa política em âmbito nacional voltada para o idoso, criou-se

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o Conselho Nacional do Idoso, cujas ações estariam direcionadas, dentre outras providências, para a substituição dos asilos por centros de convivência e estimulação à assistência ambulatorial e domiciliar. As ações programáticas teriam como público-alvo os idosos a partir dos 60 anos, e o benefício da prestação continuada seria destinado àqueles com mais de 70.

À época da elaboração dessas políticas para os idosos, o IBGE ressaltava que a população idosa no Brasil era de 12 milhões de bra-sileiros acima de sessenta anos, com uma taxa de crescimento anual de 3,5%, enquanto o total da população crescia 2%. Projetava-se, entre 1985 e 2005, um crescimento de 94% do número de idosos. Projeções como essa colocaram a questão do envelhecimento da população como um problema para a administração pública, que via nesse fator uma questão econômica para os cofres públicos. De acordo com Edna Martins,

se no Brasil, em 1986, 48% dos benefícios sociais eram absorvidos com pessoas com mais de 55 anos, a previsão para o ano de 2010 é de que praticamente toda a verba ofi cial seja consumida por essa faixa etária se não se adotarem políticas de atuação adequadas a essa questão (1997, p.55).

A preocupação com os gastos com essa faixa etária tornou-se um desafi o para a gestão pública, principalmente nas áreas da previdência social e da saúde. A previdência social é ainda um grande problema para muitos países, que procuram por meio de reformas uma maneira de equilibrar os gastos previdenciários, o que refl ete diretamente no orçamento dos idosos. O Brasil, em um estudo comparativo com outros vinte países, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Ins-tituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é o país que oferece a maior facilidade para o indivíduo se aposentar (Ipea, 2007). Ainda de acordo com a análise feita pelo instituto, praticamente em nenhum país do mundo um trabalhador pode se aposentar antes dos 60 anos, a não ser no Brasil. Dessa forma, a previdência brasileira é tida como

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uma bomba-relógio prestes a ser detonada, em virtude dos altos gastos com o pagamento de aposentadorias e pensões.

O gasto da Previdência Social no começo dos anos 1990 não chegava a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Atualmente, essa conta chega a 11,5%, de acordo com a referida pesquisa do Ipea. Com o país cada vez mais envelhecido, a conta tende a aumentar e transformar-se em um problema ainda maior. Várias reformas já foram realizadas, e outras certamente estão por vir em um futuro próximo.

Com relação aos gastos com a saúde pública, a velhice também se coloca como um problema para os governantes. De acordo com Renato Veras (2003), o gasto do Ministério da Saúde com os idosos envolvendo médicos, ambulatórios, hospitais e exames é de cerca de 25% a 30% da verba total destinada à saúde pública. Ainda segundo o autor, um décimo da população consome um quarto do orçamento da saúde, ou seja, algo em torno de 7 bilhões de reais despendidos na atenção à saúde do idoso.

Diante dessas cifras, o autor alega que se gasta muito com essa faixa etária e se gasta mal, pois esse montante é utilizado no atendi-mento às doenças na velhice, quando deveria ser dirigido para ações preventivas, para diminuição de despesas. A proposta-chave para o grupo dos idosos seria postergar o início da doença por meio do seu monitoramento adequado (Veras, 2003). Mais uma vez, a velhice é colocada como um risco à administração do mundo social, urgindo medidas de gestão e controle dos idosos, a fi m de que se possam minimizar custos de uma população que, além de tudo, é tida como economicamente inativa e onerosa.

Há uma preocupação com a saúde e a qualidade de vida do ido-so, mas, para Renato Veras, “é reconhecido que o custo da saúde é muito alto, apesar de ser fundamental para qualquer sociedade. Por este motivo, as políticas precisam ser efi cientes, contemporâneas e elaboradas por profi ssionais qualifi cados e experientes” (idem, p.15). As políticas públicas, nesse sentido, devem, de fato, ser efi cientes para que se possa ter uma otimização dos custos despendidos com a saúde e ainda produzir mais-valia social.

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Para a minimização dos custos com a saúde, o autor defende que a educação seria um facilitador para a manutenção da capacidade funcional do idoso e para o envelhecimento com qualidade de vida. A educação para a velhice estaria atrelada à saúde, no sentido de infl uenciar alguns aspectos:

• permitindo maior acesso a cuidados médicos;• aumentando o conhecimento sobre comportamentos de saúde

mais apropriados;• estimulando a atividade mental e funções cognitivas, e retardando,

por exemplo, o desenvolvimento da doença de Alzheimer (idem, p.16).

A educação do corpo do idoso com estratégias como essas refl ete sua pedagogização por meio do saber médico, de uma educação para a saúde e da prevenção dos males do envelhecimento (Haddad, 1986). A função da educação atualmente tem assumido um caráter de vigilância e gestão dos corpos, atuando como um agente preventivo, conforme podemos verifi car no caso da velhice. A utilização dessa nova estratégia empregada em políticas públicas tem provocado um alcance para além da vida do indivíduo. “Em outras palavras, investimento em educação traz benefícios que ultrapassam o campo restrito desse saber” (Veras, 2003, p.16). De fato, os benefi ciários desse novo modelo de assistência baseado na prevenção pela edu-cação são, mais do que os cidadãos, as engrenagens da máquina capitalista, a produção da mais-valia, a economia de gastos públicos. Além disso, obtêm-se como resultado corpos saudáveis, úteis e governados.

Para a pedagogização do envelhecimento, o Estado e a medicina caminham lado a lado, em uma relação de comensal, na qual ambos são benefi ciários de um mesmo objeto sem que haja prejuízos a ne-nhum dos dois. O Estado minimiza custos e a medicina fortalece-se enquanto campo de saber sobre o corpo, tal como se pode depreender da seguinte afi rmação: “[...] os estudos vêm demonstrando que ações apropriadas de saúde, ou ainda, uma prática médica mais resolutiva,

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não só permitem uma melhoria do estado geral de saúde do paciente como também a diminuição dos custos” (idem, p.23).

Nessa perspectiva, a aliança entre esses dois segmentos expres-sa-se por meio de políticas preventivas para o envelhecimento sadio, promovendo o ideal de um corpo envelhecido, porém de espírito jovem, saudável e sem as indesejáveis marcas e doenças de um ho-mem velho.

Por fi m, a criação, em 2003, do Estatuto do Idoso, aparece como um marco para as políticas dirigidas à velhice no sentido de reconhe-cer, por lei, os direitos e deveres dessa fase da vida, assegurando prio-ridades e protegendo-a de maus-tratos com uma legislação específi ca (Ceneviva, 2004). As garantias de acesso a direitos fundamentais apoiam-se no direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária. O estatuto oferece, ainda, proteção ao idoso contra negligência, discriminação, violência, crueldade e opressão.

A promulgação do Estatuto do Idoso inaugura um novo olhar sobre o processo de envelhecimento do homem, haja vista que ele se destaca de outras fases da vida em termos legais. É certo que há mui-tos motivos para comemorar essa conquista dos idosos. Todavia, as garantias assinaladas na lei precisam ganhar corpo no mundo social, porque muitas vezes, no cotidiano de muitos idosos, elas permanecem em um plano virtual e desconhecido.

O papel da ciência na construção de saberes e práticas sobre o envelhecimento

Como produtora de modos de ser a partir da observação e inter-venção no corpo, a medicina, enquanto ciência, emerge como grande aliada na produção de subjetividade em torno do envelhecimento humano. Esse processo é a matéria-prima da evolução das forças produtivas do capitalismo, que ditam maneiras de ser e perceber o mundo (Guatarri & Rolnik, 1986).

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Em consequência, a velhice, tida como um processo natural do desenvolvimento humano, se constitui, na realidade, em uma velhice fabricada, produzida e incitada, tal como a percebemos atualmente, dentro de uma lógica de mercado que visa à sustentabilidade da má-quina capitalista. Dessa forma, é notável o quanto a ciência médica contribui com relação ao lugar e ao papel destinados aos idosos nos atuais contornos do mundo contemporâneo, pois

tais mutações da subjetividade não funcionam apenas no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular com o tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas (idem, p.26).

O discurso científi co produzido sobre o corpo envelhecido fre-quentemente aparece com pressupostos processos biológicos univer-sais, descolados de um contexto sócio-histórico que estimula modos de produção sobre o corpo do idoso. O recorte da vida baseado no modelo etário toma o processo de envelhecimento como algo natural e universal. Ao considerar esse processo como algo naturalmente produzido pelo corpo biológico, são defi nidas categorias universa-lizantes sobre o que do envelhecer é natural para todos, sem que se levem em conta as dimensões sociais da produção do envelhecimento (Debert, 1998).

A divisão da vida humana em estágios diferenciados, com fun-damento no critério etário, produz modos de ser próprios de uma determinada fase da vida, tal como acontece, por exemplo, na prática médica ou na psicologia do desenvolvimento. Desse modo, diferen-tes práticas de intervenção são lançadas sobre o corpo baseadas nesse processo de diferenciação dos corpos.

Com relação à velhice, a ciência ocupa um importante papel em algumas tecnologias de diferenciação que singularizaram a velhice de outras fases da vida (Groisman, 2001). Esse processo deve-se à emergência da velhice enquanto uma entidade demográfi ca: “para alguém ser velho, apenas é necessário que envelheça. Entretanto,

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para se tornar parte de uma população de pessoas idosas, se requer que essa pessoa seja absorvida por um discurso específi co de dife-renciação” (idem, p.50).

Uma dessas tecnologias de diferenciação seria a constituição de um saber específi co sobre o corpo nessa fase da vida, o qual se confi gurou na ciência por meio do nascimento da geriatria e da ge-rontologia1 no início do século XX. Até então, de acordo com Guita Debert (2004), o interesse científi co em relação à velhice permaneceu por muitos anos restrito a uma tentativa de explicar as causas do envelhecimento e os possíveis métodos para retardá-lo.

Nos séculos XVIII e XIX, a velhice, para a medicina, não era considerada uma categoria separada de outros pacientes, portanto, não demandava tratamentos específi cos, de sorte que as intervenções terapêuticas sobre as doenças não levavam em conta as diferenças de idade (Groisman, 2002). É certo que se admitia que essa fase da vida fosse dotada de características e doenças tidas como próprias da idade, mas esse fato não afetava diretamente os modos de se tratar tais males. As moléstias advindas desse corpo eram tomadas como inevitáveis, uma vez que “a debilidade da saúde dos velhos não era considerada um estado amenizável ou curável. Pelo contrário, os mé-dicos acreditavam que esta seria a qualidade essencial e irremediável do processo de envelhecimento” (idem, p.69).

O corpo envelhecido era visto como um declínio da energia vital do corpo humano, desgastado pela ação do tempo. Dessa maneira, a velhice constituía o irremediável destino humano, acreditando-se que não havia muitas opções de medidas terapêuticas junto ao idoso, fato

1 A geriatria se constitui em uma especialidade médica destinada ao estudo e tratamento das patologias da velhice. Já a gerontologia visa ao estudo multi-disciplinar dos processos de envelhecimento, passando pela biogerontologia até a gerontologia social, com a participação de profi ssionais de várias áreas do conhecimento, principalmente da saúde e das ciências humanas. Essas duas disciplinas têm uma relação de intrínseca proximidade, sendo que quando nos referimos ao “saber gerontológico”, não estamos excluindo a geriatria. Sobre o assunto, ver Groisman, 2001.

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que contribuía para que esse assunto não suscitasse muito interesse dentro da classe médica.

Algumas mudanças do olhar médico sobre esse processo come-çaram a delinear-se ao longo dos séculos XVIII e XIX, permitindo a construção de um saber específi co sobre esse objeto por meio do estudo da anatomia patológica, que buscava na superfície do corpo os sinais da doença. Assim, essa categoria seria diferenciada em relação ao corpo jovem de acordo com os sinais que os distinguiam. Para a ciência, as marcas do corpo passaram a denunciar as diferenças entre os indivíduos.

O grande asilamento no século XIX (Beauvouvir, 1990; Fou-calt, 2002 e 2004; Groisman, 2001) proporcionou a construção de um saber mais específi co sobre o corpo envelhecido. À época, em Salpêtrière, o número de idosos asilados era de cerca de dois a três mil, facilitando a coleta de dados clínicos. Charcot proferiu muitas palestras nessa instituição, posteriormente publicadas em 1866, com grande repercussão. O modelo de atenção à velhice, antes pre-ventivo, deu lugar ao terapêutico, com a preocupação em curá-la. Defendendo que essa nova categoria do corpo, a velhice, deveria ser considerada um objeto à parte, de acordo com suas patologias, Charcot e outros pesquisadores começaram a defi nir uma base clínica para a senescência.

Outras importantes contribuições para o estudo do envelheci-mento, na época, foram as pesquisas de Bichat, cuja teoria concebia que a doença se originaria na deterioração dos tecidos e, consequen-temente, nos órgãos. Dessa forma, o processo de envelhecimento estaria ligado a um processo de morte, uma vez que os tecidos se deteriorariam. De acordo com Daniel Groisman, “a partir do traba-lho de Bichat, o corpo envelhecido passaria a ser reconhecido como um corpo morrendo” (2002, p.69). Essa visão ainda permanece no imaginário social, que vê na velhice a fi nitude humana, cujo destino é esperar a morte chegar.

De fato, com as autópsias realizadas em idosos, os pesquisadores descobriram sinais de esclerose e deterioração de tecidos e órgãos.

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Acreditava-se, por conseguinte, que o envelhecimento fatalmente produziria doenças físicas e mentais, de maneira que o destino da velhice estaria selado: ela passou a ser tomada como uma fase distinta e irreversível da vida humana.

Seria praticamente impossível que o corpo pudesse retornar à sua condição original. Como afi rma Haber, a senescência passou a ter a sua própria natureza fi siológica. Ela diferiria da juventude de tal maneira que um observador não treinado não poderia compreender suas especifi cidades. Numerosos textos médicos passaram a descre-ver a fi siologia e a anatomopatologia da velhice. O velho, assim como os outros grupos etários, necessitaria ser tratado de acordo com os padrões apropriados para sua faixa etária. (idem, p.71)

É interessante notar as imagens evocadas tendo em vista a palavra fi nal dada pela ciência a respeito da velhice: ela é um processo fatal, irremediável, inevitável, tal como em uma tragédia grega. Impossível escapar de suas consequências, do declínio e da deterioração do corpo humano. Um corpo marcado pelo tempo e por olhares produtores de sentidos. A singularização da velhice, por esse recorte médico, foi um marco no sentido de apontá-la como um estado patológico qua-litativamente diferenciado, dotado de um funcionamento peculiar e com uma necessidade de intervenção terapêutica própria.

Desde o fi nal do século XIX, a velhice ganhou contornos mais defi nidos, quando a importância do tecido humano aumentou e as lentes sobre o corpo focalizaram uma unidade ainda mais reduzida e singular: a célula (idem). Ela passaria a ser responsável tanto pelo desenvolvimento e crescimento humano quanto pelo processo de envelhecimento. Com seus microscópios, os cientistas afi rmaram que a renovação celular era defi citária nos idosos e, ainda, que a própria composição da célula havia se modifi cado. Percebe-se que, no processo de delineamento da velhice enquanto objeto médico, essa fase da vida foi aos poucos sendo reduzida e singularizada, dotada de particularidades específi cas de uma dada faixa etária. As lentes

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do microscópio foram captando sinais de diferenciação em unidades cada vez menores, cada vez mais específi cas.

Se anteriormente a velhice não era diferenciada em relação a ou-tras idades da vida, com uma visão do corpo dotado de um princípio vital que se desgastara e não havia como recuperar, aos poucos essa visão foi se especializando e individuando a velhice como objeto mé-dico. Ao estabelecer sinais de uma composição de tecido diferente do corpo jovem, os pesquisadores da ciência médica afi rmaram que, na realidade, ela necessitava de um tratamento específi co. Essa produção de uma demanda em particular assinala o quanto o corpo envelhecido é incitado socialmente para legitimar saberes e práticas dentro de um campo específi co, já que essa concepção de envelhecimento baseada no modelo da degeneração celular, do aparecimento de doenças e de mudanças fi siológicas foi a base para o surgimento da geriatria no início do século XX.

Foi o médico americano Nascher quem introduziu o termo geria-tria, em 1909, em um artigo para a comunidade médica e na publica-ção do livro, em 1914, sobre as doenças da velhice e seus tratamentos, procurando construir uma base clínica que diferenciasse essa fase dentro do ciclo de vida (idem). A visão de envelhecimento associado a uma etapa de degeneração celular é assumida pelo médico, que se dedicava “a detalhar com o máximo de precisão a maneira como os velhos deveriam ser diferenciados a partir de seus corpos, e como esses corpos deveriam ser pesquisados” (idem, p.70).

Em sua publicação, Nascher atribuiu à degeneração celular uma série de fatores, como a queda dos cabelos, dos dentes, as rugas, as atrofi as, a esclerose e outras patologias que fariam parte de um processo normal de envelhecimento. Para o médico, a degeneração celular interna, associada ao declínio físico externo, afetaria as ca-racterísticas mentais e o comportamento dos corpos velhos, fazendo surgir características como a avareza e o interesse sexual exacerbado.

Com sua pesquisa, o médico americano tencionava chamar a aten-ção da classe médica para a urgente necessidade da criação de uma especialidade própria para esse estado do corpo. Com um discurso em que o normal e o patológico não tinham limites defi nidos nessa

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fase da vida, Nascher acreditava que, com a geriatria, “os médicos estariam capacitados para estabelecer as diferenças entre as mudan-ças fi siológicas e patológicas e tratar somente as doenças – e não as condições normais – da velhice” (idem, p.71). O critério para defi nir o que é normal nessa fase da vida estaria severamente comprometido devido ao grande número de doenças tomadas como próprias do idoso, atribuídas à degeneração celular e fi siológica. Assim, o critério de saúde/doença tornava-se praticamente uma questão de opinião pessoal, de acordo com a avaliação do médico.

Durante muitos anos, a geriatria não despertou muito interesse da classe médica, que permaneceu atuando em áreas mais lucrativas e populares. O início da geriatria apresentava uma série de contra-dições, e sua proposta terapêutica era centrada em práticas pouco ortodoxas com relação a outros campos da medicina, como a pres-crição de tônicos e estimulantes, atividades ocupacionais e de jardi-nagem, leitura, sugestão de escutar música, ter uma companhia etc. (idem).

É certo que atividades como as descritas acima são prazerosas e estimulantes, mas, de fato, parece-nos estranho um médico receitar tais práticas em uma consulta. Entretanto, elas entraram no domínio de prescrições médico-terapêuticas, principalmente na atualidade. Qualquer atividade prazerosa, como bordar ou dançar, é natural-mente receitada com a alegação de promover um envelhecimento com “qualidade de vida”. Exemplo dessa prática pode-se vislumbrar em uma pesquisa com idosos em bailes da terceira idade, na qual um pesquisador pergunta: “[...] por que o senhor vem ao baile?”. Diz o entrevistado: “[...] os médicos recomendam. É bom para evitar a depressão [...]” (Zago & Silva, 2003, p.68). Aquilo que poderia ser oportunidade de lazer, de encontros, de prazer e diversão, torna-se prescrição, procedimento médico.

No Brasil, a primeira sociedade de geriatria foi fundada em 1961 (Debert, 2004). Atualmente, essa especialidade é um ramo emergente na medicina, com um campo de atuação bem delineado. Ela foi uma tecnologia fundamental para o estabelecimento da velhice enquanto uma categoria de diferenciação, juntamente com a gerontologia.

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Além do discurso de singularização do velho em relação ao seu corpo envelhecido, esse processo se daria também em razão de seus comportamentos e suas condições sociais, tornando-se por fi m uma entidade demográfi ca, uma população específi ca evidenciada por outras tecnologias de diferenciação dos corpos aliadas com as práticas geriátricas e gerontológicas (Groisman, 2001).

O nascimento da gerontologia enquanto disciplina é mais com-plexo que o da geriatria. Esse termo teria sido cunhado, em 1903, pelo médico Metchnikoff para designar o estudo das possibilidades do prolongamento da vida por meio de intervenções médicas. O conceito de gerontologia expandiu-se, tornando-se um campo mul-tidisciplinar por volta dos anos 1930, no Brasil. Na referida época, a velhice passou a constituir um objeto de interesse principalmente das ciências sociais e da psicologia (idem).

Nos anos 1960, a velhice começou a ocupar as páginas de revistas médicas, na discussão de temas relacionados à área da saúde. Nessa época, também foram criadas associações e sociedades de geriatria, além do programa para a terceira idade no Sesc, em 1963, um dos pioneiros a dirigir atividades para essa faixa etária. Aos poucos, a temática da velhice começou a fazer parte das preocupações acadêmi-cas, especialmente na década de 1970, quando ela se tornou objeto de pesquisa em diferentes ramos do conhecimento, com maior presença na pós-graduação de diversas universidades.

É interessante notar que foi nos anos de 1970 que Simone de Be-auvoir lançou o livro A velhice, considerado uma leitura obrigatória no que se refere ao estudo e à pesquisa sobre o envelhecimento. Em sua obra, a autora conclama os leitores a ajudá-la a quebrar a “cons-piração de silêncio” em torno da velhice, um tabu para a medicina, as artes, as políticas públicas e a sociedade em geral. Por denunciar a fi nitude humana, a velhice seria um assunto triste e desagradável sobre o qual falar ou pesquisar. Essa obra teve grande impacto nas ciências humanas, em particular a psicologia e a sociologia, o que pode ter contribuído para que a temática da velhice começasse a ganhar mais espaço dentro dessas áreas.

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A constituição da gerontologia enquanto campo específi co de saber (Debert, 2004) confi gurou-se como um conjunto de disputas, no qual o discurso dos gerontólogos brasileiros se empenhava em transformar a velhice em uma questão política ou propor práticas para um envelhecimento saudável. A denúncia da falta de tratamento aos idosos buscava romper o “pacto de silêncio” em função de quatro elementos evocados no discurso gerontológico.

Primeiramente, a ameaça da explosão demográfica, que, nas décadas de 1970 e 1980, denunciava um crescimento vertiginoso da população brasileira, com projeções alarmantes para um futuro próximo, como a estimativa de que haveria um crescimento de 94% da população idosa no Brasil entre 1985 e 2005 (Martins, 1997). Essas pesquisas, reiteradas ainda hoje, prestam-se para sensibilizar governos e justifi car a efetivação de políticas públicas para conter vertiginosos gastos públicos com saúde ou previdência que colocam em risco a própria reprodução da vida social, como em uma “crônica da crise anunciada”. Nesse sentido, o uso do discurso da explosão demográfi ca igualmente contribui para legitimar a própria geronto-logia e a necessidade de implementar ações voltadas para preconizar um envelhecimento com “qualidade de vida” (Trentini et al., 2006).

Outro elemento organizador do discurso gerontológico foi a crí-tica ao capitalismo e ao sistema econômico-social brasileiro (Debert, 2004). A denúncia da desvalorização e do desamparo na velhice pautava-se na ideia de que o idoso, não sendo útil enquanto mão de obra, era desertado pelo Estado e pela sociedade. Nas palavras de Simone de Beauvoir, “a economia é baseada no lucro; é a este, na prática, a que toda civilização está subordinada: o material humano só interessa enquanto produz” (1990, p.13). Como o idoso não es-taria inserido em um contexto de produção de mais-valia, ele seria objeto de exclusão social, acentuada principalmente na velhice menos favorecida fi nanceiramente.

Talvez, na atualidade, essa crítica ao capitalismo tivesse que ser reformulada, quiçá invertida. O mercado descobriu que até mesmo a velhice pode ser produtiva e render lucros. Ainda que se possa dizer que os aposentados são inativos no trabalho ou na economia, eles

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têm sido alvo de grande investimento do capitalismo, que soube ser visionário ao enxergar nos idosos um potencial mercado de consu-mo. Hoje em dia, há uma série de produtos e serviços destinados a essa população, de viagens a empréstimos, de remédios a produtos de pet shop, além das casas de repouso e de condomínios específi cos para a velhice. O sentido da aposentadoria parece ter-se modifi cado, passando de um direito a um valor de mercado.

A crítica à cultura brasileira, cujos interesses se inclinariam em cultuar o novo e a juventude, é o terceiro elemento do discurso geron-tológico. Conhecido como um país de jovens, haveria no Brasil maior preocupação em absorver as novidades advindas principalmente do exterior, o que consequentemente não propiciava um culto às tradições. De acordo com Guita Debert,

a ideia de um país sem memória, que despreza o seu passado, usada por historiadores e políticos, é para o discurso gerontológico a prova do descaso com que os velhos são tratados pela sociedade e uma justifi cativa central para os trabalhos interessados em recuperar a memória dos idosos. (2004, p.200)

A importância de promover a memória do idoso foi uma tônica em diversos trabalhos da década de 1980. Talvez o seu maior expo-ente tenha sido a obra de Ecléa Bosi, intitulada Memória e sociedade (1987), outra importante referência acadêmica sobre a velhice. Nela, a autora versa sobre a memória de idosos na cidade de São Paulo, destacando o papel essencial da narrativa oral, que seria um trabalho artesanal de comunicação. Para ela, o idoso estaria confi nado em suas próprias lembranças por não encontrar ressonância no meio social: “[...] ele não pode mais ensinar aquilo que sabe e que custou uma vida inteira para aprender” (idem, p.37). O livro de Ecléa Bosi teve importante difusão no meio acadêmico, até então carente de trabalhos direcionados para o debate sobre a condição do idoso.

Outros pesquisadores, na década de 1980 (Canoas, 1985; Carrato, 1987; França, 1983; Magalhães, 1986) também reforçaram o discurso sobre a importância da memória do idoso, desprezada pela sociedade

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brasileira, enfatizando a necessidade de elaboração de práticas que visassem à promoção da atividade memorativa nos velhos:

A sociedade brasileira oferece ao idoso pouca oportunidade para ativar e exercitar sua lembrança, tão importante ao diálogo com as demais gerações. Contemporâneo ou não, o diálogo é indispensável ao exercício do pensamento. A sociedade dominante tem, ao con-trário, estimulado o esquecimento. O que foi produzido no passado não tem interesse hoje e possivelmente será esquecido amanhã. (Magalhães, 1986, p.11)

A sociedade produtivista e consumista seria responsável pela perda da função social do idoso, qual seja, a de ser a memória de seu tempo: “Em nossa opinião, o grande esquecido foi o sujeito da história do Brasil: o nosso homem comum. Não se cultiva a memória dele, não se recorda a sua obra” (Carrato, 1987, p.A-3). Além disso, o culto aos valores jovens igualmente levaria à exclusão do idoso enquanto sujeito:

Na realidade, o brasileiro não tem sabido envelhecer, e, infl u-enciado, possivelmente, pela própria propaganda que cultua as qualidades e as forças dos jovens, tenta manter-se eternamente nessa faixa de idade, temendo e não aceitando o próprio envelhecimento. (idem, p.2)

O quarto elemento organizador do discurso gerontológico é a crítica ao Estado, porque se acreditava que o processo de moder-nização nos países capitalistas, o declínio da família extensa e um Estado inábil na resolução dos problemas básicos de grande parte da população deixavam os idosos em uma situação de grande vulne-rabilidade (Debert, 2004; França, 1983).

Esses quatro elementos do discurso gerontológico foram essen-ciais na construção de uma imagem da velhice brasileira como vítima de sofrimento (Debert, 2004). Não podemos afi rmar, ao certo, o quanto a luta da gerontologia em transformar o envelhecimento

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em uma questão política infl uenciou o direcionamento de ações do Estado para essa população. No entanto, é principalmente a partir dos anos de 1980 que a velhice começa a ocupar cada vez mais es-paço entre os temas de preocupação social. Nessa época, houve um aumento do número de pesquisas sobre o tema, a fi gura do idoso passou a ter mais presença na mídia e também houve maior abertura de agências governamentais e privadas na organização de programas para essa faixa etária.

Contudo, a imagem veiculada pelo discurso gerontológico da época contrastava com aquela propagada na mídia e nas pesquisas (idem). Uma velhice que precisava se reinventar era a tônica do discurso desses dois últimos elementos. Essa ideia foi fortemente divulgada nos diversos programas para a terceira idade que surgiram na época, como o Programa Pró-Idoso a que nos referimos anterior-mente, os conselhos estaduais e as universidades abertas à terceira idade. O discurso gerontológico apoiava-se em outra imagem, mais referida a uma velhice empobrecida e abandonada.

Dessa forma, Guita Debert (2004) enfatiza que o discurso sobre o envelhecimento criou duas diferentes perspectivas com relação ao idoso. Uma delas seria a perspectiva da miséria, segundo a qual os processos de modernização e industrialização mergulharam o idoso em uma existência sem signifi cado. Essa era então uma das críticas da gerontologia, segundo a qual a velhice não era tomada como objeto de interesse do Estado nem da família.

A outra perspectiva é o oposto da anterior, ou seja, a do idoso como fonte de recursos. Nesse caso, a velhice é apresentada como composta de seres ativos, capazes de oferecer respostas criativas ao desafi o do envelhecimento. Essa imagem de velhice era – e ainda é na atualidade – propagada em especial pelos diversos programas voltados para essa faixa etária. A partir dessa perspectiva, temos uma redefi nição da imagem da velhice na relação com a sociedade e a família, com a fi gura do idoso refuncionalizada e revitalizada, ressaltada pelo conceito de terceira idade.

Ainda para Debert, o grande problema dessa cisão entre as duas diferentes imagens propagadas de velhice é que a última encobre a

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primeira. É sabido que nossa sociedade abriga um grande número de idosos abandonados, (sobre)vivendo na extrema pobreza e atribula-dos por grande incidência de doenças. Existem, ainda, outros tantos idosos que não se enquadram nessa perspectiva de revitalização dos rumos de seu envelhecimento. A questão é que, na atualidade, há uma grande propagação discursiva sobre a necessidade de cuidado com o corpo, de “reciclar-se”, motivar-se, exercitar-se.

Frente a essas diversas faces da velhice, a gerontologia harmoni-zou seu discurso, no sentido de ainda se referir ao envelhecimento como uma fase de forte incidência de doenças, mas também de apre-sentar aspectos mais revitalizadores da velhice, expressos no discurso da prevenção e manutenção de um ideário de envelhecimento ativo e saudável por meio de uma pedagogia para a velhice.

Como já pudemos destacar, o chamado “progresso” científi co nas últimas décadas tem elevado consideravelmente a expectativa de vida. Mas, ao mesmo tempo em que há o aumento da população idosa, existe no Brasil também uma grande preocupação com o nú-mero de velhos, principalmente no que concerne ao custo que eles representam para o Estado e a sociedade: “[...] estes (aposentados inativos), praticamente, tornam-se uns mortos-vivos, fi cam por aí pelas praças e outros lugares” (Berg apud Haddad, 1986, p.29). O crescimento demográfi co da população idosa, conforme vimos em pesquisas da década de 1980 (Kaufmann, 1982), colocou em pauta a necessidade de gerir essa população enquanto “objeto de ades-tramento político e moral [...], inclusive [...] de natureza médica” (idem, p.18).

Dessa maneira, assim como a ciência trouxe o aumento da ex-pectativa de vida, ela também contribuirá para a construção de uma velhice sem envelhecimento, quer dizer, na construção da ideia de corpos saudáveis e rentáveis ao capitalismo. A geriatria e a geronto-logia, especialidades médicas responsáveis pelo estudo científi co do envelhecimento, juntamente com o Estado, tornar-se-ão propagado-res da refuncionalização do idoso. De acordo com o geriatra Jarbas Ávila, “os nossos velhos são um peso morto na sociedade, embora,

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na verdade, a maior parte deles pode ainda ser útil e dinâmica por muitos e muitos anos” (op.cit., p.34).

Para Hana Hermanova, “envelhecer é uma fase normal da vida humana e deve ser considerada como tal” (op.cit., p.25). No entanto, a intervenção da ciência no campo da velhice mostra claramente que esse não é um processo natural, mas algo produzido socialmente. Em consequência, enquanto se produz um prolongamento da vida, há um ideário de envelhecimento que estimula modos de ser na velhice no mundo contemporâneo. Como aliada do mercado, a ciência é parte no processo de construção desse ideário expresso por meio da procura da “fonte da juventude”, de fórmulas, drogas e de prevenção ao envelhecimento, a fi m de levar à produção de subjetividades que reforcem a lógica capitalista do “espírito jovem” e do reaproveita-mento do corpo idoso.

Em nossos dias, percebemos uma forte presença do discurso do saber médico-científi co acerca da velhice na sociedade, difundido de várias formas. As universidades, por meio de publicações científi cas, de programas voltados para a terceira idade, de pesquisas, livros, congressos, associações etc., fornecem os subsídios que alertam para a necessidade de uma intervenção no campo da velhice, uma vez que, para muitos pesquisadores, é natural que o corpo se degrade à medida que o tempo atravessa o ser humano (Kieling, 2006; Simões, 1998). Para Eneida Haddad, “a literatura médica trata não somente do aspecto de caráter eminentemente biológico referente à velhice, mas também do seu aspecto de cunho marcadamente sociocultural” (1986, p.23), de sorte que há a propagação de discursos que ditam modos de ser na velhice a fi m de evitar que o envelhecimento, fenô-meno fi siológico, se transforme em velhice-enfermidade.

Simone de Beauvoir, no referido livro A velhice, procura realizar um traçado histórico desse período da vida desde a Grécia Antiga. Em seu estudo, a autora salienta que muitos pensadores e pesquisadores da velhice acreditam que ela é uma fase correspondente ao inverno da vida, repleto de doenças e do desgaste do corpo. Segundo sua concep-ção, “até o século XV, todas as obras sobre a velhice são tratados de

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higiene” (1990, p.25), trazendo receitas, modos de conservar a saúde ou de minimizar doenças, sintomas e seus respectivos tratamentos.

Mesmo que nestes tempos ainda haja o discurso do envelheci-mento ativo, esse efeito de sentido desvitalizador é bastante presente na produção bibliográfi ca. A procura por um conceito de velhice propõe interface com outras áreas do conhecimento; não obstante, seu veio apresenta forte presença do discurso voltado somente para os aspectos biológicos do envelhecimento, no qual o corpo do idoso é visto como uma máquina que se desgastou.

A construção da categoria de velhice passa por diferentes re-gimes de saber, assim como há também a difi culdade em situá-la em uma determinada etapa da vida. A procura por um conceito de velhice demonstra a preocupação em caracterizar e delimitar essa fase. Circunscrevendo-a no interior de determinadas características entendidas como próprias da velhice, ela é, enfi m, discriminada de outras idades da vida.

Para Edna Martins, “a velhice pode ser defi nida como um con-junto de modifi cações morfológicas, fi siológicas, bioquímicas e psico-lógicas que se observam no ser humano por volta dos sessenta anos” (1997, p.21). As mudanças ocorridas no processo de envelhecimento apontam para uma fase em que o indivíduo sofreria determinadas perdas com relação ao seu corpo, as quais tornariam o idoso mais vulnerável à incidência de doenças.

De acordo com Stuart-Hamilton, o envelhecimento se constitui no estado fi nal do desenvolvimento que todo indivíduo sadio e que não sofreu acidentes vai atingir. Uma fase na qual “todas as capaci-dades latentes de desenvolvimento foram realizadas, deixando apenas potencialidades de dano de ação tardia” (2002, p.22). Do ponto de vista da ciência biológica, a velhice seria “o declínio na habilidade do organismo em responder a estímulos estressores, levando a uma disfunção na homeostasia e a um aumento na incidência de doenças” (Kieling et al., 2006, p.48).

O indivíduo idoso estaria, ainda, sujeito a uma perda da identida-de psíquica por conta de ser a velhice uma fase de grandes mudanças (Simões, 1998). Dessa maneira, seriam necessárias diversas interven-

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ções no sentido de auxiliar sua preservação, pois é essa identidade “que ajuda o homem a se adaptar às demandas do mundo externo e a enfrentar com serenidade a perda progressiva da capacidade física e todas as outras limitações impostas pelo envelhecimento” (Rosa apud Simões, 1998, p.103).

As perdas e as limitações do corpo e até da subjetividade são a tônica do discurso sobre a velhice. Conforme Stuart-Hamilton, “o quadro geral das mudanças no corpo que envelhece não é muito atraente” (op. cit.). De fato, não é nada aprazível a pintura produzida sobre a velhice, que é descrita por ele como uma fase em que a pele e os músculos perdem a elasticidade, acontece uma perda da efi ciência mitocondrial, o sistema urinário torna-se menos efi ciente, há um declínio da massa muscular e também menor absorção de oxigênio, declínio da capacidade cardiovascular, diminuição da efi ciência do funcionamento cerebral e psicológico e outros fatores assinalados pelo autor. Um homem em franco estado de declínio, um corpo em processo de degenerescência... Nas palavras de Regina Simões,

a característica principal da velhice é o declínio, geralmente físico, que leva a alterações sociais e psicológicas. Os teóricos classifi cam esse declínio de duas maneiras: a senescência e a senilidade. A senes-cência, que é um fenômeno fi siológico, arbitrariamente identifi cada pela idade cronológica, pode ser considerada um envelhecimento sadio, onde o declínio físico e mental é lento [...]. Já a senilidade caracteriza-se pelo declínio físico associado à desorganização mental [...], pois se identifi ca com uma perda considerável do funcionamento físico e cognitivo [...], além de uma considerável perda da memória (1998, p.27).

Na procura de um padrão para a velhice, o olhar que se lança ao homem marcado pelo tempo é caracterizado pela ideia de que essa fase implica, além das perdas naturais de faculdades humanas, a estagnação do desenvolvimento e a degenerescência do corpo. Alguns pesquisadores de psicologia (Kieling, 2006), em particular a psicologia do desenvolvimento, tomam a velhice como uma fase

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em que não há aquisições e contribuições para a formação do sujeito psíquico. Diferentemente da infância e da adolescência, que são to-madas como pilares da vida do sujeito, como construção da matriz psicológica do adulto, a velhice é vista como o período de inércia, do sujeito já constituído e do declínio de suas funções biológicas e cognitivas. Para Vargas,

o processo de envelhecimento [...] apresenta uma involução psicoló-gica ocorrendo uma perda normal da inteligência e uma deterioração fi siológica das capacidades intelectuais, diferindo da deterioração das demências; estas são gratuitas e responsáveis pela desestruturação da personalidade (apud Simões, 1998, p.41, grifos nossos).

Uma visão da fi gura humana quasimodesca, um outro à parte da cena social: “Toda pessoa idosa esquece ou não aprende fatos novos, ouve mal, constitui-se um estímulo sexual aversivo, não tem capacidade para o trabalho ou é muito lenta” (Paiva apud Martins, 1997, p.30). Desse homem talvez nem lhe reste a memória, por-quanto muitos pesquisadores afi rmam que a velhice, além de sofrer as inerentes perdas das diversas capacidades do corpo, também sofre com a perda da memória. Para Regina Simões, “a inteligência pode ou não sofrer um decréscimo, diferindo da memória, cujo declínio é inevitável” (1998, p.42, grifos nossos). Conforme Angulo, “[certas faculdades intelectuais] se revelam mais sensíveis ao envelhecimento e ‘dependentes da idade’, como, por exemplo, a faculdade da memó-ria e observação” (apud Haddad, 1986, p.28).

As explicações dadas para esse fato normalmente são circuns-critas em torno de vários fatores de cunho fi siológico, como o en-durecimento das artérias, a hipertensão ou alguma outra defici-ência que prejudique a irrigação sanguínea no cérebro (Simões, 1998). De qualquer modo, há aqui um entrave, no mínimo curioso: se ao idoso é facultado o lugar de ser a memória de seu grupo social (Bosi, 1987), como pode exercer essa função se, de acordo com o discurso científi co, sua capacidade memorativa sofre com a ação do tempo?

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São muitos os regimes de saber que tentam explicar como e por que envelhecemos. As ciências biológicas destacam duas grandes vertentes teóricas atuais (Kieling, 2006): de um lado, teorias que propõem uma programação interna que regularia o processo de envelhecimento; de outro, teorias que consideram o envelhecimento como resultante de um acúmulo gradual de erros e danos gerados a partir do ambiente. Stuart-Hamilton (2002) arrola algumas teorias com curiosas nomenclaturas que procuram explicar esse fenômeno da existência humana com base no ciclo da vida e da morte celular, como, por exemplo, a teoria do envelhecimento programado, a teoria da catástrofe e do erro, do envelhecimento autoimune, do lixo celular, da senescência programada, a teoria do desgaste pelo uso, teoria do desuso e tantas outras. Na verdade, há uma preocupação posta em desvelar os segredos e as vicissitudes dessa fase da vida habitada por diferentes signos e produções discursivas.

Quando reduzida unicamente a um corpo orgânico, a velhice é inserida em uma racionalidade científi ca e em um regime de saber que buscam as causas das falhas e da degenerescência no processo de envelhecimento. O declínio de habilidades, o aumento de doenças, o mecanismo interno desregulado, enfi m, sintomas de um corpo que praticamente se esgotou e que precisa de reparos.

Com relação à psicologia do desenvolvimento, o nascimento dessa área de conhecimento é marcado pelo ideário moderno de progresso e de mudança (Berman, 1986). Assim, ela acabou por desqualifi car o antigo, como as velhas estruturas sociais, políticas e culturais, tidas como empecilhos para a edifi cação de uma nova sociedade. A infância e a adolescência passaram a ser priorizadas na psicologia do desenvolvimento como caminho estratégico para a construção do novo homem, enquanto a velhice foi vista e tratada como depositária de resquícios de arcaísmos que necessitavam ser ultrapassados.

Embora desde o início de sua constituição como uma especiali-dade da psicologia, à psicologia do desenvolvimento humano tenha se atribuído como objeto de estudo os processos de mudanças que ocorrem ao longo de toda a vida, ela acabou por ignorar, por muito tempo, a velhice. Assim, essa ciência contribuiu signifi cativamente

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para a construção de um signo que retrata essa fase da vida como estagnada, conservadora ou de predomínio de um estado de decre-pitude ou de degenerescência, sendo necessária a aprendizagem para o envelhecimento.

Atualmente, a concepção de velhice na psicologia apresenta no-vas perspectivas, com um olhar para o sujeito que envelhece inserido em um processo histórico, social e biológico de envelhecimento. Se atualmente a psicologia tenta reabilitar a velhice, as outras ciências não se comportaram de forma diferente. Como é de sua natureza produzir o adoecimento, a medicina moderna logo tratou de atribuir ao idoso uma série de doenças, limitações físicas e degenerescências neurológicas e mentais, sendo a grande responsável pela legitima-ção dos estereótipos de “caduquice”, travamento motor e perda da acuidade perceptiva que permearam as imagens criadas para fi gurar o idoso.

A procura pela delimitação do início da velhice é outra questão igualmente presente nas preocupações dos estudiosos do envelheci-mento. Alguns autores (Kaufmann, 1982; Martins, 1997; Riemann, 1990; Simões, 1998; Stuart-Hamilton, 2002) defendem a ideia do ciclo de vida, segundo a qual esta estaria dividida em diferentes períodos sequenciais de desenvolvimento, com intervalos de vinte a 25 anos cada um. A maturidade corresponderia ao quarto período da vida, que se caracterizaria por uma fase em que não haveria res-ponsabilidades nem ligação com o trabalho.

Outras correntes sugerem que a velhice começa no nascimento, estendendo-se ao longo de toda a vida do indivíduo. Outras afi rmam que ela principia com o início da vida sexual. Há ainda uma vertente que marca o começo da velhice aos 20 anos, quando termina o de-senvolvimento físico, e outra que fi xa sua chegada para os 40 anos.

A divisão dos processos do envelhecimento em diferentes fases é outra característica das ciências do envelhecimento, na procura de dividir a velhice em estágios para isolar suas particularidades. Stuart-Hamilton (2002) propõe sua divisão em três etapas: o envelhe-cimento primário, em que ocorrem as mudanças corporais da idade; o envelhecimento secundário, em que as mudanças acontecem com

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maior frequência; e, por fi m, o envelhecimento terciário, que é a rá-pida e acentuada deterioração física imediatamente anterior à morte.

A difi culdade dos teóricos em conceituar e circunscrever a velhice no interior de uma categoria promove um recorte dessa fase sobre si mesma, o que a singulariza e a diferencia em relação ao próprio processo de envelhecimento por meio da criação de categorias inter-mediárias, como é o caso da terceira idade.

O acelerado processo de envelhecimento da população pode ser um dos fatores contribuintes para essa divisão da velhice em várias fases. Com o aumento da expectativa de vida, o critério etário transforma-se em um dos elementos organizadores do conceito de velhice. Nesse sentido, Burnside (apud Stuart-Hamilton, 2002) di-vide a velhice em diversas categorias, como a dos “velhos-jovens”, de idade entre 60 a 69 anos; “velhos de meia idade”, de 70 a 79 anos; “velhos velhos”, aqueles que se encontram na casa dos 80 aos 89 anos; e por fi m os “velhos muito velhos”, que passaram dos 90 anos. De fato, o aumento da expectativa de vida criou uma situação curiosa, na qual os pesquisadores se esforçam a fi m de denominar o que é essa velhice do mundo atual, tal como Cecília Meireles procurando sua face perdida em algum espelho.

O prolongamento da vida, característica do mundo contempo-râneo, promoveu esses recortes sobre o envelhecimento, ampliando o conceito de velhice e criando etapas interpostas. Para o já citado Stuart-Hamilton, as pessoas da terceira idade estariam situadas na faixa dos 65 anos, período que se refere a um estilo de vida ativo e independente na velhice. Já o conceito de quarta idade corresponde-ria ao período fi nal, marcado pela dependência em relação às outras pessoas.

A Organização Mundial da Saúde atualmente classifi ca a velhice em quatro estágios (Simões, 1998): a meia-idade, dos 45 aos 59 anos; o idoso, dos 60 aos 74 anos; o ancião, de 75 a 90 anos; e a velhice extrema, dos 90 anos em diante. De acordo com Tânia Kaufmann (1982), a classifi cação etária se dividiria da seguinte forma: até os 20 anos, os indivíduos são jovens em desenvolvimento; entre os 20 e os 30 anos estaria a fase adulta; a partir dos 30 anos, o indivíduo

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torna-se gerontino; dos 40 aos 65 anos, a maturidade; dos 65 aos 75 anos, a terceira idade; e a partir dos 75, a anciania.

De acordo com Philippe Ariès (1981), um homem do século XVI ou XVII fi caria espantado com as exigências de identidade civil a que nos submetemos com naturalidade. Dentre essas determinações, admitimos a declinação da idade como um dado de identifi cação. A data de nascimento é algo que nos acompanha a todo o momento, desde abrir uma conta no crediário até consultas médicas ou à lápide do cemitério.

As categorias de idade estão sempre presentes e são imprescin-díveis na classifi cação dos indivíduos em determinados contextos, como, por exemplo, em planos de saúde, em concursos públicos, na preferência em fi las de banco, na aquisição de benefícios sociais etc. Para nós, que estamos acostumados e inseridos nessa lógica de funcionamento, parece difícil imaginar outro modo de organização social sem que o critério etário seja levado em conta, principalmente porque ele é uma quantidade mensurável e precisa, do mundo da exatidão e do número.

A idade cronológica, recortada por diferentes categorias, é uma das bases de nossa organização social e um procedimento útil à gestão das populações. Guita Debert ressalta que mecanismos fundamentais de distribuição de poder e prestígio, no interior das classes sociais, levam em conta esse critério etário: “[...] categorias e grupos de idade implicam, portanto, a imposição de uma visão de mundo social que contribui para manter ou transformar as posições de cada um em espaços sociais específi cos” (1998, p.12).

A divisão da vida humana a partir das idades da vida aparece na Idade Média (Ariès, 1981) em tratados pseudocientífi cos nos quais as idades corresponderiam ao número de planetas até então conhecidos, isto é, sete. A primeira idade seria a infância, do nascimento até os 7 anos, quando a criança ganha os dentes e aprende a falar. Após a infância, viria a segunda idade, chamada de pueritia, que se estende-ria até os 14 anos. A terceira idade seria a adolescência, terminando por volta dos 28 anos, mas podendo chegar até os 50 anos. Entre

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a juventude e a velhice haveria a senectude e, por fi m, a partir dos 70 anos, a velhice propriamente dita.

Ariès assinala, ainda, que as etapas da vida, tais como expressas na Idade Média, não corresponderiam apenas a etapas biológicas, mas a funções sociais. Em seu estudo iconográfi co, o autor enfatiza que as idades da vida eram retratadas de acordo com as funções de cada fase. Por exemplo, a idade dos brinquedos, da escola, do amor ou do esporte, da guerra, do sedentarismo, da sabedoria. Segundo ele, a vida era bem delimitada em etapas conforme as atividades, funções, tipos físicos e vestimenta.

No mundo contemporâneo, essa delimitação fi ca bastante difi cul-tada por conta do valor agregado à juventude que se espraia para outras idades da vida. No caso específi co da velhice, Ariès aponta que essa fase desapareceu, dando lugar à fi gura do “senhor de certa idade” ou da “senhora bem-conservada”. Assim, a ideia tecnológica de conser-vação substitui ao mesmo tempo a ideia biológica e moral da velhice.

Apesar das tentativas atuais em categorizar e subdividir crono-logicamente a velhice, existe a tendência da cultura contemporânea em desfazer limites, fronteiras e separações rígidas entre quaisquer diferenciações espaço-temporais. Nosso tempo, dentre outras coisas, propaga a mixagem, a mistura. No mínimo, exalta a convivência entre os diferentes. Neil Postman (1999), inclusive, defende a tese de que a infância está desaparecendo como um período da vida apartado da idade adulta, em consequência da invasão do espaço da infância pelo adulto – a adultização da infância – e, inversamente, pelo movimento da infantilização do adulto.

Tal tentativa de derrubada de fronteiras colide com o ideário de pureza da modernidade, destacado por Zygmunt Bauman (1998), que fazia da rígida separação estratégica dos objetos uma forma de conservação e manutenção de suas pressupostas qualidades essencialistas e, com isso, mantinha a ordem livre de qualquer contá-gio. Por esse princípio higienista e purista, igualmente se separavam rigidamente as idades, as diferentes fases da vida, atribuindo-se a elas características que se lhes imputavam como essenciais, ou seja, como constitutivas de uma essência natural que cada uma trazia em si.

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A cultura atual, diferentemente, tende a liquidifi car a vida, con-forme também acentua Bauman (2007), o que, dentre outras coisas, poderíamos assim entender, desfaz as barreiras entre as idades e torna mais fl uidas as conexões entre elas. Talvez por isso tenhamos uma maior assimilação da velhice, de maneira geral, ainda que pinçada em algumas de suas pontas, como a da chamada terceira idade. Quiçá os esforços para subdividir a velhice em subcategorias se prestem a facilitar esse processo de assimilação social dos idosos e a modifi -cação, senão a derrubada, das fronteiras cronológicas herdadas dos períodos mais segregacionistas da nossa história.

A preocupação dos pesquisadores em delimitar o conceito e o início da idade da velhice demonstra uma similaridade com o pen-samento científi co moderno, alimentado pela busca da gênese, do início e da origem das coisas, como se pode observar na ascensão da História como ciência, no pensamento darwinista e no sucesso de algumas teorias do desenvolvimento, como a psicanálise e a teoria piagetiana.

A busca pela origem da velhice, suas características e particulari-dades sugere que há uma tentativa de obter um controle sobre todo o processo do envelhecimento. Ao conhecê-lo, torna-se possível a implementação de políticas preventivas e profi láticas, de modo a eliminar seus efeitos indesejáveis, minuciosamente descritos nos manuais de geriatria e gerontologia.

A educação para a velhice é uma das ideias preconizadas por gerontólogos. É por meio dessa pedagogia que suas práticas serão legitimadas, na gerência da vida humana, na prescrição de modos de ser e viver e na produção de uma imagem de velhice sem enve-lhecimento. De acordo com o geriatra Jarbas Ávila,

todos nós odiamos a velhice e em nenhum momento de nossa vida nos preparamos para o inexorável envelhecimento. Todos apoiamos escolas que ensinam os meninos a serem homens; quem conhece escolas que ensinam os homens a serem velhos? (apud Haddad, 1986, p.34)

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As escolas para a velhice estão presentes em diversas práticas di-fundidas em consultórios, na mídia, em programas etc. A construção de um corpo científi co sobre essa fase da vida possibilitou a imple-mentação de saberes e práticas dirigidas para um corpo apropriado enquanto objeto de estudo e de gestão. A substituição das ações de caridade antes praticadas em favor dos idosos por técnicas mais efi cazes engendrou uma proposta de educação vigiada:

[...] objetos de intervenção, os velhos são, ao mesmo tempo, objetos de saber. Aí entra o solicitado serviço da universidade em prol do desenvolvimento e aceleração de uma política social voltada para o idoso: o trabalho social precisa se apoiar num saber psicológico, psi-quiátrico, psicanalítico, sociológico, antropológico etc., voltado para o que chamamos de “pedagogia da velhice” (Haddad, 1986, p.39).

Inscrita em uma racionalidade científi ca, a velhice passa a ser habitada por discursos de especialistas que ditam estatutos de ver-dade normativos sobre o que é e como dever ser gerida essa fase da vida. Tais especialidades do envelhecimento, sob a égide científi ca, dizem de um corpo biológico, da sua degenerescência e das medidas de controle e prevenção necessárias para que se possa ter uma velhice esclarecida (idem).

A educação para a velhice acarreta um processo de aprendiza-gem, quer dizer, de saber envelhecer. Os resultados de trabalhos dos teóricos sinalizam que a realidade humana pode ser modifi cada pela ação da ciência, das instituições, do Estado e do próprio idoso, por meio de sua pedagogização (idem).

Determinar os limites da velhice, conhecer profundamente suas características, delimitar seu início dentro do ciclo da vida, portanto, são ferramentas fundamentais para que se possa construir um corpo teórico-científi co e engendrar as práticas necessárias a serem difundi-das sobre os processos do envelhecimento. A construção de um saber científi co produz fatos normativos, e ao qualifi car ou desqualifi car um objeto ou uma prática, opera mediante um estatuto de direito e de defi nição de normas (Derbert, 2004).

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A educação para a velhice é alvo de preocupação de geriatras e ge-rontólogos, assim como acontece na pediatria com uma educação para a infância, e na hebiatria com a adolescência. No caso das ciências do envelhecimento, a questão coloca-se na preparação para a velhice, como assinala o geriatra Edison Rossi: “O adulto deve ser ensinado para a velhice, assim como se procura ensinar a criança para a vida” (apud Haddad, 1986, p.34). Tal projeto educativo, para Fernandes & Rossi, deve iniciar-se e estender-se ao longo da vida do sujeito: “[...] torna-se impostergável proporcionar orientação, assistência e cuidados para que o indivíduo que atravessa as etapas da infância à idade madura esteja alerta, prevenido” (op.cit., p.35).

O ensino difundido acerca da velhice visa promover uma imagem saudável, bem esclarecida sobre o corpo do idoso, ativo, criativo, útil à sociedade. Ou seja, assim como ocorreu por meio das políticas pú-blicas, o conceito de velhice também é revitalizado pela gerontologia com a terceira idade. No entanto, de acordo com Debert (2004), ao promover uma imagem da velhice permeada por um ideário de pre-servação do corpo jovem, a gerontologia e a geriatria desconstroem seu objeto de estudo, isto é, os processos de envelhecimento.

A aliança entre o Estado e a ciência na produção de novos olhares sobre o envelhecimento

Ao longo de nosso livro, diferentes contornos das faces da velhice emergiram no percurso cartográfi co. Das políticas de assistência à não diferenciação do corpo idoso como uma categoria à parte, o envelhecimento passou a ser investido de programas preventivos e a ter seu próprio estatuto reconhecido por lei, além de ser objeto de uma especialidade médico-científi ca que o singulariza em relação a outras idades da vida.

Todo esse processo de construção da categoria de velhice foi possível, dentre outras coisas, a partir de uma aliança entre o Estado e a ciência. A geriatria e a gerontologia, com propostas de educação e prevenção para a velhice, auxiliaram a construção de políticas pú-

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blicas que procuram reduzir o ônus acarretado pela população idosa aos cofres públicos, com programas para a terceira idade, à base da promoção de uma velhice útil e saudável. Dessa maneira, de acordo com Eneida Haddad, “fi ca evidente que a gerontologia e a geriatria são os instrumentos utilizados pelo Estado junto à sociedade a fi m de repropor a fi gura física e psicológica do envelhecimento” (1986, p.72).

Com o aumento da população idosa, a velhice passou a ser tomada como um problema social emergente no país, o que gerou a necessida-de de gerir essa massa de idosos aposentados. Uma das preocupações que se colocaram para essa gestão foi o reaproveitamento do tempo livre. Assim, a gerontologia e o Estado, pelas políticas públicas, pro-blematizaram essa questão a fi m de refuncionalizar o tempo ocioso. A aposentadoria foi então colocada como uma fase na qual haveria a necessidade de preparação e programação do tempo disponível, para não correr o risco de provocar adoecimentos:

Tempo livre é uma das causas de maiores tensões estressantes [...]. A melhor terapêutica para o envelhecimento é o trabalho. A aposentadoria é não raro uma espécie de doença ou de morte que toma conta progressivamente do indivíduo, acabando por liquidá-lo, em geral, antes do tempo. O trabalho é o melhor prêmio que a vida pode oferecer ao homem (Steiglitz apud Haddad, op.cit., p.40).

Afastado do mundo do trabalho, o homem estaria próximo a uma existência sem sentido, do que decorre a necessidade de reapro-veitamento de seu tempo ocioso. Assim, a gerontologia e o Estado promoveram uma aliança, na qual a educação para a velhice atua no sentido de ensiná-la a preencher o tempo com atividades terapêuticas e profi láticas. Com o discurso de que é preciso manter-se ativo para não adoecer, a gerontologia oferece os subsídios para a implementa-ção de diversas políticas públicas dirigidas à velhice:

A deterioração do cérebro consiste na perda de células. Dos 25 aos 40 anos algumas células já se perderam. Depois dos 40 anos

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essa perda se acelera. Na meia-idade, portanto, é necessário que cada pessoa procure compensar essa perda, dando ao cérebro tranquilida-de para trabalhar. Isso não quer dizer que o cérebro deva fi car ocioso. Pelo contrário. O cérebro deve estar sempre “ligado”. Quando está acordado, funciona melhor (Ribeiro, 1996, p.27).

A necessidade de ter uma velhice ativa começa a se delinear, associando a ideia de atividade à saúde. Mantendo-se ativo, o idoso poderá ao menos preservar o “espírito jovem” do qual tanto se fala, vetando o “espírito velho”, que é associado a sentidos torpes. Para Marcelo Salgado, há uma diferença entre ser e estar velho:

Ser velho é o destino de todos nós, o que a humanidade, por mais progressos que tenha feito, não conseguiu ainda evitar. Estar velho é outra coisa. Este conceito se refere ao sentido pejorativo da velhice, enquanto signifi ca uma série de manias, achaques, confusões, ensi-mesmamentos que podem afetar as pessoas, independentemente de sua idade cronológica. Assim, existem jovens velhos e velhos jovens (1996, p.7).

A ideia de uma velhice rejuvenescida modifi cará o olhar dirigido a essa fase da vida, seja por meio de políticas e programas, seja pelo discurso dos especialistas, que insistirão na necessidade de promo-ver esse novo ideário de envelhecimento: “O envelhecimento não é simplesmente um processo físico, mas um estado de ânimo, e hoje nós estamos sendo testemunhas do início de uma mudança revolu-cionária nesse estado de ânimo” (Mahler apud Haddad, 1986, p.25).

Para a redefi nição das imagens da velhice, a gerontologia, a geria-tria e a intervenção do Estado foram importantes atores na construção desse novo olhar, dirigido a essa fase da vida. Mediante o discurso que remetia a velhice a uma etapa de doenças, de degeneração do corpo, de caráter marcadamente biologizante, a gerontologia se constituiu em uma das porta-vozes da promoção do envelhecimento saudável, educando o corpo para a velhice com o auxílio de políticas implementadas com esse fi m.

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Para essa mudança de olhar, o discurso sobre os processos de envelhecimento passou a ter uma marca também do ponto de vista moral. Observem-se as palavras do gerontólogo Jarbas Ávila:

O velho sadio não é psicológica nem fi siologicamente velho. O que caracteriza a velhice não é a quantidade de anos vividos. Nem é o estado das artérias, como dizia Metchinikok. Nem é anormalidade endócrina, como queria Pende. O que caracteriza a velhice é a perda dos ideais da juventude, é a dessintonização com a mentalidade do seu tempo, é o desinteresse pelo cotidiano nacional e internacional, é o humor irritadiço, é a desconfi ança no futuro, desamor ao trabalho (apud Haddad, op.cit., p.27).

Dessa perspectiva produz-se a necessidade de ter uma velhice bem-informada, jovem, ativa, confi ante, feliz... Não é à toa que uma das denominações para essa nova velhice tenha sido “feliz idade”. De fato, os rumos do envelhecimento galgaram outras paisagens, remodelando os contornos do envelhecimento.

Com a transformação do corpo em objeto de saber científi co, a velhice entra em cena por meio de diferentes aspectos, quais sejam, da degeneração corporal e o aumento da expectativa da vida ao dese-quilíbrio demográfi co e o ônus das políticas sociais (Debert, 2004). A geriatria e a gerontologia, com seu campo de saber produzido sobre a velhice, prestam importante contribuição ao Estado. Ao promover saberes, essas ciências engendram demandas que serão difundidas por meio de políticas públicas, além de obter o aval do Estado para consolidar suas práticas e difundir seus conhecimentos a respeito da velhice.

Para Haddad, porém, a relação entre a ciência e o Estado não deixa de apresentar alguns confl itos, já que há uma disputa de poder na qual ambos estão inseridos. Para suas ações públicas e estatutárias, o Estado necessita de saber técnico sobre a velhice que possibilite sua intervenção. Já a gerontologia cobra do governo a implemen-tação de uma política comum, pela qual seja possível a gestão dos idosos.

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A difusão de discursos sobre a velhice que apontam essa fase da vida como algo que se insere em um processo de degeneração procurou evidenciar e justifi car a necessidade de uma intervenção e de uma gestão da população idosa pela medicina, pelo Estado e por diversas instituições sociais. Uma vez que a expectativa de vida obteve um aumento signifi cativo em poucas décadas, elevando o número de idosos no País, a velhice tornou-se um grande problema político em diversas esferas da sociedade.

A necessidade de promover uma gestão dessa população propi-ciou a aliança entre o Estado e a ciência no redimensionamento dos rumos da velhice. A geriatria e a gerontologia, com seu corpo de saber sobre essa fase da vida, passaram a ocupar um lugar de intervenção nos processos de envelhecimento, na perspectiva de reutilização da fi gura do idoso e na prevenção aos males advindos desses processos. As políticas públicas passaram do assistencialismo para a preven-ção, juntamente com o saber sobre a velhice, e se confi guraram em importantes propagadoras dessa nova imagem de envelhecimento, refuncionalizada e otimizada por meio de diversos programas dire-cionados para a terceira idade.