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Maria da Conceição Vieira A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença Jo 9,1-12 Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Teologia PUC-Rio, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia Bíblica. Orientador: Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo Rio de Janeiro Fevereiro de 2008

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Maria da Conceição Vieira

A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença Jo 9,1-12

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Teologia PUC-Rio, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Teologia Bíblica.

Orientador: Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2008

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Maria da Conceição Vieira

A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença Jo 9,1-12

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo programa de Pós-Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Prof. Isidoro Mazzarolo Orientador

Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof a. Teresa Maria Pompéia Cavalcanti Departamento de Teologia – PUC-Rio

Prof. Carlos Frederico Schlaepfer Instituto Paulo VI

Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio de

Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2008

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da Universidade, da autora e do orientador.

Maria da Conceição Vieira

Graduou-se em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro, em 1999.

Ficha Catalográfica

CDD: 200

Vieira, Maria da Conceição

A pedagogia da luz na “recriação” do cego

de nascença Jo 9,1-12 / Maria da Conceição Vieira; orientador: Isidoro Mazzarolo. – 2008.

132f.; 30 cm Dissertação (Mestrado em Teologia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

Inclui bibliografia.

1. Teologia – Teses. 2. Bíblia. 3. Teologia Bíblica. 4. Exegese do Novo Testamento. 5. Evangelhos. 6. Luz. 7.Vida. 8.Água. 9.Recriação. 10.Ver. 11.Transformação. 12. Testemunho. 13. Cegueira. I. Mazzarolo, Isidoro. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.

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Dedico carinhosamente aos meus queridos pais: Pedro Braga Vieira e

Terezinha de Jesus Vieira, por terem me introduzido no amor às Sagradas

Escrituras.

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Sinceros agradecimentos

Na luz do Mistério insondável de Deus, Pai e Mãe de ternura, eu me inclino

reverente, numa eterna ação de graças, pela sua presença constante e iluminadora

no percurso destes anos de estudo.

< À minha família religiosa (Irmãs de Santa Catarina, V. M.) nas pessoas de Irmã

Vera Lóss e Irmã Maria Aparecida Nogueira.

< Aos meus pais, irmãos (as) e familiares, em especial, Rosa Helena Vieira,

presença inspiradora e iluminadora na minha vida.

< Aos amigos e amigas, que Deus tão carinhosamente colocou em meu caminho.

< Ao querido Cleber Vieira de Moraes, presença amiga e saudosa (in memoriam).

< À querida Thaisa Aparecida Vieira, por seu carinho e amizade.

< Ao Prof. Dr. Isidoro Mazzarolo, orientador desta dissertação, pela competência

e atenção dedicadas.

< À Profª. Drª. Maria de Lourdes Corrêa Lima e aos demais professores (as) da

PUC-Rio, pela seriedade acadêmica, acolhimento e amizade demonstrados.

< Ao Diretor do Departamento de Teologia, Prof. Dr. Paulo César Costa pelo

acolhimento e amizade.

<Ao Coordenador da Pós-graduação do Departamento de Teologia, Prof. Dr.

Abimar Oliveira de Moraes, pelo acolhimento e incentivo.

< Aos meus amigos (as) e professores (as) do Instituto de Teologia Santo Antônio

ITASA, em especial, Dom Walmor Oliveira de Azevedo e João Justino de

Medeiros Silva.

< Às funcionárias da Secretaria do Departamento de Teologia, pela gentileza e

prontidão no atendimento.

< À administração da PUC-Rio, ao Departamento de Teologia e ao CNPq, pelos

recursos financeiros - sem os quais esta dissertação não seria possível.

< Aos colegas dos cursos de Mestrado e Doutorado, cuja amizade e carinho

suavizaram a caminhada.

<Ao Prof. Jean Paul Bacoly Bianquinch, por sua sabedoria e amizade.

< Ao amigo Frei Clarêncio Neotti, pela presteza e atenção na correção do

português.

< Ao Prof. Auto Lyra Teixeira, por sua sabedoria, simplicidade e amizade.

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Resumo

Vieira, Maria da Conceição; Mazzarolo, Isidoro. A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença, Jo 9,1-12. Rio de Janeiro 2008. 132p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A pesquisa sobre a perícope da tradição Joanina Jo 9,1-12 está centrada na

afirmação de Jesus sobre a luz, que é ele mesmo. Esse relato nos oferece um dos

quadros mais belos e completos do significado da obra de Jesus, mediante a

acentuação da dimensão da fé, e seus inevitáveis confrontos com o mundo

incrédulo. Através de uma análise teológica do rico simbolismo presente no texto,

chega-se à percepção de que a obra salvífica do Filho de Deus se expressa em sua

atuação recriadora, cuja ação faz daquele que fora cego, um homem novo e o

coloca no caminho em direção à vida, que é o próprio Jesus. É neste sentido que o

estudo pretende mostrar o entrelaçamento dos termos luz-vida, como um fio

condutor da perícope, pois o “purificado” pela água da vida, o batizado, o crente,

enfim, aquele que aceita o Enviado, começa a enxergar, é iluminado, faz a

passagem das trevas para a luz. Envolvido pelas trevas, o cego de nascimento,

estava em situação de limitação, dependência e necessidade da verdade. Ele ainda

não sabia o que é a verdadeira condição humana, o que significa fazer a

experiência do encontro com a vida, ou melhor, estar de pé, em posição de

igualdade com os outros homens. Após a ação recriadora e obediente à Palavra

transformante de Jesus que o faz ver, o homem nasce para uma nova existência e

passa a testemunhar corajosa e destemidamente, aquele que lhe dera a luz da vida.

Palavras-chave

Luz; vida; água; recriação; ver; transformação; testemunho; “cegueira”.

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Résumé

Vieira, Maria da Conceição; Mazzarolo, Isidoro. La pédagogie de la lumière dans la “récréation” d’aveugle de nassancie, Jo 9,1-12. Rio de Janeiro 2008. 132p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

La recherche sur la péricope de la tradition de l’Évangile de Jean 9,1-12 est

centrée sur l’affirmation de Jésus sur la lumière, qui est lui-même. Ce récit nous

offre une des scènes plus belles et complètes de la signification de l’oeuvre de

Jésus, en comparaison à la mise en relief de la dimension de la foi, et ses

inévitables confrontations avec le monde incrédule. A travers d’une analyse

théologique du riche symbolisme présent dans le texte, nous pouvons percevoir

que l’oeuvre salvatrice du fils de Dieu s’exprime dans sa réalisation récréatrice,

dont l’action fait devenir celui qui avait été aveugle, un homme nouveau et le met

sur le chemin vers de la vie, qui est le propre Jésus. C’est dans ce sens que l’étude

veut montrer l’entrelacement des termes lumière-vie, comme um fil conduteur de

la péricope, car le purifié, par l’eau de la vie, le batisé, le croyant, enfin, celui qui

accepte l’envoyé, commence à voir, est illuminé, franchit des ténèbres pour la

lumière. Pris par les ténèbres, l’aveugle de naissance était dans une situation de

limitation, de dépendance et de nécessité de la vérité. Il ne savait pas ancore ce qui

est la véritable condition humaine, ce qui signifie faire l’expérience de la recontre

avec la vie, ou mieux, être debout en position d’égalité avec les autres hommes.

Après l’action récréatrice et obéissante à la Parole transformante de Jésus, qui lui

fait voir l’homme naît pour une nouvelle existance et passe à témoigner

courageusement et intrépidement celui qui lui avait donné la lumière de la vie.

Mots-clef

Lumière; vie; eau; récréation; voir; transformation; témoignage, “cécité”.

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Sumário

1. Introdução 11

1.1. Justificativa 11

1.2. Metodologia e roteiro 15

1.3. Estado atual da pesquisa 16

1.4. Contribuição da pesquisa 26

1.5. Hipótese 27

2. O Evangelho de João 28

2.1. Contexto histórico 28

2.2. O ambiente cultural e religioso 32

2.3. Autor, fontes, data e lugar da redação 36

2.4. Estrutura do livro 43

2.5. A cegueira no ambiente religioso-sócio-cultural da Palestina 46

3. Análise do texto 49

3.1. Tradução e Crítica textual 49

3.2. Jo 9,1-12 - sua situação no livro dos sinais 53

3.3. Crítica literária 57

3.4. Crítica das formas 60

a) Gênero literário 60

b) Delimitação e estrutura do texto 64

c) Crítica da tradição 67

4. A pedagogia da luz como fonte de vida na cura do cego 71

4.1. O enviado do Pai 71

4.2. Jesus o mestre no caminho 76

4.3. O diálogo com os discípulos 81

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4.4. Por que é preciso trabalhar durante o dia? 87

4.5. Jesus fonte de luz e vida 89

4.6. A salvação e o mundo 94

4.7. Iniciativa e atuação recriadora de Jesus 100

4.8. Lavar-se para ver 105

4.9. Obediência e a transformação 113

4.10. A nova identidade do cego 116

4.11. O testemunho do homem curado 119

Conclusão 125

Referências bibliográficas 126

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Lista de siglas e abreviações

Cf Conforme

d.C Depois de Cristo

f1 Família 1: 1, 118, 131 e 209

f13 Família 13: 13, 69, 124, 174, 230, 346,

543, 788, 826, 828, 983,e 1689

LXX Septuaginta

p Página

pp Páginas

1Qs 1ª gruta de Qumran

Ribla Revista Internacional Bíblica Latino

Americana

ss Seguintes

syhmg Leitura à margem da versão siríaca

heracleana

v Versículo

vv Versículos

vgmss Manuscritos da Vulgata

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1 Introdução

1.1. Justificativa

A pesquisa foi motivada por uma busca de aprofundar o sentido do verbo

ver, sobre o qual, o quarto Evangelho é emoldurado, dinamizado. Pois o desejo de

ver a Deus está presente, nas formas mais variadas, em todas as religiões, em

todas as culturas, em todas as pessoas. Os gregos que representam o mundo pagão

aproximam-se de Filipe e lhe dizem: “Queremos ver Jesus” (Jo 12,21). Ao relatar

o desejo pagão, expresso neste texto, o evangelista está dizendo: Vossa aspiração

de conhecer a Deus, e mesmo de vê-lo, é perfeitamente legítima. Somente Cristo,

no entanto, pode preenchê-la, pois, na terra, ele é o único revelador autêntico dos

mistérios divinos. O desejo de ver a Deus e sua realização são colocados por santo

Irineu e se tornaram clássicos.1 Na expressão “Nós vimos a sua glória” (Jo 1,14)

percebe-se uma teologia da visão que estrutura e dinamiza o prólogo do primeiro

ao último versículo e que será explicitada ao longo de todo o Evangelho. Ao

contemplar o Filho unigênito que assumiu a nossa carne, ao ouvir as Palavras que

ele disse e ao ver as ações que ele praticou, os interlecutores experienciam a

gratuidade, a fidelidade e o amor de Deus para conosco.Ver Jesus está no centro

da teologia e da espiritualidade Joanina. O caráter epifânico do Evangelho de João

permite ao leitor fazer, com os olhos da fé, a experiência feita, com os olhos

carnais, pela testemunha ocular.2

Do começo ao fim, nas palavras, nos sinais, nos símbolos escolhidos pelo

evangelista, o quarto Evangelho proclama: “Nós vimos a sua glória”, a glória do

1 Cf. LIÃO, Irineu de. Contra os hereges, IV, 20,5-7, pp. 1449-1450. “A claridade de Deus vivifica. Recebem, portanto, a vida os que vêem a Deus. Por esse motivo, o ilimitado, o incompreensível e invisível apresenta-se ao ser humano compreensível e tangível, a fim de vivificar aqueles que o tocam e o vêem... A existência da vida provém da participação em Deus. Participar da vida de Deus é vê-lo e gozar de sua benignidade. Por conseguinte, os seres humanos verão a Deus para viverem, feitos imortais pela visão e elevados até Deus... A glória de Deus é o ser humano vivo, e a vida do ser humano é a visão de Deus.” 2 Cf. BUSSCHE, Henri Van den. Jean: Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 21.

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Verbo que “se fez carne e ergueu sua tenda no meio de nossas tendas”.3 O tema

das tendas remete ao tempo do livro do Êxodo 36. As tendas eram formas de

abrigo, em trânsito. Para manifestar sua presença no meio do povo a caminho,

Iahweh ordena que lhe façam uma tenda na qual ele irá habitar (Ex 36,8ss).

Quando ele vem habitar essa tenda, ela se enche da glória do Senhor.4 Depois da

destruição do Templo de Jerusalém (70 d.C.), o tema da tenda se fortalece. Assim

a festa das tendas5 evoca a presença de Deus com o povo, de acampamento em

acampamento, pois ela é a habitação móvel.6 Jesus Cristo veio armar sua tenda no

meio de nós e é a plenitude de vida (Jo 10,10) que eleva o humano à condição

divina para a sua glória. Sua amizade não exige que se renuncie aos desejos de

plenitude vital, porque ele ama a felicidade também nesta terra. Diz o Senhor que

ele tudo criou “para que de tudo desfrutemos” e cuidemos da vida7 (1Tm 6,17).

Todo ser humano, grande ou pequeno, rico ou pobre, forte ou fraco, foi criado

para ser iluminado pela luz do Verbo e para ser vivificado com a plenitude de vida

que Deus, criador e Pai, oferece por Jesus, o “Verbo que se fez carne”.8 Esta

expressão tem um sentido próprio para o evangelista. Significa que o próprio

Deus, aquele que se revela, assume a natureza humana não como um simples

invólucro, mas como algo real e concreto a fim de resgatar o ser humano na sua

totalidade. Quando o Verbo eterno aceitou ser solidário com o gênero humano,

fazendo parte do mundo sensível, através do nascimento, do crescimento e da

morte, isto representou sem dúvida a ação amorosa mais fundamental da iniciativa

divina que, mediante um amor totalmente gratuito, se doa do alto para transformar

todas as indigências.9

3 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 26. 4 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 54. “O verbo grego skênoô pode ser traduzido por habitar, mas o seu sentido literário mais próprio é armar tenda, pois ele veio mostrar que a vida nesta vida não é senão um trânsito. Quando alguém tem consciência de que se instala por pouco tempo, arma a barraca e não constrói casa. É uma expressão intencional do evangelista para enfatizar a finalidade da missão do Filho como aquele que recoloca as coisas no seu eixo original.” 5 Cf. McKENZIE, John L. “tenda” Dicionário Bíblico, p. 921. “No Novo Testamento a festa é mencionada somente uma vez. É a festa à qual Jesus foi às ocultas depois que ele recusou ir publicamente Jo 7. Os rios de água (Jo 7,37) podem ser uma alusão ao rito da libação da festa. O título ‘luz do mundo’ que Jesus deu a Si mesmo (Jo 8,12) deve ter sido expresso durante a iluminação da festa das Tendas.” 6 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 54. 7 Cf. BROWN, Colin & COENEN, Lothar. “vida” Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 2650-2651. 8 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 62-63. 9 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 125-129.

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Obviamente que, a partir destes primeiros pressupostos, vinha-me o

questionamento: Se o ser humano foi criado para ser iluminado pela luz do Verbo

que é fonte de vida para todos, por que a ausência da vida transparece em tantos

rostos? Perpassava-me também outra inevitável indagação: Como ajudar o ser

humano na conquista de sua verdadeira dignidade de filho de Deus? As Palavras

pronunciadas por Deus a seu Filho: “Tu és o meu Filho eu hoje te gerei”, ou

ainda: “Eu serei para ele um Pai e ele será para mim um Filho” (Hb 1,5), são

verdadeiras para todos os filhos adotivos de Deus. A consciência da origem, da

dignidade e do destino do ser humano deve, portanto, iluminar todas as situações

da vida e alimentar as mais elevadas aspirações, inclusive a de se deixar iluminar

por Jesus, a luz do mundo.10

Assim, contempla-se a irradiação da graça e da verdade do Verbo

encarnado. O Verbo que existia no princípio voltado para Deus (Jo 1,1-2), o Filho

unigênito, que existiu, por toda a eternidade, voltado para o seio do Pai, deu a

conhecer o Deus que ninguém viu jamais. Vendo Jesus com os olhos da fé, os

cristãos vêem também o Pai agindo nas obras do Filho (Jo 5,19; Jo 9,6). O ver

leva a crer no amor com que o Pai amou antes da criação do mundo (Jo 17,24).

Pois o Filho participa ativamente na obra do Pai no momento da criação, desta

forma, quando ele assume a natureza humana (Fl 2,6), ocupa-se das coisas do Pai,

que são também as coisas dele, desde o princípio. Deste modo, os sinais de Jesus,

em sua missão, foram sinais recriadores: a cura do paralítico (Jo 5,1ss); a cura do

cego de nascença (Jo 9,1ss); a reanimação da vida de Lázaro (Jo 11,1ss). No

momento da transformação de uma situação existente, Jesus atua não apenas

como a força do alto que liberta de situações caóticas, mas realiza as maravilhas

de Deus que fez todas as coisas perfeitas. No início da criação, depois de cada

obra, Deus via que tudo era bom (Gn 1,10-25). O escritor do Gênesis acrescenta

na criação do ser humano que, depois de tê-lo feito, tudo era muito bom (Gn

1,31). Jesus, na interpretação do evangelista, estava com o Pai em todas as etapas

da criação, sendo com ele, co-criador.11

No entanto, o texto sobre o qual detêm-se a atenção sobre a temática do ver

é o episódio do cego de nascença no qual se manifesta o modo de ser do Deus da

10 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 52. 11 Cf. MESTERS, Carlos. Paraíso Terrestre - Saudade ou Esperança, pp. 34-36.

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vida, através da ação recriadora12 de Jesus, luz e vida para a humanidade Jo 9,1-

12, ou mais exatamente, nas duas primeiras sub-unidades do relato como tal, que

tratará do milagre com a reação dos circunstantes, ou seja, o diálogo com os

vizinhos, por estar aí colocada a afirmação de Jesus: “Eu sou a luz do mundo”.

Numa associação com o primeiro dia da obra criadora do universo o autor do

Evangelho coloca o Lo,goj (Logos) como luz do mundo: Haja luz e a luz se fez

(Gn 1,3). Num primeiro momento, pareceu-nos ser possível abordar a perícope

sob o ângulo da disputa pelo poder entre “judeus” dirigentes do tempo e a

comunidade Joanina. Porém, nossa abordagem é uma tentativa de verificar a

pedagogia da luz-Jesus na sua atuação recriadora do cego de nascença, em íntima

relação com o ver. Esta é a finalidade primeira na qual a nossa pesquisa se

assenta, e por isso mesmo se concentra na primeira parte do relato. Ao falar do

Lo,goj (Logos) como a luz, o evangelista está indicando que ele simboliza a vida e

a felicidade perfeitas. Como a luz é discernimento, essa Palavra vem para ser

apresentação do Pai, a vida verdadeira. O calor da luz é vida, a vida é

conhecimento. E este se torna critério da verdade.13

A luz se encontra sempre em oposição à treva. É provável que esta seja uma

situação representativa do caos inicial. Mas o Lo,goj (Logos) é luz, ele refaz o

primeiro dia da criação, libertando a luz do pecado, a verdade da mentira, a vida

da morte, na recriação do cego de nascença.14

Deste modo, da busca inicial, firmou-se a possibilidade de verificar o

conceito luz ligado ao conceito vida, expresso na Palavra de Jesus, na mesma

grande unidade Jo 9,1-10,21 “Eu vim para que tenham vida e a tenham em

abundância” (Jo 10,10). Pois desde o momento em que o cego de nascença aceitou

a luz da vida, através da ação recriadora de Jesus, teve início uma nova vida, um

longo processo de libertação, juntamente com o despertar, para o que significa a

verdadeira condição humana, o objetivo para o qual Deus o criou, ou seja, ter a

vida e liberdade. Jesus é o modelo de Homem em quem resplandece, em grau

máximo, esta qualidade de vida, e é capaz de comunicá-la. Missão de Jesus e dos

seus é mostrar esta possibilidade, mais do que com Palavras, com a realidade na

qual vivem e com gestos que realizem a libertação das situações opressoras, às

12 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 51. 13 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 50. 14 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 52.

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15

quais impedem o ser humano de caminhar na conquista de sua verdadeira

identidade. 15

1.2. Metodologia e roteiro

A perícope do cego de nascença Jo 9,1-12 será analisada pelo Método

Histórico-Crítico, que apesar das deficiências e limitações apontadas pelos

estudiosos, dentre elas o perigo de se fixar, reduzir tudo ao aspecto histórico, tem

sido recomendado, como também, contribuído para uma compreensão mais exata

da Sagrada Escritura. Todavia, quando necessário, não se deixará de lançar mão

de outros métodos e abordagens, por exemplo, o método da análise narrativa,

enquanto for uma ajuda, para o acesso e compreensão do texto, tal como ele

chegou até nós.16

A pesquisa17 se desenvolverá do seguinte modo: na introdução será

apresentada a justificativa; a metodologia e roteiro; uma visão geral sobre o estado

atual das pesquisas, a fim de se saber o que dizem os estudiosos, a respeito do

significado da luz relacionado ao conceito vida, na perícope Jo 9,1-12. Este

percurso pelos escritos tem por finalidade elencar e confrontar as idéias teológicas

relacionadas ao simbolismo da luz, do barro e da água. Os especialistas, de um

modo geral, relacionam o simbolismo ao gesto criacional de Deus e ao batismo

cristão. Percorrendo este caminho, é que se pretende fazer uma abordagem a partir

da temática escolhida: “A pedagogia da luz na “recriação” do cego de nascença”;

contribuição da pesquisa e hipótese. Apresenta-se em seguida, de um modo breve

e sintético, alguns tópicos considerados mais importantes, relacionados ao escrito

de João, a fim de se obter um primeiro contato com o Evangelho no seu todo.

Num terceiro momento, deter-se-á na análise do texto, e por fim à exegese. Por ser

o coração da tese, este último capítulo ocupará um tempo maior na pesquisa.

Deste modo pretende-se chegar à demonstração de que a vista dada ao cego se

realiza através da ação recriadora de Jesus e da adesão à sua Palavra. O gesto

criador e salvador de Deus, na pessoa do Filho, impulsionou o cego a dar passos

15 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 294. 16 PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. A Interpretação da Bíblia na Igreja, pp. 43-46. 17 Inicia-se a pesquisa pelo levantamento dos estudos produzidos e publicados sobre a perícope, nos últimos 50 anos.

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16

na direção da vida. Ou seja, o cego de nascença, aderiu, acolheu a luz-Jesus e

nasceu para uma nova existência.

1.3. O estado atual da pesquisa

Em Jo 9,1-12 temos o episódio do cego de nascença, visto por muitos

autores18 como um personagem simbólico representando a cegueira da

humanidade em confronto com Jesus, a “luz do mundo”. Alguns estudiosos têm

encontrado neste milagre, uma relação estreita com o gesto criacional de Deus e

com o batismo, por causa do simbolismo da luz, do barro, e da água presentes no

texto, freqüentemente citados pelos Padres da Igreja no início do cristianismo.19

Há também exegetas que relacionam o capítulo 9º de João com Jo 10,1-21,

estabelecendo assim, uma ligação entre os termos “luz e vida”. Estas opiniões são

afirmadas, questionadas, ou às vezes, nem citadas, pelos autores.

A fim de nos colocarmos no caminho a ser percorrido neste estudo, é

preciso conhecer, ao menos as mais importantes linhas interpretativas de algumas

concepções em causa e dentro de seu principal simbolismo, como os sentidos

atribuídos aos termos: “o;tan evn tw/| fw/j eivmi tou/ ko,smou” (enquanto estiver no

mundo sou a luz do mundo). Procurar-se-á também, verificar o conceito de luz

entrelaçado ao conceito vida, apontado por alguns autores e a sua relação com o

modo de ser de Jesus na recriação do tuflo,n evk geheth/j (cego de nascença).

Rudolf Bultmann em 195920 dizia: “a cura do cego de nascença, tem suas

características próprias. Afasta-se do tipo sinótico estilisticamente, em especial,

pelos pormenores da discussão após o milagre. Os discípulos, ausentes desde o

capítulo 6º, reaparecem em cena com a pergunta pela causa da cegueira, que

pressupõe uma típica concepção judaica. A questão serve para provocar uma

reação de Jesus, através da qual Jesus se torna o mestre” . O autor faz uma

discussão em torno do sentido do milagre, que segundo ele está em manifestar ao

mundo “as obras do Pai”. É Jesus, a luz do mundo, ao qual o Pai deu o poder de

18 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 5-6; LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo São João, pp. 226-227 e BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento, p. 513. 19 Cf. LAGRANGE, M. J. P. l’Évangile selon Saint Jean, p. 4 20 Cf. BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes, pp. 250-253. Segundo este autor a “ação reveladora de Jesus está relacionada à não observação do repouso sabático”.

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fazê-las, que dá vista ao cego. E esta história deve ser entendida, à luz deste

símbolo. O gesto revelador de Jesus em (Jo 9,6) está intimamente ligado à não

observação do repouso sabático, mas ao mesmo tempo, não significa nenhum

obstáculo para a atividade-ensinamento de Jesus, conforme é anunciado em (Jo

9,14). O enviado é o próprio Jesus. O autor faz uma breve menção ao simbolismo

da água, sem explicitar a referência ao batismo e não cita o simbolismo do barro,

relacionado ao ato criador de Deus.

Para Henri van den Bussche,21 no seu comentário em 1967, o relato da cura

do cego de nascença está muito bem colocado nesta secção em que o evangelista

destaca os temas da vida e luz, capítulos 5º a 12 de João. “O cego é mais que um

simples testemunho. Ele é um símbolo. A aparição deste personagem resume uma

parte importante da história da redenção e da dominação e a personifica. O relato

é uma introdução direta à alegoria do pastor e tem uma dupla significação: o cego

recebe visão e compreensão”. Faz alusão à cegueira, tudo como em Is 32,3 que

retoma Is 6,9-10, onde Israel é cego. Este relato quer marcar o contraste entre a

evidência do milagre e a maldade dos fariseus, diante da evidência da cura do

cego. O dia citado nas duas passagens (Jo 8,56 e Jo 9,4) é o tempo da atividade de

Jesus, tempo da revelação da luz para o mundo judaico, que tem sua finalidade no

momento presente. Henri van den Bussche22 diverge de Bultmann no modo de

abordar as obras, quando enfatiza o aspecto da associação de Jesus aos seus

discípulos: “Jesus responde por um plural ao plural de Nicodemos (Jo 3,2). Não,

somente Jesus pode cumprir as obras do Pai e seu tempo é limitado à

durabilidade de um dia”. A repetição das alusões ao símbolo da luz do mundo (Jo

8,12) integra o milagre no conjunto das festas solenes. Quanto ao simbolismo do

barro ligado à criação, Bussche tem o mesmo parecer que Bultmann, não se

posiciona, apenas acrescenta que Jesus o utiliza não porque era necessário, mas

para provocar um incidente com os fariseus. A água da piscina de Siloé não pode

curar, senão porque ela recebe sua força curativa do “Enviado”, Jesus. Deste

modo o autor concorda com Bultmann no que se refere ao termo “Enviado”.

Ambos não fazem referência ao simbolismo do batismo.23

21 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 5. 22 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentarie de l’Évangile Spirituel, p. 10. 23 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Na mesma obra citada acima, pp. 6-8 diz: “a ironia, colocada, sobretudo no final do capítulo deve ser atribuída ao caráter literário de João”.

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Contrapondo-se a Bultmann, 1959 e Bussche 1967, Thierry Maertens24

também em 1967, escreveu um artigo apoiando-se em Antoine Chavasse.25 Este

autor restringe a sua pesquisa apenas na preparação para a Páscoa. O seu estudo o

levou a descobrir que desde o ano 384 o capítulo 9º era uma das leituras

importantes nas proximidades da Páscoa. Segundo Thierry Maertens a leitura do

capítulo 9º de João foi de algum modo “monopolizada pela pastoral catecumenal

do século IV e explorada mais diretamente em função da preparação para o

batismo”. Estabelece, portanto, uma íntima relação ao simbolismo batismal.

Em sintonia com Bussche, Charles A. Dodd26 em 1968, na sua obra, se

refere ao quinto episódio, como sendo compreendido, sobretudo entre Jo 9.1-

10.21. O autor relembra que os “capítulos 7º-8º de João apresentam Jesus

‘manifestado ao mundo’ como vida e luz, mas rejeitado”. Esta colocação com sua

referência clara aos termos do Prólogo ocupa adequadamente a posição central no

Livro dos Sinais. Nos três episódios antecedentes predomina o aspecto da vida.

No capítulo 9º de João sobressai o aspecto da luz. “A luz brilha nas trevas, e as

trevas, longe de as ‘vencerem’, são derrotadas e dispersadas”. No Antigo

Testamento ambos os termos: luz e vida são usados com freqüência para expressar

aquela felicidade última ou salvação que é um dom de Deus aos homens. Neste

sentido, e só neste sentido, pode-se dizer que Deus é luz para o seu povo.

Segundo Dodd, a ênfase dada ao tema da luz - segundo o estilo de João -

está ligada aos discursos sobre a vida, pelo reaparecimento do símbolo da água

verdadeira que é o Filho, o Enviado do Pai. Pois como os “homens ingressam na

vida verdadeira através do nascimento pela água, recebem também a verdadeira

luz lavando-se na água”.27 Assim, no que diz respeito ao termo Enviado, Dodd

segue a mesma linha de pensamento de Bultmann e Bussche.

Para Dodd o tema da luz tem maior efeito no julgamento estabelecido no

final do capítulo 9º de João, cuja sentença judicial pronunciada por Jesus conduz

sem interrupção ao discurso do Pastor e do rebanho.

24 Cf. MAERTENS, Thierry. História e Função das três perícopes do Cego de Nascença, da Samaritana e de Lázaro, in: Concilium, Os pontos Cardeais da Iniciação Cristã, pp. 55-59. 25 Cf. citação no autor acima. 26 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 459-469 27 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 463.

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No entanto, este discurso não pode ser compreendido, sem referência ao

Antigo Testamento. A comparação do povo de Deus com um rebanho é parte de

um simbolismo não só bem estabelecido, mas também natural.28 Na comparação

do profeta, pastores são as autoridades, e rebanho é o povo, que pertence

exclusivamente a Deus. A função do bom Pastor é cuidar do rebanho em todos os

sentidos, principalmente defendê-lo diante dos lobos. O que acontece porém? As

autoridades políticas, ao invés de cuidarem do povo, o usam em proveito próprio.

Em vez de defenderem o rebanho, o entregam aos inimigos. Na visão do profeta, a

ruína da nação é culpa exclusiva das autoridades que a governam.29 Entretanto,

em João, o quadro do bom Pastor vai além do círculo de Ezequiel. De modo

especial, o Pastor, não só cuida do rebanho, mas também dá a vida por suas

ovelhas. Pois, o projeto de Deus a respeito do ser humano se completa com a

morte de Jesus, sinal do seu dom de amor até o fim Jo 19,30. Assim o “tema da

luz se desloca para o conceito-gêmeo de vida”.30

Raymond Edward Brown,31 no seu comentário em 1971, assinala a mudança

de tempo para o banquete da Dedicação, três meses depois de Tabernáculos em Jo

10,22. Ele se contrapõe aos autores citados acima, quando diz que a “história do

cego de nascença começa em Jo 9,1 e termina em Jo 9,41”. Não faz nenhuma

alusão ao tema do bom Pastor. “O milagre foi moldado por João em uma

ferramenta ideal para o serviço apologético cristão e para uma instrução ideal para

aqueles prestes a se batizarem”. Refere-se à unção e à água, na tentativa de

confirmar a alusão ao batismo, mas estas observações não garantem o simbolismo

batismal que, para este autor, fica em suspense. Aliás, para a maioria dos autores,

o simbolismo do batismo é confirmado, no aparecimento da cena do cego de

nascimento, na arte da catacumba antiga, como ilustração do batismo cristão,

relacionado à unção com o barro, e ao ato de se lavar na piscina. Mas em quase

todos eles paira a incerteza, se esta era realmente a intenção do evangelista.

28 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 464-465. No capítulo 34 de Ezequiel a “comparação com o povo de Deus se torna a base de um longo e elaborado apólogo. O profeta começa denunciando os chefes corruptos de Israel como falsos pastores do rebanho de Deus. Em vez de nutrir o rebanho, eles o pilham; em vez de protegê-lo, deixam que vague desnorteado, com o resultado que o rebanho é disperso e devorado pelos animais selvagens”. 29 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 464. 30 Cf. (Jo 10,28) o quadro do bom Pastor é enriquecido com traços que vão além do círculo de Ezequiel. “Em particular, o pastor dá a vida por suas ovelhas. Jesus morre na cruz para salvar a humanidade, ao passo que em Ezequiel, o Pastor cuida das ovelhas (Ez 34,1-31)”. 31 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel According to John, pp. 362-382.

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Segundo Brown, a primeira lição a tirar do texto é a atuação e o poder da luz

sobre as trevas. Menciona brevemente o simbolismo do barro, relacionado com o

ato criador de Deus.32 Este mesmo autor,33 em 1975, acentua o fato da cegueira de

nascimento relacionado ao tema da luz na festa dos Tabernáculos. Lembra que

Isaías havia predito que o Messias seria a luz das nações e abriria os olhos aos

cegos (Is 42,7-8). Concorda com Bussche, em 1967, no que se refere à ironia de

João, “presente no contraste entre o que fora cego e a quem Jesus fez enxergar, e

os fariseus que enxergavam e ficaram cegos por causa de Jesus”. “O cego era

ignorante, mas aprende muito: os fariseus sabem tudo e não se lhes pode ensinar

coisa alguma”. A recusa de Jesus em relacionar a cegueira com o pecado descarta

a possibilidade de uma alusão ao batismo, neste ponto o autor se coloca em

contradição com ele mesmo, no que havia dito no seu escrito anterior. Todavia,

mais adiante vai colocar que a ênfase de João na significação simbólica da piscina

sugeriu a Tertuliano e a santo Agostinho uma alusão batismal. Nas primitivas

representações das catacumbas, a cura do cego é um símbolo do batismo. “A

piscina cujo nome significa ‘enviado’ está no lugar de Cristo que é um enviado do

Pai”. A cura propriamente dita se opera ao lavar-se na piscina de Siloé.

M. E. Boismard em 1977, expressa no seu comentário, que não obstante os

sinais realizados por Jesus, a luz do mundo, os chefes religiosos de Israel

recusam-se a crer nele. Sua incredulidade se opõe à atitude positiva e obediente do

antigo cego de nascença. Juntamente com o antigo paralítico, eles constituem o

pequeno resto de Israel, que vai crer em Jesus.34 Maggioni Bruno,35 no ano de

1978, concorda com R. E. Brown: ambos os autores afirmam que a primeira lição

a tirar da perícope é esta: a luz vence as trevas e suscita um julgamento. O

segundo sentido é apologético, cuja discussão gira em torno do repouso sabático e

enfim pode-se relacionar o episódio, com a dimensão batismal. Boismard vai

dizer, como outros autores já citados,36 que o relato também está ligado à perícope

do bom Pastor. A fim de confirmar a conexão, basta observar que em sua

conclusão (Jo 10,21) aparece claramente uma referência ao milagre do cego.

Francisco de la Calle, em 1978, destaca o sentido do relato em Jo 9,5 se referindo

32 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel According to John, p. 375. 33 Cf. BROWN, Raymond E. Evangelho de João e as Epístolas, pp. 476-478. 34 Cf. BOISMARD, M. E. Le Nouveau Testament, pp. 323-325. 35 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, pp. 124-126. 36 Cf. BUSSCHE, Henri van den e DODD, Charles A. Em suas respectivas obras citadas acima.

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à luz,37 que ilumina com sua Palavra reveladora, age, agora, segundo o próprio

evangelista, com um milagre simbólico: o cego de nascimento. Em íntima união

com isto, o evangelista fará também, Jesus falar da “sua missão de porta e de

Pastor”. Luz que cega e luz que abre os olhos e conduz até à intimidade com

Deus.

Segundo Rudolf Schnackenburg,38 no seu comentário em 1980, o capítulo 9º

de João expressa em primeiro lugar, uma intenção teológica: “Jesus é a luz do

mundo, que veio para iluminar os homens prisioneiros das trevas”. É uma

chamada escatológica a crer nele e a superar a cegueira na qual as autoridades do

tempo haviam-se instalado. Estabelece o critério divisório entre os que o acolhem

e por isso vêem e os que permanecem cegos por sua incredulidade e dureza de

coração. Quer desmascarar a atitude e os métodos do judaísmo, robustecer a fé e

alertar os leitores em sua confissão cristã.

No que se refere à alusão ao simbolismo do batismo afirmada pela exegese

patrística, pela Igreja antiga, e a exegese moderna que volta a defendê-la de uma

forma renovada, o autor coloca alguns argumentos tirados do próprio texto, mas

em seguida os contesta. Citam-se apenas os que estão mais relacionados ao nosso

tema: “permanência no pecado expressa no simbolismo das trevas e a luz recebida

no batismo, mas o versículo 3 rejeita qualquer relação de pecado com o cego de

nascença. Unção pelo barro, mas o verbo ungir poderia ser apenas uma expressão

médica.

Segundo o autor, os Padres da Igreja só descobriram um ponto de relação,

adequado com a idéia do batismo, de acordo com a índole de sua exegese

teológica. A referência a representações por meio de pinturas, do episódio do cego

de nascença nas catacumbas não convence, senão que houve uma alusão ao

batismo em época posterior. A leitura do texto de João capítulo 9º, na catequese

catecumenal, se tratava somente de uma aplicação litúrgica e pastoral, nada afirma

sobre o sentido originário de João 9,1-12. O simbolismo é inegável, porém, difícil

de determinar com segurança. Não existe, no texto, nenhum ponto firme, onde se

37 Cf. DE LA CALLE, Francisco. Teologia dos Evangelhos de Jesus, p. 92. “A festa dos Tabernáculos era a festa da luz. Pela tarde, o Templo se iluminava festivamente. Era o momento em que, como escrevia Zacarias: ‘será um dia único, não haverá dia nem noite e ao entardecer haverá luz’. (Zc 14,7). A atuação de Jesus que o quarto Evangelho nos apresenta está em paralelo com a festividade: Jesus é luz”. 38 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan II, pp. 280-284.

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possa ancorar a intenção do evangelista de um simbolismo batismal, no capítulo

9º de João.

Comentando o capítulo 9,1-12 de João, Alviero Niccaci,39 em 1981, diz que

“em ‘sou a luz do mundo’ se encontra o tema central e o sentido do milagre que

Jesus está para realizar (Jo 9,1-7)”. À narrativa da “iluminação” abrangendo o

físico e o espiritual se desenvolve um grande processo contra o curado, que na

verdade é um confronto polêmico entre o discípulo e os opositores de Jesus. Em

conformidade com Bussche,40 Alviero Niccaci diz que por trás do cego está sendo

expulso o próprio Jesus. A afirmação “sou a luz do mundo” reassume (Jo 8,12). O

servo de Iahweh é destinado a ser a “luz das nações”. Em relação ao simbolismo

do batismo, não tem uma posição segura. Esta colocação é expressa no termo

“talvez” e o autor prossegue dizendo que a tradição cristã viu neste episódio, não

sem fundamento, o símbolo do homem novo, através do batismo. Concorda com

Bussche, quando afirma que o capítulo 9º está inserido no contexto dos capítulos

Jo 7º-10, festa dos Tabernáculos ou das luzes, tem continuidade com Jo 10,1-21

onde o cego é o primeiro do rebanho para o qual o bom Pastor dá a vida. Portanto,

na perspectiva deste autor, os termos vida e luz, estão intimamente entrelaçados e

se opõem ao modo de ser dos dirigentes do tempo, representantes das trevas, do

abandono e da morte do rebanho.41

Em 1982, Juan Mateus,42 afirma também que a luz é Jesus, sendo que o

resultado de sua ação e da aceitação por parte do cego, tem como efeito a visão.

“Jesus é a luz que vem ao mundo, para dar vista aos cegos como salvação

definitiva, anunciada pelos profetas, como símbolo da libertação da tirania (Is

29,18ss)”. As trevas se desvanecem diante da revelação de Deus.43

Para Josef Blank,44 em 1984, o que torna importante este texto, como relato

de sinal, é o tema da luz do mundo formulado em Jo 9,5. Jesus está presente como

“a luz do mundo”. A este símbolo corresponde a dupla reação humana da cegueira

39 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de João, pp. 158-160. 40 Cf. BUSSCHE, Henri van den. Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 5. 41 Para Niccaci a cura é conseqüência do banho na piscina e não da aplicação do barro nos olhos. “Também Naamã o Sírio foi curado de uma lepra após ter-se banhado nas águas do Rio Jordão” (2Rs 5,1-14). 42 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 407-415. 43 Cf. (Is 60,1) “Põe-te em pé, resplandece, Jerusalém, porque a tua luz é chegada, a glória de Iahweh raia sobre ti. Com efeito, as trevas cobrem a terra, a escuridão envolve as nações, mas sobre ti levanta-se Iahweh e a sua glória aparece sobre ti. As nações caminharão na tua luz”. 44 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-218.

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e da visão, como respectivamente, expressão da descrença e da fé, da condenação

e da salvação. Assim o milagre da cura está a serviço da revelação e da salvação.

Este autor não se pronuncia a respeito do simbolismo batismal e ação recriadora

de Deus em relação à luz, ao barro e à água.

Xavier Léon-Dufour,45 em 1988, segue a linha de reflexão no que se refere

à oposição, entre os que aceitam a luz e os que a rejeitam, enfatizando que o

acontecimento narrado possui uma forte dimensão simbólica: “no miraculado

aparece a figura do crente iluminado pela fé”. O simbolismo da iluminação recebe

todo seu relevo do fato de se tratar de um cego de nascença. Situação sem paralelo

na tradição sinótica. Simbolismo que funciona no sentido oposto: “os fariseus que,

em presença do que fora cego negam o ‘sinal’, tornam-se cegos”. Léon-Dufour

enfatiza o consenso de autores, em relação ao anacronismo referente à

controvérsia sobre o sábado: a sentença da exclusão da sinagoga (Jo 9,22)46 não

pode ser justificada na época de Jesus de Nazaré e relaciona este fato com o

simbolismo do batismo. “A maior parte dos estudiosos brigam pela ‘intenção do

autor’, como se esta pudesse ser conhecida com certeza”. Se o texto comporta

qualquer alusão ao sacramento, isto deve ser levado em conta. Também este autor,

conforme Bussche, Dodd e Boismard, aponta para a unidade literária de Jo 9,1-

10,21 intitulando-a: “luz nova e pastagens abundantes”.47

Bento Silva Santos,48 no ano de 1994, interpreta o texto como sendo o

clímax da polêmica dos “judeus” contra Jesus. Entra em sintonia com outros

autores, quando diz que “o milagre é uma ocasião para revelar quem é Jesus”:

“Ele é a luz. Naquele homem cego, se manifesta a vontade salvífica de Deus. As

reações dos circunstantes, assumem o caráter de um processo”. José Cárdenas

45 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, pp. 226-224. 46 “Se a controvérsia sobre o sábado ancora o episódio dentro do tempo do ministério de Jesus, um anacronismo notável o situa no tempo do evangelista.” Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, p. 228. Contudo, KONINGS, Johan não obstante concorde com a idéia do anacronismo vai dizer também em sua obra: Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade em 2005, que nada obriga a situar a excomunhão da sinagoga, só depois do sínodo de Jâmnia. Segundo este autor o “conflito com o judaísmo, pode ter surgido simultaneamente com a comunidade cristã”. 47 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, p. 246. “O discurso de Jesus não retoma a imagem da luz, mas passa à do Pastor e suas ovelhas. Muitos estudiosos vêem nesta sucessão, o reflexo de fontes e de unidades literárias sem nexo. Contudo, no fim da longa evolução, as duas imagens se encontram reunidas nas Parábolas de Henoc (89,28,41), onde o povo é comparado a um rebanho de ovelhas, que ficaram cegas e que recuperam a visão, quando o Senhor vem cuidar delas. Este testemunho literário confirma a hipótese de que Jo 9,1-10,21 constitui uma grande unidade”. 48 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 315.

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Pallares,49 neste mesmo ano de 1994, faz uma abordagem do texto sob o aspecto

do drama que envolve todos os personagens: “Cena após cena, se vê que Jesus

coloca os homens diante do desafio de compreender a revelação e de responder a

ela com fé”. O drama gera um longo processo, com o intuito de excluir o cego,

mas na verdade é um processo contra a luz que é Jesus. Percebe-se uma oposição

clarividente, entre o cego, que a cada passo se aproxima mais da luz, até chegar à

iluminação completa e os fariseus, que se afundam nas trevas. Para José

Bortolini50 a luz do mundo é Jesus em conflito com as trevas - as lideranças

político-religiosas - e revela ainda a dura situação em que vivia a comunidade do

discípulo, para o qual os temas-gêmeo vida e luz dominam os capítulos Jo 2,1-12

e cuja associação de Jo 9 a Jo 10,1-21 é evidente.

Isidoro Mazzarolo,51 em 2004, acentua que a finalidade do relato é “chegar

ao outro lado da cegueira, que é a dimensão espiritual”. Jesus aproveita para

ensinar a partir de um fato. “Este é o encontro com o cego”. Os “judeus” negam

ver a luz, a verdade e a libertação. Para este autor, no barro está a grande

“manifestação de Deus, pois o ser humano e toda a criação são obra do Criador”.

O gesto da unção com o barro simboliza a recriação do cego de nascimento.

Johan Konings,52 em 2005, tem a mesma linha de pensamento de outros

autores: “a narrativa da cura é muito breve e serve apenas para encaminhar

mediante um ‘trabalho’ a polêmica do repouso sabático”. Todavia, apesar das

colocações contrárias Johan Konings parece seguir a idéia do simbolismo

batismal. Segundo este autor, a cena é uma “evocação clara do batismo e crisma:

o batismo no nome de Cristo e a vida cristã eram chamados, na Igreja dos

primeiros tempos, de fôstismós, ‘iluminação’.” O batismo também é nova criação.

Com o barro o Cristo-Ungido ungiu os olhos do cego (Jo 9, 6.11).

Observações conclusivas

Conforme as constatações decorrentes deste estudo, ou seja, no exercício de

ouvir as vozes interpretativas de cada autor, confrontando-os ao mesmo tempo,

deve-se ressaltar algumas considerações que mais se evidenciaram: no percurso 49 Cf. PALLARES, José Cárdenas. Jesus a luz que ilumina e põe em Evidência, in: Ribla, A Tradição do Discípulo Amado, pp. 37-43. 50 Cf. BORTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João, p. 469. 51 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem aqui, nem em Jerusalém, pp. 122-128. 52 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade, p. 192.

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de uma leitura atenta, percebe-se um consenso entre os autores em torno do

simbolismo da expressão: “o;tan evn tw/| ko,smw w+, fw/j eivmi tou/ ko,smou”. O

episódio do cego de nascença é elaborado em torno desta Palavra de Jesus

dirigida ao cego, aos seus discípulos e também a nós nos dias atuais.

Nesta Palavra se revela o tema central, o sentido simbólico do relato, no

qual é emoldurado, desenvolvido um longo processo, em que cena após cena se

vê que Jesus coloca as pessoas diante de um desafio de compreender a revelação

e de responder a ela com fé. Estabelece-se a partir daí dois grupos: os que vêem e

aderem à luz que é Jesus, o ex-cego; e os que, à proximidade da luz, não crêem,

por isso, não vêem e se tornam cegos, “os judeus”. Assim o simbolismo da luz

funciona no sentido oposto.

Quanto à referência ao simbolismo criacional-batismal presente no texto,

constata-se uma tendência à não aceitação dos autores pela metade do século, “a

maior parte deles brigam pela intenção do autor do Evangelho”.53 Tendência esta,

que nos dias atuais, volta a ser defendida, com a argumentação de que é difícil

saber qual era realmente a intenção do evangelista e se o texto aponta para o

simbolismo, fundamentado e defendido pelos Padres da Igreja, não há como não

aceitá-lo.

Não obstante Johan Konings54 indique a possibilidade de um conflito com

os dirigentes do tempo, paralelo à época dos inícios da comunidade cristã, os

autores em geral concordam no que se refere ao anacronismo da expulsão

Sinagogal.

Finalmente, no que se refere à questão relevante para esta dissertação, ou

seja, os conceitos gêmeos “luz-vida”, presentes também no prólogo, defendidos

por Dodd e que encontra seu ponto de apoio em estudiosos, como por exemplo:

Bussche, Dodd, Dufour e outros, quando apontam para a unidade literária de Jo

9,1-10,21, é bem possível articular o escrito, que doravante se desenvolverá

entrelaçando os dois conceitos. Certamente, esta articulação nos levará, a

vislumbrar por trás do texto, este fio condutor, a respeito da perícope Jo 9, 1-12.

53 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho Segundo João II, p. 245. 54 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, p. 193.

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1.4. Contribuição da pesquisa

Ao modo de um ensaio, sem a pretensão de ser completo, o presente estudo

quer contribuir através da análise-exegética-teológica da perícope Jo 9,1-12 da

tradição Joanina, em alguns aspectos da vivência cristã e atuação pastoral.

O ensinamento de Jesus aponta para o despertar da consciência de que se é

cego pelo caminho. Anda-se tateando na busca de ver Jesus. A fim de evitar cair

na tentação da cegueira espiritual, é urgente percorrer o itinerário da fé,

aprofundando sempre mais o conhecimento da pessoa e missão de Jesus. É preciso

se deixar envolver pelo olhar55 amoroso do salvador que, por pura gratuidade,

vem a nós. Aceitar ser modelado, recriado em sua ternura, a fim de que na escuta

obediente de sua Palavra, se faça a experiência do verdadeiro encontro com o

libertador e Mestre.56 É necessário também reconhecer os sinais da presença

amorosa de Jesus, onde a vida está ausente, de modo especial, no rosto dos pobres

e excluídos. Neste sentido a contribuição é valiosa, pois vem ao encontro dos

fortes e recentes apelos da Assembléia dos Bispos da América Latina em

Aparecida, no ano de 2007.57 Vivendo o compromisso do batismo, os cristãos são

convidados a perseverar na adesão a Jesus, e ao mesmo tempo sair ao encontro

dos que estão fora da comunidade, a fim de incluí-los no grupo dos seguidores de

Jesus.

O cristão como continuador da missão de Jesus, que lhe foi conferida no

batismo, deverá incorporar em sua nova identidade como filho amado, o modo de

ser do Deus de Jesus, ou seja, o Deus da vida. Assim, impulsionado pela graça da

vida nova que o Cristo veio trazer, caminhará na conquista de sua dignidade

humana, como também, ajudará os irmãos de caminhada na fé a fazer o mesmo. Conseqüência imediata da transformação realizada pela cura das cegueiras será o

assumir corajosamente a missão de testemunhas da luz, diante dos dirigentes e

autoridades dos dias atuais, mesmo sofrendo perseguições.58

55 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 37. 56 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “criação” Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 48. 57 Cf. DOCUMENTO DE APARECIDA. Conselho Episcopal Latino Americano, p. 166. 58 Cf. DOCUMENTO DE APARECIDA. Conselho Episcopal Latino Americano, pp. 165-167.

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1.5. Hipótese

O prólogo de João afirma que em Jesus estava a “vida, e a vida era a luz

dos homens”. Por isso, tudo o que Jesus realiza é para que o Pai seja glorificado, é

expressão da vida que vem de Deus e se manifesta nele. “Eu vim para que tenham

vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).59 Contudo, a manifestação da vida,

“luz do mundo”, provocou a reação dos que mantêm um sistema de morte, de

trevas (Jo 9,40). A luz, ou o ver, manifestação da vida, impulsionou o cego a dar

passos na adesão a Jesus, não como um simples carpinteiro de Nazaré, mas como

o Messias profeta, luz, criador e salvador do mundo. O ver lhe devolveu a vida, a

dignidade humana.60 Portanto, pretende-se verificar, a partir de uma abordagem

histórico-crítica os conceitos gêmeos vida-luz, através da ação recriadora-

libertadora e pedagogia da inclusão, firmada no modo de ser de Jesus, na

recriação-transformação do cego de nascença, ou, dizendo de uma outra maneira:

o cego nasce para uma vida nova.

59 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 448-459. 60 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 114.

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2 O Evangelho de João

2.1. Contexto histórico

O Evangelho de João foi-se desenvolvendo pouco a pouco. Ao longo dos

anos sofreu uma influência de sucessivas redações.61 Assim, também as situações

históricas ou culturais, subjacentes ao escrito, sugerem a distinção de vários

períodos. A revelação é dinâmica e acompanha o ser humano na história. A

relação com os “judeus”,62 por exemplo, se apresenta em diversos estágios. Em

certos episódios, como no encontro com Nicodemos (Jo 3,1-21), a relação parece

relativamente cordial, embora se observe que termina em um impasse (Jo 3,10).

Mais do que isso a seqüência de troca de palavras no registro do “nós/vós”, isto é,

do pronome coletivo que ultrapassa o mero confronto entre dois homens, Jesus e

Nicodemos, atesta a prática de um verdadeiro diálogo judeu-cristão, exigente, por

certo, mas considerado absolutamente possível. Esta situação é concebível apenas

em um determinado estágio de desenvolvimento da comunidade Joanina, visto

que em outras passagens do quarto Evangelho, evocam uma situação

absolutamente diferente, provocando uma ruptura total entre os dois grupos. Nas

passagens Jo 9,22; Jo 12,42; Jo 16,12 o Evangelho faz alusão a uma “excomunhão

sinagogal”, que teria privado o grupo Joanino dos privilégios geralmente

concedidos às comunidades judaicas no mundo romano. O período é de

perseguição, sofrimento e perturbações generalizadas contra os cristãos.63

Colocando o Evangelho à época de outros escritos Joaninos, situa-se o

conjunto de escritos, no final do primeiro século do cristianismo. O período

61 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem aqui, nem em Jerusalém, pp. 14-15. 62 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade p. 43. “Com muita freqüência, este termo aparece no Evangelho de João com a finalidade de indicar os opositores de Jesus e de seus discípulos e de modo especial, os líderes e as autoridades do tempo. Jesus e seus discípulos eram ‘judeus’. Por isso, não significa de maneira alguma todos os ‘judeus’. Tendo em vista esta observação, neste escrito usa-se o termo entre aspas”. 63 Cf. BOISMARD, M. L. Le Nouveau Testament, pp. 37-45.

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histórico que se inicia no ano de 54, com Nero; mais precisamente em 64, com o

primeiro incêndio de Roma, acrescido do martírio de Pedro e Paulo.64

Os testemunhos dos mártires provocavam grande repercussão, pois, em

Roma os julgamentos eram públicos. A multidão assistia quando os cristãos eram

interrogados, julgados e condenados à morte. Os cristãos aproveitavam a

oportunidade para falar abertamente, e o testemunho deles impressionava tanto,

que alguns se convertiam, vendo a coragem deles e a sua confiança no Evangelho.

Colocavam sua fé em Cristo ressuscitado, Deus vivo e verdadeiro. Os pagãos

perceberam que a moral decorrente do Evangelho era mais elevada que a moral

ensinada pela filosofia. O cristianismo valorizava a pessoa humana: o pobre, o

escravo, a mulher. Os cristãos tinham respeito uns para com os outros. Entre eles

havia compreensão e perdão, caridade e misericórdia, partilha dos bens e ajuda

fraterna. Por isso, eram capazes de testemunhar sua fé com a vida. Eles diziam

que “o sangue dos mártires era semente de novos cristãos”.65 Por isso o

cristianismo foi avançando. A perseguição se prolongará até ao ano 313, quando

um jovem imperador romano resolveu conceder liberdade aos cristãos.66

Os seguidores de Jesus sofrem uma dupla perseguição: interna, por parte

dos irmãos “judeus” e externa vinda do império romano. Entre os anos 80 e 85,

tem-se a ruptura com o judaísmo, na reunião de Jâmnia, onde os “judeus”

expulsam os cristãos da Sinagoga. Nesta época, as tensões com o judaísmo

conservador aumentam e a perseguição do império chega à Ásia Menor. Nos anos

91 a 117 aparecem Domiciano e Trajano, imperadores romanos que darão

continuidade ao período de perseguição aos cristãos, estimulados pelos “judeus”.67

Os apóstolos diziam que Jesus havia ressuscitado. Tais pregações foram

confirmadas com milagres.68 Pode-se afirmar com justeza, que o quarto

Evangelho desenvolve um discurso em dois níveis: o do tempo de Jesus e o do

64 Cf. STAMBAUGH, John E. & BALCH, David L. O Novo Testamento em seu Ambiente Social, p. 53. 65 Cf. Citando Tertuliano CECHINATO, Luiz. Os Vinte Séculos de Caminhada da Igreja, p. 46. 66 Cf. CECHINATO, Luiz. Os Vinte Séculos da Caminhada da Igreja, p.75. “Havemos por bem anular por completo as restrições contidas em decretos anteriores acerca dos cristãos. Restrições odiosas e indignas de nossa clemência , e de dar total liberdade aos que quiserem praticar a religião cristã”. 67 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. O Apocalipse, p. 13. 68 Cf. WEISER, A. O que é Milagre na Bíblia, pp. 72-78. “Os milagres segundo a concepção Joanina, são sinais realizados sempre em conexão com a fé. Revelam Jesus e libertam o ser humano para que ele possa viver de novo”.

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tempo da comunidade do evangelista. Isso aparece, por exemplo, nos textos em

que se descreve a polêmica entre Jesus e os “judeus”.

Dá para entrever aí a polêmica entre a Igreja e a Sinagoga dos anos 90. João

lê conscientemente a história de Jesus à luz do “depois”, ou seja, numa

perspectiva que é contemporânea do leitor. Os sinais de Jesus prefiguram os sinais

que o ressuscitado continua realizando na comunidade.69 O número dos fiéis foi

aumentando. Isto desagradou o chefe dos “judeus”. Eles se revoltaram e partiram

para a violência.Violência contra Jesus (Jo 8,59) e contra os cristãos.70

Havia na Igreja primitiva uma viva preocupação, em fundamentar a própria

fé em fatos históricos autênticos. Nesta preocupação ela fora educada pelos

próprios apóstolos, zelosos da integridade da doutrina. Neste sentido, quando se

tratou de definir o Cânon, a autoria apostólica dos Evangelhos era de fundamental

importância para a aceitação de sua canonicidade. Os apóstolos eram as

testemunhas oculares do fato histórico.71

Crer sem ver (Jo 20,28) não significava acreditar em qualquer um, mas era

aceitar o ensinamento só de quem fora expectador privilegiado e testemunha

autorizada por Deus (Jo 15,27). Das páginas do Evangelho, sobressai

continuamente esta característica de testemunha ocular e autêntica. O nós,72 usado

em Jo 1,14 e Jo 9,4; é o nós apostólico de quem conhece, creu e sente a

necessidade de anunciar para que outros creiam (Jo 20,31).73

Talvez por este motivo, João se refere, de modo discreto e anônimo, à sua

presença junto a Jesus desde o início (Jo 1,37-40) e nos momentos mais

importantes da paixão-ressurreição de Cristo.74

Dentro do contexto histórico, chama a atenção o modo como o expectador

dos fatos lembra detalhes e nota atitudes que outros não relatam, e sobre aqueles,

ele se julga autorizado a elaborar a sua reflexão. O Evangelho não é, segundo

69 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, p. 253. 70 Os chefes dos “judeus” queriam matar os Apóstolos. Mas um fariseu muito culto chamado Gamaliel disse ao Sinédrio: “Deixem esses homens em paz. Se o ensinamento deles vem dos homens, vai acabar-se em nada. E se vem de Deus, vocês não conseguirão acabá-lo nunca” cf. (At 5,34-41). Aí Pedro e João foram açoitados e postos em liberdade. “Os dois se consideravam felizes por estarem sofrendo pelo nome de Jesus” (At 5,41). 71 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 21. 72 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 33. 73 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 20-23. 74 Cf. 13,23; 18,15-16; 19,26; 20,2-10.

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alguns estudiosos,75 simplesmente espiritual ou doutrinal. Em suas páginas

percebe-se também a historicidade dos fatos.

Numa nova leitura dos Evangelhos, feita a partir da forma teológica e não

pelo ângulo da estrutura, é preciso ver a autonomia de cada autor e a dinâmica da

evolução da linguagem e do conteúdo, frente aos diferentes contextos sócio-

históricos. Nesta nova leitura acentua-se a relação entre eles, um complementando

o outro. João está em relação com Lucas, porém, a sua teologia está muito além

daquela de Lucas.76 Em relação ao contexto histórico, João apresenta indicações

cronológicas, que se prolongam por mais tempo, por exemplo, a duração da vida

pública de Jesus, à qual os outros parecem limitar ao espaço de um ano e poucos

meses. O Evangelho de João, que costuma sincronizar a vida de Jesus com as

festas judaicas, lembra explicitamente três festas pascais sucessivas.77 Desse modo

o ministério de Jesus, teria durado de dois a três anos.

Junto às festas pascais, João anota também outras festas que incluem longos

períodos da atividade de Cristo na Judéia, apenas mencionada pelos outros três

Evangelhos, mais interessados na atividade da Galiléia. Sabe-se assim, que Jesus

veio à Judéia e a Jerusalém para a festa dos Tabernáculos (Jo 7,2-14) e da

dedicação do Templo (Jo 10,2).

Os dados históricos levam o evangelista em seguida a lembrar, que o

primeiro milagre de Jesus foi realizado em Caná da Galiléia (Jo 2,11) e que

aconteceu três dias depois do seu encontro com Cristo (Jo 2,1). João lembra

também que o dia da condenação e da crucifixão de Jesus foi o 14º de Nisan -

março-abril, - vigília do sábado, que era então mais solene, devido à coincidência

com a Páscoa.78

Nota-se, facilmente, nos detalhes de algumas narrações, que se está diante

de lembranças vivas do apóstolo. Mais de sessenta anos depois - certas cenas

permanecem presentes na memória de João. Por exemplo, o encontro do discípulo

com Jesus, além do Jordão (Jo 1,35-51). João lembra a hora do encontro. Está-se,

portanto, diante de um fiel cronista, em sintonia com o seu divino mestre. Porém

75 Cf. BATTAGLIA, Oscar. Introdução aos Evangelhos, p. 209. “João, o último de todos, vendo que o aspecto material de Jesus fora ilustrado por outros Evangelhos, inspirado pelo Espírito Santo e ajudado pela oração dos seus, compôs um Evangelho espiritual”. Assim se exprimia Clemente de Alexandria, um dos mais antigos escritores cristãos, que viveu entre 150 e 215 d.C. 76 Cf. MAZZAROLO Isidoro. Lucas em João, pp. 31-32. 77 Cf. Jo 2,13.23; 6,4; 21,1. 78 Cf. BATTAGLIA, Oscar. Introdução aos Evangelhos, pp. 220-222.

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alguns estudiosos,79 por exemplo, dizem que após determinar a unidade do

conjunto da obra a partir da linguagem, imagem e símbolos, é inútil a tentativa de

considerar o Evangelho como narração de caráter puramente histórico. Em geral,

se se permanece somente no aspecto histórico, tropeça-se basicamente com

dificuldades insuperáveis: analisando-se o texto como se fosse apenas uma

biografia de Jesus, aparecem por um lado, “saltos” na topografia e incoerência na

sucessão dos fatos e, por outro, omissão de dados, falta de lógica narrativa ou

pormenores inverossímeis. A coerência em João não se buscará, portanto, nos

fatos históricos, - sendo que esta constatação não relativiza a importância dos

dados históricos - mas sim na unidade temática, em relação com o seu plano

teológico.80 As linhas mestras da teologia de João são duas: o tema da criação e o

da Páscoa-aliança. Há no Evangelho, uma série cronológica que faz coincidir o

início da obra de Jesus com o sexto dia, o dia da criação do ser humano, marcando

assim o sentido e o resultado de sua obra: terminar esta criação, que terminará

com sua morte na cruz (Jo 19,30): “Está terminado”. O final do Evangelho

completa o tema da criação em virtude de situar-se em o primeiro dia Jo 20,1

indicando, deste modo, o princípio e a novidade da criação terminada. Este dia, é

ao mesmo tempo “o oitavo dia” apontando sua plenitude e caráter definitivo. Os

temas da luz e vida são centrais no Evangelho e estão na linha da criação.81

2.2. O ambiente cultural e religioso

No que se refere ao ambiente cultural e religioso, João possui um método

próprio de falar.82 Seus conceitos e suas figuras, sua concepção da redenção - que

o separa, mas também o relaciona com os Sinóticos não se fundamentam, no seu

modo de ser individual, mas em seu ambiente. Pois, o autor do quarto Evangelho

79 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 7-12. 80 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 7. 81 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 7-8. 82 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp. 49-61. “O mundo religioso a partir do qual João transmite a sua mensagem, e para o qual fala, deve ser procurado lá onde estão presentes os dois traços fundamentais de seu pensamento - o dualismo e a figura redentora divina. Este princípio é natural, mas nem sempre seguido. Seguindo-o, reconhece-se de que os dois traços mencionados se encontram nessa associação somente com a gnose, e isso significa que João se confronta com uma concepção gnóstica da redenção e agora expressa sua mensagem em linguagem e concepções gnósticas. Porém é óbvio que, neste procedimento, a gnose é decisivamente modificada”.

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não introduz sua concepção com explicações. Ao contrário, a pressupõe como

conhecida.83

Seu vocabulário familiariza o leitor com a linguagem da obra, e é ao mesmo

tempo herança do ambiente e cultura em que nasceu.84 Em determinada

proporção, era linguagem “técnica”, criada pela comunidade, com a finalidade de

expressar sua vivência cristã. O leitor daquela época aproximava-se do livro já de

posse de sua linguagem.85

Sempre mais se concorda em aceitar que o Evangelho de João é fruto de

uma longa elaboração, escrito num ambiente cultural e eclesial multifacetado. É

uma releitura da vida de Jesus escrita para o leitor contemporâneo, enfrentando a

dupla perseguição do império romano e dos “judeus”,86 que depois da guerra dos

anos 70 se fecharam em sua própria ortodoxia, exaltavam a “Torah”, como

manifestação última e definitiva da vontade de Deus. A “Torah” era chamada

vida, luz, sabedoria de Deus vinda ao meio dos homens. A eles, João opõe

drasticamente que Jesus de Nazaré é a verdadeira e última manifestação de

Deus.87

Com o objetivo de defender a cultura judaica na qual o mundo das idéias do

evangelista se move, Juan Mateus88 apela para a linguagem, que além de citações

explícitas do Antigo Testamento,89 está cheia de alusões a ele e a tradições

judaicas testemunhadas por documentos do tempo. O autor cita como exemplo, o

termo Lo,goj, (Logos) considerado como patrimônio comum da cultura helenística

e que no entanto recebe, neste Evangelho, a carga semântica já presente no Lo,goj

(Logos) da LXX. Sem deixar de reconhecer a diversidade de ideologias religiosas

e linguagens teológicas que reinavam na época, diz claramente, que elas foram

perdidas pela visão unilateral dominante do judaísmo farisaico.90

83 Cf.VIELHAUER, Fhilipp. Literatura Cristã Primitiva, pp. 439-477. 84 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 39. 85 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de João, pp. 6-7. 86 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 265. 87 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 109-123. 88 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 14-17. 89 Cf. KONINGS, Johan. O Evangelho Segundo João - Amor e fidelidade, pp. 23-24. “A referência ao Antigo Testamento nem sempre é direta, mas mediada pela leitura e pela homilia praticadas na comunidade judaica, na qual a comunidade Joanina tem suas raízes”. 90 “É preciso reconhecer que o quarto Evangelho não cita senão raras passagens do Antigo Testamento, mas as referências a temas vétero-testamentários são numerosas, em particular ao livro do êxodo”. Sobretudo DODD Charles A. sublinhou uma aproximação com o judaísmo rabínico em sua importante obra: A Interpretação do Quarto Evangelho. pp. 26-38.

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Mas, quando se debruça nos estudos realizados nos últimos 50 anos, acerca

do mundo religioso e cultural do quarto Evangelho, nota-se uma contínua

mudança de acento. As opiniões se alternam: ora tem-se identificado o mundo no

qual foi escrito o Evangelho com o helenismo, ora com a gnose, ora com o

judaísmo. Sem dúvida, a influência da língua e do espírito gregos, à qual o

judaísmo se abriu na diáspora, influenciou a fé e a vida dos “judeus”. A vida e o

culto das comunidades judaicas atraíam a atenção do ambiente não judaico. A

reunião na Sinagoga, com a leitura da Escritura, com suas orações e salmos e

também com suas freqüentes pregações, afigurava-se a certos elementos não-

judeus, como reunião dos filósofos, em que se discutiam as questões mais

importantes da vida. Por isso, de vez em quando, havia em torno às Sinagogas,

grupos de pessoas simpatizantes à fé dos “judeus”. A fé judaica se distinguia por

sua venerável tradição e por sua origem misteriosa na história do povo de Israel.

Porém, pela necessidade da circuncisão, muitos se viam impedidos de se

converterem e de se tornarem prosélitos.91

Contudo, não só na diáspora, mas também na própria Palestina, há razões

suficientes para se constatar a marca da cultura helênica no judaísmo. Um

exemplo é a arquitetura do Templo, fortemente influenciada pelo helenismo, é um

tipo de símbolo exterior que revela uma impregnação muito mais profunda do que

a que se admitia, do judaísmo palestinense no tempo de Jesus, pelas idéias do

helenismo. Primeiramente, é possível descobrir no Evangelho de João, a

existência de grupos sectários, dentro do próprio judaísmo. As pesquisas sobre a

religião samaritana contribuíram para esclarecer o interesse pelos contatos entre o

sincretismo e o judaísmo heterodoxo.92 A descoberta dos textos de Qumran

confirma também a existência de grupos contrários ao judaísmo oficial da época.

A tendência sincretista da diáspora grega está presente na Palestina. Não obstante

a um grupo de “judeus” se fecharem em sua convicção de fé, a comunidade

Joanina manifesta que a fidelidade às tradições judaicas não excluía a abertura às

influências estrangeiras.93

91 Cf. LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento, pp. 49-134. 92 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp. 50-78. 93 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, pp. 68 -72

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A terminologia dualista luz/trevas, verdade/mentira, vida/morte tem sua

origem no mito da redenção. Bultmann94 mostrou na sua publicação que atrás do

esquema fundamental da cristologia Joanina “Jesus é enviado por Deus, encontra-

se na unidade do Pai e, como tal, traz a revelação, se encontra o mito da redenção,

que se manifesta de modo mais claro nos textos mandeus”. É o mito da descida e

da subida de um revelador redentor, de sua ligação com os seus e de sua oposição

ao mundo. Estava comprovado que o mito da redenção era de origem pré-cristã”.

Constitui o elo de ligação, entre os escritos, até então considerados independentes

entre si - sapienciais, mandeus e maniqueus, herméticos, gnóstico-cristãos,

filônicos e judaicos - e foram situados na proximidade de espaço e tempo, também

do judaísmo palestinense e do cristianismo primitivo.95

A peculiaridade do Evangelho de João está, sem dúvida, em que o seu

escrito sugere diversas possibilidades de ambientação ao mesmo tempo. O erro é

privilegiar, enfatizar apenas uma com exclusão das outras. Dois motivos estão na

base do empenho de adaptação à sua época: primeiro porque o mundo espiritual

do tempo de João é um mundo96 caracterizado pelo surgimento de diversas

correntes religiosas, onde o Evangelho tomou forma. Em segundo lugar é

provável que o próprio João tenha tido a intenção de se dirigir a diversos

interlecutores. João tem o mérito de possuir uma abertura abrangente a muitas

culturas. Sua linguagem é compreensível a todos os que buscam a verdade, tanto

para os judeus, como para os gregos. Esta é uma das razões do fascínio pelo seu

Evangelho. Símbolos e vocábulos são abertos a múltiplas ressonâncias, não no

sentido de uma confusão, cada um se referindo ao seu ambiente e interpretado

conforme os seus próprios conceitos. Pelo contrário: cada um se sente envolvido

em sua mensagem, convidado a sair de sua própria idolatria, para abrir-se a Cristo.

João elabora a sua mensagem, utilizando termos e conceitos do ambiente pagão.

94 Citado por VIELHAUER, Philipp, História da Literatura Cristã, pp. 273-278. 95 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp. 49-61. 96 Cf. COTHENET, E. Os Escritos de São João e a Epístola aos Hebreus, p. 67. “O quesito do cenário religioso do quarto Evangelho assumiu maior importância a partir do fim do século XIX, sob a influência da Escola de História Comparada das Religiões - Religionsgeschichtliche Schule. A questão foi por vezes reduzida à interrogação acerca do enraizamento helenístico ou judaico. Na verdade, o problema é muito mais complexo: a gnose, colocada à frente por inúmeros críticos, especialmente alemães, depende em grande parte de correntes iranianas. O Judaísmo, tradicionalmente dividido em judaísmo palestinense e Judaísmo helenista, manifesta-se cada vez mais diferente, antes da ruína do Templo, no ano 70 de nossa era. A penetração do helenismo na Palestina era muito mais efetiva do que se podia pensar, e o judaísmo alexandrino - do qual Fílon é o melhor representante - mantinha contato estreito com o judaísmo tradicional. Finalmente, ao lado da oposição entre fariseus e saduceus na Palestina, existiam numerosos grupos marginais: a publicação de textos de Qumran contribuiu de modo decisivo, para que pudéssemos entrever sua vitalidade”.

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Entretanto, “é também a obra que contém a mais concisa e categórica afirmação

de que somente o Cristo é o caminho, a verdade e a vida”.97

Pelo fim do século I, a Síria e Ásia Menor são marcadas por um ambiente de

fermentação espiritual.98 Em face deste fenômeno, João assume duas atitudes

necessárias para o diálogo. Uma atitude de aceitação: é sensível aos problemas

espirituais que agitam os homens de seu tempo. João é também um contestador.

Sua modernidade não diminui em nada o dado da fé, antes o impulsiona a assumir

atitudes de crítica radical, em confronto com o mesmo mundo que, no entanto, ele

compreende. João confronta os espíritos gnósticos com dificuldade de aceitação

da “encarnação do Verbo”. A esses, João opõe a realidade da encarnação em todo

o seu paroxismo, o Logos se fez carne. Relata uma história real, a de Jesus de

Nazaré. 99

2.3. Autor, fontes, data e lugar da redação.

A questão da autoria do quarto Evangelho continua sendo de grande

interesse dos pesquisadores.100 É a questão mais antiga, erroneamente chamada de

autenticidade, ou seja, a pergunta se o autor é João, o filho de Zebedeu foi

considerada nos últimos dois séculos como sendo a “questão Joanina”, mas

remonta ao século II. Salvo exceções, os comentários e introduções ao quarto

Evangelho não deixam de visitá-la, mesmo que de modo breve e não

consensual.101

O Evangelho de João foi acolhido no cânon sob condição de que seria a obra

do filho de Zebedeu, portanto, de um apóstolo. O próprio livro não revela essa

pretensão em nenhuma linha nem nas entrelinhas.102 Tradicionalmente, a

97 Cf. CULMANN, O. Christologie du Nouveau Testament, pp. 62-68. 98 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo, Os Evangelhos II, p. 264. 99 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo, Os Evangelhos II, pp. 251-273. 100 Cf. SCHACKENBURG, Rudolf, El Evangelio Según San Juan I, pp. 104-103 e BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, pp. 31-31. 101 Cf. por exemplo os comentários de LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, pp. 18-19 e KONINGS Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 29-23. Konings chama a atenção para a necessária distinção entre autor e escriba, bem como para a importância do patronato ilustre no processo de aceitação canônica de uma obra cristã primitiva. 102 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de João, p. 15. Estes autores discordam desta posição e dizem que o Evangelho de João é o “único que menciona, embora veladamente, seu autor”. Declara-se testemunha ocular dos fatos, por conseguinte garante suas afirmações (Jo 9,35; Jo 21,24). Sabemos igualmente que ele era o “discípulo que Jesus amava” (Jo 21,20-24), portanto, um dos “apóstolos mais achegados de Jesus”.

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fidelidade do quarto Evangelho à memória de Jesus foi definida principalmente

com relação a sua pretensa autoria apostólica escrito por João, Filho de Zebedeu,

que teria sido também o autor das três Epístolas e do Apocalipse. Não por outro

motivo este Evangelho ficou sendo conhecido bem cedo na tradição cristã como o

Evangelho segundo João, embora não traga qualquer evidência interna que

confirme tal identificação e, por outro lado, não haja notícias de que essa

atribuição tenha ocorrido antes do final do século II. Irineu a defende com

veemência no século II, pois já era contestada pelos eclesiásticos. Diziam que a

tese da autoria “apostólica” era dúbia e de data recente. Mesmo assim a tese se

impôs e não foi mais contestada desde os meados do século III até o século XVIII

para o XIX.

A importância da questão da autoria advém das luzes que lança sobre a

história da recepção do quarto Evangelho. Ela, a história, pode ser arrolada como

testemunha no processo de “autorização” pelo qual o texto passou para ser

acolhido no cânon apostólico.103 E esse processo, por sua vez, ajuda a esclarecer o

perfil daquele que pode ter sido o contexto eclesial de origem da literatura

Joanina, particularmente, quando se unem as evidências internas que apontam ou

esclarecem tais relações.

Schawartz104 seguido por Wellhausen J. E. nos anos de 1903/1904 colocam

a hipótese segundo a qual João teria sido martirizado muito cedo, relacionada ao

texto de Mc 10,39,105 interpretando o martírio como uma profecia ex eventu.

Contra esta afirmação está o fato de que os Atos dos Apóstolos, nos quais João

ocupa um posto considerável, ao mesmo tempo, que narram explicitamente a

morte de Tiago, nada dizem da de João. Os textos: At 13,13 e Jo 21,20-23 dizem

que João deveria morrer bastante tarde. Parece que os dados mais seguros que

possuímos são decididamente pela tradição segundo a qual João viveu uma longa

vida.106

Quando nos séculos XVIII-XIX a pesquisa começou a explorar os

Evangelhos criticamente como fonte para a reconstrução da vida de Jesus, a

diferença entre o Evangelho de João e os Sinóticos levantou a pergunta sobre qual

103 Cf. VIELHAUER, Fhilipp. História da Literatura Cristã Primitiva, pp. 471-473. 104 Citado por BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, p. 304. 105 Cf. (Mc 10,39) “Do cálice que eu beber, vós bebereis, e com o batismo que eu for batizado, sereis batizados”. 106 Cf. VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva, pp. 441-444.

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deles teria o maior valor como fonte.107 João e Mateus foram considerados

testemunhas oculares autênticos. Mas a fascinação irradiada por João lhe garantiu

uma preponderância sobre Mateus e sobre a superioridade numérica dos Sinóticos,

tornando incompreensível a paixão com que se defendeu a autoria do filho de

Zebedeu quando esta era contestada. Todo este esforço ofereceu uma alternativa

positiva à “questão da autenticidade” e encaminhou uma pesquisa histórica

também do quarto Evangelho, resultando num trabalho supérfluo por deixar-se

arrastar pelos defensores da tradição. A vitória da teoria das duas fontes,

sobretudo o reconhecimento da prioridade de Marcos, possibilitou uma pesquisa

histórica do Evangelho de João. Quem hoje acha que deva prevalecer a autoria do

filho de Zebedeu, faz isso sem a paixão de outrora e na forma essencialmente

discreta de que João teria preservado na memória algumas lembranças mais

confiáveis do que os Sinóticos, para que, no entanto, não se precisa recorrer ao

filho de Zebedeu. Para isso basta um método histórico claro.

Segundo Ballarini, no século XIX a negação da autenticidade Joanina se vai

estendendo: recorda-se Strauss, que reduz o Evangelho a uma coleção de mitos, e

a escola de Tubinga que o reduz a um escrito com a intenção de compor

divergências e tendências da Igreja primitiva.108 Desde o século passado a posição

negativa torna-se moda: não faltam é verdade autores como F. B. Westcott, Th.

Zahn, W. Lutgert e mais recentemente F. Buchesel, W. Michaelis, E. Stauffer, H.

Strathmann e H. P. Vnunn, que defendem substancialmente a tese tradicional, mas

para a grande maioria o filho de Zebedeu não é o autor do quarto Evangelho,

assim: A. Von Harnack e nos nossos dias R. Bultmann, C. A. Dodd , C. C.

Barrett. Estes autores estão de acordo na tese geral a fim de que se chegue a um

consenso posterior, contudo, sustentam as mais diversas posições: João teria sido

martirizado com o irmão Tiago, teria sido um judeu alexandrino, H. Bernard e

Barrett consideram autor do Evangelho um discípulo do apóstolo.109

Irineu de Lion afirmava ser João o apóstolo, filho de Zebedeu. Papias, bispo

de Hierápolis, na Frígia, teria afirmado: “João o teólogo, e Tiago, foram mortos

pelos Judeus”. No martirológio de Cartago encontra-se o seguinte testemunho:

“memória de João Batista e do Tiago apóstolo, que Herodes mandou matar”. Uma

107 Cf. VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva, p. 43. 108 Cf. BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, pp. 202-203. 109 “Um personagem que muitos autores o consideram como autor do quarto Evangelho é João o presbítero de quem parece falar Papias”. Cf. BALLARINI, Teodorico. Introdução à Bíblia, p. 304.

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confusão estaria, pois, na base do martirológio entre João o ancião de Éfeso, que

na época já estava morto, e João o apóstolo.110 Concluindo: a luta contra a posição

tradicional da autenticidade do autor do Evangelho de João, estagnou num ponto

sem solução.

Se a revolução nos estudos Joaninos começou com o questionamento de

sua autoria pelo apóstolo João, seu rumo definitivo foi marcado pela constatação

cada vez mais inequívoca de marcas redacionais, testemunhas de uma composição

em diversas etapas. Esta descoberta rompeu definitivamente com o consenso

anterior sobre um autor único, apóstolo ou não, a compor sua obra de uma só

vez.111 Pela primeira vez considerou-se a possibilidade de que este Evangelho

poderia ser produto do trabalho de vários redatores, ligados entre si através de elos

que a pesquisa se ocupou em cogitar minuciosamente.

Entre as várias evidências que demonstram o caráter compósito da redação,

convém mencionar as aporias, fissuras ou emendas redacionais pouco elaboradas,

que deixam entrever a junção de textos independentes para formar um só, ou

ainda textos inacabados. Há relatos sem final (Jo 3,2); fragmentos aparentemente

autônomos (Jo 3,31-36 e Jo 12,44-50); interrupções e acréscimos (Jo 3,22-30) em

relação a (Jo 3,1-21 e Jo 3,31-36), às vezes com o objetivo aparente de explicitar o

conteúdo da passagem anterior (Jo 10,1-21) em relação a Jo 9,1-41 e Jo 10,19-21,

inconsistências narrativas (Jo 3,2) menciona os muitos sinais produzidos por

Jesus, enquanto apenas um sinal fora mencionado até então; inconstância do

marco cronológico). Outras evidências são as glosas (Jo 4,1; Jo 11,2; Jo 17,3) e a

repetição de temas (Jo 13,31; Jo 14,3;Jo 16,11-33).112

A marca redacional mais evidente é o acréscimo do capítulo 21, logo após a

conclusão original, em Jo 20,30-31. Além de introduzir um relato completamente

original redigido no estilo marcano (com tríplice afirmação do mesmo tema), dá

ao Evangelho uma nova introdução, mais ampla do que a primeira, na qual faz

questão de ressaltar o protagonismo do discípulo amado na composição do livro,

detalhe completamente estranho aos capítulos Jo 1-20.113

110 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 23. 111 Cf. BRODIE Thomas L. The Quest for the origin of John’s Gospel: a Source-oriented Approach, pp. 10-12. Este autor defendeu recentemente a tese da redação única. 112 Cf. TUÑI, José-Oriol. Escritos Joaninos e Cartas Católicas, pp. 22-26. Uma exposição sucinta das marcas redacionais no conjunto do quarto Evangelho encontra-se nesta obra. 113 Cf. TUÑI, José-O riol. Escritos Joaninos e Cartas Católicas, p. 25.

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Desde o século XIX, a busca das fontes tomou lugar considerável nas

pesquisas. Quanto aos Sinóticos, chegou-se à hipótese - muitas vezes estabelecida

como certeza - de que eles teriam haurido num mesmo reservatório comum, ou

seja, nas Palavras do Senhor a Quelle, fonte dos Logia. Mas o quarto Evangelho é

muito mais difícil: João fez um percurso, na maioria das vezes, solitário. O autor

tem uma forte personalidade literária e teológica que é impossível equipará-lo aos

outros evangelistas. Nenhum escrito da Igreja primitiva pode ser-lhe comparado.

Se o Evangelho utilizou-se de fontes, deve-se reconstituí-las a partir de sua

obra.114 As dificuldades não encontram uma solução adequada. É difícil expor,

sem simplificações indevidas, uma questão que foi discutida em todos os sentidos,

sem, no entanto, levar a um consenso crítico.

Apresenta-se aqui, por causa da influência115 que exerceu o seu comentário,

a hipótese de Bultmann.116 Este autor discerne no quarto Evangelho três fontes

principais:

1 - Discursos de revelação - de origem gnóstica, mas aplicados a Jesus, tem seu

início no prólogo, em estilo poético e se encontram espalhados em todo o escrito.

Observam-se de modo particular as numerosas declarações em (e,gw eivmi). Esta

fonte desenvolveu sua própria pregação. Mas, na maioria das vezes, através de um

artifício literário, texto e pregação são colocados nos lábios de Jesus.

2 - Os relatos dos milagres - partes narrativas dos capítulos Jo 1º-12 teriam sido

de uma “coleção de sinais” - Semeiaquelle - que teria o seu término na conclusão

Jo 20,30-31. É desta fonte que o evangelista terá tirado a maior parte de seus

elementos narrativos.

3 - Constitui a terceira fonte o relato da paixão de Cristo e as aparições do

ressuscitado. Apesar de sua aproximação com os Sinóticos, Bultmann sustenta

sua originalidade.117

114 Cf. CULMANN, O. Le Milieu Johannique, pp.17-20. 115 Cf. MOINVILLE, Odete, Escritos e Ambiente do Novo Testamento, pp. 244 -249. O debate sobre as fontes, por parte dos estudiosos ainda está longe de terminar. A maioria reconhece hoje que mesmo que tenha existido a “fonte dos sinais” não se pode precisar sua extensão e o conteúdo sem cair no indemonstrável. Esta autora dá preferência ao modelo proposto por Brown, por ser o mais simples e explicar os principais elementos do problema. 116 Cf. BULTMANN, R. The Gospel of John, pp. 234 –256. 117 Citado por COTHENET, E. O Evangelho de João e a Epístola aos Hebreus, pp. 44-48. “Convém analisar de perto suas posições. Após afastar alguns retoques atribuídos ao ‘redator eclesiástico’ por exemplo, a menção da água Jo 3,5, os textos sobre a escatologia tradicional em Jo 5,28 ou sobre os sacramentos, como em Jo 6,52-58; Jo 19,34b-35. Bultmann distingue três fontes no quarto Evangelho.”

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Entre os ensaios recentes destaca-se também o de Fortna que reconstitui o

texto grego do Evangelho dos “Sinais”. Este autor toma por base as perícopes que

se referem explicitamente aos shmei/a (sinais). A estas ele acrescenta narrativas

correlatas. Em seguida, conclui que a compilação dos sete sinais era precedida de

introdução geral e acompanhada do relato da paixão. Para obter um plano lógico

não hesita em fazer as mais extravagantes transposições. As hipóteses

apresentadas por estes dois autores nos levam a perceber que ainda se está longe

de chegar a um consenso comum, em relação às fontes, utilizadas pelo

evangelista.118

M. E. Boismard e A. Lamouile propõem a tese de uma provável escola

Joanina,119 posição que eles mesmos abandonam a posteriori. Para estes autores, o

Evangelho é fruto de diferentes estágios redacionais: o primeiro núcleo redacional

teria sido escrito na Samaria ou num meio de estilo samaritano, na Palestina,

constituindo-se numa fonte utilizada por Marcos e Lucas, que eles chamam de

Documento C. A segunda etapa corresponde à retomada deste material redacional

(Documento C) por um segundo redator, igualmente na Palestina, que acrescenta e

amplia a redação anterior (Jo II-A); a terceira etapa corresponde a uma influência

de outro ambiente. O mesmo redator de Jo II-A teria levado esta primeira redação,

da Palestina para um ambiente da Ásia Menor (Éfeso?), o que faz com que a

redação apresente material referente aos conflitos entre “judeus” e cristãos,

sofrimentos semelhantes aos experienciados por Paulo. Essa redação seria a de Jo

II-B, que junta material dos Sinóticos e acrescenta os discursos. E um terceiro

redator, numa quarta fase, faz retoques gerais, inverte a ordem de alguns textos

(por exemplo, o capítulo 5° com o 6º) e se esforça para atenuar os traços anti-

semíticos do segundo redator.120

A pesquisa sobre a data da composição do Evangelho também não atingiu

um consenso comum, mas um melhor resultado nos últimos 150 anos.121 Não

obstante ainda haja divergências entre os autores, deve-se levar em conta, a fim de

118 Cf. COTHENET, E. O Evangelho de João e a Epístola aos Hebreus, p. 45. 119 Citado por MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p.18. “Os autores afirmam que se trata de um trabalho redigido dentro de uma escola, mas no momento que eles desenvolvem esta tese, afirmam que os redatores são distintos e não necessariamente tenham as características da escola. Mais recentemente, M. E. Boismard esforçou-se para demonstrar que a morte do Apóstolo João ocorrida nos anos 44-46, faria com que seu Evangelho tivesse pintura de outro redator, muito distinto, sendo, na opinião dele, o próprio Lucas”. 120 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p.19. 121 Cf. CARSON, D. A. Introdução ao Novo Testamento, pp. 190-201.

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situar a data em que o Evangelho foi escrito, a importância da descoberta do

papiro mais antigo do Novo Testamento: é o de Ryland com a sigla P52, pois foi

escrito pelo ano 130, logo após decênios da composição do Evangelho de João, do

qual contém algumas poucas palavras do capítulo de Jo 18,31-33.37-38. A

descoberta deste papiro arrasou teorias acerca da origem e redação final deste

Evangelho que não poucos críticos diziam terminado só depois da segunda metade

do século II, por exemplo pelo ano 170. Atualmente, quase não há mais críticos

que localizem o Evangelho após o fim do primeiro século. Em conseqüência da

publicação do P52, mesmo Bultmann122 está convencido que o Evangelho de João

deve ter sido conhecido no Egito pelo ano 100.

Outras publicações vieram enriquecer os recursos adotados pelos

pesquisadores. Trata-se de dois papiros, ambos códices, que surgem no final do

século II: P66 Bodmer II abrange a maior parte de Jo 1º-14 e partes dos outros

capítulos. Tem o formato de um livro e supera em extensão o de Ryland,

atingindo dois terços de todo o Evangelho; P75 contém a maior parte de Lucas,

seguida de Jo 1º-11 e partes dos capítulos Jo 12-15. Do início do século III

procede P45, que contém partes de todos os quatro Evangelhos mais Atos, embora

devido à condição mutilada do manuscrito, nenhum livro esteja completo.123

A hipótese que aproxima a composição ao ano 100 tem por base tanto a

ligação do quarto Evangelho com o início da produção evangélica, quanto ao seu

fundo histórico e a sua situação no âmbito da história cristão-primitiva.124

O Evangelho teria sido escrito na área do mediterrâneo oriental, a saber, na

Síria ou na Ásia Menor. Contudo, também no que diz respeito ao lugar da

composição os estudiosos divergem. Boismard atribui as duas etapas essenciais,

João II-A e João II-B, uma na Palestina, outra em Éfeso.125

Segundo Ballarini referindo-se a Irineu, João teria ditado seu Evangelho em

Éfeso. Em contraste com este testemunho, uma nota de Éfren ao Diatessaron de

Taciano, parece atestar que o Evangelho foi escrito em Antioquia. Nada, porém,

pode afirmar-se com absoluta certeza.

122 Citado por KIPPER, Balduíno. Um Novo Papiro do Evangelho de São João: Papyrus Bodmer II - c. 200 d. Cr... in: Revista de Cultura Bíblica, pp.114-118. Ver também MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 20. 123 Cf. KIPPER, Balduíno. Um Novo Papiro do Evangelho de São João: Papyrus Bodmer II - c. 200 d. Cr... in: Revista de Cultura Bíblica, p. 116. 124 Cf. SCHREINER, J. Forma e Exigências do Novo testamento, pp. 361-366 125 Cf. COTHENET, E. O Evangelho de João e as Epístolas aos Hebreus, pp. 361-365.

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43

2.4.

Estrutura do livro

No que diz respeito à estrutura do Evangelho de João, os autores apresentam

diversas modalidades. Cada um possui a sua verdade relativa: porém nem todos

levam à mesma compreensão do texto. Os antigos comentadores, realçavam as

indicações de tempo e lugar. Através deste método, colocava-se em evidência um

traço característico de João: é o único que permite avaliar a verdadeira duração do

ministério de Jesus.126

De um modo mais preciso Mollat, em 1976,127 mostrou a importância das

festas que dão ritmo ao desenvolvimento do Evangelho. Por este sistema pode-se

colocar um plano na base de “setenário de festas”, quando não de semanas. A

partir daí é bem provável, que João tenha usado o simbolismo do número sete,

com a intenção de dizer que na vida e no ministério de Jesus realizavam-se a

perfeição e a plenitude messiânicas. Neste sentido, uma intenção simbólica viria

ao encontro de suas preferências.128

Menciona-se o modelo de estrutura adotado por Raymond Eward Brown129

em 1966. Este autor critica as divisões de autores anteriores, porque segundo ele,

são substancialmente artificiais.

Porém, em grande parte, aceita, a divisão de Henri van den Bussche.130 Ele

procura no próprio Evangelho de João critérios de divisão interna objetivos e

126 Cf. BLANK, Josef. El Evangelio Según Juan, pp. 38-45. 127 Cf. MOLLAT, D. l’Évangile de Saint Jean, pp. 36. 128 Cf. MAZZAROLO, Isidoro, Nem Aqui, nem em Jerusalém, pp. 36. 129 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel according to John, pp. 390-394. 130 Cf. BUSSCHE, H. van den, La Structure de Jean I-XII, in: VV. AA., l’Évangile de Jean, pp. 108-109. Prólogo do Evangelho inteiro: Jo1,1-18. Introdução à primeira parte: do Batista a Jesus: Jo 1,19-51 A vida pública: revelação inaugural da glória Jo 2,11;4,54; 12,28: capítulos 2-12.

1) Seção dos sinais (de Caná a Cana): capítulos 2-4. a) Sinal de Caná Jo 2,1-12 e sinal do Templo Jo 2,13-22. b) Intermezzo: a fé como resposta à revelação Jo 2,23-2. c) Diversos tipos de pessoas diante da fé (Nicodemos, a samaritana, um pagão):

capítulos Jo 3,1-4,54. 2) Seção das obras: capítulos 5-10.

a) Duas cenas de revelação: cura do paralítico, com discurso - capítulo 5 e multiplicação dos pães, com discurso - capítulo 6.

N. B.: cada cena começa com “depois disso”. b) Reação da incredulidade do povo “judeu” capítulos 7-10. N. B.: Também esta parte começa com “depois disso”. c) Inclusão semítica sobre o tema das obras Jo 10,32-39. d) Inclusão semítica sobre tudo o que precede Jo 10,40-42.

3) A subida a Jerusalém: capítulos 11-12.

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capazes de explicar a fluência do escrito. Baseando-se nestes critérios, ele

distingue:

O prólogo (Jo 1,1-18): servindo de abertura ao Evangelho.

O livro dos sinais (Jo 1,19-12,50): a história de Jesus que se revela a Si

mesmo e o Pai para o povo, mediante sinais, e é recusado. Entre o fim do capítulo

12 e o início do capítulo 13 existe claramente um hiato (Jo 12,34-43). Este é um

sumário que resume o ministério público e a reação do povo. Jo 12,44-50 são as

últimas Palavras de Jesus dirigidas ao povo em geral. Jo 13,1-13 se constitui em

um enfático novo início. Acresce ainda que até o capítulo 12 Jesus se dirige ao

povo e a partir do capítulo 13 se dirige aos seus.

O livro da glorificação (Jo 13,1-20,31): no livro precedente, o termo mais

marcante era sinal. Nesta segunda parte do Evangelho, ao invés, ele está ausente.

Em compensação vão aparecer com freqüência as expressões “volta ao Pai” e

“glorificação”. Por isso, Brown chama esta parte de glorificação.

Por fim, o epílogo: (Jo 21,1-25).131

Um dos esquemas que mais contribuíram para perceber o dinamismo

interno do Evangelho foi a proposta feita por Dodd 1968,132 que realça a

importância estrutural de Jo 13,1-2: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que

chegara sua hora de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que

estavam no mundo, amou-os até o fim”. Depois do capítulo 12, que vale como

conclusão (Jo 12,13-50), o capítulo 13, pela sua grandiosidade, apresenta

semelhança com o prólogo. A divisão em duas grandes partes se impõe: o Livro

dos Sinais e o Livro da Paixão. Observa-se como o relato de diversos sinais tem

seu ápice num longo discurso: a unidade da ação e da Palavra caracteriza assim

esta primeira parte. Por outro lado, o título “Livro da Paixão” não é feliz; convém

dizer Livro da Hora segundo Jo 13,1 ou Livro da Glória.

Portanto, para Charles H. Dodd, o Evangelho de João se divide com

naturalidade no fim do capítulo 12. Esta divisão corresponde à que encontramos

em todos os Evangelhos antes do relato da Paixão. Mas em João ela se destaca por

sua visibilidade. A unidade do Evangelho não é, porém, apenas uma unidade de

estrutura; é também uma unidade temática. Os grandes temas da luz e da vida do

testemunho, do Juízo, da glória, e assim por diante, atravessam o livro.

131 Cf. MAGGIONI, Bruno in: FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, pp. 256-259. 132 Cf. DODD, Charles. A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 385-387.

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45

A transição da primeira parte, em Jo 13,1, é teologicamente carregada.

Marcando a passagem deste mundo para o Pai, constitui o ponto central

semelhante a uma dobradiça que une, mediante o tema da “hora”, a primeira parte

do Evangelho à segunda.133

Fundamentada nestas informações, pode-se distinguir as grandes partes

seguintes:

Prólogo: (Jo 1,1-18).

I Parte: O Livro dos Sinais (Jo 1,19-12).

O anúncio da vida: (Jo 1,19-6).

Defesa da vida e crescentes ameaças de morte: (Jo 7-12).

II Parte: O Livro da Hora (Jo 13-20).

O testemunho de Jesus, última ceia e discurso de despedida: (Jo 13-17).

A hora da glorificação na cruz: (Jo 18-19).

O dia do Senhor: (Jo 20).

Epílogo: (Jo 21) - diretrizes do Ressuscitado à sua Igreja.

Pode-se afirmar que os autores estão de acordo em dividir o Evangelho em

duas partes. Deste modo três textos se tornam imediatamente importantes para

definir a estrutura: o prólogo (Jo 1,1-18), a transição entre a primeira e a segunda

parte (Jo 12,37-50) e a conclusão (Jo 20,30-31). A estrutura possui um fio

condutor. O Evangelho é conduzido de modo a deixar aparecer a progressiva auto-

revelação e daí a progressiva manifestação da fé e da incredulidade. Por isso o

quarto Evangelho tem um caráter dinâmico e dramático. Cada episódio contém

uma revelação de Jesus que obriga a tomar uma posição: ou a fé ou a

incredulidade.134

133 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 16-21. “A unidade e progressividade na narrativa produz um clímax dramático, que aproxima o quarto Evangelho do gênero literário dramatúrgico (teatro) contendo duas grandes partes, emolduradas pelo prólogo e epílogo”. 134 Cf. MAGGIONI, Bruno in: FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, p. 259.

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Estrutura do capítulo 9°:135

I - O sinal: (Jo 9,1-7).

II - A reação dos vizinhos: (Jo 9,8-12).

III - Primeira inquisição das autoridades: (Jo 9,13-17).

IV - Segunda inquisição das autoridades: (Jo 9,18-23).

V - Terceira inquisição das autoridades: (Jo 9,24-34).

VI - Visão do cego: (Jo 9,35-38).

VII - Os cegos que não querem ver: (Jo 9,39-41).

2.5. A cegueira no ambiente religioso-sócio-cultural da Palestina

O cego de nascença no Evangelho de João, não tem nome. Na concepção

dos antigos o nome significa a essência da pessoa: aquele que não tem nome, não

existe, ou seja, não tem a vida (Eclo 6,10).136 Um homem sem nome é um homem

insignificante.137 O nome tem o significado maior, do que um simples rótulo que

distingue uma pessoa da outra. Tem uma misteriosa identidade com o seu

portador; pode ser considerado um substituto da pessoa.

É comumente significativo, não apenas distingue a pessoa, mas revela algo

do caráter daquele a quem pertence. Chamar pelo nome era ter fama e reputação.

Ao contrário, quando o nome de alguém é destruído este fato era sinal de

desonra.138 Mas no quarto Evangelho, o homem no qual Jesus fixou o olhar não

tem nome, é apresentado como tuflo.n evk geneth/j, (cego de nascença) pelo

evangelista e prosai,thj (mendigo) pelos vizinhos.139

Também Bartimeu é apresentado como: tuflo.n kai. prosai,thj (cego e

mendigo). Provavelmente, ele é a figura simbólica da cegueira, na qual estavam

envolvidos os fariseus, mas também os discípulos.140 No aspecto social ele é o

135 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e fidelidade, pp. 197-203. 136 Cf. VAUX, Roland de. Les Institutions de L’ancien Testament, p. 224. 137 Cf. BORN, A. Van Den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, pp. 1046-1048. 138 Cf. McKENZIE, L. John. Dicionário Bíblico, pp. 658-660. 139 Cf. Mc 8,26: “Estava sentado à beira do caminho, mendigando, o cego Bartimeu, filho de Timeu”. 140 Cf.Mc 8,22-26: “A cura do cego em dois tempos é um símbolo do que acontece com os que O seguem pelo caminho. Como progressiva foi a cura de Betsaida, assim, também foi a fé dos discípulos. Eles acompanham Jesus e vêem tudo o que ele faz, mas ainda não percebem que Jesus é o Messias.”

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representante de todos os excluídos da sociedade, que sobrevivem com as

esmolas dos que passam pelo caminho.141

A cegueira era bastante comum no Oriente Médio. Muitas crianças já

nasciam cegas (Jo 9,1). Esta doença fazia aumentar o número de mendigos.142

Estando sem condições para trabalhar, restava-lhes pedir esmolas. Tal era a

condição do cego de nascença.143

A cegueira na sociedade de Israel era considerada um castigo divino, porque

impedia o estudo da Lei - “Torah”. Ao ver um cego, a bênção pronunciada era:

“Bendito seja o juiz verdadeiro!”, dando a entender que a cegueira era um

julgamento justo de Deus contra os pecados de seus pais, que se revelavam nos

filhos. Era proibida a entrada de um cego na comunidade de Qumran. Ser cego

implicava ser incapaz e ter um defeito cúltico, pois os cegos não podiam atuar

como sacerdotes (Lv 21,18).144

A incapacidade na qual se encontravam os cegos é confirmada no Antigo

Testamento: “Ficarás tateando ao meio-dia, como o cego que tateia na

escuridão...” (Dt 28,29); “Como cegos que andam a apalpar um muro, sim, como

os que não tem olhos, anda-se às apalpadelas, tropeça-se ao meio-dia como se

fosse no crepúsculo...” (Is 59,10); “Erra-se como cegos pelas ruas...”

Fazendo parte dos mais fracos e necessitados entre o povo, os cegos

estavam sob a proteção da Legislação Mosaica, que continha artigos muito

humanitários a favor deles: Não amaldiçoarás o mudo e não porás obstáculo

diante de um cego; mas temerás o teu Deus. “Eu sou Iahweh” (Lv 19,14).

Uma das maldições que o povo deveria proferir no monte Ebal, era:

“Maldito seja aquele que extravia um cego no caminho! E todo o povo dirá:

Amém!” (Dt 27,18). Os piedosos e justos ajudavam os cegos. Assim, defendendo

a vida que até então levara, Jó lembra aos seus amigos que cuidara dos pobres

desvalidos e servira de olhos aos cegos (Jó 29,15).145

No Novo Testamento, a cegueira também é empregada metaforicamente.

Jesus chama os fariseus de “guias cegos” que conduzem outros cegos (Mt 15,14) e

141 Cf. Mc 8,22; Mc 10,46; Jo 9,1. 142 Cf. Mt 9,27; Mt 12,22; Mt 20,30; Mt 21,14. 143 Cf. McKENZIE, John L. “Cegueira”, Dicionário Bíblico, pp. 158-159. 144 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Cegueira”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 136. 145 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Vida”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 396.

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(Lc 6,39). Paulo menciona que os “judeus”, formados na lei, consideravam-se

guia dos cegos, em relação aos pagãos que não conheciam a lei. Achavam que

somente eles poderiam trazer luz e oferecer a verdade aos cegos pagãos (Rm

2,18.19). Jesus não mostrou simpatia pela cegueira dos fariseus. Pelo contrário

condenou-os, pois a cegueira os impedia de acolher os sinais de salvação

realizados por Jesus, luz do mundo. Por isso, permanecem em sua cegueira (Jo

9,41).

Nos Sinóticos Jesus declara abertamente a chegada do Reino, com o

cumprimento da profecia de Isaías e responde aos discípulos de João: “Ide contar

a João o que estais vendo: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os

leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são

evangelizados” (Mt 11,4-5).146

Jesus curou a cegueira em três ocasiões: em Betsaida (Mt 9,27ss; Mc

18,22ss), em Jericó (Mt 20,30ss; Mc 10,46ss; Lc 18,35ss) e o cego de nascença de

Jerusalém (Jo 9,1ss). Jesus menciona a cura da cegueira como um dos sinais de

sua missão messiânica (Mc11,5; Lc 7,22).

Estando entre os mais carentes da sociedade, o cego de nascença sobrevivia

da bondade das esmolas, de todos os que entravam e saíam do Templo. Não tinha

outra escolha e nenhuma perspectiva de sair de tal situação. Por ser cego de

nascença, ele não sabia o que era a luz, ter a vida. O olhar atencioso de Jesus (Jo

9,1), seguido da transformação realizada pela cura e do encontro com Jesus, no

entanto, acabaria por tirá-lo da condição de cego e mendigo, devolvendo-lhe a

identidade, a dignidade da vida (Jo 9,9).147

A partir da tentativa de uma aproximação do quarto Evangelho como um

todo, em que se procurou dar passos no esclarecimento e compreensão de algumas

questões relevantes, efetua-se de modo aberto, sem a pretensão de ser completa a

análise de Jo 9,1-12. O estudo da perícope permitirá situá-la no “livro dos sinais”,

bem como, visualizar as nuances literárias, com uma proposta de delimitação e

estrutura formal do texto.

146 Cf. HOUTART, François. Religião e Modo de Produção Capitalista, pp. 184-192. 147 Cf. Jo 9,9: “Ele, porém dizia: ‘Sou eu’ ”.

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3 Análise do texto

Depois de ter feito este caminho com o objetivo de esclarecer algumas

questões na globalidade do Evangelho, situando a “cegueira” no ambiente

religioso-sócio-cultural da Palestina, passa-se a uma possível reconstituição do

texto original através da crítica textual. Em seguida procurar-se-á situar a perícope

em estudo Jo 9,1-12 no interior do “livro dos sinais”. Examinar-se-á também as

características lingüístico-sintáticas, bem como, procurar-se-á delimitar, efetuar e

justificar sua segmentação, seguida de uma análise do tipo de texto a que pertence

a perícope em questão, ou seja, o gênero literário de Jo 9,1-12. Finalmente far-se-á

a crítica da tradição.

3.1. Tradução e crítica textual 148

1 Kai. para,gwn ei=den a;nqrwpon

tuflo.n evk geneth/jÅa

1 E passando viu um homem cego de

nascença.

aDepois de tuflo.n evk geneth/j (cego de nascença) encontra-se no

manuscrito D, a inclusão kaqhmenon (sentado). Esta inclusão do copista, foi

intencional a fim de explicitar o modo como os cegos se colocavam sentados em

diversos lugares. Por razões de segurança os cegos ficam sentados.

2 kai. hvrw,thsan auvto.n oi` maqhtai

auvtou/ le,gontej\b rabbi,( ti,j h[marten( ou-

h' oi gonei/j auvtou/( i[na tuflo.j gennhqh/|È

2 E perguntaram-lhe os discípulos dele

dizendo: “Rabi”, quem pecou, ele ou os

pais dele para que nascesse cego?

148 Seguimos o aparato crítico de Nestle-Aland.

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bO manuscrito D apresenta a omissão das palavras auvtou/ levgontej (dele

dizendo). A omissão poderia pressupor que eram os discípulos dele e não de

outros. Contudo torna-se irrelevante.

3 avpekri,qh VIhsou/j\ ou;te ou-toj h[marten

ou;te oi gonei/j auvtou/( avllV i[na

fanerwqh/| ta. e;rga tou/ qeou/ evn auvtw/|

3 Respondeu Jesus: “nem ele pecou, nem

os pais dele, mas a fim de que se

manifestassem, nele as obras de Deus.

4 h`ma/jc dei/ evrga,zesqai ta. e;rga

tou/ pe,myanto,j med e[wje h`me,ra evsti,n\

e;rcetai nu.x o[te ouvdei.j du,natai

evrga,zesqaiÅ

4 A nós é necessário realizar as obras

daquele que me enviou enquanto é dia,

vem a noite quando ninguém pode

trabalhar.

cDepois de hvma/j, (nós), os códices149 o substituem por eme, (eu).......

Pode-se considerar o termo “nós” referindo-se ao intuito de inclusão dos

discípulos na missão de Jesus, como leitura mais difícil... pois logo adiante o

relato retoma a linguagem, na primeira pessoa do singular. Poder-se-ia afirmar

que copistas, por influência da linguagem, alterada no texto, tivessem sido

induzidos a propor a substituição. Há um número um pouco maior de testemunhas

a seu favor, encontra-se representada em todos os tipos de textos, mas tem uma

menor quantidade do tipo de textos Alexandrino, o mais importante.

Contrapondo-se aos quatro testemunhos que se colocam a favor do texto

original.

Em relação aos critérios de evidência interna, a maioria deles é de difícil

aplicação. É possível, que a intenção de Jesus tenha sido a de incluir os discípulos

como continuadores de sua missão. Considerando-se esta questão, como também,

a avaliação dos critérios de evidência externa e interna, somos da opinião, de que

o texto sem a substituição tem maior probalidade de aproximação do texto

original. dSubstituição simples do pronome me, para o pronome hvma/j, testemunhada

pelos manuscritos:150 Esta leitura conta com um número relativamente baixo de

149 a

1 A C QΨ f1.13 33 M lat sy ac2 bomss

150 P66.75 a* L W pc pbo bo

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manuscritos, em relação à quantidade de testemunhos.151 É provável que esses

códices buscassem harmonizar com o primeiro pronome hvma/j.

5 o[tan evn tw/| ko,smw| w=( fw/j eivmi

tou/ ko,smouÅ

5 Enquanto estou no mundo, sou a luz

do mundo”.

6 tau/ta eivpw.n e;ptusen camai. kai.

evpoi,hseng phlo.n evk tou/ ptu,smatoj

kai. evpe,crisenauvtou/ to.n phlo.n evpi.

tou.j ovfqalmou.j

6 Isto dizendo, cuspiu e fez barro com a

saliva, e ungiu-o com o barro sobre os

olhos.

7 kai. ei=pen auvtw/|\ u[page ni,yai eivj th.n

kolumbh,qran tou/ Eilwa,m (o; evrmhneu,etai

avpestalme,noj). A,ph/lqen ou=n kai.

evni.yato kai. h-lqen ble,pwn

7 e disse-lhe: “Vá, lava-te na piscina de

Siloé “que quer dizer ‘Enviado’”. Foi

pois, lavou-se e voltou vendo.

8 Oi ou=n gei,tonej kai. oi` qewrou/ntej

auvto.n to. pro,teron o[ti prosai,thj

h=ne e;legon\ ouvc ou-to,j

evstin o` kaqh,menoj kai. prosaitw/nÈ

8 Então os vizinhos dele e os que o

tinham visto antes, porque era cego e

mendigo, diziam: não é este o que

ficava sentado e pedindo?

eSubstituição - primeira lição prosai,thj h=n (mendigo era), para tuflo.j h=.

(cego era) testemunhada pelos manuscritos:152 Segunda lição tuflo.j h=n kai.

prosai,tej (cego era e mendigo) testemunhada pelos manuscritos: 69 pc it.

É provável que esta leitura, de modo especial a segunda lição, queira

enfatizar a conseqüência da cegueira, expressada pela ênfase dada na conjunção

kai. (e). O texto original tem o mesmo sentido, ao dizer “mendigo era”. Todavia,

no nosso modo de ver, a segunda lição parece estar mais voltada para a exclusão

social em que viviam os cegos. É o que se passa com o cego de nascença, sendo

cego era também mendigo. No relato ele não tem nome. É citado pelos vizinhos,

151Cf. CÁSSIO, Murilo Dias da Silva. Metodologia da Exegese Bíblica, pp. 45-46. A lição com mais probalidade de ser original é a que apresenta uma múltipla atestação de testemunhas. 152 C3 Γ Λ f13 700.892. 1241.1424 M

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como aquele que estava sentado pedindo e após o confronto com os chefes da

sinagoga, foi expulso da mesma.

É a primeira vez em que aparece no texto que o cego era mendigo. Portanto,

o nosso parecer é que a segunda leitura dá mais ênfase ao estado de exclusão, na

qual vivia o cego de nascença. Faz-se opção pela segunda lição

9 a;lloi e;legon o[tif ou-to,j evstin( a;lloi

g e;legon\ ouvci,( avlla. o[moioj auvtw/|

evstinÅ evkei/noj e;legen o[ti evgw, eivmiÅ

9 Alguns diziam: é esse; outros diziam:

“não, mas é semelhante a ele”. Ele

respondia: “sou eu”.

fOmissão do termo o[ti (que) ou dois pontos, atestada pelos seguintes

manuscritos:153

Observa-se que provavelmente o uso deste termo faz parte da linguagem

coloquial de João. Aparece quatro vezes no texto. Uma para reforçar a linguagem,

significando explicação, igual à do v. 8. Todas as outras vezes com proposta de

omissão pelas leituras das variantes, com o significado de: dois pontos: Levando

em consideração a fórmula convencional, nós traduzimos o termo por dois pontos

e optamos pela vigésima sétima edição. gSubstituição de e;legon ouvci, avlla., (diziam não mas), por de. o[ti, (e

outros):154 primeira lição, com os seguintes testemunhos:155 segunda lição: de.

e;legon, (e diziam), testemunhada pelos manuscritos:156 terceira lição: de., (e),

atestada por:157 Os seguintes manuscritos são a favor da edição do texto

original:158 Pode-se avaliar, pelo critério da lição mais breve, levando em

consideração a importância dos testemunhos que apóiam a décima sétima edição

que este texto tem mais probabilidade de ser o original.

Por isso, não obstante o número de manuscritos, a favor da inclusão, ser

maior, escolhe-se a leitura do texto original. Parece-nos, no entanto, que a variante

não é de grande relevância para a compreensão do texto.

153 P66

a w q 1844 l 2211 pc it 154 Ver nota acima -135. 155 A Ψ f13 M f l syh ac2 M f. 156 070 f1 565 pc aur vg. 157 a q pc vgmss syhmg. 158 P66.75 B CW pc b (r1) syp L 33. 892.

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11avpekri,qh evkei/noj\ o a;nqrwpoj o`

lego,menoj VIhsou/j phlo.n evpoi,hsen

kai. evpe,crise,n mou tou.j ovfqalmou.j kai.

ei=pe,n moi o[ti u[page eivj to.nh Silwa.m

kai. ni,yai\ avpelqw.n ou=n kai.

niya,menoj avne,bleyaÅ

11 Respondeu ele: “Um homem

chamado Jesus fez barro, ungiu-me os

olhos” e disse-me: “Vai à Siloé e lava-

te”. Indo, pois, tendo-me lavado, vejo.

hSubstituição159 simples do artigo to,n, vai à Siloé... para th.n kolumbh,qran

tou/. Atestada pelos seguintes manuscritos:160 testemunhos a favor do texto da

décima sétima edição:161

O confronto entre os testemunhos apresentados pela variante e os que

favorecem o texto original, a partir dos critérios de evidência externa e interna,

nos ajuda a fazer a escolha pelo texto original.

12 kai. t ei=pan auvtw/|\ pou/ evstin evkei/nojÈ le,gei\ ouvk oi=daÅ

12 E perguntaram-lhe: “onde está ele”?

Disse-lhes: “não sei”.

3.2. Jo 9,1-12 - sua situação no livro dos sinais

Em João, se/mei,on (sinal) é toda ação realizada por Jesus que, sendo visível,

leva os espectadores, por si só ao conhecimento de uma realidade superior.162

Segundo Dodd163 toda a linguagem de João está penetrada por um conjunto de

simbolismos próprios do mundo judaico-helenístico no qual ele escreveu. O

símbolo não se opõe ao “real”. Pelo contrário só é simbólico aquilo que apresenta

uma realidade com a qual quem o olha entra em comunhão.

159 Cf. UWE , Wegner. Exegese do Novo Testamento, p. 58. “A substituição, pode, às vezes consistir de pequenas variações ou alterações no gênero, caso, tempo ou modo verbal de um vocábulo”. 160 A Ψ f13 33 M lat (sy) asms. 161 P66.75

a B D L Q 070 f1 565. 1241 al it. 162 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO Juan. O Evangelho de São João, p. 258. 163 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Evangelho de João, p. 325.

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Não é o caso de desenvolver aqui uma teoria do símbolo,164 tendo como

pressuposto que as propostas dos especialistas são as mais variadas possíveis,

dependendo da área em que atuam - a filosofia, a história das religiões ou a

análise psicológica -165 mas é bom lembrar alguns pontos fundamentais referentes

ao simbolismo bíblico, sobretudo a título de introdução, neste item, no qual tratar-

se-á da situação da perícope no Livro dos Sinais.

A importância dos sinais nos escritos Joaninos reside em que eles são

“símbolo”, ou seja, uma forma representativa - imagem, sinal, gesto,

acontecimento - cujo valor ultrapassa àquele que deriva de sua existência

puramente fenomenal. João é herdeiro da grande tradição bíblica. Assim no seu

modo de transmitir a mensagem de Jesus, a água viva, o pão, exprimem

diretamente realidades de salvação. João faz sobressair dos milagres de Jesus não

tanto o seu poder de taumaturgo, por certo reconhecido por seus contemporâneos

e pelo evangelista, mas algum aspecto da salvação oferecida ao homem como um

todo e daí, algum aspecto de Jesus. Deste modo a visão restituída a um cego de

nascença simboliza que Jesus é a luz.166 O texto inteiro do quarto Evangelho pode

ser considerado de uma maneira simbólica.167

Segundo Dodd168 entre toda a literatura neotestamentária, é o “corpus

Johanneum”169 que mais se serve do simbolismo. Esta dimensão é tão importante

que “nenhum conhecimento do Evangelho de João é possível sem uma apreciação

do papel desempenhado pelo simbolismo”.

Em 1968 Dodd170 consagrou um pequeno capítulo de sua obra “A

Interpretação do Quarto Evangelho” ao simbolismo usado por João, onde ele diz

164 “A expressão se/meion é comum no Antigo Testamento - significa algo extraordinário, um milagre. É aplicado aos atos simbólicos realizados pelos profetas. No símbolo era dada também a coisa simbolizada. É fácil a transição disto para o tratamento simbólico dos atos de Jesus no quarto Evangelho. É provável que Jesus tenha feito atos simbólicos. É certamente do estilo Joanino tratar seus atos como tais. Comentando onde as árvores do Paraíso são descritas como ‘de aspecto agradável para comer’. O autor diz - observa Fílon - não só de ‘aspecto agradável,’ que é o símbolo dos contemplativos, mas também ‘bom para comer’ que é um se/meion útil e prático. O uso de Fílon não é precisamente o do quarto Evangelho, que é em alguns casos mais próximos do uso profético; mas ele dá claramente ao se/meion o sentido de ‘símbolo’, e isto está bem próximo ao sentido de um ato significativo ou simbólico, que eu considero como sendo o do quarto Evangelho” Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 181-183. 165 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Símbolo”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 24-26. 166 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l’Histoire, pp. 87-104. 167 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 357-364. 168 Cf. DODD, Charles A. A interpretação do Quarto Evangelho, p. 359. 169 As três cartas de João, o Evangelho segundo João e o Apocalipse. 170 Citado por LÉON-DUFOUR, Xavier.O Evangelho e a História de Jesus, pp. 123-128

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55

que o “símbolo é absorvido dentro da realidade por ele significada”. Os símbolos

provêm da vida diária, mas sua significação deriva das ricas associações que eles

adquiriram no Antigo Testamento e na literatura apocalíptica. Há uma relação

integral entre o símbolo e a realidade por ele apresentada independentemente de

onde o símbolo ocorre: nos discursos, na alegoria, ou no fato histórico. Os

próprios acontecimentos, os sinais Joaninos são atos simbólicos. Todo o

Evangelho de João, narração e discursos, estão “demarcados por uma intrincada

rede de simbolismos” e descreve um mundo no qual fenômenos, coisas e

acontecimentos, formam uma imagem viva e dinâmica do eterno... um mundo no

qual o Verbo se fez carne.171

A perícope do cego de nascença Jo 9,1-12 é o quinto sinal realizado por

Jesus. Tem uma história de tradição independente, anterior a João. No entanto,

dificilmente pode-se descobrir nela um relato de cura original e pré-Joânico,

porque a narração está tão fortemente marcada de linguagem e mentalidade

Joânicas, que em sua redação atual deve-se tomá-la como narração Joânica. As

diversas afirmações e reflexões mostram que esta narração foi elaborada por

completo dentro da teologia Joânica dos sinais. É verdade que podemos ver na

cura de cegos nos sinóticos Mc 8,22-26 e 10, 46,52 certos paralelos objetivos, mas

a forma e a finalidade do relato são totalmente diferentes172 comenta

independentemente o motivo apresentado. A diferença, segundo Bultmann,173 está

sobretudo na discussão anexa, bem como no fato de que Jesus toma a iniciativa do

milagre, o que é comum nas narrações Joânicas de milagres.

O texto está inserido num conjunto maior dos capítulos 7° ao 12 de João,

onde Jesus se revela publicamente. Até agora Jesus ensina somente por ocasião

dos sinais, mas aqui ele o faz em Jerusalém, por ocasião da festa dos

Tabernáculos. A revelação ainda não é plena. Esta se dará com a sua morte. Em

toda esta parte aparece ainda mais que na anterior a revelação de Jesus interativa e

progressiva. É uma revelação que tem por finalidade estabelecer a crise entre os

homens, tal como já havia anunciado anteriormente Jo 5,22, emoldurado por dois

núcleos de discursos e dois sinais, os últimos que realiza: cura do cego e

ressurreição de Lázaro. Tudo vai tragicamente se esclarecendo e tornando ainda

171 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 190-194. 172 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-194. 173 Cf. BULTMANN, R. The Gospel of John, pp. 234-238.

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56

maior o grupo dos que não aceitam a luz.174 Estes capítulos relatam o longo

confronto que opõe Jesus ao mundo e mais especificamente ao judaísmo hostil,

cuja rejeição da revelação de Jesus é evidente. Tomando Jesus à parte, por causa

de uma cura em dia de sábado, os “judeus” o acusam de violar o sábado. A

resposta de Jesus agrava a controvérsia, pois doravante os “judeus” tramam acabar

com ele, porque blasfema, fazendo-se igual a Deus, Jo 5,1-18. Num longo

confronto jurídico, o assim chamado “processo judeu” no quarto Evangelho. Jesus

vai demonstrar que em sua qualidade de enviado, sua pretensão não é

blasfematória e apela para as testemunhas em seu favor.175

O episódio inscreve-se no prolongamento da festa das Tendas, como o

sugere a conjunção kai., no início do relato. Portanto, o capítulo 9° de João,

constitui uma unidade independente firmada pela mudança de lugar: “Ao sair do

Templo”.

No entanto, o relato só é datado em Jo 9,14: Era sábado, após a delimitação

das sub-unidades adotadas nesta dissertação: Jo 9,1-7 a cura do cego de nascença

e Jo 9,8-12, conforme a estrutura apresentada por Blank e Léon-Dufour,176

abrangendo somente a discussão com os conhecidos e vizinhos do cego de

nascença, no que se refere à constatação do sinal, que o leva a testemunhar Jesus.

Aqui a delimitação inferior é marcada pela mudança de cenário: “Levaram-no à

presença dos fariseus”. A delimitação do texto será mais detalhada no item 2.3 -

letra b. A partir de Jo 9,12, o cego é questionado pelos dirigentes da Sinagoga a

respeito da cura realizada por Jesus. O texto dá continuidade ao confronto com os

fariseus, iniciado no capítulo 5°, indo até ao extremo, no capítulo 8°, onde Jesus

foi praticamente expulso do Templo, ameaçado de morte. A agressão agora se

dirige ao cego que também acabará sendo expulso da Sinagoga, mas quem está

por trás da cena é Jesus, por ter realizado a cura em dia de sábado.177

Há um duplo movimento, que tem suas extremidades nos versículos 1 e 41,

do capítulo 9°, sublinhado por elementos significativos. A toda pergunta feita ao

cego corresponde uma confissão em favor de Jesus: um homem chamado Jesus Jo 174 Cf. DE LA CALLE, Francisco. Teologia dos Evangelhos de Jesus, pp. 79-91. 175 Ver Jo 7,11-52; Jo 8,12-59; Jo 10,22-42. 176 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 193-199 e DUFOUR-LÉON, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, p. 229. “A delimitação da perícope de Jo 9,1-12 feita pelos dois autores consta de duas partes: a primeira trata do diálogo com os discípulos e a cura do cego (Jo 9,1-7). A segunda se refere à primeira discussão com os vizinhos e conhecidos do cego e conseqüentemente a confirmação da cura por estes” (Jo 9,8-12). 177 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, pp. 235-238.

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9,11, um profeta Jo 9,17, um enviado de Deus 33.178 Não obstante a unidade do

capítulo 9°, confirmada por muitos autores, o texto não se encontra solto, como se

pudesse ser inscrito em qualquer outro lugar do quarto Evangelho. A frase central

que liga nosso capítulo com o anterior é: “Eu sou a luz do mundo”.179

O tema do “livro dos sinais” é Cristo que se manifesta ao mundo como vida

e luz, sendo, porém, rejeitado. Os dois sinais, vida e luz, são os principais, os

outros derivam destes.180 A última secção Jo 9,35-41 constitui como que o pano

de fundo do capítulo 10º que se interliga com o capítulo 9°. Rejeitado pelos que

não aceitam a luz - os fariseus, o ex-cego é acolhido pelo Filho do Homem. Ele é

a primeira ovelha do rebanho que o bom Pastor conduz às pastagens

abundantes, ou seja, recebe de Jesus a vida.181

3.3. Crítica literária

No que diz respeito à sua disposição literária, o capítulo 9º se conta entre os

melhores, literalmente falando, e mais densos de todo o Evangelho de João.182

Trata-se da “cura do cego de nascença”, no entanto, alguns autores adotam o

título: “Jesus cura a cegueira dos homens”. Esta é uma indicação de que a cura do

cego de nascença é simbólica. O cego, como acontece com muitos personagens no

Evangelho de João, é um personagem simbólico, representando a cegueira da

humanidade, constituindo-se assim, uma característica do autor.183

O Evangelho se distingue pela acentuada utilização do simbolismo, da

ironia, das expressões de vários sentidos, do motivo da incompreensão etc., que

tendem a gerar uma série de “mal-entendidos” como, por exemplo, no caso de

178 Cf. FABRIS, Rinaldo in MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos II, pp. 378-382. 179 Cf. Jo 9,5 paralelo a Jo 8,12. 180 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. O Evangelho e a História de Jesus, pp. 124-127. “A vida e a luz foram trazidas pelo Verbo. Em seguida florescem muitas espécies de simbolismos parciais: o cordeiro, o vento, a água, a fonte, o pão, o pastor, o caminho... Longe de ser um revestimento platônico, o simbolismo é um aspecto normal e necessário da história do Verbo de Deus encarnado”. 181 Cf. DODD, Charles. A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 449-459. 182 Cf. BLANK, Josef. Evangelho Segundo João. p. 193. 183 Cf. MATEUS Juan & BARRETO Juan. O Evangelho de São João, p. 17. Um recurso comum no Evangelho são os personagens representativos. Muitas das que aparecem não atuam apenas como figuras históricas, mas investidas de determinada representação. Caso especial é o de “discípulo que Jesus amava” figura anônima que representava o discípulo ou a comunidade, enquanto amigos de Jesus.

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Nicodemos (Jo 3,4).184 Esses traços decorrem da perspectiva redacional do

Evangelho. O Evangelho de João é antes de tudo, o “Evangelho da comunidade”,

porque ela pode reconhecer nele tanto a sua própria história como a história de

Jesus, ou seja, o escrito é costurado por dois fios que se entrelaçam formando o

tecido belíssimo do conjunto: vida de Jesus e vida da comunidade. De fato o

Evangelho que João coloca em cena é o Cristo glorificado na e pela

comunidade.185

Há no texto expressões típicas de João como “evgw, eivmi”. Esta expressão é

uma referência clara ao livro do Êxodo, onde Deus se revela a Moisés: “Eu sou o

que sou” como o Deus dos antepassados, aquele Deus que prometeu formar um

povo, agora vai cumprir a promessa. Deus quer ser invocado sempre com este

nome e manifesta a sua identidade dentro de um processo de libertação. No

episódio do cego de nascença esta expressão tem o sentido de revelar a identidade

de Jesus e antecipa simbolicamente a salvação que só ele pode oferecer.186 Ao

curar o cego de nascença Jesus o recria, devolvendo-lhe a dignidade da vida. O

verbo avpekri,qw187 aparece muitas vezes, não só nesta perícope, mas também nos

Sinóticos - caracteriza o início do diálogo de Jesus com seus interlecutores - no

texto em questão aparece no diálogo com os discípulos e no confronto do cego

com os vizinhos: respondeu ele (Jo 9,11), ou seja, observa-se uma mudança do

estilo narrativo para o discursivo. O verbo e[ptusw é um hápax Joânico.

No que se refere aos tempos e formas verbais, João ignora o uso do

particípio futuro, do infinitivo futuro, do optativo, formas que caracterizavam a

literatura grega na época. Ao contrário, ele emprega de modo adequado os

tempos: para a narração, faz alternar o aoristo e o presente histórico 164 vezes no

Evangelho. Na perícope (Jo 9,1-12), este dado é evidente, o aoristo aparece 24

vezes e o presente histórico 25, forma usada para narrar um acontecimento. Neste

ponto, o Evangelho se assemelha ao de Marcos, enquanto que Lucas, mais

literário evita o presente histórico.

A partícula kai. também pode ter o sentido aditivo, como se constata em Jo

1,10.11. A conjunção ou-n é encontrada 200 vezes e caracteriza o estilo de João: ao

lado dos empregos corretos exprimindo a conseqüência do que se diz. João 184 Cf. BENTO, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 368. 185 Cf. MOINVILLE, Odete. Escritos e Ambiente do Novo Testamento, pp. 199-201. 186 Cf. MOINVILLE, Odete. Escritos e Ambiente do Novo Testamento, p. 169. 187 Cf. UWE, Wegner. Exegese do Novo Testamento, p. 54.

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emprega constantemente ou-n como um narrador popular pontua seu escrito de

então... então...

O substantivo e[rgon aparece duas vezes na perícope e é também vocabulário

próprio do quarto Evangelho, 6 vezes em Mt, 2 vezes em Lc, 24 vezes em Jo.

Todo o texto é marcado por substantivos que se repetem ao longo do relato...

personagens: Jesus 2 vezes e o cego 2 vezes, estes são os principais. Aqui entra

um fator de coesão do texto, o uso da proforma188 com a função de unir uma frase

à precedente mediante um pronome “auvtou/ ou auvtw/ ”, remetendo a uma pessoa

anteriormente citada. Estes pronomes aparecem várias vezes na perícope do cego

de nascença. Os personagens também são: os discípulos, os pais, os vizinhos e

outros substantivos denominados: mundo 2 vezes - 9 vezes em Mt, 3 vezes em Lc,

3 vezes em Mc, 78 vezes em Jo; luz 2 vezes - 7 vezes em Mt, 1 vez em Lc, 7

vezes em Mc, 23 vezes em João. Os substantivos dia-noite se inserem na categoria

de pares opostos que também é uma característica da linguagem de João. Terra;

piscina; Siloé; barro. Este último é encontrado somente na perícope Jo 9,1-12,

portanto em João 2 vezes. O termo saliva é encontrado apenas uma vez em todo o

Evangelho de João (hapax joânico); olhos 2 vezes; homem 2 vezes; mendigo 1

vez e Rabi que significa mestre.

Uma série de expressões de João corresponde aos escritos de Qumran. Na

lista colocada por Schnackenburg189 citam-se alguns exemplos: praticar a verdade;

testemunhar a verdade; andar nas trevas; a luz da vida. De fato, há paralelos entre

o quarto Evangelho e o pensamento dos essênios que moravam numa colônia no

local chamado Qumran na região do mar Morto. Mas, segundo Brown190 não

existe prova convincente de que o autor Joanino conhecesse esta literatura. Tal

semelhança com estes escritos se explica pela conversão de “judeus”, seguidores

de João Batista para a comunidade Joanina que tinham o mesmo tipo de idéias que

conhecemos através destes escritos. Quando surgiu a alta cristologia,191 Jesus teria

sido interpretado, à luz destas idéias, como a luz celeste que desceu do alto, seus

seguidores, como os filhos da luz.

188 Cf. WILHELM, Egger. Metodologia do Novo Testamento, p. 7. 189 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. Das Johannes Evangelium , p. 91. 190 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 108. Segundo o autor a alta cristologia advém da idéia da preexistência de Jesus na comunidade Joanina. 191 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 295.

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Observa-se um número suficientemente importante de termos arameus no

corpo do Evangelho, seguido freqüentemente de interpretação grega: Rabbi - 8,

rabbouni -1, Messias - 2, Siloé em Jo 9,7 com sua interpretação cristológica,

Betsaida, Gábbatha, Gólgotha. O vocabulário manifesta uma inserção do quarto

Evangelho na tradição Palestinense.

Mas o Evangelho de João foi escrito desde o princípio em grego, ainda

quando sua linguagem acuse um colorido semítico. Segundo Schnackenburg,192 a

idéia de Bonsirven é possível de ser aceita: João, filho de Zebedeu, meditando

sobre as palavras de Jesus - daí os aramaísmos no vocabulário - teria composto o

Evangelho num grego simples, ou também se poderia pensar, que um discípulo

seu, bem familiarizado com o judaísmo, que em sua juventude houvesse falado o

arameu e tivesse também conhecimento do hebreu e mais tarde se tornado um

judeu da diáspora, deu ao Evangelho o revestimento lingüístico. Porém,

conservando o vocabulário de seu mestre.

3.4. Crítica das formas

a - Gênero literário

A perícope do cego de nascença (Jo 9,1-12) como nós a conhecemos

apresenta-se na forma narrativa - cura de um cego na piscina de Siloé e de

diálogos: teológico entre Jesus e seus discípulos e sob a forma jurídica. As duas

partes são intimamente ligadas e formam uma unidade Joanina simples de

narração e discurso.193 Coloca-se, ao lado da cura do paralítico de Betsaida (Jo

5,1-47) e da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-44) como uma das três histórias de

milagres que, com suas amplificações, formam a maior parte ou quase a totalidade

de um capítulo do Evangelho de João. As longas narrativas com diálogos

constituem imponentes peças de arte, literárias e teológicas, cuja clareza reflete o

brilho do estilo do quarto evangelista.194

A perícope (Jo 9,1-12) é o relato de um milagre que envolve um lugar, fora

do Templo; uma circunstância, Jesus viu o cego; um tempo, era sábado conforme

nos é informado mais tarde na narrativa (Jo 9,14). Os personagens: Jesus e os 192 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan I, p. 132. 193 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 462. 194 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan I, p. 308.

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discípulos, Jesus e o cego, os vizinhos entre eles, os vizinhos e o cego. Todos

desempenham seus papéis respectivos, com interação entre eles, elementos

próprios de uma narrativa.

É possível distinguir, seguindo a crítica das formas o núcleo de uma

primitiva história de milagre dentro da complexa estrutura criada por João. A

história do milagre é claramente e convenientemente colocada no início do

capítulo (Jo 9,1-7) seguida da reação dos que constatam a cura. O relato do

milagre segue os três passos básicos, apresentados para o gênero literário de

milagres: 1) a apresentação do problema, o encontro de Jesus com o enfermo com

uma breve descrição da doença e de sua durabilidade; 2) o ato da cura, em geral

envolvendo uma palavra ou gesto de Jesus; 3) a demonstração da cura, com a

reação dos circunstantes. Observa-se em Jo 9,1-12, nesta última característica, um

modo diferente do que ocorre na maioria dos milagres, ou seja, o louvor e a

admiração.195 Na narração deste sinal, a reação das pessoas tem o objetivo de

afirmar a cura e de testemunhar em favor de Jesus.

Esse modelo completo de gênero literário está presente nos sete primeiros

versículos do capítulo 9° de João: 1) Jesus vê um homem, cego de nascença (Jo

9,1; 2) a iniciativa parte de Jesus que emprega gestos, cospe na terra, aplica barro

aos olhos do cego, (Jo 9,6) e uma ordem: “Vai lavar-te na piscina de Siloé”

(Jo,9,7), para curá-lo e 3) após obedecer, o cego passa a enxergar (Jo 9,7), segue-

se a reação dos vizinhos.196

Quando se detém com um olhar mais aprofundado sobre a perícope

constata-se que é possível isolar o núcleo primitivo do relato sem nenhum dano da

forma propriamente dita do milagre (Jo 9,1-7). Percebe-se que os detalhes da

forma de um milagre, não estão igualmente distribuídos ao longo dos vv. Jo 9,1-7,

mas se concentram apenas nos vv. Jo 9,1.6-7. Uma outra observação que se

relaciona bem com essa percepção da crítica da forma é que os vv. Jo 9,2-5

contêm um diálogo que não é típico de história de um milagre, mas sim

claramente marcado pelo vocabulário teológico de João. Aos discípulos que

conveniente e repentinamente reaparecem em cena, questionando sobre de quem é

a culpa do homem ter nascido assim e que emitem concepções errôneas, Jesus

responde mudando o foco da história da causa da cegueira para o seu objetivo

195 Cf. CHARPENTIER, Étienne. Dos Evangelhos ao Evangelho, p. 64. 196 Cf. WEGNER, Uwe. Metodologia do Novo Testamento, pp. 165-171.

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último no plano de Deus: “para que nele sejam manifestadas as obras de

Deus.”Após ter colocado o tema típico Joanino da revelação de Deus agindo nele,

Jesus aponta para a urgência de realizar as obras “enquanto é dia” enquanto durar

a sua missão no mundo, isto é, antes que a noite de sua paixão e morte ponha um

fim ao seu ministério (Jo 9,4). Tudo vai conduzindo para a grandiosa e verdadeira

natureza de Jesus, ecoando Jo 8,12: “enquanto estou no mundo sou a luz do

mundo” (Jo 9,5). Com grande habilidade o evangelista então utiliza uma oração

conectiva “Isto dizendo” para voltar à história básica da cura. Deste modo, a

linguagem, o estilo e o conteúdo teológico de Jo 9,2-5, tudo é perfeitamente

Joanino e pode ser tirado de Jo 9,1-7 sem prejudicar qualquer parte essencial da

história do milagre.

Por isso, é bem provável que os versículos Jo 9,1.6-7 representem o núcleo

primitivo da cura do cego de nascença.197 Pode ser que o diálogo teológico com os

discípulos queira representar uma conversa inicial com o cego, ou que a conclusão

original da história do milagre contivesse uma reação das pessoas carentes de luz

ou substituídas pelas dúvidas e perguntas dos vizinhos do cego em Jo 9,8-12. No

entanto, pode-se ter uma razoável certeza de que em Jo 9,1.6-7 “está o coração da

mais antiga versão disponível dessa história de milagre.” A cura do cego de

nascença, não é uma criação do evangelista. É certo que todo o capítulo 9°

constitui uma peça tão grande e complicada de arte literária e teológica que se

deve supor a existência de vários estágios de redação e tradição entre a primitiva

história do milagre apresentada em Jo 9,1.6-7 e o importante tratado de teologia

Joanina que é o capítulo 9°.198

A história original tem semelhanças com outras curas que circulavam na

tradição oral, por exemplo: Mc 8,22-26 e Mc 10,46-52, mas a dispersão entre os

motivos por diferentes histórias de diferentes correntes da tradição oral supõe que

Jo 9,1.6-7 não se baseia em nenhuma delas. Admite-se a possibilidade de ser uma

história independente escrita antes da composição do Evangelho.

Tudo o que segue não relata a história do milagre em si, mas do debate cada

vez mais animado sobre a realidade do milagre e a alegação de, ao curar, Jesus

violar o sábado. Este é provavelmente um acréscimo à história do milagre.

Funciona como um trampolim, para o desenvolvimento na controvérsia sobre

197 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l’Histoire, p. 94. 198 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l´Históire, pp. 90-98.

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quem é Jesus, aquele que cura, mas viola o sábado. Este assunto está impregnado

da teologia Joanina e faz parte da penosa separação entre a Igreja de João e a

Sinagoga Judaica.

O texto pode ser dividido em 4 momentos:

1. Introdução - (Jo 9,1);

2. O diálogo teológico de Jesus com os discípulos - (Jo 9,2-5);

3. Os gestos de Jesus, o mandato de ir se lavar e a cura - (Jo 9,6-7);

4. O diálogo dos vizinhos entre si e com o cego - (Jo 9,8-12).

Encontra-se, em (Jo 5,1-18) a narrativa sobre a cura de um paralítico. Esta

perícope tem, basicamente, a mesma forma da que relata a cura do cego de

nascença, apresentando os seguintes elementos:

1. Introdução - (Jo 5,5-6 cf. Jo 9,1).

2. Reação dos enfermos - (Jo 5,11 cf. Jo 9,25).

3. Eles não conhecem Jesus - (Jo 5,12 cf. Jo 9,11).

4. Jesus os reencontra em seguida - (Jo 5,14 cf. Jo 9,35).

5. Os dois miraculados denunciam inconscientemente Jesus aos Fariseus -

(Jo 5,15 cf. Jo 9,11).

6. Interrogatório sobre a cura em dia de sábado - (Jo 5,9 cf. Jo 9,14).199

As duas perícopes (Jo 5,1-18 e Jo 9,1-12), colocadas em paralelo,

evidenciam uma forma semelhante: durabilidade e gravidade da doença, iniciativa

de Jesus, cura, denúncia, com algumas diferenças: no caso do paralítico Jesus vê,

é sensível à ausência da vida, estabelece um diálogo e usa da palavra para realizar

a cura (Jo 5,7-8). Na cura do cego de nascença, Jesus de igual modo aproxima-se

do sofrimento do ser humano, onde não há a luz da vida, porém a cura se realiza

por gestos, acompanhados da Palavra expressa na ordem de ir se lavar. Com

gestos e Palavras Jesus liberta o homem de sua cegueira, capacitando-o,

recriando-o, elevando-o à dignidade humana, durante o longo percurso até à

piscina e no interrogatório. É interessante notar que os dois milagres se realizam

fora do Templo.200

Aquele que voltou vendo testemunha corajosa e coerentemente a favor

daquele do qual recebera a cura, até chegar a uma verdadeira confissão de fé, no

199 Cf. MEIER, John P. Um Judeu Marginal Repensando o Jesus Histórico, pp. 225-229. 200 Cf. BUSSCHE, Henri Van Den. Jean - Commentaire de l’Évangile Spirituel, p. 321.

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reencontro com Jesus (Jo 9,38). Isso mostra que fatos da fonte oral foram

passados para o escrito Joanino, dentro de um modelo ou forma de redação,

constituindo deste modo o gênero literário “relato de um milagre”.201

A perícope de Jo 9,1-12 mostra que a partir do encontro com Jesus,

encontra-se a vida. Percebe-se, portanto, um entrelaçamento progressivo entre a

luminosidade-dinamicidade, chegada da luz-vida com a presença de Jesus e o

colocar-se a caminho, o ver, o testemunho e a fé expressa através do ato de

adoração no reencontro com o recriador-doador da luz que é a vida.202

b - Delimitação e estrutura do texto

Tradicionalmente, a delimitação desta narrativa é indicada pela citação Jo

9,1-41. Entretanto, com base em observações sobre a continuidade e

descontinuidade da narrativa em relação ao seu entorno literário, proporemos a

seguinte delimitação.

A delimitação desta unidade maior constitui um desafio.203 Enquanto uma

série de motivos atesta o fato de que Jo 9,1 inaugura um novo assunto em relação

à passagem anterior, não há idêntica clareza quanto ao término.

O início da perícope é apontado de forma bastante clara pela mudança de

ambiente, iniciada em Jo 8,59: Jesus fugia de uma agressão no Templo de

Jerusalém e, ao passar, (Jo 9,1) encontra o cego, já não se está mais no Templo,

mas na porta, ou no caminho onde o cego ficava sentado pedindo esmolas (Jo

9,8). Observa-se aqui uma precisa relação e ao mesmo tempo ruptura com o texto

anterior expressa na conjunção coordenativa kai. e o verbo paragon. Estes

elementos indicam a mudança de lugar e cenário. Quer dizer, saindo do interior do 201 Cf. SCHNAKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Juan I, p. 236. O capítulo 9° de João expressa em primeiro lugar uma intenção teológica: Jesus é a luz do mundo que veio para libertar os homens prisioneiros das trevas. Desloca-se assim a atenção para os versículos Jo 9,2-5 como o centro de toda a perícope. Esta colocação vem de encontro com outro autor: Méier diz ser impossível um único exemplo de cura de alguém especificamente dado como cego de nascença. Além do mais um cego de nascença proporciona um conveniente símbolo de uma humanidade nascida em um mundo de escuridão espiritual. “Levando em conta estas tendências teológicas, é quase impossível ter como certo a historicidade do detalhe do homem ser cego de nascença”. 202 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Criação”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 48-49. 203 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade pp. 22-24. O “marco zero” de um texto com tantas marcas redacionais como a cura do cego de nascença (cf. crítica literária, item 2.3) não pode ser confundido simplesmente com sua forma mais primitiva. Nesta dissertação, propomos que seja considerado o texto em sua formulação mais completa com suas sub-unidades cf. alguns autores já citados, porém com uma diferença: considera-se o texto Jo 10,1-18 uma inclusão e Jo 10,19-21 como fazendo parte da grande unidade que é o capítulo 9° de João.

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Templo, onde se havia estabelecido o confronto com os “judeus”, colocado no

último v. do capítulo 8° e passando pela porta, arredores do Templo, o olhar de

Jesus se volta para um cego de nascença. A ruptura é clara também quanto ao

assunto: a discussão da perícope anterior, sobre a filiação divina de Jesus,

desaparece completamente. Desaparecem também os “judeus” que haviam nele

crido (Jo 8,31).

Aparece o cego (Jo 9,1), e os discípulos (Jo 9,2-5) no diálogo teológico com

Jesus. Esta parte da perícope, conforme sugere Méier,204 pode ser isolada do

milagre em si, mas parece que do modo como ela foi inserida no contexto da cura

está indicando o sentido simbólico. Observa-se aqui que a coerência deriva do

tema central do texto “Jesus a luz do mundo”, em relação à cegueira e às obras do

Pai realizadas por Jesus. A conjunção aditiva coordenativa kai. no início do v. 2 é

também um fator de coesão entre as partes. Nota-se também, mais adiante, a

presença dos vizinhos (Jo 9,8), os fariseus (Jo 9,13), os pais daquele que passou a

ver (Jo 9,18). O diálogo de controvérsia do capítulo anterior dá lugar a uma

narrativa dramática. Porém o mais importante fator de coesão do texto é a

referência contínua ao ex-cego. Trata-se de um personagem inédito em todo o

Evangelho e central em todo o episódio.

Tais indícios nos levam ao esclarecimento de onde começa a perícope. Por

outro lado, nos levam a suspeitar da delimitação final, normalmente colocada em

Jo 9,41. Embora não haja nenhuma notícia de mudanças de natureza topográfica

ou de ordem cronológica, nem a inclusão de novos personagens,205 parece haver

uma mudança de gênero literário desenvolvido até aqui. Desaparecem os traços

literários de Jo 9,1-41 passa-se a falar da autoridade de Jesus e de sua liderança

em relação aos discípulos através da alegoria do bom Pastor.

Entretanto na seqüência encontra-se o fragmento narrativo de Jo 10,19-21.

A primeira evidência é a menção a abrir os olhos cegos (Jo 10,21). Um assunto

que havia sido abandonado por 18 versículos simplesmente volta à tona. A

decisão redacional de interromper o episódio do cego de nascença para a inclusão

de Jo 10,1-18 pode estar vinculada tanto ao objetivo de explicitar o tema da

204 Cf. MEIER, John P. Um Judeu Marginal: Repensando o Jesus Histórico, p. 226. 205 Cf. DODD, Charles A. Interpretação do Quarto Evangelho, p. 456. Alguns autores, como já foi citado acima, dizem que a primeira ovelha do rebanho é o cego de nascença a quem Jesus devolve a dignidade da vida - portanto ele seria um personagem implícito nesta perícope.

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perícope interrompida, como a de justificar mais plenamente a violenta reação dos

“judeus” em Jo 10,20.

O discurso de Jo 10,1-18 parece ser, portanto, um acréscimo posterior,

possivelmente destinado a explicitar a discussão sobre a autoridade religiosa

implícito na cura do cego de nascença. Este acréscimo revela uma intuição que

não deixa de reforçar a mensagem implícita da perícope.206 Quanto a Jo 10,22,

indica mudanças de ordem topográfica: da rua para o Templo, litúrgica: festa da

dedicação do Templo, e de gênero literário: diálogo de controvérsia.

Contando com a inclusão posterior do capítulo Jo 10,1-18, comumente

colocada por autores207 como fazendo parte do episódio do cego de nascença, a

grande unidade se divide em dois grandes blocos de sub-unidades, compondo

assim, a sua estrutura:208

I- a narrativa do cego propriamente dita (Jo 9,1-41).

1 - o sinal como se apresenta - o diálogo teológico com os discípulos, e a

cura do cego (Jo 9,1-7);

2 - a reação dos vizinhos (Jo 9,8-12);

3 - primeiro confronto com as autoridades (Jo 9,13-17);

4 - segundo confronto com as autoridades (Jo 9,18-23);

5 - o terceiro confronto com as autoridades (Jo 9,24-34);

6 - o reencontro de Jesus com o cego e a profissão de fé (Jo 9,35-38);

7 - os cegos que não querem ver e recusam a luz, as autoridades (Jo 9,39-41);

II- um epílogo, contendo um monólogo de Jesus, “cenas do pastoreio” (Jo

10,1-21).

1 - o tema da divisão em torno de Jesus (Jo 10,1-18);

2 - retomada do início (Jo 10,19-21 cf. Jo 9,1-7).209

206 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e fidelidade, p. 222. 207 Citamos como exemplo DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 449-459; LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho de João II, pp. 223-267 e KONINGS, Johan. Evangelho segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 292-210. 208 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 192-196. 209 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 192-208.

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A perícope que me proponho trabalhar encontra-se no começo do capítulo,

já bem demarcada acima, no seu início Jo 9,1, com sua delimitação final bem

expressa pela mudança de cenário e da entrada de novos personagens na narrativa

Jo 9,13. Abrange duas sub-unidades, mas também parece estar relacionada com o

todo, pelo fato de fazer parte da mesma grande unidade.

c - Crítica da tradição

O Antigo Testamento narra várias curas de cegos. Nos casos de cegueira

temporária podia realizar-se uma cura miraculosa. Assim aconteceu com os

habitantes de Sodoma, quando tentaram abusar dos dois anjos que se hospedavam

com Ló: feridos temporariamente de cegueira não conseguiram encontrar a entrada

da casa (Gn 19,11). Em (2Rs 6,18-22), encontra-se o relato da tentativa do rei de

Aram de capturar o profeta Eliseu. O profeta então orou ao Senhor e os soldados

Sírios foram feridos de cegueira parcial e conduzidos a Samaria, capital de Israel.

Lá, também a pedido de Eliseu, eles voltaram a ver.

Em se tratando da cura da cegueira permanente, encontra-se em Tobias,210 o

relato da cura de Tobit, pai de Tobias. O gesto do sopro e o fel do peixe foram

empregados para curar os olhos deste homem. Observa-se, no entanto, que para o

povo do Antigo Testamento não havia muita esperança para quem era cego, sendo

que a cura para a cegueira era um dos milagres esperados para os últimos dias. O

profeta Isaías proclamou que “Naquele dia, os surdos ouvirão o que se lê, e os

olhos dos cegos, livres da escuridão das trevas, tornarão a ver” (Is 29,18), e “Eis

que o vosso Deus vem para vingar-vos, trazendo a recompensa divina. Ele vem

para salvar-vos. Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se

desobstruirão” (Is 35,4-5).211

No oráculo de (Is 42,18-25), Iahweh se manifesta desejando curar também os

cegos espirituais. O povo é prisioneiro da escuridão, na qual não consegue

enxergar as maravilhas realizadas por Deus e conseqüentemente se afasta de seus

caminhos. Israel é apresentado como sofrendo de cegueira, não podendo, com isso,

ver o sentido da história - o desígnio de Deus com o exílio era o de fazer seu povo

210 Cf. Tobias 6,5.9;11,12ss. 211 Cf. SCHOKEL, Alonso L. & SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 254.

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“voltar-se com fé e confiança para o futuro anunciado por Deus: agindo assim, o

povo recobrará sua vista”.212

O cumprimento das promessas de cura da cegueira no Antigo Testamento,

tanto física quanto espiritual, aparece no ministério de Jesus de Nazaré. Na

resposta dada aos enviados de João Batista, indagando sobre sua pessoa e obras,

Jesus coloca-se como o cumpridor das promessas vétero-testamentárias: “Ide

contar a João o que estais vendo e ouvindo: os cegos recuperam a vista, os coxos

andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os

pobres são evangelizados” (Mt 11,4-5). Todavia, é preciso distinguir entre os

Sinóticos e o Evangelho de João no que se refere à palavra fé, ausente neste

Evangelho. Em contrapartida o verbo “crer” é mencionado em torno de cem vezes

mais ou menos. A verdadeira fé para João é alguma coisa dinâmica e ativa.

Constata-se esta dinamicidade na cura do enfermo de Betsaida (Jo 5,1-18) e na

cura do cego de nascença (Jo 9,1-12). Para João, Jesus não é um fazedor de

milagres e sim realiza sinais. Estes têm o objetivo de uma adesão a Jesus e enfatiza

o aspecto teológico simbólico, de uma verdade espiritual. Jesus prefere a fé sem os

“sinais” mas admite a utilidade das “obras” para aqueles dos quais a fé é mais

fraca.213

Contrapondo-se com a regra de Qumran214 e a tradição judaica, no (Novo

Testamento), Jesus acolhia cegos em sua comunhão, dando-lhes deste modo,

participação ativa no Reino de Deus. Para um homem que o convidara a uma

refeição, Jesus recomendou-lhe que convidasse os pobres e os cegos: “...quando

deres uma festa, chama pobres, estropiados, coxos, cegos; feliz serás, então, porque

eles não têm com que te retribuir. Serás, porém, recompensado na ressurreição dos

justos” (Lc 14,13-14).

Constata-se que curas de cegos já é assunto predileto na tradição sobre Jesus

de Nazaré.215 Ele teria curado muitos cegos.216 Tais curas eram sinais messiânicos

(Mt 11,4.5) reportando a Is 29,18; Is 35,5 e também uma crítica à cegueira do

judaísmo em relação à aceitação da pessoa de Jesus Jo 9,39-41; Mt 12,22-28; Mt

15,14.

212 Cf. SCHOKEL, Alonso L. & SICRE DIAZ, J. L. Profetas I, p. 298. 213 Cf. HUNTER, A. M. Saint Jean Témoin du Jésus de l`Histoire, pp. 87-98. 214 Cf. VIELHAUER, Philipp. História da Literatura Cristã Primitiva, p. 443. 215 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según Jean II, p. 120. 216 Cf. Mt 9, 27-31; 12,22; 15,30; 21,14; - Mc 8,22,25; 10,46-52; - Lc 7,21.

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Todo o ministério de Jesus, incluindo a cura dos cegos, apontava para o fato

de que o Messias havia chegado para Israel. Já no início de sua vida pública, lendo

o livro do profeta Isaías, na Sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-19), Jesus mencionou

que recebera a unção do Espírito para o cumprimento de sua missão, sendo que a

“recuperação da vista aos cegos” integra o seu programa de vida (Lc 4,18). O fato

dos milagres “shmei,a” (sinais) em João serem menos numerosos, está relacionado

a uma escolha do evangelista que segundo o autor teria feito muitos outros sinais.

Estes foram escolhidos, para o fortalecimento de uma fé salutar, entre os leitores

(Jo 21,2).

A cura do cego de nascença (Jo 9,1-12) é um dos milagres realizados por

Jesus no “Livro dos Sinais” do Evangelho de João, dentre os sete mencionados

pelo autor, representando as obras de Cristo em sua totalidade, são “shmei,a”

(sinais) de sua obra acabada. Ela está, portanto, entrelaçada aos outros sinais.

Certamente ao entrar no debate histórico da construção da obra, pode-se

provavelmente argumentar que o capítulo 9° de João, que tem por si mesmo um

caráter distinto, existiu a princípio como unidade separada, provavelmente deve

ter sido tirado de uma história que incluía discursos e diálogos de controvérsia que

fazem parte dos capítulos 7°-8° de João.217

Não é casual que o tema geral da vida eterna218 comece com o nascimento

de Jesus (Jo 3,3-8) e termine com a vitória da vida sobre a morte e a

transformação da própria morte na glória, isto é, a exaltação do Filho de Deus

no sétimo sinal.219 Esta colocação faz eco no texto, que originalmente era a

conclusão de todo o Evangelho. “Jesus fez ainda, diante de seus discípulos,

muitos outros sinais, que não se acham escritos neste livro. Esses, porém, foram

escritos para crerdes que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo,

tenhais vida em seu nome” (Jo 20,30-31).

217 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 60-61. 218 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 56-57. “João evita falar em ‘reino de Deus’. Substitui praticamente este conceito por ‘vida eterna’: a vida que vivemos na opção de fé assumida diante da Palavra e da prática de Jesus é o exercício da vontade de Deus, desde já - ou seja, aquilo que o ‘reinado de Deus’, profundamente, significa”. 219 Há alguns autores que entram em contradição no que se refere ao “sétimo sinal” - por exemplo: DODD, Charles A. diz ser a “morte de Jesus na cruz” - outros o atribuem à ressurreição de Lázaro, quando contam, separadamente o episódio da multiplicação dos pães e a passagem sobre o mar. Esta constatação alerta para o simbolismo, característica de João presente também no número sete. Como já se disse o Evangelho todo é simbólico.

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O percurso feito no terceiro capítulo possibilitou uma melhor compreensão

e acesso ao texto tal como ele chegou até nós. Ao mesmo tempo nos permitirá um

ensaio exegético, sustentado por uma análise em que se esforça, tanto quanto

possível, para a aproximação um pouco mais exata do texto, como ele se

apresenta, em sua forma atual. A exegese é o próximo passo a ser dado.

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4 A pedagogia da luz como fonte de vida na cura do ce go .

Através de uma modesta exegese do texto, se procurará demonstrar, que

Jesus, ao dar a vista ao cego de nascença, de igual modo, também o ajuda na

conquista de sua dignidade humana, dando-lhe a vida. Pois, a partir da ação

recriadora, Jesus o integra na comunidade Joanina, depois de ser excluído da

Sinagoga. Percebe-se que a atuação de Jesus é ancorada no envio do Filho pelo

Pai,220 cujo projeto salvífico, consiste em que o ser humano tenha vida e

liberdade.

4.1. O enviado do Pai

Avposte,llw, no sentido fundamental de enviar é, na literatura grega e na

linguagem falada tanto do tempo clássico, como do helenismo, abundantemente

empregado para falar do envio de pessoas, e de coisas. No Novo Testamento o

termo começa a se tornar um termo teológico, com o sentido de enviar para o

serviço do Reino, principalmente, atribui-se o termo a Jesus, como o enviado do

Pai.221 A autoridade de Jesus é fundada em Deus.222

Constata-se, no entanto, que o quarto Evangelho não menciona os

apóstolos.223 O termo aparece uma única vez (Jo 13,16), com o sentido comum

(não técnico) de enviado. A figura mais destacada no Evangelho é a do discípulo,

sobretudo na expressão “o discípulo amado”. O autor faz um contraste contínuo,

no contexto histórico posterior ao ano 70, entre o discípulo amado, como tipo da

220 Cf. LAGRANGE, J. M. Évangile selon Marc, p. 388. “A palavra Pai, com a qual Jesus sempre se dirigia a Deus ou para falar a respeito de Deus, conforme reportam muitas passagens do Novo Testamento, de modo especial nos Evangelhos, é sempre path,r com exceção feita em Mc 14,36, Rm 8,15 e Gl 4,6, onde a expressão é um composto de duas palavras com o mesmo sentido, uma aramaica e outra grega: abba o. path,r. João o utiliza nove vezes. Sempre apresenta Jesus em diálogo com o Pai. Esta realidade, por si mesma denota o sentido de intimidade entre Jesus e Deus, a quem ele chamava de Pai, independentemente de os Evangelhos não reportarem à palavra aramaica abba”. 221 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 191. Jo 3,17.34; 5,26.38; 6,29.57; 7,29; 8,42; 9,7; 10,36; 11,42; 17,3.8.18.21.23.25; 20,21. 222 Cf. BROWN, Raymond E. Introdução ao Novo Testamento, p. 173. 223 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 11.

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Igreja do quarto Evangelho, e Pedro, como tipo das Igrejas apostólicas. O

discípulo amado certamente foi uma pessoa real e histórica, discípulo de Jesus,

testemunha de sua vida, morte e ressurreição.224 Provavelmente é o autor do

quarto Evangelho, embora seja possível que sua obra tenha sido continuada e

completada pela comunidade. O discípulo amado não é o apóstolo João, irmão de

Tiago, filho de Zebedeu. A identidade do discípulo amado é ser discípulo. A sua

honra ou título é ser discípulo e não apóstolo. O discípulo amado, como autor do

Evangelho conservou cuidadosamente seu nome no anonimato,225 para fazer

ressaltar ainda mais sua condição de discípulo. Assim como a mãe de Jesus nunca

é mencionada pelo nome, para fazer ressaltar sua dignidade de mulher e de

discípula de Jesus (Jo 2,1-11). Posteriormente a tradição eclesial identificou o

discípulo amado com o apóstolo João, para dar ao Evangelho uma autoria

apostólica e assim resgatá-lo das mãos dos hereges gnósticos que tinham se

apropriado dele. Mas o Evangelho mesmo nunca identifica o discípulo amado

nem explícita nem implicitamente com João, o apóstolo.226

Deus no Antigo Testamento se revela como o criador do ser humano que lhe

dá gratuitamente a vida e o faz à sua mlc como também ao modo de um artesão

que modela um vaso de barro (Gn 2,7). Em (Gn 1,4b-7) trata-se muito mais da

criação através de um trabalho do que mediante a Palavra. A vida é, de certo

modo, uma dádiva continuamente renovada. Observa-se, no entanto, num

primeiro ato criador o aparecimento da luz.227 A primeira obra criadora de Deus

consiste em expulsar as trevas, o caos e o mal, introduzindo a luz de sua própria

glória. Ao longo da história de Israel Deus se apresenta como um pedagogo, toma

a iniciativa, é criador e salvador ao mesmo tempo, conduz e ensina através do

deserto, que o desígnio criador-salvífico consiste em ter liberdade e vida. Vem ao

encontro do ser humano e se manifesta de um modo especial, onde a vida está

ausente, prometendo-lhe um salvador.228

224 Cf. LAGRANGE, J. M. Évangile selon Marc, p. 388. 225 Cf. Jo 1,35-42 aqui aparecem dois discípulos que ouvem João Batista e seguem a Jesus: um é André e o outro permanece no anonimato. 226 Cf. BROWN, Raymond R. A Comunidade do Discípulo Amado, pp. 31-34. 227 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Lucas em João, p. 47. “Conforme nos relata o livro do Gênesis, o primeiro dia foi a criação da Luz, que se distingue dos luzeiros Gn 1,18, obra do quarto dia. Em Jo 1,4, na Luz estava a Vida dos Homens. No versículo seguinte Jo 1,5, ele acrescenta que a luz brilha nas trevas, mas esta não as acolhem”. 228 Cf. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, pp. 195-198.

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Jesus, no prólogo do Evangelho de João, é o enviado, a revelação do Pai,

ungido pelo Espírito, mas revestido de bondade, amor e compaixão. Aqui se dá o

início das obras. Não há um texto que as antecede. “Há, sim, um pré-texto que

seria a comunidade Joanina necessitada de entender melhor o Messias como a

manifestação concreta do Pai. João faz uma caminhada retroativa até o a[rch,,

situando este início junto do Pai”.229 O cumprimento da promessa feita aos pais se

dá, deste modo, no Novo Testamento onde a pregação de João consiste na

mensagem de que Deus amou o mundo de tal maneira que enviou o seu Filho

“unigênito”, não para julgá-lo, e sim para salvá-lo (Jo 3,16). O envio do Filho é o

ato de amor de Deus. O amor de Deus por nós se manifestou nisto: Deus enviou o

seu Filho unigênito ao mundo para que vivêssemos por meio dele. O amor de

Deus aparece no envio.230

Assim, no seu infinito amor pelo ser humano, Deus se revela na história do

povo de Israel. Após ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas,

Deus “ultimamente nestes dias, falou-nos pelo Filho” (Hb 1,1-2). “De fato, Deus

enviou o seu Filho, o Verbo eterno que ilumina todos os homens, para que

habitasse entre os homens e lhes mostrasse o modo de ser de Deus (Jo 1,1-18)”.

Jesus Cristo, portanto, Verbo feito carne, enviado como “homem aos homens”,

aquele que veio morar entre nós, fala do que ouviu do Pai (Jo 3,34) e consuma a

obra salvífica que o Pai lhe confiou em toda a sua atividade terrena, manifestada

por meio de Palavras, gestos e ações libertadoras. Esta é a razão por que Ele, ao

qual quem vê, vê também o Pai (Jo 14,9), por sua presença atuante em favor da

vida e manifestação de Si mesmo, e especialmente por sua morte e ressurreição

dentre os mortos, finalmente enviado o Espírito da verdade, aperfeiçoa e completa

a revelação e a confirma com o testemunho divino e com a certeza de que Deus

está conosco para libertar-nos das trevas do pecado e da morte e para ressuscitar-

nos para a vida eterna.231

Observa-se no início do Evangelho, que o prólogo orienta os leitores de um

modo bem próprio. Primeiro, suas palavras iniciais: “No princípio era a Palavra”

situa a história de Jesus na eternidade, antes de a Palavra se fazer carne. Antes da

criação, a Palavra já estava com Deus. O narrador explica que a Palavra era

229 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Lucas em João, p. 127. 230 Cf. BULTMANN, R. Teologia do Novo Testamento, pp. 434-440. 231 Cf. DEI VERBUM. Constituição Dogmática, pp. 122-123.

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Deus.232 Todas as coisas foram feitas pela Palavra e a Palavra era vida e luz.

Portanto, logo no início os leitores já sabem o segredo mais profundo da

identidade de Jesus e não devem surpreender-se - como acontece com os

personagens da narrativa (Jo 9,1-12) - quando Jesus afirma que revela o que ouviu

e viu na presença de Deus.233 Nem ficarão escandalizados quando ele disser que

ele é a vida e a luz do mundo. Segundo, o prólogo identifica João Batista como

testemunha de Jesus (Jo 1,6-8.15). Além de preparar para o testemunho, estes

versículos preanunciam um tema que se repetirá através do Evangelho: o

testemunho de Jesus deve levar à fé de que Jesus provém de Deus. Enquanto o

mundo condena a si próprio ao não aceitar este testemunho, os que crerem serão

iluminados por Jesus, a luz do mundo.234

Em Jo 9,1-12 encontra-se o episódio do cego de nascença, onde Jesus se

manifesta como luz do mundo. O relato do milagre está intimamente ligado ao

belíssimo relato do proêmio a todo Evangelho que também apresenta Jesus como

luz do mundo, o prólogo (Jo 1,1-18): “O Lo,goj235 se fez carne e nós vimos a sua

glória” (Jo 1,14). A intenção de (Jo 1,19-51), que trata adequadamente o tema do

testemunho, poderia corresponder aos primeiros versículos de Marcos, que

enunciam o tema do cumprimento da profecia. E assim aconteceu de fato. O

Lo,goj é a Palavra de Deus, pela qual os céus foram formados, que veio a Israel

pelos profetas, foi rejeitada pelo povo em geral, mas encontrou aceitação entre

um pequeno resto fiel, ao qual, pelo Filho, ele deu a condição de filhos de Deus,

ou seja, a dignidade humana, a Vida. A Palavra não somente se realizou, mas foi

cumprida num sentido mais profundo. A própria Palavra que procede da boca de

232 Cf. MATERA, Frank J. Cristologia Narrativa do Novo Testamento, p. 323. “O prólogo identifica claramente a Palavra como Deus - porém não chama a Palavra de ov Qeo.j, preservando assim a distinção entre Deus, que é o Pai, e a Palavra que é o Filho”. 233 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João, p. 238. “Aqui se torna evidente um dos temas essenciais de João, o da origem de Jesus no confronto com os fariseus, o espantoso para o miraculado, não é mais o milagre, mas o fato de que as autoridades não saibam de onde vem Jesus. A comunidade Joanina, no entanto, sabe que Jesus é de origem divina”. Jo 7,27; 8,14; 9,29; 19,9. 234 Cf. MATERA, Frank J. Cristologia Narrativa do Novo Testamento, pp. 222-223. 235 Cf. BOISMARD, M. E. Le Nouveau Testament, p. 75. “O prólogo de origem Sapiencial nos coloca na trilha de um hino judaico-helenístico. Pode-se encontrar paralelismos desse Lo,goj no Antigo Testamento em correspondência com o ‘dabar’ judaico e a tradição filosófica helenística, personificada pelo autor da Sabedoria e por Filon”.

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Deus e não retorna a ela vazia,236 encontrou uma morada concreta no Filho, o

enviado do Pai e trabalhou criando como no começo.237

O modo de ser de Jesus nos Evangelhos está em continuidade com o Deus

dos pais. “Eu e o Pai somos um”. No quarto Evangelho, o envio do Filho pelo Pai

retorna como um estribilho a cada um dos discursos Jo 3,17; Jo 10,36; Jo 17,18.

Da mesma forma, o único desejo de Jesus é fazer a vontade d’Aquele que o

enviou (Jo 4,34; Jo 6,38), realizar as suas obras (Jo 9,4), dizer o que dele ouviu

(Jo 8,26). Há entre eles uma tal unidade (Jo 6,57; Jo 8,16.29), que a atitude de

vida adotada por Jesus é uma tomada de posição para com o próprio Deus (Jo

5,23; Jo 12,44; Jo 15,21-24). Quanto à Paixão, consumação de sua obra, Jesus vê

nela a sua volta para Aquele que o enviou (Jo 7,33). A fé que ele exige dos

homens é uma fé na sua missão (Jo 11,42). Isto implica ao mesmo tempo a fé no

Filho como enviado (Jo 6,29) e a fé no Pai que O envia (Jo 5,24).238 Porém, os

novos tempos ultrapassam o que até então era considerado conteúdo da Palavra:

“graça (hesed) e verdade (‘emet)”. A “ Torah” não trouxe a graça e a verdade no

pleno sentido, mas Cristo sim. Ela não é mais que sombra da verdadeira Palavra.

A Palavra é também a sabedoria divina. O Evangelho escatológico declarava que

o que tinha de vir já veio: “As coisas antigas passaram: eis que novas coisas

surgiram”(Ap 21,1).

O prólogo está baseado na concepção filosófica de duas ordens de seres,

distintas não por sucessão de tempo, mas pela maior ou menor medida de

realidade que possuem. Existe, portanto, a ordem da realidade, pura, transcendente

e eterna que é o próprio pensamento de Deus e existe a ordem empírica que é real,

só enquanto exprime a ordem eterna.239 O mundo em vários níveis - a criação

inferior, a raça humana, a humanidade espiritualmente iluminada - demonstra uma

crescente penetração da ordem inferior pela superior, um crescente domínio da luz

sobre as trevas.240 João adota a linguagem filosófica para apresentar a idéia do

Lo,goj como o ingresso apropriado para os interlecutores do tempo, a fim de os

levar ao objetivo central do Evangelho, e através da qual ele poderia conduzi-los à

atualidade histórica de sua narração, enraizada na tradição judaica. A descida do

236 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, p. 20. 237 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p. 36. 238 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 598-602. 239 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 386. 240 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 383-388.

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Lo,goj à esfera inferior, trouxe vida e luz para aqueles que o acolheram. Ambos os

conceitos aparecem como que um fio condutor de todo o Evangelho de João,

sobretudo no chamado Livro dos Sinais (Jo 2-12), e tendo na conclusão do

Evangelho uma ênfase especial “... e para que, crendo, tenhais a vida em seu

nome” (Jo 20,31). O símbolo da luz entrelaçado ao conceito de vida aparece

também em (Jo 8,12) e na perícope a ser analisada nesta dissertação (Jo 9,5).241

Aqui gestos e palavras se juntam na ação recriadora do pedagogo Jesus, o enviado

do Pai, em favor do cego de nascença e nos reporta ao modo de ser de Deus, no

Antigo e Novo Testamentos: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em

abundância” (Jo 10,10).

4.2.

Jesus, o mestre no caminho

Como o enviado do Pai, o Filho de Deus no mundo é o caminho. Sua

doutrina é a que ele recebeu do Pai. Esta é a universidade na qual ele estudou.242

Caminhando, indo e vindo, sempre na busca do encontro com os mais pobres,

privados da dignidade da vida é o seu modo de ser nos Evangelhos Lc 13,22; Lc

17,11; Jo 9,35. No quarto Evangelho a perspectiva do pobre assume

características diferentes da tradição sinótica. O pobre não é só o ecomicamente

pobre, mas também o enfermo, o desprezado, o humilhado, o marginalizado, o

excluído. Estes, aos quais Jesus se dirige são também colocados nos Evangelhos

Sinóticos, porém o pobre no quarto Evangelho não tem o peso social e teológico

que têm os outros textos no Novo Testamento como, por exemplo, em Mt 25. O

termo aparece quatro vezes 243 e a frase importante está em (Jo 12,8): “Pois

sempre tendes pobres convosco, mas a mim nem sempre tendes”. A frase é

tomada da tradição (Mt 26,11; Mc 14,7).244 Quase sempre ela é mal interpretada,

no sentido de que sempre haverá pobres e que, enfim, é mais importante ocupar-se

com Jesus do que com os pobres.245 Em primeiro lugar observa-se que aqui não se

afirma que sempre haverá pobres. Todos os verbos (no texto grego) estão no 241 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 385. 242 Cf. OPORTO, Santiago Guijarro & GARCIA Miguel Salvador. Comentário ao Novo Testamento, p. 288. 243 Cf. Jo 12,5; Jo 12,6; Jo 12,8; Jo 13,39. 244 Cf. OPORTO, Santiago Guijarro & GARCIA, Miguel Salvador. Comentário ao Novo Testamento, p. 289. 245 Cf. KONINGS, Johan. O Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 149-161.

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presente. O sentido é: vocês estão o tempo todo (habitualmente) com os pobres.

Além disso, no texto não se opõe Jesus aos pobres. Esta afirmação iria contra toda

a tradição evangélica (Mt 25), mas o contraste é entre a permanência habitual dos

discípulos junto aos pobres e o kairo,j, momento único e irrepetível da presença

de Jesus entre eles: não tendes a mim como de costume.246 O quarto Evangelho

usa peculiarmente para enfermidade o termo grego avsqe,vneia e para o enfermo

avsqe,vvneij, que expressa fraqueza, tanto social quanto corporal. Em Jo 5,1-9 Jesus

sobe a Jerusalém para uma festa dos “judeus” e se dirige diretamente à piscina de

Betsaida, em cujos pórticos “estavam deitados pelo chão numerosos doentes,

cegos, coxos e paralíticos”. Logo se fixa no que era o mais pobre entre todos, pois

há 38 anos era doente e não tinha quem o ajudasse. Jesus começa sua viagem a

Jerusalém com uma opção pelos pobres.

No texto em análise do capítulo 9° de João, Jesus também cura o cego de

nascença, que é mendigo (Jo 9,8) e considerado um pecador (Jo 9,2.34). Por causa

de sua cura e seu testemunho será injuriado e humilhado (Jo 9,28) e depois

expulso da Sinagoga. Sabe-se que a história deste cego representa a história da

comunidade do discípulo amado. A situação do cego pobre e excluído é também a

situação de uma comunidade pobre e excluída. Em (Jo 6,2) também se diz: “uma

grande multidão o seguia, porque tinha visto os sinais que ele realizava nos

doentes...” O povo seguia Jesus por causa do seu compromisso com os pobres.

Também a comunidade é crível pelos sinais que realiza entre os enfermos, os

pobres, os desprezados.247 Assim, o olhar de Jesus se dirige ao pobre, ou seja, ao

cego de nascença. E é a partir do olhar de Jesus, que este homem vai gradativa e

inteligentemente chegando ao verdadeiro conhecimento do Filho de Deus, torna-

se discípulo248 no caminho e por três vezes confessa humildemente sua ignorância

(Jo 9,12.25.36). Justamente, após Jesus apresentar o que o Pai lhe mandou, e o seu

246 Cf. RICHARD, Pablo. Chaves para uma Re-leitura histórica e libertadora in: RIBLA, A Tradição do Discípulo Amado, p. 8. “Na Tradição bíblica os enfermos eram sempre marginalizados, fracos, carentes, considerados pecadores, normalmente pobres e mendigos. No quarto Evangelho a perspectiva do pobre é diferente da tradição sinótica, mas nem por isso menos real e profunda”. 247Cf. RICHARD, Pablo. Chaves para uma Re-Leitura histórica e Libertadora in: RIBLA, A Tradição do Discípulo Amado, pp. 7-9. 248 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 77-82. “Comentando a vocação dos primeiros discípulos em Jo 1,35-52 - o autor vai dizer que o seguimento de Jesus no Evangelho de João é emoldurado e dinamizado pelo olhar: Jesus voltou-se para trás e, ao ver que o seguiam, perguntou-lhes: ‘Que estais procurando?’ Eles responderam: ‘Rabbi,’ nome que traduzido significa Mestre onde moras”?

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mandamento significa vida definitiva, estabelece-se um conflito com as

autoridades. Na clandestinidade, marcada pelo fim do episódio anterior, ao sair do

Templo, - centro do ensino oficial que com a Lei mantém o povo submetido a

ponto de morrer - e caminhando, ele vê a ausência de “vida” no cego de nascença,

sentado à porta. Provavelmente o cego estava sentado à porta do Templo, pois, os

cegos, costumavam ficar sentados pedindo esmolas, à semelhança do cego de

Jericó, que estava sentado à beira do caminho.249 Os próprios vizinhos que o

conheciam não o chamam pelo nome, mas por “aquele que estava sentado

pedindo”.250

O homem a quem Jesus dirige seu olhar não tem nome,251 o que demonstra a

exclusão em que vivia, pois o nome está relacionado com a essência da pessoa.252

Era cego e mendigo, estava sentado à porta do Templo, provavelmente pedindo

esmolas... Passando Jesus viu o cego e foi ao encontro de sua debilidade. Jesus

tomou a iniciativa, confirmando no seu modo de ser nos Evangelhos, a

continuidade com o modo de ser de Deus no Antigo Testamento, em cujas ações

se expressa a preferência pelos pobres e perseguidos, constituindo o centro das

Escrituras.253 Este fio condutor, ou seja, o amor preferencial pelos pobres perpassa

os escritos bíblicos do início ao fim, e é ao mesmo tempo indicador da presença

constante de Deus, junto aos necessitados de vida e liberdade. O livro do Êxodo

mostra, no episódio da sarça ardente, a Palavra sendo dirigida a Moisés: “Eu vi a

miséria do meu povo que está no Egito” Ex 3,7.254 Deste modo é também a partir

do olhar de Deus para o povo oprimido, sob o domínio dos Egípcios, que Moisés

é enviado para liderar a caminhada deste mesmo povo pelo deserto, a fim de

conduzi-lo à terra da libertação. O olhar do enviado do Pai para o cego de

nascença através do Filho, foi a fonte iluminadora, donde brotou uma nova vida,

a luz da vida,255 o começo da transformação. Assim como Deus ensinou o povo

através da travessia pelo deserto, em busca da libertação, também o cego de

249 Cf. Mc 10,46 - O cego estava sentado à beira do caminho mendigando. 250 Cf. CÁSSIO, Murilo dias da Silva. Metodologia de Exegese Bíblica, pp. 259. Trata-se do contexto cultural e visa fazer uma ponte entre dois universos: o do autor e o do leitor. O redator fornece esclarecimentos a respeito de costumes. Mc 7,2b-4. 251 Cf. BORN, A. “nome” Dicionário Enciclopédico da Bíblia, pp. 1046-1050. 252 Cf. VAUX, Roland de. Les Institutions de L’ancien Testament, pp. 74-78. 253 Cf. TRACY, David. Êxodo: Reflexão Teológica in: Conciliun, Êxodo: Paradigma Sempre Atual, pp 130-131. 254 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João I, p. 311. 255 Cf. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, pp. 960-963.

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nascença, do qual nos fala o Evangelho, percorreu um longo caminho, no processo

de libertação da cegueira,256 no qual se tornou um aprendiz do Mestre.257 Jesus

pediu a colaboração humana. O ver não foi passivo: após a aplicação do barro em

seus olhos, ele foi258 à piscina de Siloé, o Enviado, a fim de se lavar, conforme o

mandato de Jesus e voltou vendo.

O próprio Jesus confirma a validade do apelativo Mestre que lhe dão os

discípulos (Jo 13,13): ser mestre é próprio, portanto, da missão de Messias (Jo

18,17). A autoridade do ensinamento de Jesus é claramente baseada em sua

intimidade com o Pai. Esta autoridade, vinda da unidade do Filho com o Pai,

confere-lhe um modo de ensinar que causa estranheza nos dirigentes, pois, não

estudou nas escolas que eles controlam (Jo 7,15). De fato, Jesus propõe o que o

Pai lhe ensinou (Jo 8,28).259 A doutrina de Jesus entra assim em conflito com os

que exercem o magistério no tempo, para o qual reclamam origem divina (Jo

9,29): “A nós, consta que a Moisés Deus esteve falando”. Jesus propõe então a

condição indispensável para ser capaz de julgar se sua doutrina procede ou não de

Deus. Sua doutrina consiste em querer realizar o seu desígnio (Jo 7,17),

promovendo no homem a plenitude de vida (Jo 1,4; Jo 10,10). O ensinamento260

de Jesus coloca-se, portanto, na linha do desígnio criador conforme Jo 4,34. Quem

estiver em sintonia com ele, compreenderá que sua doutrina é de Deus.261

256 Cf. TRACY, David. Êxodo: Reflexão Teológica in: Conciliun, Êxodo: Paradigma sempre Atual, pp.135 “Na vida de Israel nenhum acontecimento de opressão/libertação pôde ser idêntico à experiência do Egito. Mas o recurso a ela (ao êxodo) foi acumulando sua riqueza simbólica e interpelante, como se o êxodo fosse incorporando todos os processos de libertação”. 257 Cf. BROWN, Raymond E. O Evangelho de João e as Epístolas, p. 476. 258 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. O Evangelho Segundo João I, pp. 307-315. “Em João a Palavra de Jesus é vida, movimento. Tal como acontecera com o oficial de justiça, a confirmação do milagre: ‘teu filho vive’, no qual tudo se passa longe de Jesus, no caminho. Aqui também, num primeiro momento, a obediência à Palavra, o ir em busca da libertação da cegueira, parece se realizar ‘in absentia’ de Jesus. Mas, ao se colocar no caminho, o cego vai ao encontro da fonte iluminadora capaz de dar-lhe a vida. O ‘Enviado’ do Pai, cujo único desejo é que se tenha vida em plenitude”. 259 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 189. 260 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 228. “Os gregos concebem o processo do conhecimento como análogo ao da visão. Isto é, exteriorizam o objeto do conhecimento para chegar à verdade, ou seja, contemplar a realidade última. Para os Hebreus o conhecimento consiste na experiência do objeto em sua relação com o sujeito. A aprendizagem implica uma percepção imediata de alguma coisa afetando a pessoa e pode ser uma doença, perda dos filhos, tranqüilidade interior”. 261 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 187-190.

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Abrir os olhos aos cegos era uma das missões do Messias esperado.262 Os

Sinóticos narram várias curas de cegos: do cego de Betsaida (Mc 8,22-26), de

Bartimeu (Mc 10,46-52; Lc 18,35-46) e de um cego mudo em Galiléia (Mt 12,22-

23). Porém, só o Evangelho de João registra a cura de um cego de nascença. Jesus

ia caminhando, ou passando, quando viu um cego de nascença. O verbo passar é

usado em várias passagens do Antigo Testamento para narrar a manifestação de

Deus: Deus passou diante de Moisés e manifestou-lhe sua glória, sua bondade e

misericórdia (Ex 3,18-23). Também se manifestou a Elias, no monte Horeb,

passando diante dele como uma brisa leve (1Rs 19,9-18).

Jesus, a luz verdadeira que ilumina todo homem (Jo 1,9), a luz do mundo

(Jo 9,5), que dá a luz da vida aos que o seguem (Jo 8,12), ao sair do Templo e ver

um cego de nascença, pousa sobre ele o seu olhar cheio de compaixão. Tudo

começou com o olhar de Jesus. Foi Jesus quem viu o cego e não o cego quem

acudiu a ele. E o olhou tão detidamente que chamou a atenção dos discípulos

sobre ele.263

Um dos modos de João mostrar a pedagogia de Jesus é a partir do encontro

com o cego. Assim devem-se imaginar os fatos, Jesus saiu do Templo e viu264

provavelmente em um dos pórticos, onde costumava mendigar todo tipo de

pessoas miseráveis (At 3,2), um cego de nascença. A narrativa coloca em

destaque, o fato de que era tuflo.n evk geneth/j,265 (cego de nascença), a fim de

realçar a grandeza do milagre. Mas quer ser ao mesmo tempo um ponto de partida

para a pergunta sobre Jesus, que perpassa a perícope, cuja ação reveladora se

manifesta à luz pública e à consciência de todos, por intermédio deste ato. Ou

seja, ao passar pelo caminho ele cura um cego de nascença.266 É bem possível, sob

o ângulo da relação R`abbi,, (título dado pelos discípulos), com Moisés,

apresentadas pelo evangelista neste texto, que Jesus, ao se colocar a caminho,

262 Cf. Is 29,18ss; 35,5.10; 42,6-7; 49,6.9; 60,1; 61,1-2; Lc 4,18-19. 263 Cf. CRISÓSTOMO, João. Homilias sobre el Evangelio de San Juan, pp. 272-273. 264 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 69-71 “Ao passar pelos caminhos Jo 1,36, Jesus volta o seu olhar para os que estão necessitados de ‘luz e vida’ - O Verbo que existia eternamente voltado para Deus, por meio de quem foi criado tudo quanto existe Jo 1,1-2 - o Verbo que, chegada a plenitude dos tempos, ‘se fez carne e ergueu a sua tenda no meio de nossas tendas’ Jo 1,14; o Verbo que nos deu a conhecer ‘o Deus que ninguém viu jamais’ - viu antes de ser visto e olhado pelo cego, justamente porque era cego, necessitado da luz física e espiritual, veio ao seu encontro, passou pelos caminhos da terra”. 265 Cf. BROWN, Raymond E. The Gospel According to John, p. 371. “De nascença - esta é uma expressão grega, atestada na tradução da LXX e nos escritores pagãos - a expressão semita parece ser ‘do ventre da mãe’. 266 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-194.

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conforme o próprio autor nos apresenta kai. para,gwn (e caminhando) tenha tido a

intenção de dar continuidade ao ensinamento267 ministrado no Templo através do

sinal prestes a se realizar. O ensinamento deriva da sua atuação, porque ele,

enquanto está no mundo é a luz do mundo. Mas para Jesus o ensinamento com o

qual se chega ao conhecimento de Deus e que é união com Deus, não é metafísica

nem visão sensível e supra-sensível do absoluto nem tampouco êxtase místico ou

entusiasmo. É, ao contrário, condicionado por uma relação histórica do Lo,goj. É

aqui que a verdade, a realidade absoluta enquanto revelada, deve ser encontrada.

Então o conhecimento toma a forma de fé, que é tanto uma aceitação do fato de

que Jesus Cristo é a revelação do Deus eterno, quanto uma adesão pessoal a ele.

Não como uma etapa preliminar para o conhecimento, mas é o próprio

conhecimento de Deus que é comunhão com ele e constitui a vida eterna. É um

caminho para ver a Deus.268 O desejo e a pressa de ensinar pelo caminho269 se

confirma pela presença dos discípulos, fora de cena, desde o capítulo 6° de

João.270 Jesus está acompanhado dos discípulos. O autor não nos informa quais

são eles, e quantos são. Não importa. Os discípulos representam aqui o leitor, que

deve aprender a lição.271

4.3. O diálogo com os discípulos

O mestre, no Antigo Testamento, é em primeiro lugar concebido como um

revelador. O discípulo é um ouvinte e a aceitação da doutrina é aceitação de

Iahweh, aquele que se revela a Si mesmo como Senhor e salvador de Israel. O

ensinamento é dirigido ao homem todo e é ensinamento de vida. O v. 2 kai.

hvrw,thsan auvto.n oi` maqhtai. auvtou/ le,gontej\ rabbi,( ti,j h[marten( ou-toj h' oi

267 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João, p. 237. “A ironia Joanina brinca com o emprego freqüente do verbo oi=da, ‘saber.’ Através deste termo faz-se sentir uma tensão entre a sinagoga e a Igreja, a primeira inabalável em suas certezas, como enfatiza a repetição do ‘nós’ Jo 9,24.29, e a segunda opondo-lhe um saber mais radical e que não pode ser superado Jo 9,31. Aqui aparece pela última vez a menção deste saber”. 268 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 268. 269 Cf. McKENZIE John L. “Caminho” Dicionário Bíblico, p. 135. “Caminho maneira de vida e de conduta, especificamente designa o modo de ser de vida do cristão ou alguns de seus aspectos. O cristianismo é simplesmente indicado como o ‘caminho’ (At 9,2;19,9.23; 22,4;24,14.22). Provavelmente estas passagens refletem uma indicação particular local e aponta para a concepção cristã da fé, não como um simples ensinamento ou um código de princípios morais, mas como a vontade de Deus, que opera na história, mediante Jesus Cristo, guia da vida humana. O cristianismo é mais que uma fé, é uma maneira de viver”. 270 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier, Leitura do Evangelho Segundo João, p. 228. 271 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João - Amor e Fidelidade, pp. 196-197.

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gonei/j auvtou/( i[na tuflo.j gennhqh pertence à camada redacional272 de João II-A e

se aproxima da característica do conceito de ensino na cultura grega, ou seja, na

forma de diálogo. Na cultura grega, se utilizava o diálogo, sobretudo, como

veículo de uma apresentação mais ou menos elaborada de aspectos doutrinais,

cujo objetivo principal era aprofundar um assunto. Basta ter presente os diálogos

de Platão, ou da literatura hermética, ou de Luciano de Samosata e Cícero para

entender o papel e o sentido do gênero literário de diálogo: meio de ensinamento,

de apresentação e aprofundamento de um ou vários pontos doutrinais que, desta

maneira, são objetos de um tratamento mais lento e com possibilidades de

iluminar a realidade questionada do objeto.273 Na perícope em questão, trata-se de

um diálogo teológico, cuja função de ensinar está dirigida em primeiro lugar à

comunidade Joanina da qual os discípulos, mas também o cego são os

representantes. Os discípulos perguntam ao mestre, equivale a (Jo 4,31)... Rvabbi,,

meu mestre. Este termo é usado para designar os mestres da Lei, aplicado a Jesus

tanto pelos seus discípulos,274 quanto por Nicodemos (Jo 3,2). Nos Evangelhos, de

um modo geral, a forma mais atribuída a Jesus é dida,skaloj, que equivale a

ensinar, isto é, mestre. Muda-se para Rvabbouni,, meu Senhor e meu mestre na

forma aramaica, depois da ressurreição (Jo 20,16). Em João Rvabbi, foi o ponto

inicial antes de um conhecimento mais profundo de Jesus (Jo 1,38).275 Rvabbouni, é

o de chegada, meu Senhor e meu mestre, o grau mais elevado, depois que o seu

ensino alcançou o ápice, com a doação de sua vida na cruz, prefigurada e

antecipada na ceia de despedida, dos discípulos com o mestre (Jo 13,13), onde

Jesus ensina a servir os menores e a lavar os pés uns dos outros.

A diferença dos termos, destacada acima em João, indica que Jesus é mestre

de modo novo, se coloca no caminho com, e entre os pobres, os que têm

necessidade de Deus, e os liberta de suas enfermidades e opressões. Sua marca

fundamental é o serviço e o amor fraterno. Supera em muito a doutrina dos

272 Cf. BOISMARD, M. E. & LAMOUILLE, A. l’Évangile de Jean III - Synopse des Quatre Évangiles en Français, p. 249. 273 Cf. TUÑI, Joseph Oriol & XAVIER, Alegre. Escritos Joánicos y Cartas Apostólicas, pp. 44-45. 274 Cf. Jo 1,38; Jo 4,31; Jo 6,25; Jo 9,12; Jo 11,18. 275 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Mestre” Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 88.

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rabinos de sua época.276 Nos Evangelhos é provável que não haja dúvida em

asseverarmos, que onde Jesus é chamado Senhor, normalmente a palavra

representa Rabi.277

Na pergunta dos discípulos: “...quem pecou, ele ou os pais dele, para que

nascesse cego” está implícito, um conceito errôneo, da que assim ficou sendo

chamada teologia da retribuição. Uma mentalidade que corresponde à do tempo

de Jesus, e da qual os discípulos participam. Conforme a concepção corrente no

judaísmo, a desgraça ou doença era efeito do pecado,278 que Deus castigava em

proporção exata com a gravidade da culpa.279 Um modo de pensar que se

concretizou especialmente dentro da tradição sapiencial do Antigo Testamento.

Boas e más obras trazem em si conseqüências e comportam efeitos bem precisos.

Pode-se deduzir delas a boa ou a má conduta de uma pessoa. O livro de Jó analisa

toda esta problemática entranhada nesta mentalidade com a tentativa de explicar o

sofrimento do justo. Este livro mostra o problema tomado da experiência de um

homem notoriamente piedoso, correto, justo, temente a Deus, longe de todo mal.

São esses os atributos com que o personagem Jó é introduzido no escrito (Jó 1,1).

Não obstante ser um homem justo, Jó sofre uma desgraça inaudita. Diante de tal

experiência, vê-se totalmente frustrado este modo de pensar. Certamente não

existe uma solução teórica para esta problemática que pergunta por uma ligação

íntima entre bondade moral e bem estar, maldade moral e desgraça, ou doença.280

Admitia-se também a idéia de uma correção por amor, isto é, que Deus, pelo

sofrimento, quer educar e purificar, mas isto era um caso especial. Como regra

geral se considerava que não há nenhuma correção sem culpa e que padecer supõe

276 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Mestre” Vocabulário Teológico do Evangelho de João, pp. 187-190. 277 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Mestre”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1918. “ ‘Rabi’ era, nos tempos do Novo Testamento, um título de respeito que o homem comum dava aos escribas, e o estudante ao seu mestre. Paulatinamente, veio a ser um termo técnico para um homem que recebera uma ordenação - isto é, que recebera autoridade para agir como juiz em questões religiosas. Recebia-se mediante a imposição das mãos. O emprego do termo ‘ordenação’ não deve ser entendido no sentido de ele ser, de qualquer maneira, um ministro no sentido cristão. A “Torah” era exclusivamente uma autoridade na Lei, conforme a Sinagoga veio a entendê-la. Esta ordenação era praticada somente na Palestina, e cessou no século IV d.C. Daí em diante, o título de ‘Rabi’ tem sido conferido mediante a opinião de três rabinos de que a respectiva pessoa tem conhecimento adequado para expor a lei”. 278 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Pecado” Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 1602-1608. “Na literatura de João, o conceito de avmarti,a se encaixa no contexto do evento de Cristo, que mantém a harmonia entre a terra e o céu. Jesus entra no mundo - ko,smoj Jo 1,1-14 e carrega sobre Si, como o Cordeiro de Deus Jo 1,29, o pecado do mundo”. 279 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 407. 280 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 194.

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o pecado.281 Mas nenhum castigo que procedesse de Deus podia impedir ao

homem o estudo da Lei. Cegueira, portanto, não podia ser castigo de amor, mas só

podia ser maldição.

Também não estava de todo excluída, para os rabinos, a idéia de que uma

criança pudesse pecar ainda no útero materno.282 Os “judeus” mais à frente vão

expressar a mesma mentalidade de que o cego nasceu em pecado (Jo 9,34); (Sl

51). Todavia a doutrina vétero-testamentária também mostrava a responsabilidade

dos próprios atos, sem que as conseqüências fossem colocadas sobre as gerações

posteriores. Cada um é responsável, e exclusivamente ele, por seus atos (Dt

24,16); (Jr 31,29); (Ez 18,2).

Segundo Boismard283 o avpekri,qh VIhsou/j\ ou;te ou-toj h[marten ou;te oi

gonei/j auvtou avllV i[na fanerwqh/| ta. e;rga tou/ qeou/ evn auvtw/|, também se situa em

João II-A porque, juntamente com o v. anterior, ele supõe uma concepção do

milagre abandonada por João II-B, mas corrente no nível de João II-A: no milagre

se manifesta a ação de Deus que se exerce graças à ação de Jesus. Em sua

sabedoria de Mestre por excelência, com a intenção de transmitir um ensinamento,

relacionado com vida a partir das raízes judaicas do conceito de ensino - conforme

nota acima - que se expressará na ação da cura, juntando gestos e Palavras, a

resposta de Jesus não é teórica, ou seja, não é uma idéia. Ele desvia a direção da

pergunta feita pelos discípulos que compartilham desta mesma mentalidade. Sua

atenção está voltada para a falta de vida, relacionada com a cegueira, e põe o caso

do cego, em íntima relação com o plano da salvação: ele, o cego, representa um

ponto de encontro entre a ação divina e a miséria humana que começou com o

olhar de Jesus. O Filho de Deus vê na cegueira ocasião para que se manifeste

281 Cf. Ex 20,5: “Não te prostrarás diante desses deuses e não servirás, porque eu, Iahweh teu Deus, sou um Deus ciumento que puno a iniqüidade dos pais sobre os filhos até a terceira geração dos que me odeiam”; Ex 34,7b: “mas a ninguém deixa impune e castiga a falta de seus pais nos filhos e nos filhos de seus filhos”; Nm 14,18b; Dt 5,9; Jr 31,29: “nesses dias não se dirá: os pais comeram uvas verdes e os dentes de seus filhos se embotaram. Mas cada um morrerá por sua própria falta. Todo homem que tenha comido uvas verdes terá seus dentes embotados”; Ez 18,2: “Que vem a ser este provérbio que vós usais na terra de Israel: ‘Os pais comeram uvas verdes e os dentes do filhos ficaram embotados?’; Tu, Senhor, lembra-te de mim e olha para mim; não me castigues por meus pecados, meus erros e o de meus pais, cometidos em tua presença, desobedecendo a teus mandamentos”. 282 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp.194-195. “A discussão se apoiava no relato de Esaú e Jacó Gn 25,19-26 - na afirmação de que os dois meninos se chocaram no ventre da mãe Gn 25,22. Pelo contrário, que os filhos deviam sofrer as conseqüências dos pecados dos pais é uma opinião muito difundida”. 283 Cf. BOISMARD, M. E. & LAMOUILLE, A. l’Évangile de Jean III - Synopse des Quatre Évangiles en Français, p. 249.

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neste homem a atividade de Deus e responde à pergunta dos discípulos dizendo

que nem o cego, nem os pais são culpáveis. A causa da cegueira também não deve

ser atribuída a Deus. Jesus não entra, porém, na discussão a respeito da causa da

cegueira. Não é a hora de elaborar teorias nem de buscar os culpados. É a hora de

libertar os cativos e dar a vista aos cegos. A hora que Jesus passa e vê o cego de

nascença é o kairo,j, o tempo propício, a ocasião para que se manifestem nele as

obras de Deus (Jo 9,3) para revelar-se como o enviado de Deus, como luz do

mundo, para que todo aquele que nele crer não permaneça nas trevas (Jo 1,9; Jo

8,12; Jo 12,35-43). O poder e a bondade de Deus vão manifestar-se na cura do

cego feita por Jesus, que trabalha na missão recebida do Pai sem perder tempo,

“enquanto é dia” (Jo 9,2-5).284 Jesus afirma que não é castigo e que Deus não é

indiferente perante o mal, mas quer que o homem saia da miséria em que se

encontra e o ajuda para isso. As obras de Deus são os milagres, enquanto

expressão da atividade salvífica que Deus exerce através de Cristo, o enviado do

Pai, luz e vida para a humanidade.285

O cego de nascimento não tem experiência nem esperança da luz, e isto sem

nenhuma culpa pessoal ou herdada. Mas a cegueira do homem tem também um

sentido simbólico, como aparece pelo significado da luz em Jo 9,5 e pela

aplicação que se fará do termo cegueira em Jo 9,40. A falta da luz deve-se à ação

das trevas (Jo 1,5). Este homem, portanto, representa os que desde sempre

viveram submetidos à opressão, sem idéia de que podiam sair dela, por não

conhecerem alternativa. Não sabia o que se quer era a luz. Mas, nele vai se

manifestar o que Deus faz com os que nasceram e continuam privados de sua

condição humana. Nem ele, nem seus pais tinham pecado. Outros são os culpados

de sua cegueira (Jo 9,41). Seus pais tinham transmitido a condição de carne (Jo

3,6): “da carne nasce carne”, cuja fragilidade tornou possível a opressão em que

vivem.286

O homem do relato é cego de nascença e sua cegueira não provém do

pecado. Ele não pode então, ser figura do pecado da humanidade. Seu estado

simboliza outra escuridão, a nativa, ou seja, está em situação de pecado, porque

ainda não conhecia plenamente a luz da vida. Esta é a situação em que todo

284 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 123. 285 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João, pp. 154-156. 286 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 407-409.

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homem se encontra antes de ser iluminado pela revelação do Filho. No Prólogo,

João definiu o Lo,goj como a luz que brilha na escuridão (Jo 1,5). Aqui,

apresentando o cego de nascença, ele parece remontar a esta origem, pois a

iluminação se faz ao longo da história e em cada membro da comunidade Joanina

à medida que se aceita a luz, e assim, nasce para uma nova existência.287 Ao

declarar: “É para que nele sejam manifestadas as obras288 de Deus”, Jesus de

modo algum, afirma que era preciso que esse homem fosse cego para que Deus

pudesse mostrar seu poder. Ele está se referindo à situação do cego que lá se

encontra, com o qual entra em sintonia e a quem vai dar a visão física e espiritual,

manifestando assim a obra de Deus no mundo.289

Aqui transparece os pares opostos, característica do quarto Evangelho: dia-

noite; luz-escuridão. Segundo John L. Mckenzie290 o dia não se refere ao dia do

juízo. É mais provável que a expressão deva ser uma referência à Encarnação.

Portanto, decorrente do envio do Filho que veio ao mundo a fim de cumprir o

desígnio salvífico do Pai. Dia é o tempo da luz. Este dia está em relação com a

luz do mundo, que Jesus aplica a ele mesmo.

Ao associar a Si os discípulos por um nós291 um pouco surpreendente,

contrapondo-se a comunidade dos doadores de luz da qual o Evangelho de Mateus

também faz referência292 à comunidade que cega, ou seja, os dirigentes do tempo,

Jesus determina que deve agir “enquanto é dia”, isto é, enquanto dura seu

itinerário terrestre, sua atividade missionária, até à noite, ou o momento de sua

287 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Luz”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 217-220. “No canto do Servo, Isaías orienta para esta novidade: “Eu guiarei os cegos por um caminho que eles não conhecem e fá-los-ei andar por veredas que ignoram; mudarei diante deles as trevas em luz” Is 42,16. 288 “As obras de Jesus são ações em favor do homem e são as obras do Pai Jo 5,17.36; 10,14, pelas quais se realiza o seu desígnio: dar vida ao homem. As obras de Jesus são ‘excelentes’ Jo 10,32.33 adjetivo que as colocam na ordem da obra criadora, kaloj o mesmo dado a Jesus o modelo, o ‘Bom Pastor’. Pelas obras se chega à fé em que Jesus é o enviado do Pai”. 289 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João, pp. 230-232. 290 Cf. McKENZIE, John L. “Dia”, Dicionário Bíblico, p. 234. “Na forma popular de expressão, ‘dia’ significa geralmente o período de luz entre o alvorecer e o crepúsculo. Dia e noite se contrapõem como realidades distintas no relato da criação em Gn 1,4, onde a luz é separada das trevas, do caos e chamada dia.” 291 De acordo com os melhores manuscritos, a leitura ‘nós’ - conforme aborda-se na crítica textual é preferida à leitura ‘eu’. A comunidade Joanina é associada à ação de Jesus: os discípulos devem, eles também, ‘realizar as obras daquele que me enviou’, cf. Jo 3,11; 4,35-38; 11,7. Porém para alguns autores, como por exemplo: BUSCHE, Henri van den e SCHNACKENBURG, Rudolf o plural não está ligado à associação dos discípulos a Jesus. Segundo estes autores, só Jesus, pode realizar as obras do Pai que o enviou. 292 Cf. Mt 5,14 “Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte”.

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morte. Noite é o mundo sem Jesus, por oposição à luz como espaço ou período em

que falta a luz-vida. A resposta de Jesus também faz eco à Palavra: “Meu Pai

trabalha ainda e eu também trabalho” (Jo 5,7) e assim é justificada

antecipadamente a transgressão do sábado (Jo 9,14). Deus intervém no mundo

através da luz que ilumina o Filho. Atraída pelo termo dia surge novamente a

proclamação eu sou a luz do mundo (Jo 8,12).

4.4. Por que é preciso trabalhar enquanto é dia?

Para responder a esta questão é importante ter presente que o evangelista

está num estágio um pouco mais profundo da ruptura radical com os “judeus”.293

Por isso, Jesus está também mais próximo da condenação e morte, por parte

daqueles que rejeitam a luz, como já foi insinuado em (Jo 8,59).

É preciso trabalhar porque Jesus, o enviado do Pai, luz da vida, tem

necessidade de realizar sinais de salvação, pelo mandato de Deus, como “obras

daquele que me enviou” enquanto durar o tempo da revelação, portanto “enquanto

é dia”, ou seja, o tempo do ministério terreno de Jesus que termina com a sua hora

(Jo 12,23.35).294

A referência a “aquele que me enviou” está bem presente no Evangelho.

Como por exemplo, em (Jo 8,16). Jesus, como o enviado do Pai, manifesta as

obras de Deus enquanto é dia, porque estas são as obras da luz, feitas às claras a

fim de que todos possam ver.295 A noite, quando ninguém mais pode atuar, é uma

referência à morte e com isto ao final da atividade terrena de Jesus. O tempo de

Jesus é limitado e está chegando ao fim. Ele deve aproveitar todo o tempo para

trabalhar mesmo que seja sábado. O final deste tempo que chega para Jesus é a

Paixão e morte. Para os discípulos supõe todo tipo de impedimentos para o

trabalho.296 A continuação “ninguém mais poderá atuar” amplia o horizonte. A

noite, que põe um limite à atividade de qualquer pessoa, pode chegar de diversas

formas: com a morte, o impedimento externo, o caminhar na história. Assim a

Palavra passa a ser um apelo a escutar e a se comprometer aqui e agora com a voz

293 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém, p.122. 294 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según San Juan II, p. 304. 295 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Nem Aqui, nem em Jerusalém. p. 125. 296 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 196.

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de Deus que chama a trabalhar enquanto é dia.297 O substantivo dia está

intimamente relacionado com a expressão “meu dia” em que Abraão viu e se

alegrou (Gn 17,17). O júbilo havia invadido Abraão tanto no momento da

promessa que lhe foi feita como na hora do nascimento de seu filho em razão da

alegria que ele suscitava. Na sua fé,298 Abraão encontra-se plenamente alegre

porque contemplou antecipadamente não somente as promessas, mas a salvação

da qual Isaac era a figura.299 Este dia, portanto, é seguramente o dia do Messias,

ou o mesmo que dizer, o tempo da revelação do Messias a Israel que veio trazer a

libertação para o seu povo.300 Dia está em relação com a denominação, luz do

mundo, que o próprio Jesus aplica a Si mesmo (Jo 8,12; Jo 9,5). Por isso compara

o tempo de sua atividade com um período de doze horas (Jo 11,9), ao que segue a

noite, em que não se pode trabalhar (Jo 9,4) ou se tropeça (Jo 11,9).301

Jesus confia aos discípulos a continuidade de sua missão. Eles devem

associar-se à sua atividade. No cego vai se manifestar as obras de Deus por

intermédio de Jesus (Jo 17,36; Jo 3,21; Jo 4,34) mas também os seus deverão

realizá-las (Jo 14,12). Essa será a atividade do grupo cristão (Jo 20,21): “Como o

Pai me enviou, eu vos mando a vós”. Como aparece neste relato e pelo do inválido

(Jo 5,3), as obras que Deus realiza consistem em libertar o ser humano de sua

impotência. Tem o objetivo de capacitar os homens para a ação e o exercício da

autonomia, no que se refere às situações de opressão e injustiça. A noite é o

período das trevas as quais podem considerar de duas maneiras: em si mesmas,

como o princípio ativo da morte (Jo 1,5), ou por oposição à luz, como espaço ou

período em que falta a luz-vida (Jo 8,12) quando Deus se manifesta oferecendo a

salvação (Jo 7,33), e há outro em que a oportunidade passa, o da ausência da luz.

Jesus tem o seu dia (Jo 8,56), durante o qual manifesta a luz, que é a glória do Pai

(Jo 12,35; cf. 11,9); e logo ele se irá (Jo 7,33).302

Chegará a noite, quando se testemunhar a rejeição definitiva de Jesus. Noite

é o mundo sem Jesus, que é a sua luz. Por isso é urgente trabalhar enquanto é dia.

Pois, uma vez que os dirigentes do povo tiverem feito a última opção, condenando 297 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según San Juan II, p. 305. 298 Cf. Hb 11,13: “Na fé, (os patriarcas) morreram todos, sem ter obtido a realização das promessas, mas depois de tê-las visto e saudado de longe”. 299 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II, p. 215. 300 Cf. BALZ, Horst & SCHNEIDER, Gerhard. “Dia” Diccionário exegético Del Nuevo Testamento II, p. 260. 301 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de João, p. 57. 302 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 409.

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e rechaçando Jesus como rei (Jo 19,41) não se poderá fazer mais nada, a ruína é

inevitável (Jo 7,34; 8,31). Enquanto se tem tempo é preciso trabalhar e oferecer a

salvação, mesmo que seja sábado.303

Precisamente estas demonstrações da atividade salvífica de Jesus são o

ponto crítico, mostra-o a referência ao próprio Jesus. Enquanto Jesus estiver no

mundo ele é a luz do mundo. Esta afirmação liga o relato com o discurso sobre a

luz (Jo 8,12) e ao mesmo tempo revela o caráter simbólico de toda a narração. Se

assim se expressa o tempo historicamente limitado da presença da revelação, na

afirmação transparece também a importância extratemporal da revelação de Jesus.

Porque graças à fé e a pregação da Igreja, Jesus continua sendo para todos os

tempos e épocas “a luz do mundo”. O que acontece com este cego de nascença

exemplifica o que acontece em cada ser humano que chega ao conhecimento e à

fé em Jesus.304

4.5. Jesus fonte de luz e vida

No seu modo de ser, profundamente unido ao Pai e por meio de uma

pedagogia do relacionamento interpessoal com os seus, depois de esclarecer que a

cegueira é i,na que se manifeste no mundo o desígnio salvífico, ou o brilho das

obras de Deus, ou ainda, o brilho da vida, “Quem me segue não andará nas trevas,

mas terá a luz da vida” (Jo 8,12b). Jesus vai ainda mais se auto-apresentando

como fonte de luz e vida e conclui o diálogo teológico com os discípulos,

repetindo o seu dito anterior na presença dos dirigentes: o]tan evn tw|/ kosmw| w=, fw/j

eivmi tou/ ko,smou. Conforme Boismard305 este v. é uma glosa, inserida pelo redator

final do Evangelho, com o intuito de estabelecer uma ligação com os termos

enquanto é dia em Jo 9,4, apontando para uma ação continuada com a idéia mais

precisa de que Cristo é “a luz do mundo”. João III, o redator final do Evangelho

retoma o tema da luz neste relato, onde Jesus dá a luz ao cego de nascença, daí a

adição do v. 5 colocado como centro e sentido simbólico da perícope.

303 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 410. 304 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 197. 305 Cf. BOISMARD M. E. & LAMOIULLE, A. l’Évangile de Jean. Synopse III des Quatre Évangiles en Français, p. 250.

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Fw/j,306 no seu significado básico de luz, brilho, também abrange as

seguintes matizes, entre outros: luz solar, luz do dia, tocha, fogo, luz do fogo,

vista. Figuradamente, fw/j significa a luz da vida, isto é, a própria vida, que é

altamente estimada como coisa brilhante e como algo comparável com a salvação

ou a felicidade. Em grego a palavra fw/j em contraste com sko,toj ou nu,x, veio a

significar a esfera do bem ético, enquanto se diz que as más ações se praticam na

escuridão. Platão estabelece uma equivalência da idéia do bem com a luz do sol.

Esta comparação se constitui em profunda significância para a história das idéias.

Ao entrar na esfera da epistemologia, (conhecimento) fw/j se enriqueceu

grandemente em seu campo de significação. Um contexto tal como este pode

ressaltar suas qualidades iluminadoras, enquanto outro contexto pode ressaltar sua

função curadora, pois no mundo grego havia uma relação estreita entre a noção do

pecado e a imagem das trevas, e a noção de uma redenção e salvação do mal e a

imagem da luz. A luz possui poder que é essencial à vida verdadeira. Assim, estar

na luz, chega a significar simplesmente viver, enquanto estar no hades, é estar nas

trevas.

Segundo Dodd307 pelo símbolo da luz foi possível dar uma idéia da relação

do absoluto para com os fenômenos, de Deus para com o universo. A luz se

comunica por irradiações que são emanações, assim se supunha, de sua própria

substância. Deste modo Deus é a luz por cujas difusas radiações apreendemos o

mundo fenomenal. À medida que subimos na escala, somos iluminados por estas

radiações superiores que são as “idéias” que constituem o ko,smoj, até que afinal, o

místico contempla a própria Luz que é Deus, não por uma luz qualquer

emprestada por ela mesma.308

Nos escritos de Fílon e em outros semelhantes, a luz é comumente associada

com a vida enquanto descrição do real ou do divino.309 Deste modo a filosofia

recebe uma fresca aragem de sua fonte original no sentimento religioso popular e

306 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”- Dicionário Internacional do Novo Testamento, p. 1220. “A luz é a matéria de outro mundo que se derrama sobre aquele que está disposto a recebê-la, e importa na possessão dos poderes divinos”. 307Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 275. “A luz que ilumina todo homem é a que se comunica por emanação do ‘Pai de tudo que é vida e luz’. A maior parte da humanidade, todavia, não está consciente da presença da luz, (eles não se elevam da contemplação dos fenômenos ao reconhecimento de seus arquétipos), mas aqueles que ‘recebem’ a luz, a minoria ‘iluminada’, tem aquele conhecimento de Deus que os faz filhos de Deus e participantes de sua vida”. 308 Cf. DODD, Charles A . A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 276. 309 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 274.

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ao mesmo tempo responde à aspiração sempre mais intensa à segurança da

imortalidade, pois, em tais escritos zoh,310 significa a vitalidade física e alguma

coisa a mais. Se a fonte da luz, pela qual conhecemos, é também a fonte da vida,

então, à medida que se avança no conhecimento rumo à visão da Luz, também se

participa da vida.311

Encontram-se no Antigo Testamento312 referências freqüentes à luz e aos

seus efeitos. B. Jacob e A. Dillmann,313 respectivamente, descrevem a luz como

sendo o elemento mais sublime, é o primogênito da criação. A luz é o esplendor

da vida, não existe, portanto, luz anterior à vida. Ela é a própria vida enquanto se

impõe por sua evidência e pode ser conhecida. Tem a primazia sobre todas as

demais luzes. Os israelitas ressaltavam sobremaneira que a luz tinha sido criada, a

fim de desfazer qualquer tentativa de deificá-la. Existe apenas o Deus único,

Iahweh. Algumas passagens descrevem a luz como um tipo de atributo de Deus: a

luz é seu manto (Sl 104,20); sua proximidade e presença são indicadas pela luz (Is

60,19-20), a luz habita com Ele (Hb 3,4). Seu brilho era como a luz. Diz-se,

especificamente, que é o seu rosto a origem da luz que dEle procede. Para o

homem, a luz de Iahweh significa a salvação, idéia esta que se expressa com

clareza no salmo (Sl 27,1; Jó 22,28). “O Senhor é a minha luz e a minha salvação;

de quem terei medo?” A luz que provém de Deus estabelece os limites da vida de

cada homem e brilha sobre todos os homens (Jó 25,3; Sir 42,16). Cada homem, no

entanto, ainda deve voltar-se para a luz. O ser humano deve na realidade, olhar

para além dela, para a sua origem, conscientemente reconhecendo o poder

Criador.314

Esses textos apontam para o modo como a revelação divina ilumina toda a

existência humana. Também os textos de Qumran acentuam fortemente a idéia de

revelação: “Da fonte de seu conhecimento fez brotar a luz que ilumina...” (1Qs

310 Cf. McKENZE, John L. “Vida”, Dicionário Bíblico, p. 842. 311 Cf. DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, pp. 269-275. 312 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 391. A metáfora da luz designa a lei e a Palavra de Deus: “Eis como as Palavras da “Torah” iluminam o homem quando a ela se aplica. Aquele que a ela não se aplica é semelhante a um homem que está nas trevas e se dispõe a caminhar: ele topa contra uma pedra e nela tropeça. Por quê? Porque ele não tem em mãos ‘a lâmpada’. Qual é a lâmpada de Deus? É a “Torah”! O mandamento é uma lâmpada e a “Torah” uma luz”. 313 Citado por COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1220. 314 Cf McKENZIE, John L. “Luz”, Dicionário Bíblico, p. 944. “Luz e glória são no Antigo Testamento, elementos da teofania, a presença sensível de Deus”.

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11,3-4).315 O Novo Testamento realça também esta idéia, apontando para o

conteúdo da revelação, Deus disse: “Do meio das trevas brilhe a luz!” Foi ele

mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da

glória de Deus, que resplandece na face de Cristo.316 A missão de Jesus em João é

caracterizada como transmissão de luz e vida. No quarto Evangelho o vocábulo

fw/j, aparece 23 vezes e constitui-se no sentido cristológico da revelação.317 João

apresenta o Verbo como a luz que irrompe no meio da escuridão do ko,smoj .318 A

fonte de luz vem até a humanidade. O divino se aproxima do ser humano, arma a

sua tenda no meio de nós. Luz e vida se vinculam entre si e segundo Bultmann319

“Ele, Jesus a luz do mundo é o único que pode cumprir a alegação de que pode

dar à existência o correto entendimento de si mesmo... se se deixar iluminar por

esta fonte de luz e vida. A luz designa diretamente a natureza de Jesus. Ele não é

como a luz; ele é a luz”. Aqui vemos duas noções teológicas fundamentais em

João: vida indica, não a vida biológica, mas a vida em sentido qualitativo integral,

que corresponde à vida eterna. Esta vida em sentido absoluto, que no Evangelho, é

identificada com Jesus (Jo 11,25; Jo 14,6) era a luz dos homens. Zoh,, portanto, é

um dos termos-chave do Evangelho de João, o núcleo central da teologia e da

pregação soteriológica Joanina. O conceito de vida eterna corresponde, em João,

315 Citado por DODD, Charles A. A Interpretação do Quarto Evangelho, p. 346. 316 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 391. 317 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1221. “A nuvem brilhante que Deus empregou na transfiguração do seu Filho Mt 17,5, aponta além de si mesma para Deus, cuja manifestação vem inevitavelmente acompanhada pela efulgência. O Filho também é cercado por radiância: ‘O seu rosto resplandecia como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz’ Mt 17,2. Aqui, a luz é uma manifestação da presença de Deus; nalgumas outras passagens, indica a manifestação do Cristo exaltado: At 9,3; 22,6; 9,11; 26,13, e, noutras ainda, a vinda de anjos mensageiros da parte do próprio Deus At 12,7; Mt 28,2-3”. 318 Cf. BLANCHARD, Yves-Marie. São João. p. 69. A comunidade Joanina não se mostra indiferente ao mundo que a cerca. É espantoso que a palavra ko,smoj, apareça mais de setenta vezes no quarto Evangelho com o sentido de humanidade, e não de universo propriamente dito. Além disso, este parceiro onipresente é considerado o próprio objeto da salvação, o principal destinatário do amor divino concretizado pelo envio do Filho único: “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho único, para que todo aquele que crer nele não pereça, mas tenha a vida eterna Jo 3,16. Seria errado considerar a comunidade Joanina exclusivamente do ponto de vista de sua oposição ao mundo, como se a certeza de possuir a verdade a tivesse isolado de seu ambiente. Muito pelo contrário, sua provável inserção no mundo grego, em Éfeso? - torna-a particularmente sensível à universalidade do dom de Deus. Apesar da mediação de Israel - ‘a salvação vem dos judeus’ Jo 4,22 - Jesus merece ser confessado o ‘Salvador do mundo’ Jo 4,42. Nesse sentido, o ato de fé dos samaritanos preludia o conjunto da missão cristã, mesmo no meio Joanino. A própria salvação implica toda a humanidade. Jesus não pode ser proposto como ‘Salvador’ se não for em proveito do ‘mundo’. ‘Quanto a nós, vimos e testemunhamos que o Pai enviou seu Filho como salvador do mundo’ 1Jo 4,14”. 319 Citado por COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Luz”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1225.

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ao de Reino de Deus ou dos céus. O termo ou expressão Reino de Deus é colocada

nos Sinóticos. Pode-se dizer que em João o conceito vida substitui de certo modo

o de Reino de Deus. No Evangelho o vocábulo vida aparece 21 vezes; 7 vezes em

1Jo, e a expressão vida eterna 15 vezes no Evangelho e 7 vezes em 1Jo.320 Este

termo, mesmo sem o adjetivo que o acompanha freqüentemente, não se refere à

vida natural. Para designar esta vida, cujo fim é a morte, João recorre ao

substantivo psychê. Significativo é o texto de Jo 12,25: “Quem ama a sua vida, a

perde; e quem odeia a sua vida neste mundo, guardá-la-á para a vida eterna.”Aqui

João opõe qualitativamente a vida neste mundo, que pode perder-se, à vida

verdadeira e permanente, da qual Jesus é depositário e dispensador (Jo 6,57; Jo

14,19). A mesma expressão grega é utilizada quando se fala da entrega da própria

existência corporal.321 Nos Evangelhos Sinóticos, vida e vida eterna designam

uma condição futura, um dom salvífico escatológico, que se espera do Reino de

Deus já consumado.322 Em João, porém, se verifica uma surpreendente deslocação

da perspectiva: a vida eterna já não aparece como algo futuro, que o cristão

aguarda como herança, mas torna-se presente neste mundo mesmo. Toda

escatologia futura é de certo modo antecipada. Ela irrompe na história atual, já se

realiza no presente, porque a vida que Jesus traz ultrapassa por sua natureza a

existência terrena do homem e se prolonga até a eternidade. Assim, a vinda de

Cristo como revelador do Pai constitui o acontecimento escatológico decisivo. Ela

introduz a “última hora” do mundo (Jo 2,18). Entre as condições para receber a

vida eterna, destaca-se a fé em Jesus como salvador universal dos homens. Quem

crê no filho tem a vida eterna (Jo 3,15.16.36), passou da morte à vida (Jo 5,4).

Esta fé é, ao mesmo tempo, fé no Pai que o enviou (Jo 6,40.47; 1Jo 5,13).323 Luz

designa a revelação pessoal e histórica do Deus que salva a humanidade através

do Verbo encarnado. Ora, a vida divina começa a manifestar-se e a revelar-se com

320 Cf. João 1,4; 3,15.16.36; 4,14.36; 5,24.26.29.39.40; 6,27.33.35.40.47.48.51.53.54.63.68; 8,12; 10,10.28; 12,25.50; 14,6; 17,2.3; 20,31. Portanto, no total de 36 vezes. Note-se que as expressões vida e vida eterna são equivalentes entre si, de sorte que, sem qualquer explicação, João substitui uma pela outra. 321 Cf. Jo 13,37-38 (Pedro quer dar a sua vida por Cristo); Jo 15,13; 1Jo 3,16b (dar a vida por seus amigos); Jo 10,15.17-18; 1Jo 3,16a (Jesus entrega a vida por seus amigos). 322 Cf. Mc 9,43.45; 10,17.30; Lc 10,25; Mt 25,34; Rm 6,20-23; 1Tm 1,15ss; 4,8; 6,11ss; 2Tm 1,1; Tt 1,1ss; 3,7. Nos Sinóticos, o estado de felicidade é apresentado sob diversas imagens: como banquete Mt 22,1-10; Mc 14,25, aquisição da vida Mt 10,39; 19,29; 25,46; Mc 9,43-58; Lc 9,24, tomada de posse de um grande tesouro Mt 19,21, bem-aventurança plena Mt 25,21.23, repouso Lc 23,42-43, habitação nos tabernáculos eternos Jo 16,9; Ap 7,9-17; Ap 21,3, participação no mundo de Deus Mt 5,21, convivência com Cristo Lc 23,43. 323 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 81-102.

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a encarnação do Lo,goj.324 É como o enviado do Pai, ensinando através do seu

modo de ser, por Palavras e gestos, como mestre no caminho, em relação,

interagindo com o ser humano que Jesus manifesta quem ele é: luz da vida. Para

João, é graças ao Lo,goj, fonte da vida, que a humanidade vê a luz. Ele a conduz à

plenitude da vida. A fé em Jesus é o modo de beber desta fonte de luz e vida.325

4.6. A salvação e o mundo

Jesus está presente como fonte de luz e vida no mundo. Ao símbolo da luz

corresponde a dupla reação humana da cegueira e da visão, como respectivamente

expressão da descrença e da fé, da condenação e da salvação. Deste modo o

milagre da cura em Jo 9,1-12 está a serviço da revelação e da salvação que Jesus

veio trazer para a humanidade.326

Johan Konings esclarece que um dos significados do vocábulo ko,smoj

apresenta a teoria cosmológica327 de João. O mundo é a morada e o cenário da

história humana. Assim, falando do homem, diz-se que a luz vem a este mundo

(Jo 1,9; Jo 16,21). Do Messias e do profeta afirma-se que deve vir a este mundo

(Jo 6,14; Jo 11,27). Acerca de Jesus afirma-se que veio a este mundo (Jo 3,19; Jo

18,37), que foi enviado ao mundo (Jo 3,17; Jo 17,18), que está ou estava no

mundo (Jo 1,10; Jo 9,5) que volta a deixar o mundo (Jo 13,1; Jo 16,28). O mundo

é, neste sentido, o lugar onde se desdobra a história da salvação e no qual Jesus se

apresenta como revelador do Pai.328

A vontade de Iahweh de salvar Israel está enraizada na relação de aliança do

próprio Iahweh com Israel e, portanto, nas suas promessas, na sua justiça e na sua

fidelidade. Está também ligada com as qualidades da pessoa que busca a salvação.

A segurança vem da integridade (Pr 28,18). Judá será salvo da invasão mediante o

arrependimento (Jr 4,14). O Justo pode esperar pela salvação (Sl 7,11). O objeto

324 Cf. Jo 1,4 paralelo a Jo 1,2. 325 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 390-393. 326 Cf. BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, p. 193. 327 Cf. KONINGS, Johan. “No Mundo, não no Mundo”. Meditação sobre João e a Cultura, in: Estudos Bíblicos p. 74. “ko,smoj traz também a conotação de ‘cosmético’ - bonito, brilhoso, harmonioso... Parece que João quer sugerir o falso brilho deste mundo. Este sentido de ambigüidade transparece claramente em 1Jo 2,16-17: Tudo o que há no mundo, a cobiça da carne (humanidade), cobiça dos olhos e a arrogância dos bens da vida, não vem do Pai, mas do mundo. Ora o ko,smoj com sua cobiça, passa, mas quem faz a vontade de Deus permanece para a vida eterna”. 328 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 177.

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favorito da salvação de Iahweh, porém, nos livros mais tardios do Antigo

Testamento são os pobres e indefesos.329 Esses podem invocar a Iahweh com uma

insistência que não é possível a mais ninguém, pois sua salvação é dispensada

mais solicitamente aos que são mais desesperançados.330

Mas a salvação futura assume bem cedo um caráter messiânico e é vista

como uma nova criação de Israel, um evento em que todos os temas de vitória e

libertação implícitos no termo atingem a sua plenitude. Salvação se aproxima da

idéia de libertação de todo o mal, quer coletivo quer pessoal, e da aquisição de

segurança completa.331

O termo salvar nos Evangelhos Sinóticos significa uma cura realizada por

Jesus.332 Esta cura é atribuída à fé da pessoa curada.333 Aqui e em outras

passagens, é muito provável que o termo salvar seja usado em sentido pleno para

sugerir que a cura é um sinal salvífico de Jesus, que confere uma salvação

infinitamente superior à saúde do corpo. A salvação entra na casa de Zaqueu,

identifica-se com a pessoa de Jesus (Lc 19,9). Jesus é o princípio e fonte de

salvação (Hb 2,10; 5,9). A salvação que Jesus confere é salvação do pecado. Ele

dá o arrependimento e o perdão dos pecados (At 5,31). Através do conhecimento

da salvação os cristãos se subtraem à corrupção do mundo (2Pd 2,20). Essa

salvação vem dos Judeus (Jo 4,22), que são os canais da revelação de Deus e de

seus atos salvíficos, mas destina-se a todos os homens.334

A partir do versículo “Deus amou tanto o mundo que entregou o seu único

Filho”, e que se tornou muito conhecido, a primeira impressão é de uma atitude

favorável de João em relação ao mundo.335 Por isso a comunidade Joanina não

pode ser concebida como uma espécie de seita no interior da Igreja. A auto-

revelação de Jesus se prolonga mediante a pregação e a atividade dos discípulos

no mundo (Jo 17,18). A tarefa de testemunhar a revelação salvífica deve produzir

frutos concretos: levar os homens à fé e à vida divina.336

329 Cf. Sl 12,26; 18,28; 76,10; 109,31; Jó 5,6; 22,29. 330 Cf. McKENZIE, John. “Salvação”, Dicionário Bíblico, p. 834. 331 Cf. OPORTO, Santiago Guijarro & GARCIA, Miguel Salvador. Comentário ao Novo Testamento, p. 288. 332 Cf. Mt 9,21; Mc 3,4; 5,23.28; 6,56; Lc 6,9; 8,36.50; 17,19. 333 Cf. Mt 9,22; Mc 5,34; 10,52; Lc 8,48; 17,19; 18,42. 334 Cf. McKENZIE, John L. “Salvação”, Dicionário Bíblico, p. 836. 335 Cf. Jo 1,29; 4,42; 6,36.51; 10,36; 12,47; 17,21. 336 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 177-180.

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Entretanto, o termo mundo torna-se mais comum em João para significar

aqueles que rejeitam a luz, uma vez que os que a aceitam estão, na maior parte,

dentro da comunidade Joanina. Daí a insistência de Jesus: “Sou a luz do mundo”,

possivelmente com o intuito de libertar o cego das trevas em que se encontrava,

mas também, os discípulos e os fariseus. Aqui o mundo é a humanidade

necessitada da luz da salvação.337

No pensamento antigo ko,smoj era um conjunto de forças em conflito;

conforme o relato da criação (Gn 1,1-2). A representação bíblica das origens do

mundo não se situa mais no plano do mito, pelo contrário, ela dá início ao tempo.

É que entre Deus e o mundo vai um abismo, expresso pelo verbo criar (Gn 1,1).

Se o Gênesis evoca a atividade criadora de Deus, é somente para acentuar este

ponto fundamental da fé: dependência do mundo em relação ao Deus soberano,

que fala e as coisas são (Sl 33,6-9).338 O termo ko,smoj em grego é usado para

designar o mundo. Aparece no Antigo Testamento somente nos livros gregos mais

tardios, e seu uso demonstra a influência grega. Deus fez o mundo (Sb 9,9), ele é

o seu criador (2Mc 7,23). É usado também para indicar não o universo, mas a

terra: o homem é criado para governar o mundo (Sb 9,3). O mundo significa a

humanidade: Adão é o primeiro homem plasmado como pai do mundo (Sb

10,1).339

João usa muitas vezes a expressão “este mundo”.340 Neste sentido, o termo é

sempre negativo. Indica um tempo-espaço que é dominado pelo chefe deste

mundo e destinado à perdição. Segundo Brown, há uma identidade virtual em

João entre o mundo e os “judeus”. Muitas vezes Jesus tem uma atitude semelhante

para com ambos, isto é, se o príncipe deste mundo é Satanás, o pai dos “judeus” é

o diabo (Jo 8,44). Se o mundo odeia Jesus, os “judeus” procuram matá-lo.

337 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 65. “Assim ouvimos que a vinda de Jesus é um julgamento do mundo Jo 9,39; 12,31, que é habitado por filhos das trevas Jo 12,35-36; porque o mundo é imcompatível com Jesus Jo 16,20; 17,14.16; 18,36 e com seu Espírito Jo 14,17;16,8-11. Numa palavra, o mundo odeia Jesus e os que nele crêem 7,7; 15,18-19; 16,20. Jesus se recusa a orar pelo mundo Jo 16,20 e expulsa o príncipe satânico deste mundo Jo 12,31; 14,30. 338 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Mundo”, Vocabulário de Teologia Bíblica, p. 630. 339 Cf. McKENZIE, John L. Dicionário Bíblico, p. 635. 340 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 62. Referências benevolentes incluem Jo 2,23.33; 9,39; 11,9; 12,25; 13,1;16,11; 18,36.36. O fato de João deixar estas referências benevolentes ao lado de muitas outras hostis é outro exemplo do fato de que a comunidade não apaga o seu passado.

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Contudo, mundo tem um conceito mais amplo. Inclui “judeu” e gentio sem

distinção.341

Mundo não são somente os “judeus”. Mundo é também Pilatos, o

governador romano que afirma não ser “judeu” (Jo 18,33-38). Mundo são também

os gregos que procuram Jesus, depois que os fariseus apontaram: “o mundo

inteiro se põe a segui-lo” (Jo 12,19-20). O mundo, concretamente, é qualquer

pessoa e qualquer setor da humanidade ao qual Jesus é enviado como revelador do

Pai, luz do mundo (Jo 12,46-47). Cada pessoa e cada setor da humanidade é

também capaz de se fechar em si mesmo e assim se identificar com este mundo,

que Jesus deixa (Jo 13,1) para voltar à glória que ele possui junto do Pai, e que é

mais antiga e valiosa que este mundo, a glória que possuía antes que houvesse

mundo (Jo 17,5; cf. Jo 17,24). Quem assim se fecha é como os “judeus” aos quais

declara: “Vós não sois deste mundo” (Jo 8,23). Assim na primeira Carta de João,

o mundo vizinho já não são os “judeus”, mas a sociedade helenista, e é possível

que em certos textos do Evangelho a atitude de rejeição (ódio) apontada no

ambiente imediato dos discípulos esteja evocando, de fato, a sociedade em geral,

compare 1Jo 3,13 com Jo 15,18 e Jo 16,4.342 Como se vê, o “mundo” é em certo

sentido, uma potência maléfica que se identifica - enquanto manifesta a recusa

deliberada do Enviado de Deus - com o próprio demônio (1Jo 4,4). Não é de

estranhar que o próprio demônio seja chamado por João “príncipe do mundo”

(Jo12,31; Jo16,11). Enquanto o demônio age no mundo, Jesus é aquele que vence

o mundo e vem trazer a salvação-libertação para todos os que aderem à sua

presença libertadora. Embora o mundo tenha preferido as trevas à luz, Jesus não

veio para julgá-lo e sim para salvar o mundo (Jo 3,16-19).

Na luz-vida que chega ao mundo estão presentes o projeto de Deus e sua

Palavra criadora, seu ideal para o homem e sua interpelação ao

mundo/humanidade. Contudo, contradizendo ao desejo de vida implantado nela, a

humanidade não reconheceu o projeto divino, nem fez caso de sua interpelação.

Ainda que lhe fosse conatural, a rechaçou e com isso, rechaçou a vida. Vivia em

regime de morte, dominada pela treva, e se negou a responder ao ideal de

plenitude humana a que estava destinada pela própria criação.

341 Cf. BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado, p. 64. 342 Cf. KONINGS, Johan. “No Mundo, não no Mundo” Meditação sobre João e a Cultura, in: Estudos Bíblicos, p. 69.

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A frase “o mundo não a reconheceu”, referindo-se à luz e que descreve a

rejeição voluntária do projeto de Deus sobre o ser humano, anuncia o pecado do

mundo, que vai ser tirado pelo Cordeiro de Deus (Jo 1,29). A humanidade é

dominada pelo pecado, por aceitar um regime de opressão. Nega-se a se deixar

iluminar pela luz-vida, a deixar-se interpelar pela Palavra.343

No Novo Testamento ko,smoj é um termo cosmológico e teológico. O uso

teológico é mais comum, mas os dois significados às vezes se confundem. Deus é

o criador do ko,smoj (At 17,24). Este foi feito por meio da Palavra (Jo 1,10). O

ko,smoj pertence aos cristãos (1Cor 3,22). O mundo é a humanidade, o mundo do

qual os discípulos são a luz (Mt 5,14). O mundo como lugar da morada do homem

ou como humanidade, todavia, é conhecido mais freqüentemente em conexão com

o mundo em sentido teológico.344

O mundo em sentido teológico é o mundo como cenário do processo da

salvação. Ele não é somente o cenário, mas é um dos protagonistas do drama, pois

o mundo é a humanidade decaída, alienada de Deus e hostil a Deus e a Jesus

Cristo. Esta concepção é freqüentíssima nos escritos Paulinos e em João. O

mundo está em oposição a Deus. Foram os príncipes deste mundo que

crucificaram Cristo (1Cor 2,8), “príncipes do mundo” não no sentido de

governantes imperialistas, mas no sentido de governantes cujo poder está no

mundo e deriva do mundo.345

Em João o mundo é posto em maior evidência e a oposição entre Deus,

Cristo e o mundo é mais acentuada. O objetivo da salvação de Deus é o mundo e a

missão do Filho é para o mundo. Ele é a luz do mundo.346 O Verbo vem ao

mundo com uma missão. Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho

único, cuja missão não é condenar, mas salvar (Jo 3,16). Jesus dá a vida pelo

mundo (Jo 6,33).

343 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 52. “Não existe zona neutra entre a luz e a treva. A humanidade está submersa neste mundo e tem que sair desta zona neutra, para passar à zona da luz. Como estar na treva significa carecer de vida, viver em regime de morte, a passagem para a luz-vida equivale a nascer de novo Jo 3,3: se alguém não nasce de novo não pode vislumbrar o Reino de Deus; a uma ressurreição Jo 5,25: os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e os que a escutarem terão a vida”. 344 Cf. McKENZIE, John L. “Mundo”, Dicionário Bíblico, p. 638. 345 Cf. KONINGS, Johan. “No Mundo, não do Mundo”. Meditação sobre João e a Cultura, in: Estudos Bíblicos, fasc. 61. pp. 67-78. 346 Cf. Jo 1,9; 3,19; 8,12; 9,5; 12,46.

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Mas a humanidade pecadora à qual vem esta missão de salvação, não recebe

a missão nem o enviado. É neste aspecto que em João o “mundo” toma uma forma

de antideus, de uma realidade constante, que não é salva nem capaz de salvação.

O trágico está em que por nascença pertencemos a este mundo. Mas, Jesus resgata

a humanidade sofredora. Ele, em quem todas as coisas haviam sido criadas (Cl

1,16), foi estabelecido por sua ressurreição, chefe e cabeça da nova criação. Nesse

mundo novo a vida e a luz circulam agora em abundância: são dadas a todos que

têm fé.347

Os discípulos não são do mundo, como também Jesus não é do mundo (Jo

15,19). Por isso é que o mundo o odeia (Jo 15,18), tanto mais que ele é a sua luz

(Jo 9,5), que lhe traz a vida (Jo 6,33) que vem para salvá-lo. Os cristãos, como

Jesus, estão no mundo e em relação ao mundo têm a missão de ser luz. Esta

metáfora define, pois, a missão do Messias, por referência à missão libertadora do

servo de Deus segundo as duas passagens de Isaías (Is 42,6ss; Is 49,6ss). O servo

é a luz das nações. Cristo dá luz aos cegos (Jo 9,5) e liberdade aos cativos (Gl

5,1).348 Pois, o cativeiro é perda da liberdade e da luz.349

A história do cego de nascença deixa claro que todo ser humano necessita

do dom da visão, da luz, de Jesus (Jo 9,4-5.39.41). Se a percepção desta

necessidade é pressuposta pelo dom, então vemos que a revelação se apresenta

como um ataque a todos aqueles que não reconhecem esta necessidade da

salvação trazida por Cristo, luz da vida. Para ter acesso à vida plena e

indestrutível, o homem precisa compreender a si mesmo à luz da revelação.

Quando se encontra Jesus, ninguém pode permanecer na neutralidade, pois sua

vinda ao mundo é a intimação da luz, da exigência de conversão e do juízo divino.

Quem o acolhe como lugar onde se faz a experiência do amor de Deus pode

compreender que a Encarnação (Jo 1,14) constitui a ação mais fundamental da

iniciativa divina que assume a miséria humana e a salva mediante um amor

totalmente gratuito.350

347 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica, p. 633. 348 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 410. 349 Cf. SCHOKEL, L. Alonso & DIAZ, J. L. Sicre. Profetas I, p. 296. 350 Cf. BENTO, Santos Silva. Teologia do Evangelho de São João, pp. 368-380.

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4.7. Iniciativa e atuação recriadora de Jesus

O cego é morto em vida, assim como o inválido, enfermo quase durante

toda a sua vida (Jo 5,5), o cego nunca conhecera a luz/vida. Nele vai se

demonstrar o que Deus faz com os que nasceram e continuam privados de sua

condição humana. Juan Mateus351 afirma que o dito de Jesus: “Enquanto estou no

mundo sou a luz do mundo”352 está em continuidade com Jo 8,12: “Eu sou a luz

do mundo”. Como naquela passagem, esta expressão define a missão de Jesus por

referência à missão libertadora do servo de Deus segundo Isaías, como luz das

nações que vem abrir os olhos dos cegos (Is 42,6; 49,6). Configura-se nestes

textos a libertação da opressão trazida por Jesus que é a vida.

Só o Deus que criou para a plenitude de vida, da verdade e do amor pode

satisfazer os desejos que ele semeou no coração da humanidade. Ele nos foi

revelado por Jesus Cristo, seu Filho único. Ele é a vida que Deus dá, a luz que a

tudo e todos ilumina. O Verbo que se fez carne é o lugar hermenêutico da

revelação de Deus. Ele revelou a origem e o destino do ser humano. Escreve santo

Hipólito de Roma: “Esse Verbo o Pai o enviou no fim dos tempos. Não o queria

mais pronunciado por um profeta nem subentendido através de uma pregação

obscura, mas ordenou que se manifestasse de forma visível para que, ao vê-lo, o

mundo fosse salvo”.353

Na ação da cura, realizada por Jesus, o barro alude ao ato criador do divino

que se debruça sobre o ser humano. Fazer barro com a saliva significa a criação

do homem novo, simbolismo do sexto dia composto da terra/carne e da

saliva/Espírito de Jesus. O barro modelado com o Espírito é o projeto de Deus

realizado que é liberdade e vida, cujo modelo é o próprio Jesus. No ano de 1982,

Michel Gourgues O. P.,354 escreve um artigo salientando a ação de Jesus na cura

do cego. Segundo este autor “a ação desencadeia uma série de reações que se

deslancham e tomam o aspecto de um processo”. Este processo consiste em duas

interpretações do milagre e em duas tomadas de posição, opostas ao olhar do autor

351 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 315. 352 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 409. “Em Jo 8,12, a frase com artigo, a luz, definia Jesus e fundava o convite a segui-lo. Nesta passagem Jo 9,5 a frase sem o artigo, luz, descreve sua atividade iluminadora”. 353 Citado por BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 61. 354 Cf. GOURGES, Michel O. P. L’aveugle-né João 9 in: Nouvelle Revue Theologique, pp. 381-395.

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do Evangelho. O processo se afirma progressivamente, designando assim dois

encaminhamentos em sentido inverso: o cego de nascença se engaja sempre mais

a favor de Jesus, enquanto que os fariseus se endurecem e se colocam cada vez

mais contra ele. Deste modo o cego encontra, primeiramente a vista física, para,

em seguida, aceitar a luz da fé, enquanto que os fariseus são declarados cegos.355

De acordo com Gn 1,26-31, Deus criou a humanidade no sexto dia. No

Evangelho de João, o primeiro sinal, também aconteceu no sexto dia.356 Portanto,

o sinal realizado em Caná da Galiléia por Jesus (Jo 2,1-11), mostra o surgimento

da nova humanidade, ou seja, o grupo daqueles que aderem a Jesus pela fé. Todos

os outros sinais que Jesus realizará no Evangelho de João acontecem dentro deste

sexto dia. Isto mostra que sua ação apresenta a nova criação que o Pai realiza por

meio de Jesus. De fato, Jesus continuará trabalhando sempre (Jo 5,17), refazendo

a criação.357 Deste modo, Jesus em sua atividade é coerente com o tema da criação

do ser humano, dando uma chave de interpretação de toda a sua atividade

subseqüente, que consistirá em realizar o desígnio salvador de Deus, terminando a

criação do homem. Assim como na primeira criação, o homem ficou terminado

com a infusão do sopro vital (Gn 2,7), assim também a obra de Jesus em cada

indivíduo é levada a termo com a infusão do Espírito (Jo 20,22). Jesus inaugura o

novo período da vida da humanidade, que se identifica com a era messiânica

(Jo1,17).358

Tau/ta eivpw.n, Jesus toma a iniciativa do milagre. Além de mostrar uma

característica da narração dos shmei,a, cuja iniciativa de Jesus é comum no

Evangelho de João, este encadeamento com o início no v. 1, ou seja,

provavelmente, na busca de articular o núcleo histórico da narrativa do milagre,

355 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 410. 356 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Dia”. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. p. 57-58. “Ao terceiro dia - com esta expressão, o autor do quarto Evangelho, abre o episódio de Caná, completando assim, a sucessão dia a dia começada em Jo 1,29. João cria uma seqüência cronológica com o objetivo de datar o episódio de Caná. No primeiro dia: Jo 1, 19-28; segundo dia: Jo 1,29-34; terceiro dia: Jo 1,35-42; no quarto dia, Jesus sai para a Galiléia, chama Felipe e se verifica o encontro com Natanael Jo 1,43-51. “A datação seguinte é a que tem início o episódio de Cana: no terceiro dia, a partir do quarto Jo 1,43. Segundo o modo de falar daquele tempo, ‘no terceiro dia’ significa dois dias depois. O dia, em que ocorre o episódio de Caná é, portanto, na sucessão criada pelo evangelista, o sexto dia.” 357 Cf. BORTOLLINI, José. Como ler o Evangelho de João, pp.32-33. 358 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. “Criação”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 43-50.

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segundo alguns autores, Boismard359 e Meier,360 juntando gestos e Palavras na

ação recriadora do ser humano, Jesus mais uma vez, manifesta a sua íntima

relação com o modo de ser do Pai, no Antigo Testamento. Da Palavra, ou Verbo,

preexistente, João diz que a vida, que é a luz dos homens, está no Verbo. João

parece combinar e reunir os temas da criação e da salvação.361

A mesma Palavra ou Verbo que é um princípio criador da vida confere

igualmente a vida mediante a luz que ela traz, a luz da salvação. “Nele estava a

vida, e a vida era a luz dos homens” (Jo 1,4). A salvação nos é dada por pura

gratuidade. Deus, no Filho Jesus vem ao encontro dos pequenos e sofredores, se

debruça sobre a criatura, necessitada de sua presença libertadora. A graça,362 a

fonte de luz e vida se aproxima, toca com o barro aquele, que não por culpa sua,

nem de seus pais, mas pela atuação das trevas no ko,smoj, pois, nascer cego era não

conhecer a luz, a realidade e a verdade. E esta situação de dependência, penumbra

da vida, se estende desde o nascimento até a sua morte. Envolvido por esta

situação de trevas, o cego ainda não sabe o que é a verdadeira condição humana, o

objetivo para o qual Deus o criou, o que é fazer a experiência do encontro com a

vida, ou seja, estar de pé, em posição de igualdade com os outros homens. A

proximidade com o Deus da vida o impulsiona a caminhar ao encontro de sua

verdadeira identidade de filho de Deus muito amado.363

Pois bem, o autor não nos diz se os discípulos permanecem na cena. Mas é

provável que eles passem a ser os espectadores, enquanto que a atenção de Jesus,

neste momento, permanece fixa no que é bom, conforme o primeiro ato criador,

359 Cf. BOISMARD, M. E. & LAMOUILLE, A. l’Évangile de Jean. III - Synopse des Quatre Évangiles en Français, p. 145. 360 Cf. MEIER, John P. Um Judeu Marginal - Repensando o Jesus Histórico, pp. 45. 361 Cf. MOINGT, Joseph. Création et Salut, pp. 496-595. 362 Cf. CRISÓSTOMO, Juan. Homilias sobre El Evangelio de San Juan, p. 127. “Se a fonte de luz e vida que é Jesus, vem a este mundo e ilumina a todos, como é que nem todos são iluminados? É verdade que nem todos reconhecem o culto a Cristo. Então, como ele ilumina a todos os homens? Ilumina-o à medida que está com ele. Porém se alguém, por própria vontade, cerrando os olhos da mente, não quer receber os raios dessa luz, não é culpa da natureza da luz que este permaneça nas trevas, senão produto da maldade de quantos se privam desse dom. A graça tem sido derramada sobre todos: não se exclui nem o judeu nem o grego nem o bárbaro nem homem livre nem o escravo nem o ancião nem o jovem. A todos por igual, se admite gozar de seus benefícios. Quem não quer desfrutar deste presente, deve imputar-se a si mesmos sua cegueira. Estando aberto o caminho que conduz a tal honra e não fechado a ninguém, se esses, por sua livre vontade, ficam excluídos, se perdem somente por sua culpa”. 363 Cf. Citado por BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João, pp. 192-193. “Também segundo Bultmann a narração Joânica dos sinais não se baseia na tradição dos sinóticos, mas ‘comenta independentemente o motivo apresentado’. A diferença, segundo Bultmann está, sobretudo na discussão anexa, bem como no fato de que Jesus toma a iniciativa do milagre, o que é comum nas narrações Joânicas de milagres”.

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Pai de todas as criaturas. É sobre o que é bom, o mais precioso aos olhos de Deus,

entre todos os seres criados, ou seja, o ser humano,364 mas em estado de

fragilidade, limitado, necessitado do ser incomparável de Deus, luz e vida para a

humanidade que Jesus passa à ação. Põe-se a trabalhar na recriação do cego de

nascença e o recria, acrescentando aos gestos, Palavras. Palavra de vida.

Conferindo-lhe assim, por seu imenso amor, o acabamento perfeito do ser

humano, ou seja, a sua imagem e semelhança. Jesus apenas coloca diante dos

olhos o projeto de Deus sobre o homem. Depois de sentir a proximidade da luz da

vida, a decisão de obter a vista ficará em suas mãos. Jesus não lhe suprime a

liberdade, ele terá que ir, por sua própria iniciativa lavar-se na piscina.365

Embora em Gn 2,7 se diga que Deus o modelou do pó da terra,366 argila do

solo, em outras passagens do Antigo Testamento usa-se a palavra barro (Is

64,7).367 “Lembra-te de que me fizeste de barro”; “E, no entanto, Iahweh, tu és o

nosso Pai, nós somos a argila e tu és o nosso oleiro, todos nós somos obras das

tuas mãos” (Jó 9,6).

Recorde-se que o sexto dia do Messias é o sexto dia, no qual o homem foi

criado. No Evangelho de João o sexto dia começa com o casamento em Caná da

Galiléia. A partir deste primeiro sinal realizado Jo 2,1-12, surge a nova

humanidade, formada pelos que dão sua adesão a Jesus, pela fé.368

E;ptusen camai. kai. e.poi,sem phlo,n evk tou/ ptu,smatoj - o verbo poiew/ no

sentido concreto, é algo que exige a presença da mão, da ação materializada.

364 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Gênesis 1-11 - E assim tudo começou. pp. 62-63. 365 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, pp. 104-114. 366 Cf. ULLMANN, Reinholdo Aloysio. Deus Criou as Coisas do Nada, in: Revista Teocomunicação, pp. 3-11. 367 Cf. LÉON-DUFOUR Xavier. Lectura Del Evangelio de Juan I, p. 324. “Em geral os estudiosos são unânimes em dizer que a ‘lama’ ou o ‘barro’ serve para encenar a ruptura do sábado que será denunciada pelos fariseus Jo 9,15 conforme Jo 9,24; o gesto, no entanto, mencionado quatro vezes ao longo do relato Jo 9,6.11.14.15, permanece espantoso, não apenas porque todos os outros milagres de Jesus são produzidos apenas mediante a Palavra, mas porque aplicar barro aos olhos de um cego consiste simbolicamente, em reforçar a enfermidade; é, como diz Lagrange, ‘cegueira sobre cegueira’. A explicação relativa à ruptura do sábado dificilmente pode esgotar o sentido do gesto. Desde o século II, Irineu propôs uma compreensão simbólica: aproximando-se do ato pelo qual Deus formou o homem segundo o Gênesis, o gesto de Jesus significaria o término da primeira criação, em vista do ser perfeito que é o homem que crê”. 368 Cf. BORTOLINI, José. Como Ler o Evangelho de João, pp. 12-15. Em João 2,11 - “Todos os outros ‘sinais’ acontecem dentro de um ‘sexto dia’ simbólico. Por quê? O objetivo do Evangelho de João é muito claro. De acordo com Gn,1, a criação aconteceu no espaço de uma semana. No sexto dia Deus criou a humanidade à sua imagem e semelhança Gn 1,26-27”.

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Fazer significa envolver-se diretamente com a obra, com a transformação de algo,

usando a inteligência, a vontade e a tecnologia disponível.369

O simbolismo do barro nos remete ao primeiro relato da criação370 no qual o

ser humano é moldado por Deus do barro e nele sopra o espírito de vida (Gn 2,4b-

45). Jesus fez o barro com sua saliva. Pode-se imaginar que é bem possível que

Jesus tenha se debruçado sobre a terra e após amassar o barro com suas mãos, o

toma com ternura, a fim de ungir os olhos do cego. Há um elemento preexistente,

a terra, cuspiu na terra, e um elemento pessoal seu, a saliva. A saliva era

considerada como um elemento curativo dentro de muitas culturas, transmissora

de força ou energia vital para a pessoa. Aqui, a saliva faz as vezes da água

necessária para fazer o barro, resultado da mistura de ambos os elementos.

Percebe-se a intenção do evangelista: fazer barro com a saliva ressalta, aponta

para a recriação do cego de nascença, ou, o homem novo que se levantará após o

gesto recriador, simbolismo do sexto dia, composto da terra/carne e da

saliva/Espírito de Jesus.371

Em seguida como verdadeiro mestre, um sábio artesão, Jesus com o barro,

toca a ausência da vida: kai. evpe,crisen auvtou/ to,n pelo,n tou.j ovfqalmou.j. A

unção372com o barro está intimamente relacionada ao Messias, termo vindo do

hebraico, Ungido. Essa designação, se tornou no tempo apostólico,373 o nome

próprio de Jesus, e assumiu o conteúdo dos outros títulos por ele reinvindicados.

A messianidade de Jesus constitui objeto de explícitos atos de fé, por parte dos

discípulos (Jo 1,41; Jo 1,45.49) e também por Marta, no momento em que ele se

revela como a ressurreição e a vida (Jo 11,27). Depois da confissão de Pedro, a fé

mais autêntica, mas imperfeita, pois o título de Messias ainda corre o perigo de ser

entendido numa perspectiva de realeza temporal (Jo 6,15), Jesus assume uma

atitude de reserva no que se refere ao Messias. Salvo em (Jo 4,25) expresso na fé

369 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. O Evangelho de Marcos, p. 11. 370 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Messias”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 578-583. “Num sentido amplo, a unção divina significava a consagração dos reis com vistas a uma missão referente ao desígnio de Deus a respeito de seu povo. O Antigo Testamento às vezes fala da unção divina, onde há simplesmente uma missão a cumprir”. 371 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO Juan. “Espírito”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, pp. 90-96. 372 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Messias”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 578-583. “Num sentido amplo - a unção divina significava a consagração dos reis com vistas a uma missão referente ao desígnio de Deus a respeito de seu povo. O Antigo Testamento às vezes fala da unção divina, onde há simplesmente uma missão a cumprir”. 373 Cf. Jo 12,1-11 - Unção em Betânia - texto tardio, posterior à redação final do Evangelho.

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da samaritana, ele jamais se dá a Si próprio o título de Messias.374 Pois a sua

missão de cumprir o desígnio de Deus em relação ao povo como Messias

começará com a de Servo sofredor. O Filho do Homem entrará na sua glória pelo

sacrifício de sua vida. No livro de Isaías, a missão do Servo se descrevia como a

de um profeta perseguido.375 De fato, a única unção reivindicada por Jesus é a

unção profética do Espírito (Lc 4,16-22) paralelo a Is 1,45.49.

O barro modelado com o Espírito, ou seja, com a saliva, é o projeto de Deus

realizado. É a nova criação, cujo modelo é o próprio Jesus, a sua humanidade

cheia da glória amor de Deus: mas esta glória pertence à ordem da nova criação.

A glória temporal dos antigos ungidos de Iahweh era apenas uma longínqua

figura. Esta nova humanidade cheia de glória é o que Jesus põe diante dos olhos

daquele que nunca viu e não sabe o que é o ser humano iluminado, em sua

dignidade. Na ação recriadora, Jesus coloca perante os olhos do cego o homem

ungido pelo Espírito. Ao mesmo tempo, ele, como Ungido por excelência, realiza

a sua obra ungindo o homem. Ao ungir-lhe os olhos convida-o a ser homem

acabado, ungido e filho de Deus pela comunicação do Espírito.376

4.8. Lavar-se para ver

A imagem da água aparece freqüentemente no quarto Evangelho.

Inicialmente, ela está associada ao batismo e à purificação do crente. João Batista

proclama: Eu batizo com água, mas há um outro que batizará no Espírito Santo

(Jo 1,26.31.33). O rito batismal de João visa a purificação de todo o povo, que

fora prometida pelos profetas para os últimos tempos. É um batismo escatológico

cujos efeitos são a penitência e o perdão. Aqui se trata do rito de iniciação do

movimento batista. Este movimento religioso prepara a revelação de Jesus-

Messias.377

Como os grandes símbolos cósmicos, a água pode ter duplo valor. Além de

representar o elemento vital sem o qual o homem morre de sede, a água evoca

374 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 48. 375 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. “Servo”, Vocabulário de Teologia Bíblica, pp. 578-583. 376 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Evangelho de São João, p. 411. 377 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 374.

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também as forças da destruição, as águas caudalosas, as águas da morte.378

Pregando contra a apostasia de Israel, o profeta Jeremias (Jr 2,13) opõe Iahweh,

como fonte de água viva, às cisternas rotas, aos falsos deuses. O salmista expressa

sua sede do Deus vivo fazendo uso do simbolismo aquático: “Como a corça

suspira por águas correntes, assim minha alma suspira por ti, ó meu Deus!” (Sl

42,2-3; Sl 63,2). Aquele que pertence a Iahweh é semelhante ao rebanho que é

conduzido para águas tranqüilas (Sl 32,2) ou à árvore plantada junto d’água

corrente (Sl 1,3). No Tempo da salvação Israel será “como um jardim regado,

como uma fonte borbulhante cujas águas nunca faltam” (Is 58,11).

Segundo Dt 32,2 a água significa a palavra de Moisés. Ela se torna o

símbolo da “Torah”. Particularmente significativo é Eclo 24, onde o autor

identifica a sabedoria criadora com a Lei de Moisés (Eclo 24,23; Br 4,1) e

compara os benefícios desta com os rios paradisíacos (Eclo 24,25-27). A

Sabedoria se apresenta como um canal do qual procede a instrução e que regará as

gerações futuras (Eclo 24,33). Assim constata-se uma aproximação entre

Sabedoria, Lei e Espírito.379

Os textos de Qumran, publicados a partir de 1948, utilizam não poucas

vezes o símbolo da água. Hoje sabemos através da arqueologia que em Qumran

existiam banhos rituais, que no período mais antigo da comunidade serviam

provavelmente como ritos de purificação.380 Em sua vida litúrgica insistia-se

bastante na necessidade de viver em estado perfeito de pureza ritual. Todo

membro da comunidade devia banhar-se diariamente antes da refeição. Na regra

da comunidade falava-se de ritos de ablução em conexão com a conversão e a

recepção do Espírito. As purificações rituais seriam inválidas se não houvesse

disposições interiores sinceras.381

378 Cf. Ex 47,1-12; Ap 22,1-7; Jo 1,37ss. Vida. Ez 16,4-9; 36,24-27; Mt 13,11; 1Cor 6,11. Águas purificadoras. Gn 6-8; Jo 12,15; 40,23; Êx 26,19ss; Ap 12,15. Águas terrificantes. 379 Cf. Is 32,15 o profeta fala sobre o anúncio do dom do Espírito com o emprego de verbos concernentes à efusão ou à aspersão da água. Segundo Ez 36,25ss. a aspersão da água pura constitui o prelúdio ao dom do Espírito divino para a transformação dos corações: Ver também Ez 39,29; Jl 3,1; Zc12,10. 380 Cf. NEWTON M. The Concept of Purity at Qumran and in the Letters of Paul, pp. 10-52. Costuma-se distinguir dois períodos na história de Qumran: O primeiro período antecedente ao terremoto, de 31 até 4 a. C., após o qual Qumran foi abandonada. O segundo período vai do terremoto até a destruição de Qumran em 68-70 d. C. Do primeiro período temos os Hinos de Qumran que falam do batismo ou, mais precisamente, de ritos de purificação com a água. Sobre a relação desses banhos rituais com o ingresso na comunidade ou com a prática da purificação comum em todo o helenismo. 381 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 375.

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No Evangelho de João a água é mencionada no diálogo de Jesus com

Nicodemos (Jo 3,5) e justaposta ao Espírito no contexto do novo nascimento dos

filhos de Deus. Neste contexto Jesus explica ao seu interlocutor que, para entrar

no reino de Deus, é preciso renascer da água e do Espírito. Este nascimento pela

água é uma alusão clara ao batismo. Para a tradição cristã, a água batismal

representa o banho purificador (Ef 5,26), o meio para obter a salvação. João 4

apresenta os temas da água e do Espírito sob uma outra forma. A água do poço de

Jacó (Jo 4,4-6) dá lugar a considerações sobre a água viva (Jo 4,7-15), símbolo de

uma nova vida ou do Espírito, que Jesus, Messias e profeta pode dar (Jo 4,16-26).

O diálogo de Jesus com a Samaritana ocorre junto ao poço de Jacó em uma região

cheia de recordação patriarcal: Deus é o doador do poço no deserto, e a água deste

poço se apresenta como uma fonte borbulhante. Estes dois aspectos, dom e fonte,

estão subjacentes à temática Joanina. Jesus diz à Samaritana: “Se conhecessses o

dom de Deus” (Jo 4,10) e fala de fonte borbulhante (Jo 4,14). O evangelista

emprega o vocábulo fonte,382 para aludir ao milagre atribuído a Jacó.383

Levando em conta esta tradição, o evangelista se serve da linguagem

simbólica. A água do fundo do poço é uma água viva. A água prometida por Jesus

em Jo 4,13 é apresentada como dom futuro, ao passo que em Jo 4,10 ela é um

dom presente. Qual é este dom futuro da água? O contexto Joanino nos leva a ver

na água viva uma revelação feita aos pais. É precisamente o que sugerem os

dizeres à Samaritana no final do diálogo: “O Messias nos revelará todas as coisas”

(Jo 4,25). É de notar, porém, que os textos bíblicos utilizam a imagem da água

para designar o Espírito prometido por Deus. Segundo o simbolismo bíblico

tradicional (Ez 36,2.27; Jr 31,33), a água viva não é a revelação, mas o Espírito

Santo em sua função purificadora. É neste sentido que o próprio evangelista

interpreta a promessa de Jesus sobre os rios de água viva em (Jo 7,37): “Ele falava

do Espírito que deviam receber aqueles que tinham acreditado nele”. Esta

interpretação pode ser dada a (Jo 4,7-15)? Ambos os textos se colocam numa

perspectiva diversa. Seria certamente impossível pensar que o dom da água viva

(Jo 4,10) designasse o Espírito Santo. Para um melhor esclarecimento desta

382 Cf. Gn 24,11.20 - O termo poço é usado indistintamente como fonte em Gn 24,13.16.29.30.42.43.45, como aqui também em Jo 4,11ss; Jo 4,6.14. 383 Citado por SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João, p. 378. Segundo o Targum palestinense, cinco prodígios foram realizados por Jacó: “Quinto prodígio: quando o nosso pai Jacó levantou a pedra da boca do poço, a fonte transbordou e a (água) saiu na superfície e continuou a transbordar por vinte anos, todo o tempo em que habitou em Harã”.

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passagem, convém distinguir dois tempos da revelação em sua leitura

simbólica.384 No primeiro tempo, antes da Páscoa, a água viva designa

propriamente a revelação dada por Jesus (Jo 4,26).

A revelação completa e definitiva de Deus não se encontra na “Torah”,

simbolizada pela água da Sabedoria e pelo poço de Jacó, mas é constituída pela

pessoa do Filho unigênito do Pai. No segundo tempo pascal, trata-se da água que

Jesus dará depois de sua glorificação. É o tempo onde sua revelação pré-pascal

será plenamente compreendida e atualizada pelo Espírito.385 Nesta segunda

perspectiva, aberta aos tempos do Espírito, o dom da água viva prometido por

Jesus se identifica com o Espírito Santo, anunciado diretamente em Jo 7,37-39.

Portanto, a água viva designa, em um primeiro momento, a Palavra da revelação

que Jesus dirige à Samaritana. Em um segundo momento, alargando o horizonte

para os tempos messiânicos que começa com sua Encarnação, ele deixa entrever

que sua Palavra de vida deve ser interiorizada para produzir seus frutos: eis a obra

do Espírito.386

Deus o criador-salvador e fonte da vida, no seu modo de ser, também toma

sob a sua proteção a vida. É descrito como o manancial de águas vivas, Aquele

que dá vida aos que o buscam e praticam a sua justiça. Mesmo depois do acesso

proibido, com seus próprios meios, à árvore da vida,387 não desiste do ser

humano.388Cumpre a promessa de vida e enquanto espera proporcionar-lhe pela

morte do seu Filho, propõe a seu povo os caminhos da vida. Pois a vida e a morte,

a felicidade e a desgraça dependem da opção histórica que o povo faz entre

Iahweh, o Deus da liberdade e da vida, e os ídolos, que produzem escravidão e

morte. O Deuteronômio termina com este apelo forte: “Escolha a vida... amando a

384 Cf. POTTERIE, I. de la. La verité dans Saint Jean. pp. 693-695. 385 Cf. FRANCK, E. Revelation Tought. The Paraclete in the Gospel of John, pp. 41-51. O que deixa entrever Jo 14,25-26 quando caracteriza os verbos (ensinar) e (recordar): “o Espírito Paráclito permitirá a interiorização da revelação pré-pascal de Jesus mediante um influxo constante e progressivo. Trata-se de uma lembrança criadora, por meio da qual o Espírito torna presente o mistério de Cristo em consonância com a totalidade da História da Salvação”. Para análise dos verbos ensinar e recordar cf. FRANCK, E., na mesma obra pp. 41-51. 386 Cf. SANTOS, Bento Silva. Teologia do Evangelho de São João. pp. 373-376. 387 Cf. MESTERS, Carlos. Paraíso Terrestre - Saudade ou Esperança?, p. 48. 388 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Vida”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 2646-2647. “A declaração mais impressionante da piedade vétero-testamentária encontra-se no salmo 63,3: “A tua graça é melhor do que a vida”, que demonstra cabalmente quanto o conceito de vida no Antigo Testamento é vinculado à Iahweh, o Criador da vida”.

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Iahweh seu Deus... porque ele é a sua vida e o prolongamento de seus dias”.389

Jesus de Nazaré, que vem ao encontro do ser humano pelos caminhos da terra, é o

manancial de água viva que sacia a sede de todos os desejos e de todas as buscas,

é o caminho que se percorre para encontrar o que se busca, é a verdade a ser

acolhida, a fim de responder às perguntas mais essenciais e mais existenciais.

Quer se saiba, quer não, as sedes, as buscas, as perguntas são expressões do

desejo de encontrar o caminho que conduz à plenitude de verdade e de vida.390

Todas as luzes, as vozes, os gestos de todos os profetas, dos precursores e dos

seguidores de Jesus, o Messias, apontam para a vida e para a luz, para a verdade e

o caminho que o Verbo é e que o Verbo revelou. 391Assim, a idéia de Iahweh

como fonte de água da vida, é ecoada no Novo Testamento, sendo Jesus o

portador da água.392 Observa-se que Jesus não diz: eu sou a água, ao contrário vai

dizer: “Se alguém tem sede venha a mim e beba, aquele que crê em mim”

conforme a Palavra da Escritura: “de seu seio jorrarão rios de água viva.” Jesus se

revela como a água viva, que a sede profunda do ser humano deseja, a sede de

vida, a vida em plenitude. Uma vida que já não é marcada pela sede que deve ser

sempre saciada, mas uma sede, que a partir do seu interior a si mesma se sacia. O

grande símbolo do Espírito em João é a água,393 que mantém uma

correspondência, quase equivalência com a zoh,. A atuação recriadora se realiza

com gestos, entrelaçados às Palavras. É então que, após o gesto recriador, ele, a

fonte de água-vida-luz, pela Palavra, pede a colaboração humana. Deste modo,

Jesus põe o cego de nascença no caminho da vida que é ele mesmo, simbolizado

nas águas de Siloé que segundo o próprio autor, significa o “Enviado”. Kai. ei=pen

u]page eivj th.n kolumbh,qran tou/ Eilwa,m..

Jesus não pretende atribuir à água um poder mágico curativo. Talvez queira

pôr à prova a fé do cego, como fez Eliseu com Naamã (2Rs 5,10-13). É

importante a interpretação do nome de Siloé oferecida pelo evangelista (Jo 9,7). A

forma hebraica é um particípio ativo (que manda) aludindo ao canal que alimenta

o tanque. João ao invés interpreta o nome como se fosse um particípio passivo:

389 Cf. Pr 2,19; Sl 16,11; Dt 30,15; Jr 21,8. 390 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 70-71. 391 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, p. 71. 392 Cf. João 4,10; 7,37 e Ap 21,6. 393 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. Dicionário Teológico do Evangelho de São João, pp. 87-93.

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enviado, aludindo ao Messias, o enviado do Pai. O significado é evidente: é o

Cristo que cura.394

Pois bem, com o envio do Filho, apareceu neste mundo da morte a vida 1Jo

1,2, ao mundo das trevas veio a luz (Jo 1,5; 3,19), e isso pelo fato de que o Filho

de Deus veio ao mundo. É Jesus, que cronologicamente apareceu depois de João

Batista e do qual vale, não obstante, que ele existia antes deste (Jo 1,15-30). Sim,

é ele que afirma a respeito de Si mesmo, que já existia antes de Abraão (Jo 8,58).

E afirma ainda que existia antes da fundação do mundo (Jo 17,5-24) e no qual a

comunidade crê como no vapv avrch/j (1Jo 2,13ss). Nele a Palavra que no princípio

estava com Deus se fez carne (Jo 1,1.14) e veio para sua propriedade, isto é, ao

mundo como aquele do qual ele foi feito (Jo 1,9-11). Até que ponto pode tais

afirmações, que falam de forma mitológica de Jesus, o preexistente Filho de Deus

que se tornou homem, realmente ser entendidas no sentido mitológico? É

significativo que o início da Primeira Epístola, cujo conteúdo quer dizer a mesma

coisa que o prólogo do Evangelho, fala da vida que estava no começo junto ao Pai

e que apareceu de modo audível, visível e palpável na realidade divina do além no

espaço do mundo terreno. Jesus é o Cristo.j o uio.j tou/ Qeou/ o` eivj to.n ko,smon

evrco,menoj - Cristo, o Filho de Deus, que veio ao mundo (Jo 11,17). Em tudo o que

ele é, diz e faz, ele não deve ser entendido como uma figura deste mundo, e sim

seu aparecimento neste mundo, deve ser compreendido como um ser-enviado. Ele

é aquele que o Pai santificou e enviou a este mundo (Jo 10,36).395

O caráter de sua vinda como o revelador da realidade divina no mundo é

enfatizado pelo fato de que à sua vinda corresponde a sua partida. Por sua vinda,

portanto, ele não se torna um fenômeno do mundo, uma figura da história

mundial. Ele está aqui como um hóspede. Vem a hora em que deverá, despedir-se

(Jo 13,1). Ele pode e irá partir de novo (Jo 8,14). Como aquele que é enviado ele

não veio por vontade própria. Não vim por minha própria iniciativa, mas o Pai me

enviou (Jo 8,42). Justamente isso os seus reconheceram e assim o confessa a fé

(Jo 11,27), enquanto os “judeus” não sabem de onde ele vem (Jo 8,14) ou têm

394 Cf. MAGGIONI, Bruno in RINALDO, Fabris. Os Evangelhos II, p. 381. 395 Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, pp. 460-464. “Assim Deus é chamado de: o pe,myaj me path,r - o Pai que me enviou - esta expressão aparece 6 vezes em Jo 10,36; Jo 5,36; Jo 6,29; Jo 11,42; Jo 17,8; Jo,17-25 ou simplesmente o pe,myaj me - aquele que me enviou. E assim a comunidade confessa: nós vimos e testemunhamos que o Pai enviou o Filho como salvador do mundo 1Jo 4,14”.

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uma noção falsa a respeito (Jo 7,28) e os falsos mestres confessam que Jesus

Cristo “veio na carne”.396

Para a cultura judaica a vida era concebida como um todo integrado, não

havendo as distinções, do pensamento grego, de corpo, alma, razão e nem entre a

vida física, a vida intelectual e a vida espiritual. É usada para designar os seres

humanos como seres vivos. Vida é aquilo que se move. É associada com a luz,

com a alegria, com a plenitude, com a ordem e com o ser ativo397 e se contrapõe

com as trevas, com a tristeza, com a vaidade, com o caos e com o silêncio, que são

características dos seres mortos e inanimados (Ecl 1,8; Sl 115,17). Pois bem,

aquele que veio, enviado pelo Pai, pode dizer: “vá” ou, dizendo de uma outra

maneira, é o próprio Jesus fonte de luz e vida que envia o cego à piscina. O verbo

nos remete também a uma outra passagem do Evangelho “Vinde e vede” (Jo

1,37). Trata-se do relato da vocação dos primeiros discípulos que está todo

emoldurado pelo ver e pelo olhar. O relato começa com o olhar contemplativo de

João Batista que convida os dois discípulos que estavam com ele a olhar Jesus que

passa Jo 1,35-36. Em seguida é descrito como os dois primeiros discípulos olham

Jesus e o seguem Jo 1,37, e como Jesus, voltando o seu rosto para eles, toma a

iniciativa do diálogo e os convida a segui-lo para ver onde e como ele vive. Os

dois discípulos aceitaram o convite, foram com Jesus, viram onde morava e

permaneceram com ele (Jo 1,38-39). Assim o Jesus dos Evangelhos não é

conhecido de uma maneira puramente intelectual e teórica. O conhecimento de

Jesus Cristo se adquire na convivência com ele, seguindo-o pelos caminhos que

ele percorre. O seguimento de Jesus não é para espectadores, mas para atores

dispostos a percorrer caminhos longos e desconhecidos. Da mesma forma a

comunidade de Jesus é uma comunidade de videntes (1Jo 1,1-3). Ela começa a

existir quando Jesus é visto, olhado e seguido; e quando Jesus olha e cativa os que

o viram e seguiram. Para tornar-se discípulo de Jesus, é necessário recordar e

deixar ecoar na memória do coração, o que foi visto, ouvido e sentido no encontro

pessoal com ele.398 Assim, obediente à Palavra do mestre, o cego se levanta,

coloca-se a caminho, pois a cura não acontece automaticamente. É bem provável,

que aqui tenha continuidade o processo da cura, pois a passagem das trevas para a

396 Cf. BULTMANN, Rudolf. Teologia do Novo Testamento, pp. 460-464. 397 Cf. Sl 27,1; Jó 33,35; Pr 3,16; Gn 1. 398 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 67-81.

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luz se dá desde a proximidade da vida, ou seja, no olhar cheio de ternura de Jesus

para com o cego, no fazer e ungir com o barro, mas também no caminho, onde o

cego deverá aceitar a luz e optar livremente por ela (Jo 3,19-21; Jo 1,12).

A opção livre do homem se manifestará indo à piscina de acordo com a

Palavra imperativa de Jesus, se seguir o caminho que ele aponta e for ao lugar que

ele diz, encontrará a luz. O que era carne nascerá do Espírito (Jo 3,6)399 e se

tornará um homem novo, discípulo no caminho.

De um modo geral a água é antes de tudo fonte e poder de vida: sem ela, a

terra não é mais que um deserto árido, cenário da fome e da sede, onde homens e

animais estão condenados à morte. Contudo, há também águas de morte: a

inundação devastadora que transtorna e traga os seres vivos.400

O autor do Eclesiástico descreve com palavras bem modestas uma das obras

mais célebres da engenharia em tempos bíblicos, encontrada e pesquisada por

arqueólogos desde 1880: “Ezequias fortificou a sua cidade e conduziu água para

dentro dela. Cavou com ferro um canal na rocha e construiu reservatórios de

água” (Eclo 48,17). As águas da piscina de Siloé são águas da fonte Guion e se

referem ao túnel que Ezequias mandou escavar, através da colina sul-oriental da

cidade de Davi para conduzir as águas da fonte Guion, salvadoras em tempo de

assédio e purificadoras em tempo de paz, para um lugar dentro das muralhas (2Rs

20,20). Por ter um leve declínio as águas correm mansa e permanentemente.

Dentro das muralhas foi construído um novo reservatório, a chamada Piscina de

Siloé. A cidade de Jerusalém dispõe de uma única fonte de água perene chamada

Guion. Ela fica no vale Cedron, a leste da colina em cima da qual começou a

fundação desta cidade a chamada colina sul-oriental. A palavra Guion em

hebraico significa a jorradora. Sendo uma fonte de pouco volume, ela não dá

origem a um grande rio, senão a um pequeno córrego. Porém, como diz o seu

nome, forte e confiável - suas águas correm mansas e são perenes, não morrem

nem nos piores tempos de seca.401

399 Cf. MATEUS, Juan & BARRETO, Juan. O Evangelho de São João, p. 408 “A dupla menção de ungir, Jo 9,6.11 e da piscina Jo 9,7, termo que será utilizado para designar a fonte batismal cristã, mostram que se lê a atividade de Jesus através dos ritos de iniciação de uma comunidade”. No entanto alguns autores, dentre eles R. Bultmann nega a realidade sacramental de textos Joaninos como por exemplo: Jo 6,51-58. Aqui é negado o simbolismo sacramental referente à Eucaristia. 400 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica, pp.1068-1072. 401 Cf. OTTERMAN, Mônica. As Águas mansas de Siloé in: Estudos Bíblicos - Ternura Cuidado e Resistência, p. 62.

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Através dos tempos esta fonte foi-se constituindo a querida fonte Guion do

povo de Israel. O próprio Iahweh compara sua Palavra às águas mansas do

Siloé.402 Siloé vem do hebraico xlv com o significado de enviar, mandar. Ligado

ao campo semântico da água, significa um canal que manda águas de um rio ou de

uma fonte para outros lugares, com a intenção de levá-las para mais perto de suas

casas ou de espalhá-las no meio de canteiros e roças. Daí a relação entre as forças

curadoras de Jesus, o Enviado do Pai, e as águas da piscina de Siloé, da qual se

diz explicitamente que seu nome significa o “Enviado” (Jo 9,7).

4.9. Obediência e a transformação

A cura da cegueira é uma obra de Deus, realizada pelo Filho, o enviado do

Pai. Assim, o Cristo-Ungido, após o toque recriador de sua presença, através do

gesto da unção com o barro, envia o cego às águas da piscina pela força de sua

Palavra. O cego de nascença aceita prontamente as Palavras de vida do Mestre.

Jesus deixa em suas mãos a decisão da cura, cuja realização se dará através da

obediência, confirmada nos termos: avph/lqen ou=n kai. evni,yato kai. h-lqen ble,twn.

Na LXX, avkou,w representa consistentemente o hebraico [mv. O significado é o da

percepção dos sentidos.403 A apreensão, porém, entra imediatamente em jogo tão

logo a pessoa recebe uma declaração, uma notícia ou uma mensagem. A

apreensão exige a aceitação, a escuta (Gn 4,14; Gn 4,23; Gn 23,11); a

compreensão (Gn 11,7; Gn 42,3) e a atenção à coisa ouvida (Is 1,2-10; Jr 2,4; Mq

1,2). Logo [mv adquiriu, o significado de obedecer.

Na revelação bíblica, ouvir tem significância muito maior do que no mundo

grego. Isto porque Deus, na sua Palavra, se encontra com o ser humano, e o ser

402 Cf. OTTERMAN, Mônica. As Águas mansas de Siloé in: Estudos Bíblicos - Ternura, Cuidado e Resistência, pp. 59-72. Neste caso, o ponto de comparação não é a força e riqueza imediatas que brota da vida da natureza pela fecundidade da água na mãe terra, mas pelo lamento de Jr 2,13: “eles abandonaram a mim, a fonte de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rachadas que não seguram a água” A Palavra profética aproveita da situação, criada pela obra humana bem integrada ao seu ambiente. Oriundo da fonte Guion o canal tem uma inclinação tão insignificante que sua água corre devagar, mansa. Esta imagem de uma pequena corrente de água pacata, inofensiva e controlada adequadamente pela tecnologia humana, evoca o som de uma água que corre cantando e murmurando uma mensagem de paz e harmonia, de fartura e de beleza. Tudo isso torna-se símbolo de uma atitude pacífica, não violenta, cheia de confiança em Iahweh, atitude esta abandonada pela política. 403 Cf. 2Sm 15,10 - Por exemplo ‘ouvir uma trombeta’ “Absalão mandou emissários a todas as tribos de Israel para dizer-lhes: quando ouvirdes o som da trombeta, dizei uns aos outros: Absalão se fez rei em Hebron!”

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humano, portanto tem o dever de ouvir a Palavra de Deus. Tal fato não exclui a

revelação de Deus na esfera do visível. O processo mental não deve ser separado

da percepção dos sentidos. A revelação profética pressupunha que o conteúdo do

conhecimento, da vontade de Deus expressa na Lei já era conhecido. Os profetas,

como portadores da revelação divina, advertiram o povo, as nações, e até os céus e

a terra, que deviam escutar a Palavra de Deus que vinha através deles.

No Novo Testamento o conteúdo desta mensagem é Jesus Cristo, o Messias

prometido conforme a Antiga Aliança. Aqueles que nele crêem recebem uma vida

nova, a plenitude da salvação, bem como uma nova revelação que ultrapassa

aquela do Antigo Testamento. Esta revelação que nele foi manifestada, não se

percebe somente através da audição como também através dos sentidos.404

Essencialmente é uma questão de ouvir e ver. Jesus, nos Sinóticos

pronunciou bem-aventurados os olhos e ouvidos daqueles que ficaram sendo

testemunhas da salvação almejada pelos piedosos de gerações anteriores (Mt

13,16-17; Lc 10,23-24). Aos discípulos que João Batista, já na prisão, enviou para

Jesus, este disse: “Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo” (Mt 11,4;

Lc 7,22). Lado a lado com as Palavras de vida do Mestre Jesus, aparecem seus

atos poderosos que no Evangelho de João são os sinais, cuja intenção é ensinar,

revelar o salvador enviado ao mundo. No monte da transfiguração, os discípulos

de Jesus viram a sua glória oculta, e ouviram a voz que lhes dizia: “a ele ouvi” (Jo

8,43; Jo 12,20).

O entendimento deve acompanhar o ouvir, a fim de que a semente da

Palavra, jogada no coração do ser humano frutifique (Mt 13,23; Mt 15,10). A

atitude contrária que não entende a Palavra ouvida e não quer aceitá-la, tem como

resultado final o endurecimento, ou seja, permanece nas trevas.405 Embora, porém,

semelhante ouvir e entender é dádiva de Deus, não se exclui de modo algum, a

atividade humana. Do mesmo modo, como entre Cristo e o Pai se estabeleceu um

relacionamento, com base na escuta mútua, pois ele, conforme diz Paulo:

“Humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz!” Cristo, portanto, é o

modelo perfeito de obediência. Observa-se que o modo como o cego, já tocado

404 Cf. Jo 1,14 paralelo a 1Jo 1,1: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida”. A Palavra era considerada fonte de vida. Aqui o nome de Palavra é dado ao Filho de Deus, com quem conviveram os apóstolos, e o complemento lembra o que é desejado em Jo 1,3; Jo 5,11-13; Jo 1,1.14. 405 Cf. Jo 8,43; Jo 12,20.

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pela graça, ouviu a Palavra, o colocou em sintonia com o Mestre. A Palavra

libertadora e transformadora chega-lhe aos ouvidos, envolve todo o seu ser, o

coloca de pé, dando passos em direção à vida digna e abençoada a partir da luz.

Sai da inatividade, na qual vivia e passa a ser ativo o tempo todo, de tal modo que

a partir deste momento o cego de nascença mostra que ouviu o chamado, ainda

que entender por completo, supõe um longo e progressivo caminho, transparece

no seu modo de ser e de agir, a transformação que lhe ocorreu.

O itinerário se faz pela fé, ou melhor, a coragem de se por a caminho se faz

pela obediência “fidei”.406 Neste sentido, o chamado de Jesus para que se levante

da situação em que se encontra, mesmo antes de o ver,407 nos remete às palavras

do Mestre a Tomé: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram” (Jo

20,29). A fé do que fora cego cresce na adversidade, mas quem provoca esta fé e o

leva à maturação é o próprio Jesus. O cego pôde receber o presente da visão,

graças a sua abertura e a sua honestidade no esclarecimento da verdade, sobre ele

mesmo e sobre Jesus, conforme o autor nos informa mais adiante (Jo 9,13).408

O aoristo avph/lqen significa ir junto a , ou dirigir-se na direção de quem

chama. Indica um desejo de aproximação e segundo K. Stock409 à aceitação do

convocado, inicia um processo de conhecimento da identidade de Jesus, e ao

mesmo tempo, aquele que aceita o convite começa a ter um vínculo com o doador

de sua liberdade. É daí que advém a ação transformadora realizada por Jesus,

fonte de vida e luz para o cego de nascença. Aquele que foi visto voltou vendo,

pois, o olhar de Jesus, entrelaçado à sua ação, é provocador do dinamismo da

vida, coloca as pessoas em movimento para ir e vir. O ato de lavar-se não tem o

sentido da purificação, pois nem ele nem seus pais tinham pecado (Jo 9,3). Lavar-

406 Cf. McKENZIE, John L. “Obediência”, Dicionário Bíblico pp. 340-343 “A fé contém certo grau de obscuridade: ela concede total certeza e confiança, mas não permite a totalidade do conhecimento. O cristão caminha pela fé e não pela visão 2Cor 5,7. O cristão não vê a consumação da qual ele tem certeza. Para Paulo a fé também é obediência Rm 1,5; 16,26. O simples ato de fé se completa numa adesão cada vez maior a Jesus Cristo, até que alcance o ponto em que o crente viva com Cristo, crucificado com ele”. Gl 2,20. 407 Cf. BAUER, Johannes B. “Ver”, Dicionário Bíblico Teológico, pp. 450-453. “No Novo Testamento reina plena clareza quanto à impossibilidade de uma visão imediata de Deus nesta terra. Quando Filipe pede uma teofania, recebe a resposta: ‘Quem me vê, vê o Pai... não crês que estou no Pai e que o Pai está em mim?’ Jo 14,8-10. Somente na fé podemos ‘ver’ a Deus, isto é, chegar á união com ele. O Filho de Deus encarnado é a imagem perfeita do Pai e o caminho para ele. Foi na fé que os discípulos viram sua glória (Jo 1,14), sobretudo nos ‘sinais’ que ele operou Jo 2,11; 11,40”. 408 Cf. PALLARES, José Cárdenas. Jesus, a luz que ilumina e põe em evidência, in: RIBLA, O Discípulo Amado, pp. 36-43. 409 Citado por MAZZAROLO, Isidoro. Evangelho de Marcos, p. 114.

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se410 indica, portanto, a aceitação da água do Enviado, o Espírito, o amor que se

manifesta. Sua resposta ao amor oferecido foi a da abertura e acolhimento da luz.

O resultado da ação de Jesus e da aceitação por parte do cego tem como efeito a

visão. A mudança ou transformação, que se torna evidente a todos, consiste na

capacidade de ver e conhecer o que seja o homem e o mundo. Foi alcançada pelo

contato com o barro de Jesus, aceito por ele, ou seja, pela percepção do projeto de

Deus sobre o homem e a sua adesão a ele. Equivale a um dom de sabedoria que

lhe possibilita distinguir os verdadeiros valores dos falsos (Jo 9,13). E é então, que

o cego vê a luz, através do encontro com o Mestre, na obediência à sua Palavra e

através de sua ação recriadora. Por meio deste ensinamento a partir da vida,

recebeu o dom da percepção vital do que é o homem. Ele agora sabe, em si

mesmo, o que significa sê-lo. Esta experiência de transformação o orientará daí

em diante, em sua atitude frente aos que não o aceitam, com o brilho da Luz em

seu rosto. Depois de ser visto e obedecer às Palavras do mestre, o que tinha

nascido cego tornou-se irreconhecível. Quem faz a experiência de se deixar olhar-

recriar por Jesus, está também disposto a crescer na vida de fé. Quem é visto e

olhado ouve suas Palavras e as pratica, torna-se um ser humano novo, um

iluminado, é literalmente dado à luz, adquire uma nova consciência de sua

identidade e de sua dignidade, e, conseqüentemente, muda seu modo de viver, de

pensar e de agir.411

4.10. A nova identidade do cego

A ação transformadora, realizada a partir do olhar, gestos e obediência à

Palavra é tão radical, que é ao mesmo tempo provocadora de espanto, de incerteza

e de perplexidade, frente às pessoas que o conheciam, ou seja, começa neste

momento um diálogo entre os vizinhos e o ex-cego.412 Diante da luz, isto é, a vida

brilhando em todo o seu esplendor e força no rosto daquele, cuja visão foi-lhe

410 Citado por BENTO, Silva Santos, Teologia do Evangelho de São João, p. 79. “A propósito convém notar que a tese de R. Bultmann, segundo a qual Jo 6,51-58 terá sido acrescentado por um redator eclesiástico e que não teria nenhuma referência ao sacramento da Eucaristia na redação primitiva, foi superada pela tendência exegética atual. Esta superação derruba a tese de que o Evangelho de João não apresenta características sacramentais”. 411 Cf. BARREIRO, Álvaro. Vimos a sua Glória, pp. 122-125. 412 Conforme se esclarece na “crítica da tradição” - no Antigo Testamento não se tem notícia de nenhum caso de cura de “cego de nascimento”.

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dada, estabelece-se entre eles uma discussão a respeito de sua identidade. As

obras de Deus manifestadas, realizadas pelo Filho o Enviado, tinham também o

objetivo de introduzir a discussão, cuja lembrança evoca o ambiente dividido em

torno da obra de Jesus (Jo 7,10-13) e espelha a divisão reinante entre os “judeus”

e a comunidade Joanina, algumas décadas depois. Jesus afasta-se, e avança para o

primeiro plano as outras pessoas com suas reações.

Esclarece-se aos poucos que o modo da atuação da luz-Jesus quer

demonstrar como que por meio de um processo a realidade do milagre. Mas quer

também revelar as diversas posições ante Jesus, as diversas reações defronte à

verdade.413 Sem dúvida afirma-se com clareza e insistentemente a realidade do

milagre, pelo testemunho dos vizinhos, interrogação do cego, mas quer também

mostrar que os fariseus fecham os olhos para o que é evidente.414

Pela primeira vez, aparece na perícope a informação de que o cego era

também prosai,thj. Ser mendigo é ser excluído da sociedade. O cego não tem

nome. A “sociedade não dá nome e não trata as pessoas pobres, pecadores,

mendigos ou cegos pelo nome”.415 O cego era imóvel, impotente, dependente dos

outros. Jesus ao dar-lhe a vista, deu-lhe mobilidade e independência. O caso do

cego apresenta estreito paralelismo com o do inválido. Um estava atirado, o outro

assentado, ambos sem poder valer-se da característica própria da vida, o

movimento. São mortos que recebem a vida (Jo 5,21), oprimidos que recebem

liberdade. Pois também o paralítico é figura do povo paralisado, à espera de

alguém que o liberte. Jesus vai ao encontro do paralítico e o ordena que se levante

e ande, encontrando sua liberdade e decidindo seu próprio caminho.416 Para Jesus

413 Cf. McKENZIE, John L. “Verdade”, Dicionário Bíblico, pp. 956-957. “Bultmann pôs em evidência que a ‘verdade’ em João tem uma força particular e especificamente cristã. O termo é comum em João e é freqüentemente combinado com outros termos-chave Joaninos como luz e vida. A força deste sentido particular Joanino é evidente no diálogo de João 8. A verdade que Jesus apresenta é alguma coisa que pode ser conhecida, no sentido hebraico de conhecimento e que liberta 8,32. Quem é da verdade, escuta a sua voz. Verdade é a realidade de Deus divinamente revelada, manifestada nas Palavras e na pessoa de Jesus Cristo. Sem esta Verdade, o humano é ignorante e enganado”. 414 Cf. MAGGIONI, Bruno in RINALDO, Fabris. Os Evangelhos II, pp. 378-382. 415 Cf. MAZZAROLO, Isidoro. Lucas em João, p. 197 “A sociedade, em qualquer lugar, e em qualquer tempo, olha para os pobres, prostitutas, mendigos e cegos e trata-os sempre pelo nome coletivo. Ao olhar para um pobre não se pergunta pelo seu nome. Ainda que o cego seja o representante da cegueira da humanidade. João segue a mesma linha de Lc 7,38-40, respeita os paradigmas sociais e mostra como Jesus resgata as pessoas sem nome, sem identidade e sem distinção, mas ironiza as pessoas que têm nome e posição social que se outorgam o direito de desprezar os outros”. 416 Cf. NICCACI, Alviero & BATTAGLIA, Oscar. Comentário ao Evangelho de São João, p. 90-94.

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e seu Pai, o importante é a vida e a liberdade. Elas estão acima até mesmo das leis

religiosas e da opinião de quaisquer autoridades. O autor Joanino situa o milagre

do paralítico no contexto do agir divino que conduz a criação ao seu supremo

acabamento. O dia a que se refere indiretamente o evangelista é, pois, o

verdadeiro sábado, aquele em que a obra de Deus culmina, por meio de seu

Filho.417

No entanto o inválido não tirara as conseqüências de sua experiência de vida

e liberdade: continuava na antiga sujeição (Jo 5,14). O cego, pelo contrário, não

necessita de que Jesus o avise. Essa experiência relativiza para ele toda a

autoridade e ensino dos mestres, os dirigentes do tempo. Origina daí o fato de

João anotar duas vezes que é maior de idade (Jo 9,21; Jo 9,23), ou, atingiu a

maturidade da fé. A experiência do Espírito (Jo 5,7): a água do Enviado terminou

nele a obra criadora.418

A dúvida sobre a identidade do cego aponta para a nova condição de

“homem-espírito” e reflete ao mesmo tempo, a novidade que o Espírito produz;

sendo o mesmo, é outro. É a diferença que se faz sentir, entre um homem sem

liberdade e o homem livre que mostra a sua independência com relação ao

julgamento dos dirigentes, em proclamar a sua verdadeira identidade.

A passagem das trevas para a luz se faz com o novo nascimento no Espírito.

O cego é o homem nascido no seio das trevas, ou a mentira, a qual, ocultou o

projeto de Deus para ele. Ao untar-lhe Jesus os olhos, com o seu barro (Jo 9,6), fá-

lo ver o brilho da luz-verdade: a vida contida no projeto divino faz-se luz para ele.

Ao aceitar livremente a água do Enviado (Jo 9,7), o Espírito o ilumina e ele

recupera a visão.

417 Cf. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João II , p.19-28 418 Cf. MATEOS, Juan & BARRETO, Juan. “Criação”, Vocabulário Teológico do Evangelho de São João, p. 166. “Os episódios do inválido Jo 5,1 e do ‘cego de nascença’ Jo 9,1 mostram a chamada de Jesus à liberdade. No primeiro caso, a figura do inválido representa a multidão destroçada pela opressão que os dirigentes exercem por meio da Lei. A submissão à lei os priva de movimento e vida. Jesus dá a força para andar por si mesmo e escolher o seu caminho; não lhe pede que o siga, mas simplesmente lhe dá a liberdade. Ao ver que o homem continua submetido à instituição que o oprimia, Jesus lhe avisa onde está o perigo para ele Jo 5,14. Esta libertação origina a polêmica. Em Jo 9,1 é diferente. O cego não é homem submetido voluntariamente à Lei, mas um oprimido que nunca conhecera a dignidade humana Jo 9,1: cego de nascimento - sua situação era de inatividade e dependência Jo 9,8. Também Jesus não o chama a seguí-lo; deixa-o enfrentar as conseqüências de sua nova condição; o homem mostra sua liberdade diante dos vizinhos e dirigentes rebatendo seus argumentos, até que é expulso Jo 9,34. Então o encontra Jesus Jo 9,35”.

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A experiência de vida que lhe comunica o Espírito desvenda-lhe a verdade:

verdade sobre ele mesmo e sobre o Deus-amor que leva o ser humano à sua

plenitude, dando-lhe a vida, a dignidade humana, a identidade (Jo 9,9): e,go ei,mi 419 pelo novo nascimento. Deriva desta expressão nos lábios do cego, um auto-

reconhecimento do seu novo ser. O ex-cego atesta em seu corpo a luz da vida que

é Jesus. É uma declaração pública de sua verdadeira identidade. Esta verdade

adquirida na experiência do toque, unção, no ouvir e entrar em comunhão com a

Palavra do Mestre, no caminho, o tornará um aprendiz itinerante, o sustentará em

sua fidelidade à verdade - defendida a cada nova interpelação no que se segue.

Esta verdade o coloca dialogando com os que o conheciam. Ela é a sua sabedoria.

Com ela torna-se possível, opor-se aos dirigentes, que, ao condenar a ação de

Jesus continuam propondo a mentira de um Deus que antepõe o preceito legal à

integridade e plenitude do ser humano.420 A verdade421 de sua identidade

descoberta o tornou um homem novo, livre, incompatível com a instituição que

são as trevas. E o lançaram fora (Jo 9,34).

4.11. O testemunho do homem curado

O substantivo marturi,a significa fazer declarações como testemunha, sendo

que a sua forma mais antiga ficou sendo ma,rtu,j cujo sentido é a confirmação de

um fato, ou evento. Seu conteúdo pode ser mais exatamente definido como

lembrança reflexiva e interrogativa, “relembar”, isto é, chamar para a consciência

alguma coisa que alguém experimentou e que não pode ser negligenciada ou

esquecida, e que agora, neste sentido é trazida à atenção de outras pessoas, a fim

419 Cf. COTHENET, E. & DUSSAUT, L. & FORT, P. & PRIGENT, P. Os Escritos de João e a Epístola aos Hebreus, p. 284. “Os ‘eu sou’ seguidos de um atributo não são outra coisa que a revelação da realidade divina, que se manifestou sobre a terra em Jesus: ‘Eu sou o pão da vida’ Jo 6,35, ‘Eu sou a luz do mundo’ (Jo 9,5), ‘Eu sou a porta das ovelhas’ Jo 10,7, etc. Os bens representados por estas metáforas só podem ser encontrados em Jesus. O pão, a luz, o pastor e o rebanho, a vida são símbolos que expressavam, na pregação profética, a relação de Deus com o seu povo. Por conseguinte, os ‘Eu sou’ em sentido figurado podem ser uma adaptação da simbologia do Antigo Testamento. Finalmente, quanto aos ‘Eu sou’ em sentido absoluto de João, reconhecemos em Jo 8,28.5 e Jo 13.19 que Jesus reivindica a participação na eternidade de Deus. Nestes textos, Jesus aplica a si mesmo o nome divino inefável referindo-se quer à grande teofania de Ex 3,14, quer à fórmula habitual de revelação: ‘Eu sou Iahweh’. O E,go, o Jesus que fala como o revelador do Pai, é sim, o Eu do Lo,goj eterno que estava no princípio da criação, o Eu do próprio Deus”. 420 Cf. João 9,16; 9,24. 421 Cf. McKENZIE, John L. “Verdade”, Dicionário Bíblico, p. 956.

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de transmitir a estas, por meio de declarações apropriadas, o conteúdo desta

experiência: aquilo que foi experimentado ficará sendo evidente mediante o

testemunho. O âmbito original da palavra do mundo grego é claramente a esfera

jurídica.422 Pessoas comparecem a fim de dar testemunho em um inquérito judicial

a respeito de eventos. São mencionadas nominalmente e apõem suas próprias

assinaturas abaixo do texto.

A idéia de um testemunho ou de uma testemunha que derivem de

convicções subjetivas que não possam ser averiguadas não é conhecida no Antigo

Testamento, nem tem qualquer lugar no judaísmo. A palavra adquiriu pela

primeira vez sua importância específica na teologia bíblica no Novo Testamento,

mais precisamente, em Atos e na literatura Joanina.

Das 76 ocorrências do verbo marture,w 43 se encontram em João. Do uso

frequente da palavra testemunha no Evangelho de João deriva que o conceito de

testemunha também tem maior relevância teológica para este escritor do que para

todos os demais.

João resume o conteúdo do evento de Cristo e do Evangelho no conceito de

Lo,goj. O testemunho em favor de Jesus é a Palavra (Jo 5,39), à qual se atribuía

autoridade divina. De fato, ela contém a mensagem do Pai (Jo 5,38), que Jesus

cumpre (Jo 8,55). Isto faz dela testemunha em favor dele. Contudo, para

demonstrar a origem divina de sua missão, Jesus aduz como único testemunho à

qualidade de suas obras, feitas em favor do homem (Jo 10,25).

As suas obras são testemunho decisivo e último, pois em virtude de

comunicarem a vida e libertarem o homem, são testemunho do próprio Pai (Jo

5,37). As obras, que são ao mesmo tempo suas e do Pai, são a voz simultânea de

duas testemunhas. Assim o testemunho é válido, conforme o que relata o

evangelista (Jo 5,31; Jo 8,18). Por isso, adota também o verbo marture,w e o

substantivo marturi,a, isto é, duas palavras que denotam ação, a fim de expressar o

evento da comunicação divina em todos os seus aspectos.423

422 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Testemunha”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, p. 1246. 423 Cf. COENEN, Lothar & BROWN, Colin. “Testemunha”, Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pp. 2510-2514.

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O Evangelho de João é emoldurado, dinamizado pelo testemunho, como que

um fio condutor do início ao fim do escrito,424 e que por sua vez, está

intimamente relacionado com a fé em Jesus, Messias e Filho de Deus. Isto já é o

suficiente para indicar que a partir da afirmação: “creste porque viste. Felizes os

que crêem sem ter visto” (Jo 20,29), pode-se reconstruir todo o processo do crer,

como o concebeu o evangelista: Jesus de Nazaré, o fato histórico - que, ao realizar

sinais, revela aos discípulos sua glória. A glória do Pai que é a vida dos seus; os

discípulos que viram creram e por isso testemunham; a comunidade posterior que

crê sem ter visto, confiando no testemunho dado pelos que viram. Aqui se pode

dar um passo adiante e deter na observação dos versículos425 que não afirmam

simples e genericamente uma conexão entre os sinais realizados por Jesus e o crer,

porém mais precisamente, entre os sinais escritos e o crer. Com isso, a intenção de

João fica transparente e, por conseguinte, também a ótica com que se deve encarar

a leitura do seu Evangelho. O escrito ocupa o lugar de testemunho dos discípulos,

diante do qual Tomé deveria ter crido sem pretender ver. A história de Jesus

ocupa o lugar do ver. Ao adentrar no texto o leitor, tornando-se como o discípulo,

contemporâneo de Jesus, entra em contato com uma história diante da qual alguns

viram, creram e testemunharam, os discípulos, e outros viram, mas não creram,

por isso não são testemunhas, “os judeus”. O leitor é convidado a tomar uma

posição.426

Em face destas prerrogativas, se considerarmos que a palavra ma,rtuj

designa a testemunha, e que martiri,a e martiri,on são decorrentes da primeira

raiz, da qual procede em português a expressão mártir, podemos então, entender

que a figura das testemunhas e o esquema de testemunhos na redação do

Evangelho de João foi uma imposição da condição histórica do martírio e luta que

a comunidade de João vivia.

424 Cf. Jo 1,7-8: “Este veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz”. E na forma de uma tese: “Pois eu de fato vi, e tenho testificado que ele é o Filho de Deus - ‘Este é o discípulo que dá testemunho dessas coisas e foi quem as escreveu; e sabemos que o testemunho é verdadeiro’ Jo 21,24. Em relação ao termo ‘sabemos’ - a Bíblia de Jerusalém anota que aqui talvez fale um grupo de discípulos”. 425 Quem dá testemunho é aquele que escreveu Jo 21,24 e a mesma indicação se observa em Jo 21,25: “Há, porém, muitas outras coisas que Jesus fez e que, se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se escreveria”. 426 Cf. MAGGIONI, Bruno in FABRIS, Rinaldo. Os Evangelhos II, pp. 255-257.

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Assim, o Evangelho resgata do anonimato, testemunhas pobres e ignoradas,

que não foram lembradas na tradição Sinótica, mas que tinham em sua piedade

comprometida e sofredora o perfil de muitos irmãos e irmãs da comunidade

Joanina.427

Johan Konings afirma que o homem que foi curado torna-se uma valente

testemunha da adesão a Jesus, para a comunidade Joanina. Enfrenta o confronto

com os dirigentes do tempo e a conseqüente exclusão da Sinagoga. Atesta

corajosamente para os que o interrogam a verdade do que se passou em seu ser. A

partir da luz que brilhou em sua vida, o cego fez a passagem das trevas para a luz,

nasceu de novo e está envolvido na causa que procura apresentar. Foi curado de

sua cegueira, de modo que tem um impulso interior e que transparece no exterior

através do brilho da visão que lhe foi dada, para pleitear a crediblidade de outras

pessoas. Não pode deixar de falar do que experimentou em seu próprio corpo com

o novo nascimento, pois ele não testifica com suas próprias forças, mas sim no

poder persuasivo do Espírito. Através da proximidade da luz no caminho que o

fez “ver” ele tem consciência desta verdade de que o Espírito está ativo em

desafiar o mundo com a veracidade daquilo que está dizendo, estampado no seu

rosto, na sua nova identidade, no seu novo modo de ser. O que se pode ler por trás

da sua coragem em defesa da verdade, é que ser tocado pelo testemunho de Jesus

por meio da ação recriadora que lhe devolveu a vida, o colocou no serviço de

testemunha. Foi impulsionado pelo dinamismo da vida a passar adiante e revela

que há um poder inerente na marturi,a, por meio do qual Deus não dá aos homens

meramente um conhecimento intelectual, mas também os coloca em ação. A

marturi,a permite que a pessoa compartilhe do caminho, mas também do

sofrimento e da perseguição de Cristo conforme vai acontecer mais adiante. O

cego foi expulso da Sinagoga (Jo 9,34).

Uma vez estabelecido o fato, prossegue a investigação sobre o “como” lhe

aconteceu e suas conseqüências. Em Jo 9,10 aparece pela primeira vez a partícula

interrogativa pw/j cuja ocorrência se verifica várias vezes no texto,428 e exprime a

incompreensão frente às obras de Jesus levando assim a uma repetição múltipla da 427 Cf. LOCKMAM, Paulo. O Evangelho de João e o Testemunho Criativo do Povo in: Estudos Bíblicos - Criatividade na Crise, pp. 42. “Neste sentido há no esquema das testemunhas um resgatar criativo da memória dos pobres e marginalizados, numa quase perfeita circulação hermenêutica, onde os pobres da Ásia Menor? (ou Éfeso?) se enxergam na figura dos pobres do Evangelho de João”. 428 Cf. Jo 9,15; Jo 9,16; Jo 9,19; Jo 9,21; Jo 9,26.

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resposta, o que cria um efeito literário de insistência que condiz com o

acontecimento inaudito - como se abriram os teus olhos . Para dizer que ele vê, o

homem usa esta fórmula que substitui o simples “ver” 429 (Jo 9,7), através desta

expressão hvnew,|cqhsa,n sou oi ovfqalmoi, que se repete várias vezes em seguida (Jo

9,14; Jo 9,17; Jo 10,21; Jo 11,37). O motivo é que, a fórmula, sendo modelada

sobre Is 42,7, tem conotações messiânicas e indica, por isso, a cura física e ao

mesmo tempo a iluminação espiritual (Mt 9,30; Mt 20,33; At 26,18).

A;nqrwpoj - o termo adquire importância em todo o relato onde ocorre em

referência ora ao cego, ora a Jesus.430 Na boca do curado, que ainda não conhece

Jesus Jo 9,12, exprime o primeiro grau de compreensão de sua pessoa, mesmo que

na intenção do evangelista o termo possa ter um significado mais profundo. Pois,

a expressão “o Homem-aquele Homem” em Jo 9,35 remete ao “barro de Jesus”

sua própria imagem, com a qual ele unge os olhos do cego”(Jo 9,6; 9,11)

mostrando o que significa a plenitude humana. A expressão nos lábios de Jesus

significa sua própria humanidade que possui a plenitude do Espírito, o projeto

divino sobre o homem realizado nele, o modelo de homem, o vértice do ser

humano. É a realidade de Jesus vista de baixo, desde sua raiz humana, que se

ergue até a sua absoluta realização pela comunicação do Espírito. O seu

correlativo é o título o Filho de Deus, que significa a mesma realidade vista desde

cima, desde Deus, designando o que é totalmente semelhante a ele e possui a

condição divina. Ao aceitar ser modelado, iluminado com as águas do Espírito, o

homem que fora cego, aceita ser também divinizado em sua humanidade, chega à

sua dignidade de vida e chegará do mesmo modo, passando por estágios

intermediários, a um entendimento maior de quem é o homem que o curou,

expressa na resposta dada às autoridades da Sinagoga: é um profeta (Jo 9,17) e

um homem de Deus (Jo 9,33), até ao conhecimento perfeito de Jesus, “Filho do

Homem”431 expressa na confissão de fé (Jo 9,35-38). É impressionante a

429 Cf. SUQUÉ José Maria Casabó, La Teologia Moral en San Juan, pp. 95-100. Sem dúvida o “ver” somente, não basta. Os testemunhos oculares necessitam crer, antes de terem visto. “A verdadeira fé implica um ato interior que se realiza no coração dos que crêem; o fato de ‘ver’ e ‘ouvir’ deve ser seguido deste ato interior.” Em conjunto ver e crer dão a vida eterna. A má fé que desse modo nega a Jesus e se exclui da vida, está estupendamente dramatizada na cena da cura do cego de nascimento. “Os ‘judeus’ buscam todas as escapatórias possíveis para evitar a significação do fato de que estão vendo: o que era cego, agora vê, é Jesus quem lhe tinha dado a luz. Em contraste com eles, o ex-cego de nascimento é símbolo vivo do homem iluminado por Jesus”. 430 Cf. Jo 9,12 “Não sei” conforme Jo 9,16; Jo 9,24; Jo 9,30. 431 Cf. JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento, pp. 412-418.

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fidelidade à verdade atestada no testemunho do ex-cego. Sabe que o homem se

chama Jesus, que no contexto poderia aludir ao seu significado etimológico, Deus

salva, mas não o conhece, ouvk oi=da. O certo é que, seguindo suas instruções, após

o gesto recriador, obteve a vista.

O que evidencia a importância deste texto como relato de sinal é o tema da

“luz do mundo” formulado em (Jo 9,5). Jesus está presente como a luz do mundo,

o Mestre no caminho que dá a vida e a tudo ilumina. Ao símbolo da luz

corresponde a dupla reação humana da cegueira e da visão, como respectivamente

expressão da descrença e da fé, da condenação e da salvação que Jesus traz à

humanidade. Além disso, o próprio curado aparece como testemunha de Cristo e o

é em virtude de sua ação recriadora e da obediência à sua Palavra, juntando neste

ato a ação divina, com a colaboração humana que o faz levantar-se, colocar-se a

caminho na busca da maturidade cristã. O testemunho consiste em que ele não

pode fazer outra coisa, a não ser testemunhar a sua cura realizada pelo pedagogo

Jesus. Ao falar da cura, tem que falar também de seu salvador, o que veio trazer a

luz da vida e o fez “ver”. Por isso é lógico que a discussão sobre sua cura se torne

uma discussão sobre o próprio Jesus, embora ele não esteja presente. Se, se faz a

leitura num segundo nível de tempo, segundo assinala-se acima - o tempo de Jesus

e o tempo da comunidade Joanina - o relato trata de um confronto entre a

comunidade cristã e a comunidade judaica no tempo do evangelista e do seu

círculo.432 Mas é bem possível que nestas duas sub-unidades, se possa dizer que o

texto é costurado por um fio condutor: o conceito gêmeo luz-vida, onde o cego,

nasce para uma nova existência, a partir de sua adesão a Jesus.

432 Cf. SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio Según San Juan II p. 302. “a exposição reflete claramente as circunstâncias históricas do evangelista e de sua comunidade. Dois são os pontos principais que se destacam: 1 - o confronto acerca da messianidade de Jesus e 2 - o processo de exclusão da comunidade judaica”.

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Conclusão

O testemunho é amostra final da atuação de Jesus e da adesão do cego de

nascença. Percebe-se, portanto, um fio condutor, no entrelaçamento dos termos

luz-vida, cuja evidência se faz sentir no desenrolar de todo o relato e que ao

mesmo tempo nos reporta ao final do Evangelho. João afirma que escreveu para

conduzir os crentes à fé em Jesus, o Cristo, e para que, crendo, tenham a vida em

seu nome Jo 20,31. Nesta perspectiva o testemunho é também sinal do dinamismo

pelo qual o homem foi tomado, desde o momento em que fora envolvido pelo

olhar do mestre Jesus. Iluminado pela presença da luz-vida para a humanidade, e

obediente à sua Palavra, o cego levanta-se, começa a ver, dá passos em direção à

vida, nasce para uma nova existência e faz a passagem das trevas para a luz.

Assim chegamos ao final do nosso intento, deixando para o leitor o desafio

de continuar o aprofundamento da reflexão, sobre a pedagogia da luz, que aponta

para o modo de ser de Jesus e que se torna essencial para a compreensão sobre a

nossa posição frente ao mistério. Todo estudioso de Jesus Cristo faz a experiência

que testemunhou São João da Cruz, o místico ardente: “Há muito que aprofundar

em Cristo, sendo ele qual abundante mina com muitas cavidades, cheias de ricos

veios, e por mais que se cave, nunca se chega ao termo, nem se acaba de esgotar;

ao contrário, se vai achando em cada cavidade novos veios de novas riquezas,

aqui e ali, conforme testemunha São Paulo, quando disse do mesmo Cristo: ‘Em

Cristo estão escondidos todos os tesouros de sabedoria e ciência’ Col 2,3”.433

Nosso objetivo foi o falar da pedagogia da luz na recriação do cego de nascença,

em cuja atuação se entrelaçam os termos luz e vida, tendo como resultado a

transformação que lhe ocorreu. De algum modo julgamos tê-lo alcançado. Pois se

pode afirmar, pela trilha que seguimos nesta dissertação, que em Jesus como luz

do mundo, o ser humano é recriado. Deus, em seu Filho Jesus, vem ao encontro

dos necessitados de sua luz, a fim de libertá-los e elevá-los à grandeza de sua

dignidade humana.

433 CRUZ, São João da. Subida do Monte Carmelo in: Obras Completas, p. 285.

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