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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
MARIA CLARA PEREIRA E SILVA
A NOÇÃO DE RELAÇÃO NA TEORIA COGNITIVA DE
DURANDUS DE ST. POURÇAIN
CAMPINAS
2018
MARIA CLARA PEREIRA E SILVA
A NOÇÃO DE RELAÇÃO NA TEORIA COGNITIVA DE
DURANDUS DE ST. POURÇAIN
Dissertação apresentada ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos para a
obtenção do título de mestra em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Márcio Augusto Damin
Custódio
ESTE EXEMPLAR CORREPONDE À VERSÃO FINAL.
DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA MARIA
CLARA PEREIRA E SILVA, E ORIENTADA PELO PROF.
DR. MÁRCIO AUGUSTO DAMIN CUSTÓDIO.
CAMPINAS
2018
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado composta
pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 06 de
junho de 2018, considerou a candidata Maria Clara Pereira e Silva aprovada.
Prof. Dr. Márcio Augusto Damin Custódio
Profª. Drª. Fátima Regina Rodrigues Évora
Prof. Dr. José Antônio Martins
A ata de defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no
processo de vida acadêmica da aluna.
Aos meus pais, Josilma e Silvano.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao CNPq pelo financiamento desta pesquisa.
Sou muito grata a todos que de algum modo colaboraram para realização desta
dissertação.
Agradeço ao professor Márcio Damin por me orientar, ensinar e incentivar desde o meu
primeiro semestre de graduação, sem o qual meu trabalho não existiria.
Agradeço ao professor Tadeu Verza e ao professor José Martins pelas arguições
valiosas e sugestões na ocasião de minha qualificação.
Agradeço à professora Fátima Évora e à professora Sueli Sampaio pelos ensinamentos e
palavras sempre certeiras.
Agradeço aos colegas do Grupo de Pesquisa Metafísica e Política pelos debates e pelas
oportunidades de discutir meus textos.
Agradeço aos queridos Evaniel Brás (que me adotou como sobrinha e eu adotei como
meu tio) e Matheus Pazos com os quais aprendi e aprendo muito e que sempre
acreditaram em mim. Sem vocês eu não teria esta dissertação.
Agradeço ao Matheus Monteiro pelas reflexões valiosas sobre o papel do historiador e
da historiadora da filosofia e ao Angelo de Oliveira pela ajuda de sempre e pela
amizade. Agradeço também à Eveline Diniz pelo companheirismo, à Andreia Araujo
pela inspiração e ao Odécio Barnabé Jr. por me ensinar a olhar além da razão.
Agradeço aos meus pais, Josilma e Silvano e meus irmãos Nickolas e Erick pela família
que somos. Aos meus avós Jorge, Maria, Rosa, Sebastião e Graça pelo amor e
sabedoria.
Ao meu esposo Lucas, não só meus agradecimentos, mas também todo meu amor e
admiração.
Um filósofo
Um velho coqueiro
- interrogativamente –
mira-se no brejo.
(Oldegar Vieira)
RESUMO
Esta dissertação tem por escopo analisar a noção de relação no interior da teoria
cognitiva de Durandus de St. Pourçain, no Comentário às Sentenças de Pedro
Lombardo I, d. 3, q. 5 e II, d. 3, q. 5. Para Durandus, quando o intelecto opera por meio
de um ato cognitivo, nenhuma entidade absoluta é adicionada a ele. A cognição, ou
pensamento, é tratada pelo autor como uma entidade relativa e não como algo que o
intelecto possui, ou que é adicionado a ele de maneira real. Nessa medida, a cognição é
entendida como o modo pelo qual o poder cognitivo se relaciona com outras coisas que
não ele mesmo. Ao determinar sua noção de relação, Durandus sustenta um processo
cognitivo independente das noções de espécies inteligíveis, universais e intelecto
agente. A presente investigação visa apresentar a maneira pela qual Durandus nega os
pressupostos necessários para a sustentação de uma teoria cognitiva baseada no
processo abstrativo e sustenta sua própria teoria cognitiva por meio da sua noção de
relação.
Palavras-chave: abstração, cognição, relação.
ABSTRACT
This thesis aims to analyze the notion of relation inside of the cognitive theory of
Durand‟ of St. Pourçain Commentary on the Sentences of Peter Lombard I, d. 3, q. 5 e
II, d. 3, q. 5 [A] e [C]. For Durand, when the intellect acts by a cognitive act, no
absolute entity is added to it. The cognition, or thought, is treated by the author as a
relative entity, not as something that belongs to the intellect, or as something that is
really added to it. Therefore, the cognition is understood as the way through which the
cognitive power relates with other things different from itself. Determining his notion of
relation, Durand sustains a cognitive process independent from the notions of
intelligible species, universals and agent intellect. This investigation aims to present the
manner in which Durand denies the assumptions needed to sustain a cognitive theory
based on the abstract process and sustain his own cognitive theory through his notion of
relation.
Key-words: abstraction, cognition, relation.
LISTA DE ABREVIATURAS
In Sent [A] – Corresponde à primeira versão do Comentário às Sentenças de Durandus
de St. Pourçain redigida em 1307-8.
In Sent [B] – Corresponde à segunda versão do Comentário às Sentenças de Durandus
de St. Pourçain redigida em 1310-12.
In Sent [A/B] – Corresponde à edição crítica do Comentário às Sentenças de Durandus
de St. Pourçain que une ambas as edições dispostas paralelamente.
In Sent [C] – Corresponde à terceira versão do Comentário às Sentenças de Durandus
de St. Pourçain redigida em 1327.
In I Sent [C] d. 3, q. 5, n. 6. – Corresponde ao Comentário às Sentenças de Durandus
de St. Pourçain, Livro I, distinção 3, questão 5, parágrafo 6.
SUMÁRIO
Introdução .............................................................................................................. p. 12
1- A inviabilidade da operação de um intelecto agente no processo cognitivo.. p. 27
1.1- A inviabilidade da operação do intelecto agente sobre os fantasmas................ p. 31
1.2- A inviabilidade da operação do intelecto agente sobre o intelecto possível...... p. 44
1.3- A crítica Durandiana ao intelecto separado........................................................ p. 68
2- O processo cognitivo............................................................................................ p. 67
2.1- O intelecto angélico como experimento de pensamento: um panorama geral... p. 68
2.2- O conhecimento compreendido como a relação entre o objeto cognoscível e o
poder cognitivo para Durandus de St. Pourçain....................................................... p. 82
3- A tradução do Comentário às Sentenças de Durandus..................................... p. 94
3.1- Tradução do In I Sent [C], d. 3, q. 5................................................................... p. 97
3.2- Introdução à tradução do In II Sent [A], d. 17, q. 1.......................................... p. 115
3.3- Tradução do In II Sent [A], d. 17, q. 1............................................................. p. 118
Conclusão............................................................................................................... p. 126
Bibliografia............................................................................................................. p. 128
12
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo investigar a maneira pela qual Durandus de St.
Pourçain constitui uma nova teoria cognitiva baseada no conceito de relação. Tal
constituição ocorre por intermédio da negação de que o intelecto agente atue abstraindo
das características individuantes do fantasma (ou imagem sensível) tendo em vista uma
essência universal. Para Durandus, a verdade não é a correspondência da universalidade
presente no singular com o conceito universal inteligido pelo intelecto. Isto porque,
segundo ele, não há universalidade independente do intelecto e ao singular só cabem
qualidades singulares. Como a existência de uma essência universal nos singulares é
negada não haveria o que abstrair e, assim, a abstração também deve ser rejeitada como
parte do processo cognitivo. Dado que a existência do intelecto agente só é afirmada
devido a sua função de abstrair a essência universal, sendo negada tal função, o intelecto
agente seria supérfluo e, por isso, deveria ser também negado como parte fundamental
da cognição. O intelecto agente é falso e desnecessário para a compreensão da cognição
humana. Este é um processo tão natural quanto a sensação, pois ambas são os atos
segundos do homem. Sensação e intelecção são consideradas como dois lados da
mesma moeda, quando uma ocorre a outra também ocorrerá necessariamente.
Durandus, portanto, nega que a cognição seja um processo abstrativo, contendo
mediadores entre objeto material e intelecto imaterial, e afirma que a cognição é
intuitiva e direta. O objeto de conhecimento tem a capacidade de ser conhecido e o
intelecto tem a capacidade de conhecer seu objeto, assim, estando presentes um ao
outro, a cognição intuitiva ocorre necessariamente.
No intuito de compreender o processo segundo o qual Durandus estabelece suas
críticas e suas interpretações, segmentei meu trabalho em algumas etapas. Na
introdução procurei apresentar o contexto intelectual e de disputas filosóficas nas quais
Durandus se insere. No primeiro capítulo analisei o modo pelo qual Durandus
desqualifica os argumentos que sustentam a necessidade de postular a noção de intelecto
agente compreendido como constituinte da alma humana. Para tanto, dediquei-me à
investigação do Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo [C] I, d. 3, q. 5. Além
disso, para compreender a extensão da negação da noção de intelecto agente feita por
Durandus, investiguei sua crítica feita às teorias que defendem a existência de uma
inteligência eterna, una e separada. Segundo Durandus, não é possível aceitar a
13
existência de um intelecto agente seja unido, seja separado da alma humana. Durandus
não traça apenas uma distinção analítica entre intelecto agente e intelecto possível, a
negação é total: não se deve multiplicar princípios. Este ponto é defendido por
Durandus no Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo [C] II, d. 17, q. 1, o qual me
propus a analisar. No segundo capítulo procurei determinar qual é, para Durandus, a
natureza própria do ato de conhecer. Para tanto, inicialmente exponho brevemente como
a questão do conhecimento era tratada por Tomás de Aquino, Henrique de Gant, Duns
Scotus e Guilherme de Ockham no intuito de disponibilizar um panorama geral no qual
Durandus se encontra. Assim, ao examinar como Durandus estabelece sua teoria da
cognição, as questões que ele procura evitar estão minimamente delimitadas e é possível
vislumbrar melhor os pontos de originalidade deste autor. Ressalto, neste último ponto,
o tratamento dos conceitos de relação e de causa sine qua non, eles serão
preponderantes para a compreensão das estratégias segundo as quais Durandus garante a
capacidade do viator de constituir um conhecimento verdadeiro. Esta capacidade pode
ser compreendida mais claramente quando Durandus se utiliza do intelecto angélico
como experimento de pensamento para a compreensão da operação de um intelecto em
condições ideais, separado das condições individuantes da matéria. Este experimento
revela os pressupostos metafísicos e epistemológicos fundamentais a partir dos quais
Durandus desenvolve toda a sua filosofia e, particularmente, sua teoria da cognição.
Privilegiei, neste capítulo, a análise de trechos do Comentário às Sentenças de Pedro
Lombardo [A] II, d. 3, q. 5 e 6. No terceiro capítulo apresento a tradução do In I Sent
[C], d. 3, q. 5 e In II Sent [C], d. 17, q. 1, com o objetivo de fornecer acesso ao texto
original de Durandus e possibilitar uma maior independência ao leitor. Ambas as
traduções correspondem a questões da versão [C] do In Sent de Durandus. Esta obra é
composta por quatro livros: o primero livro trata sobre Deus e o caráter científico da
teologia, o segundo livro trata sobre Criação, Angeologia e é onde podemos identificar
o tratamento do tema da cognição, o terceiro livro trata sobre Cristologia e o quarto
livro sobre os Sacramentos.
Analisei a bibliografia primária e secundária com a finalidade de contextualizar
Durandus em meio aos debates que ele iniciou e que tomou parte na história da
filosofia. Este estudo me possibilitou entrar em contato, não só com uma linha de
pensamento única e inovadora, até então pouco explorada, mas com toda uma dinâmica
de produção de conhecimento a partir de disputas filosóficas nas quais ele toma partido.
O pensamento de Durandus e sua repercussão foram determinantes para as teorias que
14
estavam sendo produzidas no séc. XIV1e, reconhecidamente, influenciaram outros
pensadores que o sucederam2.
Em um momento no qual a ordem dos dominicanos procurava consolidar seu
pensamento unificando-o, Durandus começa a produzir suas obras nas quais defende
teses que contradizem os ensinamentos de sua ordem. Desde o início de sua formação
suas teses provocam conflitos com as autoridades dominicanas. Segundo Mulchahey “o
caso de Durandus eventualmente se tornou a disputa teológica mais duradoura na
história da ordem dos dominicanos3”. O conflito, gerado pelas teses de Durandus e
alimentado por seus seguidores, somadas às medidas tomadas contra ele pelas
autoridades da ordem, podem ser apontados como fatores responsáveis pela criação de
uma identidade dominicana.
O fato de que Durandus redigiu seu In Sent três vezes é um indicativo de que
suas ideias foram alvo de repressão durante toda a sua trajetória intelectual. A primeira
repressão vinda da ordem dos dominicanos aconteceu devido ao impacto da sua
primeira redação do In Sent [A] que foi divulgada sem prévia autorização. Redigido no
ano acadêmico de 1307-08, enquanto Durandus servia como cursor Sententiarum sob o
mestre dominicano Hervaeus Natalis em St. Jacques. A divulgação do seu In Sent [A]4
colocou seu pensamento no centro do debate de escolas locais e studia avançadas de
Paris sendo debatido por outros bacharéis e mestres em suas leituras, disputations e
recebendo tratados em resposta.
As inovações de Durandus foram sentidas como um impacto pelas autoridades
dominicanas que defendiam o pensamento de Tomás, não porque Durandus tivesse sido
o primeiro pensador a se diferenciar de Tomás, mas porque suas críticas representavam
um perigo à autoritas de Tomás. Desde que se levantaram em resposta às condenações
de 1277, as autoridades da ordem vinham se esforçando para fortalecer a imagem de
1 Um exemplo do impacto do pensamento de Durandus é o número de textos escritos pelos tomistas
da época, em especial por Herveus Natalis, com o objetivo de rebater (e corrigir) Durandus. Cf:
LOWE, 2003, p. 72-83. 2 O que é atestado pelo fato de as teorias de Durandus terem sido objeto de estudo na cátedra de
nominalismo na Universidade de Salamanca no séc. XV. GILSON [1947] aponta Durandus,
juntamente com Pedro de Auriol (1280-1322), como predecessor de Guilherme de Occam (1285-
1347). - Sobre a teoria cognitiva de Ockham cf. PANACCIO, 2004; PERINI-SANTOS, 2007;
GUERIZOLI, 2010; DE OLIVEIRA, 2013; PANACCIO, 2015. 3 MULCHAHEY, 1998, p. 159.
4 Em sua “Conclusio operis et modo ac tempore quo autor opus hoc prescripsit” Durandus afirma
que esta primeira redação de seu trabalho, o In Sent [A], fora divulgado por frades entusiastas de seu
trabalho e circulava pela ordem sem a sua autorização. Sobre este assunto recomenda-se conferir
VOLLERT, 1947, p. 165-166.
15
Tomás como autoritas com o intuito de unificar o pensamento dominicano em torno da
filosofia do autor e criar uma coesão intelectual na ordem dos frades pregadores.
Mesmo em vida Tomás de Aquino possuía simpatizantes entre seus alunos e
colegas, além de uma série de críticos, inclusive entre dominicanos, como por exemplo
John Pecham, além de Henrique de Gant e Godfrey de Fontaines que atacavam
abertamente a sua concepção de ciência. Em 1277, apenas três anos após a morte de
Tomás, o bispo parisiense Ètienne Tempier reuniu uma comissão de dezesseis mestres
para examinar os erros da faculdade de Artes. Esta reunião teve como resultado o
banimento de 219 proposições consideradas erradas, dezesseis das quais teriam sido
retiradas dos escritos de Tomás. Esta lista foi seguida, 11 dias depois, pela condenação
de 30 teses controvérsias de Tomás, apontadas por uma comissão de mestres da
Universidade de Oxford convocada pelo arcebispo de Canterburry, Robert Kilwardby5.
A resposta dos primeiros seguidores de Tomás já começa a se delinear nos
Capítulos Gerais que se seguiram à condenação. Em 1279 o Capítulo Geral de Paris
declara que a ordem se posiciona de maneira favorável a Tomás:
Uma vez que a venerável memória do frade Tomás de Aquino, sua
louvável conversão e seus escritos tenham honrado muito nossa
ordem, não seja sustentando dele próprio ou de seus escritos ditos
desrespeitosos e inadequados. Deste modo fica determinado que as
províncias e conventos devem punir severamente e sem hesitação seus
vigários e visitantes caso se excedam nos itens acima mencionados.6
Além de determinar que o posicionamento intelectual da ordem deveria ser
seguido por seus integrantes, o Capítulo determina que ações disciplinarias deveriam ser
usadas caso algum membro falasse contra Tomás. Os frades poderiam manter suas
visões contrárias, desde que de modo privado, pois, caso se posicionassem abertamente
contra Tomás, teriam que enfrentar as punições previstas. A restrição da liberdade
intelectual é tratada como questão de disciplina necessária para não diminuir a memória
daquele que muito honrou a ordem com seus escritos. E esta restrição encontra um
5 Três das teses listadas tratavam da unicidade da forma substancial em matérias compostas.
6 Acta I (Paris, 1279) p. 204: “Cum venerabilis vir memorie recoldende fr. Thomas de Aquino, suo
converstione laudabili et scriptis suis multum honoraverit ordinem, nec sit aliquatenus tolerandum,
quod de ipso vel scriptis eius aliqui irreverenter et indecenter loquantur, eciam aliter sencientes, iniungimus prioribus provincialibus et conventualibus et eorum vicariis ac visitatoribus universis,
quod is quos invenerit excedentes in predictis, punire acriter non postponant”.
16
crescente, verificada pelas admoestações feitas aos frades dominicanos através do
Capítulo Geral de 1280, para que eles tratassem assuntos teológicos e morais em
detrimento de assuntos filosóficos em suas aulas e disputationes7.
A pressão externa à ordem também permanecia, sendo alimentada mais uma vez
pelo franciscano William de la Mare que, ocupando a cadeira de teologia franciscana
em Paris, escreve seu Correctorium fratris Thomere, onde critica 117 artigos da Suma
de Teologia, questões disputadas, quodlibets e o In Sent.8 Até 1284, seu Correctorium
foi respondido com, pelo menos, cinco Correctoria corruptorii fratris Thomere,
produzidas pelos dominicanos William Hothum, Robert Orford, Richard Knapwell,
William Macclesfiels e Rambert de Bologna9.
O Capítulo Geral de 1286 segue este movimento de defesa de Tomás afirmando
que os frades dominicanos deveriam conhecer, promover e defender a doutrina de
Tomás.
Todos os frades, e cada um deles, conforme souberem e puderem,
promovam de maneira eficaz a venerável obra e doutrina do mestre fr.
Tomás de Aquino, promovendo sua memória ou, ao menos,
defendendo a opinião dele. E, caso alguém faça o contrário [...] deve
ser suspenso de seu ofício próprio até que a ordem do mestre ou do
Capítulo Geral assim o restitua. 10
E a preocupação das autoridades da ordem se estende por todos os níveis da
hierarquia que a compõem. Pois não apenas os líderes, mas também os frades que
começavam seus estudos nas escolas conventuais deveriam ser ensinados por meio das
teses de Tomás e habilitados a defendê-las. A vigilância era feita de perto. O Capítulo
Geral de 1303 trata sobre as consequências do não cumprimento das regras estipuladas:
7 Acta I (Paris, 1280) p. 209: “Monemus. Quod lectores et magistri et fratres alii questionibus
theologicii et moralibus pocius quam philosophicis et curiosis intendente”. 8 MULCHAHEY, 1998, p. 146.
9 LOWE, 2013, p. 54.
10 Acta I (Paris, 1286) p. 235: “Ut fratres omnes et singuli, prout sciunt et possunt, efficacem dent
operam ad doctrinam venerabilis magistri fratris Thome de Aquino recolende memorie
promovendam et saltem ut est opinio defendendam. Et si qui contrarium facere. Attemptaverint
assertive; sive sint magistri sive bacallarii. Lectores. Priores et alii fratres eciam aliter sencientes, ipso facto. Ab officiis propiis et graciis ordinis sint suspensi. donec per magistrum ordinis vel
generale capitulum sint restituti”.
17
Uma vez que a negligência da observância das ordens dos Capítulos
for demasiado notável, determinamos primeiro que todos os vicários
que observam de perto o que foi acima mencionado punam os
transgressores com diligência. Pois, por essa premissa, aqueles que
foram negligentes devem ser punidos pelos provinciais e visitantes. 11
A transgressão ao pensamento padrão da ordem representa um perigo à unidade
intelectual da ordem e deve ser punida pelos responsáveis do local e também pelos
frades designados para visitar e inspecionar as escolas dominicais. No entanto, todas as
precauções destes Capítulos Gerais não impediram a transgressão sentida com a
circulação do In Sent [A] de Durandus em 1308. Mulchahey tem como hipótese de que
Durandus não tenha sido severamente punido por suas teses, pois ele teria afirmado que
seu Comentário que começou a circular sem aprovação prévia do mestre geral da
ordem, fora disseminado sem a sua permissão. No entanto, o Capítulo Geral de 1309
trouxesse um aviso que pode ser interpretado como direcionado especificamente a
Durandus:
Determinamos e desejamos que todos os leitores e sub-leitores leiam e
concluam segundo a doutrina e a obra do venerável doutor e frade
Tomás de Aquino, e em suas escolas informem e estudem-no com
diligência. Quem, portanto, for encontrado evocando, notadamente,
admoestações contrárias, deve ser grave e rapidamente punido pelos
priores provinciais ou pelo mestre da ordem, para que seja feito de
exemplo. 12
Como o In Sent [A] de Durandus estava sendo amplamente discutido nos vários
níveis da ordem, as autoridades dominicanas temiam que as teses desviantes da doutrina
de Tomás crescessem entre seus membros, tornando ainda mais difícil a tarefa de
11
Acta I (Paris, 1303) p. 284: “Cum ex negligencia prelatorum regulares observancie et ordinaciones capitulorum nimis notabiliter negligantur iniungimus prioribus universis et vicariis
eorumdem quod circa observanciam predictorum et punicionem transgressorum curam adhibeant diligentem qui autem circa premissa fuerint negligentes per priores provinciales e visitores debite
puniantur”. 12
Acta II (Saragossa, 1309) p. 38: “Item. Volumus et districte iniungimus lectoribus et sublectoribus uniuersis, quod legant et determinent secundum doctrinam et operam venerabilis doctoris fratris
Thome de Aquino, et in eadem scolares suos informent, et studentes in ea cum diligencia studere
teneantur. Qui autem contrarium fecisse notabiliter inventi fuerint nec admoniti voluerint revocare, per priores provinciales vel magistrum ordinis sic graviter et celeriter puniantur, quod sint ceteris in
exemplum”.
18
unificação de um pensamento dominicano. Assim, o Capítulo determina a promoção da
doutrina e obra de Tomás pelos lectores e sub-lectores, determinando que suas aulas e
suas leituras não poderiam desviar das do „venerável doutor‟.
Mulchahey encara a publicação do In Sent [B], como uma resposta desobediente
de Durandus13
às recomendações do Capítulo de 1309 e à hierarquia da ordem que
recebeu com desconforto a disseminação desautorizada e o grande debate sobre o In
Sent [A]. Embora seja possível argumentar em sentido contrário. O In Sent [B],
publicado em 1310-12, contém a mesma redação da versão [A], com exceção de suas
teses mais controversas localizadas no livro II14
que foram reformuladas para esta
publicação. Caso tal reformulação não fosse feita, seria muito difícil que Durandus
tivesse recebido o título de mestre em teologia em Paris em 1312. Contudo, apesar de
apesar de receber o título, Durandus ainda é encarado como um risco para a unidade
intelectual da ordem15
.
As transgressões de Durandus são motivo de preocupação e geram
recomendações específicas no Capítulo Geral de Metz de julho de 1313:
Uma vez que a doutrina do venerável doutor e frade Tomás de Aquino
é considerada senhora e universal, e nossa ordem deve segui-la
especialmente, determinamos que é proibido a qualquer frade quando
estiver lendo, determinando ou respondendo afirmar de modo
contrário a ela. Visto que a opinião do doutor supracitado é
considerada universal, não se deve recitar ou confirmar nenhuma
opinião singular contra o que foi dito pelo doctor communis, com a
finalidade de conhecê-la e considerá-la pertinente, mas apenas
13
MULCHAHEY, 1998, p. 154. 14
Na lista de 1314 que continha 93 testes censuradas do In Sent [A] e [B] de Durandus (o “Articuli
nonaginta tres extracti ex Durandi S. Porciano O.P. primo scripto super Sententias et examinati per magistros et baccalarios Ordinis”) podemos verificar algumas teses que os frades apontam como
erradas, falsas, irracionais, fictícias e que aparecem do comentário antiquo [A] mas não no novo [B].
Destaco, por exemplo, a proposição [19] que trata do ato imanente e causa sine qua non: “huiusmodi actus immanentes sunt a generante per se et ab obiecto solum sicut a causa sine qua non”; a
proposição [20] trata da intelecção de objetos “angelus intelligit alia a se non per essenciam suam nec per species sed per ipsarummet rerum presenciam in se vel in causis, quam presenciam facit
ordo, qui non est aliud quam proporcio intellectus angelici ad omne illud quod participat natura
entis”e as proposições [29] e [30] que tratam do pecado original ou as proposições [33] e [34] que
trata do ato moral e do apetite sensitivo. “Et ita scribit in suo antiquo, sed in novo revocat illud”. 15
Iribarren afirma que outro indício disto é o conteúdo produzido por Durandus em sua quodlibeta
que escreve no final deste mesmo ano em Avignon. Durandus reafirma e enfatiza, logo na primeira
questão da obra, suas posições sobre a essência divina e a relação entre as pessoas divinas e, por isso
é rapidamente respondido com as Correctiones de Natalis. Cf: IRIBARREN, 2005, p. 220-234.
19
reprovando-a e imediatamente respondendo-a com objeções. Portanto,
quem quer que, seja provincial ou vicário, queira inquirir sua doutrina,
e com plena ciência das premissas supracitadas for transgredi-las, será
legitimamente removido do seu ofício de leitor ou estudante. Se,
entretanto, o caso notado for outro, se por tais opiniões penetrar o
escândalo na ordem, determinamos uma punição vigorosa para
recordar o que não se deve fazer. Também os leitores da Bíblia
devem, além da leitura do próprio texto, proceder à leitura das
Sentenças, tratando de ao menos três ou quatro artigos da doutrina do
frade Tomás, evitando, entretanto, uma duração de tempo onerosa.
Ninguém deverá ser enviado a um estúdio Parisiense a não ser que
tenha estudado diligentemente durante três anos a doutrina do frade
Tomás. 16
O Capítulo Geral de Metz declara que a ordem dos Dominicanos é destinada a
seguir a doutrina de Tomás de Aquino. Ou seja, o Capítulo não apenas defende o
pensamento de Tomás, mas o assume como elemento de definição da identidade teórica
da ordem. Assim, um ataque ao pensamento de Tomás equivaleria a um ataque ao
pensamento da própria ordem dos dominicanos. Pensamentos diferentes são
interpretados como ilegais, como ataques que não ficariam impunes. “As punições para
o não cumprimento incluíam remoção do ofício de lector, e no caso de um estudante
envolvido no curriculum avançado, dispensa de seu studium17
”. Assim, os frades
dominicanos estavam proibidos de defender qualquer opinião contrária aos
ensinamentos de Tomás, não podendo sustentar afirmações contrárias a ele enquanto
estivessem ensinando, respondendo ou determinando uma disputatione. E é importante
16
Acta II (Metz, 1313) p. 64-65: “Cum doctrina venerabilis doctor fratris Thome de Aquino senior
et communior reputetur, et eam ordo noster specialiter prosequi teneatur, inhibemus districte, quod nullus frater legendo, determinando, respondendo dudeat assertive tenere contrarium eius, quod
communiter creditur de opinione doctoris predicti, nec recitare aut confirmare aliquam singularem
opnionem contra communem doctorum sentenciam in hiis, que ad fidem uel mores pertinere noscuntur, nisi reprovando e statim obiectionibus respondendo. Quicumque autem per provincialem
uel eius vicarium, qui super hiis inquirere teneantur, ex certa sciencia in aliquo premissorum inventus fuerit deliquisse, per eosdem, cum eis legitime constiterit, a lectoratus officio uel studio
absolvatur in penam; si tamen alias de huiusmodi sit notatus. Quod si ex talibus opinionibus
pertractatis scandalum sit subortum, volumus, quod acrius puniatur et ad revocandum nichilominus compellatur. Lectores quoque de texto biblie plus solito legant et in lectura de sentenciis ad minus
tres vel quatuor artículos de doctrina fratris Thome pertractet, prolixitate onerosa vitata. Nullus
eciam studium Parisiense mittantur, nisi in doctrina fratris Thome saltem tribos annis studuerit diligenter”. 17
MULCHAHEY, 1998, p. 155.
20
notar, além disso, que o Capítulo declara o pensamento de Tomás como universal, ou
seja, deve ser útil e respeitado por todos, não apenas pelos dominicanos.
Segundo o Capítulo, ideias novas, „singulares‟, não eram permitidas na ordem, a
não ser que fossem introduzidas durante debates meramente como objeções a serem
refutadas rápida e imediatamente. Para que estas ideias fossem evitadas, e no intuito de
tornar todos os frades dominicanos familiares e capazes de defender os pensamentos de
Tomás, reformaram seu sistema educacional inserindo o Comentário às Sentenças de
Tomás no curriculum das scholae dominicais18
. Além das diárias aulas sobre a Bíblia e
sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, as repetitio e disputatio diárias, o curriculum
deveria compreender também o estudo de três a quatro artigos do seu In Sent de Tomás,
em paralelo ao texto de Lombardo, por dia19
.
Além disso, o Capítulo tem um papel importante ao respaldar o monitoramento
do que era ensinado e escrito dentro dos domínios da ordem. Ele determina a retomada e
fortalecimento de uma medida seguida pelos frades desde 1256, a qual se refere à
submissão de textos para que fossem examinados e corrigidos pelo mestre da ordem
antes de se tornarem públicos.20
O Capítulo de 1313 determina que todos os textos
produzidos pelos frades sejam examinados pelo mestre geral e garante a este o poder de
vetar qualquer escrito e punir os autores, caso este seja o caso. Este poder permitia que o
mestre geral pudesse identificar materiais „singulares‟ ou que pudessem causar algum
desconforto à ordem, como os escritos de Durandus já haviam causado ao serem
disseminados sem prévio exame e aprovação. 21
18
A ordem dos dominicanos foi a primeira a pensar e estabelecer um curriculum fixo, com textos
base definidos para a formação de seus frades. A “ratio studiorum” dominicana se encontra no
capítulo geral de 1259. Foi estabelecida por uma comissão convocada por Domingos de Gusmão,
integrada por Tomás de Aquino, Alberto Magno, Bonhomme de Brittany, Florence de Hesdin e
Pedro de Tarentaise. A reforma que primeiro inclui o In Sent de Tomás ao curriculum conventual é
estabelecida no capítulo geral de 1313. Cf. Acta II (Metz, 1313), p. 64-65. Segundo Mulchahey:
“apenas uma adição formal foi feita ao curriculum conventual nos séculos medievais, e foi uma
adição no intuito de defender a abordagem das Sentenças de Pedro Lombardo [segundo o In Sent de
Tomás] pelos lectors Dominicanos”, p. 141. Sobre o curriculum dos Dominicanos cf:
MULCHAHEY, 1998, p. 130-183. (Especificamente sobre o capítulo geral de 1313, p. 141-142,
154-156). 19
Sobre o curriculum dos Dominicanos cf: MULCHAHEY, 1998, p. 130-177. 20
MULCHAHEY, 1998, p. 156. 21
Acta II (Metz, 1313), p. 65: “Proibimos escritos, tratados, compilações, respostas a questões ou o
que quer que nossos frades editem ou produzam para ser publicado fora da ordem até que sejam
examinados e corrigidos pelo venerável padre e mestre da ordem; determinamos que a verdade
comunicada para fora da ordem seja examinada pela mesma diligente correção”. “Inhibemus districte, ne scripta, tractatus, compilaciones, reportaciones questionum quarumcumque a fratribus
nostris edita vel edenda extra ordinem publicentur, quousque per venerabilem patrem magistrum
21
Neste mesmo ano as ações do papa Clemente V e do novo mestre geral da ordem
dos dominicanos, Berendar de Landorra mostram visões bem diferentes no que dizem
respeito a Durandus. Por um lado, a competência de Durandus como pensador é
reconhecida pelo Papa ao convidá-lo para ensinar no studium da corte papal como
mestre do palácio sagrado de Avignon.22
Oferecendo-lhe, além de uma implícita
aprovação, uma posição ainda mais proeminente para falar. Por outro lado, Berengar de
Landorra aponta um comitê de 10 frades para examinar o corpus do trabalho de
Durandus, liderado por Hervaeus Natalis. Pierre Palude, regente de Paris, foi o
responsável pela maioria das descobertas do comitê, juntamente com Giovanni da
Napoli, lector em San Domenic em Naples e futuro mestre em St. Jacques. Após um
ano de trabalho, em 3 de julho de 1314, a primeira lista de proposições censuradas foi
produzida23
. Esta logo seria seguida por uma segunda lista produzida em 1317.
Em 1314 a lista24
produzida continha 93 teses categorizadas como heréticas,
falsas, perigosas ou meramente imprudentes, retiradas especialmente do In Sent [A], a
outra25
, produzida em 1317, continha 235 artigos nos quais Durandus se diferenciava de
Tomás. Estas listas foram enviadas para Durandus em Avignon. Por este motivo ele
redige sua Excusationes26
, apesar de enviá-las para o exame de Natalis, seu antigo
mestre continua apontando para potenciais perigos nas teses de Durandus, em uma
sequência de disputationes quodlibetales27
.
Apesar da produção de listas de censura, das admoestações e punições previstas
nos Capítulos Gerais, Durandus continuava a ensinar em Avignon e seus escritos
continuavam a despertar interesse entre os estudantes dominicanos. A primeira e a
segunda versão do seu In Sent continuavam circulando, mantendo algumas de suas
ideias mais questionáveis, e as discussões que elas fomentavam, vivas.
ordinis examinata fuerint et correcta; communicata vero extra ordinem per eumdem examinari et
corrigi volumus diligenter”. 22
Ver KOCH, 1927, p. 396-409. 23
Sobre a diferença entre censura e condenação cf: IRIBARREN, 2005, p. 184-185. 24
“Articuli nonaginta tres extracti ex Durandi S. Porciano O.P. primo scripto super Sententias et examinati per magistros et baccalarios Ordinis”. 25
“Articuli in quibus magister Durandus deviat a doctrina venerabilis doctoris fratris Thome”. 26
O pouco que conhecemos sobre sua Excusationes, o sabemos por meio das referências feitas por
Hervaeus Natalis em seu Reprobationes contra excusationum Durandi, redigido logo após o
recebimento do primeiro. Cf: IRIBARREN, 2005, p. 5. Além isso, Durandus escreve também uma
quodlibet, contra as censuras que lhe foram feitas durante sua estadia na cúria papal. Sobre a
Quodlibet I de Avignon cf: IRIBARREN, 2005, p. 220-229. 27
Cf: IRIBARREN, 2005, cap. 6: “Hervaeus‟s Quodlibetal disputations”.
22
É provável que este tenha sido o motivo para a determinação de um
policiamento local mais rigoroso feito pelo Capítulo Geral 1316, que pede, inclusive
que as províncias criem estratégias para trazer a atenção de estudantes e professores de
volta à „comum e benéfica doutrina‟28
. De acordo com Mulchahey algumas províncias,
como Tolouse, apenas repetiram as determinações do Capítulo, aconselhando que seus
lectores expusessem seus materiais de acordo com Tomás. Outras províncias, no
entanto, registraram em suas atas as punições que deflagraram contra os frades que
desobedeceram às determinações estabelecidas29
.
As punições não eram, no entanto, a única medida tomada no intuito de
consolidar o pensamento de Tomás na ordem e diminuir a ocorrência de desvios. A
circulação das listas de correção de 1314 foi intensificada. Assim, mesmo que os frades
continuassem a explorar os escritos de Durandus, havendo o conhecimento dos 235
pontos nos quais Durandus se desviava da doutrina de Tomás os professores poderiam
identificar e apontar para seus alunos os problemas da leitura de Durandus, e a solução
correta no texto de Tomás30
.
As autoridades da ordem rebateram as teses de Durandus com uma série de
textos, quodlibetal, quaestiones, disputationes, e alcançavam um bom número de
membros da ordem, haja vista os espaços públicos de direito de mestre e professores
como os já citados Hervaeus Natalis, Giovanni de Napoli e Pierre Palude. Natalis foi,
inclusive, preponderante para a realização do processo de canonização de Tomás, apesar
28
Acta II (Montpellier, 1316), p. 93-94: “Uma vez que certo tratado, escritos e respostas teológicas
dos frades da nossa ordem foram compilados sem o exame e aprovação da ordem e foram publicados
contrariamente à ordem, frades que desviam da comum e benéfica doutrina podem somente dar
ocasião ao erro, queremos e desejamos que os priores provinciais em seus capítulos provinciais
aconselhem definitavamente aos estudantes a discernir tal antídoto”. “Cum quidam tractatus, scripta sive reportaciones theologie a fratribus nostri ordinis compilati sine examinacione et approbacione
ordinis contra constituciones publicati, fratres a communi et salubre doctrina retrahant et possint
saltem simplicibus dare ocasionem errandi, volumus et ordinamus, quod priores provinciales in suis capitulis provincialibus de consilio diffinitorum studeant de tali remedio providere”. 29
A província Romana foi uma das quais adotou as prescrições do capítulo. Assim, puniu o frei
Umberto Guidi, que havia estudado junto de Durandus em Paris, por ter defendido, enquanto
bacharel na studium generale em Provença, uma série de teses que iam contra os ensinamentos de
Tomás em suas respondens em uma disputatio pública, em 1315. Pela sua “má conduta e audácia”
teve que se retratar publicamente pelo que propagou publicamente contra a doutrina de Tomás. Além
disso, foi proibido de ensinar e disputar em qualquer faculdade ou servir como mestre de estudantes
ou realizar qualquer outra função acadêmica por dois anos. Foi removido de St. Maria Novella e
mandado para um convento menos importante de San Domenico em Pistoria além de permanecer
durante dez dias em penitência a pão e água. Cf.: Acta provinciae Romanae (Arezzo, 1315), p. 197.
30 MULCHAHEY, 1998, p. 158-159: “Uma cópia tardia do In Sent de Durandus, manuscrito em
espanhol de proveniência dominicana, ilustra as técnicas que os lectores provavelmente adotaram na
sala de aula, uma vez que possuíam o material de correção em mãos. Nesse manuscrito em particular
as 1314 correções foram escritas à margem do texto de Durandus nos pontos apropriados, alertando
ao leitor a solução de acordo com Tomás”.
23
de ter morrido pouco antes de ver a conclusão do processo, que se deu em 1323. Além
da consequente elevação da doutrina de Tomás, pronunciada ortodoxa em 1325, dois
anos depois da canonização.
Apesar disso, Durandus ainda respondia a Natalis após a morte deste e após a
ordem ter reconhecido a ortodoxia da doutrina de Tomás. A terceira versão do seu In
Sent [C], terminada em 1327, enquanto servia como bispo em Meaux, é uma
reafirmação de todo o seu pensamento, primeiramente apresentado no In Sent [A]. O
texto desta última versão permanece o mesmo quando comparado com o In Sent [A] e
[B], apenas o livro II, que havia sido alterado para a aprovação da versão [B], sofre
novas modificações e reafirma os argumentos já presentes na primeira versão da obra.
A turbulência do período e do processo de busca de identidade dominicana é
atestada também pelas disputas geradas pelas suas produções, entre outros frades do
período. Bernardo Lombardi, bacharel dominicano, é um dos que pode ser identificado
como partidário de Durandus pelas suas leituras sobre as Sentenças durante o ano
acadêmico de 1327-28, que atacavam Tomás abertamente31
. Sua ousadia não passou
despercebida do Capítulo Geral de 1329 que declara que todos os estudantes e os
professores de teologia devem estudar diligentemente a doutrina de Tomás que é “útil
para o mundo todo32
”.
A crítica mais detalhada ao In Sent [A]33
de Durandus foi produzida por um
frade conhecido como Durandellus34
e foi publicado com o nome Evidentiae contra
31
Vollert aponta que tanto a teologia quanto a filosofia de Bernardo foram influenciadas pelo
pensamento de Durandus e também pelos Tomistas de sua época. Mas aponta que a influência de
Pedro de Palude pode ter sido responsável por Bernardo se opor a Durandus no que diz respeito à
sua doutrina do pecado original. Cf: VOLLERT, 1947, p. 137-138. 32
Acta II (Sisteron, 1329), p. 191: “Uma vez que a doutrina de Santo Tomás seja útil para todo o
mundo e honre a ordem, desejamos e ordenamos que todos os estudantes de teologia estudem
diligentemente sua doutrina e que os leitores e cursores, ao examinarem uma opinião singular em
suas lições e disputas, declarem e concluam de acordo com a doutrina do próprio doutor e alunem o
quanto puderem e do modo eficaz a opinião contrária, e se induzirem contra a doutrina da razão
sejam destituídos”. “Cum doctrina sancti Thome toti mundo sit utilis et ordini honorabilis, volumus et ordinamus, quod omnes studentes theologie in dicta doctrina studeant diligenter, lectores autem
et cursores ipsam doctrinam in suis lectionibus et disputacionibus pertractent singulariter et declarent et conclusiones eiusdem doctoris finaliter teneant, et si contra ipsius doctrinam raciones
adducant, illas teneatur solvere, et quantum poterunt, contrarias efficaciter annullare. Quicumque
autem contrarium inventus fuerit atentasse, per priores provinciales vel eorum vicários privetur officio lectorie”. 33
Apesar de ter se tornado público pouco depois da publicação do In Sent [C], Mulchahey defende a
teoria de que se trata de uma crítica ao In Sent original que ainda circulava entre os estudantes de
teologia da época. MULCHAHEY, 1998, p. 160. 34
Sobre o frade com o codinome Durandellus ver VOLLERT, 1947, p. 138-140 e p. 186-189.
24
Durandum35
. Neste texto, o autor examina cada proposição na qual há divergência entre
Durandus e Tomás. Durandellus expõe primeiro o argumento de Durandus, depois o de
Tomás e, então, refuta a tese do primeiro36
. O Evidentiae se torna, assim, uma
ferramenta importante para que os frades e professores dominicanos não apenas
identifiquem os pontos nos quais Durandus se distingue de Tomás, mas que possam
defender a teoria que representa o pensamento dominicano e argumentar contra todos os
pensamentos que dela desviem. O texto será ainda bastante usado nas escolas
dominicais e na promoção deste tomismo emergente.
Durandus afirma na terceira versão do seu In Sent [C]37
, por intermédio de uma
afirmação retórica, que não pretendia contradizer Tomás, seu trabalho era feito com o
único objetivo de buscar a verdade. Lowe aponta para esta questão ao tratar das disputas
entre Durandus e Hervaeus Natalis, o mestre que fora responsável por Durandus durante
seus estudos em Paris. Segundo Lowe, Durandus rebate a crítica de Natalis de que a
rejeitação dos pensamentos de Tomás de Aquino e Aristóteles o levaram ao erro
dizendo que quando o pensamento de outre, age por necessidade, não para mérito
próprio, mas porque toma para si o papel de amigo da verdade38
. No intuito de
comprovar sua afirmação, Lowe aponta para um trecho do Comentário às Sentenças [C]
de Durandus, ao qual se refere como “Prólogus”. No entanto, não é possível encontrar
tal trecho apontado por ela no Prólogo de nenhuma das três versões existentes do texto.
Também é possível encontrar uma referência a tal citação em Vollert, que cita o
manuscrito de Venice correspondente à versão de 1571. Assim, tendo em vista
determinar a veracidade da citação e a sua análise, busquei entre o manuscrito citado,
além do manuscrito de Lyon de 1563 e pude localizar este trecho, que não tem a função
de introduzir a obra, mas de proporcionar um desfecho. O trecho em questão se trata da
Conclusão da terceira e última versão do seu Comentário, que pode ser encontrado logo
35
Não se sabe ao certo a data de sua redação e de sua posterior circulação, mas ocorreu em torno de
1330. O texto citado também é conhecido como “Solutiones, responsiones, et reprobationes
rationum et oppositionum domini Durandi”: “Frater Durandellus, magister in teologia. Scripsit
solemne scriptum contra Durandum, sive contra corruptorem, reprobans positiones eius quas ponit contra sanctem Thomam, ex dictis sancti Thomae, et ex iisdeni solvit omnia argumenta quae
Durandus fecit contra sanctum Thomam, et vocatur Corruptorium corruptorii. Incipit vero: „Sedens adversus fratrem tuum loquebaris et adversus filium matris tuae ponebas scandalum; haec fecisti et
tacui. Exisitimasti inique etc”. Catalogus Pragensis, in Institutum Hist. FF. Praed. Dissertationes
Historicae II, p. 99. Apud: VOLLERT, 1947, p. 187. 36
Durandellus produz uma análise consistente, não apenas aponta para os erros argumentativos de
Durandus, mas também é capaz de dizer em quais pontos Durandus é acusado de se desviar de
Tomás, mas, na realidade, não o faz. VOLLERT, 1947, p. 188. 37
Ver nota 39. 38
LOWE, 2013, p. 74.
25
após a última questão do livro IV. Esta parte do texto de Durandus é intitulada por ele
como “Conclusio operis et modo ac tempore quo autor opus hoc prescripsit”. Nela
Durandus se remete ao trabalho que desenvolveu no decorrer desta obra e de toda a sua
trajetória intelectual, pontuada por inúmeras críticas e repressões. Seu argumento de
comprometimento com a verdade pode ser verificado na conclusão do seu Comentário
às Sentenças [C]:
Se, no entanto, alguém se dignar a elogiar o que foi escrito nesta obra,
o faça apenas para honra e glória daquele a quem se deve dar graças e
para a manifestação da verdade. Se, na verdade, este escrito for pouco
digno de elogios, o será pela minha inexperiência e não por malícia,
visto que meu desejo sempre foi buscar a verdade. Entretanto, como o
homem é pequeno, ingênuo e efêmero, não duvido, mas de fato
presumo verdadeiramente, que poderão encontrar o que julgando
melhor poderão corrigir e melhorar. O que oro e quero que seja feito
por aqueles que amam a verdade e não a repressão, de modo que tanto
o meu trabalho quanto a sua correção seja para a honra de Jesus Cristo
que diz: “Eu sou a verdade”... 39
Tendo vivido em um ambiente repleto de controvérsias e repressão, o argumento
da liberdade intelectual necessária ao fazer filosófico é reivindicado por Durandus na
conclusão do seu In Sent [C]. Ele se coloca como aquele que busca a verdade enquanto
se posiciona contra a hierarquia da ordem dos dominicanos que cerceou sua liberdade
intelectual, desde a circulação do seu primeiro trabalho, o In Sent [A], sem a aprovação
prévia do mestre geral da ordem. A identificação do fazer filosófico com a busca pela
verdade, realizada por Durandus, apesar de ser um recurso retórico, revela dois
pressupostos segundo os quais Durandus fundamenta sua filosofia: (1) o caráter de
nobreza da filosofia e (2) o caráter acumulativo do conhecimento humano. (1) No que
diz respeito à nobreza da filosofia, Durandus defende que a busca pela verdade deve ser
39
In IV Sent. [C], 12-22, “Conclusio operis et modo ac tempore quo autor opus hoc prescripsit” : “Si
autem in hoc opere aliquid digne laudabiliterque scriptum sit, illi soli sit laus et gloria, per quem
munda data est gratia, et veritas patefacta. Si vero aliquid minus digne laudabiliterque scriptum sit, meae ascribatur imperitiae et non malitiae, quia studium meum semper fuit inquirere veritaem. Sed
quia homo sum parvi ingenii et exigui temporis, non dubito, immo verissime praesumo, quod in
dictis meis multa poterunt inveniri quae meliori iuudicio poterunt corrigi et melius emendari, quod opto et oro fieri per talem quis it veritatis amator et non aemulus reprehensor, ut tam opus meum
quam correctio operis cedat ad honorem Ieus Christi, qui dicit, Ego sum veritas...”
26
o objetivo maior do conhecimento humano. Tal busca não pode ser prejudicada ou
impedida por determinações autoritárias, ela deve estar acima dos jogos de poder dos
homens, o que é verificado por Durandus alegar que seu trabalho busca honrar a Cristo
que diz “Eu sou a verdade”. (2) Sobre o caráter acumulativo do conhecimento humano,
Durandus argumenta que um único homem pode ser ingênuo ou pequeno demais para
alcançar a verdade, no entanto, vários homens podem alcança-la quando trabalham de
maneira cooperativa e livre. Deste modo, parece ser correto afirmar que, para Durandus,
a repressão daqueles que estão comprometidos com a verdade corresponde a um
empecilho real ao desenvolvimento da filosofia. Resta determinar, no entanto, se
Durandus repudiava apenas a repressão que sofrera ou repudiava toda repressão que se
voltasse em direção a qualquer um empenhado no fazer filosófico40
.
Pelo tratamento dado ao tema, na conclusão do seu In Sent [C], não parece ser o
caso que Durandus defenda apenas a sua própria liberdade de filosofar. A afirmação de
que ele deseja que seu trabalho seja corrigido, caso seja necessário, com o intuito da
manifestação da verdade e não por simples ato de repressão parece confirmar que
Durandus não defendia apenas a sua própria liberdade de filosofar, mas a liberdade de
todos aqueles que, como ele, estivessem em busca de conhecer a verdade. Todos
aqueles que se ocupam da filosofia, com o intuito de contribuir com o conhecimento
humano, deveriam estar livres de repressão. Contudo, a análise de sua trajetória
intelectual parece demonstrar o contrário. Em 1326, Durandus integrou a comissão
responsável pelo exame das teses de Ockham no intuito de produzir uma lista de erro41
.
Tal acontecimento aponta para o fato de este recurso ser apenas retórico e não se
concretizar efetivamente. De fato, Durandus desempenha ações contrárias à letra de seu
texto e realiza o mesmo procedimento de repressão do qual fora alvo.
40
Cf: GARBER, 2003, p. 205-224. O problema da liberdade é entendido por Daniel Garber como
problema da história da filosofia. Por isso, apesar de Garber tomar autores do século XVII como
estudo de caso para o seu trabalho, seu argumento parece se estender para toda a história da filosofia.
Segundo ele, embora atualmente a liberdade nos pareça obviamente boa, ao analisar as palavras de
Mersenne, Descartes, Bacon e Spinoza podemos notar que nem sempre foi assim. Mersenne defende
abertamente a censura, até de textos considerados verdadeiros, caso estejam sendo usados como
instrumentos para a constituição de heresias. Bacon e Descartes, ao contrário, defendem a liberdade
de filosofar, mas não para todos, apenas para eles próprios. Segundo Garber é possível afirmar pela
análise do texto de ambos que a liberdade generalizada é considerada perigora por eles. Por fim,
segundo Garber, Spinoza trata da temática de maneira muito geral, não faz uma grande defesa da
liberdade de filosofar e por mais sofisticada que sua argumentação possa parecer, ainda é falha em
responder questionamentos como os de Mersenne. 41
Cf: FUMAGALLI, 1969, p. XIII.
27
1 - A INVIABILIDADE DA OPERAÇÃO DE UM INTELECTO AGENTE NO
PROCESSO COGNITIVO
Desde o primeiro livro do seu In Sent [A] Durandus inicia o estabelecimento dos
princípios da cognição humana. Durandus compreende as dificuldades de afirmar que o
objeto cognoscível, que é material, pode ser conhecido pelo intelecto, que é imaterial.
Por um lado, afirmar que o objeto causa o ato intelectivo ocasionaria o problema de
explicar como algo menos nobre pode afetar algo mais nobre. Por outro lado, afirmar
que o intelecto tem a capacidade ativa de conhecer seu objeto ocasionaria o problema de
explicar como tal operação seria possível sem ocorrer um contato entre estas duas
instâncias incompatíveis. Devido a estes problemas, filósofos como Tomás de Aquino,
Henrique de Gant e Duns Scotus defenderam a existência de mediadores, especialmente
o fantasma, sobre o qual um intelecto agente cumpriria a função de operar separando as
qualidades singulares, abstraindo a essência universal. Durandus, no entanto, nega a
existência de tais mecanismos:
Ainda que nós não pensemos que qualidades sensíveis e objetos
sensíveis sejam menos nobres do que sentidos e percepções sensoriais,
quase todos, Agostinianos e Aristotélicos, iriam concordar que
qualidades materiais e objetos materiais são menos nobres do que
intelectos e atos intelectivos, pois os últimos são imateriais. Logo,
quase todos afirmaram uma lacuna entre o material e o imaterial, e
quase todos afirmaram um intelecto agente com a função de, ao
menos, explicar como o menos nobre pode afetar o mais nobre ou
proporcionar uma forma mais nobre. (...) Durandus, no entanto,
acredita ser difícil de compreender como afirmar um intelecto agente
poderia, simplesmente, permitir que o menos nobre afete o mais
nobre. Ele examina inúmeras teorias diferentes neste contexto e
conclui que nenhuma delas pode realmente explicar o que necessita de
ser explicado. 42
Para Durandus, a relação entre objeto cognoscível e poder cognitivo não é
explicada pela ação de um suposto intelecto agente. Portanto, em sua determinação do
processo cognitivo humano nega, não apenas a existência de um intelecto agente, mas
também de tudo o que este pressupõe: essências universais nos particulares, espécies
sensíveis, fantasmas e abstração.
42
HARTMAN, 2012, p. 41-42.
28
As duas listas de proposições censuradas de 1314 e de 1317 contém proposições
relativas à teoria cognitiva43
de Durandus e apontam como equivocada sua crítica ao
conceito de intelecto agente. As listas foram redigidas a partir do exame da primeira
versão do In Sent [A] de Durandus, apontando para o fato de que a defesa da falsidade
do intelecto agente já estava presente em sua obra desde o início de sua trajetória
intelectual. Na lista de proposições censuradas de 1314, composta por 93 teses
categorizadas como heréticas, falsas, perigosas ou imprudentes, a posição de Durandus
sobre a o intelecto agente é apontada como falsa pela comissão de frades reunidos por
Berengar de Landorra.
E sobre o que é dito em In I Sent. [A], d. 3, q. 4, sua posição deve ser
reprovada, o que pode ser lido, diz do seguinte modo: “ a razão que
fez isso não é hábil, uma vez que ainda não é certo que o intelecto
agente faça parte da alma e tenha, nela ou em qualquer outro lugar, o
seu local supremo. Nem Agostinho o fez alguma vez, nem é próprio
ocorrer a alguém que seja necessário afirmar um intelecto agente”.
Falso, fragiliza o princípio da teologia, embora use o nome de
Agostinho. 44
Entendo que, subjacente a esta crítica de que as afirmações de Durandus são
falsas se encontra uma preocupação com a metafísica tal qual constituída pelo autor. Ela
determina toda a sua compreensão e estruturação do mundo, assim influencia também
toda a sua obra, desde a determinação dos processos cognitivos humanos, até mesmo a
teologia. Além disso, é interessante notar que apesar de Durandus anunciar uma
pretensa subserviência à autoridade de Agostinho, ele é censurado justamente por ir
contra Agostinho. Sua crítica a respeito da noção de intelecto agente não ressalta apenas
sua visão crítica aos ensinamentos da ordem dos dominicanos, mas também os da
ordem dos franciscanos, pautados pelos ensinamentos de Agostinho.
43
As listas são extensas e, além de tratarem sobre a cognição, apontam para muitos outros temas.
Podemos destacar, entre eles, a essência divina, o modo pelo qual se dá a intelecção angélica, a
relação entre as pessoas divinas, o pecado original e etc. 44
“[2] d. 3 q. 4 et ultima primo articulo posicionis reprovando unum modum dicendi, quem recitat,
dicit sic: “secundum motivum non valet, quia nondum est certrum quod intellectus agens inter partes anime teneat locum aupremum vel aliquem locum, nem Augustinus fecit unquam de eo
mencionem, nec forte oportet aliquem intellectum agentem ponere”. Falsum, enervans principia
theologie, quamvis Augustini hic utatur nomine”. In: KOCH, 1973. p. 54. (Articuli nonaginta tres
extracti ex Durandi S. Porciano O.P. primo scripto super Sententias et examinati per magistros et
baccalarios Ordinis).
29
Na lista de 1317, composta por 235 artigos nos quais Durandus se diferenciava
de Tomás, consta também a mesma tese de Durandus que afirma que o intelecto agente
não deve ser afirmado como parte da alma. Neste caso, tal tese é apontada como sendo
contra a doutrina comum, contra Tomás de Aquino, Agostinho e Aristóteles.
Diz no In I Sent. [A], d. 3, a. 4, que “não é certo que o intelecto agente
faça parte da alma nem que tenha, nela ou em qualquer outro lugar,
seu local supremo; nem Agostinho o fez alguma vez, nem é próprio
ocorrer a alguém que seja necessário afirmar um intelecto agente”,
como será exposto a seguir (cf. I 2). Contra a doutrina comum e
contra o filósofo em De anima III e Tomás de Aquino em ST. I q.79
a.3.45
Para compreender a crítica que Durandus faz à noção de intelecto agente se faz
necessário analisar o Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo I, distinção 3,
questão 5 [C]46
. Na presente questão, Durandus afirma que o intelecto agente é incapaz
de operar, seja sobre os fantasmas, seja sobre o intelecto possível47
.
Durandus reconhece que a dicotomia entre o material e o imaterial representa
uma dificuldade considerável na compreensão de como nosso intelecto poderia perfazer
um processo de aquisição de conhecimento das coisas materiais. Segundo ele, a função
da noção de abstração seria explicar como o processo cognitivo pode ocorrer, mas, para
ele esta noção não é adequadamente elucidada pelos filósofos que a defendem, e nem é
capaz de vencer a dificuldade de explicar como algo menos nobre, material, poderia
afetar o mais nobre, imaterial. Além disso, o objetivo da abstração seria acessar a
quididade universal existente no singular, mas, para Durandus, o universal é produto da
45
“[8] d. 3 a. 4 dicit, quod non est certum quod intellectus agens inter ceteras partes anime teneat
supremum locum nec aliquem locum; nec Augustinus unquam de eo fecit mencionem, nec forte oportet aliquem intellectum agentem ponere, ut infra patebit (cf. I 2). Contra communem doctrinam
et philosophi 3 de anima et Thome ubique p. I q. 79 a. 3”. In: KOCH, 1973, p. 73. (Articuli in quibus
magister Durandus deviat a doctrina venerabilis doctoris fratris Thome). 46
As censuras de 1314 foram produzidas a partir do exame do In Sent [A] de Durandus que foi
redigido em 1308. Entretanto, eu analiso o texto da última versão, o In Sent [C], terminada em 1327,
para analisar o problema apontado pelas censuras. Isto porque, a edição crítica do Prólogo e das três
primeiras distinções do In Sent [A] ainda não foi finalizada. A terceira versão da obra, no entanto,
está disponível. Além disso, pelo exame das proposições censuradas referentes à primeira versão e
do conteúdo relativo ao In I Sent. [C], d. 3, q. 5 é possível identificar que não há discrepância os
conteúdos disponíveis e o conteúdo apontado do In I Sent. [A], d. 3, q. 4. Portanto, procedendo deste
modo, é possível perfazer o propósito do presente trabalho. 47
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 4 “nec in fantasmata nec in intellectum possibilem habet aliquam
actionem”.
30
operação intelectual, nada de universal poderia ser no singular: ao singular só cabem
qualidades singulares48
.
Ademais, Durandus adiciona mais um argumento contra a noção de abstração: a
impossibilidade da existência de fantasmas. Para ele, uma vez que o homem é um ser
composto de corpo e intelecto, os sentidos são parte inegavelmente importante para o
conhecimento humano. Disto não se segue, entretanto, que seja correto afirmar um
fantasma produzido pelo órgão da imaginação sob o qual o intelecto agente deva agir
abstraindo. Para Durandus se existissem fantasmas eles seriam produzidos por um órgão
interno a partir da reunião das afecções dos sentidos externos, ainda carregariam
características individuantes próprias da matéria e, assim não poderiam representar ou
conter uma forma ou quididade49
e nem mesmo o intelecto agente poderia operar sobre
ele.
Assim, o objetivo deste capítulo é analisar a crítica de Durandus segundo a qual
o intelecto agente é incapaz de operar tanto abstraindo sobre os fantasmas, quanto
influindo sobre o intelecto possível. A conclusão é a de que, como o intelecto agente
não perfaz nenhuma operação,50
não deve ser admitido como parte da alma humana. Ele
é excessivo e postular sua existência não contribui em nada com o processo cognitivo.
48
IRIBARREN, 2008, p. 53: “Sublinhando esta afirmação está a maneira nominalista de Durandus
compreender os universais, pela qual o universal é formalmente o resultado de um ato do intelecto:
nada real é um universal, e o que quer que exista na realidade extramental é, de fato, singular”. 49
In I Sent. [C], d. 36 q. 3: “quidditates rerum secundum suas rationes specificas et perfectiones
earum secundum modum specificum quo eis conveniunt, non sunt ideo formaliter et proprie sed solum metaphorice, nec aliquid formaliter in Deo existens correspondens eis secundum
similitudinem. Ergo, res creatae quantum ad suas quidditates secundum rationem earum
specificam… non habent essentiam divinam propter idea”. 50
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 26: “Portanto, o intelecto agente não age nos fantasmas nem
imprimindo algo, nem abstraindo algo, nem segundo a coisa, nem segundo a razão. Nem age no
possível, nem sem fantasma, nem com fantasma”. “Cum ergo intellectus agens non agat in fantasmata aliquid imprimendo uel aliquid abstrahendo, neque secundum rem neque secundum
rationem, nec agat in intellectum possibilem, nec sine fantasmate nec cum fantasmate”.
31
1.1- A DEMONSTRAÇÃO DE QUE O INTELECTO AGENTE NÃO OPERA
SOBRE OS FANTASMAS
A questão quinta do Comentário às Sentenças [C], Livro I, distinção 3, é a
questão na qual Durandus pretende provar que o intelecto agente é falso e não deve ter
sua existência afirmada. Sua argumentação será desenvolvida a partir dos conceitos de
universal e fantasma. Ele defende a premissa de que o universal é produto da cognição
humana e, por isso, é totalmente dependente do intelecto, não existindo antes da
intelecção. O universal não existe no objeto singular, assim o fantasma não pode ser
uma similitude dele. Além disso, Durandus defende que o fantasma é particular e não
poderia conter ou representar nenhum universal. Para defender este ponto, no início da
questão Durandus utiliza as noções de ato e potência. Durandus compreende que a
noção de forma é relacionada à noção de ato e, do mesmo modo, a noção de matéria é
relacionada à noção de potência. Como forma do homem, o intelecto e suas operações
são caracterizadas pela sua atualidade e o corpo, seus órgãos e operações pela
potencialidade51
. Como o fantasma é entendido como uma imagem sensível produzida
na imaginação, que é órgão corporal, tem potencialidade inerente a si. Por isso,
Durandus defende a inviabilidade de uma ação intelectiva sobre os fantasmas, visto que
nos fantasmas há potencialidade, não há nenhuma ação.
Sellés aponta um suposto erro de Durandus no que diz respeito à caracterização
da noção de fantasma:
Estes argumentos do mestre de St. Pourçain incluem um equívoco ao
fundo, a saber, que os fantasmas sejam corporais, pois eles não são.
Com efeito, são imateriais, pois na imaginação só é corpóreo o suporte
orgânico da faculdade (o cérebro), mas não o são os objetos
conhecidos ou fantasmas (e tão pouco os atos cognitivos). Com tudo,
apesar dos fantasmas serem incorpóreos, são particulares, não
universais (como são os objetos do intelecto possível). 52
Acredito que seria útil traçar uma divisão mais clara do que a feita por Sellés
neste parágrafo. É preciso identificar o que é compreendido como corporal e o que é
51
In II Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 4: “Pois a essência da alma é o ato do corpo”. “quia essentia anime est actus corporis”. 52
SELLÉS, 2011, p. 350-351.
32
compreendido como intelectual. Os universais são o produto dos atos cognitivos e,
assim, objetos do intelecto possível. Já os fantasmas, considerados de modo hipotético
por propósitos argumentativos, apesar de tidos como imateriais, não fariam parte deste
registro. Os fantasmas seriam considerados como constructos resultantes das percepções
sensíveis do homem, produtos da imaginação que é órgão corporal. Durandus não
afirma que o fantasma seja compreendido como corporal, mas como um algo corporal:
“fantasma autem est quid corporeum”. 53
Por “algo corpóreo”, Durandus entende que o
fantasma possuiria características individuantes próprias da matéria, tais como a sua
particularidade. É devido a esta característica que o fantasma poderia existir na
imaginação e não poderia existir no intelecto. Se universal e particular são noções
incompatíveis, sendo a primeira compreendida no âmbito intelectual e a segunda no
âmbito corporal, o fantasma deve ser compreendido como pertencente a este último
âmbito, por ser particular, mesmo que não seja propriamente um corpo. Usar o nome
“cérebro” para designar o suporte orgânico da faculdade pode tornar a análise confusa.
A imaginação é órgão corporal e o intelecto é órgão intelectual. Estas designações são
suficientes para compreender que os fantasmas pertenceriam à imaginação e os atos
cognitivos ao intelecto. A partir destes pressupostos, Durandus defenderá que por conta
de tal significação dos fantasmas eles não poderiam conter ou representar o universal ao
intelecto. Para ele, os fantasmas não são objetos do intelecto, pois, por um lado, os
fantasmas seriam particulares, por outro o intelecto agente não seria capaz de operar
nem abstraindo algo deles, nem imprimindo algo neles.
A demonstração da inviabilidade de uma ação intelectiva sobre os fantasmas é
feita através da refutação das duas vias por intermédio das quais o intelecto poderia
operar sobre os fantasmas. Se o intelecto operasse, o faria imprimindo algo nos
fantasmas ou abstraindo algo deles54
.
Toda virtude que é recebida no corpo, nem por si, nem segundo
espécie pode ser senão no corpo, é completamente corpórea, não
53
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 6 “fantasma autem est quid corporeum” 54
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 4: “Do mesmo modo, se é necessário afirmar um intelecto agente, este
será por aquela operação que é necessária ao ato de inteligir. Entretanto, a operação do intelecto
agente não pode inteligir senão nos fantasmas ou senão no intelecto possível. Mas nem nos
fantasmas nem no intelecto possível [o intelecto agente] perfaz alguma ação, como será declarado.
Portanto, é falso afirmar um intelecto agente.”. “Ideo si necessarium est ponere intellectum agentem,
hoc erit propter aliquam operationem eius necessariam ad actum intelligendi; operatio autem
intellectus agentis non potest intelligi nisi in fantasmata uel nisi in intellectum possibilem, set nec in fantasmata nec in intellectum possibilem habet aliquam actionem, ut declarabitur; ergo fictitium est
ponere intellectum agentem”.
33
obstante ela seja efetivamente um espírito criado ou incriado.
Ademais, qualquer virtude impressa nos fantasmas pelo intelecto
agente é no corpo, como é evidente. E ela, nem por si mesma, nem
segundo espécie, pode ser senão no corpo, visto que no corpo e no
espírito não há nenhuma propriedade comum de maneira una e
unívoca. Logo, esta virtude, se assim fosse, seria meramente corpórea.
Mas, por tal virtude a imaginação não pode mover o intelecto
possível, ser puramente corpórea é a razão pela qual não pode movê-lo
por si. Logo, tal virtude refuta que a razão mova o intelecto possível,
seja por si, seja por meio de fantasmas. 55
A primeira demonstração de que o intelecto não imprime nada nos fantasmas é
estruturada tendo em vista a dicotomia entre corpo e intelecto. O fantasma possui em si
um traço derivado da materialidade, ele é um particular, enquanto o intelecto é forma, é
imaterial. O corpóreo, entretanto, não pode atuar sobre o incorpóreo. Assim, não é
possível aceitar que o fantasma possa mover o intelecto. Entretanto, por fins
argumentativos, Durandus supõe que o intelecto agente fosse capaz de imprimir algo no
fantasma. Isso porque, se afirmamos um intelecto agente o fazemos pela sua função56
,
neste caso, o intelecto agente imprimiria uma virtude no fantasma para que este último
movesse o intelecto possível da passividade para atualidade em relação ao
conhecimento. Contudo, mesmo que o intelecto agente fosse capaz de imprimir uma
virtude no fantasma, qualquer virtude impressa no fantasma seria no corpo, uma vez que
os fantasmas são produzidos na imaginação que é órgão corporal. Deste modo, se a
operação do intelecto agente fosse tal que procedesse imprimindo algo nos fantasmas
com o objetivo de mover o intelecto possível, esta operação seria completamente
inviável. Uma virtude impressa nos fantasmas, mesmo que a tenha sido por obra do
intelecto agente, seria em um particular, pois o fantasma é no corpo, que é material,
enquanto o intelecto possível é imaterial e o particular não pode afetar o universal.
55
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 5: “omnis uirtus que recipitur in corpore et nec ipsa nec eadem
secundum speciem potest esse nisi in corpore, est mere corporea, non obstante quod ipsa sit effectiue a spiritu creato uel increato; set quecunque uirtus impressa fantasmatibus ab intellectu
agente est in corpore, ut de se patet, et ipsa nec eadem secundum speciem potest esse nisi in corpore, quia in corpore et spiritu nulla est communis proprietas recipiendi aliquid unum et
uniuocum; ergo illa uirtus, si qua esset, mere est corporea; set per talem uirtutem non potest mouere
fantasia intellectum possibilem cum sit pure corporea ea ratione qua non potest secundum se; ergo talis uirtus frustra ponitur cum tota ratio ponendi ipsam sit ut ipsa sit fantasmatibus ratio mouendi
intellectum possibilem”. 56
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 4: “Do mesmo modo, se é necessário afirmar um intelecto agente, este
será por aquela operação que é necessária ao ato de inteligir”. “ideo si necessarium est ponere
intellectum agentem, hoc erit propter aliquam operationem eius necessariam ad actum intelligendi”.
34
Portanto, o intelecto agente não pode imprimir nenhuma virtude no fantasma que possa
mover o intelecto possível à ação intelectual.
A segunda demonstração de que o intelecto não imprime nada nos fantasmas é a
que leva em conta a superioridade do intelecto angélico em detrimento do intelecto
agente.
Visto que se o anjo não pode imprimir a forma imediata na matéria
corporal, é evidente que muito menos que isto pode o intelecto agente.
O fantasma é um algo corpóreo, portanto o intelecto agente não pode
imprimir nenhuma forma nos fantasmas. 57
Para dar conta do conteúdo desta passagem, precisamos compreender qual a
função do anjo no contexto da cognição58
. Ao analisar a cognição humana devemos
levar em conta que o intelecto humano, enquanto forma do corpo, tem sua operação
determinada, de certo modo, pelos sentidos. O homem, como ser composto, depende
dos sentidos para constituir conhecimento. Por um lado, os sentidos podem ser
considerados como princípio para o conhecimento59
pois têm o papel de proporcionar o
objeto ao intelecto, de tal sorte que, se um objeto não for percebido, não poderá ser
inteligido pelo intelecto humano. Por outro lado, também podem denotar algum tipo de
limitação, pois parece ser correto afirmar que, caso o objeto inteligível não se apresente
ao poder cognitivo pelos sentidos, o conhecimento não se dará. Com a finalidade de
analisar o processo de cognição, evitando este limitador, podemos fazer um
experimento de pensamento e analisar um intelecto separado das condições
individuantes: o intelecto angélico.
Assim, no intuito de determinar a natureza da cognição, Durandus toma o
intelecto angélico como experimento de pensamento para compreender a cognição
humana. Para Durandus, ambas as formas, humana e angélica, pertencem à mesma
espécie de substância incorpórea. Havendo, entretanto, uma hierarquia entre as duas: a
forma angélica deve ser considerada mais nobre do que a humana60
. O que faz com que
o intelecto angélico seja considerado mais nobre não é a diferença de natureza entre
57
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 6: “(..) quia si angelus non potest in materia corporali imprimere
formam immediate, uideretur quod multo minus hoc posset intellectus agens; fantasma autem est
quid corporeum; ergo intellectus agens nullam formam potest fantasmatibus imprimere”. 58
Este assunto será analisado mais detalhadamente no terceiro capítulo desta dissertação. 59
Cf: In II Sent. [C], d. 3, q. 6, n. 8. 60
IRIBARREN, 2008, p. 53. “Da maneira que [Durandus] vê, os benefícios da imaterialidade
angélica não são refletidos em sua individualidade, mas em seu modo de operação. Ambas as almas
angélicas e humanas pertencem à mesma espécie de substâncias incorpóreas”.
35
ambas, mas apenas sua relação com o material. O homem é composto de matéria e
forma, sendo o intelecto a forma do corpo material, por isso seu intelecto é, meramente,
uma forma separável. O anjo, ao contrário, não é um ser composto, mas é simples,
portanto seu intelecto é uma forma separada. Segundo Durandus, “a perfeição de algo é
mensurada segunda a perfeição de sua forma61
”, por isso o intelecto angélico é
considerado mais perfeito do que o intelecto humano.
No que diz respeito à cognição das coisas materiais, Durandus deixa claro que o
abismo entre o material e o imaterial não é superado nem mesmo pelo intelecto
angélico62
, este que é muito mais perfeito que o intelecto agente. Isto porque, mesmo
que o intelecto agente tenha o poder de imprimir conceitos universais em outros
intelectos, não o pode fazer em particulares. Para Durandus, o particular nunca poderia
conter um universal. Se nem mesmo o intelecto angélico, mais perfeito que o intelecto
humano, é capaz de imprimir a forma imediata na matéria, a possibilidade do intelecto
agente possuir esta capacidade deve ser totalmente descartada. Assim, devemos admitir
que o intelecto agente não age imprimindo nada nos fantasmas.
Estes dois argumentos apresentados por Durandus parecem ser fundamentados
em duas premissas: (1) o corpóreo (singular) não pode operar sobre o incorpóreo
(intelecto) e (2) o incorpóreo (intelecto) não pode operar sobre o corpóreo (singular). A
premissa (1) embasa o primeiro argumento de Durandus e parece ser aceita com mais
facilidade: o corpóreo não pode operar sobre o incorpóreo, portanto, o fantasma não
pode mover o intelecto. Isto porque a característica corpórea do fantasma, sua
particularidade, impediria uma ação sobre o intelecto que é incorpóreo. Em
contrapartida, a segunda premissa, que é encontrada no segundo argumento parece ser
mais difícil de ser compreendida: (2) o incorpóreo não pode operar sobre o corpóreo,
portanto, o intelecto agente não pode imprimir nada nos fantasmas. Uma possível
objeção a este argumento é que o intelecto deve ser capaz de operar sobre os fantasmas,
porque o mais perfeito deve ser capaz de atuar sobre um menos perfeito, como afirma
Sélles: “Deve-se aceitar sua primeira conclusão e negar a segunda: afirmar a primeira,
porque nada sensível pode alterar a inteligência; negar a segunda, porque o espiritual (a
61
In II Sent.[C], d. 3, q. 1, n. 10: “Quia perfectio rerum mensuratur secundum perfectionem
formarum”. 62
In II Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 6: “angelus non potest in materia corporali imprimere formam
immediate”. “O anjo não pode imprimir a forma imediata na material corporal”.
36
anjo, o intelecto agente, etc.) pode atuar sobre o sensível63
”. É necessário, no entanto,
perceber que Durandus não procura defenser que o incorpóreo é incapaz de operar sobre
o corpóreo, pura e simplesmente. Aqui, Durandus pretende defender duas coisas: (A) as
teorias que defendem a existência de fantasmas não são capazes de explicar o contato
que seria resultante de uma operação do intelecto sobre o fantasma. Para Durandus, não
há resposta satisfatória para esclarecer como o incorpóreo operaria sobre o corpóreo.
Não é claro como poderia ocorrer tal operação sem a admissão de um contato e o
contato, por sua vez, indicaria materialidade no intelecto, o que é um absurdo. Durandus
procura negar todas as opiniões que não se sustentam e também as que são obscuras, de
tal modo que considera que seus argumentos são suficientes para demonstrar que o
intelecto não imprime nada nos fantasmas. (B) Durandus defende que mesmo que o
intelecto seja capaz de operar sobre os singulares ele não poderia imprimir nada
universal neles, não porque nega que o mais nobre possa afetar o menos nobre, mas pela
limitação que a materialidade contida nos singulares representa: o que é singular nunca
poderia conter um universal.
Neste primeiro momento Durandus analisou a hipótese, apenas com o intuito de
negá-la, de que se houvessem intelecto agente e fantasmas o intelecto agente imprimiria
algo nos fantasmas. A estratégia de Durandus consiste em negar todas as possibilidades,
ainda que aparentemente absurdas, segundo as quais seria possível defender a existência
de um intelecto agente conjunto à alma. Por isso, a investigação prossegue tendo em
vista determinar que o intelecto agente também não abstrai nada dos fantasmas, nem por
uma abstração real, nem por uma abstração segundo a razão64
.
Não é real visto que tal abstração real ou seria uma separação daquilo
que preexiste ao ato nos fantasmas, como abstraída ou separada uma
pedra de um rochedo, ou como separado o acidente do substrato pela
corrupção do acidente. Ou ao modo da virtude divina. Ou segundo a
tal abstração que retira da potência para o ato como a forma dita que
retira ou abstrai da potência do substrato. 65
63
Esta possibilidade de rejeição do argumento apresentado por Durandus é apontada por Sélles em:
SELLÉS, 2011, p. 351. 64
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 7: “Secunda pars probatur, scilicet quod intellectus agens non agit in
fantasmata aliquid abstrahendo uel remouendo, quia illa abstractio uel esset realis uel secundum
rationem”. 65
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 7: “Non realis, quia talis realis abstractio uel esset realiter separatio
alicuius preexistentis actu in fantasmatibus, sicut abstrahitur uel separatur lapis ab altero lapide,
uel sicut separatur accidens a subiecto per corruptionem accidentis, uel alio modo uirtute diuina, uel talis abstractio uocatur eductio alicuius de potentia ad actum, sicut forma dicitur educi uel
abstrahi de potentia subiecti”.
37
Segundo Durandus, se o intelecto agente existisse não poderia abstrair nada dos
fantasmas por intermédio de uma abstração real, isto porque a abstração real pode ser
dita de dois modos, nenhum dos quais seria realizado pelo intelecto. O primeiro modo
de abstração real é aquele que indica a separação do que preexiste ao ato nos fantasmas.
O intelecto teria que operar separando a materialidade preexistente nos fantasmas e
acessando apenas a atualidade, a forma contida neles. A posição de Durandus, no
entanto, é a de que, se houvessem fantasmas, não haveria nenhuma forma neles, porque
o universal não se encontra no particular. Durandus se baseia nesta premissa para
recusar a possibilidade do primeiro modo de abstração real:
O primeiro não se pode dizer, visto que não há qualquer ato nos
fantasmas que indique neles seu ser para a presença do intelecto
agente, nem pela corrupção. Nem pela translação para o intelecto
possível como se fosse anterior nos fantasmas e posterior no intelecto
possível, visto que a forma não migra de substrato em substrato. 66
Se admitíssimos, por propósitos argumentativos, a existência de intelecto agente
e fantasmas, ainda assim não seria possível que o intelecto agente operasse abstraindo
uma forma atual presente nos fantasmas, precisamente porque não haveria tal forma nos
fantasmas. O fantasma, como produto da imaginação que é um órgão interno, seria um
particular e, por isso, não poderia conter uma forma, um universal. Ademais, não é
possível conceber uma abstração real do fantasma, uma vez que ele não é compreendido
como real. O fantasma não é compreendido como existente no mundo, mas nos órgãos
internos do homem, assim, não seria possível abstrair realmente dele. Esta operação,
compreendida como a separação de uma pedra de outra, ou corrupção do acidente de
modo a separá-lo do sujeito, não se aplicaria ao fantasma. Além disso, se houvesse
alguma forma no fantasma, ela preexistiria à intelecção, não seria produto dela e seria
apenas comunicada ao intelecto possível. Todavia, para Durandus, não é claro como
este processo poderia ocorrer, visto que uma abstração do fantasma pressuporia um
contato que não pode ser admitido entre intelecto e particular.
66
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 7: “Primum non potest dici, quia nichil est actu in fantasmatibus quod
desinat in eis esse ad presentiam intellectus agentis, neque per corruptionem neque per translationem ad intellectum possibilem tanquam prius esset in fantasmatibus et postea in intellectu
possibili, quia forma non migrat de subiecto in subiectum”.
38
O segundo modo de abstração real negado por Durandus é aquele segundo o
qual algo é abstraído ou atualizado.
[...] Visto que se uma forma for retirada da potência ao ato, ela própria
seria retirada nela como se no substrato do qual a potência é retirada.
Portanto, se o intelecto agente retirasse alguma forma de potência
passiva do fantasma, fossem espécies inteligíveis ou qualquer outra
forma, a própria forma estaria nos fantasmas como em um substrato.
Assim, o intelecto agente agiria nos fantasmas imprimindo algo,
certamente a forma que retirara, retornando ao primeiro membro
imediato anterior ao reprovado. Logo, tal abstração não pode ser real. 67
Para desqualificar o segundo modo de abstração real, Durandus considera o
pressuposto de que o objeto cognoscível é em ato na natureza. Se um processo ocorresse
de modo a constituir um fantasma, este não seria exatamente como a coisa singular. O
caráter potencial do fantasma o incapacitaria de conter ou representar a universalidade,
ele nunca poderia realizar plenamente a essência de sua espécie. Outro argumento
utilizado por Durandus é que, se o intelecto agente abstraísse do fantasma atualizando
sua forma da potência para ato, teríamos que admitir que a forma seria no fantasma
como em um sujeito. Contudo, o fantasma não é compreendido como um ente real, não
existe independentemente da imaginação. Se o fantasma fosse considerado como um
sujeito a atualização de sua potência seria realizada pelo intelecto agente. Este
imprimiria algo de modo a atualizar o que estaria em potência no fantasma, para
atualizar tal potência, no entanto, o intelecto agente teria que imprimir a própria forma
que se assume que ele abstraiu do fantasma, o que, claramente, não se sustenta.
Além da abstração real, Durandus também nega que o intelecto agente possa
operar sobre os fantasmas abstraindo segundo a razão:
Todo ato da razão é cognitivo sobre o qual o intelecto conhece
objetivamente. Entretanto, o agente não age sobre os fantasmas como
o cognoscente sobre o conhecido, visto que nem o intelecto agente
conheceu os fantasmas, nem sua ação é o conhecimento. Assim, se
toda cognição intelectual é pressuposta segundo seu próprio poder, sua
67
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 7: “Nec secundum potest dici, quia cum aliqua forma educitur de potentia in actum, ipsa educta est in illo tanquam in subiecto de cuius potentia educitur. Si ergo
intellectus agens de potentia passiua fantasmatum educeret aliqua formam, siue esset species
intelligibilis siue quecunque alia forma, ipsa educta esset in fantasmatibus sicut in subiecto, et ita intellectus agens ageret in fantasmata aliquid imprimendo, scilicet formam quam educeret; et
rediret primum membrum immediate prius reprobatum. Talis ergo abstractio non potest esse realis”.
39
ação sobre os fantasmas não é a abstração segundo a razão. Nem, de
qualquer outro modo age neles, nem imprimindo algo, nem abstraindo
algo. Nem realmente, nem logicamente. 68
São duas as premissas que fundamentam a negação de que o intelecto agente
possa operar abstraindo dos fantasmas segundo a razão. A primeira é que o intelecto
deve conhecer seus atos cognitivos. Se o intelecto agente opera, esta operação é um ato
cognitivo que deve ser conhecido por ele, logo, se opera sobre os fantasmas deve
conhecê-los. Isto, porém, não ocorre. O fato de que o intelecto agente não tem
conhecimento dos fantasmas seria uma evidencia de que ele não opera abstraindo sobre
eles. O argumento apresentado aqui é similar ao exposto no In II Sent [C], d. 3, q. 6, no
qual Durandus analisa a noção de espécie:
Tais espécies, se conduzissem à cognição de outra coisa, o fariam por
razão de similitude. Que é comumente chamada de similitude da
coisa. E, assim, teria a razão de uma imagem. Mas uma imagem que
leva à cognição daquilo de que é uma imagem é conhecida primeiro, o
que não pode ser dito de tais espécies. 69
Na referida passagem, Durandus afirma que se existissem espécies inteligíveis70
elas seriam como imagens das coisas. Porém, a evidência de que tais espécies não
existem seria o fato de que o intelecto não as conhece. Para Durandus, o intelecto deve
conhecer uma imagem que o conduz ao conhecimento de outras imagens. Assim como
através de uma fotografia é possível conhecer algo: o intelecto primeiro conhece a foto e
depois conhece aquilo que ela o conduz a conhecer71
. Assim, segundo Durandus, se
68
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 8: “(...) omnis actio rationis est cognoscentis circa cognitum obiectiue
intellectus; set agens non agit circa fantasmata sicut cognoscens circa cognita, quia nec intellectus
agens fantasmata cognoscit nec sua actio est cognitio, imo presupponitur omni cognitioni intellectuali secundum ponentes ipsam; ergo sua actio circa fantasmata non est abstractio secundum
rationem. Nullo ergo modo agit in ea, nec aliquid imprimendo nec aliquid abstrahendo, neque secundum rem neque secundum rationem”. 69
In II Sent. [C], d. 3, q. 6 n. 11: “Talis species, si duceret in cognitionem alterius, hoc faceret
ratione similitudinis. Unde communiter uocatur similitudo rei. Et sic haberet rationem imaginis. Imago autem ducens in cognitionem illius cuius est imago est primo cognita, quod non potest dici de
tali specie. Ergo, etc”. 70
Por questão de escopo não analisaremos detalhadamente a noção de espécie neste texto. Sobre este
tema ver: HARTMAN, 2012, p. 138-177; HARTMAN, 2013, p. 19-34 e KLIMA, 2004, p. 4-11. 71
HARTMAN, 2013, p. 21: “O argumento de Durandus é simples. Para uma imagem representar o
que ela representa, deve ser apreendida antes do que ela representa seja apreendido, pois, no geral,
representações são objetos de cognição. (...) Por exemplo, a palavra “Hercules”, a estátua de
Hercules no pátio, e seu reflexo no lago, cada um representa Hércules, e para que possam fazer isso,
eles devem ser apreendidos previamente: Sócrates ouve a palavra “Hercules” ou vê sua estátua ou
seu reflexo no lago e então ele pensa sobre Hercules. Consequentemente, uma species é conhecida.
40
existisse espécies inteligíveis fundamentais no processo de cognição o intelecto deveria
conhecê-las. O mesmo raciocínio é válido para o caso dos fantasmas: se existisse um
intelecto agente com a função de operar abstraindo sobre fantasmas, ele deveria ter
conhecimento de tais fantasmas, o que não ocorre.
A segunda premissa é a de que o intelecto agente não pode abstrair dos
fantasmas, porque se o fizesse, não teria como objetivo conhecer os fantasmas, mas uma
quididade presente neles, que Durandus acredita também não existir. O intelecto deveria
operar separando a quididade do fantasma das condições individuais, de modo que,
assim separada, ela se encontrasse segundo si, inteligível. E, sendo a quididade
inteligível por si, não haveria nenhum obstáculo para a apreensão intelectual. Porém,
este argumento não apresenta de que modo o intelecto agente separaria, segundo a
razão, a quididade das condições individuantes representadas nos fantasmas72
. E
Durandus pondera que não se deve aceitar uma operação que não pode ser provada.
Contudo, este não é um ponto pacífico. Sélles afirma que Durandus está
equivocado ao afirmar que o intelecto agente não seria capaz de operar por intermédio
de uma abstração segundo razão:
Mas deve-se discordar dele no que diz que a abstração não é uma
separação de razão, porque ela é, pois separar uma forma universal
das coisas físicas e suas coordenadas espaço-temporais não é separar
realmente a causa formal do resto das causas (material, eficiente e
final), processo impossível porque as causas só são entre si, mas é
separar uma forma que não é física das causas físicas, separação que
exerce o conhecimento humano. Com efeito, conhecer é formar uma
forma imaterial que é intencional a respeito das formas físicas porque
tal forma se dá separada das causas e, consequentemente, não é
causa73
.
Segundo esta crítica Durandus erra ao afirmar que a operação do intelecto agente
não é justamente aquilo que deveria ser: uma separação de razão. No entanto, esta
posição não leva em conta que, para Durandus, conhecer não é separar uma forma não
física de causas físicas. Para ele, a forma não existe independentemente do intelecto, nas
Contudo, evidentemente, quando eu percebo um objeto externo, eu não o faço por intermédio de
uma apreensão prévia de uma species”. 72
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 11. “Nullo modo ostendunt quomodo intellectus agens separaret
secundum rationem quidditatem a conditionibus indiuiduantibus sub quibus representatur in fantasmatibus”. 73
SELLÉS, 2011, p. 352.
41
coisas particulares, precisamente porque ele compreende o conhecer como formar
conceitos. Os conceitos são compreendidos como formas imateriais, caracterizadas
como produtos da cognição e não como formas preexistentes à cognição e apreendidas
pelo intelecto. O intelecto agente não abstrai separando o universal existente nos
fantasmas porque não há universal nos fantasmas: primeiro porque o universal não
preexiste à intelecção, segundo porque mesmo que o universal preexistisse à intelecção,
a característica particular do fantasma impediria que ele representasse ou contivesse o
universal ou fosse como sua similitude:
Mas aquilo que impede a representação da quididade universal é a
condição material e individual do fantasma, segundo alguns. Logo, o
intelecto agente nunca poderia ser movido pela ação dos fantasmas,
nem pela abstração segundo a razão, como afirmam. Isto porque, por
tal abstração, os fantasmas nunca poderiam representar a quididade
universal, mas sempre sob as condições singulares. Mas, de outro
modo, a quididade do intelecto não é representada senão pelos
fantasmas, segundo a opinião destes, visto que não afirmam que as
espécies abstraídas pelos fantasmas sejam representações da
quididade. Logo, tal abstração não basta para a representação da
quididade universal. 74
Compreendo que o objetivo de Durandus é demonstrar as incompatibilidades
presentes na teoria da qual diverge. A caracterização do fantasma como particular é o
que impede que ele seja abstraído pelo intelecto agente, imaterial, e que represente uma
quididade universal. Por sua própria constituição particular nada poderia ser nele senão
sob condições materiais. Como particular, apenas poderia representar ou conter
particulares e nunca um universal. E, mesmo que isto fosse possível, este argumento
não fornece nenhuma explicação sobre como o intelecto agente operaria separando a
quididade das condições materiais e individuais. Portanto, o intelecto agente não age
sobre os fantasmas.
74
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 12. “Quia stante reali impedimento alicuius actionis impossibile est sequi actionem, ut patet in trabe impediente descensum lapidis et | tenebris impedientibus uisum
(quandiu enim trabs manet sub lapide et tenebre sunt in medio, nec lapis potest descendere nec oculus uidere); set illud quod impedit representationem quidditatis uniuersaliter est materialis et
indiuidualis conditio fantasmatum, ut IPSIMET dicunt. Cum ergo illud nunquam amoueatur a
fantasmatatibus per quamcunque actionem intellectus agentis, nec per illam abstractionem rationis quam ponunt, sequitur quod fantasmata per talem abstractionem nunquam poterunt representare
quidditatem uniuersalem, set semper sub conditionibus singularibus. Aliter autem non
representaretur quidditas intellectui nisi per fantasmata secundum ISTOS, quia non ponunt quod a fantasmatibus abstrahatur aliqua species que sit representatiua quidditatis. Ergo talis abstractio
non sufficit ad representandum quidditatem uniuersalem”.
42
Ainda assim, superados todos estes argumentos, Durandus apresenta um último
que poderia ser usado contra ele, segundo o qual poderia haver ainda um terceiro modo
de operação intelectual que não a abstração ou impressão de algo, ainda não examinado:
Alguém diria, entretanto, que esta divisão seria insuficiente, isto
porque o intelecto agente age nos fantasmas dando a eles a virtude de
mover o intelecto possível, certamente sem que imprimissem ou
abstraíssem algo dele, mas apenas assistindo. De [modo] similar
ocorre [no caso] da luz que dá à cor a virtude de mover a visão e,
entretanto, não imprime nada na cor, nem abstrai nada da cor, mas
assiste e do mesmo modo pode ser dito do intelecto agente e dos
fantasmas, como parece. 75
A pergunta que é colocada diz respeito à possibilidade de o intelecto agente
operar sobre os fantasmas sem imprimir ou abstrair algo, mas apenas assistindo. Assim
como o exemplo parece sugerir que a luz assiste a cor, sem imprimir ou abstrair algo
dela, e ao assistir possibilita que a cor mova a visão. Para Durandus, entretanto, o ato de
dar uma virtude não dando nada certamente parece implicar em uma contradição.
Porém seria miraculoso que algo desse a outro algo uma virtude e,
entretanto, não influísse nem removesse um impedimento, mas apenas
assistisse. O ato de dar uma virtude não dando nada certamente parece
implicar em uma contradição. Mas este exemplo parece proceder da
ignorância, pois não se requer luz para ver, já que a cor dá [à luz] a
virtude de mover a visão, uma vez que a cor possui esta virtude, mas o
meio e o órgão não, então não receberiam as ações da cor senão
fossem iluminados ou por outra causa. E igualmente não é miraculoso,
mas é falso assumir esta conclusão falsa. 76
Para Durandus, é falsa a conclusão de que o intelecto agente pode operar sobre
os fantasmas, sem imprimir ou abstrair algo deles, mas apenas assistindo. E o exemplo
da luz apenas causa confusão. O exemplo dado, de fato, não esclarece o ponto de
75
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 14. “Set diceret ALIQUIS quod hec diuisio sit insufficiens, quia intellectus agens agit in fantasmata dando eis uirtutem mouendi intellectum possibilem, non quidem
aliquid imprimendo nec abstrahendo, set solum assistendo; et ponitur simile, quia lumen dat colori uirtutem mouendi uisum et tamen nichil imprimit colori nec a colore aliquid abstrahit, set tantum
assistit; et eodem modo potest esse circa intellectum agentem et fantasmata, ut uidetur”. 76
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 15: “Istud autem est mirabile quod aliquid det alteri uirtutem et tamen non influat nec impedimentum tollat, set solum assistat; hoc enim uidetur implicare contradictionem,
scilicet quod det uirtutem nichil dando. Set et exemplum procedit ex ignorantia; lumen enim non
requiritur ad uidendum propter colorem ut det ei uirtutem mouendi uisum, cum color ex se habeat uirtutem, set propter medium et organum, que non sunt susceptiua actionis coloris nisi sint
illuminata uel ex alia causa”.
43
Durandus. Pois, parece declarar que a cor dá à luz a virtude de mover a visão77
.
Acredito que, ao afirmar que se o órgão da visão não for iluminado não poderia receber
as ações da cor, Durandus pretende defender que não é possível dar uma virtude a algo
sem influir ou remover algo deste. Este exemplo da percepção teria a função de
esclarecer o processo cognitivo. Se, no mundo natural, não é possível afirmar uma
operação que apenas assiste, sem imprimir ou abstrair nada, também não é aceitável
dizer que o intelecto agente opere sobre os fantasmas sem nada acrescentar ou abstrair
deles. Assistir significaria retirar algo sem nada retirar. Ou, acrescentar algo, sem nada
acrescentar. Esta noção de assistir não é nada menos que vazia e falsa: “Portanto, não é
próprio afirmar que o intelecto agente realize uma ação sobre os fantasmas, visto que
não há nenhuma ação deste tipo que se possa provar78
”.
Assim, portanto, Durandus elimina todas as possibilidades de operação do
intelecto agente sobre os fantasmas. O intelecto não age nem imprimindo algo, nem
abstraindo algo dos fantasmas. Nem de maneira real, nem segundo a razão, de nenhum
modo79
. Por esta via, a operação do intelecto agente é completamente impossibilitada.
77
SELLÉS, 2011, p. 353: “Com exceção do exemplo fornecido, pode-se aceitar o que Durandus
ensina aqui, pois se o intelecto agente se limitasse a dotar os fantasmas de uma qualidade tal que
mudassem o intelecto possível e lhe tirassem de sua nativa passividade, isso suporia, por um lado,
que o inferior afeta o superior e, por outro, que a espécie inteligível preexiste ao ato de conhecer e
que não depende dele, senão o inverso, o qual supõe aceitar a passividade cognitiva que, como foi
indicado, é inapropriado ”. 78
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 15. “Et ideo non est mirum si ex falso assumpto conclusum est aliud
falsum. Non ergo oportet ponere intellectum agentem ex actione eius circa fantasmata, quia nulla est, ut probatum est. Et hec est prima pars principais deductionis”. 79
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 13. “Assim, portanto, expõe que o intelecto agente não age nos
fantasmas nem imprimindo algo, nem abstraindo algo, de nenhum modo”. “Sic ergo patet quod intellectus agens non agit in fantasmata aliquid imprimindo nec aliquid abstrahendo, ergo nullo
modo”.
44
1.2- A DEMONSTRAÇÃO DE QUE O INTELECTO AGENTE NÃO OPERA
SOBRE O INTELECTO POSSÍVEL
Com o objetivo de provar a inexistência do intelecto agente, Durandus empenha-
se em mostrar a inviabiliadade de sua operação, pois, se nenhuma função pode ser
atribuída ao intelecto agente, sua existência não deve ser afirmada. Uma vez que, se
houvesse um intelecto agente, ele só poderia operar sobre os fantasmas ou sobre o
intelecto possível, e tendo provado a impossibilidade de tal operação sobre os
fantasmas, Durandus prossegue em sua investigação para determinar a impossibilidade
da operação de um intelecto agente sobre o intelecto possível. A inviabilidade desta
operação é demonstrada tendo em vista as duas vias por intermédio das quais o intelecto
agente poderia perfazer uma operação sobre o intelecto possível, pois, se o intelecto
agente assim operasse, o faria ou sozinho ou acompanhado do fantasma.
Claramente não é necessário afirmar que o intelecto agente perfaça
alguma ação no intelecto possível, da seguinte maneira: uma ação
sobre o intelecto possível não poderia inteligir senão de dois modos.
Pelo primeiro o intelecto agente age sozinho sobre o possível. O
fantasma, porém, não age nem conjuntamente. Pelo segundo, tanto o
intelecto agente quanto o fantasma agem no intelecto possível, como
dois agentes imperfeitos suprem as vezes de um agente perfeito. Do
mesmo modo que dois homens puxam um barco, algo que nenhum
deles, por si, seria suficiente [para fazer]. 80
Segundo Durandus, uma operação do intelecto agente sobre o intelecto possível
poderia ser de dois modos: (1) o intelecto agente deveria operar sozinho sobre o
intelecto possível e os fantasmas não agiriam conjuntamente nesta operação; (2) o
intelecto agente e os fantasmas operariam conjuntamente sobre o intelecto possível,
como dois agentes imperfeitos que, quando juntos, supririam a função de um agente
perfeito. Na investigação do primeiro modo, Durandus indica três motivos pelos quais o
intelecto agente seria incapaz de agir sobre o intelecto possível sem o auxílio dos
fantasmas: (1a) O intelecto agente não opera sozinho sobre o possível porque o intelecto
80
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 16. “quod non sit necesse ponere intellectum agentem propter aliquam
actionem eius in intellectum possibilem, patet sic: actio eius in intellectum possibilem non potest intelligi nisi duobus modis, primo sic quod intellectus agens solus agat in possibilem, fantasma
autem nichil agat nec coagat, set solum se habeat obiectiue; secundo sic quod tam intellectus agens
quam fantasma agant in intellectum possibilem tanquam duo imperfecta agentia supplentia uicem unius perfecti agentis eodem modo quo duo homines trahunt nauem quórum neuter per se
sufficeret”.
45
possível é suficiente e, assim, não se deve afirma uma operação como a do intelecto
agente que seria supérflua:
O primeiro não se pode dizer, manifestamente que o intelecto agente
age no possível e os fantasmas nada fazem, mas somente se tivessem
um objetivo ou determinação. Visto que, se para a cognição não se
requer que o objeto ou as próprias representações façam algo na
potência, mas apenas que o objeto representado satisfaça o sentido,
apreendendo o objeto ao seu propósito sem outro movente. Não vejo
porque o intelecto não satisfaria aquele [a apreensão do objeto]
mesmo sem este [outro movente]. Pois seria próprio do objeto ter o
propósito de mover o intelecto agente por si, a não ser que tenhamos
retornado aquele [argumento de] que os fantasmas não satisfazem [ao
propósito de] representar o objeto ao intelecto possível a não ser pela
ação do intelecto agente sobre eles mesmos. Mas este não é o caso.
Visto que o ato é supra, mas somente agora é declarada a operação do
intelecto agente no possível ou se é necessário ao ato inteligente
pressupor a presença de um objeto. E é claro que não, ao sentido não é
requerido outro agente, mas apenas a presença do objeto. 81
Para Durandus o intelecto possível tem a capacidade de apreender o objeto da
cognição sem o auxílio ou o intermédio de outro movente responsável pela mediação
entre o objeto e o intelecto, ou ainda, responsável pela atualização do intelecto. Por isso,
não é necessário afirmar um intelecto agente que tenha como função operar sobre o
intelecto possível. Para que a apreensão de algo aconteça é apenas necessário que o
objeto cognitivo satisfaça o órgão do sentido sem que seja necessário, para tanto, a
atuação de algum mediador. Do mesmo modo, se o objeto cognoscível está presente ao
poder cognitivo não é necessário afirmar nenhum intermediário para garantir que a
cognição se dê. Ao analisar este argumento, Sélles afirma:
(...) basta a mera presença do objeto para que o intelecto possível
passe ao ato, ou seja, atue, de igual maneira que basta o objeto
81
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 17. “Primum non potest dici, scilicet quod solus intellectus agens agat in possibilem et fantasmata nichil omnino agant, set solum se habeant obiectiue uel terminatiue,
quia si ad cognitionem non requiritur quod obiectiuum uel representans ipsum aliquid agat in potentia, set solum quod ei representetur, cum sensus sufficiat ad apprehendendum obiectum sibi
propositum sine alio mouente, non uideo quare intellectus non sufficiat ad illud idem absque hoc
quod preter obiectum sibi propositum ponatur intellectus agens mouens ipsum, nisi redeatur ad illud quod fantasmata non sufficienter representant obiectum intellectui possibili nisi per actionem
intellectus agentis circa ipsum. Set de hoc non agitur nunc, quia actum est supra, set solum nunc
queritur de operatione intellectus agentis in possibilem, an sit necessaria ad actum intelligendi supposita presentia obiecti. Et patet quod non, sicut ad sentiendum non requiritur aliud agens, set
tantum presentia obiecti”.
46
sensível para que o sentido sinta, sem a necessidade de afirmar
nenhum suposto sentido agente. Contudo, ao que precede se pode
replicar que nativamente o intelecto possível é uma potência passiva,
que nenhum objeto conhecido se dá à margem de seu ato de conhecê-
lo ou previamente a ele, e que o objeto conhecido depende do ato, não
o inverso. O que implica aceitar uma prévia distinção entre o objeto
real, que é singular e o objeto mental, que é universal. 82
Durandus, de fato, aceita a distinção prévia entre objeto real, que é singular, e
objeto mental, que é universal. Contudo, tal distinção não é compreendida como um
impedimento para o conhecimento. Durandus não defende que seja necessário afirmar
um intelecto agente que atue como um mediador entre o material e o imaterial. Por um
lado, a percepção sensível é compreendida como algo que ocorre naturalmente uma vez
que o objeto sensível se apresenta ao sentido. Para que ela ocorra não é necessário
afirmar a existência de um sentido agente em contraposição a um sentido passivo que
seria afetado pela impressão sensível. Por outro lado, a intelecção é compreendida como
algo que ocorre naturalmente se o objeto cognoscível está presente ao poder cognitivo.
Isso não significa afirmar a existência de um universal precedente ao ato de
conhecimento, o que pode ser verificado pela distinção entre as noções de singular e
universal traçada por Durandus. O objeto mental é totalmente dependente do intelecto, e
é universal, enquanto o objeto real é singular, não contém nenhuma universalidade em
si, dado que é separado do intelecto. O universal é produto da intelecção. O cerne do
argumento de Durandus, no entanto, não está na noção de universal, mas na noção de
nobreza do ato cognitivo, como Hartman observa:
Durandus defende que os afeccionistas (…) estão comprometidos com
a violação de um princípio causal eminentemente básico: o que é
menos nobre não pode afetar o que é mais nobre. Durandus considera
dois modos de compreender este princípio. Por um lado, pode
significar que um poder menos nobre não pode atuar sobre um poder
mais nobre. De acordo com a maioria dos filósofos medievais, em
qualquer operação causal, há uma potência ativa em um agente em
virtude da qual ele age e um potência passiva em um passivo, em
virtude da qual se age sobre ele, e o primeiro deve ser mais nobre do
que o segundo. (…) Por outro lado, o princípio de nobreza pode
significar que aquilo em virtude do que uma coisa causa um efeito
deve ser ao menos tão nobre quanto (se não mais nobre do que) o
efeito, ao menos em casos nos quais esta coisa cause o efeito por si. 83
82
SELLÉS, 2011, p. 354. 83
HARTMAN, 2013, p. 22.
47
A noção de nobreza pode ser analisada tanto na relação entre os sentidos e o
intelecto, quanto na relação entre o objeto cognoscível material e o poder cognitivo
intelectual. Segundo Durandus, se podemos admitir que os sentidos têm a capacidade
de apreender o objeto sem nenhum intermediário e que existe uma hierarquia de
nobreza entre intelecto e corpo, a conclusão necessária é a de que a operação intelectual,
que é supra84
, tem uma capacidade ainda maior que os órgãos que operam no nosso
corpo. Além disso, sendo o intelecto claramente mais nobre do que o objeto de seu
conhecimento, a conclusão de Durandus é a de que o intelecto deve ter a capacidade de
inteligir o seu objeto sem outro movente que tenha uma função mediadora.
O segundo motivo pelo qual não se pode afirmar uma operação do intelecto
agente sobre o intelecto possível é exposto por Durandus do seguinte modo: (1b) se o
intelecto agente operasse sozinho, por agir por necessidade natural agiria sempre igual
sobre o intelecto possível e, então, este último conheceria tudo desde sempre e não
conheceria coisas novas.
Ademais, aquilo que, permanecendo igual sempre faz o mesmo a
respeito do mesmo, é habilíssimo se age por necessidade natural (...).
Mas o intelecto agente age por necessidade natural e permanece
sempre igual, segundo si, e em conformidade ao possível, por mais
variados que sejam os fantasmas que são objetos do intelecto. Pois, no
início da criação, a alma sempre fez o mesmo no intelecto possível,
não obstante haja uma diversidade de fantasmas, como exposto por
ele, visto que eles não agem [por si] nem conjuntamente, segundo tal
opinião. Portanto, ao inteligir um número causado pelo intelecto
agente, o intelecto [possível] intelige desde o início e sempre todas as
coisas que lhe são representadas, o que é incongruente. 85
Durandus procura apontar as fraquezas da posição que tem como objetivo
combater. Segundo apresentada, a opinião combatida afirma que o intelecto agente deve
operar sozinho sobre o intelecto possível, sem o auxílio de fantasmas, pois, se fosse
admitida a operação conjunta dos fantasmas eles deveriam ser compreendidos como
84
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 17. “quia actum est supra”. 85
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 18: “Item idem manens idem et respectu eiusdem semper natum est
facere idem, potissime si agat ex necessitate nature (...) set intellectus agens agit ex necessitate
nature et manet semper idem secundum se et in habitudine ad possibilem, quantumcunque fantasma, quod est obiectum intellectus, uarietur; ergo ab initio creationis anime semper fecit idem in
intellectu possibili non obstante diuersitate fantasmatum que ei obiiciuntur, quia illa non agunt nec
coagunt secundum hanc opinionem. Igitur per unum intelligere numero causatum ab intellectu agente intellexit intellectus ab initio et semper intelliget omnia sibi representata, quod est
inconueniens”.
48
objetos do intelecto agente. Contudo, não seria possível explicar como os fantasmas
poderiam cumprir a função de ser objetos do intelecto, uma vez que eles não são o que o
intelecto procura conhecer. Visto que seu objetivo é conhecer o objeto cognoscível e
não uma representação dele, ou um intermediário em vista do qual ele poderia conhecê-
lo. E, além disso, o intelecto agente operaria sobre o intelecto possível representando
uma grande diversidade de formas acidentais, a depender dos objetos de conhecimento,
contrariando a natureza necessária do intelecto. Por isso, segundo a opinião analisada e
apresentada por Durandus, os fantasmas não podem possuir nenhum papel na cognição
e o intelecto agente deve operar sozinho sobre o possível. Durandus, de fato, concorda
com a afirmação de que os fantasmas não possuem papel na cognição. Disto, não se
segue, para ele, que seja possível afirmar que o intelecto agente tenha a capacidade de
agir sozinho sobre o intelecto possível com o objetivo de conhecer coisas particulares.
Dado que, se o intelecto agente operasse sem a cooperação dos fantasmas sobre o
intelecto possível, operaria sempre do mesmo modo e, consequentemente, o intelecto
possível sempre inteligiria as mesmas coisas86
. Além disso, este argumento parece
conter uma circularidade ao afirmar que o intelecto intelige sempre o que ele representa
para si próprio. Isto porque, a distinção entre intelecto agente e possível não é real, mas
apenas de razão. Assim, dizer que o intelecto agente opera sobre o intelecto possível
equivale a dizer que o intelecto opera sobre o próprio intelecto e todo ato de inteligir
seria resumido, portanto, a uma operação reflexiva. E esta seria a conclusão mais grave
que se poderia chegar ao assumir que o intelecto agente seria capaz de agir sozinho, sem
nenhum auxílio, no intelecto possível.
O terceiro e último motivo apresentado por Durandus também é constituído com
o objetivo de expor as limitações da teoria que está considerando com o objetivo de
superar. (1c) Para ele, uma mesma teoria não pode afirmar a existência de fantasmas e,
86
Sélles se refere a esta argumentação de Durandus do seguinte modo: “Este argumento indica que
supor que o intelecto possível conhece por razão do agente, dado que a ação deste se supõe sempre a
mesma e única, resultaria que o intelecto possível entenderia tudo desde sempre, o que é,
obviamente, falso. Ademais, se o intelecto agente sempre conhece igual, sua ação sobre o intelecto
possível seria inconveniente, pois este não cresceria em conhecimento. Mas, a esta hipótese pode-se
objetar que apesar da atividade do agente ser permanente, isto não implica que sempre ative o
possível. Tampouco equivale a afirmar que a ação do agente sempre seja a mesma sem a
possibilidade de crescer ou diminuir ”. (SÉLLES,2011, p. 354-355.) Sélles indica os pontos
negativos da crítica realizada por Durandus, todavia não especifica em que condições o intelecto
agente poderia operar sem ser sobre o intelecto possível e com qual objetivo tal operação seria
disposta. Além disso, não esclarece em que condições a operação do intelecto agente poderia
aumentar ou diminuir ocasionalmente, uma vez que esta operação é suposta como uma operação
natural do intelecto.
49
simultaneamente, a existência de um intelecto agente que operaria sozinho sobre o
intelecto possível, pois, se afirma a existência de fantasmas, eles devem ser entendidos
como causa, próxima ou remota da cognição. Assim, a teoria parece ser incongruente, o
intelecto agente não operaria sozinho se a causa da cognição fosse o fantasma.
Ademais, aquilo que é exigido para o efeito é sempre sua causa
próxima ou remota. Mas o fantasma sempre é exigido para a
intelecção. Logo, ele é sua causa próxima ou remota. Portanto é
exposto que o primeiro modo não é possível, manifestamente que o
intelecto agente age no intelecto possível e o fantasma não age
conjuntamente. 87
O ponto de Durandus é que existe uma contradição em afirmar a existência de
fantasmas e, simultaneamente, que existe um intelecto agente que opera sozinho, pois
não seria possível explicar a função dos fantasmas. Se a existência do fantasma é
admitida, então ele não é compreendido como produto da intelecção, mas como algo
que preexiste a ela. A existência do fantasma é admitida porque ele seria necessário para
a intelecção, dado que o intelecto agente abstrairia dele e, assim, poderia agir sobre o
intelecto possível. Contudo, aquilo que é exigido para determinado efeito deve ser
compreendido como sua causa, próxima ou remota. E se o fantasma for compreendido
como causa do efeito que é a intelecção do objeto cognoscível então não se pode
afirmar que o intelecto agente opera sozinho sobre o intelecto possível. Deste modo,
Durandus pretende revelar os limites desta primeira parte da teoria considerada e
definitivamente descartar que (1) o intelecto agente deveria operar sozinho sobre o
intelecto possível e os fantasmas não agiriam conjuntamente nesta operação.
Uma vez que considera ter sido bem sucedido em demonstrar (1), Durandus
prossegue sua investigação com o objetivo de demonstrar a impossibilidade da
afirmação de que (2) o intelecto agente e os fantasmas operam conjuntamente sobre o
intelecto possível. Para tanto, Durandus considera os três modos segundo os quais uma
operação conjunta do intelecto agente e dos fantasmas poderia ocorrer.
E, igualmente, alguns afirmam o segundo modo, manifestamente que
tanto o intelecto agente quanto os fantasmas, agem no intelecto
possível como dois agentes imperfeitos suprem as vezes de um agente
87
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 19: “Item illud quod semper preexigitur ad effectum est causa eius
propinqua uel remota; set fantasma preexigitur semper intellectioni; ergo est causa eius propinqua uel remota. Patet ergo quod primus modus non est possibilis, scilicet quod intellectus agens agat in
intellectum possibilem fantasmate nichil coagente”.
50
perfeito. Diante de tal declaração, dizem que duas ações podem
concorrer de triplo modo: primeiro quando um influi no outro e o
último age pelo primeiro que é o seu influxo, assim como o sol
ilumina a lua e a lua, com a luz recebida do sol, ilumina o ar. 88
Para Durandus o intelecto agente e os fantasmas agiriam como dois agentes
imperfeitos que, quando juntos, agem de modo perfeito sobre o intelecto possível. Tal
operação poderia se dar de três modos: 2a) Quando um influi no outro e este último age
pelo primeiro. Para ilustrar este modo de operação Durandus utiliza o exemplo da Lua.
O Sol age iluminando a Lua e esta ilumina o ar, não com a luz produzida por ela
própria, mas pela luz que recebe do Sol e reflete. Da mesma maneira o intelecto agente
concentraria sua operação sobre o fantasma e, assim, este último seria capaz de agir
sobre o intelecto possível. Mas, como já foi demonstrado, o intelecto agente não
imprime nada nos fantasmas e, de fato, Durandus apresenta este modo para descartá-lo,
logo em seguida, como inadequado: pois, “nem o intelecto influi no fantasma, nem o
inverso, o que corresponderia ao primeiro modo89
”.
Tendo descartado o primeiro, Durandus apresenta o segundo modo. Este
afirmaria que 2b) o intelecto agente não seria capaz de influir no fantasma, nem o
inverso, mas um causaria uma disposição e esta produziria a forma:
O segundo modo é quando um não influi no outro nem o inverso, mas
um causa a disposição e resta a forma principal. Assim como o que
modela a cera dispõe da matéria e o que imprime um selo, ou o
próprio signo impresso introduz a forma principal, manifestamente a
figura. E assim concorrem estes dois à formação da figura na cera. 90
Durandus exemplifica esta via de operação com o caso da cera que é aquecida e,
por isso, é convertida em um selo. Aquele que age aquecendo e modelando a cera e o
que imprime o signo concorrem juntos para a formação da figura conhecida. Do mesmo
88
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 20: “Et ideo QUIDAM ponunt secundum modum, scilicet quod tam
intellectus agens quam fantasmata agunt in intellectum possibilem tanquam duo imperfecta agentia supplentia uicem unius perfecti agentis. Ad cuius declarationem dicunt quod duo agentia possunt
tripliciter concurrere ad aliquid faciendum: primo quando unum influit in alterum et illud alterum agit per illud quod est sibi influxum, sicut sol illuminat lunam et luna per lumen receptum a sole
illuminat aerem”. 89
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 21: “nec intellectus influit aliquid fantasmati nec econuerso circa primum modum”. 90
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 21: “secundo modo quando unum nichil influit in alterum nec
econuerso, set unum causat dispositionem et reliquum formam principalem, sicut mollificans ceram disponit materiam et imprimens sigillum uel ipsum sigillum impressum introducit principalem
formam, scilicet figuram, et sic concurrunt hec duo ad figurandum ceram”.
51
modo, segundo esta via, seria admitido que o intelecto agente e os fantasmas agiriam
juntos no intelecto possível. Não um influindo no outro, mas concorrendo juntos para
possibilitar o ato de inteligir. Contudo, esta é uma possibilidade apresentada por
Durandus e imediatamente desqualificada, porque, segundo ele: “sobre o segundo
modo, um não causa disposição e resta a forma principal, mas ambos têm em si a
virtude de mover o intelecto possível91
”. Para Durandus, o segundo modo não pode ser
admitido. Se dois agentes concorrem para uma ação não se deve admitir que um deles
causa uma disposição, mas sim que ambos possuem a virtude, ainda que imperfeita por
si, de operar. Por isso, Durandus passa ao exame do terceiro modo segundo o qual o
intelecto agente e o fantasma operariam juntos sobre o possível. Segundo este modo,
(2c) ambos agiriam como dois agentes imperfeitos que, juntos, são capazes de perfazer
uma ação perfeita:
O terceiro modo é quando nem um influi no outro, nem um causa uma
disposição e resta a forma, mas assim como duas ações imperfeitas as
quais tem em si a virtude de agir, ainda que imperfeita, juntas, porém
completam simultaneamente uma mudança perfeita do agente, assim
como dois conseguem um efeito que é neutro por si. E, deste modo,
concorrem o intelecto agente e os fantasmas quando causam no
intelecto possível uma espécie de um número ou um ato inteligente. 92
Para Durandus, aqueles que defendem o argumento de que o intelecto agente e
os fantasmas são responsáveis por causar uma espécie ou um ato inteligente no intelecto
possível admitem que ambos operam simultaneamente, não um no outro, mas ambos no
intelecto possível. Segundo este argumento, ambos são responsáveis pelo ato de
inteligir, pois, quando juntos, equivaleriam a um agente perfeito, capaz de perfazer uma
ação que, separados, não poderiam realizar.
Apesar de serem imperfeitos por si, ambos, quando juntos, equivalem
a um agente perfeito. Isto porque o intelecto agente tem por si a
virtude de mover o possível, o que todos concebem. Quanto ao
fantasma, que opera de modo similar, fica claro (...) se assim não
91
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 21: “nec unum causat dispositionem et reliquum formam principalem
circa secundum modum, set utrunque habet de se uirtutem mouendi intellectum possibilem”. 92
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 21: “tertio modo quando nec unum influit in alterum nec unum causat dispositionem et reliquum formam, set sicut duo imperfecta agentia quorum quodlibet habet de se
uirtutem agendi, set imperfectam, iuncta autem simul supplent uicem unius perfecti agentis, sicut est
de duobus trahentibus nauem quorum neuter per se sufficeret. Et isto modo concurrunt intellectus agens et fantasmata ad causandum in intellectu possibili unam speciem numero uel unum actum
intelligendi”.
52
fosse, os fantasmas não teriam por si a virtude, de todo modo
imperfeita, de mover o intelecto. 93
A argumentação leva à defesa de que a operação perfeita da cognição seria
realizada a partir de dois agentes imperfeitos por si, mas perfeitos na medida em que
agem simultaneamente. Durandus ilustra este argumento com o auxílio do exemplo de
dois homens que, quando trabalham juntos, conseguem puxar uma embarcação até a
margem, feito que nenhum dos dois conseguiria realizar por si próprio. Contudo,
Durandus ressalta que nenhum argumento foi dado para provar esta terceira via pela
qual intelecto agente e fantasma agiriam conjuntamente. Pelo contrário, não foi
provado, mas apenas assumido, que o intelecto agente tenha a virtude de mover o
intelecto possível.94
Durandus não está disposto a aceitar esta premissa sem
comprovação. Para ele há uma clara petição de princípio: é assumido que o intelecto
agente possui a virtude de operar sobre o intelecto possível e é precisamente esta função
pressuposta que justificaria a existência do intelecto agente95
. Durandus, entretanto, tem
por intuito demonstrar que o intelecto agente não constitui o aparato cognitivo humano,
para isso, ele procura desqualificar definitivamente os argumentos que contraria. Os
argumentos que combate são: (1) o fantasma opera por si sobre o intelecto; (2) o
intelecto agente opera sozinho sobre o intelecto possível; (3) o fantasma e o intelecto
agente operam juntos sobre o intelecto possível; (4) o intelecto agente apenas assiste o
fantasma na operação sobre o intelecto possível.
Para Durandus, com efeito, os fantasmas não são capazes de mover por si o
intelecto possível96
. Primeiro, porque os fantasmas são particulares, são produtos de um
93
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 21: “quodlibet tamen habet per se imperfectam, ambo autem simul
equipollent uni perfecto agenti. Quod enim intellectus agens habeat de se uirtutem mouendi
possibilem, omnes concedunt; de fantasmate autem quod similiter se habeat”. 94
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 22: “No entanto, não parece ser bem como foi dito: primeiro porque
nada foi provado, mas apenas foi assumido isto que foi reclamado. Pois foi suposto nesta resposta
que o intelecto agente tenha em si a virtude de mover o intelecto possível”. “Hec autem non uidentur
bene dicta: primo, quia nichil probatur, set assumitur illud quod queritur; supponitur enim in hac
responsione quod sit dare intellectum agentem qui in se habeat uirtutem mouendi intellectum possibilem”. 95
FUMAGALLI, 1969, p. 67: “Todos os argumentos dos adversários são fundamentados, para
Durandus, em uma petitio principii que afirma o intelecto agente provido de certas funções e então
explica isto, isto é, explica sua existência, baseado nessas funções (o que por sua vez pressupõe,
como vimos, um estrutura particular do real)”. 96
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 24. “supondo que o fantasma aja no intelecto possível, não por causa da
virtude recebida do intelecto agente, mas pela virtude própria. Esta seria muito imperfeita, e o
mesmo dizem do intelecto agente”. “opponunt quod fantasma agit in intellectum possibilem, non per uirtutem receptam ab intellectu agente, set per propriam uirtutem, quamuis imperfectam, et idem
dicunt de intellectu agente”.
53
órgão corpóreo, enquanto o intelecto é puramente intelectual97
. Segundo, porque o ato
intelectual, que é puramente espiritual, é muito mais perfeito do que o fantasma, que é
particular98
, e, por isso o fantasma não poderia operar sobre o intelecto possível. E
terceiro99
, porque o fantasma nunca poderia representar um universal ao intelecto100
.
Sendo assim, o fantasma não pode agir sozinho sobre o intelecto e, por não possuir
função que justifique a defesa de sua existência e necessidade no processo cognitivo,
deve ser compreendido como uma noção supérflua.
Durandus, contudo, destaca que afirmar que “somente os fantasmas sem o
intelecto agente não são suficientes para mover o intelecto possível à ação de
inteligir101
” não justifica a necessidade de postular a existência de um intelecto agente
que agiria, por necessidade natural, levando o intelecto possível à ação de inteligir. Para
Durandus não se pode admitir a existência de um intelecto agente que tivesse como
função operar sozinho sobre o intelecto possível, pois, se assim fosse, todo ato de
inteligir seria resumido a um ato reflexivo. Também não se deve afirmar, entretanto, um
intelecto agente que, com o fantasma, opere no intelecto possível. Isto porque, a mesma
razão que fundamenta tal operação conjunta também poderia fundamentar a sustentação
de um sentido agente que, com o objeto sensível, seria responsável por afetar um
sentido passivo102
, pois “[se o ato de inteligir é mais perfeito que o fantasma], a mesma
razão é no que diz respeito ao sentido sensível [ser mais perfeito do que a qualidade
sensível]”.
Durandus julga que, no limite, se afirmasse que o intelecto não tem a capacidade
de inteligir seu objeto de conhecimento por si, igualmente seria obrigado a admitir que o
sentido também não deve ter a capacidade de sentir seu objeto por si. Isso porque
97
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 23. “visto que os fantasmas, como são corpóreos, não podem agir por si
no intelecto que é pura potência espiritual”. “quia fantasmata, cum sint corporalia, non possunt secundum se agere in intellectum, qui est potentia pure spiritualis”. 98
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 23. “por causa da perfeição excessiva do ato inteligente em relação ao
fantasma”. “hoc est uel propter excessum perfectionis actus intelligendi respectu fantasmatum”. 99
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 23. “Ou visto que não podem representar por si o universal”. “uel quia
secundum se non possunt representare uniuersale”. 100
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 25. “os fantasmas não representariam universais à razão do intelecto
agente, senão o que o próprio intelecto agente ele mesmo representaria, o que não se diz”. “ergo
fantasmata ratione intellectus agentis non plus representant uniuersale quam sine eo, nisi ipsemet intellectus agens ipsum representaret, quod nullus dicit”. 101
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 23. “quod sola fantasmata sine intellectu agente non sufficiant ad
mouendum intellectum possibilem ad actum intelligendi”. 102
Sobre a defesa da impossibilidade de objetos materiais exercerem uma influência causal em um
intelecto imaterial feita por Durandus, Cf.: KING, 1994, p. 133.
54
admite que o intelectual é muito mais perfeito do que o corpóreo, e porque deve haver
uma similitude entre a matéria e a forma do homem, seu corpo e sua alma.
Assim, as mesmas razões empregadas para defender a necessidade de um
intelecto agente para inteligir, no âmbito intelectual, podem ser também utilizadas para
defender, no âmbito corporal, a necessidade de um sentido agente que tivesse como
função afetar um sentido passivo para possibilitar o sentir, o que não se sustenta.
Portanto, do precedente é patente que, como não se afirma um sentido
agente que com o objeto cause o ato do sentido, assim não é próprio
afirmar um intelecto agente como aquele que com o fantasma move o
intelecto possível ao ato de inteligir como dois agentes imperfeitos
suprem as vezes de um agente perfeito. 103
Para Durandus não se deve duplicar conceitos. Não é necessário afirmar um
sentido agente que tenha a função de agir conjuntamente com o objeto sensível sobre o
sentido passivo para que a percepção se dê. Se há um objeto capaz de ser percebido
quando se apresenta a um sentido capaz de perceber, a percepção ocorrerá sem a
necessidade de um mediador, sem a necessidade de um sentido agente. Do mesmo
modo, não é necessário afirmar um intelecto agente que tenha a função de agir
conjuntamente com os fantasmas ou com os objetos cognoscíveis sobre um intelecto
possível para que a cognição ocorra. Se um objeto capaz de ser conhecido se apresenta a
um poder capaz de conhecer, a cognição ocorrerá sem a necessidade de um mediador.
Resta o argumento de que o intelecto apenas assistiria este processo. Todavia já foi
demontrado que o fantasma não pode representar por si nenhum universal para a
perfeição do intelecto. Mas, se admitíssimos por propósitos argumentativos que
universais preexistem à intelecção, que existem fantasmas e que eles tivessem a
capacidade de agir como mediadores no processo de cognição, eles teriam que ser
assistidos pelo intelecto agente para que pudessem cumprir sua função. Isto significaria,
no limite, que o próprio intelecto representaria para si próprio, por intermédio de um
fantasma, o universal que ele mesmo abstraiu, o que também já foi descartado.
Dizem, pois, em outro lugar que é assumido que o nosso intelecto
apreende o conceito universal, em conformidade com um singular a
103
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 26: “Patet ergo ex precedentibus, quod sicut non ponitur sensos agens
qui cum obiecto causet actum sentiendi, sic non oportet ponere intellectum agentem ad hoc ut cum fantasmate moueat intellectum possibilem ad actum intelligendi tanquam duo imperfecta agentia
supplentia uicem unius perfecti agentis”.
55
outro, e se, segundo eles, primeiro recebidos singulares e em
conformidade a eles podem possuir conceitos universais. Portanto, não
recebe primeiro o universal104
.
Durandus enfatiza que a compreensão da noção de universal é fundamental para
a compreensão de suas críticas e do modo pelo qual ele constitui sua teoria cognitiva. A
noção de universal não seve ser definida como sendo o primeiro objeto do intelecto,
como aquilo que é apreendido primeiro pela cognição. O próprio argumento segundo o
qual o universal seria primeiro apreendido pelo intelecto revela sua falsidade se
atentamente analisado. Para Durandus, se o universal fosse apreendido pelo intelecto em
conformidade aos singulares apreendidos que já possuem, neles, o conceito universal,
este último só poderia ser apreendido depois da apreensão de singulares105
e não poderia
ser qualificado assim, como o primeiro objeto do intelecto. Portanto, segundo Durandus,
o universal não existe nos singulares, não é o primeiro objeto do intelecto, nem mesmo
é por ele abstraído, mas é produto do processo de cognição humana106.
O universal não é, assim, um conceito contido no singular ou em um intelecto
separado, conhecido por nós sempre ao final de um processo de abstração ou de
iluminação, mas é o resultado, o produto da cognição humana. É puramente intelectual
e, por isso, não é admitido que fosse contido pelos singulares107
. Dado que o universal é
produzido pela cognição, e um intelecto agente só seria admitido na alma apenas pela
sua operação de abstrair formas universais, demonstramos que esta operação nunca
aconteceria. Sendo este o motivo para afirmar a existência do intelecto agente, devemos
deixar de sustentar tal redobro de conceitos.
Logo, o intelecto agente não age nos fantasmas nem imprimindo algo,
nem abstraindo algo, nem segundo a coisa, nem segundo a razão. Nem
age no possível, nem sem fantasma, nem com fantasma108
.
104
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 25: “dicunt enim alibi quod conceptus uniuersalis sumitur ex hoc quod
intellectus noster apprehendit conformitatem unius singularis ad alterum, et sic secundum EOS
prius concipiuntur singularia et conformitas eorum adinuicem quam habeatur conceptus uniuersalis; non ergo concipitur primo uniuersale”. 105
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 28: “Nesta operação o intelecto tem por ponto do qual o singular que
abstrai e por ponto para o qual o próprio universal abstraído. E visto que a ponto do qual precede à
ponto para o qual, a mesma consideração singular precedeu à abstração universal”. 106
Cf.: In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 28. 107
IRIBARREN, 2008, p. 53. “o universal é formalmente o resultado de um ato do intelecto: nada
real é um universal, e o que quer que exista na realidade extramental é, de fato, singular”. 108
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 26: “Cum ergo intellectus agens non agat in fantasmata aliquid imprimendo uel aliquid abstrahendo, neque secundum rem neque secundum rationem, nec agat in
intellectum possibilem, nec sine fantasmate nec cum fantasmate”.
56
Em suma, Durandus demonstra a inviabilidade de todos os modos pelos quais
aqueles que sustentam a existência de um intelecto agente dizem que ele operaria.
Tendo analisado em detalhes e levado a argumentação de seus opositores ao limite,
Durandus demonstra que a operação no intelecto agente não tem razão de ser, e mesmo
que houvesse algum universal para abstrair, o intelecto agente não seria capaz de fazê-
lo, pois não é capaz de operar nem sobre os fantasmas, nem sobre o intelecto possível.
Por isso, Durandus afirma que “o intelecto possível é suficiente e qualquer outro seria
supérfluo”. 109
109
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 3: “quia intellectus possibilis sufficit et omnis alius intellectus
superfluit”.
57
1.3 - A CRÍTICA DURANDIANA AO INTELECTO SEPARADO
Nas seções anteriores analisei o modo segundo o qual Durandus desqualifica a
noção de intelecto agente e a função que lhe é atribuída de viabilizar o processo
cognitivo humano por meio da abstração da quididade do objeto cognoscível. O
intelecto agente é caracterizado como um redobro desnecessário à cognição. Resta
determinar, no entanto, a extensão da negação feita no In I Sent [C], d. 3, q. 5. Um leitor
atento poderia se perguntar se Durandus nega apenas o intelecto agente como
constituinte da alma humana, enquanto afirma um intelecto agente separado que tivesse
a função de informar seu inteligir aos indivíduos. Como apontarei a seguir, Durandus
tinha conhecimento de tais teorias que sustentavam a existência de um intelecto uno e
separado, por isso é importante estabelecer se Durandus compactua, altera ou descarta
tal via de resolução para o problema do conhecimento humano.
Nesta seção tenho o intuito de esclarecer a extensão da crítica feita por Durandus
ao conceito de intelecto agente por meio da análise do tratamento dado ao conceito de
intelecto separado. Durandus nega totalmente a noção de intelecto agente, não se trata
apenas da negação da divisão analítica entre intelecto agente e possível, ou da negação
de um intelecto agente unido à alma humana com o objetivo de fundamentar a
sustentação de um intelecto uno e separado. Analiso a crítica feita por Durandus no In II
Sent [C], d. 17, q. 1, nesta questão Durandus apresenta e discute a teoria do intelecto
separado tal qual atribui a Averróis. Além disso, ele também apresenta uma teoria
similar, que denomida como uma versão atenuada ou colorida em comparação à
primeira por ele referida. A posição de Durandus, frente a ambas as opiniões
apresentadas, é clara: para ele “a alma intelectiva está unida ao corpo como sua
forma110
”, não há um intelecto separado. Disto, no entanto, não é correto afirmar que a
alma intelectiva seja constituída por um intelecto agente que desempenhe a função de
abstrair. A negação do intelecto agente diz respeito ao intelecto agente enquanto unido à
alma humana e também enquanto compreendido separado de toda matéria individual.
Durandus considera a ideia de intelecto separado absurda:
É exposto aqui que todo aquele que diverge da virtude da razão
alcança grandes absurdos, sobretudo Averróis de quem é dito ter sido
110
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 3: “(…) anima intellectiua unitur corpori sicut forma”.
58
particularmente delirante sobre esta matéria e cuja opinião recitarei
primeiro. 111
Averróis é nomeado como o principal representante da teoria do intelecto
separado. Tal qual apresentada por Durandus, a interpretação atribuída a Averróis será o
primeiro alvo da crítica feita na referida questão:
Quanto ao primeiro, sabendo que Averróis afirma que o intelecto não
é na nossa alma, nem que alguma outra coisa seja na nossa alma. Mas
que é uma substância separada cujo inteligir causa o meu inteligir, ou
outro, enquanto este intelecto separado, enquanto for unido ao meu,
ou outro, pelos fantasmas que são em mim, ou em outro, o que diz ser
possível. Isto, pois as espécies inteligíveis têm por si dois substratos,
claramente o intelecto separado e os fantasmas em nossa imaginação.
E, consequentemente, por uma e a mesma espécie existente em si e em
nós está unido ao nosso intelecto, por isso, quando aquele intelecto
intelige, o homem intelige enquanto unido a ele. 112
Segundo Durandus, o absurdo defendido por Averróis diz respeito à ideia de que
o intelecto não está unido à alma humana, mas é uma substância separada que, ao
inteligir, causa o inteligir humano. O intelecto separado é unido ao homem por meio dos
fantasmas da imaginação humana. A imaginação, assim apresentada, enquanto órgão
corporal pressupõe que o homem tem suas capacidades sensíveis perfeitas de modo que
possa produzir um fantasma resultante da reunião das percepções sensíveis. Os
fantasmas presentes na imaginação e preservados na memória são abstraídos pelo
intelecto agente separado que, ao abstrair a espécie inteligível, informa o homem de
modo que este intelija113
. Este processo claramente diz respeito ao homem viator,
enquanto em vida e propriamente homem, ou seja, composto de corpo e alma. Uma vez
que a corrupção sobrevenha ao corpo do homem tal processo não mais ocorrerá. Além
111
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 4: “Uirtus autem huius rationis patet in hoc, quod omnes qui ab ea
diuertunt, incidunt in praegrandes abusiones, máxime Averroys, qui dicitur primus fuisse, &
praecipuus delirator, circa materiam istam. Cuius opnio recitabitur primo”. 112
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 5: “Quantum ad primum sciendum quod Auerroys ponit intellectum
non esse anima nostram, nec aliquid animae nostrae. Sed esse quandam substantiam separatam. Cuius intelligere efficitur intelligere mei, uel alterius, inquantum ille intellectus separatus secundum
esse copulatur mihi uel alteri per fantasmata quae sunt in me uel in alio, quod sic dicebat esse
possibile. Nam species intelligibilis secundum ipsum habet duo subiecta, scilicet intellectum separatum & fantasmata nostra in fantasia. Et ideo per unam & eadem speciem in ipso & in nobis
existentem copulatur nobis intellectus ille, ac per hoc dum intellectus ille intelligit, homo intelligit
cui copulatur”. 113
FUMAGALLI, 1969, p. 87: “A copulação do intelecto e do indivíduo ocorreria através de
imagens (fantasmas) que são diferentes nos diferentes homens”.
59
disso, tal teoria acrescenta uma dificuldade ao esclarecimento do estatuto daquilo que
deixou de ser homem após a corrupção do corpo. Isso porque, se o intelecto é uno e não
está unido à alma humana, senão quando abstrai os fantasmas da imaginação e informa
a alma, quando o corpo é corrompido, deixando de existir, também não restará um
intelecto que fora propriamente do homem enquanto indivíduo114
. Seria um grande
problema determinar o que resta do que antes havia sido o homem115
, pois, segundo esta
teoria: “(...) o intelecto é um e, assim, com a corrupção do homem permanece apenas
um intelecto: este é sumamente positivo e esta é a opinião do primeiro”. 116
Na mencionada questão, Durandus também critica uma versão atenuada da
teoria que atribui a Averróis. Segundo Durandus, esta teoria atenuada baseia-se em duas
suposições:
Quanto ao segundo, trata-se de uma opinião colorida e atenuada que,
deste modo, aceita duas suposições. A primeira é que a inteligência é
indistinta segundo si do que está presente, porque distinção segundo si
diz respeito somente à quantidade dimensional que é destituída de
inteligência. A segunda suposição é a de que a forma intencional não é
numerada pelo substrato, mas pelo objeto, ou causas eficientes, daí,
segundo estes, muitas espécies poderiam ser brancura e ser na mesma
parte do meio. E do mesmo modo uma espécie em diversos
substratos: se, no entanto, este substrato fosse indistinto segundo si. 117
Para Durandus estas suposições seriam facilmente desqualificadas. A primeira
suposição de que (1) por não ter dimensão a inteligência seria indistinta das coisas, não
poderia ser afirmada positivamente, e a suposição de que (2) uma mesma espécie
poderia ser em diversos sujeitos distintos entre si, não se sustentaria porque uma espécie
não poderia existir em algo que fosse diferente do seu suppositum. Neste momento do
texto Durandus se restringe a indicar estas limitações das premissas, pois acredita que
114
FUMAGALLI, 1969, p. 87: “À morte e corrupção do indivíduo sobrevive apenas o intelecto
único e separado”. 115
E no caso de um autor cristão enfrentaria-se a dificuldade teológica de explicar a vida eterna ou o
julgamento, caso aceite a teoria de que existe apenas um intelecto separado e que, por ser imaterial,
não é passível de corrupção, enquanto o corpo humano é corrompido e deixa de ser. 116
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 5: “(...) intellectus est unum tantum, & ideo corruptis hominibus remanet solus unus intellectu: haec est positivo eius in summa, & haec de primo”. 117
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 6: “Quantum ad secundum aliqui colorant, & palliant hanc
opinionem hoc modo, accipiunt enim duas suppositions. Prima est, quod intelligentia est indistincta secundum situm ab eo cui praesens est, quia distinctionem secundum situm facit sola quantitas
dimensiua, qua caret intelligentia. Secundum est, quod forma intentionalis non numeratur penes
subiecta, sed penes obiecta, uel causas eficientes, unde secundum eos plures species alborum possunt esse, & sunt in eadem parte medij. Et eodem modo uma species in diuersis subiectis: si
tamen illa subiecta sit secundum situm indistincta”.
60
elas são evidentes. O leitor, no entanto, pode compreendê-las melhor quando
determinadas as imprecisões das conclusões extraídas a partir destas premissas:
Do que se argumenta que uma espécie inteligível pode ser em diversos
substratos indistintamente segundo si (como é exposto na segunda
suposição). E o intelecto pode ser simultaneamente com a nossa
imaginação indistinto segundo si (como é exposto na primeira
suposição). Logo, a mesma espécie pode ser naquele intelecto e na
nossa imaginação: como um existente unido ao nosso intelecto que
comunica o seu inteligir a nós, isto quanto ao segundo. 118
São duas as conclusões que Durandus aponta como as resultantes das premissas
previamente examinadas: se (2) uma mesma espécie pode ser em diversos sujeitos
distintos entre si então (A) uma espécie inteligível pode ser em diversos sujeitos. Por
isso, a opinião apresentada defende um intelecto separado que poderia informar a nossa
alma com as suas espécies inteligíveis. Além disso, segundo esta opinião, se (1) a
inteligência fosse indistinta das coisas por não ter dimensão, então (B) o intelecto
separado poderia estar unido à nossa imaginação na medida em que o mesmo fantasma
poderia existir na imaginação e no intelecto que teria a função de abstraí-lo. Durandus
nega que exista um intelecto separado que possa abstrair de fantasmas existentes em
nossa imaginação e informar nossa alma com essências universais. Para ele nossa
imaginação e nosso intelecto são indistintos segundo seu suppositum119
. Ele argumenta
que, uma vez que é evidente que os órgãos externos e internos se encontram em nós, e
não havendo ninguém que negue que a imaginação seja um destes órgãos e que exista
unida a nós, se ambos são indistintos segundo suppositum, o intelecto deve ser afirmado
como parte da alma humana120
. No entanto, apesar de ambos serem órgãos do homem, a
imaginação é órgão corporal e o intelecto é órgão espiritual, portanto não são uma única
e mesma razão receptiva e não possuem as mesmas espécies121
.
118
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 6: “Ex hoc sic arguitur, uma species intelligibilis potest esse in
diuersis subiectis secundum situm indistinctis (ut patet x secunda suppositione.) Sed ille intellectus potest simul esse cum fantasia nostra indistincte secundum situm (ut patet ex suppositione prima)
ergo eandem species potest esse in intellectu illo, & fantasia nostra: qua existente continuatur nobis ille intellectus, & communicat nobis suum intelligere, hoc quantum ad secundum”. 119
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 8: “a inteligência e a imaginação não se distinguem segundo seu
fundamento”. “ergo nec in intelligentia & fantasia, si distinguantur secundum suppositum”. 120
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 8: “o intelecto faz parte da nossa alma.” “intellectum esse partem
animae nostrae”. 121
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 10: “(...) no que é encontrada uma forma, não só o número, mas a
espécie é próprio que seja mesmo receptivo. Isto porque o ato do ativo é disposto no paciente, mas
na inteligência, que é coisa espiritual e na imaginação, que é coisa corporal, não pode ser a mesma
61
Além disso, Durandus também aponta a distinção entre forma natural e forma
intencional com o intuito de evidenciar que o mesmo fantasma não poderia existir tanto
na imaginação quanto no intelecto:
(...) quanto menos a forma tem de entidade, tanto mais tem de
dependência do substrato. Mas a forma intencional tem menos
entidade do que a forma natural, logo, tem mais dependência do
substrato. 122
Segundo a teoria examinada por Durandus, a imaginação operaria reunindo as
impressões sensoriais dos órgãos dos sentidos e formaria uma impressão sensorial, o
fantasma. Entretanto, exatamente por possuir características particulares não seria
possível aceitar (como na conclusão B) que o fantasma pudesse existir no intelecto.
Segundo a própria teoria combatida, uma forma intencional deve ter sido abstraída para
poder existir no intelecto, assim ela teria menos entidade e mais dependência do sujeito
cognitivo quando comparada ao fantasma que existe na imaginação e não foi abstraído.
Este último possuiria menos dependência do sujeito e mais entidade. A maior
dependência do sujeito se daria pelo fato de que a ação intelectiva de abstrair
possibilitaria a existência da espécie inteligível no intelecto. Assim, por existir no
intelecto, a espécie deveria possuir menos entidade, ou seja, não deveria possuir as
características individuantes que teriam sido abstraídas, restando apenas o universal. O
intuito de Durandus não é defender estas afirmações que corroboram com a leitura da
necessidade de um intelecto separado dotado da função de abstrair, mas demonstrar que
a premissa de que a abstração seria uma etapa preponderante para o processo de
cognição impediria a conclusão de que a mesma espécie poderia existir na imaginação e
no intelecto. Segundo ele, esta teoria assumiria premissas falsas a partir das quais
seriam defendidas conclusões também falsas. Para Durandus, a existência da abstração,
caso fosse admitida, impediria a conclusão de que a mesma espécie poderia existir tanto
razão receptiva, portanto não é a mesma forma, não só a mesma segundo número, mas também não a
mesma segundo espécie. Não é consistente, portanto, esta opinião atenuada”. “(...) in quibus
inuenitur uma forma, non solum numero, sed specie, oportet quod sit eadem receptiva, quia actus
actiuorum sunt in patiente disposto, sed in intelligentia, quae est res spititualis, & fantasia, quae est res corporalis, no potest esse eadem ratio receptiva, ergo neq; eadem forma, non solum eadem
secundum numerum, sed nec eadem secundum speciem non ualet ergo ista coloratio”. 122
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 9: “(…) quanto forma minus habet de entitate, tanto plus habet de dependentia ad subiectum. Sed forma intentionalis minus habet de entitate, quam aliae formae
naturales, ergo plus habet de dependentia ad subiectum”.
62
na imaginação, quanto no intelecto. Ele, entretanto, considera que esta premissa seja
falsa: a abstração não deve ser considerada uma operação necessária e real. Além disso,
segundo Durandus, a conclusão também é falsa: imaginação e intelecto possuem o
mesmo suppositum, mas são razões receptivas distintas, a primeira é órgão corporal e a
segunda é órgão espiritual não cabendo a ambas as mesmas formas123
. Além disso, do
ponto de vista de Durandus, um conceito teria total dependência do sujeito cognitivo,
pois seria o resultado da operação intelectual, o conceito não preexiste à intelecção, mas
a pressupõe.
Além disso, Durandus elenca mais afirmações resultantes da teoria do intelecto
separado que, segundo ele, são erradas e demonstram a improbabilidade da teoria, das
quais destacarei três. A primeira delas consiste na sustentação de que o intelecto
separado pode abstrair dos fantasmas:
Esta opinião ainda contém muitos improváveis. O primeiro é o que
afirma que o intelecto separado intelige por espécies abstratas de
fantasmas, porque assim diz a opinião colorida sobre o intelecto
conjunto (embora muitos negassem isto). Contudo, dizer isto sobre o
intelecto é um absurdo, pois é completamente dissonante da opinião
de todos que falam de modo inteligente sobre a substância separada
(como exposto no livro de Próculo e dos autores das causas). Afirmar
que na própria operação a substância separada depende do nosso
fantasma é fútil: pois quando o homem é corrompido, ou dorme e não
opera nada intelige o intelecto, o que é absurdo. Nem é consistente
dizer que nosso intelecto, possa ser conjunto verdadeiramente e possa
inteligir dos fantasmas, embora intelija junto do corpo corruptível.
Pelo contrário. E o mesmo pode-se dizer do intelecto separado, pois
este não é similar. O nosso intelecto conjunto e o separado tem outro
modo de funcionar, porque pode ter outro modo de operação, mas só o
intelecto separado tem um mesmo modo de ser, o qual é um modo
inteligente, e que, se cessasse, cessaria todo o inteligir. 124
123
Sobre a conclusão examina ver nota 121 referente ao In II Sent [A], d. 17, q. 1, n. 10. 124
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 11: “Opinio etiam ista multa improbabilia continet. Primum est, q
ponit intellectum separatum intelligere per species abstractas a fantasmatibus, quia essi hoc
colorabile sit dicere de intellectu coniuncto (quanquam & hoc multi negent) tamen hoc dicere circa intellectum separatum absurdum est, dissonat enim ab opinione fere omnium loquentium de modo
intelligendi substantiarum separatarum (ut patet intuenti librum Proculi & authoris de causis) quod em propria operatio substantiae separatae dependeat a nostro fantasmate, friuolum est: sic enim
hominibus corruptis, uel dormientibus, & non forniantibus, nohil intelligere ille intellectus, quod est
absurdum: nec ualet si dicatur quod intellectus noster, licet sit coniunctur secundum ueritatem, & intelligat ex fantasmatibus, tamen corrupto corpore adhuc intelligit. Sed per alium modum. Et idem
posset dici de intellectu separato, hoc enim no est símile, quod intellectus noster coiunctus &
separatus habet alium modum effendi, propter quod potest habere alium modum operandi, sed intellectus separatus solum habet unum modum essendi, quare & unum modum intelligendi, a quo si
cesset, cessabit omnino intelligere”.
63
O que Durandus declarara como primeiro improvável resultante da teoria do
intelecto uno e separado é fundamentado por três pressupostos: (1) o intelecto separado
pode inteligir por intermédio das espécies abstraídas dos fantasmas; (2) o intelecto
humano é uno e separado; (3) o nosso intelecto pode inteligir dos fantasmas. A
afirmação (3) não é detalhada nesta questão, pois Durandus já o havia feito em In I Sent
[C], d. 3, q. 5125
, como procurei demonstrar no primeiro capítulo desta dissertação. Ao
destacar que a afirmação (1) contradiz a opinião da tradição, Durandus demonstrar que
sua inserção neste debate está em consonância com outros pensadores que o
precederam. A referência a Próculo é explícita. Fumagalli afirma, no entanto, que
Durandus também faz referência implícita à crítica tomista feita à tese referida 126
.
Durandus não apenas recorre à autoridade para contradizer este pressuposto, mas
também argumenta que se a operação do intelecto separado dependesse dos nossos
fantasmas, o intelecto separado de todas as condições individuantes não mais inteligiria
quando o homem fosse corrompido ou dormisse. Ora, uma vez que a substância
separada é, por sua natureza, livre de determinações materiais, não seria o caso de
aceitar que sua operação dependesse de algo material. Isto é expresso pela determinação
que Durandus faz do intelecto separado, qual seja, de que ele possui um modo de ser
inteligente. A operação da substância separada está relacionada ao seu próprio modo de
ser, não às coisas matérias.
O argumento do burro será usado como tentativa de refutação da afirmação (2)
de que o intelecto humano seja uno e separado:
O terceiro é improvável porque se o intelecto separado fosse unido a
nós por espécies abstraídas dos nossos fantasmas e por estas fizessem
muitos inteligentes, a mesma razão poderia unir ao burro por espécies
abstraídas dos fantasmas do burro e fazer o burro inteligente, o que é
absurdo. A consequência é provada porque de nossa parte não é
afirmado o ato do fantasma, que poderia ser no burro. As espécies que
são em nós não são efetivamente abstraídas por outro, mas por um
intelecto separado: intelecto tal que pode agir no homem e no burro ao
acessar o fantasma de um e de outro (...). 127
125
Como já foi apontado na nota 46, este tratamento também se deu na primeira versão [A], no
entanto, no primeiro capítulo desta dissertação eu analisei a terceira versão [C] por conta da
acessibilidade possibilitada pela edição já disponibilizada desta versão do texto. 126
Sobre a referência de Durandus ao debate que o precede a respeito do intelecto separado (In II
Sent [C], d. 17, q. 1, n. 11: “quanquam & hoc multi negent”), , ver: FUMAGALLI, 1969, p. 88. 127
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 13: “Tertiu est, quia si intellectus separatus copularetur nobis per
species abstractas a fantasmatibus nostris, ac per hoc faceret multos inteligentes, eadem ratione
64
O argumento do burro é construído com o objetivo de indicar os limites da teoria
debatida. A partir da premissa de que o intelecto separado estaria unido ao intelecto
humano pelas espécies abstraídas dos fantasmas humanos Durandus afirma que seria
possível concluir que, do mesmo modo, este intelecto poderia se unir ao burro através
das espécies abstratas do burro. Assim, se a operação do intelecto separado agisse no
homem tornando-o inteligente, do mesmo modo a operação do intelecto separado
poderia agir no burro tornando-o também inteligente128
. Ao recusar a possibilidade de
abstração de um intelecto separado sobre os fantasmas Durandus não se compromete
com tal consequência que ele qualifica como absurda.
O último improvável apontado por Durandus diz repeito à existência do erro no
processo cognitivo:
O quarto improvável afirma que por meio de tal copulação seria unido
ao nosso intelecto o seu inteligir. No entanto, o intelecto separado não
é enganado sobre a cognição da coisa natural, portanto não nos
enganamos inteligindo, poderia ser válido que nos enganássemos
fantasiando, o que percebemos ser falso. 129
O esclarecimento da existência do erro no processo cognitivo é um problema
para a teoria do intelecto separado. A dificuldade se encontra no fato de não ser possível
atribuir o erro ao intelecto separado, por conta de sua perfeição. Uma vez que o erro não
pode estar no intelecto, Durandus acena para a possibilidade de que o erro poderia se
encontrar na imaginação, mais precisamente, nos fantasmas. Poderia ocorrer que no
processo de apreensão das afecções sensíveis e formação do fantasma houvesse algum
erro. Contudo, esta solução também não seria satisfatória porque, segundo esta teoria,
os fantasmas teriam a função de representar, de registrar as coisas e não de julgar, e não
posset copulari asino per speciem abstractam a fantasmatibus asini, & facere asinum intelligentem,
quod est absurdum. Consequentia probatur, quia ex parte nostra non ponitur, nisi actu fantasiae,
quae potest esse in asino. Non abstractio speciei effectiue per aliquid quod sit in nobis, sed per intellectum separatum: intellectus etiam ille ae qualiter potest se habere ad homine & ad asinum, &
ad fantasmata utriusque (…)”. 128
FUMAGALLI, 1969, p. 88: Sobre este contra-argumento de Durandus, Fumagalli escreve: “Se o
intelecto separado agisse em nós através das espécies abstratas de imagens (sensíveis), e isto é para
todos os indivíduos, não há razão para que ele não aja também em um burro, apenas por meio das
imagens sensíveis [fantasmas] fornecidas ao burro tornando-o (uma vez qu não o é) inteligente”. 129
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 14: “Quartum est, quia si per huius copulationem communicaret
nobis intellectus suum intelligere, comunicaret nobis tale intelligere, quale haberet. Sed intellectus separatus circa cognitionem rerum naturalium no decipitur, ergo nec nos deciperemur in
intelligendo, licet forte deciperemur in fantasiando, quod experimur esse falsum”.
65
seria possível imputar as noções de verdadeiro ou falso a uma operação que não fosse
judicativa. Para Durandus, isto seria suficiente para invalidar também esta possibilidade.
Enfim, ao final da presente questão analisada, Durandus retoma o primeiro
argumento apresentado em favor da teoria de que o intelecto não está unido ao corpo
como sua forma:
Sobre esta distinção, primeiro investiga-se se a alma intelectiva está
unida ao corpo como sua forma. E parece que não, visto que é algo
segundo si, algo que sempre existe. No entanto, a forma segundo si
é unida à matéria, portanto sempre está junto dela enquanto existe.
Mas a alma intelectiva não permanece unida ao corpo, pois é separada
do corpo assim como o perpétuo do corruptível. 130
O argumento se utiliza da dicotomia entre a alma intelectual e eterna por um
lado, e o corpo material e corruptível por outro, para fundamentar que não seria razoável
considerar que estes fossem unidos tendo naturezas tão distintas. Isto porque, a alma é
segundo si e, por isso, é eterna, logo deveria ser eternamente unida ao corpo, caso esta
união existisse. O corpo, no entanto, não é segundo si, por isso é corruptível e tal
corrupção impediria a permanência da união entre alma e corpo. Assim, segundo este
argumento, não seria possível admitir que a relação entre alma intelectual e corpo
corruptível fosse análoga à relação entre forma e matéria e a teoria do intelecto separado
seria viável para esclarecer o processo cognitivo do homem.
Este argumento, no entanto, não é aceito por Durandus que dedica o final da
resposta desta questão a sua refutação:
Em oposição ao primeiro argumento digo que aquilo que é dito algo
por si pelo primeiro modo, sempre é por si, assim como a alma sempre
é no homem. Aquilo que é dito por si no segundo modo, ou é dito
segundo potência, como o riso a respeito dos homens e tal algo
sempre existe ou dito segundo ato e tal não existe sempre. O princípio
se conota a respeito de outro, assim como o leve é por si movido para
cima, apesar de ser possível impedir [tal movimento], deste modo é a
alma unida com a matéria: e mesmo se for impedida por alguma
indisposição, como quando algo é conduzido à corrupção. 131
130
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 1: “Circa distinctionem istam primo quaeritur, utru anima
intellectiua uniatur corpori tanquam forma. E uidetur quod no, quia quos inest alicui secundum se, semper inest ei. Sed formae secundu se inest uniri materiae, ergo semper couenit ei quadiu est. Sed
anima intellectiua corpori no unita remanet, separatur enim a corpore sicut perpetuu a corrupitibili,
ergo &c”. 131
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 15: “AD ARGUMENTUM in oppositum dicendum quod illud quod
inest alicui per se primo modo dicendi, per se semper inest, sicut anima semper inest homini: quod
66
A argumentação desenvolvida neste trecho é fundamentada por intermédio da
noção de per se. Algo é dito por si de dois modos: (1) do primeiro modo é por si
sempre, assim como a alma sempre é no homem; (2) no segundo modo pode ser dito por
si em ato, não existindo sempre, ou em potência, existindo sempre. Para Durandus o
homem é a composição entre alma e corpo. A alma é unida ao corpo por si, enquanto o
homem for efetivamente homem nunca deixará de ter alma, pois a alma dá o ser do
corpo. No intuito de ilustrar este ponto Durandus evoca a figura do leve que tem, por si,
o movimento para cima. O fato de que é possível interromper este movimento para cima
não refuta o princípio. É possível interromper o movimento, mas o leve continuará
tendo por si o mesmo movimento, o que é verificado caso a interrupção seja retirada: o
movimento para cima não encontrará mais resistência e ocorrerá necessariamente.
Durandus compreende a união da alma intelectiva com o corpo a partir desta
perspectiva: mesmo que a união possa ser interrompida com a corrupção do corpo, tal
interrupção não anula a disposição da alma de ser unida ao corpo como sua forma.
Assim, é estabelecida sua crítica às teorias do intelecto separado:
Muitas outras afirmações impróprias poderiam ser deduzidas desta
posição, mas estas são suficientes. Das quais é claro que não só é
errôneo, mas também contra a fé, afirmar que a alma intelectiva não é
unida a nossa razão como sua forma. Tal afirmação procede de uma
grande ignorância filosófica. 132
Para Durandus a alma intelectiva está unida ao corpo humano de modo análogo
à união entre forma e matéria. Não é admitida nenhuma possibilidade de existência de
um intelecto uno e separado que tivesse a função de abstrair das espécies naturais da
imaginação e informar a alma humana. O intelecto humano é capaz e suficiente para
cumprir sua função de inteligir, sem que seja necessário assumir que seu inteligir seja
causado pelo inteligir de um outro intelecto ou que o intelecto humano deva ser
compreendido, de modo real ou analítico, como constituído por um intelecto agente e
um intelecto possível.
autem inest secundo modo dicendi per se, aut dicitur secundum potentiam, ut risibile respectu hominis, & tale etia semper inest, aut dicitur secundum actum, & tale non semper inest, praecipue si
connotat respectum ad alterum, sicut leuis inest per se moueru sursum, quod tamen impediri potest,
isto modo inest animae uniri materiae: & ideo impediri potest per indispositionem, quae a corrumpente inducitur”. 132
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 14: “Multa etiam inconuenientia possent ex hac positione deduci, sed
haec sufficiun. Ex quibus patet q no solum erroneum est, & contra fidem, ponere animam intellectiuam no uniri nobis in ratione formae. Sed plane proceffit ex magna ignorantia
philosophiae”.
67
2- O PROCESSO COGNITIVO
No primeiro capítulo desta dissertação procurei demonstrar como Durandus
desqualifica a noção de intelecto agente como constituinte da alma humana e parte
fundamental do processo de cognição. A última seção do primeiro capítulo da
dissertação também contribuiu com este objetivo ao analisar a questão em que Durandus
recusa a possibilidade de um intelecto separado que possua a função de abstrair e
informar à alma humana. Para Durandus, portanto, não há intelecto agente nem unido à
alma, nem separado da alma. Assim, a abstração não é compreendida como parte do
processo de cognição. Durandus também nega que exista um universal independente do
intelecto. Não há universal nas coisas extramentais e, como já foi negada a existência de
um intelecto separado, do mesmo modo não se admite a existência de um intelecto
separado que informe todos os homens com os universais correspondentes aos
singulares extramentais. Por consequinte, cumpre verificar se a cognição é possível e, se
sim, como ela ocorre.
O objetivo deste capítulo é investigar como o homem, sendo um ser composto
de corpo e intelecto, é capaz de sentir e de inteligir. Durandus afirma que sentir e
inteligir são atos próprios do homem, por isso, procuro precisar quais são os requisitos
necessários para sua atualização e qual é a natureza do ato intelectivo. No intuito de
elucidar as inovações de Durandus em meio ao contexto intelectual no qual se insere,
apresento um breve panorama do tratamento da questão da cognição entre quatro
autores do séc. XIII e XIV: Tomás de Aquino, Henrique de Gant, Duns Scotus e
Ockham. Este panorama não tem como objetivo analisar detidamente a teoria da
cognição, seus ganhos e suas perdas, segundo cada um dos filósofos mencionados. Meu
objetivo é apenas compreender de que modo Durandus se insere e interfere no debate
sobre a cognição. Compreendendo, ainda que minimamente, como estes filósofos
estabeleciam o processo cognitivo é possível apontar quais são as inovações de
Durandus, a quem direciona suas críticas e quais pontos de seu pensamento derivam de
outros autores e quais conceitos recebem uma nova signicação em sua obra. Ademais,
este panorama é útil no sentido de mapear quais são as questões sobre as quais
Durandus se concentra, quais são os problemas que procura evitar ao conceber a
cognição como um processo de apreensão direta e se ele é efetivamente capaz de
resolver estes problemas ou não.
68
2.1- O INTELECTO ANGÉLICO COMO EXPERIMENTO DE PENSAMENTO:
UM PANORAMA GERAL
No segundo livro do seu Comentário às Sentenças Durandus toma o intelecto
angélico como estudo de caso da cognição. Este estudo é realizado no sentido de
possibilitar um experimento de pensamento que revele a estrutura da cognição de modo
geral. O objetivo de Durandus não é compreender o intelecto angélico especificamente,
ele deixa claro que “nós conhecemos pouco sobre o anjo e sobre sua cognição. E este
pouco devemos conjecturar a partir das condições da nossa alma”. 133
Seu objetivo é
circunscrever a questão trabalhada da melhor maneira possível. Como o anjo é
puramente intelectual, completamente separado da matéria individual, para tratar de seu
processo de conhecimento não é necessário mapear e tratar de funções relacionadas ao
corpo, como os sentidos externos e internos, por exemplo.
Evidentemente, Durandus não é o primeiro ou o único a realizar experimentos de
pensamento utilizando o intelecto angélico. Iribarren destaca o papel que a substância
separada ocupava no cenário da filosofia medieval:
Os anjos também podem ser compreendidos como protagonistas dos
experimentos de pensamentos nos quais as questões metafísicas,
epistemológicas ou éticas são analisadas sob condições ideias (,..)
discussões medievais sobre a natureza da linguística do pensamento,
por exemplo, muitas vezes invocaram comparações com o
pensamento angélico134
.
Os anjos eram utilizados para a produção de experimentos de pensamento por
traduzirem condições ideias para a análise de questões das mais variadas naturezas. No
que diz respeito à questão epistemológica, é possível circunscrever o ato intelectivo e
analisá-lo a despeito de qualquer restrição corpórea que seria inevitável quando se
procura tratar sobre a cognição humana.
Discussões sobre os anjos muitas vezes tinham o status de
experimentos de pensamentos nos quais problemas básicos eram
colocados e discutidos sobre condições idealizadas. Quando se
perguntavam se os anjos podem ter cognição ou como eles são
capazes de se comunicarem uns com os outros, filósofos medievais
133
In II Sent [C] d. 3, q. 5, n. 4: “Nos pauca nouimus de angelis et eorum cognition. Et illa pauca debemus coniecturare ex conditione anime nostre”. 134
IRIBARREN, 2008, p. 7.
69
pretendiam analisar como a cognição e a comunicação funcionam no
geral. A melhor maneira de começar a investigação era especificar as
condições necessárias em uma situação ideal para uma cognição e
processos comunicativos bem sucedidos. 135
Além de Durandus, Tomás de Aquino, Henrique de Gant, Duns Scotus e
Guilherme de Ockham foram alguns dos filósofos do período que defendiam
interpretações próprias sobre o processo cognitivo e utilizavam o intelecto angélico
como experimento de pensamento. A característica intelectual dos anjos136 possibilita
que sua análise contribua não só em discussões teológicas, mas também em questões
eminentemente filosóficas, como a questão do conhecimento.
No que diz respeito a Tomás de Aquino, a forma angélica e a forma humana são
ambas intelectuais, mas como o homem é composto de intelecto e corpo137
, tem seu ato
intelectual determinado pelo corpo que é seu princípio de conhecimento. Ambos
possuem a mesma natureza intelectual, porém em condições diferentes: o anjo é
separado de qualquer matéria individual, enquanto o homem é composto por ela. Assim,
enquanto a análise do intelecto angélico possibilita a determinação do conhecimento
intuitivo138
, a análise do intelecto humano culmina no exame do conhecimento
abstrativo. Por um lado, o processo cognitivo angélico determinado por Tomás não
pressupõe afecções sensíveis, abstrações ou formação de universais. Segundo Lens
“com a infusão das espécies nos anjos não é necessário raciocinar e o propósito já é
alcançado ao intuir as espécies – tudo já está lá, inato, como sempre foi”. 139 Isto porque
Tomás defende uma hierarquia de seres na qual os anjos são superiores ao homem.
Como criaturas imateriais de uma ordem superior, eles são dotados de
um grau superior de perfeição e, portanto, estão mais próximos da
simplicidade divina. Para Tomás, no primeiro momento da criação dos
anjos Deus influi as espécies inteligíveis contendo todo seu
conhecimento: por isso eles não precisam raciocinar do conhecido
135
PERLER, 2008, p. 144. 136
PERLER, 2008, p. 144: “Analisar os anjos como criaturas reais que transcendem o mundo
material nos habilita a examinar as atividades cognitivas em sua forma mais pura e ideal, que não é
sujeita à restrições materiais”. 137
Summa Theologiae, Ia, q. 75, a. 4: “O homem não é alma, mas um composto de alma e corpo”.
“homo non sit anima, sed compositum ex anima et corpore.” 138
LENZ, 2008, p. 155: “Tomás de Aquino (...) desenvolveu o pensamento angélico como simples
intuições dentro de uma rede inata de conhecimento”. 139
LENZ, 2008, p. 161.
70
para o não conhecido e, como resultado disso, eles não precisam de
um pensamento estruturado. 140
Para Tomás o raciocínio é um processo eminentemente humano devido à sua
natureza composta, os anjos, como são simples, não precisam realizar tal procedimento
para constituir conhecimento. No ato da criação, Deus concede o conhecimento aos
anjos através de espécies inteligíveis. Além do mais, pela sua natureza puramente
intelectual um anjo pode iluminar a outro com suas espécies inteligíveis, o que não
ocorre nos homens, pois um não pode transmitir seu conhecimento a outro. O processo
cognitivo humano determinado por Tomás, é descrito por Ladim como um complexo
processo que se inicia pela afecção recebida pelos sentidos externos e necessita de uma
abstração intectual para ser atualizado.
Em razão da alma humana, princípio e sujeito do ato intelectivo, ser a
forma substancial do corpo humano, o conhecimento humano é
dependente das operações corporais. A formação das representações
se inicia através da receptividade dos sentidos externos. Mediante os
sentidos internos e, graças à memória e à imaginação, é formada uma
imagem sensível do singular. Essa imagem é uma species expressa
sensível, isto é, uma similitude ou uma representação sensível do
singular. O singular, composto na sua essência por matéria e forma,
não é inteligível em ato. A imagem sensível do singular, que sintetiza
e unifica, juntamente com a memória, os dados recebidos pelos
sentidos externos, por ser uma similitude ou uma representação do
singular, não é, nela mesma, inteligível. Assim, a função prioritária da
abstração intelectual é a de tornar inteligível em ato aquilo que,
representado pela imagem sensível, é apenas potencialmente
inteligível. 141
Para Tomás142
o intelecto humano possui uma função agente de abstrair o
inteligível justamente porque o homem é composto de intelecto e corpo. O corpo
poderia ser entendido como impedimento para o conhecimento intuitivo, mas Tomás
enfatiza sua função de ser princípio do conhecimento humano. A função de abstrair é
atribuída ao intelecto humano enquanto unido à alma do homem. Tomás de Aquino se
opõe radicalmente à teoria de que existe um intelecto separado com a função de inteligir
140
LENZ, 2008, p. 159-160. 141
LANDIM, 2008, p. 15-16. 142
Sobre a noção de intelecto tal qual estabelecida por Tomás de Aquino, ver: OLIVEIRA, 2015.
71
e informar a alma do homem143
. Este processo diz respeito à operação do intelecto
humano, mas não às substâncias separadas que não abstraem, pois não são determinadas
pela matéria singular. O ato intelectual angélico prescinde da abstração do inteligível
em potência nas coisas e da formação de um universal correspondente, seu
conhecimento não é mediado, é intuitivo. É possível compreender que os pressupostos
de Tomás não são apenas epistemológicos, mas também metafísicos. A cognição
humana é determinada como abstrativa devido aos pressupostos relativos a uma
estrutura metafísica que compreende tanto as coisas extramentais quanto o próprio
intelecto. Para Tomás, portanto, (1) os objetos particulares são dotados de essências
universais e (2) existe um poder de inteligir que atualiza o que já existe na coisa singular
formando um conceito universal correspondente. Este processo (3) é mediado pelos
sentidos externos que apreendem as espécies sensíveis, pelos sentidos internos que
produzem e armazenam um fantasma e necessitam de um intelecto agente capaz de
abstrair do fantasma144
.
Elaborada por Tomás de Aquino, presente em Henrique de Gand e sob
uma roupagem toda própria em Duns Scotus, a tese da intelecção
indireta do singular se estabelece como alternativa a um aristotelismo
supostamente ortodoxo que, apoiado na ideia de que o intelecto
apreende apenas de modo abstrato, considerava de todo impossível a
apreensão intelectual do singular material. 145
Henrique de Gant partilhava do pressuposto defendido por Tomás146
de que a
cognição humana é mediada pelos sentidos. Para Henrique, os sentidos são capazes de
apreender as coisas extramentais que são “instâncias de conceitos gerais, a saber, dos
tradicionalmente chamados transcendentais (ens, bonum, unum, etc)”. 147
Assim,
também aceita o pressuposto de Tomás de que (1) existem universais, ou
143
Sobre a crítica de Tomás à teoria do intelecto separado e sobre a denominação desta teoria como
averroísta ver: MARTINS, 2009, p. 7-35. 144
LANDIM, 2008, p. 13: “(...) em Aquino, o universal na mente tem fundamento na coisa singular
e isso seria suficiente para diferenciar, nessa questão, a concepção tomásica do conceitualismo de
Ockham. O que justifica a concepção de Tomás sobre a relação do universal com o singular é a sua
teoria da abstração”. 145
GUERIZOLI, 2011, p. 139. 146
Contudo, a partir destes pressupostos, Henrique de Gant defende conteúdos que Tomás nunca
defendeu: dentre eles que o homem pode conhecer a Deus. Sobre este tópico Guerizoli afirma: “Em
sentido rigoroso, porém, continua Henrique, conhecer significa conhecer a quididade de algo, donde
ser lícito dizer que o ser humano está naturalmente ordenado a um conhecimento quididativo de
Deus. (...) Segundo Henrique, é possível conhecer, por meio de um saber fundado no contato com
objetos sensorialmente perceptíveis, não apenas que Deus existe, mas também o que ele é”.
GUERIZOLI, 2010, p. 221-222. 147
GUERIZOLI, 2010, p. 226.
72
transcendentais, nos particulares148
e (2) existe um poder cognitivo capaz de conhecê-
los. No que diz respeito ao conhecimento humano, Henrique defende que ele deve ser
mediado, pois, para ele:
Apenas por intermédio da espécie percebida da coisa, a coisa é
verdadeiramente conhecida. Como a pedra que é verdadeiramente
vista pela sua espécie sensível recebida no olho e verdadeiramente
inteligida pela sua espécie inteligível recebida no intelecto. 149
Henrique compreende o intelecto humano como uma tábula rasa150
, portanto o
processo cognitivo humano é estabelecido tendo como princípio a aquisição de
universais contidos potencialmente nos objetos cognoscíveis particulares. Para ele, a
percepção e a intelecção ocorrem paralelamente no homem, ambas, entretanto, não
ocorrem diretamente, mas por intermédio de mediadores. As espécies sensíveis teriam
como função tornar o objeto acessível ao sentido e, além delas, ele afirma que os
fantasmas e as espécies inteligíveis seriam responsáveis por tornar o objeto acessível ao
intelecto. O intelecto, por sua vez, é constituído por dois poderes: o intelecto possível e
o intelecto agente.
O fantasma na imaginação pode ser compreendido como um
universal-em-potência, mas nunca como um universal-em-ato, a não
ser que algo o atualize da potência ao ato. A alma intelectiva,
portanto, deve ter um duplo poder. Em primeiro lugar, deve ser capaz
de receber, talvez até se tornar, o universal-em-ato; em segundo lugar,
deve ser capaz de atualizar do inteligível-em-potência no fantasma
para o inteligível-em-ato em si. O primeiro destes poderes é chamado
intelecto possível; o segundo é chamado intelecto agente. 151
Não há, para ele, um intelecto agente separado com a função de abstrair dos
fantasmas produzidos pela imaginação152
. No caso do homem, o intelecto agente
compre a função de atualizar o universal que está em potência nos fantasmas e informá-
148
GUERIZOLI, 2010, p. 219: “Henrique aceita as teses tomasianas de que a noção de ente é o
primeiro conceito apreendido pelo intelecto (primum cognitum) e de que tal apreensão dá-se com
base no acesso epistêmico que, mediados pelos sentidos, temos às coisas do mundo”. Ver também
AERTSEN, 1996. 149
Summa Quaestionum Ordinarium, I, 1, ad 7: “Per solam enim speciem perceptam de re
cognoscitur vere res ut lápis vere videtur per solam speciem suam sensibilem receptam in óculo et vere intelligitur per solam speciem suam intelligibilem receptam in intellectu”. 150
Summa Quaestionum Ordinarium, I, 10, sed contra: “no que diz respeito ao conheciemtno, nosso
intelecto é como uma tábula rasa”. “(...) intellectus noster ante addiscere est sicut tabula rasa”. 151
BROWN, 1975, 499. 152
Cf: BROWN, 1975, 499
73
lo ao intelecto possível. O anjo, no entanto, não é constituído por um corpo, portanto,
não possui órgãos internos que produzam fantasmas. Para Tomás de Aquino, a falta de
aparato físico não se configura como um impedimento para que os anjos possam
conhecer os objetos extramentais, pois há um inteligível em potência nas coisas, uma
quididade, um universal. O anjo é capaz de intuir as essências das coisas
correspondentes às espécies que possui em seu intelecto. Henrique de Gant, no entanto,
rejeita tal interpretação. Para ele, os anjos não possuem todas as ideias eternamente em
suas mentes, como Deus, de modo que possam conhecer tudo desde sempre, ou como se
pudessem reconhecer os particulares. Por isso, estabelece que eles necessitem de algum
aparato cognitivo que cumpra a função de apresentar seu objeto de conhecimento. Neste
sentido, Perler afirma sobre o tratamento dos anjos feito por Henrique de Gant:
[Os anjos] necessitam de algum dispositivo cognitivo que torne as
coisas cognitivamente presentes a eles. Mas quais são estes
dispositivos? Henrique de Gant tentou responder a esta pergunta ao
postular que os anjos conhecem as coisas do mundo por intermédio de
uma disposição cognitiva que abrange tudo, o chamado hábito
científico (habitus scientialis). Este hábito, que de algum modo é
constituído em suas mentes no momento de sua criação, concede a
eles acesso a todas as coisas, sem nenhuma necessidade de
informações específicas sobre itens particulares. Henrique enfatiza
que só há um único hábito para cada anjo e ao atualizá-lo cada anjo
apreende todas as coisas imediatamente, ou, para ser mais preciso: ele
apreende a essência de todas as coisas de uma vez. Não é necessário
para o anjo passar pelo processo laborioso de adquir informações
sobre esta ou aquela coisa particular. Todas as essências são imediata
e completamente presentes a ele uma vez que o hábito é atualizado. 153
Para Henrique, no ato de criação os anjos recebem um habitus scientialis que
teria como função, quando atualizado, tornar os objetos extramentais cognoscivamente
presentes ao seu poder cognitivo. Este hábito seria tal que forneceria todas as essências
imediatamente ao intelecto angélico. Nenhum impedimento material poderia interferir
neste hábito, uma vez que foi criado por Deus e o intelecto angélico tem a capacidade
de atualizá-lo. Para ele, portanto, (1) existe um inteligível no particular e (2) existe um
hábito de ciência que, quando atualizado, apresenta todas as essências das coisas ao
poder de cognitivo. Esta interpretação, porém, foi recusada e criticada por Scotus.
153
PERLER, 2008, p. 145.
74
Scotus rejeita a tese de que um único dispositivo seja suficiente para
tornar todas as essências cognitivamente presentes. Ao contrário, um
anjo necessita de múltiplos dispositivos cognitivos. Cada qual torna a
essência distinta cognitivamente presente ao representar suas
características específicas. Na visão de Scotus, estes dispositivos
cognitivos não são nada mais que espécies inteligíveis (species
intelligibiles) que existem na mente angélica e são usadas todas as
vezes que um anjo realiza um ato cognitivo. 154
A crítica que Scotus direciona a Henrique de Gant não diz respeito à
possibilidade do anjo conhecer os objetos particulares, mas à noção de hábito científico
fundamentado por Deus no ato da criação. Para Scotus não é correto afirmar tal hábito
porque não é correto afirmar que um único hábito poderia satisfazer a apreensão de
infinitas essências155
. Scotus nega a existência de tal noção e defende a noção de espécie
inteligível. As espécies inteligíveis seriam necessárias no processo cognitivo, pois
cumpririam a função de tornar as essências cognitivamente presentes ao intelecto156
.
Estas espécies não são compreendidas por Scotus como produtos da intelecção, elas
precedem os atos mentais157
e possibilitam que estes atos ocorram e possuam conteúdos
distintos.
Espécies não são nada mais do que rationes cognoscendi, i.e., os
dispositivos pelos quais cada objeto se torna cognitivamente acessível,
não os próprios objetos. Como tais dispositivos, são indispensáveis
porque tornam o intelecto angélico capaz de alcançar os vários objetos
e assimilá-los. 158
É importante notar que Scotus não comete o erro de defender que as espécies
inteligíveis seriam os objetos do conhecimento. A função das espécies é tornar os
objetos cognoscíveis acessíveis ao poder cognitivo, elas não são os objetos mesmos.
Destaco que ele não faz apenas a defesa da utilidade de espécies inteligíveis em
operações de conhecimento abstrativo, mas também reconhece sua função na operação
154
PERLER, 2008, p. 146. 155
Ordinatio II, d. 3, part. 2, q. 3, n. 369: “nenhuma razão criada pode ser a razão de conhecimento
distinto de muitas quididades”. “(...) nulla una ratio create potest esse ratio distincte cognoscendi
plures quiditates”. 156
Ordinatio II, d. 3, part. 2, q. 3, n. 390: “Porque a espécie do primeiro objeto (que não é
naturalmente presente pela essência) precede naturalmente o ato de seu conhecimento”. “Tum quia
species primi obiecti (quod non est praesens naturaliter per essentiam) praecedit naturaliter actum
cognoscendi illud”. 157
PINI, 2015, p. 81-103. 158
PERLER, 2008, p. 147.
75
intuitiva de conhecimento. Assim, através de uma espécie inteligível o intelecto
angélico pode acessar uma essência específica e constituir conhecimento.
Um apelo às espécies pressupõe uma certa tese ontológica, a saber,
que há essências universais (ou naturezas, quididades) no mundo e
que estas essências podem ser apreendidas pelo intelecto.
Manifetamente, Scotus concede que estas essências ou naturezas são
sempre individualizadas no mundo material e que elas não existem em
„pura‟ universalidade (...) Ele, no entanto, defende uma visão mais
realista dos universais, afirmando que existem naturezas universais no
mundo extramental, não apenas no intelecto, e que estas naturezas são
acessíveis ao intelecto angélico por meio de espécies inteligíveis. Esta
é precisamente a função das espécies, tornar estas naturezas acessíveis
e descartar todas as características individuais. 159
A análise do intelecto angélico e de seu processo de conhecimento revelam
pressupostos epistemológicos que dizem respeito não apenas aos anjos, mas à cognição
de modo geral. Além disso, tal análise revela alguns pressupostos metafísicos
fundamentais, para Scotus: (1) existem essências universais nos objetos extramentais,
(2) existem intelectos capazes de acessá-las, (3) o acesso é intermediado por espécies
inteligíveis que não são os próprios objetos do intelecto, mas possibilitam o acesso aos
objetos do intelecto. A interpretação de Scotus encontra um contraponto, entretanto, em
Ockham:
Em sua visão, anjos apreendem diretamente vários objetos e, assim,
fixam diretamente o conteúdo de seus atos intelectuais. Espécies são
entidades supérfluas que não desempenham papel nenhum no
processo cognitivo. 160
A crítica de Ockham é direcionada às espécies inteligíveis que, para ele, são
supérfluas e, por isso, não devem ser afirmadas no processo cognitivo. Assim como um
hábito científico não é capaz de explicar como ocorre a cognição de um item específico,
as espécies inteligíveis são incapazes de esclarecer o processo cognitivo. Elas são
afirmadas pos Scotus no intuito de explicar como o intelecto imaterial pode conhecer o
objeto material, entretanto, não é claro como ocorre a relação entre o objeto material e
as espécies inteligíveis. Além disso, não se elucida como as espécies podem ser
159
PERLER, 2008, p. 150. 160
PERLER, 2008, p. 148: “Ockham discorda amplamente de Scotus. De fato, ele rejeita a
afirmação básica de Scotus de que as espécies inteligíveis são requeridas como dispositivos
cognitivos”.
76
inteligíveis sem anteceder o ato cognitivo e como elas podem possuir a capacidade de
promovê-lo. Enfim, a capacidade da espécie de apresentar o objeto ao poder cognitivo
não é elucidada, a operação continua sem possuir explicações suficientes, pois a adição
destas outras etapas não elucida o processo. Ockham opta, portanto, por negar a
existência das espécies inteligíveis e propõe um processo cognitivo sem tais
intermediários.
Mas quando uma coisa se faz presente a um intelecto angélico ou ao
nosso intelecto, sem nenhuma coisa prévia, seja um hábito ou uma
espécie, o intelecto pode conhecer a coisa intuitivamente. Portanto, tal
coisa é a causa desta cognição. 161
Para Ockham não havia necessidade de postular um intermediário entre um
objeto capaz de ser conhecido e um intelecto capaz de conhecer. Por isso, rejeita as
espécies inteligíveis162
, o hábito científico ou qualquer outro tipo de intermediário como
necessário para a cognição. A intelecção do singular é compreendida como direta e
intuitiva, entretanto ele continua utilizando o vocabulário da abstração. Para ele,
intuição e abstração não são incompatíveis.
A cognição intuitiva é aquela pela qual conheço que uma coisa existe
quando existe, e que não existe quando não existe. Entretanto, a
cognição abstrativa é aquela pela qual não julgamos que uma coisa
existe quando existe, nem que não existe quando não existe. 163
Ockham tem como objetivo diferenciar momentos ou etapas da cognição. No
que diz respeito a conhecer algo, este conhecimento é direto e chamado intuitivo164
. Em
um segundo momento ocorre a operação judicativa pela qual se pode julgar sobre o que
foi conhecido. Esta última operação é estabelecida como abstrativa. Para Ockham,
ambas as operações podem ocorrer, sem contradições, para que o conhecimento se
dê165
. Ao analisar o modo pelo qual Ockham define estes processos Guerizoli afirma:
161
Quaestiones in In II Sent (Reportatio) q. 12–13, p. 276: “Sed posita ipsa re praesente et intellectu
angelico sive nostro sine omni alio praevio, sive habitu sive species, potest intellectus illam rem intuitive cognoscere. Igitur talis res est causa illius cognitionis”. 162
Sobre a rejeição das espécies inteligíveis ver: PANACCIO, 2004, p. 27-30. 163
Quaestiones in In II Sent (Reportatio) II. q. 12–13, p. 268: “cognitio intuitiva est illa per quam
cognosco rem esse quando est, et non esse quando non est. Sed cognitio abstractiva est illa per
quam non iudicamus rem quando est esse et quando non est non esse”. 164
LENZ, 2008, p. 161: Para Ockham a intuição não é a forma mais elevada de possuir ou adquirir
conhecimento, mas é o começo de um discurso: uma intuição é o primeiro termo mental em uma
sentença mental, é parte de um processo que termina com a elaboração de uma conclusão, e apenas
ao alcançar esta conclusão nós ou os anjos podem alcançar o conhecimento. 165
Sobre a cognição intuitiva e abstrativa ver: PANACCIO, 2004, p. 5-8.
77
O contato sensorial com um único indivíduo, sua intuição por parte
dos sentidos, não é para ele apenas o ponto de partida de uma
apreensão intuitiva intelectual desse indivíduo. Tal encontro também
naturalmente deslancha apreensões abstrativas e universais. (...) Em
Ockham, com efeito, é nítida a ideia de que a gênese do universal
decorre de uma operação feita sobre um único indivíduo. Basta uma
apreensão intuitiva, individual, para que venha a surgir aquela outra
modalidade de apreensão, a cognição abstrativa. 166
O processo cognitivo é estabelecido por Ockham de maneira direta. Como o
homem é um ser composto, a apreensão sensível é o início do processo intuitivo. Esta
diferença entre as etapas do processo para o homem e para os anjos revela um
pressuposto epistemológico impostante: para Ockham o intelecto humano e o angélico
possuem a mesma potência intelectual, apenas acessam o mundo de maneira diferente e,
portanto, se encontram, em situações epistêmicas também distintas. 167
Além disso, o
universal é determinado como produto do conhecimento, ele não se encontra separado
do intelecto, seja em estado puramente universal, seja em potência ou individualizado
no objeto singular168
. O que é intuído no processo intuitivo são as qualidades
individuais do objeto individual.
De acordo com esta visão, as essências universais ou naturezas são
meros produtos da mente. (...) Devido ao comprometimento estrito às
entidades individuais, não há nenhuma necessidade de introduzir
dispositivos cognitivos especiais que tornem as essências universais
ou naturezas acessíveis. 169
Ockham defende um pressuposto metafísico muito diferente do que apontei em
Tomás de Aquino, Henrique de Gant e Duns Scotus, para ele o intelecto intui as
qualidades individuais do particular “porque o que quer que seja em uma coisa é
singular170
”. As essências universais não poderiam ser no singular justamente por serem
universais171
. Elas não precedem a intelecção, são produzidas por ela. O intelecto,
166
GUERIZOLI, 2011, p. 146. 167
LENZ, 2008, p. 166: “Em suma podemos dizer que Ockham atribui o mesmo tipo de
racionalidade para todas as criaturas. O elemento inato do intelecto angélico não é um conjunto de
conceitos, mas a estrutura da racionalidade (...). A diferença entre os intelectos angélico e humano
não se baseia nos modos de processamento do conhecimento, mas em suas situações epistêmicas
distintas e seus modos distintos de acessar o mundo”. 168
Sobre o externalismo ver: PANACCIO, 2015. 169
PERLER, 2008, p. 150. 170
Rep II. q. 12–13: “quia quidquid est in re est singulare”. 171
Sobre os conceitos segundo Ockham ver: PANACCIO, 2004, p. 45-62.
78
puramente espiritual, tem a capacidade de constituir o universal a partir do que obtêm
da coisa, daquilo que é o seu objeto de conhecimento. 172
Assim, Ockham se
compromete com certos pressupostos: (1) não existem essências universais nos objetos
extramentais, o individual possui qualidades individuais, (2) o intelecto é capaz de intuir
as qualidades de seu objeto sem intermediários, (3) o próprio objeto é responsável por
determinar o conteúdo do ato intelectual ao ser caracterizado como causa parcial do ato
intelectivo. Ockham reconhece que esta relação causal173
entre objeto cognoscível e
poder cognitivo pode ser problemática. Todo aquele que defende que, de algum modo, o
material, ainda que de modo parcial, possui a capacidade de causar algo no imaterial
deve enfretar os problemas de explicar como tal relação ocorre e como algo menos
nobre pode afetar o mais nobre, por exemplo. Ele entende, no entanto, que tais
problemas são reduzidos quando as etapas do processo não são multiplicadas e são
também reduzidas.
Assim como tu afirmas que o corporal pode ser a causa parcial
ocasionando uma espécie no espiritual, eu afirmo que o corporal é a
causa parcial que ocasiona uma intelecção no espiritual. 174
Em suma, Ockham parece ponderar que postular mediadores para o processo
não evita o problema de explicar como o corporal pode ser causa parcial de uma
intelecção espiritual. Para ele, é preferível sustentar um processo de apreensão direta do
que um processo contendo inúmeros mediadores que não são realmente úteis na
elucidação do processo. Ao analisar o modo pelo qual Ockham reduz as etapas do seu
processo de conhecimento, Guerizoli afirma que muitas questões são evitadas:
Foi com base numa tal articulação entre inteligibilidade do ente
material, papel da abstração e dignidade da metafísica que por mais de
uma vez se pôs à mostra o problema de toda defesa da apreensão
direta dos indivíduos materiais. Comparada a outros esforços no
mesmo sentido, essa reductio tem a vantagem de não se perder em
questões particularmente espinhosas, como a da cognoscibilidade da
matéria ou a da pluralidade das formas. Ao contrário, assume-se, por
172
LENZ, 2008, p. 164: “O modelo empirista de Ockham enfatiza o aspecto receptivo: o
conhecimento é obtido das coisas – não importando se as coisas são coisas no mundo ou em outras
mentes”. 173
LENZ, 2008, p. 165: “Para Ockham os pensamentos são causados pelos objetos de pensamento e
constituem uma linguagem mental que pode ser recebida por outras mentes”. 174
Rep II. q. 12–13: “… sicut tu ponis quod corporeale potest esse causa partialis ad causandum speciem in spirituali, ita ego pono quod corporeale est causa partialis ad causandum intellectionem
in spirituali”.
79
hipótese, a intelecção direta dos singulares materiais e mostra-se que
daí não decorre senão a perda de tudo o que possa justificar, de modo
minimamente razoável, o porquê de tendermos naturalmente à
edificação de saberes que, no fim das contas, nos diria menos sobre o
mundo do que aquilo que aprenderíamos sobre ele imediatamente e
sem qualquer esforço. 175
Ao defender um processo direto de cognição Ockham não precisa elucidar certas
questões, entre elas: (1) como poderia existir essências universais nos singulares
coincidindo singular e universal no mesmo objeto; (2) como espécies ou fantasmas
podem representar ou conter universais; (3) como existem conceitos universais nos
intelectos que corresponderiam aos universais dos objetos de conhecimento; (4) como é
possível que um intelecto imaterial conheça um objeto material e etc. Isto, no entanto,
não significa que esta teoria também não encontre problemas. Ainda é preciso
determinar, por exemplo: (1) como ocorre a relação causal entre objeto e intelecto; (2)
como o objeto pode ser capaz de afetar o intelecto que é compreendido como superior;
(3) como o intelecto pode produzir um universal a partir das qualidades individuais
apreendidas do objeto e (4) como se pode garantir a noção de verdade uma vez que não
há correspondência entre o universal da coisa e o do intelecto.
Destes quatro autores apresentados, Durandus parece se aproximar mais de
Ockham, por defender a concepção de cognição como um processo de apreensão direta
do objeto cognoscível. Entretanto, Durandus não só estabelece que o conhecimento é
intuitivo, como Ockham, mas vai além: para ele a abstração é supérflua e, por isso, não
deve ser admitida como parte do processo de conhecimento. 176 A negação da noção de
abstração é tão radical que culmina com a negação total do intelecto agente. Como o
intelecto agente é afirmado devido sua função de abstrair, e Durandus nega a
possibilidade de tal operação, a noção de intelecto agente é supérflua: não existe
intelecto agente nem unido, nem separado da alma humana.
Durandus parte do princípio de que o intelecto angélico e o intelecto humano
pertencem à mesma substância espiritual, assim, possuem o mesmo poder intelectivo e
devem operar de modo similar177
. A diferença entre eles é o referencial material, neste
sentido, ambos existem em condições diferentes. Enquanto o intelecto humano está
175
GUERIZOLI, 2011, p. 138. 176
GUERIZOLI, 2011, p. 137-138: “Se os entes materiais nos fossem imediatamente inteligíveis, a
abstração seria supérflua e, aliás, contraproducente. Afinal, cada ato de abstração implicaria numa
perda cognoscitiva frente à apreensão primeira dos indivíduos”. 177
Cf: In II Sent [C] d. 3, q. 1, n. 8.
80
unido ao corpo e, assim, é apenas separável da matéria178
, o intelecto angélico compõe
um ente puramente espiritual, é separado da matéria179
e, portanto, mais nobre180
. Por
ser completamente separado das limitações materiais, Durandus considera que o
intelecto angélico representa um intelecto em condições ideais para a realização de sua
existência181
. Por isso, ao analisar a intelecção angélica não é necessário elucidar o
papel dos sentidos externos ou internos, por exemplo182. Em contrapartida, pouco se
sabe sobre o processo cognitivo angélico e o que se sabe é a partir do que se conhece
sobre o processo intelectivo humano. Ainda que não seja possível analisar o intelecto
angélico em si, ele é fundamental para compreendermos os pressupostos
epistemológicos e metafísicos com os quais Durandus se compromete e qual o papel do
homem nestes contextos.
Anjos desempenharam um papel decisivo na explicação do status
específico do ser humano. No contexto medieval, uma investigação
antropológica não era possível sem distinguir seres humanos de
animais brutos de um lado e de anjos de outro lado. De fato, foi a
comparação com os anjos que elucidou as características específicas
dos seres humanos. 183
No que diz respeito a Durandus, ele compreende que os homens têm a mesma
capacidade de conhecer que os anjos e ambos conhecem por intermédio de um
178
In II Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 4: “Assim, a essência do anjo não é ato do corpo, mas é separada de
todo corpo”. “Essentia etiam angeli non est actus corporis, sed est separata ab omni corpore”. 179
In II Sent. [C], d. 3, q. 1, n. 8: “Visto que o homem é o que intelige, o fundamento de sua
operação é o inteligir e, entretanto, o homem tem uma parte de matéria em si. (...) De modo similar
se diz do anjo que ele é aquilo cuja operação é inteligir como o seu fundamento de operação. E disto
não é próprio [dizer] que seja composto de matéria e forma assim como o homem é”. “quia homo est
quod intelligit ut suppositum cuius operatio est intelligere, et tamen homo habet materiam partem
sui. (...)Similiter potest dici quod angelus est illud cuius operatio est intelligere ut suppositi operantis. Et ob hoc non oportet quod sit compositus ex materia et forma sicut et homo”. 180
IRIBARREN, 2008, p. 53: “Ambas as almas angélicas e humanas pertencem às mesmas espécies
de substâncias incorpóreas. Mas o que torna o anjo melhor do que a alma humana é que o anjo é uma
substância separada enquanto a alma humana é meramente uma forma separável, e esta diferença
produz um modo de intelecção nos anjos que é mais perfeita e menos mediada do que a cognição
humana”. 181
In II Sent.[C], d. 3, q. 6, n. 8: “O intelecto angélico, como não depende dos sentidos, apreende
imediatamente todo inteligível que a ele se apresente”. “Sed intellectus angelicus, qui a sensu non
dependet, statim apprehendit omne intelligibile sibi presens”. 182
PERLER, 2008, p. 147-148: “No caso dos anjos nós não temos que lidar com a fundação
sensorial dos atos intelectuais. E também não temos que nos perguntar sobre os tipos de dispositivos
cognitivos que poderiam existir fora do intelecto (ex. fantasmas) ou sobre qual tipo de objetos
poderiam existir além das essências (ex. formas individuais e propriedades). Anjos provêm um
modelo de cognição pura, sem nenhuma restrição material”. 183
IRIBARREN, 2008, p. 143.
81
conhecimento intuitivo e não abstrativo. O objeto do intelecto não é a essência universal
das coisas particulares, mas as qualidades individuais das coisas. Para Durandus, o que
é individual só pode possuir características individuais. O universal não existe separado
do intelecto, nem precede à operação intelectiva, mas é o seu resultado. Durandus
procura fundamentar que (1) não existem essências universais nos objetos extramentais,
o individual possui apenas qualidades individuais (2) o intelecto é capaz de intuir as
qualidades de seu objeto sem intermediários, (3) por isso, nega que as noções de
fantasmas, espécies sensíveis ou espécies inteligíveis tenham qualquer papel no
processo intelectivo e (4) existe uma relação causal entre objeto e intelecto, entretanto,
procura atribuir um caráter especial a este tipo de relação: o objeto não deve ser
compreendido como causa eficiente da relação, mas apenas como a causa sine qua non
do ato intelectivo.
Meu objetivo na próxima seção deste capítulo é analisar a caracterização desta
relação entre objeto do conhecimento e poder cognitivo e compreender se Durandus
consegue evitar a classificação do objeto como causa eficiente, o que o levaria a afirmar
que algo menos nobre, material, é responsável por causar intelecção no mais nobre, o
intelecto imaterial.
82
2.2- O CONHECIMENTO COMPREENDIDO COMO A RELAÇÃO ENTRE O
OBJETO COGNOSCÍVEL E O PODER COGNITIVO PARA DURANDUS DE
ST. POURÇAIN
Em seu In II Sent. [C], d. 17, q. 1, Durandus afirma que a alma intelectiva está
unida ao corpo de modo análogo à união de forma e matéria. 184
Deve-se admitir,
portanto, que a constituição de sua teoria cognitiva será determinada pela relação entre o
corpo material e o intelecto imaterial, expressa também na relação entre o objeto
cognoscível que é sensível e particular e o intelecto universal. 185
Para Durandus, o
primum cognitum do intelecto é o particular e não o universal. 186
Ocorre que não se
constitui conhecimento científico de particulares, portanto é necessário compreender se
é possível que o homem conheça o indivíduo sob razões universais. Durandus deve,
assim, elucidar se a cognição humana é possível e, sendo este o caso, como ela ocorre.
Ao determinar qual é a causa do conhecimento e que tipo de causa é essa, Durandus é
capaz de estabelecer qual é a natureza mesma do conhecimento.
Durandus, no entanto, nega187
que o objeto do intelecto seja o universal na coisa e,
por isso, nega também que o intelecto agente tenha a operação própria de abstrair o esse
universal das coisas singulares e individuantes. 188
Para Durandus, é exatamente o
contrário: “o primeiro objeto do intelecto não é o universal, mas o singular”. 189
A
investigação a respeito do primum cognitum do intelecto revela que o conhecimento é
uma relação entre o poder cognitivo e o objeto cognoscível. É necessário determinar,
entretanto, se a caracterização do objeto cognoscível como a causa sine qua non do ato
intelectivo satisfaz à formação de um universal correspondente ao particular. É evidente
que se tal correspondência não for verificada não seria possível assegurar a noção de
184
In II Sent. [A], distinção 17, questão 1 resp. 185
Sobre a noção de ciência em Durandus de St. Pourçain ver FUMAGALLI, 1969. p. 41-52. E para
uma introdução ao tema do conhecimento ver também p. 55-64. 186
Ver: In II Sent. [C], d. 3, q. 7, n. 7. 187
A respeito do debate sobre a cognição entre Durandus e Natalis e Henrique de Gant ver: LOWE,
2003, p. 96-99. Em relação ao debate sobre a narureza humana entre Tomás de Aquino, Durandus e
Natalis: cf. IRIBARREN, 2009. Sobre a recepção desfavorável de Natalis à primeira versão do
Comentário às Sentenças de Durandus: cf. IRIBARREN, 2005, p. 108-144. Sobre o ataque de
Natalis às teorias de Durandus ver IRIBARREN, 2005, p. 145-162. 188
A crítica pode ser verificada em In II Sent. [C], d. 3, q. 7, n. 8 ou ainda em In II Sent. [C], d. 3, q.
5, questão dedicada exclusivamente à crítica da afirmação da existência de um intelecto agente. 189
In II Sent. [C], d. 3, q. 7, n. 7: Quod primum cognitum ab intellectu non est universale, sed
singulare.”
83
verdade. A minha hipótese de leitura é a de que a verdade compreendida formalmente
pressupõe o ato intelectivo. Ou seja, a verdade é a relação entre o objeto cognoscível e o
poder cognitivo dada pela notitia intuitiva. Para Durandus, a correspondência entre o
objeto real e o objeto intencional asseguraria a constituição de um conhecimento
verdadeiro. Tal correspondência, no entanto, não pressuporia uma certa universalidade
presente no particular. Na terceira versão do Comentário às Sentenças, Livro II , d. 3, q.
6, n. 8, Durandus escreve:
Visto que o primeiro objeto proporcionado ao nosso intelecto é aquilo
que primeiro fora proporcionado ao sentido. Isto porque o nosso
intelecto é com o sentido (cum sensu), já que ao nosso intelecto (seja
permitido agir sobre o objeto presente) embora não na razão do
primeiro inteligível, visto que não é algo que pode cair sob o sentido. 190
Durandus não se opõe à teoria segundo a qual o homem é dotado de sentidos e
intelecto,191
nem rejeita que ele entre em contato com o mundo através da percepção
sensível. O sentido tem o papel de proporcionar o objeto ao intelecto, de tal sorte que, se
um objeto não for percebido, não poderá ser inteligido pelo intelecto humano. 192
Perceber e inteligir passam a ser considerados como dois lados da mesma moeda, se o
primeiro ocorre o segundo acontecerá imediatamente. O que Durandus, de fato, rejeita é
que o conhecimento seja constituído através de processos abstrativos.
Durandus distingue dois modos de conhecimento, o intuitivo e o abstrativo,193
expressos pelas fórmulas notitia intuitiva e notitia abstrativa. 194
Estes termos, no
entanto, recebem aqui novo significado. Fumagalli195
aponta para o fato de Durandus se
190
In II Sent. [C], d. 3, q. 6, n. 8. “quia obiectum primo proportionatum nostro intellectui est aliquid
prius sensatum, quia intellectus noster est cum sensu, propter quod intellectus noster (licet sit sibi presens) non tamen in ratione primi intelligibilis ab eo, quia non est aliquid quod cadere possit sub
sensu”. 191
Sobre este tema podemos destacar o “Tratado do homem” que compreende as questões 75 à 89 da
Suma de Teologia de Tomás de Aquino. Nestas questões, Tomás determina a natureza do homem e,
portanto, a natureza da cognição humana deve corresponde capacidades atribuídos ao ser humano.
Especificamente sobre a natureza humana ver ST I I q. 75 a. 1 resp. 192
Sobre a presença do objeto inteligível como causa, ver: HARTMAN, 2012. p. 83. 193
In I Sent. [C], Prol. q. 3, resp: “Quanto ao primeiro sabe-se que Segundo esta opinião é possível
distinguir dois conhecimentos, o abstrativo e o intuitivo”. “Quantum ad primum sciendum quod
ponentes dictam opinionem distinguunt duplicem cognitionem, scilicet abstractiuam et intuitiuam”. 194
A notitia intuitiva e a notitia abstractiva serão discutidas de modo análogo e mais amplo por
Ockham. Sobre o tratamento das noções de intuição e abstração na cognição humana ver OCKHAM
1967-1986, V, p. 257, GUERIZOLI, 2011, p. 137- 159. PANACCIO, 1992, p. 69. 195
FUMAGALLI, 1969. p. 55: “Secondo alcuni (il riferimento allo Scoto è, come si è visto, chiaro)”
GUERIZOLI, 2009.
84
opor à função que Duns Scotus atribui ao conhecimento abstrativo, como aquele que se
refere ao conhecimento de uma coisa não presente, e ao conhecimento intuitivo, como
aquele que corresponderia à cognição imediata da coisa presente. Durandus não nega a
possibilidade de conhecimento da coisa imediatamente presente, a crítica feita diz
respeito à afirmação de uma notitia abstrativa propriamente dita. 196
A utilização do
intelecto angélico como experimento de pensamento pode auxiliar a compreensão deste
ponto. O intelecto separado é livre dos limites e determinações materiais, por isso, opera
realizando toda a sua potencialidade, como nada o impede de conhecer a essência da
coisa de modo intuitivo não há necessidade de afirmar um conhecimento abstrativo. Por
analogia, a mesma cognição intuitiva deve preceder qualquer outra em um intelecto
não-separado: “Experimentamos de modo similar em nós que a cognição intuitiva
sensível precede toda cognição abstrativa intelectiva197
”.
Além disso, como o conhecimento intuitivo tende ao particular, deve-se dizer que
o objeto da cognição é o ente em ato: “A primeira cognição necessária é a do ente em
ato, e tal cognição necessária é intuitiva, como foi provado. Portanto, todas as outras
cognições necessárias pressupõem a intuitiva e são reduzidas a ela198
”. Assim, o
conhecimento intuitivo é este segundo o qual o ente em ato é conhecido imediatamente
quando presente ao poder cognitivo. O que os sentidos percebem, no entanto, não é
certa universalidade contida no objeto e sim suas condições particulares, como
verificado a seguir:
O que é primeiro conhecido pelo intelecto não é o universal, mas o
singular. Pois o universal não é aquilo que o intelecto retira das
condições singulares e individuantes, mas o universal é assim
denominado somente como objeto pelo ato inteligente... a
universalidade não pode estar na coisa, mas apenas a singularidade. 199
196
Durandus deixa claro, por exemplo, que não é possível ao homem possuir algum conhecimento a
respeito de Deus por via abstrativa. A defesa da afirmação de uma notitia abstrativa propriamente
dita, verdadeira e independente é totalmente inviabilizada neste caso. Cf.: FUMAGALLI, 1969. p.
55 e 56. 197
In I Sent. [C], Prol. q. 3 resp: “(...) similiter experimur in nobis quod omnem cognitionem abstractiuam intellectiuam precedit cognitio intuitiua sensitiva.” 198
In I Sent. [C], Prol. q. 3 resp: “prima cognitio necessario est entis in actu; set talis cognitio
necessario | est intuitiua, ut probatur; ergo omnis alia cognitio necessario presupponit intuitiuam et ex ea deducitur”. 199
In II Sent. [C], d. 3, q. 7, n. 7 e 8: “Primum cognitum ab intellectu non est universale, sed
singulare… Esse enim universal non est aliud quam esse intellectum absque conditionibus singularitatis et individualtionis, ita quod esse universal este sola denominatio obiecti ab acto sic
intelligendi (…) Universalitas non potest esse in rebus, sed solum singularitas”.
85
Segundo Durandus, o universal não existe nos singulares, nem é o primeiro
objeto do intelecto, nem mesmo é por ele abstraído, mas é produto do processo de
cognição humana. O universal não é, assim, algo real contido no singular ou um
conceito contido em um intelecto separado, conhecido por nós ao final de um processo
de abstração ou de iluminação. Mas é o resultado, é o produto da cognição humana. É
puramente intelectual e, por isso, não é admitido que fosse contido pelos singulares.
O universal, é esta razão ou intenção universal ou coisa sob a intenção
de um universal, não é o primeiro objeto do intelecto nem preexiste à
intelecção, mas é aquilo que é formado pela operação do inteligente. 200
Mais uma vez é verificado que o universal é entendido por Durandus como
produto da operação intelectual. Ele não se encontra e pode ser abstraído das coisas,
nem é conhecido por intermédio de um tipo refinado de reminiscência. Segundo
Iribarren, “o universal é formalmente o resultado de um ato do intelecto: nada real é um
universal, e o que quer que exista na realidade extramental é, de fato, singular”. 201
O
texto latino é claro no uso do termo “formatum” para designar a operação que tem como
resultado o universal. Durandus admite, portanto, que o homem é capaz de conhecer o
objeto que se apresenta ao seu poder cognitivo e é capaz de produzir um universal a
partir do singular. A cognição, assim como a sensação, deve ser compreendida como ato
próprio do ser humano: “o inteligir é o ato próprio do intelecto e o sentir é o ato próprio
do sentido”. 202
Neste ponto, Durandus propõe uma distinção de atos humanos. O intelecto e o
sentido são compreendidos como o ato primeiro, ou a forma e o inteligir e o sentir, por
sua vez, são compreendidos como o ato segundo, ou a operação. Sendo o intelecto a
forma do homem, sua operação própria deve ser o inteligir. Por isso, não é correto
afirmar que, ao inteligir, algo é realmente adicionado ao poder cognitivo. Durandus é
claro ao afirmar que “o sentir e o inteligir não são algo real adicionado ao sentido e ao
intelecto fazendo com eles uma composição real”. 203
Trata-se, apenas, de uma distinção
200
In I Sent. [C], d. 3, q. 5, n. 28: “Universale, id est, ratio vel intentio universalitas aut res sub
intentione universalitatis non est primum obiectum intellectus nec praeexistit intellectioni, sed aliu
formatum per operationem intelligendi (...)” 201
IRIBARREN, 2008, p. 53. 202
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 27: “set sentire est proprius actus habentis intellectum et sentire est
proprius actus habentis sensum inquantum huiusmodi”. 203
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 22: “quod sentire et intelligere non dicunt aliquid reale additum
super sensum et intellectum faciens cum eis realem compositionem”.
86
de atos, isto porque, se o ato primeiro é a forma e o ato segundo é a operação, a
operação não pode se distinguir formalmente do ato primeiro, caso contrário ela não
poderia ser caracterizada como ato segundo. Deve-se dizer, portanto, que os sentidos e
intelecto do homem são seu ato primeiro, sua forma e que são nele per se. Ao investigar
se haveria uma causa externa para o ato segundo do homem, ou seja, para as operações
de inteligir e sentir é possível notar uma aparente contradição. Na primeira versão do
seu In Sent, na convencionalmente chamada „Questão sobre a Cognição‟ Durandus
afirma que o objeto sensível não deve ser caracterizado como a causa eficiente da
sensação e da intelecção humana:
Pois se o objeto for a causa eficiente do ato inteligente, se seguiria que
para que o intelecto inteligisse e o objeto fosse inteligido, seria
necessário que a disposição do ato inteligente e seu objeto fosse como
a disposição entre causa e efeito, pela qual [o efeito] dependesse [da
causa] e estivesse submetido a ela por necessidade. (...) Assim, foi
exposto que sentir e inteligir não são em nós afetados pelo objeto
[perceptível]. 204
A classificação do objeto cognoscível como causa eficiente do ato intelectivo
gera um problema: é preciso elucidar como algo menos nobre, material, poderia afetar
algo mais nobre, imaterial. Durandus procura evitar este problema determinando que a
relação entre o objeto cognoscível e o intelecto não é análoga à relação entre causa e
efeito. A afirmação de que o objeto não deve ser compreendido como causa eficiente da
intelecção não deve ser utilizada, no entanto, para sustentar que Durandus advoga uma
concepção de intelecção humana desvinculada do sensível. No In II Sent. [C], d. 3, q. 6,
n. 21 Durandus utiliza a operação do sentido para elucidar a operação do intelecto.
Segundo ele o ato sensitivo ocorre porque o objeto sensível se apresenta ao sentido e,
analogamente, o mesmo pode se afirmar a respeito do ato intelectivo:
Sabe-se que em nós existe uma dupla cognição (manifestamente, a
sensitiva e a intelectiva). Quando um objeto sensível se apresenta ao
sentido, ele é conhecido pelo sentido. Por exemplo, uma coisa
colorida ou iluminada que se apresenta, segundo si, à visão é
204
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 20: “Si enim obiectum causaret effectiue actum intelligendi, ad quem
sequitur quod intellectus intelligit et quod obiectum intelligitur, necesse est quod habitudo actus
intelligendi et sui obiecti sit habitudo cause et effectus uel ex hac habitudine dependeat et eam ex necessitate supponat. (…) Ex hiis patet quod sentire et intelligere non sunt in nobis effective ab
obiecto.”
87
imediatamente vista, isto porque uma é [capaz de ser] vista e a outra é
capaz de ver”. 205
Nota-se, em primeiro lugar, que Durandus defende a existência de um
conhecimento sobre o sensível. Em segundo lugar, Durandus parece afirmar que o
objeto é a causa de sua própria percepção, ao afirmar que ela ocorre por causa do ato do
objeto de se apresentar ao sentido. Como esta última passagem é encontrada na terceira
versão do seu In Sent, poderíamos supor que houve uma mudança de posição entre os
quase vinte anos que separam a terceira da primeira versão do texto. Na primeira versão,
Durandus nega que o objeto possa ser caracterizado como causa eficiente e na terceira
versão Durandus afirma que o objeto pode ser compreendido como causa da percepção.
No entanto, não há uma mudança de posição ou alguma contradição. Na segunda
passagem analisada, Durandus também rejeita a tese segundo a qual o objeto sensível é
a causa eficiente de sua percepção. Segundo Durandus, afirmar que o objeto se
apresenta ao sentido e, por isso, a sensação ocorre não é o mesmo que defender que o
objeto seja a causa eficiente de sua apreensão. O objeto cognoscível deve ser entendido
como causa, mas não como causa eficiente. E isto pode ser verificado já na primeira
redação do seu In Sent. No decorrer do desenvolvimento da resposta da questão quinta,
Durandus introduz uma nova classificação de causa: “Segundo o que foi exposto, sabe-
se, portanto, que o objeto é como uma causa sine qua non”.206
Durandus não rejeita a tese de que o objeto cognoscível seja a causa da
cognição, rejeita a classificação da causa como eficiente. Para ele, afirmar que os
objetos dos atos perceptivos seriam sua causa eficiente significaria admitir que quando
presentes aos sentidos estes objetos teriam a capacidade de afetar os sentidos e, de
algum modo, informar ou imprimir alguma forma sobre os órgãos dos sentidos
externos. É preciso admitir que não há uma explicação estabelecida para esclarecer
como o objeto seria capaz de imprimir alguma forma nos sentidos. Durandus não vê a
necessidade de se comprometer com uma teoria composta por etapas obscuras e,
segundo ele, desnecessárias. Para ele, não é necessário afirmar uma capacidade inerente
ao objeto que suscita questões a respeito da nobreza do ato intelectivo. Isto porque, se a
205
In II Sent. [C], d. 3, q. 6, n. 21: “sciendum est quod quanuis in nobis sit duplex cognitio (scilicet
sensitiua et intellectiua) (...) sicut ergo sensibilia secundum se praesentia sensui cognoscuntur per sensum, puta omnia colorata, et omnia lucentia, quae secundum se praesentialiter obiiciuntur visivi
statim videntur, quia unum est visivum, et aliud visibile, propter quod eis approximatis statim
sequitur visio (...)" 206
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 28: “Secundum patet, scilicet quod sint ab obiecto sicut a causa sine
qua non”.
88
causa é tão ou mais nobre que seu efeito, teríamos que admitir que o objeto presente ao
poder cognitivo é tão ou mais nobre do que o próprio intelecto207
. Segundo Durandus é
suficiente e correto caracterizar o objeto cognoscível meramente como uma causa sine
qua non. 208
Cabe determinar, portanto, que tipo de causa é uma causa sem a qual o ato
cognitivo não ocorre e se esta classificação é suficiente para evitar que o objeto seja
determinado como causa eficiente da cognição, como sendo aquele que determina o
conteúdo dos atos cognitivos.
No intuito de esclarecer o conceito de causa sine qua non, em sua „Questão
sobre a Cognição‟ Durandus se refere à Física, VIII, 4, na qual Aristóteles Latino
afirma que o conceito de potência pode ser dito de muitas maneiras.209
Durandus resgata
este texto, para fundamentar o estabelecimento das noções de potência essencial e
potência acidental:
E a conclusão que se pode tirar do artigo é a seguinte: aquilo que é
apenas em potência acidental não é em potência para uma nova forma,
nem necessita, para ser reduzido ao ato, de um agente que dê uma
nova forma. Mas o ato primeiro só está em potência acidental em
relação ao ato segundo, que é operação. 210
Para Durandus, a causa per se211
é responsável por atualizar uma potência
essencial. Em contraposição, aquilo que é em potência acidental necessita de um causa
sine qua non para ser atualizada, nenhuma causa eficiente é necessária para a realização
deste processo212
. A causa per se informa aquilo que é em potência essencial para
possuir o intelecto com sua forma de tal modo que sua potência de possuir um intelecto
207
HARTMAN, 2012, p. 47: “Então o que Durandus rejeita quando rejeita a doutrina do
afeccionismo? Ele rejeita a tese de que a percepção se trata da afecção dos sentidos causada pela
ação do objeto, e que isso signifique que os sentidos recebem ou tomam a „forma‟ daquele objeto
devido ao próprio objeto como uma causa eficiente. Em geral, Durandus acredita que sua própria
teoria pode dar conta da causação de nossos atos mentais sem conduzir a preocupações como a
discutida acima. [Sobre a questão da nobreza do ato cognitivo ver p. 41 e 42]”. 208
Neste sentido, concordo com HARTMAN, 2014, p. 230: “Durandus rejeita o afeccionismo, mas
ele não rejeita a doutrinha de que o objeto é a causa do ato perceptivo. Durandus estabelece e
defende a distinção entre causas eficientes e o que ele chama de causas sine qua non”. 209
Physica VIII, 4 (254b7): “Quoniam autem „potentia‟ esse multipliciter dicitu”. 210
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 27: “Et potest ex hoc formari ratio concludens utrumque articulum
sic: illud quod est solum in potentia accidentali non est in potentia ad nouam formam nec indiget ad hoc ut reducatur in actum agente dante nouam formam; set habens actum primum solum est in
potential accidentali ad actum secundum, qui est operatio;” 211
HARTMAN, 2012, p. 97: “Por um lado, Durandus declara que o que causa que o poder cognitivo
seja em nós (o generans) é a causa per se, e por outro lado, que o objeto presente é a causa sine qua
non”. 212
HARTMAN, 2012, p. 104: “Durandus acredita que Aristóteles está comprometido com as
seguintes afirmações: (1) Todas as atualizações essências requerem uma causa eficiente extrínseca;
(2) Nenhuma atualização acidental requer uma causa eficiente (extrínseca)”.
89
em perfeito estado seja atualizada. O homem tem a potência essencial de possuir um
intelecto, por isso, ao ser informado por uma causa per se pode realizar seu ato primeiro
de ser ente intelectual. Porém, além disso, pode-se dizer que o homem possui uma
potência acidental, a potência de inteligir. Esta potência é dita acidental, pois não
acontece que, tendo atualizado sua potência essencial, ao exercer seu ato primeiro de ser
intelectual o homem também, necessariamente, desempenhe um ato segundo de
conhecer outras coisas. Para atualizar sua potência acidental de inteligir uma coisa, o
homem não necessita que esta coisa, ou ainda um outro agente, atue sobre ele
informando algo. Para a atualização desta potência é apenas necessário que o objeto
esteja presente para que o homem o intelija, realizando, assim, seu ato segundo213
: a
operação de inteligir. 214
O objeto inteligido é caracterizado, portanto, não como causa
eficiente da operação, mas como causa sine qua non.
Desta maneira Durandus pode responder à pergunta: “Sabendo-se que o inteligir
e o sentir são feitos em nós, porque não inteligimos e sentimos sempre, uma vez que
sempre temos sentidos e intelecto?”. 215
Em alguns casos algo pode realizar atos
primeiros e segundos ao mesmo tempo. Mas também pode ser o caso de que algo
realize um ato primeiro sem realizar um ato segundo. 216
Como no caso de um homem
que, tendo realizado sua potência essencial possui sua forma em ato, seu intelecto está
em perfeito estado e, portanto, atualizou sua potência essencial. Neste caso não se
segue, necessariamente, que perfaça (em todo e qualquer momento) sua potência
acidental de inteligir. É necessário, para a realização de seu ato segundo, a presença
atual de um objeto sem o qual este ato não poderia ocorrer. Isto porque, um ato segundo
necessita da presença de seu objeto para que sua operação ocorra, como é verificado
pelo excerto:
A razão disto é porque atos primeiros requerem apenas a presença
potencial a respeito daquilo pelo qual são ditos, mas a operação ou o
ato segundo requerem a presença atual. (...) E, visto que algumas
vezes aconteça que algo esteja potencialmente presente, e não
213
HARTMAN, 2017, p. 20: “Chamo esta tese de princípio da suficiência: a presença do objeto
cognoscível ao poder cognitivo é suficiente para a cognição”. 214
Para uma análise das noções de potência essencial e potência acidental, tal qual determinados por
Durandus, tendo em vista a cognição humana, ver: HARTMAN, 2014, p. 240-244. 215
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 28: “Scilicet qualiter intelligere et sentire fiant in nobis et quare non
semper intelligimus aut sentimus, cum semper habeamus sensum et intellectum.” 216
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 28: “(...) Et in talibus non semper simul est aliquid sub actu primo et
secundo, sed contingit quandoque habere actum primum sine secundo”.
90
atualmente presente, assim algumas vezes pode acontecer que algo
esteja sob um ato primeiro sem estar sob um ato segundo. 217
A atualização de uma potência acidental, como a operação de inteligir, não
necessita de uma causa eficiente externa para ocorrer, mas apenas de uma presença
atual. Pois, sem a presença de um objeto aquecível, algo capaz de aquecer nunca
poderia, de fato, aquecer coisa alguma. Assim, de modo análogo, conclui-se que
mesmo que o homem possua sua forma em ato, que seu intelecto esteja em perfeito
estado e, portanto, tenha atualizado sua potência essencial, não se segue,
necessariamente, que perfaça (em todo e qualquer momento) sua potência acidental de
inteligir. E o objeto que deve estar atualmente presente para a realização do ato segundo
de inteligir é o objeto cognoscível. Este não se apresenta ao poder cognitivo como causa
eficiente, mas, apenas, como causa sine qua non. Contudo, acredito ser necessário
investigar o que, exatamente, Durandus entende como a noção de causa sine qua non.
Caso contrário, o mesmo erro que Durandus aponta nas teorias dos filósofos que
defendiam, entre outras coisas, a noção de abstração poderia ser atribuído a ele: a
afirmação de uma noção obscura com o objetivo de explicar uma relação já obscura
entre material e imaterial.
Durandus afirma que o objeto cognoscível é causa sine qua non, pois procura
evitar a questão sobre a nobreza de um ato intelectivo que tem como causa eficiente um
objeto material. Por isso, é necessário determinar a que tipo de classificação de causa
corresponde esta causa sine qua non, uma vez que ela não é eficiente. Se esta
investigação não for realizada, não será possível afirmar que Durandus foi bem-
sucedido em seu objetivo de constituir uma teoria menos problemática em relação a este
ponto mencionado. Sobre esta questão, Hartman afirma:
O objeto é a causa sine qua non, isto é, a ausência do objeto é um tipo
de impedimento no que diz respeito à relação da operação do poder
cognitivo (pensamento ou operação intelectual), que é removido
devido a sua presença. 218
217
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 28: “Cuius ratio est quia actus primus requirit praesentiam eius ad
quod dicitur solum secundum potentiam, sed operatio vel actus secundus requirit praesentiam eius secundum actum, ad hoc enim quod aliquid sit calefactivum sufficit quod possit habere calefactibile,
sed ad calefacere requiritur actualiter praesens calefactibile. Et quia contingit aliquid esse praesens
secundum potentiam quod tamen non est actu praesens, ideo contingit aliquid esse sub actu primo absque actu secundo”. 218
HARTMAN, 2012, p. 116.
91
Acredito que a melhor maneira de compreender o conceito de causa sine qua
non é considerar sua função no processo de conhecimento. O conhecimento é
determinado como uma relação entre objeto e intelecto. Estando o intelecto em ato, no
que diz respeito à sua potência essencial de existir, e em potência em relação à sua
potência acidental de inteligir o objeto presente é compreendido como uma causa sem a
qual a potência acidental do intelecto não será realizada. A classificação do objeto diz
mais sobre a relação na qual ele se encontra, uma vez que a intelecção ocorre, do que
sobre o objeto em si. Todos os objetos particulares não são, por si, a todo o momento ou
em qualquer situação, causas de intelecção. É a relação de intelecção estabelecida, dado
que estão presentes, um ao outro, um intelecto capaz de conhecer e um objeto capaz de
ser conhecido, que confere a este objeto, presente ao poder cognitivo, a condição de
causa sine qua non. Esta classificação significa, apenas, que sem a presença de ambos
os membros da relação a relação não ocorre219
. Durandus não admite a possibilidade de
um conhecimento intuitivo de um objeto não presente. Pelo contrário, Durandus afirma
que para que um ato de conhecimento se dê, deve haver uma relação entre duas partes:
uma parte inteligente e uma parte inteligível. 220
Assim, caso o objeto cognoscível não
se apresente ao poder cognitivo, sua cognição não ocorrerá, será impedida. E, se o
objeto cognoscível se apresenta ao poder cognitivo será compreendido como a causa
sem a qual sua cognição não ocorreria. Disto não se segue que o objeto seja o
responsável pelo ato cognitivo, que ele seja definido como a causa eficiente da
cognição. O que Durandus defende é que para que a relação cognitiva ocorra os dois
membros que compõem a relação devem estar presentes um ao outro. Como se pode
verificar a seguir:
O intelecto ou o princípio intelectivo e o inteligir, são ditos não de
modo absoluto em relação a todas as coisas, mas em relação ao
inteligível, e o intelecto implica tal relação segundo potência,
enquanto o inteligir segundo ato. De modo que, algo que tenha um
intelecto nem sempre intelige, visto que, nem sempre há um inteligível
atualmente presente. (...) A presença do objeto ou a apresentação do
objeto é a causa sine qua non, uma vez que o inteligir não é uma
219
HARTMAN, 2012, p. 112: “A teoria da causalidade sine qua non, eu diria, é muito similar às
teorias de causalidade que podemos encontrar atualmente, pois Durandus parece analisar esta relação
causal como nada mais nada menos que uma dependência contrafactual: se X estiver presente, então
Y poderá ocorrer e se X não estiver presente, então Y não poderá ocorrer”. 220
In II Sent [C] d. 3, q. 6: “primum tenet se ex parte intelligentis, et secundum ex parte
intelligibilis”.
92
perfeição meramente absoluta, mas em comparação com outro. E o
mesmo é dito do ato do sentido (...). 221
Para Durandus, se algo possui um intelecto como sua forma, estará sempre em
potência em relação ao inteligível. Sendo o inteligir a operação própria do intelecto,
quando um inteligível se apresenta ao poder cognitivo, a operação de inteligir ocorre, ou
seja, neste momento a potência de inteligir se atualiza e a relação entre o inteligir e o
inteligível se encontra em ato. Deste modo, quando um objeto cognoscível se apresenta
ao poder cognitivo humano, a intelecção deste objeto ocorrerá, atualizando a potência
acidental de conhecer. Para Durandus, portanto, o conhecimento é a relação entre o
princípio intelectivo e o objeto cognoscível. Isto porque, é claro que não havendo nada
para ser conhecido, não seria possível estabelecer uma relação intelectiva. Porém,
quando o objeto cognoscível se apresenta ao poder cognitivo sua cognição ocorrerá
necessariamente. Neste sentido, é possível identicar três pressupostos de Durandus
sobre a cognição:
E o primeiro [que há cognição] é claro: inteligir não faz referência a
algo [absoluto] adicionado ao intelecto. Ao segundo [ao que se
conhece] deve ser dito que inteligir e sentir são em nós pela causa per
se que nos dá nosso intelecto e sentidos e também pelo objeto como
causa sine qua non. O primeiro membro da conjunção é claro baseado
no que já havia sido dito, pois se pensar e sentir não são algo absoluto
adicionado aos sentidos e ao intelecto, então se segue que eles provém
da mesma coisa. 222
O primeiro pressuposto é que o conhecimento não é algo absoluto adicionado ao
intelecto. O processo de conhecimento não tem como objetivo informar o intelecto com
formas que preexistem à intelecção. O segundo pressuposto é o de que o intelecto e o
sentido são causados em nós por uma causa per se. Por isso, ambos são compreendidos
como forma do homem, são os atos primeiros que possibilitam as operações de sentir e
221
In II Sent. [A], d. 3, q. 5, n. 28 e 29: “De numero autem talium actuum sunt intellectus vel
principium intellectivum et intelligere, dicitur enim utrumque non omnino absolute, sed in habitudine ad intelligibile, quam habitudinem importat intellectus secundum potentiam, intelligere
autem secundum actum. Propter quod habens intellectum non semper intelligit quia non semper habet intelligibile actu praesens (…) Obiectum autem praesentatum vel praesentans obiectum est
causa sine qua non pro eo quod intelligere non est perfectio mere absoluta, sed in comparatione ad
alterum. Et idem est de actu sentiendi (…)”. 222
In II Sent [A], d. 3, q. 5 n. 26-27. “Patet igitur primum, scilicet quod intelligere non dicit aliquid
additum super intellectum. De secondo dicendum quod intelligere et sentire sunt in nobis per se a
dante sensum et intellectum, quod est creans uel generans, ab obiecto autem sicut a causa sine qua non. Primum patet ex his que dicta sunt. Si enim intelligere et sentire non sunt aliquid additum
supra sensum et intellectum, consequens est ut ab eodem sit utrumque”.
93
inteligir, as operações próprias do homem. O terceiro pressuposto é o de que o objeto
cognoscível é a causa sine qua non do conhecimento. A ausência do objeto cognoscível
ao poder cognitivo pode ser considerada como um impedimento para a cognição, como
causa sem a qual a potência acidental de inteligir não seria atualizada e, portanto, a
operação de intelecção sobre o objeto não ocorreria. Pois, mesmo que um ser inteligente
tivesse todo seu aparato cognitivo pronto para conhecer e em perfeito estado, se não
existisse ou não lhe fosse apresentado nenhum inteligível, nenhuma relação intelectiva
seria estabelecida e o ser inteligente não conheceria nada que não fosse ele mesmo.
Disto é possível concluir que, para Durandus a cognição é a relação na qual se
encontram um intelecto capaz de conhecer e um objeto capaz de ser conhecido. Uma
vez que ambos os membros da relação estão presentes, um ao outro, a cognição ocorrerá
necessariamente, sem requerer, para tanto, nenhuma causa eficiente. Não há necessidade
de pensar que o objeto age como causa eficiente do poder cognitivo ou que a cognição
requer a adição de formas ao intelecto. A natureza do intelecto e do objeto presentes um
ao outro é suficiente para desencadear tal relação. E o objeto inteligível cumpre seu
papel no processo cognitivo não como causa eficiente, mas como causa sine qua non do
ato intelectivo responsável pela formação de um universal correspondente ao particular.
94
3 – A TRADUÇÃO DO COMENTÁRIO ÀS SENTENÇAS DE DURANDUS
As traduções apresentadas neste capítulo da dissertação, respectivamente o In I
Sent [C], d. 3, q. 5 e o In II Sent [C], d. 17, q. 1, foram concebidas com o intuito
estritamente acadêmico de fornecer um material minimamente viável que permita a
acessibilidade e independência de um leitor brasileiro diante desta parte da obra de
Durandus. Apesar de não ter como objetivo apresentar uma tradução definitiva, mas
aberta ao diálogo, a críticas e sugestões, reconheço que as dificuldades desta tarefa são
inúmeras. Durante meu trabalho de pesquisa sobre a teoria da cognição de Durandus,
me debrucei sobre a análise dos textos latinos do autor. O Comentário às Sentenças é
um texto extenso composto por quatro livros e, além disso, durante sua vida Durandus
produziu três versões desta obra: [A], [B] e [C]. A terceira versão [C] do Comentário
ainda não possui uma edição crítica e pode ser encontrada completa em manuscritos,
como é o caso do manuscrito de Lion de 1563 e do manuscrito de Veneza de 1571, este
último cuja transcrição foi publicada em 1964. Ademais, edições críticas de algumas
distinções do Comentário às Sentenças [A/B] estão sendo atualmente produzidas e
disponibilizadas pelo Thomas Institut, como é o caso dos In I Sent [A/B], d. 4-17; In II
Sent [A/B], d. 1-5 e d. 22-44; In IV Sent [A/B], d. 1-7 e d. 43-50. Ainda não existem,
contudo, traduções de distinções ou de questões completas para língua moderna. Pude
encontrar trechos do In Sent de Durandus traduzidos em artigos e livros da fonte
secundária. Apesar de serem trechos específicos selecionados pelos comentadores para
serem analisados com objetivos determinados, eles se mostraram muito úteis para o
acesso e análise do pensamento de Durandus, bem como para a comparação de
interpretações e aperfeiçoamento desta primeira composição de tradução de uma
questão completa que desenvolvi.
A tradução do In I Sent [C], d. 3, q. 5, na qual Durandus nega que o intelecto
agente deve ser afirmado como constituinte da alma humana, se mostrou parte
fundamental do trabalho de exegese e instrumento para a compreensão do raciocínio e,
consequentemente, do modo pelo qual a argumentação é estruturada pelo autor. Sendo
assim, compreendi a importância do acesso à questão integral, não só pelo leitor
especializado, mas também por aquele em formação. Por isso, diponibilizo não só o
trabalho de análise do texto, mas também a tradução que produzi neste período,
acompanhada do original latino encontrado na transcrição de 1964 do manuscrito de
Veneza. Além disso, utilizei as traduções de trechos correspondentes a esta questão que
95
foram produzidas e apresentadas por Sélles em seu artigo intitulado „O intelecto agente
segundo Durandus de St. Pourçain‟ para comparar as soluções e aperfeiçoar minhas
primeiras tentativas de tradução.
Durante o trabalho procurei evitar a pretensão de uma tradução literal que
pudesse incorrer em construções incomuns na língua portuguesa devido ao
comprometimento com a ordem latina do texto. Em muitos momentos Durandus
subentende etapas da argumentação soprepondo uma sequência de „primeiras‟ e
„segundas‟ partes referidas ao longo da explanação e também substitui substantivos por
pronomes demonstrativos como „illud‟. Optei, nestes momentos, por substituir a
tradução literal pela tentativa de uma reconstituição argumentativa sinalizando estes
movimentos para o leitor.
O próprio título da questão não é traduzido de modo literal, preferi „afirmar‟ a
„pôr‟ para traduzir o verbo „ponere‟. Por um lado, seria possível afirmar que o uso de
„ponere‟ é escolhido propositalmente por Durandus com o intuito de denunciar, desde o
anúncio da questão, a impossibilidade do que é alegado. Este verbo, tendo o sentido de
„pôr‟ ou „colocar‟ poderia denotar que o intelecto agente seria algo inventado e estranho
ao processo cognitivo. Por outro lado, poderia simplesmente ter o sentido de „afirmar‟,
indicando que a tese a ser combatida é a afirmação da existência desta função agente da
alma. Esta última opção de tradução também pode evidenciar que Durandus tem como
objetivo debater com outras correntes interpretativas que sustentam afirmações que ele
nega ou que pretende concluir por intermédio de pressupostos teóricos distintos.
O texto segue a estrutura padrão de uma questão, com o problema apresentado,
as opiniões contrárias e a resposta. Nesta última, no entanto, é preciso identificar os
momentos nos quais Durandus considera certas interpretações com o único objetivo de
desqualifica-las em contraposição àqueles em que determina sua própria posição.
Para Durandus o intelecto agente é um redobro desnecessário ao processo de
cognição. Ele compreende que o intelecto agente é afirmado por conta de sua função e,
por isso, Durandus tem por objetivo demonstrar que tal função não poderia ocorrer de
nenhum modo. Se o intelecto agente não cumpre função alguma no processo de
conhecimento, então é denecessário e deve ser negado. Assim, inicialmente Durandus se
propõe a demonstrar que o intelecto agente não é capaz de atuar sobre os fantasmas.
Para tanto, primeiro se dedica à verificação de que o intelecto agente não pode operar
imprimindo nada no fantasma, e, depois, que o intelecto agente não opera abstraindo
dos fantasmas, pois, segundo ele, não poderia abstrair de modo real, nem segundo a
96
razão. Neste ponto, o diálogo com a tradição da teoria abstrativa tomista é evidente.
Para Durandus a abstração é um processo incompreensível que não é capaz de
esclarecer como o intelecto imaterial poderia conhecer o objeto material, por isso,
Durandus abandona tal conceito por completo. Para ele o conhecimento não é
abstrativo, mas sim intuitivo e se o intelecto agente é afirmado pela sua função de
abstrair. Tendo negado a possibilidade de tal função o próprio intelecto agente seria
desnecessário ao processo cognitivo, enquanto o intelecto possível seria suficiente.
Em seguida, Durandus visa demonstrar que o intelecto agente não poderia operar
sobre o intelecto possível. Em primeiro lugar, sustenta que o intelecto agente não é
capaz de operar sozinho sobre o intelecto possível, pois, se assim o fizesse, todo ato de
conhecimento se resumiria a uma operação reflexiva. Em segundo lugar, nega que o
intelecto agente e os fantasmas possam produzir uma ação conjunta sobre o intelecto
possível. Para ele, o intelecto agente não deve ser afirmado como um mediador para a
cognição, assim como não é necessário afirmar um sentido agente que opere
informando um sentido passivo. É possível identifica um diálogo com Scotus223
quando
Durandus determina que a presença do objeto cognoscível ao poder cognitivo é
suficiente para que a cognição se dê. Ao final, Durandus pretende demonstrar que
qualquer função atribuída ao intelecto agente é atribuída erroneamente, pois este não
pode operar sobre os fantasmas nem imprimindo, nem abstraindo e também não pode
operar sobre o intelecto possível nem sozinho, nem com o auxílio dos fantasmas.
Diferentemente de Scotus224
, que propõe uma distinção formal entre intelecto agente e
intelecto possível, Durandus propõe uma completa negação do intelecto agente e de
suas possíveis funções cognitivas.
223
GUERIZOLI, 2013, p. 127-140 224
GUERIZOLI, 2010, p. 95-111; GUERIZOLI, 2004;
97
3.1 – TRADUÇÃO DO IN I SENT [C], D. 3, Q. 5225
Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo: Livro I, distinção 3,
questão 5 [C]
Questio quinta
Vtrum ponendus sit intellectus agens in anima
Se um intelecto agente deve ser afirmado na alma
[1] Ad tertium sic proceditur. Et uidetur
quod necessarium sit ponere intellectum
agentem partem anime nostre, quia
operatio arguit formam secundum
COMMENTATOREM; set nos
experimur nos abstrahere formas
uniuersales, quod est opus intellectus
agentis; ergo in nobis est intellectus
agens.
[1] Quanto ao terceiro assim se
procede: parece que é necessário
afirmar um intelecto agente como parte
da nossa alma porque, segundo o
Comentador, a operação revela a forma.
Mas percebemos que abstraímos formas
universais, pois [esta] é operação do
intelecto agente. Logo, há em nós um
intelecto agente.
[2] Item obiectum preexistit actui
potentie cuius est obiectum; set
uniuersale est obiectum intellectus
possibilis; ergo preexistit actioni
intellectus possibilis; set non poterit
preexistere nisi fiat per operationem
alicuius potentie anime, quia res de se
non est uniuersalis; nulli autem potentie
attribuitur quod faciat uniuersalitatem
[2] Ademais, o objeto preexiste ao ato
da potência da qual é objeto. Mas, o
universal é objeto do intelecto possível.
Logo, [o universal] preexiste à ação do
intelecto possível. Mas não poderá
preexistir senão for feito pela operação
de alguma potência da alma, visto que a
coisa não é, por si, um universal.
Entretanto, a nenhuma potência é
225
Esta tradução se beneficou imensamente das discussões nos seminários do Grupo de Pesquisa
Metafísica e Política, grupo certificado pela Unicamp e credenciado pelo CNPq. Agradeço as críticas
e contribuições dos integrantes do grupo e, em especial, ao coordenador Prof. Dr. Márcio Augusto
Damin Custódio. Além disso, devo agradecer os membros da banca de qualificação Prof. Dr. Tadeu
Mazola Verza, Prof. Dr. José Antônio Martins e Prof. Dra. Fátima Regina Évora que apresentaram
valiosas contribuições para a primeira versão desta tradução.
98
in rebus, nisi intellectui agenti, cui
COMMENTATOR attribuit hanc
operationem supra proemio De anima.
atribuída que faça universalidade na
coisa, senão do intelecto agente, ao qual
o Comentador atribui esta operação no
proêmio ao De Anima.
[3] In contrarium arguitur quia si
oporteret ponere intellectum agentem,
hoc esset uel ut esset principium
passiuum et receptiuum actus
intelligendi, uel ut esset principium
actiuum; propter primum non oportet,
quia ad illud ordinatur intellectus
possibilis, nec propter secundum, quia
intelligere est operatio manens in
agente, ut patet ex IX Methaphisice;
ergo non est aliud actiuum a receptiuo,
quia intellectus possibilis sufficit et
omnis alius intellectus superfluit.
[3] Argumenta-se em sentido contrário,
visto que, se fosse próprio afirmar um
intelecto agente, este seria ou como se
fosse um princípio passivo e receptivo
ao ato de inteligir, ou como se fosse um
princípio ativo. Não convém dizer do
primeiro, visto que o intelecto possível
é ordenado pelo intelecto agente. Nem é
próprio dizer do segundo, visto que o
inteligir é uma operação que permanece
no agente, como expõe em Metafísica
IX. Logo, este não é ativo nem
receptivo. Isto porque o intelecto
possível é suficiente e qualquer outro
seria supérfluo.
[4] Responsio. Quia potentie
innotescunt per actus, operatio etiam
fecit scire formam, ut assumptum est in
arguendo, ideo si necessarium est
ponere intellectum agentem, hoc erit
propter aliquam operationem eius
necessariam ad actum intelligendi;
operatio autem intellectus agentis non
potest intelligi nisi in fantasmata uel
nisi in intellectum possibilem, set nec in
fantasmata nec in intellectum
possibilem habet aliquam actionem, ut
declarabitur; ergo fictitium est ponere
intellectum agentem.
[4] Respondo. Visto que as potências
são conhecidas pelos atos, a operação
também faz conhecer a forma, como foi
assumido na argumentação. Do mesmo
modo, se é necessário afirmar um
intelecto agente, este será por aquela
operação que é necessária ao ato de
inteligir. Entretanto, a operação do
intelecto agente não pode inteligir
senão nos fantasmas ou senão no
intelecto possível. Mas nem nos
fantasmas nem no intelecto possível [o
intelecto agente] perfaz alguma ação,
como será declarado. Logo, é falso
99
afirmar um intelecto agente.
[5] Assumptum probatur quantum ad
utranque partem. Et primo quod non
agat in fantasmata, quia si intellectus
ageret in fantasmata, hoc esset uel
aliquid imprimendo uel aliquid
abstrahendo; set intellectus agens nec
imprimit aliquid in fantasmata nec
aliquid abstrahit ab eis; ergo nullo
modo agit in fantasmata. Minor
probatur secundum duas partes quas
habet. Et primo quantum ad primam
partem, scilicet quod non agat in
fantasmata eis aliquid imprimendo,
probo sic: omnis uirtus que recipitur in
corpore et nec ipsa nec eadem
secundum speciem potest esse nisi in
corpore, est mere corporea, non
obstante quod ipsa sit effectiue a spiritu
creato uel increato; set quecunque
uirtus impressa fantasmatibus ab
intellectu agente est in corpore, ut de se
patet, et ipsa nec eadem secundum
speciem potest esse nisi in corpore, quia
in corpore et spiritu nulla est communis
proprietas recipiendi aliquid unum et
uniuocum; ergo illa uirtus, si qua esset,
mere est corporea; set per talem
uirtutem non potest mouere fantasia
intellectum possibilem cum sit pure
corporea ea ratione qua non potest
secundum se; ergo talis uirtus frustra
ponitur cum tota ratio ponendi ipsam sit
[5] O assumido é provado segundo suas
duas partes. Primeiro, que não age nos
fantasmas, visto que se o intelecto
agisse nos fantasmas, este o faria ou
imprimindo algo ou abstraindo algo.
Mas o intelecto agente nem imprime
algo nos fantasmas, nem abstrai algo
deles. Logo, de nenhum modo age nos
fantasmas. A proposição menor é
provada segundo as duas partes que
possui. Quanto à primeira parte,
manifestamente não age nos fantasmas
imprimindo-lhes algo, provo da
seguinte maneira: Toda virtude que é
recebida no corpo, nem por si, nem
segundo espécie pode ser senão no
corpo, é completamente corpórea, não
obstante ela seja efetivamente um
espírito criado ou incriado. Ademais,
qualquer virtude impressa nos
fantasmas pelo intelecto agente é no
corpo, como é evidente. E ela, nem por
si mesma, nem segundo espécie, pode
ser senão no corpo, visto que no corpo e
no espírito não há nenhuma propriedade
comum de maneira una e unívoca.
Logo, esta virtude, se assim fosse, seria
meramente corpórea. Mas, por tal
virtude a imaginação não pode mover o
intelecto possível, ser puramente
corpórea é a razão pela qual não pode
movê-lo por si. Logo, tal virtude refuta
100
ut ipsa sit fantasmatibus ratio mouendi
intellectum possibilem. Maior patet,
quia de re est iudicandum potius quod
sit corporea uel incorporea, ex hoc quod
natura rei requirit quam ex agente
extrinseco, idest equiuoco, a quo
quandoque potest produci tam
corporeum quam incorporeum. Minor
declarata est; quare etc.
o afirmado de que, seja por si, seja por
meio de fantasmas, a razão mova o
intelecto possível. A proposição maior é
exposta, visto que da coisa é julgado ser
possível que seja corpórea ou
incorpórea. Isto porque a natureza da
coisa requer do agente extrínseco o
mesmo equívoco, o qual enfim pode ser
feito tanto corpóreo quanto incorpóreo.
Tendo declarado a menor por causa
disso.
[6] Secundo, quia si angelus non potest
in materia corporali imprimere formam
immediate, uideretur quod multo minus
hoc posset intellectus agens; fantasma
autem est quid corporeum; ergo
intellectus agens nullam formam potest
fantasmatibus imprimere. Et sic patet
primum membrum minoris
propositionis, scilicet quod intellectus
agens non agit in fantasmata aliquid
imprimendo.
[6] Segundo, visto que se o anjo não
pode imprimir a forma imediata na
matéria corporal, é evidente que muito
menos que isto pode o intelecto agente.
O fantasma é, porém, um algo
corpóreo, logo, o intelecto agente não
pode imprimir nenhuma forma nos
fantasmas. Assim se prova o primeiro
membro da menor proposição,
manifestamente que o intelecto agente
não age no fantasma imprimindo algo.
[7] Secunda pars probatur, scilicet quod
intellectus agens non agit in fantasmata
aliquid abstrahendo uel remouendo,
quia illa abstractio uel esset realis uel
secundum rationem; non realis, quia
talis realis abstractio uel esset realiter
separatio alicuius preexistentis actu in
fantasmatibus, sicut abstrahitur uel
separatur lapis ab altero lapide, uel sicut
separatur accidens a subiecto per
corruptionem accidentis, uel alio modo
[7] A segunda parte é provada,
manifestamente que o intelecto agente
não age em fantasmas abstraindo ou
removendo-lhes algo, visto que esta
abstração seria ou real ou segundo a
razão. Não é real visto que tal abstração
real ou seria uma separação daquilo que
preexiste ao ato nos fantasmas, como
abstraída ou separada uma pedra de um
rochedo, ou como separado o acidente
do substrato pela corrupção do acidente.
101
uirtute diuina, uel talis abstractio
uocatur eductio alicuius de potentia ad
actum, sicut forma dicitur educi uel
abstrahi de potentia subiecti. Primum
non potest dici, quia nichil est actu in
fantasmatibus quod desinat in eis esse
ad presentiam intellectus agentis, neque
per corruptionem neque per
translationem ad intellectum possibilem
tanquam prius esset in fantasmatibus et
postea in intellectu possibili, quia forma
non migrat de subiecto in subiectum;
nec secundum potest dici, quia cum
aliqua forma educitur de potentia in
actum, ipsa educta est in illo tanquam in
subiecto de cuius potentia educitur. Si
ergo intellectus agens de potentia
passiua fantasmatum educeret aliqua
formam, siue esset species intelligibilis
siue quecunque alia forma, ipsa educta
esset in fantasmatibus sicut in subiecto,
et ita intellectus agens ageret in
fantasmata aliquid imprimendo, scilicet
formam quam educeret; et rediret
primum membrum immediate prius
reprobatum. Talis ergo abstractio non
potest esse realis.
Ou ao modo da virtude divina. Ou
segundo a tal abstração que retira da
potência para o ato como a forma dita
que retira ou abstrai da potência do
substrato. O primeiro não se pode dizer,
visto que não há nenhum ato nos
fantasmas que indique neles seu ser
para a presença do intelecto agente.
Nem pela corrupção, nem pela
translação para o intelecto possível
como se fosse anterior nos fantasmas e
posterior no intelecto possível, visto
que a forma não migra de substrato em
substrato. Também não se pode dizer
do segundo, visto que se uma forma for
retirada da potência ao ato, ela própria
seria retirada nela como se no substrato
do qual a potência é retirada. Portanto,
se o intelecto agente retirasse alguma
forma de potência passiva do fantasma,
fossem espécies inteligíveis ou qualquer
outra forma, a própria forma estaria nos
fantasmas como em um substrato.
Assim, o intelecto agente agiria nos
fantasmas imprimindo algo, certamente
a forma que retirara, retornando ao
primeiro membro imediato anterior ao
reprovado. Logo, tal abstração não pode
ser real.
[8] Item nec talis abstractio potest esse
secundum rationem solum, quia omnis
actio rationis est cognoscentis circa
cognitum obiectiue intellectus; set
[8] Tal abstração também não pode ser
meramente segundo a razão, porque
todo ato da razão é cognitivo sobre o
qual o intelecto conhece objetivamente.
102
agens non agit circa fantasmata sicut
cognoscens circa cognita, quia nec
intellectus agens fantasmata cognoscit
nec sua actio est cognitio, imo
presupponitur omni cognitioni
intellectuali secundum ponentes ipsam;
ergo sua actio circa fantasmata non est
abstractio secundum rationem. Nullo
ergo modo agit in ea, nec aliquid
imprimendo nec aliquid abstrahendo,
neque secundum rem neque secundum
rationem.
Mas o agente não age sobre o fantasma
como o cognoscente sobre o conhecido,
visto que nem o intelecto agente
conheceu os fantasmas, nem sua ação é
o conhecimento. Assim, se toda
cognição intelectual é pressuposta
segundo seu próprio poder, sua ação
sobre os fantasmas não é abstração
segundo a razão. Logo, não age de
nenhum modo neles, nem imprimindo
algo, nem abstraindo algo, nem
realmente, nem logicamente.
[9] Item ad quid fieret talis abstractio?
Non ut representaretur quidditas
intellectui absque conditionibus
indiuiduantibus, quod dicunt ponentes
intellectum agentem agere circa
fantasmata abstrahendo.
[9] Então, com qual propósito tal
abstração é feita? Não como se a
quididade do intelecto fosse
representada sem as condições
individuantes. Porque os que dizem que
se deve pôr um intelecto agente dizem
que ele age sobre os fantasmas
abstraindo.
[10] Dicunt enim quod illud facit
intellectus agens circa quidditatem et
fantasmata separando et abstrahendo ea
secundum rationem quod dicebat
PLATO fieri circa ideas secundum rem.
Et ideo sicut idee separate secundum
rem ab indiuiduis materialibus essent
secundum se intelligibiles, ut ponebat
PLATO, sic quidditas <separata>
secundum rationem a fantasmatibus et
conditionibus indiuiduantibus efficitur
secundum se intelligibilis, ut ISTI
dicunt.
[10] Dizem, pois, que o intelecto agente
age sobre a quididade e os fantasmas
separando e abstraindo segundo a razão,
pois Platão dizia que as ideias são feitas
segundo a coisa. E, por esta razão, se a
ideia da coisa separada das condições
materiais e individuais fosse, segundo
si, inteligível, como Platão afirmava,
assim a quididade [separada], segundo a
razão, dos fantasmas e das condições
individuais também seria, segundo si,
inteligível, como alguns dizem.
103
[11] Set istud nichil ualet, primo quia
nullo modo ostendunt quomodo
intellectus agens separaret secundum
rationem quidditatem a conditionibus
indiuiduantibus sub quibus
representatur in fantasmatibus. Et ideo
si illa facilitate qua hoc dicunt potest
etiam negari, maxime cum probatum sit
quod talis abstractio non potest fieri per
intelletum agentem cum actio eius circa
quidditatem et fantasmata non sit
intellectio.
[11] Entretanto, nada disso é válido.
Primeiro porque não apresentam de que
modo o intelecto agente separaria,
segundo a razão, a quididade das
condições individuantes sob o que é
representado nos fantasmas. E com a
mesma facilidade com a qual eles
dizem estas coisas, também pode-se
negar, especialmente quando é provado
que tal abstração não pode ser feita pelo
intelecto agente, e que uma ação sobre a
quididade e os fantasmas não seja feita
pelo intelecto.
[12] Quod etiam patet secundo ex alio,
quia stante reali impedimento alicuius
actionis impossibile est sequi actionem,
ut patet in trabe impediente descensum
lapidis et | tenebris impedientibus
uisum (quandiu enim trabs manet sub
lapide et tenebre sunt in medio, nec
lapis potest descendere nec oculus
uidere); set illud quod impedit
representationem quidditatis
uniuersaliter est materialis et
indiuidualis conditio fantasmatum, ut
IPSIMET dicunt. Cum ergo illud
nunquam amoueatur a fantasmatatibus
per quamcunque actionem intellectus
agentis, nec per illam abstractionem
rationis quam ponunt, sequitur quod
fantasmata per talem abstractionem
nunquam poterunt representare
quidditatem uniuersalem, set semper
[12] Porque também é exposto sobre o
segundo que, havendo um real
impedimento à ação de algo, é
impossível que tal ação tenha
prosseguido. Como quando uma viga
impede a descida da pedra e o escuro
impede a visão (pois enquanto a viga
permanece sob a pedra e a escuridão
prevalece, nem a pedra pode descer,
nem os olhos podem ver). Mas aquilo
que impede a representação da
quididade universal é a condição
material e individual do fantasma,
segundo alguns. Logo, o intelecto
agente nunca poderia ser movido pela
ação dos fantasmas, nem pela abstração
segundo a razão, como afirmam. Isto
porque, por tal abstração, os fantasmas
nunca poderiam representar a quididade
universal, mas sempre sob as condições
104
sub conditionibus singularibus. Aliter
autem non representaretur quidditas
intellectui nisi per fantasmata secundum
ISTOS, quia non ponunt quod a
fantasmatibus abstrahatur aliqua species
que sit representatiua quidditatis. Ergo
talis abstractio non sufficit ad
representandum quidditatem
uniuersalem.
singulares. Mas, de outro modo, a
quididade do intelecto não é
representada senão pelos fantasmas,
segundo a opinião destes, visto quenão
afirmam que as espécies abstraídas
pelos fantasmas sejam representações
da quididade. Logo, tal abstração não
basta para a representação da quididade
universal.
[13] Tertio, quia consequentia quam
faciunt nulla est. Non enim sequitur:
"separatio realis quam ponebat Plato
sufficiebat secundum ipsum ad
fingendum ideas per se intelligibiles;
ergo separatio rationis quam tu ponis
sufficit ad faciendum quidditatem per
se intelligibilem", sicut non sequitur:
"realis amotio trabis sufficit ad hoc ut
lapis descendat; ergo amotio eius
secundum rationem sufficit ad illud
idem". Sic ergo patet quod intellectus
agens non agit in fantasmata aliquid
imprimindo nec aliquid abstrahendo,
ergo nullo modo.
[13] Terceiro, visto que a consequência
é nula. Pois não se segue que “uma
separação real, como afirmava Platão,
satisfaça, segundo si, falsas ideias por si
inteligíveis. Logo, a separação da razão
que tu afirmas é suficiente para fazer a
quididade por si inteligível”. Como não
se segue que “uma real movimentação
de uma viga faça com que uma pedra
caia. Logo, essa movimentação segundo
a razão satisfaz aqueles propósitos
igualmente”. Assim, portanto, expõe
que o intelecto agente não age nos
fantasmas nem imprimindo algo, nem
abstraindo algo, de nenhum modo.
[14] Set diceret ALIQUIS quod hec
diuisio sit insufficiens, quia intellectus
agens agit in fantasmata dando eis
uirtutem mouendi intellectum
possibilem, non quidem aliquid
imprimendo nec abstrahendo, set solum
assistendo; et ponitur simile, quia
lumen dat colori uirtutem mouendi
uisum et tamen nichil imprimit colori
[14] [Certo] alguém diria, entretanto,
que esta divisão seria insuficiente, isto
porque o intelecto agente age nos
fantasmas dando a eles a virtude de
mover o intelecto possível, certamente
sem que imprimissem ou abstraíssem
algo dele, mas apenas assistindo. E é
afirmado de [modo] similar que a luz dá
à cor a virtude de mover a visão e,
105
nec a colore aliquid abstrahit, set
tantum assistit; et eodem modo potest
esse circa intellectum agentem et
fantasmata, ut uidetur.
entretanto, não imprime nada na cor,
nem abstrai nada da cor mas apenas
assiste e do mesmo modo pode ser dito
do intelecto agente e dos fantasmas,
como parece.
[15] Istud autem est mirabile quod
aliquid det alteri uirtutem et tamen non
influat nec impedimentum tollat, set
solum assistat; hoc enim uidetur
implicare contradictionem, scilicet quod
det uirtutem nichil dando. Set et
exemplum procedit ex ignorantia;
lumen enim non requiritur ad uidendum
propter colorem ut det ei uirtutem
mouendi uisum, cum color ex se habeat
uirtutem, set propter medium et
organum, que non sunt susceptiua
actionis coloris nisi sint illuminata uel
ex alia causa. Et ideo non est mirum si
ex falso assumpto conclusum est aliud
falsum. Non ergo oportet ponere
intellectum agentem ex actione eius
circa fantasmata, quia nulla est, ut
probatum est. Et hec est prima pars
principais deductionis.
[15] Porém, seria miraculoso que algo
desse a outro algo uma virtude e,
entretanto, não influísse nem removesse
um impedimento, mas apenas assistisse.
O ato de dar uma virtude não dando
nada certamente parece implicar em
uma contradição. Mas este exemplo
parece proceder da ignorância, pois à
luz não é requerido visão já que a cor
dá [à luz] a virtude de mover a visão,
uma vez que a cor possui esta virtude,
mas o meio e o órgão não, então não
receberiam as ações da cor senão
fossem iluminados ou por outra causa.
E igualmente não é miraculoso, mas é
falso assumir esta conclusão falsa.
Logo, não é próprio afirmar que o
intelecto agente realize uma ação sobre
os fantasmas, visto que não há nenhuma
ação deste tipo que se possa provar. E
esta é a primeira parte da dedução
principal.
[16] Secunda pars principalis, uidelicet
quod non sit necesse ponere intellectum
agentem propter aliquam actionem eius
in intellectum possibilem, patet sic:
actio eius in intellectum possibilem non
potest intelligi nisi duobus modis,
[16] A segunda parte principal expõe
que claramente não é necessário afirmar
que o intelecto agente perfaça alguma
ação no intelecto possível, da seguinte
maneira: uma ação sobre o intelecto
possível não poderia inteligir senão de
106
primo sic quod intellectus agens solus
agat in possibilem, fantasma autem
nichil agat nec coagat, set solum se
habeat obiectiue; secundo sic quod tam
intellectus agens quam fantasma agant
in intellectum possibilem tanquam duo
imperfecta agentia supplentia uicem
unius perfecti agentis eodem modo quo
duo homines trahunt nauem quórum
neuter per se sufficeret.
dois modos. Pelo primeiro o intelecto
agente age sozinho sobre o possível. O
fantasma, porém, não age nem
conjuntamente. Pelo segundo, tanto o
intelecto agente quanto o fantasma
agem no intelecto possível, como dois
agentes imperfeitos suprem as vezes de
um agente perfeito. Do mesmo modo
que dois homens puxam um barco, algo
que nenhum deles, por si, seria
suficiente [para fazer].
[17] Primum non potest dici, scilicet
quod solus intellectus agens agat in
possibilem et fantasmata nichil omnino
agant, set solum se habeant obiectiue
uel terminatiue, quia si ad cognitionem
non requiritur quod obiectiuum uel
representans ipsum aliquid agat in
potentia, set solum quod ei
representetur, cum sensus sufficiat ad
apprehendendum obiectum sibi
propositum sine alio mouente, non
uideo quare intellectus non sufficiat ad
illud idem absque hoc quod preter
obiectum sibi propositum ponatur
intellectus agens mouens ipsum, nisi
redeatur ad illud quod fantasmata non
sufficienter representant obiectum
intellectui possibili nisi per actionem
intellectus agentis circa ipsum. Set de
hoc non agitur nunc, quia actum est
supra, set solum nunc queritur de
operatione intellectus agentis in
[17] O primeiro não se pode dizer,
manifestamente que o intelecto agente
age no possível e os fantasmas nada
fazem, mas somente se tivessem um
objetivo ou determinação. Visto que, se
para a cognição não se requer que o
objeto ou as próprias representações
façam algo na potência, mas apenas que
o objeto representado satisfaça o
sentido, apreendendo o objeto ao seu
propósito sem outro movente. Não vejo
porque o intelecto não satisfaria aquele
[a apreensão do objeto] mesmo sem
este [outro movente]. Pois seria próprio
do objeto ter o propósito de mover o
intelecto agente por si, a não ser que
tenhamos retornado aquele [argumento
de] que os fantasmas não satisfazem [ao
propósito de] representar o objeto ao
intelecto possível a não ser pela ação do
intelecto agente sobre eles mesmos.
Mas este não é o caso. Visto que o ato é
107
possibilem, an sit necessaria ad actum
intelligendi supposita presentia obiecti.
Et patet quod non, sicut ad sentiendum
non requiritur aliud agens, set tantum
presentia obiecti.
supra, mas somente agora é declarada a
operação do intelecto agente no
possível ou se é necessário ao ato
inteligente pressupor a presença de um
objeto. E é claro que não, ao sentido
não é requerido outro agente, mas
apenas a presença do objeto.
[18] Item idem manens idem et respectu
eiusdem semper natum est facere idem,
potissime si agat ex necessitate | nature,
ut patet ex II De generatione; set
intellectus agens agit ex necessitate
nature et manet semper idem secundum
se et in habitudine ad possibilem,
quantumcunque fantasma, quod est
obiectum intellectus, uarietur; ergo ab
initio creationis anime semper fecit
idem in intellectu possibili non obstante
diuersitate fantasmatum que ei
obiiciuntur, quia illa non agunt nec
coagunt secundum hanc opinionem.
Igitur per unum intelligere numero
causatum ab intellectu agente intellexit
intellectus ab initio et semper intelliget
omnia sibi representata, quod est
inconueniens.
[18] Ademais, aquilo que,
permanecendo igual sempre faz o
mesmo a respeito do mesmo, é
habilíssimo se age por necessidade
natural, como expõe em De
Generatione II. Mas o intelecto agente
age por necessidade natural e
permanece sempre igual, segundo si, e
em conformidade ao possível, por mais
variados que sejam os fantasmas que
são objetos do intelecto. Pois, no início
da criação, a alma sempre fez o mesmo
no intelecto possível, não obstante haja
uma diversidade de fantasmas, como
exposto por ele, visto que eles não
agem [por si] nem conjuntamente,
segundo tal opinião. Portanto, ao
inteligir um número causado pelo
intelecto agente, o intelecto [possível]
intelige desde o início e sempre todas as
coisas que lhe são representadas, o que
é incongruente.
[19] Item illud quod semper preexigitur
ad effectum est causa eius propinqua
uel remota; set fantasma preexigitur
semper intellectioni; ergo est causa eius
[19] Ademais, aquilo que sempre é
exigido para o efeito é sua causa
próxima ou remota. Mas o fantasma
sempre é exigido para a intelecção.
108
propinqua uel remota. Patet ergo quod
primus modus non est possibilis,
scilicet quod intellectus agens agat in
intellectum possibilem fantasmate
nichil coagente.
Logo, ele é sua causa próxima ou
remota. Portanto é exposto que o
primeiro modo não é possível,
manifestamente que o intelecto agente
age no intelecto possível e o fantasma
não age conjuntamente.
[20] Et ideo QUIDAM ponunt
secundum modum, scilicet quod tam
intellectus agens quam fantasmata
agunt in intellectum possibilem
tanquam duo imperfecta agentia
supplentia uicem unius perfecti agentis.
Ad cuius declarationem dicunt quod
duo agentia possunt tripliciter
concurrere ad aliquid faciendum: primo
quando unum influit in alterum et illud
alterum agit per illud quod est sibi
influxum, sicut sol illuminat lunam et
luna per lumen receptum a sole
illuminat aerem;
[20] E, igualmente, alguns afirmam o
segundo modo, manifestamente que
tanto o intelecto agente quanto os
fantasmas, agem no intelecto possível
como dois agentes imperfeitos suprem
as vezes de um agente perfeito. Diante
de tal declaração, dizem que duas ações
podem concorrer de triplo modo:
primeiro quando um influi no outro e o
último age pelo primeiro que é o seu
influxo, assim como o sol ilumina a lua
e a lua, com a luz recebida do sol,
ilumina o ar.
[21] secundo modo quando unum nichil
influit in alterum nec econuerso, set
unum causat dispositionem et reliquum
formam principalem, sicut mollificans
ceram disponit materiam et imprimens
sigillum uel ipsum sigillum impressum
introducit principalem formam, scilicet
figuram, et sic concurrunt hec duo ad
figurandum ceram; tertio modo quando
nec unum influit in alterum nec unum
causat dispositionem et reliquum
formam, set sicut duo imperfecta
agentia quorum quodlibet habet de se
[21] O segundo modo é quando um não
influi no outro nem o inverso, mas um
causa a disposição e resta a forma
principal. Assim como o que modela a
cera dispõe da matéria e o que imprime
um selo, ou o próprio signo impresso
introduz a forma principal,
manifestamente a figura. E assim
concorrem estes dois à formação da
figura na cera. O terceiro modo é
quando um não influi no outro, nem o
outro causa uma disposição e resta a
forma, mas assim como dois agentes
109
uirtutem agendi, set imperfectam,
iuncta autem simul supplent uicem
unius perfecti agentis, sicut est de
duobus trahentibus nauem quorum
neuter per se sufficeret. Et isto modo
concurrunt intellectus agens et
fantasmata ad causandum in intellectu
possibili unam speciem numero uel
unum actum intelligendi, quia nec
intellectus influit aliquid fantasmati nec
econuerso circa primum modum nec
unum causat dispositionem et reliquum
formam principalem circa secundum
modum, set utrunque habet de se
uirtutem mouendi intellectum
possibilem, quodlibet tamen habet per
se imperfectam, ambo autem simul
equipollent uni perfecto agenti. Quod
enim intellectus agens habeat de se
uirtutem mouendi possibilem, omnes
concedunt; de fantasmate autem quod
similiter se habeat, patet per illud quod
dicit PHILOSOPHUS III De anima,
quod sicut se habent colores ad uisum,
sic fantasmata ad intellectum, quod non
esset nisi fantasmata de se haberent
aliquam uirtutem mouendi intellectum,
saltem imperfectam.
imperfeitos que tem em si a virtude de
agir, ainda que imperfeita, quando
juntos suprem as vezes de um agente
perfeito, assim como dois trazem um
navio o que nenhum conseguiria por si.
E, deste modo, concorrem o intelecto
agente e os fantasmas quando causam
no intelecto possível uma espécie de um
número ou um ato inteligente. Visto
que, nem o intelecto influi naquele
fantasma, nem o inverso, o que
corresponderia ao primeiro modo.
Sobre o segundo modo, um não causa
disposição e resta a forma principal,
mas ambos têm em si a virtude de
mover o intelecto possível. Apesar de
serem imperfeitos por si, ambos,
quando juntos, equivalem a um agente
perfeito. Isto porque o intelecto agente
tem por si a virtude de mover o
possível, o que todos concebem.
Quanto ao fantasma, que opera de
modo similar, fica claro pelo que diz o
Filósofo em De Anima III. Visto que,
como existem cores para a visão, assim
existem fantasmas para o intelecto. Se
assim não fosse os fantasmas não
teriam por si a virtude, de todo modo
imperfeita, de mover o intelecto.
[22] Hec autem non uidentur bene
dicta: primo, quia nichil probatur, set
assumitur illud quod queritur;
supponitur enim in hac responsione
[22] No entanto, não parece ser bem
como foi dito: primeiro porque nada foi
provado, mas apenas foi assumido isto
que foi reclamado; pois foi suposto
110
quod sit dare intellectum agentem qui in
se habeat uirtutem mouendi intellectum
possibilem, nos autem hoc querimus,
utrum uidelicet ex aliqua operatione
possit conuinci intellectum agentem
esse partem anime nostre.
nesta resposta que o intelecto agente
tenha em si a virtude de mover o
intelecto possível. Nós, porém, nos
queixamos disso, se claramente por esta
operação podemos refutar que o
intelecto agente faça parte da nossa
alma.
[23] Secundo, quia per omnem modum
et omnem rationem quibus ISTI ponunt
intellectum agentem esse et una cum
fantasmate agere in intellectum
possibilem potest poni quod sit dare
sensum agentem qui una cum obiecto
sensibili agat in sensum passiuum, quod
non ponitur communiter; ergo nec illud
debet poni. Quod autem eadem sit ratio
utrobique, patet sic: quod sola
fantasmata sine intellectu agente non
sufficiant ad mouendum intellectum
possibilem ad actum intelligendi, hoc
est uel propter excessum perfectionis
actus intelligendi respectu
fantasmatum; uel quia fantasmata, cum
sint corporalia, non possunt secundum
se agere in intellectum, qui est potentia
pure spiritualis; uel quia secundum se
non possunt representare uniuersale,
quod primo apprehenditur ab intellectu.
Si primum detur, eadem ratio est de
sensibili respectu sensus, quia sicut
intelligere est quedam forma altioris
gradus quam sit | quodcunque fantasma,
sic sentire est altioris gradus quam sit
[23] Segundo, visto que por todos os
modos e razões pelos quais estes
afirmam a existência de um intelecto
agente e uma ação com o fantasma no
intelecto possível pode significar
atribuir um sentido agente que com o
objeto sensível faz um sentido passivo,
o que comumente não se aceita.
Portanto, nem isto [existência do
intelecto agente] deve ser afirmado.
Porque é correto dizer destas duas
afirmações, exponho assim: porque
somente os fantasmas sem o intelecto
agente não são suficientes para mover o
intelecto possível ao ato de inteligir.
Assim o é, ou por causa da perfeição
excessiva do ato de inteligir em relação
ao fantasma, ou visto que os fantasmas,
como são corpóreos, não podem agir
por si no intelecto que é pura potência
espiritual. Ou visto que não podem
representar por si o universal, porque
ele é apreendido primeiro pelo
intelecto. Se o primeiro é dado, [o ato
inteligente ser mais perfeito que o
fantasma], a mesma razão é no que diz
111
quecunque qualitas sensibilis; propter
quod similis necessitas est quod preter
fantasmata requiratur aliud ad
mouendum intellectum possibilem, et
quod preter qualitatem sensibilem
requiratur aliud ad mouendum sensum
ad actum sentiendi, et si illud aliud sit
ibi intellectus agens, pari ratione et hic
sensus agens.
respeito ao sentido sensível [ser mais
perfeito do que a qualidade sensível].
Visto que, se o inteligir fosse uma certa
forma de sustentação de algo, qual seja,
o fantasma, do mesmo modo o sentir
seria a sustentação de algo, qual seja a
qualidade sensível, por causa da
necessidade de similitude e porque
além dos fantasmas seja requerido
aquilo [o intelecto agente] com o
propósito de mover o intelecto possível.
E, além da qualidade sensível, é
requerido aquilo [o sentido agente] com
o propósito de mover o sentido ao ato
sensível. E se aquele [o fantasma] seja
no intelecto agente por igual razão este
[qualidade sensível] requer sentido
agente.
[24] Secundum autem non possunt IPSI
dicere, quia opponunt quod fantasma
agit in intellectum possibilem, non per
uirtutem receptam ab intellectu agente,
set per propriam uirtutem, quamuis
imperfectam, et idem dicunt de
intellectu agente.
[24] O segundo, porém, ESTES não
podem dizer, visto que, supondo que o
fantasma aja no intelecto possível, não
por causa da virtude recebida do
intelecto agente, mas pela virtude
própria, esta seria muito imperfeita, e o
mesmo dizem do intelecto agente.
[25] Nec tertia potest dici, quia
fantasmata secundum se non
representant nisi singularia; nec
secundum hanc opinionem intellectus
agens aliquid influit fantasmatibus nec
aliquid aufert ab eis, set solum
coassistit; ergo fantasmata ratione
intellectus agentis non plus representant
[25] Nem a terceira se pode dizer, visto
que os fantasmas não representam, por
si, nada singular. Nem segundo esta
opinião o intelecto agente influi nos
fantasmas, nem retira algo destes, mas
somente „co-assiste‟. Logo, os
fantasmas não representariam
universais à razão do intelecto agente,
112
uniuersale quam sine eo, nisi ipsemet
intellectus agens ipsum representaret,
quod nullus dicit. Illud autem quod
innuitur, uidelicet quod primum
intellectum a nobis est uniuersale, siue
sit uerum siue falsum, contradicit
cuidam dicto ISTORUM; dicunt enim
alibi quod conceptus uniuersalis
sumitur ex hoc quod intellectus noster
apprehendit conformitatem unius
singularis ad alterum, et sic secundum
EOS prius concipiuntur singularia et
conformitas eorum adinuicem quam
habeatur conceptus uniuersalis; non
ergo concipitur primo uniuersale.
senão o que o próprio intelecto agente
ele mesmo representaria, o que não se
diz. Entretanto, aquele que foi
conhecido primeiro, claramente o
universal no nosso intelecto, se é
verdadeiro ou falso, contradiz o que foi
dito por um certo alguém. Dizem, pois,
em outro lugar que é assumido que o
nosso intelecto apreende o conceito
universal, em conformidade com um
singular a outro, e se, segundo eles,
primeiro recebidos singulares e em
conformidade a eles podem possuir
conceitos universais. Portanto, não
recebe primeiro o universal.
[26] Patet ergo ex precedentibus, quod
sicut non ponitur sensos agens qui cum
obiecto causet actum sentiendi, sic non
oportet ponere intellectum agentem ad
hoc ut cum fantasmate moueat
intellectum possibilem ad actum
intelligendi tanquam duo imperfecta
agentia supplentia uicem unius perfecti
agentis. Cum ergo intellectus agens non
agat in fantasmata aliquid imprimendo
uel aliquid abstrahendo, neque
secundum rem neque secundum
rationem, nec agat in intellectum
possibilem, nec sine fantasmate nec
cum fantasmate, ut deductum est,
uidetur quod non debeat ipsum ponere,
nec AUGUSTINUS, magnus
philosophus, unquam posuit ipsum, ut
[26] Portanto, do precedente é patente
que, como não se afirma um sentido
agente que com o objeto cause o ato do
sentido, assim não é próprio afirmar um
intelecto agente como aquele que com o
fantasma mova o intelecto possível ao
ato de inteligir como dois agentes
imperfeitos suprem as vezes de um
agente perfeito. Logo, o intelecto
agente não age nos fantasmas nem
imprimindo algo, nem abstraindo algo,
nem segundo a coisa, nem segundo a
razão. Nem age no possível, nem sem
fantasma, nem com fantasma, como foi
deduzido, vê-se que não se deve afirma-
lo, nem Agostinho, o maior dos
filósofos, nunca o afirmou como foi
dito anteriormente.
113
prius dictum fuit.
[27] Ad primum argumentum in
oppositum dicendum quod abstrahere
uniuersale a singularibus non est
operatio intellectus agentis, licet
COMMENTATOR hoc dicat errans,
quia talis abstractio est solum
secundum considerationem; et ideo
opus illius potentie est cuius est
considerare, quod non conuenit
intellectui agenti, set possibili, si tamen
possibilis debet dici ubi aliud agens non
est.
[27] Em oposição ao primeiro
argumento digo que abstrair universais
de singulares não é operação do
intelecto agente, isto que o Comentador
diz é errado, visto que tal abstração é
somente segundo consideração, e a
mesma operação é em potência nele que
é considerado, porque não convém ao
intelecto agente, mas ao possível, pois o
possível deve dizer onde aquele agente
não está.
[28] Ad secundum dicendum per
interemptionem minoris, quia
uniuersale, idest ratio uel intentio
uniuersalitatis aut res sub intentione
uniuersalitatis, non est primum
obiectum intellectus nec preexistit
intellectioni, set est aliquid formatum
per operationem intelligendi, per quam
res secundum considerationem
abstrahitur a conditionibus
indiuiduantibus; in qua operatione
intellectus abstrahens habet pro termino
a quo singularia a quibus abstrahit et
pro termino ad quem ipsum uniuersale
abstractum; et quia terminus a quo
precedit terminum ad quem, ideo
consideratio singularium precedit
uniuersale abstractum ab ipsis iuxta
illud I De anima: uniuersale aut nichil
est aut posterius est.
[28] Ao segundo digo para destruir a
menor. Visto que o universal, isto é, a
razão ou intenção da universalidade ou
a coisa sob a intenção da universalidade
não é o primeiro objeto do intelecto
nem preexiste à intelecção, mas é
aquilo que é formado pela operação
inteligente, pela operação de acordo
com a qual a coisa segundo
consideração é abstraída das condições
individuais. Nesta operação o intelecto
tem por ponto de partida o singular que
abstrai e por finalidade o próprio
universal abstraído. E visto que a ponto
de partida precede a finalidade, a
mesma consideração singular precedeu
à abstração universal, de acordo com
De Anima I: o universal ou é nada ou é
posterior.
114
[29] Istud autem magis declarabitur
alibi. Quod postea dicitur de intentione
ARISTOTILIS, dicendum quod
quicquid ipse intenderit, de quo non est
tantum curandum sicut de ueritate,
tamen ratio quam ad hoc adduxit parum
ualet. Non enim oportet quod in omni
natura que quandoque est in potentia et
quandoque in actu sint principium
actiuum et principium passiuum
tanquam due potentie eiusdem suppositi
radicate in eadem essentia secundum
numerum, ita quod per talem potentiam
actiuam et passiuam reducatur in actum,
set sufficit quod potentia passiua
reducatur in actum per aliquam
potentiam actiuam, siue sit eiusdem
suppositi siue alterius. Illa etiam ratio
eque concludit quod sit dare sensum
agentem sicut intellectum agentem,
quia sensus quandoque est in potentia
ad sentiendum et quandoque in actu
sicut intellectus ad intelligendum.
[29] No entanto, muito mais será
declarado por ele. Porque depois de dito
da intenção de Aristóteles que afirma
que qualquer que entenda que não deve
se preocupar tanto com a verdade
possui uma razão pouco hábil. Pois não
é próprio que em toda natureza
enquanto está em potência e enquanto
está em ato sejam princípio ativo e
princípio passivo como duas potências
ou supósitos da razão na mesma
essência segundo um número, de modo
que por tal potência ativa e passiva
retornando ao ato, mas satisfaz que a
potência ativa, se acontece que o
mesmo supósito se altere. Entretanto,
esta razão igualmente conclui que seja
dado sentido agente como intelecto
agente, visto que o sentido está em
potência quanto ao sentido e o intelecto
está em ato para o inteligido.
115
3.2 – INTRODUÇÃO À TRADUÇÃO DO IN II SENT [C], D. 17, Q. 1
Tendo analisado o In I Sent [C], d. 3, q. 5 no qual Durandus estabelece que é
falso afirmar um intelecto agente unido à alma humana, me dispus a investigar a
extensão da crítica feita por Durandus. Notei que era preciso determinar se Durandus
negava apenas um intelecto agente enquanto unido à alma, mas aceitava a teoria de um
intelecto separado que cumprisse a função de abstrair ou se negava completamente tal
conceito. Para tanto, analisei o In II Sent [C], d. 17, q. 1, no qual Durandus apresenta e
discute a teoria do intelecto separado tal qual atribui a Averróis226
e constatei que a
negação é completa: Durandus não admite a existência de um intelecto agente nem
unido à alma humana, nem separado. Por isso escreve: “nec ualet si dicatur quod
intellectus noster, licet sit coniunctur secundum ueritatem, et intelligat ex
fantasmatibus, tamen corrupto corpore adhuc intelligit. Sed per alium modum. Et idem
posset dici de intellectu separato”. 227
Nesta questão, Durandus discute a teoria do intelecto separado que atribui a
Averróis (quantum ad primum sciendum quod Auerroys...228
), bem como uma teoria
similar que considera ser uma versão atenuada da posição de Averróis229
, (quantum ad
secundum aliqui colorant, et palliant...230
). Além disso, desenvolve sua própria crítica
direcionada tanto à opinião de Averróis, quanto à versão atenuada investigada (quantum
ad tertium dicendum est, q nec palliatio ualet, nec opinio de palliatione...231
). Durandus
determina que o intelecto humano não intelige de fantasmas, nega que um intelecto
separado pudesse inteligir por intermédio de espécies abstraídas de fantasmas e,
principalmente, que o intelecto humano seja uno e separado.
No intuito de analisar a posição de Durandus no que diz respeito à união entre
alma intelectiva e corpo, busquei o In II Sent [A/B], d. 17, q. 1, entretanto ainda não há
edição crítica das distinções 6 à 21 da versão [A/B] do segundo livro. Assim, busquei a
transcrição do manuscrito de Veneza correspondente à terceira versão do comentário
[C], e verifiquei a falta das mesmas distinções. Contudo, ao comparar os manuscritos de
226
Sobre a teoria do intelecto de Averróis ver: NEVES, 2016; CONOLLY, 2007; TAYLOR, 2004;
HYMAN, 1981; IVRY, 1966 227
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 11. 228
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 5. 229
Sobre a origem do termo „averroístas‟ e a sequência de críticas lançadas pelos dominicanos ver:
MARTINS, 2009. Sobre a crítica de Tomás de Aquino a Averróis ver: SANTOS, 2017. 230
In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 6. 231
A partir de In II Sent [C], d. 17, q. 1, n. 7.
116
Veneza e de Lion notei que ambos contêm o mesmo conteúdo correspondente ao In II
Sent [C], d. 17, q. 1. A legibilidade do manuscrito de Veneza está bastante
comprometida, o que retardou não só a comparação dos dois manuscritos, mas a própria
identificação da distinção 17. Todas as distinções estão respectivamente indentificadas,
mas não é possível identificar o número da questão 17 como XVII, apenas com II, o que
me causou certo contratempo. Por isso, optei por transcrever, produzindo
provavelmente a primeira transcrição desta questão do manuscrito, traduzir e analisar o
texto encontrado no manuscrito de Lion de 1563.
Deste modo, pude cumprir meu objetivo de analisar a questão mencionada que
apresento no segundo capítulo desta dissertação. Compreentendi, entretanto, que além
da análise que realizei, a disponibilização do texto da questão poderia beneficiar o
trabalho apresentado. Ademais, ainda que a presente tradução não se pretenda
definitiva, pode se caracterizar como um instrumento útil que possibilite uma maior
independência do leitor perante o texto, bem como uma possibilidade adicional de
compreensão da construção argumentativa e os debates tais quais realizados por
Durandus.
Tendo decido cumprir mais esta desafiadora tarefa busquei pelas traduções de
alguns trechos que foram selecionados por Hartman e analisados por ele em sua tese de
doutorado intitulada “Durandus de St. Pourçain sobre atos cognitivos: sua causa, status
ontologico, e caráter intentional” com o intuito de comparar resoluções e aperfeiçoar
minha tradução. Contudo, percebi que ele trabalhava marjoritariamente com as versões
[A/B], enquanto eu trabalho com a versão [C]. Ademais, Hartman seleciona
excessivamente o que traduz, não produzindo traduções de questões completas e,
consequentemente, não permitindo uma comparação verdadeiramente produtiva. No fim
das contas, esta pode ser considerada a primeira tradução e, por isso, ela é
completamente independente.
117
3.3 – TRADUÇÃO DO IN II SENT [C], D. 17, Q. 1
Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo: Livro II, distinção 17,
questão 1 [C]
Questio prima
Utrum anima intellectiua uniatur corpori tanquam forma
Se a alma intelectiva está unida ao corpo como sua forma
[1] Circa distinctionem istam primo
quaeritur, utru anima intellectiua
uniatur corpori tanquam forma. E
uidetur quod no, quia quos inest alicui
secundum se, semper inest ei. Sed
formae secundu se inest uniri materiae,
ergo semper couenit ei quadiu est. Sed
anima intellectiua corpori no unita
remanet, separatur enim a corpore sicut
perpetuu a corrupitibili, ergo &c.
[1] Sobre esta distinção, primeiro
investiga-se se a alma intelectiva está
unida ao corpo como sua forma. E
parece que não, visto que é algo
segundo si, algo que sempre existe. No
entanto, a forma segundo si é unida à
matéria, portanto sempre está junto dela
enquanto existe. Mas a alma intelectiva
não permanece unida ao corpo, pois é
separada do corpo assim como o
perpétuo do corruptível, portanto etc.
[2] IN CONTRARIUM est, quia
differentia sumitur a forma rei, sed
rationale est differentia specifica
hominis, quae conuenit ei ratione
animae intellectiuae, ergo &c.
[2] Argumenta-se em sentido contrário,
visto que, a diferença é assumida como
forma da coisa, mas a racionalidade é a
diferença específica do homem,
enquanto está unido à alma intelectiva
racional, portanto etc.
[3] RESPONSIO. Absolute dicendum
est q anima intellectiua unitur corpori
sicut forma. Ad hoc autem probandun
[3] Respondo. Absolutamente dizendo,
a alma intelectiva está unida ao corpo
como sua forma. Porém, para que isto
118
non potest efficacior ratio haberi, quam
illa quam ponit Aristoteles secundo de
Anima dicens sic, Anima est, quo
viuimos sentimus, mouemur e
intelligimus primum, quare ratio
quedam utique erit, & species. Uirtus
autem huius rationis est in hoc.
Principium cuiuslibet operationis
oportet esse formam aliquam operantis,
sed unusquisque experitur se intelligere,
ergo oportet in unoquoq; esse formam
aliquam, quae sit intellectionis
principium, hoc aute dicimus animam
intellectiuam, ergo &c. Minor de se
patet, sed maior probatur, quia formae
est agere, alterius uero potentiae pati, ut
bene dicit commentator in hoc, quia
unuquodque agit per illud, per quod est
in actu, hoc autem est forma. Huic aute
rationi adeo innititur Aristoteles, quod
dicit eam demonstrationem esse. Unde
in illius capituli dicit sic, non enim solu
quid est oportet rationem diffinitiuam
ostendere, sicut plures terminorum
dicunt, sed causam inesse &
demonstrare. Et sicut patet ibidem
Aristor. dicit quod per hanc
diffinitionem, Anima est quod uiuimus,
&c. Tanquam per médium
demonstrationis concluditur
demonstratiue alia diffinitio prius data
de anima, scilicet quod est actus
corporis physici, &c.
seja provado, não é eficiente ter a razão
como aquela que é afirmada por
Aristóteles no De Anima onde ele diz
que a alma é o que vivemos, sentimos,
movemos e inteligimos primeiro. Por
esta razão certamente será este algo e
espécies. A virtude da razão será aqui
examinada. Do princípio de operação é
próprio ser uma forma operante mas,
algo que é percebido é inteligido, logo é
próprio de algo: ser alguma forma, visto
que seja um princípio de intelecção,
deste dizemos alma intelectiva e etc. O
menor é claro, mas o maior deve ser
provado, pois a forma é ato, e
verdadeiramente suporta outra potência,
donde diz o comentador que um age por
outro, pelo qual a forma é em ato. E
sobre esta razão sou baseado por
Aristóteles, que diz ser esta a
demonstração. Donde naquele capítulo
diz que não só o que é próprio da razão
é exibido em definitivo, assim como
muitos dizem do término que deve
existir uma causa e uma demonstração.
E assim, no mesmo local Aristóteles diz
que por esta definição a alma é o que
vivemos e etc. Como se por meio da
demonstração fosse concluído
demonstrativamente outra definição
prévia concernente à alma, certamente
que é o ato do corpo físico e etc.
119
[4] Uirtus autem huius rationis patet in
hoc, quod omnes qui ab ea diuertunt,
incidunt in praegrandes abusiones,
máxime Averroys, qui dicitur primus
fuisse, & praecipuus delirator, circa
materiam istam. Cuius opnio recitabitur
primo. Secundo ostendetur quomodo a
quibusdam coloratura. Tertio ostendetur
quod neque coloratio ualet, neque
opinio.
[4] É exposto aqui que todo aquele que
diverge da virtude da razão alcança
grandes absurdos, sobretudo Averróis
de quem é dito ter sido particularmente
delirante sobre esta matéria e cuja
opinião recitarei primeiro. Em segundo
lugar será exposta uma opinião de certo
modo colorida. Em terceiro lugar será
exposto que nem a versão colorida é
consistente, nem a opinião do primeiro.
[5] Quantum ad primum sciendum quod
Auerroys ponit intellectum non esse
anima nostram, nec aliquid animae
nostrae. Sed esse quandam substantiam
separatam. Cuius intelligere efficitur
intelligere mei, uel alterius, inquantum
ille intellectus separatus secundum esse
copulatur mihi uel alteri per fantasmata
quae sunt in me uel in alio, quod sic
dicebat esse possibile. Nam species
intelligibilis secundum ipsum habet duo
subiecta, scilicet intellectum separatum
& fantasmata nostra in fantasia. Et ideo
per unam & eadem speciem in ipso &
in nobis existentem copulatur nobis
intellectus ille, ac per hoc dum
intellectus ille intelligit, homo intelligit
cui copulatur. Et quia fantasmata
diuersa sunt in diuersis, contingit unum
aliquid intelligere alio non inteligente
illud, quicquid est enim ibi diuersitatis,
totum est ex parte nostra. Quod autem
ex parte intellectus, est unum tantum, &
[5] Quanto ao primeiro, sabendo que
Averróis afirma que o intelecto não é na
nossa alma, nem que alguma outra
coisa seja na nossa alma. Mas que é
uma substância separada cujo inteligir
causa o meu inteligir, ou outro,
enquanto este intelecto separado,
enquanto for unido ao meu, ou outro,
pelos fantasmas que são em mim, ou
em outro, o que diz ser possível. Isto,
pois as espécies inteligíveis têm por si
dois substratos, claramente o intelecto
separado e os fantasmas em nossa
imaginação. E, consequentemente, por
uma e a mesma espécie existente em si
e em nós está unido ao nosso intelecto,
por isso, quando aquele intelecto
intelige, o homem intelige enquanto
unido a ele. E porque os fantasmas são
diversos em diversos, ocorre um outro
inteligir diferente não inteligente que o
que quer que seja nessa diversidade é
totalmente fora da nossa parte. Pois, da
120
ideo corruptis hominibus remanet solus
unus intellectus: haec est positivo eius
in summa, & haec de primo.
outra parte, o intelecto é um e, assim,
com a corrupção do homem permanece
apenas um intelecto: este é sumamente
positivo e esta é a opinião do primeiro.
[6] Quantum ad secundum aliqui
colorant, & palliant hanc opinionem
hoc modo, accipiunt enim duas
suppositions. Prima est, quod
intelligentia est indistincta secundum
situm ab eo cui praesens est, quia
distinctionem secundum situm facit
sola quantitas dimensiua, qua caret
intelligentia. Secundum est, quod forma
intentionalis non numeratur penes
subiecta, sed penes obiecta, uel causas
eficientes, unde secundum eos plures
species alborum possunt esse, & sunt in
eadem parte medij. Et eodem modo
uma species in diuersis subiectis: si
tamen illa subiecta sit secundum situm
indistincta. Ex hoc sic arguitur, uma
species intelligibilis potest esse in
diuersis subiectis secundum situm
indistinctis (ut patet x secunda
suppositione.) Sed ille intellectus potest
simul esse cum fantasia nostra
indistincte secundum situm (ut patet ex
suppositione prima) ergo eandem
species potest esse in intellectu illo, &
fantasia nostra: qua existente
continuatur nobis ille intellectus, &
communicat nobis suum intelligere, hoc
quantum ad secundum.
[6] Quanto ao segundo, trata-se de uma
opinião colorida e atenuada que, deste
modo, aceita duas suposições. A
primeira é que a inteligência é indistinta
segundo si do que está presente, porque
distinção segundo si diz respeito
somente à quantidade dimensional que
é destituída de inteligência. A segunda
suposição é a de que a forma
intencional não é numerada pelo
substrato, mas pelo objeto, ou causas
eficientes, daí, segundo estes, muitas
espécies poderiam ser brancura e ser na
mesma parte do meio. E do mesmo
modo uma espécie em diversos
substratos: se, no entanto, este substrato
fosse indistinto segundo si. Do que se
argumenta que uma espécie inteligível
pode ser em diversos substratos
indistintamente segundo si (como é
exposto na segunda suposição). E o
intelecto pode ser simultaneamente com
a nossa imaginação indistinto segundo
si (como é exposto na primeira
suposição). Logo, a mesma espécie
pode ser naquele intelecto e na nossa
imaginação: como um existente unido
ao nosso intelecto que comunica o seu
inteligir a nós, isto quanto ao segundo.
121
[7] Quantum ad tertium dicendum est, q
nec palliatio ualet, nec opinio de
palliatione, patet hoc sic, quia quauis
prima supositio eorum posset aliqualiter
concedi, scilicet q intelligentia sit
indistincta secundum situm ab eo cui
praesens est, non quidem positive, quasi
intelligentia eundem situm habeat, sed
negatiue, quia alium no habet. Tamen
secunda suppositio, scilicet eadem
species numero posset esse in
intelligentia, & in quacunq; alia re
suppositio distincta non est uera.
[7] Quanto ao terceiro que diz que nem
a versão atenuada vale, nem a opinião
do atenuado, é exposto assim: visto que
a primeira suposição de qualquer um
deles pode ser igualmente removida,
notamente que a inteligência seja
indistinta segundo si do que está
presente, certamente não no sentido
positivo, como se a inteligência mesmo
tivesse permitido, mas negativo, porque
outro não tem. Sobre a segunda
suposição, entretanto, certamente a
mesma espécie de um número pode ser
na inteligência ou em qualquer outra
coisa; uma outra coisa diferente do seu
fundamento não é verdadeira.
[8] Quod patet tripliciter. Primo quia
magis est possibile ide numero esse in
diuersis subiectis indistinctis secundu
suppositu quam in diuersis subiectis
secundu suppositu distinctis. Sed
intellectus noster possibilis, & fantasia
sunt indistincta secundum suppositum,
ponendo intellectum esse partem
animae nostrae, & tamen in eis non
potest esse eadem species numero, neq;
aliquis tenentium hanc uiam hoc ponit,
ergo nec in intelligentia & fantasia, si
distinguantur secundum suppositum.
[8] Do exposto pode-se dizer de três
modos. Primeiro que é mais possível o
mesmo número ser em diversos
substratos indistintos segundo seu
fundamento do que em diversos
substratos segundo fundamentos
distintos. Mas nosso intelecto possível e
nossa imaginação são indistintos
segundo seu fundamento, afirmando
que o intelecto faz parte da nossa alma,
e embora neles não possa haver as
mesmas espécies do número, nem
aqueles tendo esta via afirmado,
portanto a inteligência e a imaginação
não se distinguem segundo seu
fundamento.
122
[9] Secundo quia quanto forma minus
habet de entitate, tanto plus habet de
dependentia ad subiectum. Sed forma
intentionalis minus habet de entitate,
quam aliae formae naturales, ergo plus
habet de dependentia ad subiectum. Sed
aliae formae propter dependentiam ad
subiectum, numerantur numeratione
subiectorum: ergo &c.
[9] Segundo que quanto menos a forma
tem de entidade, tanto mais tem de
dependência do substrato. Mas a forma
intencional tem menos entidade do que
a forma natural, logo, tem mais
dependência do substrato. Porém, é
outra forma por conta da dependência
do substrato, numerada do número do
substrato e etc.
[10] Tertio quia in quibus inuenitur uma
forma, non solum numero, sed specie,
oportet quod sit eadem receptiva, quia
actus actiuorum sunt in patiente
disposto, sed in intelligentia, quae est
res spititualis, & fantasia, quae est res
corporalis, no potest esse eadem ratio
receptiva, ergo neq; eadem forma, non
solum eadem secundum numerum, sed
nec eadem secundum speciem non ualet
ergo ista coloratio.
[10] Terceiro que no que é encontrada
uma forma, não só o número, mas a
espécie, é próprio que seja mesmo
receptiva. Visto que o ato do ativo é
disposto no paciente, mas na
inteligência, que é coisa espiritual e na
imaginação, que é coisa corporal, não
pode ser a mesma razão receptiva,
portanto não é a mesma forma, não só a
mesma segundo número, mas também
não a mesma segundo espécie. Não é
consistente, portanto, esta opinião
atenuada.
[11] Opinio etiam ista multa
improbabilia continet. Primum est, q
ponit intellectum separatum intelligere
per species abstractas a fantasmatibus,
quia essi hoc colorabile sit dicere de
intellectu coniuncto (quanquam & hoc
multi negent) tamen hoc dicere circa
intellectum separatum absurdum est,
dissonat enim ab opinione fere omnium
[11] Esta opinião ainda contém muitos
improváveis. O primeiro é o que afirma
que o intelecto separado intelige por
espécies abstratas de fantasmas, porque
assim diz a opinião colorida sobre o
intelecto conjunto (embora muitos
negassem isto). Contudo, dizer isto
sobre o intelecto é um absurdo, pois é
completamente dissonante da opinião
123
loquentium de modo intelligendi
substantiarum separatarum (ut patet
intuenti librum Proculi & authoris de
causis) quod em propria operatio
substantiae separatae dependeat a
nostro fantasmate, friuolum est: sic
enim hominibus corruptis, uel
dormientibus, & non forniantibus, nohil
intelligere ille intellectus, quod est
absurdum: nec ualet si dicatur quod
intellectus noster, licet sit coniunctur
secundum ueritatem, & intelligat ex
fantasmatibus, tamen corrupto corpore
adhuc intelligit. Sed per alium modum.
Et idem posset dici de intellectu
separato, hoc enim no est símile, quod
intellectus noster coiunctus & separatus
habet alium modum effendi, propter
quod potest habere alium modum
operandi, sed intellectus separatus
solum habet unum modum essendi,
quare & unum modum intelligendi, a
quo si cesset, cessabit omnino
intelligere.
de todos que falam de modo inteligente
sobre a substância separada (como
exposto no livro de Próculo e dos
autores das causas), afirmar que na
própria operação a substância separada
depende do nosso fantasma é fútil: pois
quando o homem é corrompido, ou
dorme e não opera, nada intelige o
intelecto, o que é absurdo. Nem é
consistente dizer que nosso intelecto
possa ser conjunto verdadeiramente e
possa inteligir dos fantasmas, embora
intelija junto do corpo corruptível. Pelo
contrário. E o mesmo pode-se dizer do
intelecto separado, pois este não é
similar. O nosso intelecto conjunto e o
separado tem outro modo de funcionar,
porque pode ter outro modo de
operação, mas só o intelecto separado
tem um mesmo modo de ser, o qual é
um modo inteligente, e que, se cessasse,
cessaria todo o inteligir.
[12] Secundum incueniens est, quia
operatio quae non transit in materiam
exteriorem non potest alteri distincto
secundum suppositum comunicari, quia
actiones sunt suppositorum, sed
intelligere est huiusmodi (ut patet ex
9.Metaph.) ergo &c.
[12] O segundo improvável consiste na
afirmação de que a operação que não
transita para a matéria exterior não pode
ser compartilhada com outro que seja
distinto segundo fundamento. Isto
porque ações são do fundamento, mas
inteligir é deste modo (como expõe em
Metafísica IX) e etc.
124
[13] Tertiu est, quia si intellectus
separatus copularetur nobis per species
abstractas a fantasmatibus nostris, ac
per hoc faceret multos inteligentes,
eadem ratione posset copulari asino per
speciem abstractam a fantasmatibus
asini, & facere asinum intelligentem,
quod est absurdum. Consequentia
probatur, quia ex parte nostra non
ponitur, nisi actu fantasiae, quae potest
esse in asino. Non abstractio speciei
effectiue per aliquid quod sit in nobis,
sed per intellectum separatum:
intellectus etiam ille ae qualiter potest
se habere ad homine & ad asinum, & ad
fantasmata utriusque, quare &c.
[13] O terceiro é improvável porque se
o intelecto separado fosse unido a nós
por espécies abstraídas dos nossos
fantasmas e por estas fizessem muitos
inteligentes, a mesma razão poderia
unir ao burro por espécies abstraídas
dos fantasmas do burro e fazer o burro
inteligente, o que é absurdo. A
consequência é provada porque de
nossa parte não é afirmado o ato do
fantasma que poderia ser no burro. As
espécies que são em nós não são
efetivamente abstraídas por outro, mas
por um intelecto separado: intelecto tal
que pode agir no homem e no burro ao
acessar o fantasma de um e de outro,
por isso etc.
[14] Quartum est, quia si per huius
copulationem communicaret nobis
intellectus suum intelligere,
comunicaret nobis tale intelligere, quale
haberet. Sed intellectus separatus circa
cognitionem rerum naturalium no
decipitur, ergo nec nos deciperemur in
intelligendo, licet forte deciperemur in
fantasiando, quod experimur esse
falsum. Multa etiam inconuenientia
possent ex hac positione deduci, sed
haec sufficiun. Ex quibus patet q no
solum erroneum est, & contra fidem,
ponere animam intellectiuam no uniri
nobis in ratione formae. Sed plane
proceffit ex magna ignorantia
[14] O quarto improvável afirma que
por meio de tal copulação seria unido
ao nosso intelecto o seu inteligir. No
entanto, o intelecto separado não é
enganado sobre a cognição da coisa
natural, portanto não nos enganamos
inteligindo, poderia ser válido que nos
enganássemos fantasiando, o que
percebemos ser falso. Muitas outras
afirmações impróprias poderiam ser
deduzidas desta posição, mas estas são
suficientes. Das quais é claro que não
só é errôneo, mas também contra a fé,
afirmar que a alma intelectiva não é
unida a nossa razão como sua forma.
Tal afirmação procede de uma grande
125
philosophiae. ignorância filosófica.
[15] AD ARGUMENTUM in
oppositum dicendum quod illud quod
inest alicui per se primo modo dicendi,
per se semper inest, sicut anima semper
inest homini: quod autem inest secundo
modo dicendi per se, aut dicitur
secundum potentiam, ut risibile
respectu hominis, & tale etia semper
inest, aut dicitur secundum actum, &
tale non semper inest, praecipue si
connotat respectum ad alterum, sicut
leuis inest per se moueru sursum, quod
tamen impediri potest, isto modo inest
animae uniri materiae: & ideo impediri
potest per indispositionem, quae a
corrumpente inducitur.
[15] Em oposição ao primeiro
argumento digo que aquilo que é dito
algo por si pelo primeiro modo, sempre
é por si, assim como a alma sempre é
no homem. Aquilo que é dito por si no
segundo modo, ou é dito segundo
potência, como o riso a respeito dos
homens e tal algo sempre existe ou dito
segundo ato e tal não existe sempre. O
princípio se conota a respeito de outro,
assim como o leve é por si movido para
cima, apesar de ser possível impedir [tal
movimento]. Deste modo é a alma
unida com a matéria: e mesmo se for
impedida por alguma indisposição,
como quando algo é conduzido à
corrupção.
126
CONCLUSÃO
No decorrer da presente dissertação, meu objetivo foi analisar o modo pelo qual
Durandus de St. Pourçain estabelece sua teoria cognitiva. Por intermédio da detida
análise da literatura primária e secundária pude determinar que Durandus estabelece que
o conhecimento é uma relação. Durandus não compreende o conhecimento como algo
que o intelecto possui, mas como um estado no qual se encontra. O conhecimento é a
relação de intelecção estabelecida, entre um intelecto capaz de conhecer e um objeto
capaz de ser conhecido quando presentes um ao outro. O objeto, quando presente ao
poder cognitivo, é compreendido como causa sine qua non, como a causa sem a qual
sua cognição seria impedida. Para Durandus, assim como não é preciso postular a
existência de um sentido agente que possua a função de informar um sentido passivo
permitindo a percepção sensível, do mesmo modo não seria necessário postular a
existência de um intelecto agente que tivesse como função informar um intelecto
possível com o resultado de abstrações permitindo, assim, o inteligir. Segundo
Durandus, o homem intelige intuitivamente, assim com o anjo, sem intermediários. Isto
porque, quando o objeto cognoscível se apresenta ao poder cognitivo, a relação
intelectiva ocorrerá necessariamente, sem a necessidade de postular, para isso, uma
causa eficiente ou um intelecto agente.
Durandus concebe a cognição como um processo intuitivo direto, sem
intermediários. Para ele, ao afirmar intermediários no processo de cognição humana,
nenhuma etapa da cognição é compreendida, pelo contrário, apenas adicionam-se
estruturas obscuras incapazes de elucidar como este processo é possível. Por isso, sua
compreensão sobre a cognição é constituída a partir da negação da noção de intelecto
agente como fundamental para o processo cognitivo.
Durandus nega a existência de um intelecto agente compreendido como
constituinte da alma humana ou como um intelecto uno e separado que informaria a
alma do homem com espécies inteligíveis abstraídas dos singulares. Negar a noção de
intelecto agente significa, também, negar todos os pressupostos metafísicos e
epistemológicos que tal noção pressupõe. Durandus nega o pressuposto de que o
universal existe no objeto singular, para ele o objeto singular é material e, portanto,
particular. Assim, não seria possível admitir uma essência universal no objeto
particular, para Durandus, ao singular só podem ser atribuídas qualidades singulares.
Por isso, se houvesse algum fantasma, ele não poderia cumprir a função de tornar a
127
essência universal da coisa presente ao intelecto. Primeiro porque o universal não existe
no particular, segundo porque o fantasma é produzido e armazenado por um órgão do
corpo. Para Durandus, se o fantasma é no corpo, tudo o que ele contiver também será no
corpo. O fantasma não seria corpóreo, mas particular e, por isso, não poderia cumprir o
papel de tornar o universal acessível. Desde modo, como o fantasma não poderia operar
de nenhum modo, não teria função alguma e sua existência deve ser negada. Por fim,
não havendo universal nos objetos cognoscíveis, nem fantasmas, não seria possível
abstrair. Isso porque abstrair significa separar as qualidades individuantes tendo em
vista o universal do objeto singular. Para Durandus, no entanto, o universal é produto da
cognição humana e, por isso, é totalmente dependente do intelecto, não existindo antes
da intelecção. Dado que o intelecto agente é admitido como constituinte da alma
humana por conta da sua operação própria de abstrair, como Durandus demonstra que
esta operação não ocorre, o intelecto agente é considerado supérfluo e falso: sua
existência não deve ser afirmada.
Além disso, é importante ressaltar que Durandus não apenas nega a existência do
intelecto agente como constituinte do homem, sua negação é total: não é possível aceitar
a existência de um intelecto agente seja unido, seja separado da alma humana. Apenas a
negação do intelecto agente como parte do homem não anularia a possibilidade de sua
existência ser admitida como separada e tendo como função abstrair dos fantasmas da
imaginação do homem e informa-lo com universais. Durandus apresenta e nega a teoria
do intelecto separado de Averróis. Para Durandus a alma intelectiva está unida ao corpo
humano de modo análogo à união entre forma e matéria. Não é admitida nenhuma
possibilidade de existência de um intelecto uno e separado que tivesse a função de
abstrair das espécies naturais da imaginação e informar a alma humana. O intelecto
humano é capaz e suficiente para cumprir sua função de inteligir, sem que seja
necessário assumir que seu inteligir seja causado pelo inteligir de outro intelecto ou que
o intelecto humano deva ser compreendido, de modo real ou analítico, como constituído
por um intelecto agente e um intelecto possível.
128
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