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EDITORA AVE-MARIA Márcio Luiz Fernandes (organizador)

Márcio Luiz Fernandes (organizador) · ritual. A sua realização requereu dedicação dos autores e dos traduto- ... como uma purificação pessoal do conteúdo da fé comum; 3

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EDITORAAVE-MARIA

Márcio Luiz Fernandes(organizador)

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Este livro é fruto de um caminho de amizade na experiência do fazer teológico. É também um trabalho coletivo informado pela cons- ciência da necessidade de que os estudos teológicos possam nos ajudar a exercitar o apofatismo não só como método, mas como atitude espi-ritual. A sua realização requereu dedicação dos autores e dos traduto-res. Além deles, agradecemos o apoio do Studium Theologicum e esten-demos o nosso reconhecimento à Editora Ave-Maria pelo auxílio na organização desta publicação. Ademais, ficamos gratos pelo apoio do Programa de Mestrado em Teologia da PUC-PR, em razão do convite feito ao Prof. Dr. Lubomir Žak para ensinar e colaborar em pesqui-sas, em terras brasileiras, sobre a rica tradição dos teólogos e filósofos da Rússia cristã.

O organizador

AgrAdecimentos

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dedicado

Aos professores e alunos do Studium Theologicum e do Programa de Mestrado em Teologia da PUC-PR.

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Apresentação – Por uma existência teológica e uma teologia apofática

Por uma existência teológica

e uma teologia apofática

“Sofro por causa do meu espírito de colecionador-arqueólogo. Quero pôr o bonito numa caixa com chave para abrir de vez

em quando e olhar”. (Adélia Prado)

Um pouco de história: o fio de ouro da amizade eclesial

Tenho o prazer de apresentar o livro Trindade e imagem: aspectos da teologia mística de Vladimir Losskij1 no ambiente teológico brasileiro. O texto de Lubomir Žak, professor de teologia na Pontifícia Universidade Lateranense - PUL (Roma), traz a reflexão do teólogo da Igreja ortodo-xa Vladimir Losskij a partir da obra Teologia mística da Igreja do Orien-te. Žak tem se destacado na Europa na produção sobre o pensamento ortodoxo russo, principalmente, de algumas figuras como Florenskij, Karsavin, Losskij, Bulgakov e outros, além de promover, no âmbito

1 Queremos advertir o leitor a respeito da dupla transliteração do sobrenome do teólogo russo, verificável neste volume. A correta transliteração do russo é “Losskij” e é esta que vem utilizada também pelo autor. Algumas editoras transcre-vem o mesmo sobrenome como Lossky – como é o caso, por exemplo, da edição em língua espanhola – e esta escolha foi respeitada nas citações das obras do teólogo russo feitas nas notas do presente livro.

APresentAÇÃo

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Trindade e imagem: aspectos da teologia mística de Vladimir Losskij

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da área internacional de pesquisa da PUL, intensa atividade no diálogo católico-luterano.

No ano de 2011, teve oportunidade de ministrar aulas como pro-fessor visitante, no Programa de Pós-graduação em Teologia da Ponti-fícia Universidade Católica do Paraná - PUC-PR sobre a fenomeno-logia do evento Cristo em Florenskij e Bulgakov, além de participar de atividades acadêmicas na Universidade de São Paulo, campus Ribeirão Preto, no Studium Theologicum de Curitiba e na PUC do Rio Grande do Sul. Nesse caminho de ensino, pesquisa e extensão em teologia, não são poucos os elos e linhas de conexão que constituem o fio de ouro de uma história de amizade eclesial, reveladores do mistério de Deus que conduz a vida e a história das pessoas. Entre as ações que prepararam o terreno para este encontro, estão os trabalhos de pesquisa em teolo-gia fundamental que fui realizar na Universidade Lateranense, tendo como orientador o professor Lubomir.

O método utilizado para a elaboração desta apresentação é a partir dos comentários de Luis Artigas. Ele foi professor de teologia sistemá-tica, nas décadas de 1980 e 1990, no Studium Theologicum e também na PUC-PR. Ele era amigo e discípulo do padre Vladimir Boublik2, de quem recebeu decisiva influência, tendo sido orientado por ele no dou-torado em teologia e, em seguida, tornando-se primeiro seu assistente e depois substituto na cátedra de Introdução à Teologia na Lateranen-se. Graças ao padre Artigas, gerações de estudantes de teologia, futuros sacerdotes, leigos e leigas, religiosos e religiosas puderam entrar em contato com a herança teológica e espiritual deste teólogo. A amizade que, por doze anos, manteve-o perto de Boublik3, é o expressivo sinal

2 Vladimir Boublik (1928-1974) foi por muitos anos professor e decano da Faculdade de Teologia na Pontifícia Universi-dade Lateranense de Roma. Na escola lateranense foi quem iniciou, nos anos do Concílio Vaticano II, uma perspectiva dialógica da teologia fundamental com especial atenção ao fato religioso e suas manifestações e na relação com a Re-velação cristã. Falecido no dia 25 de dezembro de 1974 na sua Tchecoslováquia natal, aos 46 anos, foi quem orientou a tese doutoral do padre Luis Artigas, defendida em 2 de julho de 1969, na Universidade Lateranense.

3 É notável a maneira com a qual Artigas faz memória de Boublik: “Sua vida não foi longa e seu fim nos apanhou de surpresa. Os quarenta e seis anos por ele vividos deixaram-nos a imagem de um verdadeiro crente do nosso tempo: o rapaz que chega a sacrificar sua bela terra tchecoslovaca por causa do seu sacerdócio; o homem/sacerdote engajado

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Apresentação – Por uma existência teológica e uma teologia apofática

da companhia eclesial, aquela revelada por Jesus e expressa na forma como os evangelistas narram o envio missionário dos discípulos que iam por todo o mundo de dois em dois. É a expressão da maneira de enfrentar a aventura do conhecimento na perspectiva cristã. Na ami-zade, como já acenava Florenskij, “não existe a comum alegria e sofri-mento, mas a harmônica alegria e o harmônico sofrimento”4.

Artigas, falecido já há mais de 10 anos, deixou ao Studium Theolo-gicum todo o seu acervo composto por uma biblioteca e seus arquivos pessoais5, em que constam esboços de aulas, livros, traduções, ficha-mentos de obras, artigos e apontamentos. E um dos livros presentes na biblioteca particular do padre Artigas era o de Vladimir Losskij sobre a Teologia mística da Igreja do Oriente. Nele encontramos interessantes anotações sobre as suas impressões de leitura que aqui nos servirá de guia, tanto para apresentar os temas principais abordados por Losskij, quanto para revelar as preocupações de Artigas com relação à trans-missão de uma teologia que requer um testemunho não somente inte-lectual, mas também experiencial do cristianismo vivido.

os comentários de Luis Artigas ao livro de Losskij

No primeiro capítulo, Losskij apresenta – de modo introdutório – o significado da expressão teologia mística para a tradição da Igreja oriental e, por conseguinte, põe em evidência o laço íntimo entre tra-dição doutrinal, experiência e espiritualidade. Assim, a relação entre

que se doa sem descanso ao trabalho teológico como professor e escritor; o homem que sofreu física e moralmente, sempre buscando o porquê e cuja solução encontra abandonando-se por inteiro à fé em Cristo, o revelador não somente do enigma, mas também do mistério do Pai e do mistério do homem. No seu último livro escrevia: Jesus é o portador do reino de Deus, precisamente pela sua identificação com a causa de Deus e a causa do homem; dessa maneira, Ele é a epifania definitiva de Deus e a salvação escatológica do homem”.

4 P. Florenskij, La colonna e il fondamento della verità (Rusconi, Milano 1974), 500.5 Massimi salienta a importância de preservar a biblioteca particular de figuras significativas para extrair suas memórias,

contribuições e lições pois “a reconstrução histórica do desenvolvimento das várias áreas científicas e, nela, a análise dos relatos que os cientistas elaboraram acerca de suas próprias vivências no ato investigativo revela a implicação da pessoa do pesquisador, no referido ato, em todas as dimensões de seu ser físico, psíquico e espiritual”, in A. Hoffmann; M. Massimi (org.), Ciência: da maravilha à descoberta (Funpec, Ribeirão Preto-SP 2011), 3.

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teologia e mística, neste capítulo, tem diversos níveis de significação conforme anota o padre Artigas. Apresenta uma síntese do percurso proposto por Losskij, a saber: 1. Teologia mística como uma espiritu-alidade que expressa uma atitude doutrinal; 2. A experiência mística como uma purificação pessoal do conteúdo da fé comum; 3. A mística como experiência íntima da verdade dada; 4. A experiência mística como a perfeição e o cume de toda a teologia, ou simplesmente como a teologia por excelência; 5. A teologia cristã como uma via que deve servir a um fruir que excede a todo o conhecimento, cujo fim último é a união com Deus, ou deificação apresentada pelos Padres gregos.

O valor deste texto introdutório está no interesse de Losskij em traçar um mapa do itinerário das lutas dogmáticas da Igreja e ajudar o leitor a reconhecer a convergência entre a tradição doutrinal e a vi-vência dos mistérios da fé. Todo desenvolvimento das lutas dogmáticas “aparecem dominadas pela preocupação constante que a Igreja teve em salvar, em cada momento de sua história, a possibilidade de que os cris-tãos alcancem a plenitude da união mística”6. Esse juízo extraordinário foi silenciado no Ocidente.

Desse modo, esta página serve não apenas como uma ótima in-trodução ou conclusão para a parte histórica do tratado cristológico, senão, também, para discutir o quanto no Ocidente as lutas teológicas são apresentadas como se fossem teóricas, próximas a um conjunto de leis e simplesmente como o desenvolvimento da história das ideias.

Há em Losskij a percepção dessa redução e, assim, as doutrinas teológicas elaboradas no seio dessas disputas são pensadas como ele-mentos que constituem a base da espiritualidade cristã. Tais doutri-nas teológicas têm “direta relação com o fim vital que devia ajudar a alcançar: a união com Deus”7 e que, portanto, constituem a base da experiência mística. Falar, então, de mística e espiritualidade como

6 V. Lossky, Teología mística de la Iglesia de Oriente (Herder, Barcelona 1982), 9.7 Ibid., 10.

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a seiva dos conteúdos e doutrinas teológicas não significa mistificar a realidade, mas encontrar um método para conhecer o dogma a partir das vivências religiosas e da tutela da fé dos simples. Sem isso, o dog-ma passa a ser considerado algo exterior e abstrato, e a vida espiritual, que deveria ser princípio do crescimento da pessoa humana na graça, torna-se alienação.

O segundo capítulo do livro Teologia mística da Igreja do Orien-te é intitulado por Losskij de “As trevas divinas”. As anotações do padre Artigas neste capítulo nos fazem compreender que estamos diante de um leitor ávido e em diálogo com a obra. As ideias de sua preferência ou parágrafos mais sugestivos podem ser reconhecidos facilmente, pois foram sublinhados. Mas, além disso, há pequenas sínteses e exclamações às margens dos parágrafos lidos. É o caso do trecho em que Losskij afirma: “Contemplando os objetos, analisamos suas propriedades, e isso nos permite formar os conceitos. No entan-to, essa análise jamais poderá esgotar o conteúdo dos objetos de nossa percepção, pois sempre restará um resíduo irracional que lhe escapa e que não poderá ser expresso em conceitos; é o fundo incognoscí-vel das coisas o que constitui sua verdadeira essência indefinível”8. A contemplação dos objetos e o resíduo que sempre escapa à nossa po-bre análise aparecem como algo inerente à dinâmica da realidade na sua totalidade e “não só como algo que se refere a Deus”. Há sempre esse resíduo que excede nossa compreensão, mas serve como estímulo à nossa constante busca.

O autor procura informar o leitor sobre a experiência de Deus como fruto da atitude apofática, a leitura feita por Artigas é a de revelar as di-ferenças em relação ao modo como a teologia ocidental se aproxima do tema. Observa que a abordagem anselmiana da fides quaerens intellectum é a expressão da teologia ocidental no seu esforço de compreensão do mistério, enquanto no Oriente a verdadeira teologia é de fundo apofático

8 Ibid., 26.

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e, portanto, é aquela que aponta para uma via de união mística com Deus cuja natureza sempre nos resulta incognoscível.

A união não é simples conscientização, mas representa na teolo-gia oriental a deificação. Toda a experiência de Deus será sempre o resultado da atitude apofática. A teologia deve ser menos uma busca dos conhecimentos positivos acerca do ser divino e, ao contrário, ser a aproximação à experiência daquilo que ultrapassa todo o entendimen-to e leva o ser humano à contemplação.

É possível entender, então, em que consiste a contribuição desta teologia para a elaboração teológica no Ocidente. Para Artigas “a teo-logia negativa é uma expressão da atitude fundamental que faz da te-ologia em geral uma contemplação dos mistérios da revelação. Porque o cristianismo não é uma escola filosófica especulativa, mas, acima de tudo, é uma comunhão com o Deus vivo. E não se trata de adaptar o dogma ao nosso entendimento, mas de mudar a nossa mente para que possamos alcançar a contemplação, a união com Deus e na medida em que pudermos”. A via escolhida pela teologia negativa é aquela da união mística com Deus, diferente da atitude própria do Ocidente onde se acentua o conhecimento. Em Losskij, diz Artigas, “a via apofática não consiste em uma operação intelectual e é algo mais do que um jogo da mente, é antes de tudo, uma purificação existencial”, expressão da bus-ca pela união com Deus. Desse modo, tanto a leitura deste capítulo de Losskij quanto as primeiras páginas do livro de Florenskij levam-no a dizer: “cada vez que leio uma destas introduções a livros sobre a orto-doxia: teologia, ícones etc. é sempre a mesma sensação dentro de mim, ou seja, a diferença entre a nossa teologia ocidental, racionalista e seca que, em geral, parece ‘feia e rabugenta’, e o perfume da ‘outra teologia’: vibrante, mística, bela e atrativa”.

A sintonia entre o pensamento de Losskij e as intuições de Ar-tigas sobre o modo de fazer teologia tem na categoria teológica do

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apofatismo o ponto central. As considerações sobre as características de não acabamento próprias do elemento intelectual que entra na elabo-ração teológica são indicativas dessa convergência: “Portanto, queira-mos ou não, a expressão racional da fé é sempre um instrumento muito frágil. Cada teologia é escrita sobre a areia, porque se trata de uma descrição racional da fé a partir de conceitos necessariamente cultu-rais, que serão seguramente modificadas pela historicidade do homem. É absurda aquela tranquilidade, aquele torpor com o qual podemos pensar: temos já uma bela teologia, completamente feita; e quem quer estudar, tome este ou aquele manual definitivamente pronto”9.

A teologia deve nascer na existência do homem de fé pois “o crente, como sujeito racional que é, sente a necessidade de saber mais clara-mente quais são os conteúdos objetivos de sua fé. Ora, sabemos que todos os conceitos e expressões culturais utilizadas para este trabalho são necessariamente insuficientes. Há sempre uma margem expressiva e um limite de obscuridade, que nos deixa sempre no claro-escuro, em um permanente pedido e na impossibilidade de explicar comple-tamente qual é o conteúdo exato da fé”10. Crer significa reconhecer perfeitamente Deus como Deus e interpretar, sem reservas, o nosso ser como um ser-para-Deus. A fé implica uma disponibilidade incondi-cional diante de Deus, uma confiança sem limites nas suas promessas e uma aceitação de todos os caminhos que conduzem ao Reino de Deus, mesmo os mais difíceis e incompreensíveis. A fé é o modo concreto de existir para o Reino11.

Losskij no capítulo III – dedicado ao tema Deus-Trindade – aponta para o sentido do pensamento teológico da Igreja do Oriente como equivalente a uma mística pessoal cuja finalidade não é alcançar a essência, a natureza e tampouco a pessoa de Deus, mas aquela de

9 L. Artigas, Introduzione alla teologia: note per lo studio privato degli alunni (Roma, Pontificia Università Lateranense, Facoltà di Teologia 1976-1977), 28.

10 Ibid., 26. 11 L. Artigas, A Virgem Maria e a esperança escatológica da Igreja, in Revista Studium, ano. 1, v.2, 2007, 102.

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proporcionar a subida na direção da união da pessoa com a Santíssima Trindade. Não se trata somente da contemplação que confere à alma humana a serenidade para poder iniciar o processo de elevação (subi-da), mas do fato de que “o mistério da Trindade não se faz acessível mais que à ignorância que se eleva acima de tudo o que pode conter os conceitos filosóficos. Todavia, essa ignorância, não somente douta, mas também caritativa, volta a descer até os conceitos, a fim de modelá-los e transformar as expressões da sabedoria humana em instrumentos da sabedoria de Deus, que é a loucura para os gregos”12.

O conceito de revelação, proposto nessa reflexão trinitária, abre para o ser humano um abismo entre a verdade anunciada e as ver-dades da especulação filosófica. Desse modo, o evento da revelação em Cristo não tem a função de colmar o abismo da limitação do pensamento humano e sim de transformar a especulação racional na contemplação dos mistérios da Trindade. O registro das reações de Artigas sobre este capítulo revelam-nos a imagem do teólogo, que não faz do exercício da ciência teológica uma atividade neutra, fria e distante de sua própria condição e circunstância, mas confessa: “Já faz mais de uma semana que estou lendo, relendo e ruminando este ca-pítulo. Não me parece fácil – sem chegar a ser difícil. Mas é como se pela primeira vez eu começasse a ‘entender’ do que se trata realmente a Trindade e a poder colocar um conteúdo nos conceitos teológicos, isto é, purificá-los na sua expressão, procurando aplicar explicitamen-te o ‘apofatismo’ no estudo de um tema teológico. Tenho de voltar a este capítulo e exercitar-me no apofatismo (não só como método, mas atitude espiritual, metanoia da razão) com relação aos temas da cristologia, mariologia, escatologia”.

Seria possível descrever, então, as características da atitude apofá-tica como caminho para a elaboração de uma teologia mais existen-cial? A resposta parece ser positiva, pois tal atitude permite a abertura

12 V. Lossky, Teología mística de la Iglesia de Oriente, 38.

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necessária e a disposição para “não para apreender o mistério, mas para ser por esse totalmente possuído”13.

É importante assinalar que, além dessa característica, Artigas nota que Losskij sugere outros significados para o apofatismo. Em primeiro lugar, é uma disposição espiritual que freia toda a presunção da pessoa em tentar adaptar os mistérios de Deus ao pensamento humano; de-pois é também uma atitude existencial, pois não há teologia separada da experiência do homem crente. No capítulo XII, já na conclusão do livro, o apofatismo cristão é apresentado como a característica essencial da Igreja do Oriente: “A atitude apofática, na qual se pode ver o caráter fundamental de todo o pensamento teológico da tradição oriental, é uma homenagem constante dada ao Espírito Santo, que supre todas as insuficiências, faz superar todas as limitações, confere ao conhecimen-to do Incognoscível a plenitude da experiência, transforma as trevas divinas em luz na qual nos comunicamos com Deus”14.

Nos comentários há uma insistência sobre a necessidade de voltar a introduzir o apofatismo cristão no fazer teológico também ocidental, e isso, como se viu, consiste em manter uma disposição espiritual na pesquisa teológica, seja para ajudar a não objetivar demais a divindade nas instituições humanas, por meio da liberdade do Espírito, quanto para vislumbrar possíveis repercussões de uma correta doutrina do Es-pírito Santo em equilíbrio com a cristologia, a antropologia e a ecle-siologia, uma vez que a perspectiva dogmática é entre nós pobre neste aspecto espiritual15.

Artigas dedicou-se intensamente em despertar nos estudantes de teologia o interesse pela busca de um princípio inspirador do traba-lho teológico. O método teológico entendido como forma de fazer a pesquisa em teologia, apesar de importante, não lhe parecia suficiente.

13 V. Lossky, A immagine e somiglianza di Dio (EDB, Bologna 1999), 31.14 V. Lossky, Teología mística de la Iglesia de Oriente, 177.15 Cf. L. Artigas, El Espíritu Santo en la escatologia paulina según la teologia protestante de nuestro siglo: desde Albert

Schweitzer hasta Karl Barth (Editorial Eset, Vitoria 1975), 398-399.

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Era necessário apresentar uma visão metodológica renovada cujos princípios fossem inspirados pelo Concílio Vaticano II. O Concílio proporcionou essa virada epistemológica por meio do método dialogal, cuja preocupação é a busca comunitária pela verdade.

O ponto de partida encontra-se no ser humano e na sua experiência vital da fé, pela qual poderíamos falar também de método existencial. Essa preocupação com um método mais existencial de ensino da teo-logia e a necessidade de partir da experiência de fé, para poder depois refletir sobre o mistério, marca fortemente o horizonte teológico de Artigas. A teologia não é simplesmente a reflexão sobre um fato pas-sado, mas de preferência a reflexão sobre uma experiência atual que se fundamenta num fato passado. Sem experiência, a teologia não tem razão de ser. As categorias teológicas do Oriente cristão servem, pois, para validar e justificar semelhante posição.

A leitura das páginas do capítulo IV sobre as “energias incriadas”, por sua vez, leva Artigas às seguintes considerações: “está mudando minha maneira de entender os nomes divinos na teologia oriental: não são nomes em sentido poético ou dialógico, os Nomes traduzem as energias”.

As energias incriadas são a manifestação exterior da Trindade, atri-butos dinâmicos e concretos16, contudo, são diferentes daqueles imagi-nados e criados pela teologia estéril dos manuais ocidentais, nos quais esses atributos aparecem como conceitos a respeito de Deus. O pará-grafo no qual Losskij trabalha sobre a questão da Trindade econômica é iluminador, pois toda a energia provém do Pai, comunicando-se pelo Filho no Espírito Santo. A Trindade manifesta-se no mundo pelas energias, entretanto, será necessário “reter um traço importante: a pes-soa do Espírito Santo permanece não manifesta, não tem sua imagem em outro”17. A propósito dessa frase e do interesse pelo tema da pneu-

16 V. Lossky, Teología mística de la Iglesia de Oriente, 60.17 Ibid., 63.

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matologia, Artigas observa: “interessa-me muito a afirmação última de Losskij nesta página, em que o caráter anônimo do Espírito Santo me parece ‘explicado’ claramente pela primeira vez”.

Os dogmas sobre as energias não podem ser concebidos de modo abstrato, mas relacionados a uma realidade de ordem religiosa que se expressa por meio da linguagem antinômica18. Ora, tanto o espírito apofático quanto a linguagem antinômica atravessam todos os assuntos da teologia oriental desde Deus Pai, Jesus Cristo, a Igreja e o ser huma-no. São esses dois elementos os motivos que levam Artigas a confessar sentir-se mais atraído pelos temas de tal teologia. O aprofundamento do tema das energias incriadas é fundamental para compreender bem a teologia mística oriental e poder distingui-la da perspectiva ocidental.

Já o capítulo V trata do tema do “ser criado” e indica que o percur-so e a passagem de uma reflexão sobre a Revelação Trinitária àquele da noção do ser criado é tão exigente e difícil quanto as reflexões so-bre o fundamento e o fim supremo da teologia. Artigas concorda com Losskij e anota: “sim, muitas vezes eu disse a mim mesmo que era ne-cessária tanta fé para enfrentar o mistério de Deus quanto o mistério do homem”.

Em geral, esquecemo-nos de que a criação do mundo não é uma verdade de ordem filosófica, mas um artigo de fé. No desenvolvimen-to dessa ideia, Losskij indaga sobre o significado da criação ex nihi-lo como uma ação que dá lugar a algo fora do próprio Deus, que é absolutamente novo. O universo criado “não se apresentará, como no pensamento platônico, com o aspecto pálido e frágil de uma péssima réplica de Deus, mas aparecerá como um ente absolutamente novo, como a criação novamente saída das mãos de Deus do Gênesis ‘que viu que aquilo era bom’, um universo criado e querido por Deus e que foi a alegria de sua Sabedoria, uma ordenação musical, um hino maravilhosamente composto pela força onipotente, nas palavras

18 Ibid., 58.

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de São Gregório de Nissa”19. A impressão geral sobre este capítulo é a seguinte: “o conjunto deste capítulo me faz sentir a pobreza de nossa teologia ocidental da criação, que é muito mais filosófica e pretende ser mais científica, mas que, na realidade, é muito menos teológica. E neste texto de Losskij sinto uma visão muito mais teológica e mui-to mais compreensiva”. Esta fundamentação é mais teológica porque mesmo abrindo-se às aquisições de outras ciências, ela respeita e admi-te de fato a primazia da revelação, da Palavra de Deus, já que somente ela pode revelar ao homem a dimensão cristocêntrica da sua condição de criatura.

Artigas anota como algo importantíssimo o desenvolvimento da ideia de que a criação é uma obra comum da Trindade. Refere-se aos termos que Losskij retoma de São Basílio sobre a forma diferente e singular das três pessoas serem causa da criação: o Pai como causa primordial; o Filho como a causa operadora; e o Espírito como a causa que aperfeiçoa. Losskij salienta ainda que a ação comum da Trinda-de – na dupla economia do Verbo e do Espírito – confere às criaturas não apenas o ser, mas a faculdade de ser conforme o bem e de desejar a perfeição.

Artigas sublinha e considera impressionante o modo de explicação de Losskij em alguns trechos deste capítulo: o primeiro seria sobre a natureza da matéria; outro sobre a cosmologia da revelação como geo-cêntrica e, por fim, a ideia sobre o místico cristão.

Quanto à natureza da matéria, o autor russo afirma: “Contudo, cada elemento do corpo é guardado como por uma sentinela pela faculdade intelectual da alma marcando-o com o seu selo, pois a alma conhece seu corpo inclusive quando seus elementos estão dispersos no mundo. Na con-dição mortal, depois do pecado, a natureza espiritual da alma guardará certo vínculo com os elementos desunidos do corpo que saberá voltar a encontrar no momento da ressurreição para que sejam transformados em

19 Ibid., 71.

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‘corpo espiritual’, que é o verdadeiro corpo, diferente de nossa corporei-dade tosca, aquelas vestes de peles de animais que Deus fez para Adão e Eva depois do pecado”20. Já em relação ao fato de que a revelação dirige-se aos homens e refere-se à obra da salvação, Losskij utiliza a imagem da parábola do bom pastor: “O pensamento patrístico quis ver na parábo-la do bom pastor, que volta para buscar uma ovelha desgarrada e deixa nas montanhas um rebanho de noventa e nove ovelhas, uma alusão à pe-quenez do mundo caído em comparação ao conjunto do cosmos”21. As considerações, por fim, sobre o místico cristão só podiam mesmo suscitar maravilha e comoção no leitor, pois diz: “Um místico cristão se recolherá em si mesmo, se abrigará na cela interior do seu coração, para encontrar ali, mais profundo que o pecado, o começo de uma ascensão no decorrer da qual o universo lhe parecerá cada vez mais unido, cada vez mais coerente, penetrado por forças espirituais, formando um conjunto contido nas mãos de Deus”22.

Imagem e Semelhança é o título do capítulo VI da obra na qual, segundo Artigas, o teólogo russo “universaliza o conceito de imagem de Deus em paralelo ao conceito de corpo de Cristo”.

Ao longo das páginas, como já afirmamos acima, aparecem pe-quenas anotações ao lado dos trechos significados, tais como: “é verdade”; “sim, certo”; “importante”; “impressionante, é isso” e ou-tras tantas exclamações de um leitor coenvolvido no desenvolvi-mento das ideias do autor. Quando se afirma: “O princípio fun-damental do ascetismo consiste na renúncia livre da vontade própria, ao simulacro da liberdade individual, para retomar a ver-dadeira liberdade, a da pessoa, que é a imagem de Deus própria de cada um” está justamente colocando os fundamentos da re-núncia de si no horizonte do dogma trinitário. Para Artigas, esse é também um aspecto necessário no caminho do conhecimento, 20 Ibid., 77.21 Ibid., 78.22 Ibid., 78.

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pois sem a humildade, sem a libertação dos preconceitos e o esvazia-mento de si não será possível a comunhão. Ele salienta a necessidade em nossos tempos de pensar o estudo da teologia no horizonte do método apresentado por Losskij: “Pouco a pouco, a leitura-estudo--meditação deste livro está deixando uma visão de conjunto, é como ir recolhendo peças teológicas mais ou menos soltas dentro de um conjunto coerente. Ao mesmo tempo, me deixa em uma atitude se-rena, que vou chamar de apofática. Sim, vou tratar de adotar esta atitude interior, pois me faz esquecer todo este mundo, com abertura e com sentido do limite ao mesmo tempo: a diferença é que já não se trata de domesticar o real para colocá-lo em minha inteligência, mas trata-se de procurar domesticar minha inteligência para adequá-la ao real, distinguindo o caminho de ascensão (catafático) e o caminho de contemplação (apofático)”.

Depois de examinar os elementos de teologia da tradição oriental que servem como fundamento para a doutrina da união com Deus e haver descrito os polos constitutivos dessa relação por meio do ensino sobre o Ser incriado e o ser criado, Losskij dedica o capítulo VII à eco-nomia do Filho, em que aparecem algumas breves anotações feitas por Artigas, nas quais se verificam, mais uma vez, pontos que o seduziam na teologia oriental.

A primeira anotação é referente à perfeita síntese realizada por Losskij sobre a obra salvífica de Jesus Cristo no trecho seguinte: “Só Deus pode devolver aos homens a possibilidade da deificação, liber-tando-os ao mesmo tempo da morte e do cativeiro do pecado. O que o homem deveria alcançar elevando-se até Deus é realizado pelo pró-prio Deus descendo até os homens. Por essa razão, a tríplice barreira que nos separa de Deus (morte, pecado, natureza), insuperável para os homens, será salva por Deus na ordem inversa, começando pela união das naturezas separadas e terminando com a vitória sobre a morte”23.

23 Ibid., 101.

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A segunda observação é acerca da admirável visão sobre a provi-dência apresentada por Losskij à qual Artigas se rende dizendo cor-responder perfeitamente à sua sensibilidade: “Pois bem, a providência significa as determinações da vontade divina em relação à liberdade humana baseadas na previsão dos atos livres da criatura. É uma von-tade sempre saudável que sabe produzir um maior proveito para os homens em todas as vicissitudes de suas fugas, com a condição de que o homem saiba reconhecer a vontade de Deus. Pode-se dizer com uma desculpável inexatidão que Deus cede à sua vontade, em sua providência, frente à liberdade dos homens e atua em virtude dessa liberdade, coordena suas ações com os atos dos seres criados, a fim de governar o universo caído cumprindo sua vontade sem violentar a liberdade das criaturas”24.

Por fim, o trecho no qual Losskij fala a respeito da kénosis de Cristo e do grito de abandono na cruz é aquele em que Artigas dei-xa ao lado o nome do seu mestre em teologia, Boublik, exatamente no trecho: “Por isso o último grito de angústia mortal de Cristo na cruz era uma manifestação de sua verdadeira humanidade, que ex-perimentava voluntariamente a morte como um despojamento fi-nal, como o resultado da kénosis divina”25. Os temas da sabedoria da Cruz, do sofrimento, da morte, do pecado e do significado de Cris-to morto e ressuscitado foram as páginas mais belas elaboradas por Boublik26, por isso, era fácil reconhecer na obra Teologia mística da Igre-ja do Oriente elementos convergentes com essa perspectiva de aban-dono e renúncia que, por sua vez, representavam a categoria guia da obra teológica do padre Boublik, isto é, a opção por uma esperança que, vivendo plenamente na história, nunca renuncia à expectativa

24 Ibid., 103.25 Ibid., 109.26 Escreve V. Boublik: “Assim sendo, uma situação paradoxal caracteriza a presença do cristão no mundo: por um lado,

a sua adesão a Cristo crucificado e ressuscitado chama-o ao êxodo do mundo; por outra, o amor ao homem obriga--o a se engajar na construção do mundo. Ambas chamadas são autênticas; a primeira, longe de excluir a segunda, especifica-a: o engajamento cristão no mundo deveria excluir somente aqueles fatores que se opõem à dimensão escatológica da vida cristã”, in L´uomo in Cristo Gesù, (Ut unum sint, Roma 1971), 166.

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da comunhão irrevogável com Cristo glorioso, mesmo sabendo que semelhante esperança identifica-se paradoxalmente com o sofrimento e a morte.

Curioso notar a ausência, no capítulo VIII, sobre a economia do Espírito Santo de comentários à margem ou ao pé da página das im-pressões do padre Artigas. Para os que o conheceram e puderam ouvir as suas lições de teologia sistemática era visível o apreço pela pneu-matologia e, ademais, a crítica insistente que fazia a uma teologia na qual a pessoa do Espírito Santo era quase deixada de lado tanto pelos manuais quanto pelo curriculum teológico.

Trechos inteiros desse capítulo são sublinhados por ele indicando--nos as partes essenciais, como por exemplo aquela em que Losskij fala de Pentecostes como o evento que, na tradição mística do Oriente, confere às pessoas humanas a presença do Espírito Santo, ou ainda, a frase final deste capítulo em que se lê: “[...] esta pessoa divina desco-nhecida, que não tem sua imagem em outra hipóstase, se manifestará nas pessoas deificadas: pois a multidão dos santos serão a sua imagem”, todas partes expressivas da preocupação assinalada por Artigas da la-cuna sofrida pela teologia ocidental sobre a peculiaridade da ação do Espírito Santo. Deve-se lembrar aqui o tema da sua tese doutoral – “El Espíritu Santo en la escatologia paulina según la teologia protestante de nuestro siglo: desde Albert Schweitzer hasta Karl Barth”. Com esta obra, Artigas procura aprofundar a compreensão do horizonte espi-ritual do homem e da libertação do mundo a partir do Espírito, no contexto da teologia ocidental, e indica a necessidade para a Igreja – banhada pela renovação ocorrida no Concílio Vaticano II – de refletir teologicamente sobre a Pessoa do Espírito Santo e, ao mesmo tempo, de reconhecer a sua presença e atuação. A teologia ocidental no seu excessivo intelectualismo deixou de refletir – tal como vem sublinhado nas páginas de Losskij – a respeito do mistério da economia do Espí-rito Santo:

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A pneumatologia oferece um sugestivo e inexplorado campo de trabalho ao teólogo. Primeiramente, por aquilo que se refere ao Espírito Santo como Pessoa e em relação com o mistério trinitário; a teologia oci-dental pecou tradicionalmente pelo excesso de inte-lectualismo na exposição deste mistério. Quem sabe seria útil uma abertura a certos valores da teologia oriental, mais atenta ao aspecto econômico do mis-tério, do início ao fim o único que a Bíblia testemu-nha diretamente. Certamente, o Espírito Santo ope-ra conforme seu ser íntimo e, nesse sentido, sempre será relativamente útil à especulação sobre o mistério trinitário, sobre a personalidade das divinas Pesso-as, sobre o Espírito Santo como relação divina que fundamenta a dimensão comunicativa do homem. E também ajudará a não objetivar demais a divindade nas instituições humanas, por meio da liberdade do Espírito. O Ocidente cristão, católico e protestan-te, privilegiou a cristologia e desfigurou a missão do Espírito Santo, de maneira idealista-psicologista, ou também jurídica ou institucional. Em ambos os casos desconhece-se algo importante no campo da pneu-matologia e a relação complementar das missões do Filho e do Espírito27.

Dois aspectos da Igreja é o título do capítulo IX da Teologia mística da Igreja do Oriente. A correlação feita por Losskij entre a vida em Cristo e a vida sacramental é algo novo, sobretudo, pela forma dinâmi-ca de conceber a graça na espiritualidade oriental: “A vida sacramental, a vida em Cristo, se apresentará como uma luta incessante para adqui-

27 L. Artigas, El Espíritu Santo en la escatologia paulina según la teologia protestante de nuestro siglo: desde Albert Schweitzer hasta Karl Barth, 399.

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rir a graça, que deve transfigurar a natureza, luta na qual as ascensões e quedas alternam-se, sem que as condições objetivas da salvação sejam jamais retiradas do homem”28.

A atenção volta-se para a seguinte equação: vida sacramental = vida em Cristo. O ponto de destaque é a configuração de cada pes-soa com Cristo, cuja perfeição realiza-se justamente no abandono da natureza comum para adquirir a graça que nos é concedida pelo Espírito Santo.

É necessário destacar o trecho no qual aparece o fundamento da renúncia de si: “Não convém buscar o pessoal, pois a perfeição da pes- soa realiza-se no abandono total, na renúncia de si mesma. Toda pessoa que busca afirmar-se não chega mais que à fragmentação da natureza, ao ser particular, individual, que cumpre uma ordem contrária àquela de Cristo”29. Esse fundamento da renúncia de si para Artigas é aquele que mais o convence de todos os que ele ouviu durante a sua vida, porque não se baseia em uma moral de esforço ou de humilhação, ao contrário, aparece fundamentado em algo ontológico, ou seja, baseia-se na diferença e na relação entre natureza e pessoa. O aspecto marcante da reflexão de Losskij nes-te capítulo está na forma com que elabora uma visão de Igreja na qual procura manter em estreita conexão o princípio cristológico e pneumatológico.

Já os capítulos X e XI dedicados respectivamente à reflexão sobre a via da união e a luz divina são partes do texto do livro nas quais não aparecem mais os comentários do padre Artigas, mas apresen-tam – como ao longo de todo o livro de Losskij – grifos dos trechos mais significativos.

O teólogo russo conclui seu livro com um título muito sugestivo – O Festim do Reino – inspirado no poema atribuído a São João Crisóstomo

28 V. Lossky, Teología mística de la Iglesia de Oriente, 133.29 Ibid., 135.

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e lido durante o período pascal para expressar a plenitude escatológica, meta à qual almeja chegar o cristianismo oriental.

Este último capítulo é a síntese de todo o percurso proposto por Losskij e, apesar da ausência de comentários, aparecem reflexões em convergência com a produção teológica de Artigas e da sua sensibili-dade teológica. É o contexto escatológico, com a enfática declaração final a respeito da relação entre a consciência da plenitude do Espírito Santo dada a cada membro da Igreja e o festim da fé na ressurreição, o fator determinante, pois se revela um modo de fazer teologia em que “a escatologia é uma dimensão de toda a teologia”30.

A perspectiva escatológica e pneumatológica desta conclusão pode perfeitamente ser lida à luz daquilo que Artigas almejava para a teolo-gia católica na aurora do Vaticano II:

A pneumatologia parece-me uma peça importante para a antropologia cristã: tudo existe enquanto pneumático e para chegar a ser pneumatóforo. Aqui temos um ele-mento-chave para compreender a pessoa humana como criada pelo Espírito, pessoa livre e espiritual, destinada à comunhão. Da mesma forma isso ajudará à melhor compreensão da Igreja dentro e fora do catolicismo... Se há esperança para a Igreja, não será certamente pela nostalgia de um túmulo vazio: a escatologia temporali-zada (consequentemente realizada) parece-nos superada para ser entusiasmante. Se há esperança para o cristão não será tampouco pelo novo empenho de autenticar a própria existência, centrada substancialmente no eu e no agora sufocantes. Nossa esperança, nossa única es-perança, é que nossa fé chegue finalmente a converter-se

30 L. Artigas, El Espíritu Santo en la escatologia paulina según la teologia protestante de nuestro siglo: desde Albert Schweitzer hasta Karl Barth, 395.

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em pobreza; e, também, que o cristão e a Igreja deixem de defender-se para começar a servir. Nossa esperança é que, em uma renovada compreensão e vivência do dom do Espírito, apareça de novo no mundo o sentido do ho-mem e das coisas, das contradições e das vicissitudes da história, desta contínua luta do ser humano em meio às contradições da vida. E, então, será possível que no final de nossa noite de combate, cansados e coxos, desperte-mos e tenhamos de reconhecer que, sem saber, estáva-mos na casa de Deus. Ora, porque onde está o Espírito ali – e somente ali – encontra-se a liberdade31.

conclusão

O objetivo era oferecer uma primeira visão sobre a importância de conhe-cer a obra de Vladimir Losskij. Cabe lembrar que, tentando corresponder às solicitações do autor, esta apresentação reconstruiu as intuições principais de um teólogo, leitor de Losskij, o qual, no exercício do ensino da teologia no Brasil, comunicava a seus estudantes a paixão pela teologia com a consciên-cia de que “todo método é teórico e estéril enquanto não se encontrar uma pessoa que o encarne e o comunique, pois todo o esforço solitário de uma informação nocional e livresca, mesmo que fosse a mais ampla imaginável, não é o melhor método para uma pesquisa cientificamente frutífera”32.

Ora, para prosseguir na fascinante aventura do conhecimento e aprofundamento da obra de Losskij, nada melhor e oportuno do que os aspectos oferecidos por Lubomir Žak neste livro. A chave para esta apresentação pode ser uma reflexão de Artigas, na qual ele nos sugere a aplicação do apofatismo, como purificação existencial, com a fina-lidade de manter a paixão por uma teologia em consonância com a existência e as preocupações do homem e mulher de fé:

31 Idem, 399-400.32 L. Artigas, Síntese teológica: busca de um novo método na teologia (Curitiba: Studium Theologicum 1996), 5.

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Sim, é bem possível que estejamos vivendo, atual-mente, num mundo muitas vezes sem Deus. Porém, há ausências e ausências de Deus. Há ausências la-mentáveis e destruidoras. E há ausências autênticas, ausências de Deus a serem vividas com Deus e diante de Deus. Se a noite é escura, não precisa dizer que é clara; mas quanto mais escura for a noite, tanto mais claras serão as estrelas. E Deus não deixou a humani-dade sem estrelas na sua noite, a mais clara das quais é a Estrela da manhã, o Cristo de quem canta o pregão da liturgia da noite pascal, aliás o centro da liturgia cristã. Talvez o Cristo seja aquele que, ocupando o centro da criação do Pai e, portanto, o centro escondi-do da pessoa humana, mantém continuamente aber-ta no profundo do homem a pergunta sobre Deus. A pergunta sobre Deus parece sempre frágil, sempre ameaçada e sempre renascendo das próprias cinzas. Como diz Heinz Zahrnt: ‘Deus é o absolutamente não necessário na vida do homem, mas, precisamente por isso mesmo, é aquele de quem o homem não pode prescindir’. A história da humanidade assemelha-se com a noite de Jacó, com a sua luta interminável com o anjo, combate desigual, porém, inevitável. Quando o dia amanhecer, sem dúvida haveremos de nos dar conta – até que enfim – de que em nossa vida toda estivemos enfrentando Deus. E é o Cristo quem abre, bem no centro do nosso coração, da nossa vida coti-diana, a ferida de Deus33.

Prof. Dr. Márcio Luiz Fernandes

33 L. Artigas, Cristo na vida ordinária (Círculo de Estudos Bandeirantes: PUCPR 1992), 4.