Upload
historiaculturaearte
View
684
Download
4
Tags:
Embed Size (px)
Citation preview
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 1/21
INTRODUC;Ao
A CULTURA DO BARROCO COMO
UM CONCErTO DE EPOCA
Entre os diferentes enfoques que podem ser validos para chegar a uma inter-
pretacao da cultura barroca - cujos resultados, dada a mesma divcrsidade desta,
serao sempre parciais -, pretendemos realizar uma pesquisa sobre 0 sentido e 0
aIcancedos elementos que integram essa cultura, de modo que se ressalte sua cone-
xaocom as condicoes sociais de que depende e para cuja paulatina transformacao,
porsua vez, contribui. Talvez este ponto de vista possa ter-nos fornecido urn pano-
rama mais amplo e sistematico; porem, temos tambem de aceitar uma limitacao
inexoravelmente vinculada a nossa visao: 0 Barroco deixou de ser, para nos, urn
conceitode estilo que possa repetir-se e que de fato se supoe que se tenha repetido
emrmiltiplasfases da historia humana; tornou-se, em franca contradicao com 0que
foi dito anteriormente, urn mero conceito de epoca, Nossa investigacao acaba por
nos apresentar 0 Barroco como uma epoca definida na his tori a de alguns pafses
europeus, pafses cuja situacao hist6rica, em certo momento, independentemente
dasdiferencas, mantern estreita relacao. Consequentemente, a cultura de uma epo-
cabarrocapode ser encontrada tambern, e com certeza 0 foi, em pafses americanos
sobreos quais repercutiram as condicoes culturais europeias desse tempo.
N ao se trata, obviamente, de definir 0 Barroco como uma epoca da Europa,
enfeixadaentre datas perfeitamente definidas, como nos foi solicitado algumas ve-
zes.Asepocas hist6ricas nao podem ser recortadas e isoladas umas das outras pelo
marcode urn ano, de uma data, mas - sempre por meio de uma intervencao arbitra-
ria damente humana que as contempla - separam-se umas das outras ao longo de
urnlapso de datas, mais ou menos amplo, atraves do qual amadurecem, para desa-
41
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 2/21
JOSE ANTONIO MARA VALL
parecer em seguida, transformando-se em outras, passando inevitavelmente a ou-
tras sua heranca. Desde 1600, aproximadamente (apesar de certos fen6menos de
precoce significacao barroca terem sido anunciados anos antes, nos ultimos mo-
mentos do maneirismo miquelangelesco e, entre nos, com a construcao do Escorial),
ate 1670-1680 (mudanca de conjuntura economica e primeiras ressonancias da ci-
encia modern a na Espanha; Colbert e 0colbertismo econ6mico, politico c cultural
na Franca; arrancada decisiva da Revolucao Industrial na Inglaterra). E certo que
ate mesmo no seculo XVIII se podem descobrir manifestacoes barrocas que se en-
contram entre as mais extravagantes e radicais, mas e sabido que 0 sentido da epoca
6 outro. No que diz respeito a Espanha, os anos do reinado de Felipe III (1598-
1621) compreendem 0 perfodo de formacao; os de Felipe IV (1621-1665),0 de
plenitude; e os de Carlos II, pelo menos em suas duas primciras decadas, a fase
final de dec aden cia e degeneracao, ate que se inicie uma conjuntura de restauracao,
orientada para uma nova epoca, antes do final do seculo'.
Barroco e, portanto, para nos, urn conceito hist6rico. Compreende, aproxima-
damente, os tres primeiros quartos do seculo XVII, concentrando-se com maior
intensidade, em sua mais plena significacao, de 1605 a 1650. Se este lapso de tem-
po se refere especialmente it hist6ria espanhola, vale tambem, com ligeiros desloca-
mentos, para outros pafses europeus - embora na Italia, com nomes como Botero,Tasso etc., talvez seja conveniente adiantar seu infcio, pclo menos no que concerne
a alguns aspectos da arte, da polftica, da literatura etc.
Com isto, queremos dizer que renunciamos ao emprego do termo "barroco"
para designar conceitos morfol6gicos ou cstilfsticos, repetfveis em culturas crono-
16gica e geograficamente separadas. Seguramente, e possfvel estabelecer certas re-
lacoes entre elementos externos, puramente formais, do Barroco europeu do seculo
XVII e aqueles que apresentam epocas hist6ricas diferentes, de areas culturais dis-
tantes entre si. E facil comprovar que uma cultura dispoe sempre de emprestimos e
leg ados que lhes chegam de outras, anteriores e distantes. Lembremo-nos da curio-
sa e consideravel safra de temas iconograficos que 0Oriente sul-asiatico traz para a
Idade Media europeia, segundo revel am com engenhosa erudicao alguns estudosde Baltrusaitis". Porem, esses antecedentes, influencias etc., nao definem uma cul-
tura. Revelam, no maximo - e isso ja c bastante - , que uma cultura de urn perfodo
determinado esta aberta a correntes ex6ticas, que conta entre seus elementos com
uma mobilidade geografica: lembremos, por exemplo, a introducao da cupula na
I. Ver Lopez Pinero, lntroduccion de la Ciencia Moderna en Espai ia, Barcelona, 1969. Este autor estabele-
ce perfodos para a crise do pensamento cienti fico espanhol muito proximos dos que aqui indicamos.
2. J. Baltrusaitis, Le Moyen Agejantastique, Paris, 1955.
42
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 3/21
D U -
de
INl1WDU{,'AO'
10-
a l ) ,
ci-
raj
ue
m-
arte pre-romanica catala' ou 0tftulo de "basileus" atribufdo a alguns reis asturianos
ou britanicos". Talvez nos exija que tenhamos de assinalar nessa cultura, para
caracteriza-la, a dependencia de uma remota tradicao (como no caso da arte
mocarabe, troneo visigodo com elementos islamicos", Em outro tipo de exemplo, as
metaforas pelas quais, ate 0 seculo XVIII, se expressa a concepcao estamental eu-
ropeia da sociedade tern antecedentes bramanicos)". Em todos estes casos, entre-
tanto, nao se trata propriamente de urn parentesco intracultural, mas de contribui-
goes isoladas que se integram em conjuntos diferentes. Nem a mera coincidencia na
utilizacao de elementos isolados nem a repeticao de aspectos formais, cuja cone-
xao, em cada caso, se produz com sistemas muito diferentes, podem ser a base, a
nosso ver, para definir culturas que cavalgam sobre seculos e regioes geograficas
de distintas caractensticas. Essas correlacoes morfologicas, estabelecidas sobre a
abstracao de tantos outros aspectos com os quais sc pretende definir urn momento
cultural, nao dizem nada - ou dizem muito pouco - ao historiador. 0 rastreamento
e a formulacao das mesmas sao apenas urn jogo de engenho que habitualmente se
reduz a uma amena arbitrariedade, No entanto, e possfvel que se possam fundar, no
reconhecimento daquelas correspondencias, atraves do tempo e do espaco, algu-
mas generalizacoes, cuja aplicacao em outro campo de conhecimento nao discuti-
mos. Colocamo-nos, porem, no terreno da hist6ria social, que e, sem diivida, histo-
ria: 0 objetivo desta nao ereduzir a importancia da consideracao de seus dados
observaveis, de maneira que sua observacao - e toda possfvel inducao resultante-
se mantenha apenas no nfvel superficial dos aspectos recorrentes, nas fases dis tin-
tas do passado humano. Seu prop6sito e alcancar urn conhecimento 0mais sistema-
tico possfvel de cada urn dos perfodos que submete a estudo, scm que com is so
renuncie a compara-los, depois, com todo rigor. Tambem deve orientar-se nao no
sentido de estabelecer generalizacoes abstratas, mas completando concretamente
a melhor conhecimento de cada epoca, Desta maneira, seu metodo consiste em
levar em conta 0maior mimero de dados que consiga e os mais diversos entre
si de quantos ofereca uma determinada epoca, para interpreta-los no conjunto
em que se integram. E isto, obviamente, sern.ignorar, no seu caso, aqueles que
revelem sernelhancas ou congruencias com outras epocas, Em nos sa hipotese,
tudo sc orienta nao no sentido de descobrir barrocos do antigo Egito ate a
America de hoje, mas no de completar 0 panorama de conexoes entre fatos de
3, Ver Puig e Cadafalch, Le premier art roman, Paris, 1928.
4, Ver minha obra Concepto de Espana en la Edad Media, Madrid, 1954; excrnplos citados nas pp, 403
e ss,
5. Ver Gomez Moreno, Las Iglesias Mozdrabes, t . I , Madrid, 1919,
6. Ossowski, Estructura de Clases y Conciencia Social, Madrid, 1969, pp, 27 e ss.
43
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 4/21
JOSE ANTONIO MARAVALL
natureza multi pla que nos permitam conhecer melhor 0que foi 0Barroco, enquanto
penodo tinico da cultura europeia, plasmado durante as decadas que apontamos do
seculo XVII.
Ainda, ao fazer referencia a fenomenos que, nas paginas que se seguem, des-
tacaremos de campos muito variados - embora nao procedam, contrariamente it
mancira como nos colocavamos na hip6tese anterior, de lugares e seculos distintos
e distantes -, torna-se necessario urn esclarecimento. Nao tenhamos expectativas
de encontrar semelhancas ou parentescos morfol6gicos que aproximem os dados
cxternamente, nem manifestacoes de urn estilo que inspire internamente fenorne-
nos de todo tipo: economicos, politicos, religiosos, artfsticos, literarios etc. Temos
conviccao de que, nestes casos, em qualquer dos campos dos feitos humanos, sc
pode falar coerentemente de Barroco em um momento dado. Quando, em 1944,
publiquei meu livro sobre 0 pensamento politico espanhol "no seculo XVII", ja
dizia, no prologo, que poderia perfeitamente ter escrito no titulo, em substituicao
aos termos que acabamos de citar entre aspas, estas outras palavras: "na epoca do
Barroco'". Como naquele momenta tal expressao teria sido ainda um tanto insolita,
desisti de menciona-la na abertura do volume. Muitos anos depois, em 1953, urn
especialista em hist6ria da pintura", falando do Barroco enquanto conceito de uma
epoca, 0 seculo XVII, lamentava a ausencia de urn estudo sobre 0 pensamento
polftico barroco. Nesse momento, meu livro ja havia sido escrito e pouco depois
seria publicado em frances, com urn prologo de Mesnard, no qual destacava esse
delineamento basico, novidade de que minha obra era portadora. Alguns autores
alemaes falaram, em outro terreno, de "teologia barroca", expressao a qual era mais
facil chegar porque, embora hoje nos parec,:ainsustentavel, durante muito tempo 0
surgimento e 0 desenvolvimento da cultura barroca estiveram estreitamente vincu-
lados ao fator religiose". Hoje ja e comum falar em ciencia barroca, em arte da
guerra do Barroco, em economia barroca, em polftica barroca etc. Evidentemente,
aqui temos de ter muito cuidado. Pode haver certa correspondencia entre elementos
externos ou formais que ocorram em urn e outro campo. Sem diivida, certos aspec-
tos da arquitetura da epoca ou do retrato pict6rico podem ser, a titulo de exemplo,
particularmente adequados para admitir uma referencia a condicao majestatica dos
7. Ver meu Teoria Espanola del Estado en el Siglo XVII, Madrid, 1944.
8. R. Huyghe, "Classicisme et Baroque dans Ia peinture francaise du XVII' siecle", XVII' Siecle, n° 20,
Paris, 1953.
9. De Weisbach, Gothein e tantos outros , a te 0 tradutor para 0 frances de minha obra citada na nota 7 , que
pretendeu apresentar 0 pensamento nela estudado "dans ses rapports avec I'esprit de la Contre-Reforrne".
Sabre 0 tema da rnetaffsica e da teologia barrocas, ver L. Legaz, Horizontes del Pensamiento Iurtdico,
Barcelona, 1947, pp. 93 e ss.
44
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 5/21
INTRODUC;f.O
45
reis absolutistas barrocos. Porem, referindo-se a conexao arbitraria, proposta por
Eugenio d'Ors, entre cupula e monarquia'", Mousnier, em certa ocasiao, observava
que nao ha nenhum palacio real do seculo XVII com cupula que 0 centralize e 0
come. Nao sei se e possfvel estabelecer semelhancas entre a tecnica de navegacao e
as Soledades de G6ngora ou entre os Sueiios de Quevedo e a economia da laoEstou
certo de que ensaios deste tipo seriam muito divertidos de ler, mas temo que pouco
contribuiriam para fazer avancar 0 conhecimento hist6rico do perfodo. Nossa tese e
a de que todos esses campos da cultura coincidem como fatores de uma situacao
historica, repercutem nela e entre si. Em sua transformacao, propria da situacao de
cada tempo, chegam a ser 0 que sao pela acao recfproca e conjunta dos demais
fatores. Isto e , a pintura barroca, a economia barroca, a arte da guerra barroca nao
mantem necessariamente semelhancas entre si - ou, pelo menos, nao e isso 0 que
conta, embora algum parentesco formal talvez possa verificar-se -, mas, dado que
se desenvolvem em uma mesma situacao, sob a acao de iguais condicoes, respon-
dendo asmesmas neccssidades vitais, sofrendo uma inegavel influencia modificadora
por parte dos outros fatores, cada uma delas e assim alterada, em dependencia, pois,
do conjunto da epoca, a qual hao de se referir as mudancas observadas, Nesses
termos, pode-se atribuir 0 carater definidor da epoca - neste caso, seu carater barro-
co -a teologia, a pintura, a arte belica, a ffsica, a economia, a polftica etc. etc. E
desse modo que a economia em crise, as alteracoes monetarias, a inseguranca do
credito, as guerras econornicas e, ainda, 0 fortalecimento da propriedade agraria
senhoriaI e 0crescente empobrecimento das massas criam urn sentimento de amea-
ca e de instabilidade na vida social e pessoal, dominado por forcas de imposicao
repressora que estao na base da gesticulacao drarnatica do homem barroco e que
nos permitem denomina-lo desse modo.
Assim, 0 Barroco e , para nos, urn conceito de epoca que se estende, em prin-
cipio, a todas as manifestacoes integradas na cultural Ida mesma. Foi pelos cami-
nhos da arte que se chegou a identificar 0 novo conceito de uma epoca na cultura
italiana, quando Burckhardt, grande conhecedor do Renascimento, notou que as
obras que contemplava em Roma, posteriores ao perfodo renascentista e inseridas
emurn prazo determinado de anos, apresentavam, em suas deformacoes e corrupcoes
de modelos anteriores, certas caracterfsticas que apareciam como proprias de urn
tempo de algum modo distinto. E Gurlitt, historiador da arquitetura romana, obser-
1 0. L as I de as y l as Formas , Madrid, s.d.
II. Sanchez Canton, que nfiovia inconveniente em ampliar 0 conceito para as artes e a literatura, reivindica-
va, no entanto, uma dclimitacao cronologica 0 mais aproximada POSSIVe! em "EI Barroco Espafiol: An-
tecedentes y Empleo Hispanicos de Barroco", em Manierismo, Barraco, Rococo (Convegno
lnternazionale, Roma, 1960), Roma, 1962.
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 6/21
JOSEANTONJO MARAVALL
you, em tomo de 1887, nas igrejas que estudava, formas desordenadas do classicismo
renascentista, diferentes a primeira vista entre si, e certo, mas desconjuntadas pelo
mesmo turbilhao de uma expressao desordenada, cujos pradutos se encaixavam,
todos eles, entre certas datas. Assim as primeiras observacoes sobre 0Barroco e as
vacilantes especulacoes sobre ele surgiram referidas ja a uma epoca mais ou menos
definida: aquela que se segue ao Renascimento classicista. Wolfflin atreveu-se a
estender a nova categoria a uma area mais extensa: a Iiteratura. Quando as caracte-
rfsticas assinaladas nessa serie de obras foram ampliadas para outras campos, 0
conceito de epoca para definir essa nova cultura pos-renascentista estava preparado
e, com eIe, sua extensao aos diversos setores de uma cultura e ao grupo de pafses
que ela alcancara,
A medida que 0 interesse pelo Barraco ia crescendo e se enriquecia a pesqui-
sa sobre ele, sua interpretacao tornava-se mais complexa e ajustada e alterava-se,
por sua vez, a avaliacao de suas obras. 0 trabalho investigador e a valoracao posi-
tiva da etapa barroca na cultura europeia partiu da Alemanha, passando rapid amen-
te para a Italia, depois Espanha, Inglaterra e, finalmente, Franca, onde 0 peso datradicao, chamada classicismo - considerada ate ha pouco incompatfvel com 0Bar-
roco -, dificultou ate recentemente a sua compreensao (sempre com excecoes que
devem ser tomadas como precedente, como, por exemplo, a de M. Raymond). Na
atualidade, no entanto, procedem de pesquisadores franceses alguns dos trabalhos
mais sugestivos. A mudanca no posicionamento historico da interpretacao do Bar-
roco pode ser ilustrada por uma de suas manifestacoes mais radicais, a do soci6logo
historiador Lewis Mumford, para quem 0Renascimento vern a ser a fase inicial de
uma nova epoca que alcanca seu pleno sentido no Barroco. Podemos, em conformi-
dade com sua tese, caracterizar 0Renascimento, com toda a sua preceptiva pureza,
como a primeira rnanifestacao do Barraco subsequente". Convern sublinhar nesta
tese 0 reconhccimento definitivo de urn laco condicionante entre ambos os perfo-
dos e a avaliacao do alto valor positivo que se ha de atribuir ao Barroco na cultura
europeia.
12. La cite a travers l'histoire, Paris, 1964, p. 446. Referindo-se ilnova epoca, L.Mumford caracteriza-a da
seguinte maneira: "no plano economico, afirrna-se 0 predominio de urn capitalismo mercantil, enquanto
se coagulavam as estruturas polit icas de urn Estado nacional sob urn governo desp6tico e se impunha
uma mentalidade nova, apoiada sobre uma concepcao mecfinica da ffsica, cujos postulados inspiravam,
ja ha algum tempo, a organizacao do exercito elias ordens religiosas" (p. 439). Este e, sem duvida, urn
aspecto essencial da questao: a util izacao de elementos meciinicos e racionais, que 0 pensamento da
ciencia e da tecnica modern a proporciona para a conquista de objetivos extra-racionais, magicos, que
calculadamente 0 Barroco instaura. E a face dupla da epoca, sobre a qual, hd muitos anos, vimos insis-
tindo.
46
do a i
res, Iborn
Se 01
prod
Igretc
n o .
< ; a ~
nh :
me
qu
13.
14.
15 .
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 7/21
47
e-
IN71WDU{,-1.0
E evidente que, diante do que acabamos de escrever, nao nos estamos referin-
do a avaliacoes pessoais, subjetivas, sobre as obras dos artistas, politicos, pensado-
res, literatos etc., da epoca barroca - algo assim como atribuir-Ihes qualidades de
bom ou mau gosto, de acordo com as preferencias esgrimidas pelos historiadores.
Se os primeiros casos de uso do vocabulo "barroco", para qualificar determinados
produtos da atividade criadora de poetas, dramaturgos, artistas plasticos, surgiram
no seculo XVIII tingidos de sentido pejorativo, por outro lado, em seguida e por
circunstancias outras, como na Espanha do segundo quarto desse seculo, levantou-
se em torno do gongorismo urn quente entusiasmo pelas criacoes barrocas. Abri-
mos mao de uma e de outra posicao. 0 apelo ao gosto pessoal perturba a visao de
urn fen6meno cultural e, sempre que seu estudo implique avaliacoes de tal nature-
za, estamos expostos a nao perceber as coisas com clareza. Em urn Iivro que con-
tern muitas contribuicoes positivas, mas tambem scrias limitacoes, V. L. Tapie, es-
tudando 0 Barroco em comparacao com 0 Classicismo, comeca por contrapor a
permanente admiracao que, segundo ele, produz uma obra de carater classico, como
Versalhes, e a rejeicao que 0 born gosto atual experimenta diante de uma producao
barroca!'. Porem, nos mesmos anos em que escreve Tapie, urn jovem pesquisador,
J. G. Simpson - com quem voltaremos a nos encontrar -, a parte de considerar
Versalhes impregnado de barroquismo, independentemente de seus detalhes
classicistas, afirma que sua desmedida e falta de proporcao nos desorienta: "a gran-
deza se converte em megalomania'?".
A participacao enriquecedora de pesquisadores de diferentes pafses na area
de estudos sobre 0Barroco contribuiu para dar uma orientacao mais precisa a sua
interpretacao. Os alemaes - Wolfflin, Riegl, Weisbach -, ainda que tenham insisti-
do (mais 0 primeiro que 0 ultimo) nos aspectos formais, destacaram tambern a co-
nexao com as circunstancias historicas: a renovacao chamada contra-reformista da
Igreja, 0 fortalecimento da autoridade papal, a expansao da Companhia de Jesus
etc., tudo quanto levou, finalmente, a sistematica proposicao, tao influente entre
nos ha alguns anos, do Barroco como "arte da Contra-Reforma?". Esta interpreta-
<;aodava maximo relevo ao papel da Italia, sobretudo na arte, reservando a Alema-
nha, em compensacao, uma fatia maior do Barroco literario. Devido ao reconheci-
mento dessa participacao predominante da Italia, foi possfvel apreciar melhor algo
que ja apontamos, 0 nexo Classicismo-Barroco, cuja afirmacao leva H. Hatzfeld a
no
~Io
m ,
as
os
;a
o
1 0
e s
i-
s
13. Baroque et Classicisme, Paris, 1957, p. 26.
14. Joyce G. Simpson, Le Tasse et fa li tterature et i 'art baroques en France, Paris, 1962, p. 112.
15. A obra de Weisbach, que tern esse titulo, e traduzida e publicada em castelhano em 1948, com urn
inteligente estudo preliminar de E. Lafuente Ferrari, que assume a maioria das teses do autor, com
interessantes matizes.
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 8/21
JOSE ANTONIO MARA VALL
dizer que "onde surge 0 problema do Barroco, esta implfcita a existencia do
Classicisrno"!". Hatzfeld observa que a conservacao do ideal greeo-Iatino e a aeei-
tacao da Poetica de Aristoteles estao juntas na origem do Barroco (recordemos 0
papel da poetica aristotelica de Robortello em Lope). E interessante 0 panorama
que Hatzfeld traca sobre a evolucao do movimento barroeo:
Com inevitaveis diferencas entre geracoes e com maior ou menor habilidade, a teorizante ltalia, a
Espanha, que experimentava as formas italianas, e a Franca, que, em lenta maturacao, chegava com plena
consciencia te6rica a suas criacoes, harmonizaram suas particulares tradicoes nacionais literarias e lingilfsti-
cas em urn estilo barroeo. Isto quer dizer que certas fonnas do Renascimento ital iano chegariam a ser comuns
a toda a Europa, gracas 11a",ao mediadora e modificadora da Espanha, indo culminar, paradoxalmente, no
classicismo frances".
Tal distribuicao de papeis, com respeito ao aparecimento e desenvolvimento
da eultura barroca, na qual se concede tao preponderante intervencao aos pafses
latinos e mediterraneos, nao pode nos fazer esquecer da significacao que tiveram
figuras centro-europeias como urn Comenius, cuja obra de pedagogo e moralista edecisiva em qualquer tentativa de definicao do Barroco, bern como, par outro lado,
as letras inglesas e a arte e a pensamento dos Pafses Baixos. Sob essa nova visao do
tern a, 0Barroco ganha uma amplitude, em sua vigencia europeia, muito superior
aquelas ja ultrapassadas exposicoes que 0 apresentavam como urn conjunto de aber-
racoes pseudo-artfsticas ou literarias, impregnadas do mau gosto que 0catolicismo
contra-reformista havia cultivado nos pafses submetidos aRoma. Ao mesmo tem-
po, 0 Barroco se oferece com uma complexidade de recursos e resultados que fa-
zem deste urn dos perfodos mais necessitados de investigacao para que se possa
en tender a hist6ria da Europa moderna. E, de qualquer maneira, ja nao pode ser
encarado como consequencia de urn unico fator, nem mesmo das variadas consc-
qiiencias por ele mesmo suscitadas no plano da cultura; mas surge relacionacfo a urn
repert6rio bastante variado de fatores que, juntos, determinam a situacao hist6rica
do momenta e na tingem, em todas as suas manifestacoes, com essas caracterfsticas
aparentadas e interdependentes que nos permitem falar, em urn sentido geral, de
cultura do Barroco.
R. Wellek pensou, com muita razao, que os fatores estilfsticos, assim como os
meramente ideol6gicos, nao eram suficientes: talvez a caminho fosse unir uns aos
16. Estudios sobre el Barroco, Madrid, 1964, p. 62. A passagem corresponde ao estudo sobre "Los Esti los
Generacionales de la Epoca: Manierismo, Barroco, Barroquismo".
17. Op. cit., p. 106. "0 classicismo frances apresenta a mesma tensao especffica do Barroco entre a sensua-
lidade e a religiao, a mesma rnorbidez, 0mesmo pathos que 0barroco espanhol"; ver R. Wellek, Conceptos
de Critica Literaria, Caracas, 1968, p. 67.
48
outro
feitat
estud
faton
Racn
de u
desvi
os fa r
rica.
acon
situa
reali
quec
histd
eml'
dade
aban
gaol
tipo
nas
Rete
para:
Des1
no c
Estaepn
sent
com
War
Spir
M.!
18a.
18b.
19a.
19b.
20.
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 9/21
INTRODUr;:J .O
outros, embora 0 resultado tampouco parecesse satisfatorio!". Sem diivida, e per-
feitamente lfcito, desde uma perspectiva fornecida pela cultura barroca, fazer 0
estudo de urn ou outro dos autores do seculo XVII em relacao a apenas urn desses
fatores, tornado de forma mais ou menos monografica: Shakespeare, Quevedo,
Racine etc. Urn trabalho dessa natureza sera sempre iitil para esclarecer 0 sentido
de urn autor e sua posicao no conjunto; dele, porem, nao se deve esperar 0
desvendamento da cultura barroca, para cujo entendimento e necessario considerar
os fatores estilfsticos e ideol6gicos enraizados no solo de uma dada situacao his to-
rica. Vistos separadamente, e possfvel que esses elementos se repitam no tempo,
ocorram em sec;ulos muito distantes; porem, em sua articulacao conjunta sobre uma
I situacao polftica, economica e social, formam uma realidade unica, E a uma dessas
I realidades irrepetfveis (tal como se combinou uma serie de fatores no seculo XVII)
que chamamos de Barroco. Por isso dizemos que este e urn conceito de epoca.
Pode-se fazer uma observacao paralela a respeito da outra coordenada da
hist6ria: 0 espaco. Se elementos culturais, repetindo-se, aparecem algumas vezes
em lugares distintos, articulados, porem, em uma area geografica - e em urn tempo
dado - formam uma estrutura hist6rica. Isso a que chamamos conceito de epoca
abarca, portanto, os dois aspectos. Essa .conexao geografico-temporal de articula-
r;aoe dependencia recfproca entre uma serie complexa de fatores culturais de todo
tipo foi a que ocorreu no seculo XVII europeu e criou uma relativa homogeneidade
nas mentes enos comportamentos dos homens. Isto e, para mim, 0 Barroco.
Retornando a Wellek: "0 termo barroco e utilizado hoje na historia geral da cultura
. paraqualificar praticamente todas asmanifestacoes da civilizacao do seculo XVII"'8b.
Deste modo, por sua vez, a maior parte da Europa fica inscrita nesse contexto.
Assim, cidades da Europa Central, principados alemaes, monarquias, como
no caso Ingles, republicas, a maneira dos Pafses Baixos, senhorias e pequenos
Estados italianos, regimes absolutistas na Franca e na Espanha, povos cat61icos
e protestantes, estao inseridos nocampo dessa cultura. Hoje, freqiienternente, apre-
sentam-se os poetas metaffsicos ingleses da primeira metade do seculo XVII
como barrocos - em especial depois dos estudos de A. M. Boase, de M. Praz e F. J.
Warnke!". De trabalhos mais antigos, como 0que Gerhardt dedicou a Rembrandt e
Spinoza'", a outros mais recentes, seja de carater parcial, como 0dedicado por A.
M. Schmidt a poesia'", seja estendendo-se a panoramas mais amplos, como 0 que
18a. Op . cit., capitulo "EI Concepto del Barroco en la investigaci6n Literaria", pp. 61 e ss.
18b. 01 '. cit., p. 63.
19a. Retornaremos a eles nas paginas que se seguem.
19b. VerGerardt, "Rembrandt y Spinoza", Revista de Occidente, XXIII, 1929.
20. Ver "Quelques aspects de la poesie baroque protestante", Revue des Sciences Humaines, 1954, pp.
383-392.
49
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 10/21
JOSE ANTONIO MARAVALL
traca A. Hauser", insiste-se na clara e forte presenc;a de urn Barraco pratestante, para-
lela ao dos pafses contra-reformistas, em que aparentemente nao haveria problemas.
(Ha uma distincao, no ultimo dos auto res citados, entre Barroco cortesao e Barroco
burgues que nos parece perturbadora e da qual trataremos em outro capftulo.)
Ha anos - e hoje isso e bastante significati vo tendo em vista a mudanca OCOf-
rida -, os codificadores da imagem de uma Franca classicista (D. Mornet, G. Cohen,L. Reau etc.), tal como se generalizou no ensino das escolas, exclufram toda con-
cessao ao Barroco, salvo para condenar qualquer possfvcl contagio do mesmo como
procedentede fonte espanhola. Quando E. Male terminou sua monumental obra
sobre a iconografia crista, com urn quarto e ultimo tomo dedicado a arte posterior
ao Concflio de Trento, mesmo admitindo e desenvolvendo nele, com admiravel
erudicao, a influencia das doutrinas tridentinas sabre as artes plasticas, nem uma
tinica vez, no entanto, usou em suas paginas 0termo "barroco?". Por outro lado, H.
C. Lancaster e, com ele, R. Lebegue chegaram 11conclusao de que nao era possfvel
sustentar seriamente que a clarte do Classicismo tinha sido uma constante historica
nunca abandonada em urn pais cuja cultura rica e multiforme havia produzido os
misterios medievais, as tragicomedias do seculo XVII e os melodramas do XIX23.Foram pesquisadores de fora, dinamarqueses, alemaes, ingleses, italianos, que se
dedicaram a trazer a luz 0 complexo fundo barroco da cultura frances a do seculo
XVII. Nao apenas T . Hardy ou Malherbe, Desmarets ou Theophile de Viau eram
escritores barrocos, como tambern era insuficiente admitir que, entre os grandes,
Corneille fora barraco, em contraposicao a urn Racine classicists". Dagobert Frey
ja apraximava como barrocos Racine e Pascal", Rousset e Chastel colocam
Montaigne no umbral da nova epoca". Butler estuda sob essa classificacao 0 autor
de Britannicus/' e J. G. Simpson descobre urn entroncamento barraco fundamental
em Racine, Moliere e Boileau". Era de se esperar que se revelasse esse fundo nos
escritores do pals doje ne sais quoi. ..29 Bonfantini falou dos "classicos do Barroco
21. Historia Social de la Literatura y el Arte, t . II , Madrid, 1957.
22. L'art chretien apres le Condie de Trente, PUlis, 1932.
23. Ver "La tragedie", XVI/" s u c t e , n° 20, 1953, p. 258.
24. Tese de Lebegue, op. cit.
25. Gotik lind Renaissance, Augsburgo, 1929; ver Hatzfeld, Of. cit., p. 24.
26 . Rousset, La litterature de l'tige baroque en France, Paris, 1953; Chastel, "Sur le Baroque francais", em
Trois etudes sur le XV/" steele, Paris, 1954.
27. Classicisme et Baroque dans l 'oeuvre de Racine, Paris, 1959.
28. Le Tasse et fa lit terature et l 'urt baroques en France, ci tado na nota 14.
29. Jankelevitch, Le je-ne-sai-quoi et le presque-rien, Paris, 1950.
50
30.
31 .
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 11/21
INTRODur;il.O
frances", aplicando a expressao a todos os grandes escritores do seculo XVlpt'. E,
seestudos parciais falam da poesia barroca frances a da citada cenniria", de Rousset
possufmos hoje uma das exposicoes mais completas e sugestivas sobre 0 Barroco
frances, it qual 0 autor acrescentou posteriormente uma boa antoiogia da poesia da
epoca", Rousset, pela analise da obra poetica de Malherbe e da obra dramatica de
Corneille, chega it conclusao de que, na Franca, as zonas aparentemente mais
classicistas nao sao imunes ao movimento barroco, de maneira que os autores que
porrazoes de credo artfstico parecem opor-se polemicamente nao estao tao distan-
tescomo se Cre33•
Por pafses, por grupos sociais, por generos, por temas, os aspectos do Barro-
co que podemos assimilar em urn e em outro caso, e a intensidade com que se
oferecern, variam inquestionavelmente. Assim, pode-se expliear a observacao de
que, se se toma Le Brun em relacao a Rubens, parece menos barroco 0 primeiro
quando e comparado a Rafael, ou se se compara Mansart com Brunelleschi, pareee
maisbarroco do que quando contraposto a Borromini. Algo semelhante poder-se-ia
afirmarde Velazquez, entre Navarrete e Valdes Leal; de Gongora, entre frei Luis de
Le6nou Villamediana; de Rivadeneyra, entre Vitoria e Saavedra Fajardo. 0 Barro-
co e 0 aparente classicismo do seculo XVII, diferenciados por matizes superficiais
sobre0troneo comum que penetra suas rafzes na crise do Maneirismo, sobrepoem-
se e combinam-se em rmiltiplas solucoes provisorias e interdependentes, sem que
se encontrem em estado puro ou constituam escolas separadas na primeira metade
doseculo XVII. Produto do amalgama de mito classico e teologia cat6lica sao, por
exemplo, alguns autos de Calderon - cita-se, em especial, El Divino Orfeo -, os
quais constituem uma amostra bern pura da mentalidade barroca. Ja foi dito que 0
Barraco emprega as formulas do classico e que, mesmo os tfpicos efeitos de surpre-sa que busca - os quais nao sao de todo alheios ao estilo mais pretensamente
classicista -, proeura-os "per meio do emprego inesperado ou deformado de recur-
sosclassicos", seguindo urn tracado que alguns creern ver ainda no seculo XVIIP4.
Poucos e~emplos ilustrarao melhor 0 que acabamos de apontar que a utilizacao de
30. Muitos outros, Spitzer, Auerbach, Vedel, F. Simone, A. Bruzzi, E. Raimondi etc., estudaram a ampla
difusao do Barroco na Franca. E, se a investigacao levada a cabo por V. L.Tapie, Le Flem e outros pode
identificar tao imenso mimero de ret r ibulos barrocos na Franca rural do oeste, s6 e possfvel que se tcnha
chegado a esta curiosa proliferacao por meio da autorizada e brilhante influencia de focos cultos de
irradiacao barroca. 0 t rabalho dos autores citados esta exposto na recente obra Retables baroques de
Bretagne et spiritualite du XVII' siecle. Elude semiographique et religieuse, Paris, 1972.
31. Ver J. Duron, "Elargissement de notre XVII' siecle poetique", XVlI' Steele, n° 17-18.
32. La litterature francaise de l'i ige baroque, citado na nota 26.
33. Op. cit ., p. 203.
34. Joyce G. Simpson, op. cit ., pp. 17-18.
51
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 12/21
JOSE ANTONIO MARAVAU
meios mitologicos e cIassicistas na pintura de Velazquez ou na literatura de Calder6n.
Das duas correntes que apontamos no seculo XVII, aquela dos que acreditam romper
com a tradicao, pensando, talvez, que nada do antigo ha de renascer - Descartes -, e
a dos que se consideram ligados a urn renascimento do antigo - Leibniz, Spinoza,
Berkeley" -, os elementos barrocos se distribuem entre uma e outra, sem diferen-
~as que sirvam para caracteriza-las, ainda que nao possamos chamar propriamente
de barroco nenhum dos pens adores citados, por mais imersos que estejam na epoca,
considerando-os como pioneiros que, do interior da mesma, abrem caminhos a ou-
tra cultura.
Em lugar de uma distincao entre cIassicistas e nao cIassicistas para cIassificar
os criadores da cultura do seculo XVII, Warnke propoe diferenciar duas linhagens:
urna, ret6rica, rica em ornamentacao, emocional e extravagante, com names como
os de Gongora, Marino, D' Aubigne, Gryphius etc., e outra mais intelectual, mais
sabia, embora talvez nao menos contorcida, a qual pertenceriam, entre outros,
Quevedo, Gracian, Pascal, J. Donne, Sponde e 0 primeiro Corneille. Entre ambas
haveria certa diferenca cronologica que permitiria distinguir entre alto e baixo Bar-roco. Nao sei se entre urn e outro grupo M algo mais do que matizes de personali-
dade, que vigoram em qualquer perfodo, 0 que explicaria tambem 0 fato de muitas
figuras do Barroco nao se deixarem incluir em nenhuma dessas tendencias". Para
nos, trata-se de uma diferencicao escassamente relevante, que nao rompe oesque-
rna que seguimos. Tentamos captar a significacao da cultura barroca em termos
gerais, validos para os pafses nos quais ocorreu, embora os estejamos observando
preferencialmente do ponto de vista da Espanha. Sobre isto, queremos ainda acres-
centar alguma coisa.
As transformacoes da sensibilidade, que em tempos proximos a nos estive-
ram ligadas a novas condicoes sociais - cuja primeira fase de maxima tensao crftica
foi alcancada na decada de 20 do presente seculo -, despertaram urn novo interesse
por certos produtos da cultura espanhola. Ate entao, e sob a pressao de urn classicismo
pedagogico, muitos destes produtos haviam sido deixados de lado, e so recente-
mente se tornaram alvo de interesse e atencao, resultando na incorporacao da rica
producao do seculo XVII espanhol ao estudo do Barroco europeu. A redescoberta
de EI Greco, a crescente adrniracao pOl'Velazquez, Zurbaran, Ribera etc., a admira-
~ao pelo teatro, pel a novela picaresca e mesmo pela poesia lfrica, sempre mais
35. H. Gouhier, "Les deux XVII' siecles", em Ae ta s d el C o ng re so I nt er na ci on al d e F il os of ia , t. Ill, Madrid,
1949, pp. 171-181.
36. A dist incao e de F. J. Warnke, Versions of Baroque, European Literature in the XVII' Century, Yale
Universi ty Press, New Haven, 1972, pp. 13-14.
52
trivial,
avar ice
seguid
desse
pontif
panha
quand
de Fr
embo
obra
gand:
imprt
come
coni
de re
modsoci:
Ban
exei
gue
outi
de p
nh s
esc
COl
foi
se
ria
pc
37
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 13/21
INTRODUr;AO
trivial, e, finalmente, pelo pensamento polftico e economico prepararam 0 grande
avanco do estudo do Barroco espanhol. Admitamos que a tendencia, francamente
seguida a partir da difusao dos estudos sobre 0 seculo xvn, de vincular as criacoes
desse perfodo com 0 eatolicismo tridentino, 0monarquismo civil, 0 absolutismo
pontiffcio, 0 ensino jesuftico etc., todos fatores amplamente desenvolvidos na Es-
panha, propiciou 0 auge dos estudos sobre 0 Barroco espanhol. Observemos que,
quando Tapie fez 0 livro que citamos sobre 0 Barraco, em suas paginas se ocupava
de Franca, Italia, Europa Central e Brasil, e nao havia nelas mencao a Espanha,
embora 0fato ja se mostrasse injustificavel, sob todos os angulos, a epoca em que a
obra foi public ada. Ja naquele momenta, Francastel censurou-o severamente, ale-
gando que por esse iinico motivo seu trabalho representava um desenvolvimento
impr6prio do tema. Sua posicao se resumia nas seguintes palavras: "Tapie tom a
como dado absoluto a origem italiana do Barroco. Pessoalmente ereio que 0Barra-
co nao nasce na Italia scnao por conseqiiencia da forte penetracao de certas forrnas
de religiao chegadas da Espanha e tambem, sem duvida, pel a penetracao de certas
modalidades de um gosto que, sem ser espanhol, talvez se vinculasse ao regime
social imposto pela hispanizacao'?",
Anteriormente, S. SitweII havia afirmado que as caracterfsticas que definem 0
Barroco com maior clareza e valor generico deveriam ser buscadas no estudo dos
exemplos espanhois: daf a conveniencia de servir-se tambern dos exemplos portu-
gueses e hispano-americanos, aparentados com aqueles'". Tanto este autor como
outro Ingles, Watkin", ao acentuar 0 fator hispanico no Barraco, sujeitam-no a uma
dependencia da religiosidade hispanica e cat6lica. E fato que 0papel da fatia espa-
nhola no Barraco tendeu a ampliar-se cada vez mais. Por razoes semelhantes as dosescritores ingleses que citamos, tambern Weisbach, ao fazer do Barroco uma arte
contra-reforrnista, utilizava em grande proporcao dados espanh6is. Mas ninguem
foi tao radical quanto H. Hatzfeld: para ele, 0Barraco, em primeiro lugar, vincula-
se a ingredientes constantes e remotos do genic espanhol - certos aspectos pode-
riam ser desvendados ja em escritores hispanolatinos (Lucano, Seneca, Prudencio);
por outro lado, as formas de religiosidade que singularizam 0 espfrito espanhol (em
37. P.Francastel, "Baroque et Class icisrnc: his toire ou t ipologic des civil isat ions" , Annates. Economies,
Societas, Civilisations, XIV, n° I, jan.-maio 1951, p. 146. Tapie deu sua resposta na mesma revista,
reconhecendo a grande participacac da Espanha, cuja sombra se projetava, segundo suas palavras, sabre
o livro inteiro. Seu livrinho posterior, Le Baroque (Paris, 1961), corr ige, em certa medida, essa lacuna,
mas niio e satisfatorio em scu delinearnento geral, E necessaria observar que Tapie conhece de modo
muito insuficiente as fontes espanholas.
38 . Southern Baroque Art, Londres, 1924, e Spanish Baroque Art, Londres, 1931.
39 . Catholic Art and Culture, Londres, 1942.
53
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 14/21
JOSE ANTONIO MARA VALL
San Juan de la Cruz, em Santo Inacio) teriam uma forte influencia em seu desenvol-
vimento; e, finalmente, e neccssario con tar com a presenca de certos elementos que
ocorrem na tradicao hispanica (islamiccs e norte-africanos). Segundo Hatzfeld, a
Espanha, penetrada de cultura italiana no seculo XVI, impregnada de italianismo,
com marcante presenc;:a e influencia na Italia, a partir da segunda rnetade do seculo
XVI teria provocado uma alteracao das condicoes nas quais se desenvolvia 0
Renascimento e cornpelido escritores e artistas a buscar novas form as que desem-
bocaram no Barroco. Na sua formacao, seriam inegaveis as condicoes da
hispanizacao em Roma, em Napoles e, por repercussao, em outros pontos da Penfn-
sula Italica, A Espanha, que tao eficazmente havia contribufdo para desmantelar e
remover a ordem renascentista, assimilaria rapidamente as formas barrocas
incipientes da Italia, conduzindo-as a maturidade, e a influencia espanhola as teria
expandido na Franca, na regiao de Flandres, na propria Italia e tam bern em meios
protestantes da Inglaterra e da Alernanha'", Contra-reform a, Absolutismo e Barro-
co caminhariam juntos, em razao de sua base hispanica, e ate a arte barroca que se
produziu em patses protestantes estaria relacionada com a influencia hispanica,
tese que outros ja haviam enunciado, sem reduzir com isso - como 0 faz Hatzfeld-
o valor criador do Barroco protestante".
De tudo isso fica claro - tomando-se distancia do que acabamos de ver - que
a cultura barroca se estende as mais variadas manifestacoes da vida social e da obra
humana, ainda que umas predominem aqui e outras ali; que a zona geografica a que
se estende essa cultura - sem que devamos agora distinguir entre producoes origi-
nais e derivadas - abarca principalmente todos os pafses da metade ocidental da
Europa, de onde e exportada para as colonias americanas ou emite ecos a Europa
Oriental. Portanto, dada a multiplicidade de elementos humanos que dele partici-
pam, bem como dos grupos com muitas e variadas qualidades no seio dos quais se
desenvolve, acabaremos por sustentar que 0Barroco depende das condicoes simi-
lares ou conexas de uma situacao hist6rica e nao de outros fatores - por exemplo,de caracterfsticas populares ou de causas particulares de uma etnia. Esta e a linha
de nosso pensamento que ira guiar-nos nos capftulos seguintes.
Ao contrario, fazer referencia a sernelhancas de estilo com escritores latinos
de origem peninsular e coisa que ninguem hoje pode levar a serio. Pretender encon-
trar caracteristicas hispanicas "dcsde as mais remotas origens", como postulava M.
Pelayo, ou acreditar que haja ecos lucanescos ou senequistas em escritores espa-
40. Estudios sobre el Barraco, citado no.nota 16. Ver em especial 0 ensaio "La Misi6n Europea de 10.Espana
Barreca".
41. Ver 0 estudo de Gerhardt, citado no.nota 19b, hem como as obras nas quais Pinder se ocupou do lema.
54
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 15/21
vel -
que
d , a
INTRODUr;J.O
rno,
x r l o
a 0
nh6is, depois da cntica de A. Castro e outros - perfeitamente adequada a este res-
peito -, e algo que nao se pode fazer com seriedade. 0mesmo ocorre com relacao
it tese que quer reconhecer, em uma pretendida predisposicao hispanica para 0Bar-
roco, componentes islamicos. Contra esta tese, impoem-se os rnesmos argumentos
empregados contra a primeira, embora nem todos aqueles que Ialaram do tema -
com uma certa dose de capricho - estejam dispostos a admiti-lo. Perguntamos,
alem do mais, em que pais norte-africano ou islamico ocorreu 0 Barroco, se a este
conceito se atribui urn significado algo mais consistente do que 0 de certa tendencia
it exuberancia decorativa, tao comum a tantos povos, a tantas epocas, a tantas civi-
lizacocs, c com papel tao secundario na estrutura hist6rica do Barroco??
Resta ainda a questao do apelo ao pr6prio carater espanhol, que neste caso e
referido a atitudes religiosas e mais particularmente mfsticas. E frequente - assim 0
faz Hatzfeld - unir Barroco e misticismo, vinculando ambos os temas ao carater e it
espiritualidade espanh6is. Observemos, porem, que 0misticismo na Espanha e uma
forma de religiosidade importada, que procede de Flandres e da Alemanha, para
passar, depois, it Alemanha e it Franca - sempre it parte 0 caso da Italia. Esse misti-
cismo espanhol e urn fenomeno muito delimitado e restrito no tempo, e ja no seculo
XVII nada resta dele quando, inversamente, a floracao da mfstica francesa e sobre-
tudo alema e esplendida. Subsistem, porern, formas de mentalidade magica que nao
podem ser confundidas com misticismo, e que, por outro lado, e possfvel encontrar
em toda a Europa nessa mesma epoca, Finalmente, os aspectos que caracterizam 0
misticismo, pelo menos tal como se deu na Espanha - em Santa Teresa, em San
Juan de la Cruz (logo forneceremos alguns dados sobre isso) -, sao francamente
diferentes daqueles do Barroco; sao na verdade antibarrocos, sem que se desconhe-
c,:aneles 0 fundo comum de filosofia escolastica que podemos encontrar em um e
em outre". Evidentemente, nao inclutrnos aqui como mfstico a Santo Inacio. A
mentalidade inaciana se expande e da frutos de plenitude em quase todos os pafses
europeus. E naquilo que a mentalidade inaciana corresponde a delineamentos bar-
rocos - 0 que ocorre, mais do que em Santo Inacio, em seus seguidores - que
haveremos de ver melhor os resultados da coincidente dependencia de uma mesma
situacao hist6rica.
o leitor da volumosa colecao Cartas de Iesuitas - cujas datas se estendem
pelos anos do Barroco - encontrara nelas abundante material que revela a mentali-
e r n -
da
iin-
lr e
ca s
:ria
io s
ro -
s e
pa,
pe
Ira
u e
ti -
ia
:1-
~e
tt -
),
IS
,-
42. Hatzfeld, op. cit., pp. 467-468.
43. Sabre a escolastica na mfstica espanhola, vel' A. A. Ortega, Razon Teologica y Experiencia Mistica,
Madrid, 1944; e Gurrigou-Lagrange, "Saint Thomas et Saint Jean de la Croix", La Vie Spirituelle, suple-
mento, 1930. Para urn delinearnento sobre suas relacces com 0 Barroco, A. A. Parker, "Calderon, el
Dramaturgo de la Escoltistica'', Revista de Estudios Hispdnicos, n° 3 e 4, 1935, pp. 273-285 e 393-420.
55
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 16/21
dade do tempo. Utilizaremos parte desse material nos capitulos que se seguem.
Porern, nao deixemos de observar que, se houve escritores barrocos muito afeitos
ao modo da cultura jesuftica - Tirso de Molina, Salas BarbadiIIo, Dfas Rengifo
etc. -, tambem houve toda uma corrente de opiniao contraria ao que de novo trazi-
am em materia de atuar e sentir. Barrionuevo informa-nos que, para muitos, era urn
erro adrniti-los em qualquer republica", Em muitas do primeiro grupo das rnencio-
nadas Cartas, entre as publicadas (janeiro a julho de 1634), encontram-se numero-
sos escritos, de diversas procedencias, contra a Companhia: em uma delas (23 de
fevereira) esta dito que "chovem papeis contra a Companhia". Sabemos, porern,
que 0 rei, com firme decisao, deu ordem para recolhe-Ios e condenar seus autores,
de cuja missao se encarregou a Inquisicao espanhola", Estas referencias nao dei-
xam de oferecer urn valor indicativo. Nem tudo coincidia com 0pensamento jesuftico
na mentalidade de muitos de seus contemporaneos,
A epoca do Barraco e, certamente, urn tempo fidefsta - 0 que tampouco e
significativamente jesuftico, ainda que nao the seja inteiramente alheio - de uma fe
que nao eliminou, ao contrario, reforcou seu parentesco com as formas magicas,frequentemente imersas em manifestacoes supersticiosas - Volpe, Buisson, Granjel,
Caro Baroja estudaram-nas na Italia, Franca, Espanha etc. A mentalidade barroca
conhece formas irracionais e exaltadas de crencas religiosas, politicas, ffsicas in-
clusive, e a cultura barroca, em certa medida, desenvolve-se para apoiar esses sen-
timentos. Isso nada tern aver diretamente com a misticismo espanhol; nem com
espanhol, porque e urn fenomeno amplo e fortemente presente em todas as partes,
nem com misticismo, cujo fundo de fe esta impregnado dessa corrente de raciona-
lizacao que sustenta a Escolastica. A pressao da Igreja, a da monarquia e a de ou-
tros grupos privilegiados que tern de atrair parasi setores de opiniao fazem 0possf-
vel para dar vigor a esses aspectos extra-racionais, para servir-se deles do modo
como revelaremos mais adiante. Isto tam bern tinha sido feito em outras epocas,
mas, com relacao ao seculo XVII na Espanha e fora dela, a diferenca esta em que a
questao foi muito mais diffcil. Essa maior dificuldade se explica pelo aumento quan-
titativa da populacao afetada, pelo crescimento das energias individualistas, por
uma inforrnacao comparativamente mais ampla que foi difundida nos meios citadi-
nos, pela pr6pria complexidade dos meios empregados. Par tudo isso, agora nao
basta esculpir uma "historia'' exemplar no capitel de uma coluna, nem pinta-I a em
JOSE ANTONIO MARA VALL
44, Avisos de Don Jeronimo de Barrionuevo (ver 0 correspondente a 2 de outubro de 1655, BAE, CCXXI, t .
I, p. 199).
45. Canas de Jesuitus, em MHE, vols. XIII a XIX, publicadas por Gayangos. A citacao corresponde ao vol.
XIII (I da serie) , p. 24.
56
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 17/21
INTRODur;ii.O
urn vitral, nem tampouco relata-la, servindo-se do simplismo in6cuo de uma lenda
hagiografica". No novo tempo em que vivem as sociedades europeias, e preciso
descobrir 0modo mais adequado, poderfamos dizer mais racional, de emprego de
cada recurso extra-racional e apossar-se da tecnica mais eficaz para sua aplicacao.
Com isso, no entanto, nao dissemos tudo. Ainda que a vida religiosa c a Igreja
tenham urn papel decisivo na formacao e no desenvolvimento do Barroco - pelo
posto central que a religiao ocupa para cat61icos e protestantes no seculo XVII e
tambem por sua incorporacao aos interesses polfticos -, nem sempre ou em todas as
partes - podemos citar varies momentos desse mesmo seculo XVII espanhol - as
manifestacoes daquela cultura, bern como os problemas que ela nos coloca para seu
entendimento, correspondem aos da vida religiosa ou derivam de urn espfrito religi-
oso. No Barroco espanhol, e nao seria exagero afirmar que em todo 0 Barroco, e
preciso atribuir urn peso maior a monarquia c ao complexo de interesses monarquico-
senhoriais que ela atende. Nao deixa de ser significativo 0 fato de que, quando E.
Mille pretendeu vincular a arte do final do seculo XVI e da primeira metade do
XVII it influencia contra-reformista - ja assinalada por Dejob" -, inc1uiu apenas
uma vaga mencao a Velazquez (alem do mais, referida ao ap6crifo retrato de Santa
Teresa).
o Barroco, como epoca de contrastes interessantes e, talvez, tantas vezes de
mau gosto (individualismo e tradicionalismo, autoridade inquisitorial e abalos de
liberdade, mfstica e sensualismo, teologia e supersticao, guerra e comercio, geome-
tria e capricho), nao e resultado de influencias multisseculares sobrc urn pals cujo
carater configurariam, nem tampouco, e 6bvio, de influencias que, de urn pais dota-
do supostamente com tais caracterfsticas, seriam irradiadas sobre aqueles outros
com os quais estaria relacionado. Nao sao raz6es de influencia ou de caratcr, mas
de situacao hist6rica, as que fizeram surgir a cultura barroca. Participam dessa cul-
tura, conseqi.ientemente, todos os que se encontram conectados com tal situacao,
ainda que, em cada caso, isso ocorra de acordo com a posicao do grupo em questao.
Depende, pois, de urn estado social, em virtude do qual e dada sua extensao, todas
as sociedades do Ocidente europeu aprcsentam aspectos comuns ou conexos. Logo,
46. Mais adiante, no Cap. III , t rataremos de uma curiosa declaracao que aparece em La Picara Justina e que
nos revela que nao era t50 comum como se sup6e 0 gosto pelas hagiografias. 0 proprio fato de que
muitos dos re latos e cornedias de santos contenharn tantos elementos de realismo grotesco - pense-
mos em Santo y Sastre, titulo de uma cornedia de Tirso na qual leva ao teatro a hagiografia de Santo
Homobono subindo aos ceus com suas tesouras - revela uma indiscutfvel erosao realista dos elementos
sobrenaturais.
47. De l' influence du Condie de Trente sur la litterature et les beaux-arts chez les peuples catholiques,
Paris, 1884.
57
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 18/21
JOSEANTONJO MARAVALL
dentro dessa moldura, e possfvel estudar influencias singulares, pessoais, como as
de Tintoretto ou Veronese na Espanha, de Bernini na Franca, de Botero ou Suarez
nas monarquias ocidentais. Mas e no estado das sociedades - nas circunstancias
gerais e particulares do seculo XVII nos paises europeus - e, no interior delas, na
relacao do poder politico e religioso com a massa dos siiditos - que, a partir de
agora, como veremos, e preciso levar em conta - que encontramos a explicacao
para 0 surgimento das caracterfsticas da cultura barroca. Por isso, em todo caso enecessario frisar que, mais do que uma questao de religiao, 0Barroco concerne a
Igreja, e em especial a cat6lica, por sua condicao de poder monarquico absoluto.
Acrescentemos que esta vinculado na mesma medida com as demais monarquias e
forcosamente tambem com as repiiblicas pr6ximas e relacionadas com os pafses do
absolutismo monarquico, tais como Veneza ou os Parses Baixos.
Vale a pena chamar a atencao para 0 fato de que um pesquisador recente,
trabalhando sobre tema considerado por excelencia nao barroco, exernplarmente
classico - 0 leatro de Racine -, e, como fica cvidente, movendo-se no terreno da
historia da literatura (nao em outros campos que mais imediatamente e com rnaisdecisao aceitaram a tese da multiplicidade de fatorcs sociais nos fenornenos da
hist6ria) - estamos nos referindo a P . Butler -, nao hesita, no entanto, em escrever:
"A propria Contra-reforma, assim como a ciencia, 0pensamento, a arte e a poesia
barrocos, e uma conseqiiencia das transformacoes profundas que se operam na cons-
ciencia e na sensibilidade dos homens dos seculos XVI e XVII. E essas transforma-
coes se vinculam a causas rmiltiplas, culturais, polfticas, sociais, econornicas, geo-
graficas, tecnicas e nao apenas religiosas'"" (nessa cadeia, a Contra-reforma seria
somente um dos elos). Digamos que nao a Contra-reforma, termo hoje insustenta-
vel, mas os fatores eclesiasticos da epoca que estudamos sao urn componente da
situacao hist6rica na qual se produz 0 Barroco. E se a alguns destes fatores, devido
a seu nexo situacional, denominamos com 0 adjetivo "barroco", a todos aquelesque, como a economia, a tecnica, a polftica, a arte da guerra etc., estivcram tao
atados a esta situacao e tiveram sobre ela tao forte acao condicionante, com nao
menos fundamento temos de admiti-los como fatores da epoca do Barroco. Nao
podemos entende-la sem eles, do mesmo modo que a eles nao podemos compreen-
der se, ao contempla-los nas alteracoes que experimentaram e que tao eficazmente
contribufrarn para configurar a nova epoca, retiramos deles esse mesmo qualificati-
vo de barrocos.
Se falamos de Barroco, falamos sempre, basicamente, em termos gerais, e a
conotacao nacional que eventualmente the atribufmos vale apenas para introduzir
48. Classicisme et Baroque dans l 'oeuvre de Racine, citado na nota 27, p. 50.
58
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 19/21
INTRODUC;iS.O
osmatizes com que varia a contemplacao de urn panorama quando se desloca sobre
eIe0ponto de vista, embora sem deixar de abarcar 0 conjunto. Dizer Barroco espa-
nhoIequivale ao mesmo que dizer Barroco europeu vista da Espanha. E possfvel, etalvez eonvcniente, nos dias de hoje, falar do Barroco de urn pais, mas sempre
mantendo 0 tema dentro do contexto geral. E esta consideracao geografico-histori-
ea e paraleIa a outra de tipo cultural. Nao se pode abstrair a Barroco como urn
perfodo da arte, nem mesmo da hist6ria das idcias. Afeta e pertence ao ambito total
da hist6ria social, e todo estudo da materia, embora seja especificado legitimamen-
te dentro dos limites de urn e outro setor, deve desenvolver-se projetando-se em
toda a esfera da cultura. Desse modo, dizer Barroco artistico significa dizer cultura
barroca contemplada em seu sistema do ponto de vista da arte. E para nos motivo de
sincera satisfacao que a bibliografia espanhoIa sabre a pintura barroca tenha produ-
zido reeentemente uma das obras mais inteligentes e mais bern informadas sobre 0
terna, considerado como aqui propomos: 0 livro Vision y Simbolos en la Pintura
Espanola del Siglo de Oro, publicado por Julian Gallego".
Pretendemos que nossa interpretacao do Barroco, que seguramente nao dei-
xara de ser discutida, seja reconhecida, no entanto, como valida para os pafses
europeus nos quais cssa cuItura se desenvolveu. Fazemos uso, sim, de materiais
que em grande parte procedem de fontes espanholas. Sao utilizados e pretendemos
aqui relaciona-los a partir da perspectiva da historia da Espanha. Mas nao deixamos
de ter sempre em conta, quando e possfvel, dados de varias naturczas, tornados de
outrospaises, especialmente daqueles que se encontram mais aparentados com nossa
hist6ria. "0 drama de 1600" - escreveu P. Vilar - "sobrepuja 0 ambito espanhol e
anuneia aquele seculo XVII, duro para a Europa, no qual se reconhece, hoje, a crise
geral de uma sociedade'?" Mais adiante, retomaremos esse conceito de "crise ge-
ral". A ela teremos de remeter a formacao e 0 desenvolvimento da cultura barroca,
explicando, sobre tal base, como essa cultura afeta 0 conjunto da Europa. No entan-
to, por sua posicao peculiar e, conseqiientemente, pel a gravidade dos fatores que
neIa configuraram a crise, a parte espanhola na hist6ria do Barroco e seu peso com
relacao aos demais pafses serao bastante consideraveis. Por isso, cremos que e im-
portante colocarmo-nos da perspectiva de nossa hist6ria. Esse procedimento esta
plenamente justificado, porque em poucas ocasioes 0 papel da Espanha - nao M
como nega-lo - teve tao decisiva participacao na vida europeia como no seculo
XVII: negativamente - empregando esta palavra convencionalmente e, para nos,
neste casa, sem senti do pejorativo -, pela particular gravidade que a crise social e
49. Madrid, 1971.
50 . Crecimiento y Desarrollo, Barcelona, 1964, p. 438.
59
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 20/21
JOSE ANTONIO MARA VALL
economica dessa centuria alcancou na Espanha; positivamcnte - e temos de escla-
recer tambem que, aqui, essa palavra nada tem de afirmativo -, pela eficacia com
que os recursos da cultura barroca se articularam, com as primeiras tecnicas de
operacao social de massa, no ambito da monarquia espanhola, aos efeitos polfticos
e sociais de carater conservador, que estudaremos mais adiante.
De imediato, nao deixo de reconhecer que s o se pode falar em sociedade de
massa, em termos rigorosamente socioeconomicos, no ambito da sociedade indus-
trial. E certo que, ainda no final do seculo XVII, salvo 0 arranque inicial da Ingla-
terra, em nenhuma outra parte, nem mesmo na Franca posterior a Colbert, houve
alteracoes significativas do quadro anterior. Entre nos, a situacao era ainda mais
estavel, em que pesem as pateticas recomendacoes de Sancho de Moncada, de
Martinez de Mata, de Alvarez de Ossorio: economicamente, essa etapa anterior,
correspondente as condicoes que preparam a arrancada - dito nos termos de Rostow,
hoje de facil compreensao -, apenas comeca a ser reconhecida no desenrolar de
nosso Seiscentos. 0 uso frcqiicnte dos vocabulos "manufatura" e "fabrica", em
uma acepcao industrial e nao segundo apenas 0 usa antigo, seria urn debil indiciodo que dissemos", Logo voltaremos a insistir nessa qucstao, de outro ponto de
vista. No entanto, nao duvido em aplicar a expressao "sociedade de massa". Por
que? 0 historiador tern de estar alerta para 0fato de que, entre a sociedade tradicio-
nal e a socicdadc industrial, com seu crescimento populacional, se encontra uma
posicao interrnediaria na qual a sociedade deixou de apresentar as marc as de seu
perfodo tradicional e oferece outras, sobre as quais se fara possfvel, mais tarde, a
concentracao de mao-de-obra e de divisao de trabalho do mundo moderno. Econo-
micamente talvez poueas coisas tenham mudado - sobretudo no que coneerne aos
modos de producao; socialmente, sim, podemos detectar mudancas de maior vulto,
que podem ter origem nas primeiras transformacoes economicas, embora 0 quadro
das mudancas sociais supere em muito 0das economicas. E uma sociedade na qualse propaga 0 anonimato. Os lacos de vizinhanca, de parentesco, de amizade nao
desaparecem, e evidente, mas empalidecem e estao ausentes com frequencia entre
os que vivem pr6ximos em uma mesma localidade (este e urn dos fenomenos que
com maior nitidez estao refletidos na novela picarcsca). As rclacocs aprcscntam,
em grande medida, carater de contrato: nas casas (aluguel), no trabalho (salario),
no vestuario (eompra e venda) etc.; e ocorrem com incidencia consideravel os des-
locamentos de lugar (basta pensar no crescimento das cidades e no exodo rural, 0
51. A frase de Gonzalez de Cellorigo "todo genero de manufatura necessaria ao reino", ausente devido it
diminuicao de mao-de-obra, representa ja uma primeira tomada de consciencia (Manual de fa Politico
Necesaria y tn u Restauracuin a fa Republica de Espana, Madrid, 1600, folios 12 e 22).
60
5/10/2018 MARAVALL. a Cultura Do Barroco (INT) - slidepdf.com
http://slidepdf.com/reader/full/maravall-a-cultura-do-barroco-int 21/21
cla-
.om
: decos
de
us-
Ia -
lye
INTRODUr;;ii.O
que significa que uma parte considcravel da populacao nao vive e morre no lugar
onde nasceuj". Desse modo, aparecem em grande proporcao nexos sociais que nao
sao interindividuais, que nao se dao entre conhecidos. E e manifesto que isso alteraos modos de comportamento: uma massa de pessoas que se sabem desconhecidas
urnas das outras, se conduz de maneira muito diferente de um grupo de indivfduos
que tern consciencia de que podem ser facilmente identificados. Pois bem, social-
mente esta ja e uma sociedade de massa e em seu seio se produz essa despersonali-
zacaoque converte 0 homem em uma unidade de mao-de-obra, dentro de urn siste-
ma anonimo e mecanico de prcducao. 0 estudo rnais detalhado desse fenomeno e
de suas conseqiiencias sera objeto de um capitulo posterior.
52. Utilizamos, ainda que de modo aproximado, as categorias de Tonnies.
61