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janeiro de 2015
Mara Sofia da Silva Ferreira
Da Responsabilidade Civil do Mdico por Falta de Consentimento Informado
Universidade do Minho
Escola de Direito
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Min
ho|2
015
Trabalho realizado sob a orientao da
Professora Doutora Eva Snia Moreira da Silva
janeiro de 2015
Mara Sofia da Silva Ferreira
Universidade do Minho
Escola de Direito
Dissertao de Mestrado Mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa
Da Responsabilidade Civil do Mdico por Falta de Consentimento Informado
DECLARAO
Nome: Mara Sofia da Silva Ferreira
Endereo eletrnico: [email protected]
Nmero do Bilhete de Identidade: 13261674
Ttulo da dissertao: Da Responsabilidade Civil do Mdico por Falta de
Consentimento Informado
Orientadora: Professora Doutora Eva Snia Moreira da Silva
Ano de concluso: 2015
Designao do Mestrado: Mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa
AUTORIZADA A REPRODUO PARCIAL DESTA DISSERTAO APENAS
PARA EFEITOS DE INVESTIGAO, MEDIANTE DECLARAO ESCRITA DO
INTERESSADO QUE A TAL SE COMPROMETE;
Universidade do Minho, 30 de janeiro de 2015.
Assinatura: __________________________________________
iii
AGRADECIMENTOS
Aos meios Pais e minha Irm, a quem tanto devo.
minha Orientadora, pela sabedoria, pelo rigor e pela disponibilidade.
Ao Pedro Nuno, pela pacincia e pela fora.
Mariana, minha fiel amiga.
A toda a minha famlia, por nunca duvidar.
Aos meus amigos, pelo nimo.
v
RESUMO
Um olhar atento permite afirmar que a maioria das aes de responsabilidade civil
mdica tem por base a falta de dilogo na relao mdico-paciente.
Nascem, essencialmente, da falta de informao, especialmente no que respeita
aos riscos inerentes realizao de certa interveno ou tratamento. A isso acresce a
no rara falta de disponibilidade do mdico para prestar esclarecimentos.
Somos mesmo tentados a afirmar que, em determinados casos, essas aes
podiam ser evitadas com um mero pedido de desculpas quando as coisas no correm
bem
Com a presente dissertao propomo-nos a abordar a temtica da responsabilidade
civil do mdico por falta de consentimento informado, procurando delinear os seus
contornos e identificar as suas fragilidades, na esperana de lhe oferecermos o nosso
melhor contributo.
vii
ABSTRACT
A watchful eye allows you to assert that most medical liability actions are based
on the lack of dialogue in the doctor-patient relationship
These actions are born essentially from lack of information, especially regarding the inherent risks when conducting certain intervention or treatment. Additionally, isn't uncommon, the lack of availability of the physician for provide clarification.
We are even tempted to say that, in certain cases, these actions could be prevented
with a simple apology when things don't go well
With this thesis we propose to address the issue of liability of the doctor for lack
of informed consent, seeking to outline the contours and identify their weaknesses,
hoping to offer our best contribution.
ix
NDICE
Abreviaturas..................................................................................................................... xi
Notas Introdutrias ........................................................................................................... 1
CAPTULO I ENQUADRAMENTO HISTRICO E JURDICO DO CONSENTIMENTO INFORMADO ....................................................................................................................... 3
1. Noo de Consentimento Informado ..................................................................... 3
2. Breve Evoluo Histrica ...................................................................................... 6
3. O Consentimento Informado no Ordenamento Jurdico Portugus..................... 12
3.1. Na Constituio da Repblica Portuguesa ................................................... 13
3.2. No Cdigo Civil ........................................................................................... 17
3.3. No Cdigo Penal .......................................................................................... 21
3.4. Na Lei Administrativa .................................................................................. 27
3.5. No Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos ....................................... 29
CAPTULO II DECLARAO DE CONSENTIMENTO .......................................................... 33
1. Modalidades da Declarao de Consentimento ................................................... 33
1.1. Consentimento Expresso e Consentimento Tcito ....................................... 33
1.2. Consentimento Presumido............................................................................ 35
2. Forma do Consentimento .................................................................................... 37
2.1. A Utilizao de Formulrios para a Prestao de Consentimento ............... 39
3. Tempo do Consentimento .................................................................................... 41
4. Revogabilidade .................................................................................................... 43
CAPTULO III REQUISITOS DE VALIDADE DO CONSENTIMENTO INFORMADO ................. 47
1. A (in)Capacidade para Consentir ........................................................................ 48
1.1. O Caso dos Menores: Algumas Notas sobre a sua Capacidade para Consentir e os Modos de Suprir a sua Incapacidade. .............................................................. 51
1.2. Os Interditos e os Inabilitados por Anomalia Psquica ................................ 61
1.3. A Incapacidade Acidental ............................................................................ 64
2. Informao e Esclarecimento .............................................................................. 66
2.1. Algumas Notas sobre a Posio de Terceiros no Quadro das Doenas Infecto-contagiosas.................................................................................................. 68
2.2. Contedo da Informao .............................................................................. 71
2.3. Critrio do Mdico e do Paciente Razovel e do Paciente em Concreto ..... 74
3. Respeito pelos Bons Costumes e pela Ordem Pblica ........................................ 76
x
CAPTULO IV- RESPONSABILIDADE CIVIL DO MDICO POR FALTA DE CONSENTIMENTO INFORMADO ..................................................................................................................... 79
1. Consideraes Introdutrias: a Responsabilidade Civil ...................................... 79
2. Natureza da Responsabilidade Civil Mdica por Falta de Consentimento Informado .................................................................................................................... 83
3. Anlise dos Pressupostos ..................................................................................... 90
3.1. O Facto ......................................................................................................... 90
3.2. A Ilicitude ..................................................................................................... 92
3.3. A Culpa ........................................................................................................ 94
3.3.1. A Questo do nus da Prova ................................................................ 97
3.4. O Dano ....................................................................................................... 103
3.4.1. Ressarcibilidade dos Danos no Patrimoniais .................................... 107
3.5. O Nexo de Causalidade entre o Facto e o Dano ......................................... 108
Notas Conclusivas ........................................................................................................ 111
Bibliografia ................................................................................................................... 117
ndice Jurisprudncial ................................................................................................... 125
xi
ABREVIATURAS
AA Autores
ac. Acrdo
al. Alnea
art. Artigo
arts. Artigos
CDHB Conveno sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina.
CDOM Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos
CNEV Conselho Nacional de tica para as Cincias da Vida
cfr. Confrontar
Cd. Civil Cdigo Civil
Cd. Penal Cdigo Penal
CPC Cdigo de Processo Civil
CRP Constituio da Repblica Portuguesa
DGS Direco-Geral de Sade
DL Decreto-lei
Ed. Edio
LBS Lei de Bases da Sade
n. Nmero
p. Pgina
pp. Pginas
SNS Servio Nacional de Sade
xii
ss. Seguintes
STJ Supremo Tribunal de Justia
TRC Tribunal da Relao de Coimbra
TRL Tribunal da Relao de Lisboa
TRP Tribunal da Relao do Porto
Vol. Volume
1
NOTAS INTRODUTRIAS
A presente dissertao prende-se com o tema da Responsabilidade Civil do
Mdico por Falta de Consentimento Informado.
O estudo iniciar-se- com uma anlise da evoluo histrica do consentimento
informado, com o propsito de nos relembrarmos que ao paciente nem sempre foi
reconhecido um estatuto digno da sua qualidade de pessoa humana.
De seguida, surgiremos com uma noo de consentimento informado tal como o
entendemos, ou pelo menos idealizamos.
Cumprir, ainda, abarcar a declarao de consentimento, referindo a forma, o
tempo e as modalidades do consentimento, sem descurar o relevante princpio da livre
revogabilidade e no ressarcibilidade.
Mais ateno merecer, necessariamente, a anlise dos requisitos do
consentimento informado para finalmente desembocarmos no estudo da
responsabilidade civil do mdico por falta de consentimento informado.
Para terminar, esta nossa escolha motivou-se na sria convico de que este um
domnio do Direito ao qual, infalivelmente, no escaparemos.
3
CAPTULO I ENQUADRAMENTO HISTRICO E JURDICO DO CONSENTIMENTO
INFORMADO
1. NOO DE CONSENTIMENTO INFORMADO
O exerccio da medicina deve pautar-se pelos princpios da autonomia, da
beneficncia e da justia1. Sobre o mdico recai o dever de tratar, de atuar de acordo
com as leges artis2, de observar sigilo e de respeitar o doente. Este dever de respeito
encerra em si um dever de informar, de confirmar o esclarecimento e de obter o
consentimento do paciente3.
Do latim consentr, consentir significa permitir, tolerar, aprovar, dar
consentimento, anuir, assentir4. Transpondo o conceito para o plano da aco mdica,
correto afirmar-se que o consentimento o comportamento mediante o qual se autoriza
() uma atuao do agente mdico na esfera fsico-psquica do paciente com o sentido
de proporcionar sade em benefcio prprio (deste), em benefcio alheio ou em
benefcio geral5.
O consentimento informado poder ser definido como o assentimento livre e
esclarecido que deve ser prestado por qualquer pessoa relativamente a quaisquer actos
mdicos que lhe digam respeito, tenham eles a finalidade preventiva ou de diagnstico,
teraputica ou de experimentao6.
Sucede que, regra geral, o doente est desprovido de competncias tcnicas que
lhe permitam efetivamente avaliar e compreender o seu estado de sade e o eventual
1 O princpio da autonomia traduz-se no reconhecimento do direito autodeterminao do paciente. O princpio da beneficncia significa a obrigao de o mdico garantir o bem-estar do paciente, comprometendo-se a providenciar no sentido de futuramente tornar mais fcil o cumprimento dessa obrigao. Por ltimo, o princpio da justia refere-se obrigao mdica de dar a cada pessoa o que lhe devido, funcionando aqui como uma justia distributiva que garanta uma repartio equitativa dos benefcios e dos sacrifcios. Para mais desenvolvimentos, vide JEOVANNA VIANA ALVES, Ensaios Clnicos, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 56-71. 2 Tal como MANUEL DE OLIVEIRA LEAL-HENRIQUES/ MANUEL JOS CARRILHO DE SIMAS SANTOS, Cdigo Penal Anotado, Vol. II, 3 Ed., Lisboa, Reis dos Livros, 2000, p. 288, empregamos o conceito para designar (...) a perfeio tcnica do tratamento ou interveno e tambm da sua oportunidade e convenincia no caso concreto e idoneidade dos meios utilizados. 3 Neste sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado para o Acto Mdico no Ordenamento Jurdico Portugus: Elementos para o Estudo da Manifestao da Vontade do Paciente, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 24. 4 Dicionrio da Lngua Portuguesa, 7 Edio, Porto, Porto Editora, p. 460. 5 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado, cit., p. 24. 6 JOS RUI COSTA PINTO, Biotica para todos, Braga, Editorial A.O., 2006, p. 50.
4
tratamento. Assim, para que haja um consentimento informado, incumbe ao mdico
na qualidade de profissional de sade habilitado para o efeito fornecer ao doente as
informaes de que dispe, com todas as limitaes que esse dever de informao
encerra7. Posto isto, ao paciente permitido, em conscincia, decidir8, sublinhe-se,
mesmo que erradamente.
Desde j, importa reter duas apreciaes: o consentimento no se traduz num
mero ato isolado e deve ser um consentimento informado9.
Clarificando, como sustenta e bem LVARO DIAS, o consentimento um
processo e no uma forma. O consentimento tem que ser perspectivado como um
dilogo entre o doente e o mdico em que ambas as partes trocam informaes e se
interrogam reciprocamente; dilogo que h-de culminar na concordncia ou anuncia do
doente realizao de um certo tratamento ou de uma certa interveno10.
Como tal, declinamos, desde j, a ideia de que com a mera assinatura de uma
declarao de consentimento possa falar-se num consentimento informado. Na verdade,
muito embora se compreenda a exigncia da certificao documental das declaraes de
informao e de vontade11, esta formalizao (ou formalidade) dever obrigatoriamente
ser precedida e sucedida da prestao recproca de informaes e esclarecimento12.
Esquematicamente, este processo dialgico poder ser representado da seguinte
forma: (..) informao esclarecimento consentimento interveno informao
convalescena informao ..13.
Deste modo, o consentimento informado no se esgota num simples ato, como
seja o da assinatura da declarao de consentimento, mas antes se prolonga por toda a
relao mdico-paciente.
7 Referimo-nos aos casos de privilgio teraputico e inevitvel margem de erro que pauta a actividade mdica. 8 Neste sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit., p. 17. 9 Utilizaremos as expresses consentimento informado e consentimento esclarecido como sinnimos, tal como ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente Estudo de Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 75, e JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit., p. 49 e ss. 10 JOO LVARO DIAS, Procriao Assistida e Responsabilidade Mdica, Coimbra, Coimbra Editora, 1996, p. 281. 11 Neste sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit., p. 19. 12 Como afirma JOO LVARO DIAS, Procriao Assistida , cit.,, p. 281, a assinatura, pelo doente, de formulrios de consentimento no pode sub-rogar-se nem to-pouco sobrepor-se troca de informaes recprocas. 13 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado ,cit., p.28.
5
Mais, a necessidade de consentimento informado pode, no raras vezes, perdurar
aps a convalescena. A ttulo de exemplo, se dos tratamentos resultarem sequelas e,
ainda que essa hiptese tenha sido contemplada pelo mdico e comunicada ao paciente,
pode surgir a necessidade de lhe prestar novas informaes ou esclarecimentos e de
eventualmente colher o seu consentimento para a realizao de terapias corretivas14.
Contudo, no basta este dilogo para que exista um verdadeiro consentimento
informado. O dever de respeito a que o mdico est adstrito abarca, para alm do dever
de informar, o dever de confirmar o esclarecimento e obter o consentimento15.
Quanto a ns, estes deveres operam cronologicamente e pela ordem enunciada.
Assim, o mdico deve primeiramente informar o paciente (e recolher informaes deste,
necessariamente) e, de seguida, confirmar o esclarecimento. Isto , com base no critrio
do mdico e do paciente razovel e, mais importante, recorrendo ao critrio do paciente
em concreto16, o mdico deve assegurar-se, com a maior certeza possvel, de que aquele
paciente, em especfico, compreendeu plenamente as informaes que lhe foram
transmitidas.
Confirmado o esclarecimento, o paciente ser capaz de prestar o seu
consentimento ou, pelo contrrio recusar o tratamento ou a interveno.
Independentemente da sua opo, ao paciente devem ser facultadas as ferramentas
indispensveis formao de uma vontade livre e esclarecida.
Em suma, o consentimento informado opera bilateralmente, sustentado numa
lgica de interdependncia e de confiana. Assim o , j que na relao mdico-paciente
h uma necessidade recproca de informar e ser-se informado e um dever do mdico de
confirmar o esclarecimento. De seguida, exercido o direito de deciso do paciente,
sendo que essa deciso deve ser incondicionalmente respeitada pelo mdico.
Apenas e s nestas condies admissvel falar-se em consentimento informado e
afirmar-se que (..) o paciente foi tratado como sujeito e no como objecto do ato
mdico17.
14 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit., p.28. 15 Idem, p.24. 16 Os critrios enunciados sero oportunamente aprofundados, pelo que se impe somente fazer-lhes referncia. 17 Neste sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado ,cit., p.27.
6
Por ltimo, como ensina GUILHERME DE OLIVEIRA, adiante-se que a necessidade
de obter o consentimento informado do paciente encontra fundamento no direito
integridade fsica e moral de cada indivduo18e, ainda, no seu direito
autodeterminao. Na verdade, o consentimento informado brota diretamente do
princpio da autonomia e permite em matrias de ensaios clnicos, a ttulo de exemplo,
() alterar a situao da pessoa que participar, de uma simples marioneta para uma
participao consciente19.
Poderamos ser tentados a afirmar que o dever de obter o consentimento emerge
da prpria relao contratual. Todavia, este entendimento contratualista poderia
significar que, na ausncia de uma relao contratual tpica, no existiria qualquer
fundamento jurdico que impusesse o consentimento, mas to-s uma mera obrigao
moral ou deontolgica.
Em suma, reiteramos as palavras do autor quando afirma que o dever de obter o
consentimento informado do doente funda-se num direito inato de personalidade e no
depende, na sua afirmao bsica, da estrutura contratual em que se pratique o ato
mdico20.
2. BREVE EVOLUO HISTRICA
Durante vrios sculos, na relao mdico-paciente vigorou um modelo
paternalista e autoritrio, herana de Hipcrates.
Reza a histria que Hipcrates recomendava que se informasse o paciente o
menos possvel, que se distrasse a sua ateno do que se estava a fazer e que se
ocultasse ao mximo o diagnstico e o prognstico. No extremo, preconizava que ()
dar aos profanos mais explicaes do que as estritamente necessrias constitui uma
incitao a ajuizar o tratamento21. Nestas palavras, reside o cerne do paternalismo
18 Cfr. GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, op.cit., , pp. 62 e 63. 19 JEOVANNA VIANA ALVES, Ensaios Clnicos, op. cit., p. 58. 20 GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, op.cit., , p. 63. . 21 Idem, p. 110.
7
clnico: o mdico o pai e o doente um incapaz; um enfermo, um infirmus, um ente
sem firmeza de julgamento e de vontade22.
A vontade do paciente no era sequer considerada, j que o mdico, pela sua
formao e experincia, era o nico sujeito a quem se reconhecia legitimidade para
tomar decises mdicas. O paciente, incapaz e enfermo contudo, obediente submetia
-se s ordens e recomendaes mdicas, cegamente convicto de que o mdico
procuraria o seu bem. Note-se que o mdico era socialmente perspectivado como um
sacerdote e a profisso mdica revestia-se de um carcter sagrado, tanto mais se
pensarmos que as prprias doenas tinham uma origem divina23.
Em termos de responsabilidade, assistia-se a () uma responsabilizao
religiosa e moral dos mdicos, decorrente do carcter sagrado do seu mnus: nunca uma
responsabilidade jurdica no sentido que hoje lhe atribumos24.
A necessidade de obter o consentimento do paciente, inicialmente, assentou numa
lgica de cooperao do doente no processo clnico e, s depois significou um
verdadeiro reconhecimento da autonomia da vontade25.
Pese embora a medicina antiga reconhecesse ao paciente um direito a ser
respeitado, tal no significava, necessariamente, conferir-lhe algum poder decisrio.
Os escritos Hipocrticos apenas sugeriam que se fomentasse a cooperao do
paciente como meio de conquistar a sua confiana. Com o povo hebraico, o
consentimento tornou-se regra para qualquer operao mdica, em nome do respeito
pela pessoa humana26.
Este modelo paternalista vigorou, essencialmente, desde o sc. XIX at Segunda
Guerra mundial e, est hoje superado pelo modelo da autonomia27.
Com a consagrao do consentimento informado rompem-se os laos com a ()
medicina paternalista, em que se procurava seguir o princpio da beneficncia, mas sem
22 GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, op.cit., p. 110. 23 GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, op.cit., p. 106. 24 Idem, p. 108. 25 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit.,, p. 24. 26 Idem,,p. 25. 27 MIRIAM VIEIRA DA ROCHA FRUTUOSO, O Direito Informao e o Dever de Informar em Contextos de Sade, Dissertao de Mestrado em Direito Judicirio apresentada Escola de Direito da Universidade do Minho, Braga, 2012, p. 77.
8
considerar as opinies do paciente: tudo para o doente, mas sem o doente28 e singra
o princpio da autonomia do paciente29.
A medicina arte e o doente-enfermo do lugar medicina-tcnica e ao
paciente-cidado30. O dever de informao dos mdicos marca o fim da arte
silenciosa31
ou, se preferirmos, o fim do mdico-padre32. Afirmar que sobre o
mdico recai um dever de informar o paciente e de lhe prestar esclarecimento, para que
este possa consentir ou recusar o tratamento, negar todo o pensamento Hipocrtico.
Para esta mudana concorrem os mais variados factores, tais como a perda da
confiana inquestionvel depositada no mdico e a prpria complexidade que as
intervenes mdicas tm vindo a assumir, tornando-se a medicina mais invasiva, mais
agressiva e potencialmente mais perigosa contudo, mais eficaz33.
Autores como GONALO DIAS PEREIRA questionam mesmo se a necessidade de
obter o consentimento teria sido reconhecida se no fosse pelo profundo traumatismo
que abalou a tica mdica aquando das experincias realizadas com material humano
por mdicos alemes e japoneses durante a segunda Guerra mundial34.
Na verdade, as experincias totalitrias, os programas de tratamento compulsivo,
as esterilizaes foradas, a desumanizao da pessoa humana atravs da
experimentao cientfica, em campos de concentrao e hospitais psiquitricos,
parecem ter alertado a sociedade civil e reclamado a interveno do ordenamento
jurdico, no sentido de se respeitar a dignidade e a autonomia de cada paciente35.
Outrossim, esta mudana de paradigma deveu-se superao do conceito
helenstico de pessoa, consagrao de direitos fundamentais e, como j referimos,
28 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Pacientecit.,, p. 29. 29 Neste sentido, ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Experincia Europeia, in Repositrio da Universidade de Coimbra [em linha], Disponvel na www: . 30 Nomenclatura utilizada por ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente ..cit., p. 24 e ss. 31 Expresso utilizada por GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, op.cit.,p.105 e ss. 32 Nas palavras de MARTA SUSANA LOPES REIS DE MELO, A importncia do consentimento Independncia Mdica vs. Autodeterminao do Doente in Maia Jurdica, Revista de Direito, Edio Associao Jurdica da Maia, Ano III, n.1, Janeiro-Junho, Maia, 2005, p. 61. 33 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit.,pp. 28 e 29. 34 Idem, p. 26. 35ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit., p. 30.
https://estudogeral.sib.uc.pt/handle/10316/14549
9
prpria evoluo da medicina36. S assim foi possvel criar-se um esprito crtico e
questionar-se a prtica mdica, despindo-a dessa impunidade jurdica, pelo menos.
Tambm motivos de ordem social estaro na base desta renovao. A evoluo da
prpria sociedade, agora mais instruda, mais informada e mais autnoma no se
coaduna com tal submisso e deslumbramento.
Vejamos agora como se positivou a figura do consentimento informado e de que
modo esta evoluiu.
possvel divisar quatro fases na evoluo do consentimento informado: o
consentimento voluntrio, o consentimento informado, o consentimento vlido e, por
ltimo, o consentimento autntico37.
O Cdigo de Nuremberga38 destaca-se como o primeiro diploma a exigir
expressamente o consentimento informado. Nesse texto que o primeiro a proclamar
os direitos dos pacientes reside a () semente do direito mdico hodierno: o direito
autodeterminao do paciente39, consagrando-se o direito ao consentimento voluntrio.
De facto, o primeiro princpio enunciado nesse Cdigo elenca os quatro, ainda
atuais, requisitos de validade para o consentimento: a sua voluntariedade, a capacidade
para consentir, a prestao de informao e a confirmao do esclarecimento40.
No podemos deixar de mencionar a Declarao de Helsnquia41 por ter sido o
primeiro texto internacional de tica mdica a impor o consentimento do paciente,
embora apenas para os casos de experimentao. Com a Declarao de Lisboa42,
finalmente se afirma que depois de ter sido legalmente informado sobre o tratamento
proposto, o doente tem o direito de aceitar ou recusar
Debrucemo-nos sobre o consentimento informado.
36 GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, op.cit.,p. 108. 37 Neste sentido, GALN CORTS apud ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit., p. 64. 38 Datado de 1947, este o primeiro texto a consagrar direitos dos pacientes, muito embora se debruasse sobre a experimentao clnica. 39 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Pacientecit.,, p. 59. 40 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit.,, p. 35. 41 Elaborada pela Associao Mdica Mundial em 1964. Sofreu a sua ltima reviso em 2008. Afigura-se do maior interesse consultar a Proposta de alterao do Draft de consulta pblica elaborada pela Ordem dos Mdicos Portuguesa, com expressas referncias matria do consentimento informado, [em linha], Disponvel na www: . 42 Adotada pela 34 Assembleia Geral da Associao Mdica Mundial em Lisboa em setembro/outubro de 1981 e alterada pela 47 Assembleia Geral da Associao Mdica Mundial em Bali, em setembro de 1995.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Associa%C3%A7%C3%A3o_M%C3%A9dica_Mundial
10
Alguns autores consideram que a figura do informed consent foi introduzida nos
EUA, em 1957, como resultado de uma deciso proferida por um Tribunal da
Califrnia43. O caso44, sucintamente, resume-se ao facto de o paciente Martin Salgo
no ter sido informado do risco de paralisia irreversvel que a interveno cirrgica
comportava e que veio, efetivamente, a verificar-se. Os dois mdicos cirurgio e
radiologista foram condenados por violao do dever de informao, sustentando o
juiz que o mdico no pode minimizar os riscos conhecidos de um procedimento ou
operao para induzir ao consentimento do seu paciente45.
Contudo, historicamente, a deciso que reputada por outros autores46 como
embrio da doutrina do consentimento informado, ao configurar o paciente como um
indivduo livre e autnomo a quem se reconhece a liberdade de tomar as suas prprias
decises47 foi proferida, em 1914, no caso Schloeendorff v. Society of New York
Hospital. Parafraseando o Juiz Benjamin Cardozo, every human being of adult years
and sound mind has a right to determine what shall be done with his own body48.
Esta afirmao do direito ao consentimento informado veio-se repercutindo
progressivamente em vrios ordenamentos jurdicos49, reclamando-se o dever de
informao do mdico para com o doente, em especial, no que concerne revelao dos
riscos do tratamento50.
Ora, resta-nos fazer referncia ao consentimento vlido e ao consentimento
autntico, sendo que este ltimo se refere a uma deciso autntica do paciente:
autntica, porque est em plena consonncia com o sistema de valores do paciente51.
Ambos os conceitos assentam numa lgica de reconhecer o paciente como um
sujeito portador de um sistema de valores auto-referencial e absoluto merecedor de
43 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit.,p. 62. 44 Que ficou conhecido como Salgo v. Leland Stanford Jr. University board of Trustees. 45 GALN CORTS apud ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente p. 63. 46Cfr. DAVID J. OLIVEIRA, The Law of Informed Consent and the Right to Die in the USA in Responsabilidade Civil dos Mdicos, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 61 e 62 e, ainda, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado, cit.,, p. 30. 47 Ibidem. 48 DAVID J. OLIVEIRA, The Law of Informed Consent and the Right to Die in the USA op.cit.,,p. 61. 49 Nos EUA surgem as chamadas Cartas dos Direitos dos Pacientes49 em vrios centros hospitalares, acabando por nascer um texto nacional em 1973 : A Patients Bill of Rights. Em Frana, publicou-se a Carta dos Direitos dos Pacientes (1974). Em Espanha, destaca-se o Reglamento General para el Rgimen, Gobieno y Servicio de Las Instituciones Sanitarias de la Seguridad Social (1972) e a Carta de Derechos y Deberes del paciente del INSALUD (1984). Em Portugal, publicou-se a Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes. 50 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit..,p. 62. 51 Idem, p. 65.
11
tutela52. A jurisprudncia manifestou-se nesse mesmo sentido e, com uma deciso do
Supremo Tribunal dos EUA53, declarou-se existncia de direito privacidade (privacy),
direito esse que legitima o paciente a aceitar ou recusar tratamento, ainda que essa
recusa possa significar a sua morte.
Este direito a renunciar ao tratamento estava j espelhado numa deciso do
Supremo Tribunal de Massachussets54 na qual se afirmou que os adultos capazes podem
renunciar ao tratamento, quando este signifique suportar riscos ou consequncias que
para si so intolerveis e, sublinhe-se , por mais desaconselhvel que tal se afigure.
Desta breve resenha histrica cumpre concluir que a Medicina, como o Risco,
eram tarefas que se desempenhavam em silncio. Mas as coisas mudaram; levou dois
mil anos mas mudaram. E agora, para os mdicos, o silncio acabou55. E, assim, se
reconhece o consentimento informado, como hoje o conhecemos.
Como hoje o conhecemos porque, atualmente, a doutrina comea a alertar para
uma crise do consentimento informado56. Vrios factores potenciam esta situao,
nomeadamente os progressos tecnolgicos, a (des)regulao e a objectivao da
medicina57. Ainda, de apontar o desenvolvimento de novos ramos da medicina, tal
como a procriao medicamente assistida, o diagnstico gentico e a transplantao
que, pela sua complexidade, suscitam dificuldades em matria de consentimento
informado. A prpria densidade normativa geradora de dvidas e incertezas,
nomeadamente pela falta de rigor terminolgico nos conceitos empregues.
A autodeterminao do paciente, pedra angular do direito ao consentimento
informado, v-se ainda abalada pelo atual cenrio econmico. As medidas de
austeridade e o propsito de racionalizar e economizar recursos podem vedar o acesso
dos pacientes a certos processos diagnsticos ou a certas tcnicas58 e, assim, limitar a
sua autonomia por falta de informao.
52 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit..,p. 65. 53 Caso Cruzan (1990). Para mais esclarecimentos sobre o conceito de privacy consultar ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente Estudo de Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 65. 54 Caso Rogers versus Oakin (1979). ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente Estudo de Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 2004, p. 65. 55 GUILHERME DE OLIVEIRA, Temas de Direito da Medicina, op.cit.,p. 114. 56 Autores como ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit.,, p. 75. 57 Ibidem. 58 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit.,, . pp. 76 e 77.
12
Por ltimo, a tutela do direito ao consentimento informado conduziu a um
resultado adverso. Referimo-nos chamada medicina defensiva59 ou medicina
receosa60 que se tem praticado nos EUA. Verifica-se que os mdicos tm hiper-
informado os pacientes just to be safe61, desvirtuando a teleologia do instituto do
consentimento informado e coarctando a actividade mdica.
3. O CONSENTIMENTO INFORMADO NO ORDENAMENTO JURDICO PORTUGUS
O consentimento informado encontra-se largamente positivado no nosso
ordenamento jurdico, nomeadamente na Constituio, no Cdigo Civil, no Cdigo
Penal e na Lei Administrativa. Ainda, o Cdigo Deontolgico da Ordem dos Mdicos
preceitua sobre esta temtica.
A ttulo de referncia, no podemos deixar de mencionar que o consentimento
informado est ainda previsto em legislao especfica sobre colheita e transplante de
rgos e tecidos de origem humana62, procriao medicamente assistida63 e interrupo
voluntria da gravidez64.
Especial destaque, no s pela sua contemporaneidade, mas principalmente por
sublinhar a importncia que vem sido conferida ao consentimento, merece a legislao
relativa ao testamento vital e s diretivas antecipadas de vontade65.
Com a criao do Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV), passa a ser
possvel, a partir do dia 1 de julho do corrente ano, que os pacientes manifestem
antecipadamente a sua vontade, consciente, livre e esclarecida, relativamente aos
cuidados de sade que desejam (ou no) receber, no caso de no lhes ser possvel, por
59 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit.,, . pp. 76 e 77.. 60 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit., p. 93.O autor prefere a expresso medicina receosa por considerar que a medicina defensiva deve reservar-se actuao mdica destinada a evitar futuras medidas invasivas ou intervenes mais drsticas, como o exemplo dos casos em que se retira um sinal para prevenir que este degenere em melanoma. 61 Expresses utilizadas por STEPHEN WEAR apud ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit., p. 77. 62 Lei n. 12/93, de 22 de abril alterada pela Lei n. 22/2007, de 29 de junho, pela Lei n. 12/2009, de 26 de maro e pela Lei n. 36/2013, de 12 de junho. 63 Lei n. 32/2006, de 26 de julho alterada pela Lei n. 59/2007, de 4 de setembro e rectificada pela Declarao de Retificao n. 102/2007, de 25 de outubro 64 Lei 16/2007 de 17 de abril. 65 Lei n. 25/2012, de 16 de julho e Portaria n. 96/2014 de 5 de Maio.
http://dre.pt/pdf1s/1993/04/094A00/19611963.pdfhttp://dre.pt/pdf1s/2007/06/12400/41464150.pdfhttp://dre.pt/pdf1s/2009/03/06000/0187601897.pdfhttp://www.dre.pt/pdf1s/2013/06/11200/0325803265.pdfhttp://www.dre.pt/pdf1s/2013/06/11200/0325803265.pdfhttp://dre.pt/pdf1s/2006/07/14300/52455250.pdfhttp://dre.pt/pdf1s/2007/09/17000/0618106258.pdfhttp://dre.pt/pdf1s/2007/10/21000/0795607956.pdfhttp://dre.pt/pdf1s/2007/10/21000/0795607956.pdfhttp://www.dre.pt/pdf1s/2012/07/13600/0372803730.pdf
13
qualquer motivo, expressar a sua vontade, pessoal e autonomamente. Os pacientes
podem, ainda, optar pela nomeao de um procurador de cuidados de sade, a quem
conferem poderes para decidir por si, quando no o possam fazer.
Por motivos de delimitao do nosso estudo, esta legislao especfica no ser
objecto de anlise.
3.1. NA CONSTITUIO DA REPBLICA PORTUGUESA
A exigncia do consentimento informado e esclarecido para a prtica de certo ato
mdico encontra o seu fundamento jurdico, antes de mais, na lei fundamental. Isto
porque, a atividade mdica sugere uma intromisso na esfera fsica e psquica do
paciente e, como tal, certos bens jurdicos com proteo constitucional devem ser
pensados.
O art.1. da CRP acolhe a dignidade da pessoa humana como princpio basilar da
Repblica Portuguesa. Desta consagrao advm como intransigentes decorrncias que
primeiro est a pessoa humana e, s depois, a organizao poltica e, que (...) a pessoa
sujeito e no objecto, fim e no meio de relaes jurdico-sociais66.
Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, a dignidade da pessoa
humana funciona como um valor-limite ou um princpio-limite contra totalitarismos
e contra experincias histricas de aniquilao existencial do ser humano e negadoras da
dignidade da pessoa humana67.
Quanto a ns, numa lgica mais alargada, propendemos no sentido de se
considerar que a dignidade da pessoa humana funciona como barreira intransponvel
contra qualquer conduta susceptvel de ofender essa mesma dignidade.
Deste modo, realizar certo tratamento ou interveno cirrgica sem obter o
consentimento informado do paciente ser, em primeira instncia, uma violao do
66 J.J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA , Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, Volume I, 4 Ed. Revista, Coimbra, Coimbra Editora,2007,p. 198. 67 Ibidem.
14
princpio da dignidade da pessoa humana, sem prejuzo da violao de outros direitos
fundamentais. Isto porque, nomeadamente, o direito integridade fsica e psquica, o
direito autodeterminao e o direito ao desenvolvimento da personalidade so
corolrios do princpio da dignidade da pessoa humana.
Assim, para alm do princpio da dignidade da pessoa humana, em matria de
consentimento informado torna-se imperioso abordar estes outros direitos fundamentais,
catalogados como direitos, liberdades e garantias pessoais.
A vida humana inviolvel, dispe o n. 1 do art. 24. da CRP. Este direito vida
ocupa, propositadamente, o primeiro lugar no catlogo dos direitos, liberdades e
garantias, desde logo, porque condio de todos os outros direitos fundamentais68.
Conforme resulta do n.1 do art.25. do texto constitucional, tambm a integridade
moral e fsica das pessoas inviolvel. Sob a epgrafe Direito integridade pessoal, o
legislador conferiu proteo integridade fsica e psquica do ser humano, concretizada
no direito a no ser agredido ou ofendido, no corpo, no esprito ou em ambos69.
Na qualidade de direito pessoal irrenuncivel, o seu titular no poder dele
abdicar. A este propsito cumpre ressalvar os casos em que a renncia seja aceitvel,
como seja a realizao de piercings ou tatuagens70. Em matria de intervenes e
tratamentos mdico-cirrgicos, cumpre remeter para o art.150. do Cdigo Penal, que
ser por ns mais tarde analisado.
Intimamente relacionado com o direito integridade fsica e psquica est o
direito autodeterminao, entendido como o exerccio da liberdade de vontade71. A
este propsito, afigura-se da mxima convenincia autonomizar o direito liberdade,
em matria de consentimento informado.
68 . J.J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA , Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, op. cit., p. 446. 69 Idem, p. 454. 70 Ibidem. Os autores apontam estes exemplos como casos em que o consentimento aceitvel. Rejeitamos esta expresso por entendermos que se trata de uma renncia que, pelo seu desvalor, dispensa qualquer ingerncia do ordenamento jurdico. No queremos com isto dizer que no haja necessidade de um consentimento, mas antes que o que est em causa no ser a validade do consentimento (qualificando-o, ou no, como aceitvel) mas antes a admissibilidade da renncia que, nestas situaes, aceitvel. 71 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado op.cit., p. 50.
15
Abraando o entendimento de ORLANDO DE CARVALHO, luz da lei penal, a falta
de consentimento corresponde a uma violao da liberdade da vontade e no a uma
violao do direito integridade fsica72.
Ainda nas palavras do autor, contrariamente, no plano civil, a falta de
consentimento sempre perspectivada como uma leso integridade fsica, ainda que
presentes os requisitos do art.150. do Cd. Penal. Isto porque, o preenchimento dos
requisitos do art.150. desse diploma exclui a leso do direito integridade fsica note-
se mesmo na ausncia de consentimento do paciente. Da leitura do preceito, parece
inequivocamente resultar que suficiente que o mdico proceda de acordo com as leges
artis e movido por uma inteno teraputica, para que se afaste a ofensa integridade
fsica.
Contudo, como sustenta e muito bem o dano provocado pela ausncia de
consentimento no se traduz na agravao do estado fsico-psquico do paciente. O dano
ser () a interveno no consentida na zona de reserva que o corpo para a pessoa,
a leso da incolumidade do corpo alheio73. Ora, o dano a ausncia de
consentimento, a ofensa da liberdade da vontade.
Subsidiariamente, na hiptese de no se considerar a falta de consentimento como
uma violao da liberdade da vontade, deve entender-se que haver sempre uma
violao da integridade psquica.
Por ltimo, importa trazer colao outros direitos especiais de personalidade que
relevam em matria de consentimento informado.
Referimo-nos ao direito identidade pessoal, ao desenvolvimento da
personalidade, capacidade civil, cidadania, ao bom nome e reputao, imagem,
palavra, reserva da intimidade da vida privada e familiar e proteo legal contra
quaisquer formas de discriminao, plasmados no n.1 do art.26. da CRP.
Ainda, por imposio do n.2 do mesmo artigo, fica o legislador obrigado a
estabelecer garantias contra a obteno e utilizao abusivas, ou contrrias dignidade
da pessoa humana, de informaes relativas s pessoas e s famlias.
72ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Centelha, 1981, pp. 94 e ss. 73 ORLANDO DE CARVALHO, Teoria Geral do Direito Civil, op. cit., p. 96.
16
O n.3 estabelece a garantia da dignidade pessoal e identidade gentica humana,
frente ao desenvolvimento e utilizao das tecnologias e experimentao cientfica.
Note-se que esta norma revela o especial desiderato da nossa Constituio em
salvaguardar a dignidade da pessoa humana face s tecnologias biomdicas, no geral74.
tambm de referir o art.27. da CRP que garante o direito liberdade individual,
clarificado nos nmeros e artigos seguintes, com remisso para a lei penal.
manifesta a proteo legal conferida aos direitos, liberdades e garantias e as
implicaes prticas que da decorrem. Desde logo, o art.18. da lei fundamental
consagra o princpio da sua aplicabilidade imediata e a sua vinculao a entidades
pblicas e privadas.
Os direitos e princpios constitucionais aqui referidos, nomeadamente, o princpio
da dignidade da pessoa humana e o direito vida, integridade pessoal, identidade
pessoal capacidade civil e cidadania no podem, em caso algum, ser afectados pela
declarao do estado de stio ou do estado de emergncia (cfr. n.6 do art. 19. da CRP).
Na qualidade de direitos, liberdades e garantias, tm ainda a particularidade de
legitimar o exerccio do direito de resistncia contra qualquer ordem que os ofenda,
autorizando-se o cidado a repelir pela fora qualquer agresso, quando no seja
possvel recorrer autoridade pblica, conforme preconiza o art.21..
Prev-se ainda, no art.22., a possibilidade de responsabilizao das entidades
pblicas pela violao desses mesmos direitos.
Por ltimo, cumpre fazer uma breve aluso Conveno sobre os Direitos do
Homem e a Biomedicina 75 doravante CDHB que, por fora do art.8. da CRP,
vigora no ordenamento jurdico portugus.
Para o que aqui nos interessa, o captulo II da CDHB regula a matria do
consentimento, exigindo um consentimento informado e esclarecido76 para toda e
74 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente ,op.cit., p. 97. 75 Outorgada em Oviedo, no dia 4 de Abril de 1997. Em Portugal, a CDHB foi aprovada para ratificao em 19 de Outubro de 2000 (Resoluo da Assembleia da Repblica n. 1/2001). 76 No art.5. da CDHB pode ler-se que a pessoa deve receber previamente a informao adequada quanto ao objectivo e natureza da interveno, bem como s suas consequncias e riscos.
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qualquer interveno no domnio da sade e, permitindo, a todo o tempo, a revogao
desse consentimento (art.5.).
A Conveno no descurou a matria das incapacidades, da proteco das pessoas
que sofram de perturbao mental, das situaes de urgncia e do consentimento
antecipado, estatuindo regras gerais a seu respeito, nos arts. 6. a 9..
Este diploma estabelece ainda regras especiais para a investigao cientfica,
reclamando-se aqui um consentimento por escrito (art. 16., n. 5). No que concerne
regulao da colheita de rgos e tecidos em dadores vivos para fins de transplante, as
exigncias aumentam. Desta feita, o consentimento, para alm de reduzido a escrito,
deve ser prestado perante uma instncia oficial (art.19.,n. 2).
3.2. NO CDIGO CIVIL
Paralelamente tutela constitucional conferida ao direito integridade fsica e
moral do paciente, o Cd. Civil reitera essa mesma proteo, aclamando regras que
passaremos a analisar.
Desde logo, cumpre mencionar que o Cd. Civil no surge com uma definio dos
direitos de personalidade, nem to-pouco fornece um elenco taxativo. O direito ao
nome, ao pseudnimo, ao sigilo sobre cartas, o direito imagem e o direito reserva
sobre a intimidade da vida privada, previstos nos arts.72. e ss., so apenas alguns dos
direitos de personalidade.
Estes direitos de personalidade enquadram-se nos direitos absolutos e so
oponveis erga omnes. Na verdade, estes direitos emanam da prpria pessoa cuja
proteo visam garantir77.
Todavia, o legislador instituiu, no seu art.70., uma tutela geral da personalidade,
com vista salvaguarda da posio dos indivduos contra qualquer ofensa ilcita ou
ameaa de ofensa sua personalidade fsica ou moral. Trata-se de consagrar uma
77 HEINRICH EWALD HRSTER, A Parte Geral do Cdigo Civil Portugus, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 257 e 258.
18
(.) tutela plena e absoluta ao ser em devir que o homem, nas suas diferentes esferas
do ser e do agir e aberta historicidade78.
Acrescenta este normativo que, sem prejuzo de uma eventual responsabilidade
civil79, a pessoa ofendida ou ameaada fica habilitada a requerer as providncias
adequadas80 a impedir a consumao da ameaa ou atenuar os efeitos da ofensa j
cometida.
Assim, o alcance desta tutela geral da personalidade no fica reduzido aos direitos
de personalidade especialmente mencionados no cdigo, tendo a lei reservado
doutrina e jurisprudncia essa tarefa de admisso e delimitao81. A ttulo de exemplo,
podem ser includos no art.70., o direito vida, integridade fsica, sade e
liberdade.
No domnio da responsabilidade civil do mdico, os tratamentos e intervenes
cirrgicas representam uma ofensa integridade fsica e moral do doente. Assim,
carecem de ser consentidas, para que se exclua a sua ilicitude, nos termos do art.340.
em conjugao com o art.81. do Cd. Civil.
A lei autoriza a limitao voluntria dos direitos de personalidade, no art.81. do
Cd.Civil, incluindo-se aqui a limitao voluntria ao direito integridade fsica nas
intervenes mdicas. Porm, o legislador, prudentemente, estabeleceu duas categorias
de limitaes82, conforme contrariem ou no princpios da ordem pblica83.
No primeiro caso, as limitaes enfermam de nulidade (n1).
No segundo caso, as limitaes so vlidas mas livremente revogveis, sendo que
esta revogao tem como cominao a obrigao de indemnizar a outra parte por
violao das suas legtimas expectativas84 (n2). No plano das intervenes mdicas,
78 Vide ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit.,, p. 98. 79 responsabilidade civil por ofensas personalidade fsica ou moral so aplicveis, em termos gerais, as normas constantes dos arts. 483. e ss do Cd.Civil. 80 Salvo melhor entendimento, julgamos estar em causa os procedimentos cautelares previstos nos art. 362. e ss do CPC. 81ABLIO NETO, Cdigo Civil Anotado,16 Ed. Revista e Atualizada, Lisboa, Ediforum, Edies Jurdicas Lda., 2009, p.51. 82 PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, Vol. I, 4 Ed. Revista e Atualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 110. 83 Idem, p. 110. Leia-se ordem pblica interna. 84 Vide ABLIO NETO, Cdigo Civil Anotado, op.cit., p. 67. Ser o caso dos reality shows em que os concorrentes limitam voluntariamente os seus direitos de personalidade concretamente, o seu direito reserva da intimidade da vida privada, oferecendo o seu consentimento autorizante que mais tarde analisaremos. Na circunstncia de desistirem da participao no programa, poder sobre eles recair uma obrigao de indemnizar a estao televisiva.
19
parece-nos que no haver lugar ao ressarcimento de quaisquer prejuzos, desde logo,
porque no haver legtimas expectativas a tutelar85.
Admitindo-se a limitao voluntria dos direitos de personalidade, nos termos
supra referidos, importa analisar o regime do consentimento como forma de excluso da
ilicitude. A esse respeito, dispe o n. 1 do art. 340. do Cd. Civil que o ato lesivo dos
direitos de outrem lcito, desde que este tenha consentido na sua leso. Assim, o
consentimento validamente prestado, isto , sem vcios da vontade e sem divergncias
entre a vontade e a declarao, afasta a ilicitude da conduta do lesante.
Acrescenta o n.2 que, no obstante esse consentimento, a ilicitude persiste
quando o ato se revele ilegal ou ofensivo dos bons costumes86. luz desta norma,
parece-nos claro que, ainda que o lesado haja consentido na leso, reserva o direito a ser
indemnizado. Isto porque, na hiptese de esse ato conflituar com os bons costumes e
com a ordem pblica, o consentimento no lhe retira a ilicitude.87
Preconiza o n.3 que se d por consentida a leso, quando esta surja no interesse
do lesado e de acordo com a sua vontade presumvel. Desde j e, sem relutncia,
afirmamos que deixa de haver vontade presumvel, se o lesado se ops leso ou, por
qualquer forma, manifestou vontade contrria a ela88.
Note-se que a norma desconsidera o resultado efetivo da atuao do lesante,
limitando-se a avaliar se essa conduta ocorreu no interesse do lesado com base na sua
inteno de lhe proporcionar um resultado til89. Ora, parece bastar a inteno do
lesante em, de algum modo, beneficiar o lesado e que essa inteno coincida com a
vontade presumvel do lesado, para que se tenha por consentida a leso.
Contudo, no se afigura tarefa fcil avaliar dois requisitos indeterminados, como
sejam o da inteno do lesante e o da vontade presumvel do lesado e, ainda,
estabelecer um nexo de correspondncia entre ambos. Forosamente, tal s ser
85 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-Paciente cit., p.133. 86Devem ser tidos como atos contrrios aos bons costumes aqueles que ofendam direitos de personalidade, como o direito vida, integridade fsica, honra e ao bom nome, entre outros. Neste sentido, PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, op.cit., p.304 87 Ibidem. 88 PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, op.cit., p.304 89 Idem. p. 286.
20
possvel, atendendo s circunstncias do caso concreto90 e ponderando os interesses em
causa mas, desde j, se anteveem dificuldades srias, nomeadamente em matria de
prova.
Arquitetando-se a hiptese de o lesante atuar no interesse do lesado por
exemplo, realizando-lhe uma transfuso sangunea que lhe salvaria a vida, bem sabendo
que o lesado, por convices religiosas, no o autorizaria. Parece-nos legtimo que o
lesado, que preferia perder a vida a submeter-se a tal interveno, responsabilize
civilmente o lesante. Isto porque o lesado, neste caso, conhecia a vontade real do
paciente. Como tal, no poder agir contra os desejos do lesado invocando pra o efeito a
sua vontade presumvel. Por outro lado, tambm no ser admissvel nem sequer
justo que o lesante, de boa-f, que no pde colher o consentimento do lesado por este
estar inconsciente e, desconhecendo a sua vontade real, seja responsabilizado por lhe ter
salvado a vida.
No domnio da sade e, ponderando os interesses em causa, somos forados a
considerar que o consentimento presuntivo a que se refere o n.3 () cobre
inquestionavelmente as intervenes cirrgicas indispensveis ao tratamento do
agredido ou acidentado, que no fique em condies de exprimir a sua vontade91.
Contudo, por uma questo de coerncia, no poderemos deixar de fazer uma ressalva.
Este consentimento cobre necessariamente e no inquestionavelmente essas
intervenes, operando como um mal menor.
Em suma, a aplicao e interpretao desta norma, com certeza, suscitar
controvrsia, convocando-nos para um aceso debate. Se, por um lado, pode deixar o
lesante desprotegido, por outro, pode pactuar com violaes dos direitos de
personalidade do lesado e, quanto a ns, ambos os cenrios so repreensveis.
Terminamos com um breve apontamento aos tipos de consentimento deslindados
por ORLANDO DE CARVALHO: o consentimento tolerante, o consentimento autorizante e o
consentimento vinculante.
90 PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Cdigo Civil Anotado, op.cit. p.304. 91Idem. p.304
21
O consentimento tolerante causa de excluso da ilicitude, na medida em que no
confere um verdadeiro poder de agresso ao lesante, mas implicitamente justifica essa
conduta. Exemplificativamente, aqui se incluem as intervenes cirrgicas consentidas
pelo paciente e em seu benefcio.
O consentimento autorizante, luz do art.81.,n2 do Cd. Civ, confere um poder
de agresso mas, apesar de ser livremente revogvel, faz nascer uma certa obrigao de
indemnizar.
Por ltimo, o consentimento vinculante, tal como o prprio nome sugere, no
poder ser unilateralmente revogado, aplicando-se as regras gerais dos negcios
jurdicos plasmadas nos arts. 230. e ss e 406. do Cd. Civil..
Ora, no plano das intervenes mdicas aplicar-se-, necessariamente, o regime
do consentimento tolerante, acolhido no art. 340. do Cd. Civil, com dois traos
fundamentais: a livre revogabilidade e a no ressarcibilidade de quaisquer prejuzos92.
3.3. NO CDIGO PENAL
A ao mdica, como j se referiu, acarreta uma ingerncia na esfera fsica e
psquica do paciente. Por esse motivo, devem ser considerados os normativos da lei
penal.
Coloca-se, antes de mais, a questo de proceder qualificao jurdica das
intervenes mdico-cirrgicas. Reproduzindo as palavras do Prof. EDUARDO CORREIA,
Segundo uns, as intervenes mdicas no cabem no tipo das ofensas corporais ou de
homicdio; segundo outros, as intervenes so tpicas mas assiste-lhes uma causa de
justificao baseada no consentimento; ainda segundo outros, as intervenes mdicas
esto abrangidas pelo exerccio de um direito profissional dos mdicos93.
semelhana do autor, apenas consideramos plausvel a primeira soluo e
rendemo-nos aos argumentos por este apresentados. Na verdade, a terceira soluo
92 ANDR GONALO DIAS PEREIRA, O Consentimento Informado na Relao Mdico-cit., p. 133. 93 Apud MANUEL LOPES MAIA GONALVES, Cdigo Penal Portugus Anotado e Comentado, 15 Edio, Coimbra, Almedina, 2002,p. 518.
22
afigura-se nada menos do que perturbante, j que pactua com uma lgica de
desconsiderao e total desvalor do paciente enquanto cidado dotado de direitos,
liberdades e garantias. Subtrai-se o paciente da equao e confere-se total poder aos
agentes mdicos, retrocedendo-se para um pensamento medieval com o qual no
podemos concordar.
A segunda soluo , de facto, insuficiente, nada acrescentando aquilo que o
carcter tpico das intervenes mdicas e, assim, resta-nos somente a primeira soluo
que passamos a abordar.
Tenha-se por assente, antes de mais, que a integridade fsica que aqui discutimos
, para efeitos de consentimento, livremente disponvel, contando que no ofenda os
bons costumes. Desde logo, o art.38., no seu n.1, aponta para a disponibilidade da
integridade fsica, determinando que o consentimento exclui a ilicitude do facto94, com
o devido respeito pelos bons costumes, conforme j referimos.
Este consentimento pode ser expresso por qualquer meio que traduza uma
vontade sria, livre e esclarecida do seu titular e permite-se a sua livre revogao at
execuo do facto (cfr.n2 do art.38.).
No nos oferece dvidas que o consentimento deva ser anterior prtica do ato
consentido e, como tal, o consentimento posterior no mais do que perdo, e como
tal deve ser tratado95.
O consentimento s ser eficaz se prestado por quem possua mais de 16 anos de
idade e revele o discernimento necessrio (n3).
Maior ateno reclama o n4 ao preconizar que se o consentimento no for
conhecido do agente, este punvel com a pena aplicvel tentativa. Seguindo os
ensinamentos de MAIA GONALVES, os casos em que o agente atua desconhecendo
que o ofendido dera o seu consentimento do origem a uma figura anloga da tentativa
impossvel, que alguns aproximam mais de um crime putativo. Da a remisso feita no
n.4 para a punio da tentativa, e no diretamente para a tentativa96.
94 O consentimento como causa de excluso da ilicitude decorre, desde logo, do art.31.,n.2,al.d) da lei penal. 95 MANUEL LOPES MAIA GONALVES, Cdigo Penal Portugus- Anotado e Comentado, op.cit., p. 175. 96 Ibidem. p. 175.
23
Esquematicamente, podem extrair-se deste artigo requisitos de fundo, requisitos
de forma e requisitos relativos capacidade para consentir, sem os quais o
consentimento no confere licitude ao97.
Os requisitos de fundo esto elencados no n.1 e respeitam disponibilidade dos
interesses jurdicos e ao respeito pelos bons costumes.
Quanto aos requisitos de forma do consentimento, plasmados no n.2, estes podem
resumir-se necessidade de existir uma vontade sria, livre e esclarecida do titular. No
domnio da sade, tal s ser possvel, se o titular tiver sido informado de forma plena e
o mdico tiver confirmado o esclarecimento.
Por ltimo, os requisitos respeitantes capacidade para prestar consentimento
condio de eficcia do consentimento determinam que essa capacidade fique
reservada aos maiores de 16 anos que possuam o discernimento necessrio (n.3).
O Cd. Penal regula, no seu art.39., o regime do consentimento presumido,
equiparando-o ao consentimento efetivo. Haver consentimento presumido quando a
situao em que o agente atua permitir razoavelmente supor que o titular do interesse
juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as
circunstncias em que este praticado.
Trata-se de conferir relevncia vontade virtual ou hipottica98 do lesado
semelhana da considerao da vontade presumvel a que se alude no art. 340.,n3
do Cd.Civ. e, deste modo, excluir a ilicitude da conduta. Como tal, tratando-se de um
(..) juzo de prognose pstuma (..) 99cumpre referir que haver sempre a lacuna de
no saber se a vontade do lesado, por mais insensata que se apresente, seria a de no
prestar o consentimento.
Este consentimento presumido, para alm de obedecer aos requisitos gerais do
consentimento contidos no art.38., ter como (..) requisitos especficos a necessidade
da deciso e a impossibilidade de esta ser tomada pelo titular do interesse100.
97 MANUEL LOPES MAIA GONALVES, Cdigo Penal Portugus- Anotado e Comentado, op.cit,175 98 Idem. p. 177. 99 Ibidem. 100 Ibidem.
24
Como j referimos, a integridade fsica relativamente disponvel para efeitos de
consentimento. O art.149.do Cd. Penal reitera esse desgnio, decorrendo da leitura
conjunta do preceito que o titular dos bens jurdicos respeitantes ao corpo e sade
pode deles dispor livremente e, assim, desde que que a ofensa no contrarie os bons
costumes, o consentimento afasta a ilicitude101.
Numa primeira anlise, esta norma parece dispensvel se atentarmos ao regime do
consentimento, regulado nos arts. 38. e 39.102. Contudo, um olhar mais atento leva-nos
a considerar que a norma complementa o preceituado nestes artigos, j que clarifica a
clusula dos bons costumes103. Note-se que no n.2 do art.149., o legislador enuncia
critrios que permitem valorar se a ofensa ao corpo ou sade contrria aos bons
costumes, devendo atender-se, nomeadamente, aos motivos e os fins do agente ou do
ofendido, bem como os meios empregados e a amplitude previsvel da ofensa.
Centremo-nos agora na atuao mdica, regulada essencialmente nos arts. 150.,
156. e 157. do Cd. Penal.
Socorrendo-nos do n1 do art.150., constatamos que as intervenes e
tratamentos, realizados por um mdico ou pessoa legalmente autorizada, que ocorram
com respeito pelas leges artis e que prossigam finalidades teraputicas104, no
preenchem o tipo legal de crime de ofensas integridade fsica.
Sejamos mais precisos. A norma impe o preenchimento cumulativo de quatro
pressupostos105 106 para que a conduta mdica no constitua uma ofensa integridade
fsica: em primeiro lugar, a interveno mdica deve mostrar-se indicada (indicao
mdica107); em segundo lugar, deve respeitar as leges artis108; em terceiro lugar, exige-
101 MANUEL LOPES MAIA GONALVES, Cdigo Penal Portugus- Anotado e Comentado, op.cit, p. 517. 102 Ibidem. 103 Neste sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado op.cit., p. 61. 104 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado op.cit.., p. 58. 105 Acolhemos o entendimento de MANUEL DA COSTA ANDRADE, Comentrio Conimbricense ao Cdigo Penal, Tomo I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 306 e ss. 106 LVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, Responsabilidade Mdica em Direito Penal Estudo dos Pressupostos Sistemticos, Coimbra, Almedina, 2007, p.232, considera que nesta norma esto patentes dois elementos subjetivos a qualificao do mdico e a inteno teraputica e dois elementos objectivos a indicao mdica e a realizao segundo as leges artis. 107 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit.,p. 59. 108Ibidem. O autor alerta para a compreensvel confuso entre o pressuposto da indicao mdica e do respeito pelas leges artis, j que ambos os conceitos se reportam a uma () actuao conforme s regras tidas por adequadas pela cincia mdica. Todavia, tal como o autor, parece-nos que o legislador se sentiu impelido a individualizar a fase preventiva e diagnostica a chamada indicao mdica da fase executiva, para assim reforar a proteo do paciente.
25
se a qualificao tcnico-profissional do interventor109; por ltimo, deve ser movida
por uma inteno teraputica110.
A contrario, a violao das leges artis e consequente criao de perigo para a
vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a sade do paciente, ser punida
com pena de priso at dois anos ou com pena de multa at 240 dias dias, se pena mais
grave lhes no couber por fora de outra disposio legal 111(cfr. n. 2 do art. 150.).
Parece-nos, portanto, que a violao das leges artis, de per si, no ser suficiente
para que se aplique este art.150.. necessrio que dessa violao advenha perigo para
o paciente.
Ainda, como sustenta e bem MAIA GONALVES, a criminalizao das leges
artis, no contraditria com a regra da dispensa facultativa da pena aclamada na al. a)
do n.2 do art.148., nos casos em que do ato mdico no resulte doena ou
incapacidade para o trabalho superior a 8 dias. Segundo o autor, o art.148. no
contempla situaes de violao dolosa das leges artis, referindo-se a uma violao
negligente dos deveres objectivo e subjetivo de cuidado, nos termos do art.15.112.
Como vimos, a conduta mdica consciente, que respeite as leges artis e prossiga
finalidades teraputicas, no poder ser incriminada nos termos do art.150. como
ofensa integridade fsica. Todavia, a par da integridade fsica, a autodeterminao do
paciente merecedora de tratamento isolado pela lei penal113, criminalizando-se a
ausncia de consentimento.
As intervenes e os tratamentos mdico-cirrgicos arbitrrios integram o
catlogo dos crimes contra a liberdade pessoal, punindo-se114 o mdico ou pessoa
legalmente autorizada cuja actuao, apesar de respeitar as leges artis e de prosseguir
finalidades teraputicas, no surja acompanhada do consentimento do paciente (cfr.n.1
do art.156.).
109 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado cit.,p. 59. 110Ou, se preferirmos, visando uma teleologia mdico-medicamentosa, buscando a expresso utilizada por JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado op.cit., p. 59, 111 Esta norma, sendo de aplicao subsidiria, no obsta aplicao do regime do homicdio ou da ofensa integridade fsica e, podemos dela inferir uma ideia de responsabilizao acrescida do mdico. 112 MANUEL LOPES MAIA GONALVES, Cdigo Penal Portugus- Anotado e Comentado, op.cit., p. 519. 113 Neste sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado op.cit.,p.71. 114 Prev-se a pena de priso at trs anos ou uma pena de multa.
26
Ora, ao passo que o art.150. confere proteco integridade fsica do paciente, o
art.156. encontra o seu fundamento na liberdade pessoal ou autodeterminao do
paciente115. Assim, parece-nos que a ausncia de consentimento no poder, nos termos
da lei penal, consubstanciar a prtica do crime contra a integridade fsica ou a sade116.
O mdico ser ainda punido, a ttulo de negligncia grosseira, quando no tenha
promovido as diligncias necessrias para confirmar o consentimento e se convena
falsamente da existncia de um consentimento relevante117 (art. 156., n 3).
O consentimento s ser eficaz se o mdico ou pessoa legalmente autorizada tiver
cumprido o seu dever de esclarecimento, nos termos do art.157.. Significa isto que o
paciente deve ser devidamente esclarecido sobre o diagnstico, possveis
tratamentos/intervenes e eventuais consequncias e riscos que esses comportem.
Assim, neste dever de esclarecimento possvel deslindar um dever de informao e um
dever de confirmar o esclarecimento118.
A falta de consentimento do paciente poder, portanto, ser equiparada a um
consentimento deficiente, entendido como aquele que no se funda numa vontade sria,
livre e esclarecida (cfr.art.38.,n2). Em bom rigor, consideramos que a falta de
consentimento deve ser distinguida do consentimento ineficaz, j que no primeiro caso
no h sequer uma declarao de consentimento e, no segundo, h um consentimento
ineficaz por violao do dever de esclarecimento. Todavia, essa distino (meramente
terica) no releva para efeitos de punio, visto que a lei clara quando faz uma
remisso do art.157. para o art.156..
Por ltimo, de referir que a lei prev situaes em que a falta de obteno do
consentimento no ser punvel e, ainda, casos de dispensa do cumprimento do dever
de informar e do dever de esclarecer (art.156.,n2 e art.157., respectivamente),
115 MANUEL LOPES MAIA GONALVES, Cdigo Penal Portugus- Anotado e Comentado, op.cit., p. 542. 116 Cfr. LVARO DA CUNHA GOMES RODRIGUES, Responsabilidade mdica em Direito Penal ..op.cit., , p. 357. 117 Vide JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado ,op.cit.,p.73. 118 Idem, p. 72.
27
3.4. NA LEI ADMINISTRATIVA
Reza a CRP, no seu art.64,n1, que todos tm o direito proteco da sade e o
dever de a defender e promover. Compete prioritariamente ao Estado, a tarefa de
garantir o acesso de todos os cidados aos cuidados mdicos e de assegurar que o
servio nacional de sade est alargado a todo o pas, com racionalidade e eficincia,
(art.64,n3 al.a) e b)). O Estado deve ainda garantir adequados padres de eficcia e de
qualidade nas instituies pblicas e privadas, disciplinando e fiscalizando nesse sentido
(art.64.,n3,al.d))119.
As normas que visam esta prerrogativa compem o chamado Direito da Sade,
entendido como o () conjunto de preceitos cujos vnculos mtuos e inter relaes
obrigam o operador jurdico a ter presente a chave estrutural do complexo120.
Neste Direito da Sade podemos identificar um sub-ramo o Direito
Administrativo da Sade ou Direito da Sade Pblica que regula a organizao e a
atividade da Administrao Pblica, movida pelos fins de concretizar a garantia
constitucional da proteo da sade e manter to elevado quanto possvel o nvel
sanitrio da populao121.
Centremo-nos agora na questo do consentimento informado e esclarecido do
paciente e, desta feita, vejamos o que dispe a LBS122 a esse respeito.
A Base XIV exige o consentimento e autoriza o dissentimento do paciente,
conferindo-lhe a faculdade de decidir receber ou recusar a prestao de cuidados que
lhe proposta, salvo disposio especial da lei (al.b) do n.1). Novamente, trata-se de
reconhecer e respeitar a autodeterminao do paciente, conferindo-lhe liberdade de
escolha.
119 Nas al.c)e) e f) do n. 3 do art.64. esto elencadas outras atribuies do Estado com vista a garantir o direito proteo da sade. 120 Neste sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado ,op.cit.,p. 72. 121 JOS MANUEL SRVULO CORREIA, Introduo ao Direito da Sade in OLIVEIRA ASCENO E OUTROS, Direito da Sade e Biotica, AAFDL, Lisboa, 1991, p.48 122 Lei de Bases da Sade Lei n.48/90 de 24 de Agosto alterada pela Lei n.27/2002 de 8 de Setembro.
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Intimamente relacionado com o consentimento est o direito de informao do
utente, a quem deve ser devidamente comunicada a sua situao, as alternativas
possveis de tratamento e a provvel evoluo do seu estado de sade (al.e) do n.1).
No que concerne aos menores e incapazes, compete lei regular as condies em
que os seus representantes legais podero exercer por eles os direitos que lhe assistem,
nomeadamente o direito a dissentir (cfr.n.3).
Numa lgica de cooperao com o Ministrio da Sade atriburam-se
competncias DGS, nomeadamente para propor e difundir orientaes relativas ao
consentimento livre e esclarecido123
. Assim, a DGS publicou a Carta dos direitos e
deveres dos doentes e elaborou uma Circular Informativa sobre a prestao do
consentimento livre e esclarecido.
Em termos genricos, a Carta debrua-se sobre o direito a (no) ser informado e o
direito ao consentimento e ao dissentimento livres e esclarecidos, nos seguintes moldes.
O paciente tem o direito a ser informado sobre a sua situao de sade, sendo que
essa informao deve ser prestada de forma clara, atendendo-se personalidade, ao
grau de instruo e s condies clnicas e psquicas do paciente. A informao deve
conter elementos atinentes ao diagnstico, ao prognstico, aos possveis tratamentos e
aos riscos e consequncias que esses eventualmente comportem. A contrario, o paciente
pode optar por no ser informado e, querendo, poder indicar um terceiro a quem a
informao deva ser revelada.
Relativamente ao consentimento, este obrigatrio e prvio ao acto mdico,
decorrendo da informao prestada. Prev-se ainda a livre revogabilidade do
consentimento, bem como a opo pelo dissentimento.
Na referida Circular Informativa, so nomeadamente abordadas as modalidades da
declarao de consentimento (consentimento expresso e tcito), os requisitos de eficcia
do consentimento, a sua livre revogabilidade, a prestao de informao e a
confirmao do esclarecimento, bem como o dissentimento.
123 Cfr. art.25. al. h) do DL n. 122/97 de 20 de Maio.
29
Especial destaque merece o facto de se indicar o consentimento prestado por
escrito como meio privilegiado da manifestao da vontade do paciente, constando
como anexo da Circular um modelo genrico como proposta de trabalho, que poder ser
adaptado s vrias instituies de sade. Concordamos que esteja subjacente um intuito
de () construir uma uniformizao dos modelos e das actuaes prosseguidas nas
vrias instituies de sade portuguesas, o que de louvar124.
3.5. NO CDIGO DEONTOLGICO DA ORDEM DOS MDICOS
No prembulo do actual CDOM125 pode ler-se que este cdigo destinado a
mdicos um conjunto de normas de comportamento, cuja prtica no s
recomendvel como deve servir de orientao nos diferentes aspectos da relao
humana que se estabelece no decurso do exerccio profissional. Estas normas ho-de
espelhar os princpios ticos fundamentais orientadores de toda a atividade mdica,
como sejam o princpio da beneficncia, da no maleficncia, da autonomia e da justia.
Primeiramente, de salientar que este cdigo no descura as matrias
relacionadas com o consentimento informado e esclarecido do paciente, revelando
significativos progressos quando comparado com o revogado CDOM de 1985126.
Desde logo, no seu art.31., estabelece como princpio geral que o mdico, no
exerccio das suas funes, fica obrigado a agir no pleno respeito pela dignidade do ser
humano. Esse dever de respeito pela pessoa do doente vem reiterado no art.39.,n1.
Preconiza o n.1 do art.35. do mesmo diploma que o mdico deve abster-se de
quaisquer actos que no estejam de acordo com as leges artis. O n.2 do mesmo artigo
autoriza a prtica dos actos no reconhecidos pelas leges artis mas sobre os quais
recaiam fundadas probabilidades de xito, somente em dois casos especficos: apenas
em situaes em que no haja alternativa e desde que o doente ou o seu representante
legal, quando aplicvel preste o seu consentimento. Este preceito legitima ainda a
124 Vide JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado ,op.cit.,p.80. 125 Regulamento n.14/2009, da Ordem dos Mdicos, publicado em Dirio da Repblica, 2srie, n. 8, no dia 13 de Janeiro de 2009. 126 Publicado na Revista da Ordem dos Mdicos n.3/85.
30
prtica de atos integrados em protocolos de investigao, observadas que sejam as
regras da experimentao.
Ora, o consentimento ter por base o esclarecimento (cfr.art.44.) prvio, devendo
o mdico informar e esclarecer o paciente sobre o diagnstico, a teraputica e o
prognstico da sua doena127, bem como dos contornos, riscos e possveis
consequncias que possam advir da sua conduta. Dever faz-lo de modo adequado e
compreensvel, atendendo nomeadamente ao estado emocional do paciente, a sua
capacidade de compreenso e o seu nvel cultural. desejvel, ainda, que o
esclarecimento assente em dados probabilsticos. Assim, permitir-se- ao doente
consentir em conscincia.
Os requisitos de validade do consentimento sero a capacidade para consentir, o
cumprimento cabal do dever de informao por parte do mdico e, ainda, a ausncia de
coao fsica ou moral (cfr.n.1 do art.45.). Mais se recomenda que se proporcione um
lapso de tempo razovel a mediar o esclarecimento e a prestao do consentimento para
o que doente possa refletir e aconselhar-se (cfr.n.2 do art.45.). Por ltimo, se o acto
mdico envolver srios riscos ou consequncias, o mdico no s deve aceitar, como
pode sugerir ao paciente que procure uma segunda opinio mdica (cfr.n.3 do art.45).
No que respeita incapacidade para prestar consentimento (cfr.art.46.) no
podemos deixar de saudar o facto de se tomar em considerao a opinio dos
menores128, em funo da sua maturidade. de louvar que no se subtraia,
simplesmente, o menor deste processo. Note-se que no se faz qualquer referncia
idade mas apenas maturidade. Na verdade, parece-nos bvio que a idade no
necessariamente sinnimo de maturidade e, como tal, ser necessria uma avaliao
casustica que permita, eventualmente, respeitar as opes do menor consoante o
discernimento que se lhe reconhea.
Considerando o mdico que a deciso dos representantes legais ou dos familiares
no se coaduna com o superior interesse do paciente, ser requerido o suprimento
127 Cfr. art. 50.. No n.3 deste artigo est contemplado aquilo que apelidamos de direito a no saber. 128 Esta norma deve ser articulada com o art.48.,n. 3 no qual se determina que no caso de menores ou incapazes, o consentimento ser dado pelos pais ou representantes legais, mas o mdico no fica dispensado de tentar obter a concordncia do doente, nos termos do nmero 3 e 6 do artigo 46. e do artigo 52.
31
judicial do consentimento (n.6 do art.46.). Esta matria ser por ns deslindada
adiante, a propsito da capacidade para consentir e, para l remetemos os necessrios
esclarecimentos.
O consentimento implcito assenta numa presuno de consentimento (cfr.
art.47.). Ter lugar em situaes de urgncia e, de acordo com a vontade
presumvel do paciente ; quando s puder ser obtido com adiamento que implique
perigo para a vida ou pra a sade e quando surja uma necessidade imperiosa de realizar
uma diferente interveno/tratamento e se revele possvel colher novo consentimento.
No que concerne s formas de consentimento (art.48.), dispe-se que este pode
ser prestado oralmente ou reduzido a escrito. Ser obrigatrio o consentimento escrito
e/ou testemunhado nos casos legalmente contemplados.
A figura do dissentimento est implicitamente plasmada no art.49., sendo que
face recusa de exames e tratamentos o mdico pode escusar-se a prestar assistncia
(cfr.art.41. e art.46.,n6, in fine). Nos casos em que o paciente com capacidade para
consentir corra perigo de vida, ter de ser o prprio a dissentir expressamente e sem
quaisquer coaces.
Conclumos com duas crticas positivas ao actual CDOM.
No cdigo revogado, prescrevia-se no art.38.,n1 e 2 o dever de esclarecer o
paciente, a sua famlia ou representante acerca dos mtodos de diagnstico ou de
teraputica que se pretendiam aplicar. Na verdade, ao conferir-se aos familiares ou
representante do paciente um direito a ser informado () houve a preocupao de
alargar o processo de tomada de deciso pelo paciente, estabelecendo um regime de
complementaridade129.
No cdigo vigente, estabelece-se a regra de que o diagnstico e o prognstico
devem sempre ser revelados ao paciente, s podendo ser dados a conhecer a terceiros
com o consentimento expresso do paciente, salvo se o paciente for menor ou
cognitivamente incompetente (cfr. n 1 e 4 do art.50.). Parece cumprir-se o regime de
129 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado ,op.cit.,p. 88.
32
subsidiariedade reclamado por alguns autores130 em prol da dignidade e autonomia do
paciente.
O segundo enaltecimento prende-se com a repetio, no anterior CDOM, da
expresso preferencialmente por escrito131, entendida por alguns autores como uma
induo a uma ()desnecessidade de formalizao do consentimento e a sugesto de o
formalizar132. Essa expresso, felizmente, parece ter sido erradicada do presente
CDOM133.
Contudo, no podemos deixar de atentar para o facto de o actual cdigo persistir
na falta de uniformidade na terminologia empregue134, utilizando aleatoriamente os
conceitos de consentimento, consentimento por escrito, consentimento expresso,
expresso e explcito consentimento pleno, consentimento pleno, consentimento
plenamente livre e informado do doente e, ainda, consentimento informado escrito.
Esta falta de concretizao e de preciso lingustica, para alm de dificultar a
compreenso dos preceitos, pode acarretar implicaes prticas.
130 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado ,op.cit.,p. 88. 131 Nomeadamente nos arts.39.,art.60.., art.61.. 132 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado op.cit.,p. 90. 133 Designadamente, no que concerne experimentao humana, exige-se agora o consentimento prestado por escrito (cfr.art.82.al.a) do atual CDOM e art.60.,n1 do anterior CDOM). 134 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado,op.cit.,p. 90. teceu as mesmas consideraes ao anterior CDOM.
33
CAPTULO II DECLARAO DE CONSENTIMENTO
1. MODALIDADES DA DECLARAO DE CONSENTIMENTO
1.1. CONSENTIMENTO EXPRESSO E CONSENTIMENTO TCITO
O nosso ordenamento jurdico consagra, nos arts. 217. e 219. do Cd. Civil, o
princpio da liberdade declarativa135 quanto forma dos negcios jurdicos. Isto
significa que, em regra, a declarao de vontade pode validamente prestar-se por ()
quaisquer meios que correspondam noo de comportamento declarativo136.
Por fora do art. 295. do mesmo diploma, este princpio aplicar-se- prestao
de consentimento para realizao de atos mdicos137. Ora, o mesmo dizer que o
consentimento pode ser declarado expressa ou tacitamente, afastando a ilicitude da
leso.
correto falar-se em consentimento efetivo para abarcar quer o consentimento
expresso quer o consentimento tcito138.
Assim, se por um lado se admite o consentimento expresso prestado por
palavras, por escrito ou por qualquer outro meio direto de manifestao de vontade139
por outro, tambm se reconhece valor jurdico s declaraes tcitas, aqui com uma
particularidade: o consentimento tcito ter de deduzir-se de factos que com toda a
probabilidade o revelem (cfr. n. 1 do art. 217. do Cd.Civil).
Como ilustra o Ac. do STJ de 7 de junho de 2011, Proc. n.
1581/07.3TVLSB.L1.S1 Relator Gabriel Catarino, para que ocorra uma situao de
consentimento tcito () torna-se necessrio que os sinais (significantes ou
135 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4 Ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2005.,p. 424. O autor relembra que relativamente ao contedo dos negcios jurdicos vigora o princpio da liberdade negocial (art. 405. do Cd. Civil). 136 MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE, Teoria Geral da Relao Jurdica, Vol. II, Coimbra, Almedina, 2003, p. 129. 137 Na verdade, como refere CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA, Texto e Enunciado na Teoria do Negcio Jurdico, Vol. II, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 704 e ss tratam-se de quase-negcios-jurdicos. 138 No mesmo sentido, JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado, cit., pp . 91 e 424. 139 JOO VAZ RODRIGUES, O Consentimento Informado, cit., pp. 91 e 424. O consentimento escrito por testemunho de terceiro e o consentimento obtido por outros meios de registo, tais como a gravao de imagem e voz, podem configurar outro meio direto de manifestao de vontade. Acerca da noo legal de documento e dos meios de prova documental, ver os artigos 362. e 268. do Cd. Civil, respetivamente.
34
exteriorizveis) do titular do direito se revelem ou evidenciem como inequvocos ou
desprovidos de qualquer dvida140. Portanto, o consentimento tcito assentar num
comportamento concludente do paciente.
Da declinarmos o raciocnio empregue no Ac. do STJ de 18 de maro de 2010,
Proc. n. 301/06.4TVPRT.P1.S1, Relator Pires de Rosa141 em que sustenta este Tribunal
que tendo a autora escolhido livremente a clnica r, estamos num domnio
inteiramente privado, sendo que esta livre escolha induz uma tcita aceitao da
orientao mdica que na clnica receba () predispondo-se a aceitar as indicaes
mdicas que receba nos mesmos termos, com o mesmo crdito de confiana com que
firmou a sua escolha. Acrescenta-se ainda que se a autora escolheu o seu mdico, a
sua clnica, impensvel aceitar a hiptese de no consentir no caminho teraputico
seguido.
Discordamos que o simples facto de se optar por determinada clnica seja um
comportamento suficientemente revelador para da se inferir um consentimento tcito
para o ato mdico. Na verdade, pode argumentar-se que o paciente, ao escolher aquela
clnica, deposita uma especial confiana nos respetivos mdicos. Todavia, no nos
parece que essa opo tenha por consequncia lgica a vontade do paciente em seguir
orientaes mdicas que simplesmente desconhece. Muito embora se pudesse aceitar o
consentimento tcito da paciente, tal no exonera o mdico do cumprimento do dever de
informar.
Cumpre recordar que s os atos mdicos que importem um risco superior ao
mnimo carecem de ser expressamente consentidos. Para os atos mdicos apelidados
como atos de rotina, privilegia-se a relao de confiana mdico-paciente, pelo que se
afigura bastante o consentimento tcito ou presumido142.
Contudo, situaes h em que a lei impe o consentimento expresso,
nomeadamente em matria de atuao mdica143. Reputamo-nos s intervenes que,
140 Disponvel em http://www.dgsi.pt/. 141 Disponvel em http://www.dgsi.pt/. 142 Neste sentido, JOS RUI COSTA PINTO, Biotica para Todos, op.cit., p. 51. 143 A ttulo de