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    A INFNCIA EM MANOEL DE BARROS

    Ah como bom a gente ter infncia!21

    Manoel de Barros

    Tendo j ultrapassado os 90 anos, Manoel de Barros mostra-nos que a in-

    fncia no s a fase inicial da vida, mas um sentimento que deveramos carregar

    e praticar, no esquecer ou abandonar. Tampouco, ignorar ou calar. O poeta fala

    da infncia como quem fala de algo vivido na vspera ou no mesmo dia. Certa-

    mente, o faz por no compreender a infncia como os primeiros anos de sua longa

    vida, mas como algo sentido aqui e agora, o tempo todo. Sua obra atesta essa idei-a, uma vez que, desde o primeiro livro, escreve, com intimidade, sobre e com in-

    fncia.

    Poemas concebidos sem pecado foi publicado em 1937, quinze anos de-

    pois da Semana de Arte Moderna. Mais de sessenta anos depois, surge a primeira

    caixinha de Memrias inventadas. Esta traz vestgios daquele, no com meras

    repeties visando evidenciar aos crticos a coerncia da obra potica, a unidade

    por assim dizer. So repeties que marcam o estilo barrosiano, cujo reiterar

    tornar outro: Repetir repetir at ficar diferente./ Repetir um dom de estilo

    (Barros, 2004b, p.11).22A srie Memrias inventadas composta pela trilogia: a

    Infncia, a Segunda Infnciae a Terceira Infncia. Publicados em 2003, 2006 e

    2008, respectivamente, tais livros, de poemas23, foram feitos a partir da proposta

    21BARROS, M. de. Gramtica expositiva do cho (Poesia quase toda), p.89.22A crtica divide-se quando tem de falar sobre o poeta cuiabano. Segundo Lima, h os que juramde ps juntos que toda ela, a obra, uma unanimidade de concretude coisal e ponto de referncia

    para uma poesia que punge no primor da desconstruo de linguagem; e os que a condenam sob aacusao de repetitiva e sombreada por si mesma (Lima, 1999, s/p). Essa acusao, feita comfrequncia obra barrosiana, fundamenta-se na repetio de palavras, temas, personagens, pontosde vista, etc. De acordo com Neto, tradicionalmente, Manoel de Barros se imps por propor umtexto que assumia a contribuio milionria de todos os erros. O seu verbo deformante entrou na

    poesia brasileira, marcada pelo cerebralismo cabralino e vanguardeiro, como uma voz dissonante.[...] S que tudo isso, que tinha uma grande significao em dado momento de nossa evoluocultural, acabou esvaziado de sentido (Neto, 1998, s/p). Manoel de Barros, apesar das aparentesrepeties que saltam aos olhos dos crticos, no se repete. Mesmo com a reiterao de certoselementos, cada livro absolutamente novo, no s por ter-se tornado diferente como o prprio

    poeta diz defendendo-semas porque ele, o poeta, e ns, os leitores, somos outros a cada leitura.No se trata de discutir se determinada palavra, tema, personagem, ponto de vista, etc. esto reapa-recendo nesse ou naquele livro; trata-se, na verdade, de discutir a experincia da leitura. O foco

    no deveria ser o texto em si, mas o leitor. Ele que d novidade ao velho, vivacidade ao morto.23Concordamos com Octavio Paz: no obedecendo a uma ordem conceitual ou narrativa, h poesi-a, no prosa. O crtico mexicano pe Alice no Pas das Maravilhas, de Lewis Carroll, como livro

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    de um editor que pediu ao poeta que escrevesse memrias. Ele respondeu que s

    tinha memria infantil24. Ento, foi-lhe proposto que escrevesse memrias infan-

    tis, da juventude e da velhice. Por isso, nos trs livros em 2010, eles foram reu-

    nidos em um s livro,Memrias inventadas: as infncias de Manoel de Barros,

    apesar de parecerem destinados a pocas distintas, no perdem o sentimento da

    infncia, at porque a grande questo no serem exatamente autobiogrficos e

    preocupados, portanto, em contar a vida do poeta. Deles fica-nos o sentimento da

    infncia presente em cada fase da vida, uma infncia sempre atual, intensa, vivida.

    Em entrevista25para a revista Caros Amigos, Manoel de Barros reflete:

    Tudo que eu aprendera at meus 90 anos era nada; meus conhecimentos eramsensoriais. O que aprendi em livros depois no acrescentou sabedoria,acrescentou informaes. O que sei e o que uso para a poesia vm de minhaspercepes infantis. (apud Martins et al., 2006, p.30)

    O poeta mato-grossense, em plena terceira infncia, permite-se um de-

    vaneio voltado para a infncia. O filsofo Gaston Bachelard (1884-1962) reflete

    sobre isso: uma infncia imvel mas sempre viva, fora da histria, oculta para os

    outros, disfarada em histria quando a contamos, mas que s tem um ser real nos

    seus instantes de iluminao ou seja, nos instantes de sua existncia potica.

    (Bachelard, 2006, p.94). O poeta torna real, por meio de suas memrias, o senti-

    mento de infncia, permanente e velado. Nelas, mostra que um excesso de infn-

    cia um germe de poema (Ibid., p.95), exatamente porque, quanto mais se sente

    atravessado pela experincia da infncia, mais escreve, mais produz.

    Ressalte-se que Manoel de Barros, diferentemente de Plato e Aristteles,

    fala dos conhecimentos sensoriais de modo, claramente, positivo. Mostra que suas

    percepes infantis ultrapassaram a fase inicial da vida e esto com ele at hoje.

    de poemas, porque nele as frases so presididas pelas leis da imagem e do ritmo, havendo umfluxo e refluxo de imagens, acentos e pausas, o que prova da existncia da poesia. No existe

    poema sem ritmo. Enquanto a figura geomtrica que caracteriza a prosa a linha, a que caracterizao poema um crculo ou esfera: a prosa a linha: reta, sinuosa, espiralada, ziguezagueante, massempre para diante e com uma meta precisa. [...] O poema, pelo contrrio, apresenta-se como umcrculo ou uma esfera: algo que se feche sobre si mesmo, universo auto-suficiente e no qual o fim tambm um princpio que volta, se repete e se recria. E esta constante repetio e recriao no seno o ritmo, mar que vai e vem, que cai e se levanta (Paz, 2006, p.12 -13). Por tudo isso, asrieMemrias inventadastraz poemas.24MARTINS, B.; TRIMARCO, C.; DIEGUES, D. Caros Amigos, p.30.25Esta entrevista quase uma exceo, pois ela no foi feita por escrito. At 1992, o poeta shavia dado entrevista por escrito: eu gosto de ser recolhido pelas palavras. E a palavra falada no

    me recolhe. Antes at me deixa ao relento. O jeito que eu tenho de me ser no falando; mas es-crevendo. Palavra falada no capaz de perfeito. E eu tenho orgulho de querer ser perfeito (Ba r-ros, 1996, p.317).

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    So tudo, na verdade, que ele tem. O restante so informaes, no sabedoria.

    Disse em entrevista:

    O meu conhecimento vem da infncia. a percepo do ser quando nasce. Oprimeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro tocar, o cheiro, enfim. Todo esse

    primeiro conhecimento o mais importante do ser humano. Pois o que vempelos sentidos. Ento, esse conhecimento que vem da infncia exatamenteaquele que ainda no perdi. (apud Martins et al., 2006, p.32)

    O poeta cuiabano faz questo de destacar que aquilo que vem da infncia

    ainda no se perdeu. No se perdeu por ele vivific-lo diariamente. Faz isso como

    se inaugurasse tudo o que v. Como se visse ou ouvisse pela primeira vez. Como

    se tocasse pela primeira vez. Como se sentisse pela primeira vez. Essas sensaes

    primordiais no se perderam, o que o conclama a escrever infantilmente sem

    que nisso haja tom pejorativo. Afirmou em entrevista: no tenho certeza mesmo

    quase nunca do que fao. Porque o fao com o corpo. E voc sabe, a sensibilidade

    traideira. s vezes, tapa a viso. Eu sou demais coalescente s coisas. No d

    pra tomar distncia de julgador (Barros, 1996, p.313). Isso ratifica a ideia de que

    o poeta sensorial, vale-se dos sentidos o tempo todo vestgio da infncia. Tal

    constatao feita repetidas vezes como possvel notar, uma vez mais, em en-

    trevista a Ubiratan Brasil:

    Minhas palavras das memrias foram tiradas das minhas primeiras percepes: asde ver, as de ouvir, as de tocar... Esto ainda ignorantes do mundo moderno e dassuas tecnologias. Nessas memrias inventadas o meu atraso est garantido.Infncia, etimologicamente, ausncia de voz [sic]. (apud Brasil, 2006, s/p)

    Manoel de Barros traz tona a infncia j na sua obra de estreia. O livro

    de 1937 inicia apresentando o personagem Cabeludinho, que parece ser o prprio

    poeta, quando criana. Fala-se sobre seu nascimento, considerado sem grande

    importncia, to diferente do da ndia alencariana Iracema. De 1865, Iracemaco-

    mea tambm com o nascer da personagem: Alm, muito alm daquela serra,que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lbios de

    mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da grana, e mais longos que seu

    talhe de palmeira. [...] (Alencar, 2004, p.24). Cabeludinho nasce sem ares romn-

    ticos, sem paisagem bonita, desprovido de qualidades que lhe destaquem a nobre-

    za. Do sculo XX, ele est mais prximo do nascimento de Macunama (1928),

    at mesmo pelo som de um pssaro no momento do parto:

    No fundo do mato-virgem nasceu Macunama, heri de nossa gente. Era preto

    retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silncio foi to

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    grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a ndia tapanhumas pariu umacriana feia. Essa criana que chamaram de Macunama.J na meninice fez coisas de sarapantar. [...] (Andrade, 2004, p.13)

    H um qu de inesperado tanto no nascer de Macunama quanto no de Ca-

    beludinho. Em ambos, h uma quase inexistncia de poesia, o que destaca, ironi-camente, o insignificante acontecimento. Ademais, a parca poesia explica a pr-

    pria vida de Cabeludinho. vlido notar ainda que enquanto o personagem de

    Mrio de Andrade fazia coisas de espantar desde pequeno, o de Manoel de Barros

    tem mais ingenuidade, conforme possvel notar no primeiro poema do livro:

    Sob o canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinhobem diferente de Iracemadesandando pouqussima poesiao que desculpa a insuficincia do cantomas explica a sua vidaque juro ser o essencial

    Vai desremelar esse olho, menino!Vai cortar esse cabelo, menino!Eram os gritos de Nhanh. (Barros, 1999d, p.9)

    possvel perceber ainda que, na segunda estrofe do poema, h alguma re-

    ferncia ao Poema de sete faces, de Carlos Drummond de Andrade, na fala de

    Nhanh, que, como j mencionado, a av do menino; a mesma av que lhe ensi-

    na a ser torto, esquerdo, gauche. Quando ela grita Vai desremelar esse olho, me-

    nino! e Vai cortar esse cabelo, menino!, o Vai, Carlos! sergauchena vida

    (Andrade, 2002, p.5) lembrado. No grito da av, todavia, diferentemente da fala

    do anjo torto, no h uma ideia de predestinao, de caminho a ser seguido no

    futuro; algo mais imediatolimpar os olhos e cortar os cabelos, at porque a

    av quem se dirige diretamente ao neto. H familiaridade, logo, no h discurso

    cerimonioso, no um anjo que fala. Alm disso, como j foi dito, no h tanta

    poesia na vida de Cabeludinho.

    Das brincadeiras de menino, tem relevncia o futebol, que no ocorre nas

    melhores condies fsicas, a saber: bom gramado, bola e traves adequadas, cal-

    ados convenientes, regras convencionais, etc. As traves so marcadas de um pon-

    to at uma pedra (meu gol daqui naquela pedra); joga-se descalo (num vale

    de botina!); se sair do campo, perde-se de goleada (correu de campo dez a ze-

    ro). O jogo bastante rstico, o que no tira a alegria do brincar. O time louva-

    do pelos jogadores, que se entendem entre si:Viva o Porto de Dona Emlia Futebol Clube!!!

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    Vivooo, vivaaa, urrra!Correu de campo dez a zero e num vale de botina!plong plong, bexiga boaS jogo se o Bolivianinho ficar no quperT bem, meu gol daqui naquela pedraplong plong, bexiga boaEu s sei que meu pai chalaneiromea me lavandeirae eu sou beque de avano do Porto de Dona Emliao resto no t somando com qual que foi o ndioque frechou So Sebastio...Ai ai, nem euUma negra chamou o filho e mandou comprar duzentosde anilVou ali e j volto jMrio-Maria do lado de fora fica dando pontapsno vento

    Disilimina esse, Cabeludinho!plong plong, bexiga boaVou no mato pass um taligrama... (Barros, 1999d, p.15-16)

    Tal lembrana aparece tambm em Cabeludinho, de Memrias inventa-

    das: a Infncia: De outra feita, no meio de uma pelada um menino gritou: Disi-

    limina esse, Cabeludinho. Eu no disiliminei ningum. Mas aquele verbo novo

    trouxe um perfume de poesia nossa quadra. (Id., 2003, p.VIII). Aqui, da fala da

    criana, destaca-se o uso de um verbo novo (disiliminar), dando ao ocorrido

    tom potico. Talvez seja essa a diferena entre um e outro poema, de pocas todistantes. Ressalte-se que, no texto de 1937, narra-se o episdio todo; j no de

    2003, tal citado rapidamente.

    O futebol lembrado, tambm com carinho, em Memrias inventadas: a

    Segunda Infncia:

    Nada havia ali de mais prestante em ns seno a infncia. O mundo comeava ali.Nosso campo encostava na beira do rio. Um menino Guat chegava de canoa eembicava no barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar a posio degolquper no Porto de Dona Emlia Futebol Clube. Nosso valoroso time. Ascercas laterais do campo eram de cansano. Espinheiro fechado pra ningumbotar defeito. Guat j trazia do barranco duas pedras para servir de balizas. Oscraques desciam da cidade como formigas. Jos de Camos, nosso beque de esperatambm tinha a incumbncia de soprar as bexigas. Porque a nossa bola era debexiga, que s vezes caam no rio e as piranhas devoravam. E se casse nocansano os espinhos furavam. Nosso campinho por mido s permitia times desete: O goleiro, um beque de espera, um beque de avano e trs na linha.Chambal nosso tcnico impunha regras: s pode mijar no rio e no pode jogar debotina. Sabastio era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia as variaes dabexiga no vento e botava no grau certo. Quando algum enfiava as unhas napedra abria uma vaga. Metade de nossos craques eram filhos de lavandeiras e

    outra metade de pescadores. [...] (Id., 2006, p.XVII)

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    No obstante a brincadeira ser modesta, todos se divertiam e no se ressen-

    tiam da simplicidade de tudo. A miudeza do lugar no diminua o time, que era

    formado por filhos de gente humilde. Como dito, o mundo comeava naquele

    espao, naquele momento, como se fosse um preparatrio para o outro mundo, de

    fora. Por assim dizer, um microcosmo dentro do macro. Ali, a infncia era o que

    mais tinha valor. Ela acontecia continuamente.

    Nas trs caixinhas em que guarda suas memrias, Manoel de Barros enlaa

    a infncia a inventando. Como bas, guardam as memrias em folhas amareladas

    talvez, envelhecidas pelo passar do tempo e avulsas, sem linearidade, como

    nossa memria. Enlaada delicadamente, a infncia est ali espera de ser sentida

    pelo leitor, que no pode voltar a ser criana, mas pode, agora, ter em si partculas

    da infncia. Aborda-se o tema sem encarcer-lo a comear pelo formato: no so

    livros como aqueles que conhecemos. As primeiras edies, diferentes da de

    2010, so fascculos dentro de caixinhas bem artesanais, amarrados por uma fita.

    Aos leitores mais desordeiros, uma preocupao surge repentinamente: a possvel

    perda de um ou mais fascculos. Entretanto, antes de discutir o formato da obra

    ao que parece, pensada nos pormenores , preciso refletir acerca da facilidade

    com que as crianas, com suas mos que em tudo desejam tocar, folheariam. Mais

    fcil segurar um fascculo do que um livro, sem dvida, e a criana sabe disso.

    Pode-se perd-los? Sim, e isso prprio da criana, que, no raro, perde as coisas

    e chora por achar que sumiram para sempre.

    Walter Benjamin (1892-1940) poderia falar, aqui, no corcundinha, perso-

    nagem de uma histria alem de que gostava e que identifica a um tal senhor sem

    jeito. Ele responsabilizado pela desateno das crianas: aquele que olhado

    pelo corcundinha no sabe prestar ateno. Nem a si mesmo nem ao corcundinha

    (Benjamin, 1995, p.141-142) A professora Katia Muricy nos esclarece:Em uma brincadeira, habitual entre os alemes, sua me [de Benjamin]costumava dizer que o senhor sem jeito lhe mandara lembranas, sempre que,menino, ele quebrava alguma coisa. Na histria, o corcundinha o responsvelpelos maus acontecimentos: por culpa dele que as crianas inesperadamentetropeam, derrubam e quebram, ou perdem, coisas preciosas. (Muricy, 1999, p.9)

    Isso tambm se aplica queles que, tendo os fascculos barrosianos, per-

    dessem um deles. O manuseio dessas caixinhas faz lembrar mos infantis, inclusi-

    ve, na abertura de presentes, uma vez que elas igualmente lembram as de surpre-

    sas, em cujo interior se pode encontrar algum presente.

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    Ao abrir qualquer uma das caixinhas das Memrias inventadas, o leitor

    depara-se com a infncia, resgatada por meio da memria, ou melhor, de mem-

    rias inventadas. No se trata de voltar ao passado e anotar o que aconteceu na his-

    tria de sua vida. Trata-se de inventar esse passado, como, sem perceber, fazemos

    toda vez que recordamos algo que nos ocorreu. No nos vm imagens reais, mas

    aquilo que interpretamos do decorrido e, por vezes, invenes nossas que, sem

    nos darmos conta, acrescentamos como se tivessem, de fato, existido.

    Antes de pensarmos a questo da infncia, atenhamo-nos ao ttulo:Mem-

    rias inventadas. H um problema: ou se trata de uma obra memorialista, autobio-

    grfica, ou se trata de uma obra inventada. Para Kohan, o ttulo um oxmoro:

    [...] a memria seria algo da ordem da descoberta, da recuperao, da

    rememorao, em suma, algo da ordem do no-inventado, da desinveno. Aocontrrio, a inveno parece indicar algo novo, que se inicia, que comea,portanto impossvel de ser lembrado. A inveno seria algo da ordem dadesmemria e a memria algo da ordem do no-inventado. Se algo inventadono poderia vir da memria; se algo vem da memria no poderia ser inventado.A memria e a inveno andariam em direes contrrias, encontradas,desentendidas. (Kohan, 2004, p.56)

    Por estarmos diante de uma obra literria, devemos compreender que a

    memria e a inveno podem, sim, caminhar juntas. Literatura memria. Nova-

    mente, valemo-nos das palavras de Kohan: como uma criana, a memria dopoeta brinca, irreverente, com o passado, o presente e o futuro: altera sua ordem,

    no respeita sua sucesso; abre, a cada vez, um novo incio da no-continuidade,

    do no-progresso, da no-evoluo (Ibid., p.57). Em Paixo pela Palavra, Ma-

    noel de Barros comentou o primeiro livro da trilogia:

    Esse livro Memrias inventadas uma coisa que a gente vai produzindo commuita preocupao literria. Sendo literria, muito mentirosa. H muita mentiranisso tudo, inclusive da inveno. inventada por isso, porque ela vem de muitoslugares e de muitas infncias que no sejam a minha s, sabe? A minha s no

    tem graa.26

    Das palavras do prprio poeta, possvel inferir que a infncia, nessa obra

    especificamente, no s a dele, mas de outros. Memrias inventadas trata de

    uma infncia vivenciada por muitos, plural, e, nesse sentido, so memrias in-

    ventadas.

    Ademais, necessria alguma ateno epgrafe dessa obra: Tudo que

    no invento falso, extrada deLivro sobre nada. Ela nos diz que sem inveno

    26Manoel de Barros faz tal constatao no episdio I.

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    no h verdade, logo, aquela condio desta. O ttulo mais do que coerente:

    no h como fugir inveno, mesmo fazendo memrias. No se trata, por conse-

    guinte, de retornar ao passado rememorando-o simplesmente, mas de invent-lo.

    Podem ser lembranas de algo que no ocorreu ou que correspondam fantasia do

    que foi vivido.

    A partir da leitura de Memrias inventadas, possvel constatar que a in-

    fncia no somente uma etapa cronolgica da vida, mas um sentimento que

    no s comeou um dia como se prolonga. No toa que o poeta acredita ser

    possvel renovar o homem por meio de sua poesia, e isso significa presente-lo

    com a infncia, compreendida como possibilidade de sentir e ver o mundo infan-

    tilmente. Ou seja, h tanto uma infncia que aponta para o incio de um tempo, no

    passado, como uma que aponta para o presente. Interessa-nos, mormente, esta

    ltima, a que Deleuze chama de devir-criana: uma infncia que no a minha,

    que no uma recordao, mas um bloco, um fragmento annimo infinito, um

    devir sempre contemporneo (Deleuze, 1997, p.129). Infncia sentida sempre no

    hoje, j que devir o ser como processo. Por isso, atual. Vale lembrar que o pr-

    prio poeta quem disse que a obra no trata somente da sua infncia, mas da de

    outrosfragmento annimo infinito, nas palavras do filsofo francs.

    Deleuze & Guattari ponderam que

    Devir , a partir das formas que se tem, do sujeito que se , dos rgos que sepossui ou das funes que se preenche, extrair partculas, entre as quaisinstauramos relaes de movimento e repouso, de velocidade e lentido, as maisprximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e atravs das quais nostornamos. (Deleuze & Guattari, 1997, p.64)

    Com isso, entendemos que no se trata do que est por vir, mas do proces-

    so de metamorfose, do momento em que se extraem partculas daquilo que se est

    em vias de se tornar e, por meio das quais, se torna.Devir, de acordo com Daniel Lins, um processo que implica uma m e-

    tamorfose como encontro instantneo de sries de pontos virtuais que caracteri-

    zam todo objeto ouser em devir (Lins, 2009, p.12). O ser vai formando-se cons-

    tantemente, nunca est pronto. Ou seja, no nascemos seres, tornamo-nos seres

    em devir pelo desejo artstico,pela vontade de potncia cuja singularidade pecu-

    liar consiste em abrir vias aos possveis do desejo afirmativo (Ibid.). Devir ,

    pois, possibilidades, transformaes, meios, mudanas. ainda inveno, j que

    implica experimentaes diversas, sofrimentos positivos e negativos, por exem-

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    plo. O devir promove a ascese, e a ascese que, aqui, nos interessa a impulsiona-

    da por um sentimento da infncia. Lins assegura: H certamente uma ascese nos

    devires, inclusive no devir-criana do pensamento, que exige vnia, silncio, escu-

    ta; uma espcie de exigncia, que o contrrio da falta, da tagarelice, do mutismo

    ou da desarmonia. Uma ascese, pois, que um jogo, uma ascese-criana amuada,

    ou ainda emburrada(Ibid., p.14).

    Manoel de Barros remete-se a um devir-criana:

    Essa a infncia como experincia, como acontecimento, como ruptura dahistria, como revoluo, como resistncia e como criao. [...] a infncia comointensidade, um situar-se intensivo no mundo; um sair sempre do seulugar e sesituar em outros lugares, desconhecidos, inusitados, inesperados. (Kohan, 2004,p.63)

    Tal devir-criana no significa tornar-se criana novamente retornando infncia cronolgica. Tampouco se trata de agir como criana ou imit-la. Devir-

    criana o entrelaamento de um adulto com uma criana, no mero infanti-

    lismo de adulto e nem infantilizao do pensamento (Lins, 2009, p.72). por

    essa experincia que o poeta pretende que seu leitor seja atravessado.27

    Interessa a Manoel de Barros a percepo infantil do mundo. Por isso, a

    criana que habita sua obra tem seus sentidos destacados, alm de uma imagina-

    o que lhe permite interpretar o mundo metaforicamente. A viso o sentidomais explorado. Segundo Greenblatt (1991), encantamento quando tudo ao redor

    excludo e a ateno volta-se exclusivamente para o objeto, exatamente o que

    ocorre quando o menino se depara com seres como, por exemplo, lacraias, lesmas,

    sapos, etc. Ou ainda objetos abandonados, sem funo alguma, como um pente

    largado no quintal ou uma lata velha florida. H um certo voyeurismo nisso tudo,

    pois h um prazer enorme em, simplesmente, ver.

    Acrescente-se que muito do que Manoel de Barros faz possibilitando a ex-perincia sensorial tem relao com o que Arthur Rimbaud (1854-1891) desen-

    volveu, sobretudo, na Carta dita do Vidente28(1871). A influncia do francs no

    poeta brasileiro declarada:

    27Disso trataremos mais adiante no captulo A educao pela infncia.28Nela, Rimbaud esboa o futuro da poesia e prope uma literatura nova, em que haja ruptura coma tradio, novidade, desregramento de todos os sentidos, etc. Tudo isso preciso para o poeta servidente, fazer-se vidente. No h tanta originalidade nessa idia, j que os primrdios de tal pen-

    samento remontam-nos aos gregos e foram retomadas pelo platonismo renascentista. Todavia, oque v o poeta vidente e como ele se transforma em tal so reflexes modernas. A finalidade dopoetar atingir o desconhecidolugar de tenso destitudo de contedo.

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    [...] Rimbaud me incentivou comImense drglement de tous les sens29. Para umbicho do mato criado em quintal de casa, para um ente arisco, medroso das gentese dos relmpagos, bolinador de paredes pelas quais se esgueirava , esseRimbaud foi a revoluo. Eu podia me desnaturar, isto : desreinar de natureza.Eu seria desnaturado. Promscuo das pedras e dos bichos. Eu era ento cheio dearpejos e indcios de guas. No queria comunicar nada. No tinha nenhumamensagem. Queria apenas me ser nas coisas. Ser disfarado. [...] Falo daqueledesregramento a que se referiu Rimbaud e que ilumina as nossas loucuras. E queperverte os textos at os limites mais fridicos da palavra. Penso que os sub-textos e os intertextos resultam de uma perverso sensorial. A um poeta, habitarcertos antros faz frutos. (Barros, 1996, p.325-326)

    Para Rimbaud, aquele que se quer poeta deve voltar-se para si, estudar-se a

    fundo, procurar a prpria alma antes de qualquer coisa, e no simplesmente repetir

    seus antepassados. No se trata de embelezar-se; muito pelo contrrio: trata-se de

    implantar e cultivar verrugas no rosto. O poeta, por uma fora violenta, adentra o

    desconhecido e nele se despedaa. Seu destino no suportvel, mas um desterro

    por vontade prpria.

    O poeta faz-se vidente por meio de um desregramento de todos os senti-

    dos. Segundo Camargo, o desregramento de todos os sentidos, o obscurecimento

    das imagens, a rebeldia contra a representao mimtica da realidade, [...] o deslo-

    camento dos objetos [...] (Camargo, 1996, p.21) so fortes heranas rimbaudia-

    nas em Manoel de Barros. Tal desregramento significa reter a quintessncia das

    coisas, como Rimbaud afirma na carta:

    Toutes les formes damour, de souffrance, de folie; il cherche lui-mme, il puiseen lui tous les poisons, pour nen garder que les quintessences. Ineffable tortureo il a besoin de toute la foi, de toute la force surhumaine, o il devient entre tousle grande malade, le grand criminel, le grand maudit, et le suprme Savant! Car il arrive linconnu! Puisquil a cultiv son me, dj riche, plus quaucun! Ilarrive inconnu, et quand, affol, il finirait par perdre lintelligence de ses v i-sions, ils les a vues! 30(Rimbaud, 1951, p.254-255)

    Nesse trecho, esboa-se a figura do vidente. notvel que o poeta deve,

    conscientemente, agir para ser vidente. por meio de longo, imenso e refletido

    desregramento dos sentidos que pode atingir o desconhecido. Quem pode ver esse

    desconhecido? A essa pergunta o poeta francs responde com um categrico Je

    29 Traduo livre: Imenso desregramento de todos os sentidos.30Traduo livre: Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele procura ele mesmo, eleesgota em si todos os venenos, para s guardar as quintessncias. Inefvel tortura na qual ele pre-cisa de toda a f, de toda a fora sobre-humana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o

    grande criminoso, o grande maldito, e o supremo Sbio!pois ele chega ao desconhecido! Por-que ele cultivou a sua alma, j rica, mais do que nenhum! Ele chega ao desconhecido, e, quando,enlouquecido, acabaria por perder a inteligncia de suas vises, ele as viu!

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    est un autre31(Ibid., p.254). Com isso, mostra que o euexplorado at ento era

    falso, superficial, romntico. O eu rimbaudiano , na verdade, resultado de uma

    autotransformao operante; depende, pois, da vontade de fazer-se poeta, de che-

    gar ao desconhecido. Conforme afirma Friedrich:

    O sujeito verdadeiro no , portanto, o eu emprico. Outras foras atuam em seulugar, foras subterrneas de carter pr-pessoal, mas de uma violncia dedisposio que coage. E s elas so o rgo apropriado para a viso dodesconhecido.(Friedrich, 1978, p.62)

    Antes de atingir o desconhecido, deve procurar todas as formas de amor,

    sofrimento e loucura, esgotando em si todos os venenos. Isso o que se entende

    pelo eudefendido por Rimbaud, to mais profundo e verdadeiro que aquele ante-

    riormente exposto pelos romnticos, por exemplo. Fazer tudo isso no fcil, cer-

    tamente, e preciso f e fora sobre-humanas para ser o supremo sbio. Atingindo

    o desconhecido, por ter cultivado a prpria alma, o poeta, j louco, perde a int e-

    ligncia das coisas para v-las (Barros, 2001a, p.17) e, por isso, enxerga o que

    aos demais invisvel. Portanto, por meio de um sofrimento aceito e consciente

    que se pode chegar a ser vidente.

    Rimbaud afirma ser o poeta um ladro de fogo, um encarregado da huma-

    nidade. Entendendo esse fogo como fonte de saber, possvel e interessante

    relacionar tal passagem da carta ao mito de Prometeu32, em que Zeus castiga os

    mortais privando-os do fogo, que significa, simbolicamente, inteligncia. Isso

    torna a humanidade imbecil. Prometeu, ento, resolve roubar uma centelha do

    fogo celestepor isso chamado de ladro de fogo , reanimando os homens.

    Ento:

    O Olmpico resolveu punir com mais vigor ainda a humanidade e seu protetor.Contra os homens imaginou perd-los para sempre por meio de uma mulher, airresistvel Pandora e contra o segundo a punio foi terrvel. [...] Prometeu foi

    acorrentado com grilhes inextricveis no meio de uma coluna e tinha fgadorodo durante o dia por uma guia, filha de quidna e Tifo. Para desespero doacorrentadoo rgo se recompunha noite. (Brando, 1991, p.329).

    Prometeu, bem como o poeta na viso rimbaudiana, um encarregado da

    humanidade. O primeiro, segundo o professor Junito Brando, pode ter criado os

    humanos com o limo da terra, o que o faz benfeitor muito antes de Zeus vencer os

    Tits e outros monstros. J o segundo, o poeta, tem como misso fazer os h u-31Traduo livre: Eu um outro.32

    pr: antes de, por antecipao; mthos: ver, observar, pensar, saber; eus: ocorrefrequentemente em antropnimos; ou seja, Prometeu o que v, observa, pensa ou sabe antes

    (Brando, 1991, p.328).

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    manos sentirem as criaes dele. Deve, pois, encontrar uma lngua que seja alma

    para a alma: parfums, sons, couleurs33(Rimbaud, 1951, p.255). O autor de Une

    saison en enferafirma que esse vidente ser de fato poetae permanecer.

    No sculo XIX, Rimbaud desenvolveu essa teoria. Manoel de Barros, no

    sculo XX, dela apropria-se e, como leitor que do poeta francs, apresenta em

    sua poesia imagens do vidente, a que faz referncia inmeras vezes, geralmente,

    relacionando-o a andarilhos, crianas, loucos, trastes. A literatura nova de que

    Rimbaud falava na Carta dita do Videnteest na obra barrosiana. Corrobora isso

    um poema de Tratado geral das grandezas do nfimochamado O vidente:

    Primeiro o menino viu uma estrela pousada nasptalas da noiteE foi contar para a turma.A turma falou que o menino zoroava.Logo o menino contou que viu o dia parado em cimade uma lataIgual que um pssaro pousado sobre uma pedra.Ele disse: Dava a impresso que a lata amparava o diaA turma caoou.Mas o menino comeou a apertar parafuso no vento.A turma falou: Mas como voc pode apertar parafusono ventoSe o vento nem tem organismo.Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo

    E continuou a apertar parafuso no vento. (Barros, 2005c, p.25)

    No poema, o menino v o que ningum mais v, faz o que ningum mais

    faz e ainda diz o que ningum capaz de entender. Ele atinge o desconhecido e

    videntettulo, inclusive, do poema. Ainda tem de suportar a caoada da turma,

    ao que no responde. Seu silncio e sua permanncia na atividade de apertar pa-

    rafuso no vento prova que aceita seu destino de poeta e tem conscincia de sentir

    mais que todos, intensamente.

    A experincia sensorial , em Manoel de Barros, frequentemente esboada,mormente pelo reiterado uso da sinestesia, que definida como transferncia de

    percepo de um sentido para outro, isto , a fuso, num s ato perceptivo, de dois

    sentidos ou mais (Moiss, 2004, p.429). Diversas vezes, os sentidos aparecem

    misturados como, por exemplo:

    a) audio e tato: Quero apalpar o som das violetas (Barros, 2003, p.17)

    b) audio e viso: Escuto a cor dos peixes (Ibid., p.51)

    c)

    audio e olfato: Escuto o perfume dos rios (Id., 2004d, p.61)33Traduo livre: perfumes, sons, cores.

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    d) olfato e viso: J enxergo o cheiro do sol (Ibid., p.11)

    e) olfato, tato e viso: Hoje eu desenho o cheiro das rvores (Id., 2003,

    p.17)

    Em outras passagens, pode-se perceber a presena de sentidos isolados,

    sobretudo, a audio, o tato e a viso:

    a) audio: No tem altura o silncio das pedras (Ibid., p.17)

    b) tato: Para apalpar as intimidades do mundo preciso

    saber: [...]

    Como pegar na voz de um peixe (Id., 2004b, p.9)

    c) viso: As coisas no querem mais ser vistas por pessoas

    razoveis:Elas desejam ser olhadas de azulQue nem uma criana que voc olha de ave (Id., 2003, p.21)

    Dos sentidos, a viso destacada. A criana v bem o que ao adulto esca-

    pa. E isso nos remete comparao que fez o poeta Charles Baudelaire (1821-

    1867) entre a viso curiosa da criana e a viso do convalescente:

    [...] a convalescena como uma volta infncia. O convalescente goza, no maisalto grau, como a criana, da faculdade de se interessar intensamente pelas coisas,

    mesmo por aquelas que aparentemente se mostram as mais triviais. Retornemos,se possvel, atravs de um esforo retrospectivo da imaginao, s mais jovens, smais matinais de nossas impresses, e constataremos que elas possuem umsingular parentesco com as impresses to vivamente coloridas que recebemosulteriormente, depois de uma doena, desde que esta tenha deixado puras eintactas nossas faculdades espirituais. A criana v tudo como novidade; elasempre estar inebriada.34Nada se parece tanto com o que chamamos inspiraoquanto a alegria com que a criana absorve a forma e a cor. [...] O homem degnio tem nervos slidos; na criana, eles so fracos. Naquele, a razo ganhou umlugar considervel; nesta, a sensibilidade ocupa quase todo o seu ser. Mas o gnio somente a infncia redescoberta sem limites; a infncia agora dotada, paraexpressar-se, de rgos viris e do esprito analtico que lhe permitem ordenar a

    soma de materiais involuntariamente acumulada. curiosidade profunda ealegre que se deve atribuir o olhar fixo e animalmente esttico das crianas diantedo novo, seja o que for, rosto ou paisagem, luz, brilhos, cores, tecidos cintilantes,fascnio da beleza realada pelo traje. (Baudelaire, 1996, p.18-19)

    No toa que Benjamin ir debruar-se sobre a obra de Baudelaire. Am-

    bos notaram bem que a criana, o tempo todo, est a observar, com curiosidade, o

    34 vlido lembrar a comparao platnica entre a criana e o embriagado. Plato criou essa ana-logia para apontar a ausncia de razo, lucidez, nas crianas. Por isso, tal viso negativa, se com-

    parada ao adjetivo inebriada, dado por Baudelaire criana. Para o francs, ela sempre estar

    encantada, extasiada com o que v, porque tudo lhe novidade. Em um aspecto, no entanto, opoeta se assemelha ao filsofo grego: ambos percebem que a criana quase integralmente sensi-bilidade.

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    que a rodeia, dada a novidade que o mundo para ela. Esse novo chama a ateno

    da criana, que no deixa de observar nada, com um olhar que inaugura o que

    capta. importante frisar que a nossa viso sujeita a um processo de construo,

    ela que constri tudo, no o contrrio. E, na criana, isso acontece com mais

    evidncia, uma vez que ela est vendo o mundo como novidade. O pensador ale-

    mo destaca isso, segundo Muricy, ao escrever Infncia em Berlim por volta de

    1900, em que busca atingirbem como Manoel de Barrosa percepo infantil:

    A infncia, perodo to fugaz quanto o mundo e os valores da alta burguesiaberlinenseainda presa ao sculo XIX j morto e alheia a sua prpria poca ,ser iluminada pelo olhar do adulto que obtm, na rememorao, a compreensode sua vida adulta presente. Berlim, em 1900, ser rememorado pelo crtico, paraque o presente de uma gerao se torne compreensvel. Memria incrustada nasruas, nos monumentos, no zoolgico e nas praas, mas tambm nos objetosuns

    to recentes, como o telefone! Interessa a Benjamin a percepo infantil,mitolgica, do mundo das coisas. (Muricy, 1999, p.14-15)

    Nessa linha que converge com Benjamin, Manoel de Barros projeta, no

    menino de suas memrias, um ver atento, curioso, detalhista, pormenorizado. Tra-

    ta-se de voltar os olhos para aquilo que os demais no veem, talvez por ser extre-

    mamente visto. a valorizao daquilo que considerado sem importncia pelos

    olhos de quem busca finalidade em tudo e para quem tudo precisa servir e prestar

    para alguma coisa, tem, enfim, que ser til. Por isso, no se d a devida ateno aobrincar simples das crianas, visto que, na tica filisteia35, para que serve uma lata

    abandonada? Para a criana, a lata pode ser um barco, um carro e tudo aquilo que

    ela imaginar. Como o ver da criana inaugura as coisas, seu encantamento perante

    as miudezas ser destacado, como perceptvel em Ver:

    Nas frias toda tarde eu via a lesma no quintal. Era a mesma lesma. Eu via todatarde a mesma lesma se despregar de sua concha, no quintal, e subir na pedra. Eela me parecia viciada. A lesma ficava pregada na pedra, nua de gosto. Elapossura a pedra? Ou seria possuda? Eu era pervertido naquele espetculo. E se

    eu fosse um voyeurno quintal, sem binculos? Podia ser. Mas eu nunca negueipara os meus pais que eu gostava de ver a lesma se entregar pedra. (Pode serque eu esteja empregando erradamente o verbo entregar, em vez de subir. Podeser. Mas ao fim no dar na mesma?) Nunca escondi aquele delrio ertico.Nunca escondi de meus pais aquele gosto supremo de ver. Dava a impresso quehavia uma troca voraz entre a lesma e a pedra. [...] (Barros, 2003, p.V)

    35Benjamin caracteriza a sociedade burguesa de seu tempo como filisteia, interessada somente noutilitarismo, no pragmatismo, no instrumental das coisas, sempre de acordo com a ideologia domi-nante. O crtico berlinense considera, na viso de Konder, que seu principal adversrio era a

    grande burguesia alem, que a seu ver era a maior responsvel pela terrvel crise inflacionria dosanos vinte. [...] Ele via que a inflao estava corrompendo tudo: estava at emburrecendo os ale-

    mes. O dinheiro observava ocupou militarmente o centro das conversas entre os cidados,empobrecendo brutalmente a arte de conversar, obrigando as pessoas a praticamente s falaremnos preos das mercadorias, que subiam sem parar... (Konder, 1999,p.50).

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    A lesma, que a olhos no infantis, poderia passar despercebida, por ser

    pequena, do cho, tem toda a ateno do menino, que sente um desmedido prazer

    em contempl-la. O molusco e a pedra parecem um. Trata-se de um devir-lesma

    da pedra e de um devir-pedra da lesma. H uma dupla metamorfose nessa cena

    observada com ateno pelo menino. E ele prprio percebe a troca voraz entre

    os dois.

    Isso nos faz lembrar novamente de Rimbaud. Manoel de Barros esboa, no

    menino, uma espcie de vidente. O desregramento dos sentidos a que se refere o

    poeta francs significa a captura da quintessncia das coisas, o que podemos con-

    cluir como sendo o que o olhar infantil guarda do que v.

    O poeta brasileiro projeta, alm disso, uma noo rimbaudiana de sofri-mento aceito e consciente quando mostra, por exemplo, em Fraseador, que,

    desde cedo, o menino sabia que escrever poderia no lhe render dinheiro; porm, a

    tarefa aceita no somente por ele como pelos pais, que, mesmo sem concorda-

    rem muito com o futuro do filho, no o repreendem:

    Hoje eu completei oitenta e cinco anos. O poeta nasceu de treze. Naquela ocasioescrevi uma carta aos meus pais, que moravam na fazenda, contando que eu jdecidira o que queria ser no meu futuro. Que eu no queria ser doutor. Nemdoutor de curar nem doutor de fazer casa nem doutor de medir terras. Que euqueria era ser fraseador. [...] Mas esse tal de fraseador bota mantimento em casa?[...] se fraseador no bota mantimento em casa, ns temos que botar uma enxadana mo desse menino pra ele deixar de variar. A me baixou a cabea um poucomais. O pai continuou meio vago. Mas no botou enxada. (Ibid., p.VII)

    Os pais no compreendem bem o porqu de o filho querer ser fraseador,

    mas no o foram a seguir a vida de fazendeiro, por exemplo. No o obrigam a

    segurar a enxada, o que significa que no houve resistncia firme na famlia no

    que se refere ao desejo do menino de apenas treze anos. Seria isso um conselho

    aos leitores? Seria uma espcie de deixem em paz as crianas, que elas sabem o

    que fazem e querem? Vemos tantos jovens que, poca do vestibular, no tm

    alternativa, a no ser seguir a carreira do pai, da me ou a desejada por eles. Pare-

    ce haver um grito, na obra barrosiana, em favor desses jovens: permitam que eles

    escolham o que quiserem, em liberdade.

    O menino presta ateno ao que foge aos adultos: as coisas desprezveis e

    os seres desprezados (ensinamento da av), como possvel observar em Sobe-

    rania:

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    Botei um pouco de inocncia na erudio. Deu certo. Meu olho comeou a ver denovo as pobres coisas do cho mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E mediteisobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motornenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nasflores e nas pedras sem magoar as prprias asas. E vi que o homem no temsoberania nem pra ser um bentevi. (Id., 2008, p.X)

    A inocncia que se coloca na erudio seria a infncia, que permite ver,

    com outros olhos, a delicadeza de uma borboleta, por exemplo.36 possvel per-

    ceber o acontecimento da infncia nesse momento to breve em que o menino

    observa as borboletas, medita sobre elas e conclui que elas dominam a leveza.

    Comparadas aos homens, so maiores, pois estes no tm soberania nem pra ser

    um bentevi.

    O menino presta ateno ainda aos desobjetosobjetos que, deslocados de

    sua funo, encontram-se em vias de se transformarem em outra coisa, como o

    pente de Desobjeto:

    O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estavaprximo de no ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada.Dentada um tanto que j se havia includo no cho que nem uma pedra umcaramujo um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O cho teria comido logo umpouco de seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se que um pente tem organismo.O fato que o pente estava sem costela. No se poderia mais dizer se aquela coisa

    fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora feito o pente deramlugar a um esverdeado a musgo. Acho que os bichos do lugar mijavam muitonaquele desobjeto. O fato que o pente perdera sua personalidade. Estavaencostado s razes de uma rvore e no servia mais nem para pentear macaco. Omenino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergara opente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que o pente,naquele estado, j estaria incorporado natureza como um rio, um osso, umlagarto. Eu acho que as rvores colaboravam na solido daquele pente. (Id., 2003,p.III)

    Com um olhar gauche, o menino v no quintal um pente que no serve

    mais para pentear. Parecia mais uma folha dentada. Houve uma metamorfose noobjeto que o fez estar em vias de ser outra coisa mais uma vez, a ideia de devir

    aparece. Totalmente descaracterizado, o pente , agora, um desobjeto, incorporado

    a uma nova realidade: natureza. Essa imagem usada outras vezes por Manoel

    de Barros. Parece aludir no s a objetos, mas a pessoas que, margem da socie-

    dade, esto mais prximas de ser outra coisa que no humanos. O av do menino,

    como j foi dito no captulo anterior, todo solido e tem como companhia, mui-

    36 Benjamin tambm apresenta essa imagem da borboleta em Caando borboletas (Benjamin,1995, p.80-81), comentada no prximo captulo.

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    tas vezes, apenas os animais, que parecem j estarem nele. como se o av vives-

    se um devir-animal, descaracterizado que est do que ser humano.

    H ateno tambm aos mal-entendidos das palavras. Sobre estes, vale

    lembrar, mais uma vez, Benjamin, que, segundo Gagnebin:

    [...] lhes consagra pginas extraordinrias e insiste no acesso privilegiado linguagem que a criana ainda tem, pois, para ela, as palavras no so primeiroinstrumentos de comunicao, mas, sim, cavernas a serem exploradas ounuvensnas quais se envolve e desaparece [...]. (Gagnebin, 2007, p.82)

    Manoel de Barros, em consonncia com o crtico berlinense, aborda a

    questo em O escrnio, entre outros poemas:

    Um poeta municipal j me chamara a cidade de escrnio.Que quele tempo encabulava muito porque eu nosabia o seu significado direito.Soava como escrnio.Hoje eu sei que escrnio coisa relacionada com jia,cofre de bugigangas...Por a assim. [...] (Barros, 1999d, p.39)

    Por no saber o significado exato da palavra que lhe era pronunciada, o

    menino a relacionava a outra j conhecida, escrnio, e ficava at envergonhado

    por no ter certeza se era mesmo isso ou no. Poderia haver nisso uma viso es-

    carnecedora da cidade? Esse mal-entendido tem algum sentido?

    Benjamin, no ensaio A doutrina das semelhanas, afirma ser a linguagem

    a mais alta aplicao da faculdade mimtica (Benjamin, 1994, p.112). Por isso,

    os mal-entendidos infantis apontam para aspectos no visveis, escondidos, da

    linguagem. No se trata de um no entender, mas de um entender o no-entendido

    nos objetos. Da que o menino de Manoel de Barros tenha preferncia pela brin-

    cadeira com as palavras, conforme destaca em Escovaao comparar sua curiosi-

    dade diante da etimologia das palavras com o trabalho de arquelogos:

    Eu tinha vontade de fazer como os dois homens que vi sentados na terraescovando osso. No comeo achei que aqueles homens no batiam bem. Porqueficavam sentados na terra o dia inteiro escovando osso. Depois aprendi queaqueles homens eram arquelogos. E que eles faziam o servio de escovar ossopor amor. E que eles queriam encontrar nos ossos vestgios de antigascivilizaes que estariam enterradas por sculos naquele cho. Logo pensei deescovar palavras. Porque eu havia lido em algum lugar que as palavras eramconchas de clamores antigos. Eu queria ir atrs dos clamores antigos que estariamguardados dentro das palavras. Eu j sabia tambm que as palavras possuem nocorpo muitas oralidades remontadas e muitas significncias remontadas. Euqueria ento escovar as palavras para escutar o primeiro esgar de cada uma. [...](Barros, 2003, p.I)

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    A necessidade de voltar origem37das palavras forte em Manoel de Bar-

    ros. Em sua obra, fala sobre isso diversas vezes, sempre ponderando que no pre-

    tende usar palavras instrumentais, que perderam suas origens ou se distanciaram

    delas. preciso chegar infncia da linguagem, exatamente. Isso pode ser perce-

    bido com o desejo de escovar palavras para escutar os primeiros sons, mesmo

    que ainda bgrafos (Ibid.). Este um trao marcante da poesia barrosiana: abso-

    lutamente preciso desatar-se das palavras cotidianas, desgastadas, empobrecidas,

    que servem to-s comunicao, que nada significam mais daquilo que, um dia,

    foram. As palavras corriqueiras no so, para Manoel de Barros, bem-vindas aos

    seus poemas, que, se quer, infantis: O sentido normal das palavras no faz bem

    ao poema (Id., 1998, p.63). H ainda, no poeta, preferncia pela lngua materna,

    em detrimento s estrangeiras, pois aquela repercute a infncia e esta no, como

    mostra em A lngua me:

    No sinto o mesmo gosto nas palavras:oiseau e pssaro.Embora elas tenham o mesmo sentido.Ser pelo gosto que vem de me? de lngua me?Seria porque eu no tenha amor pela lnguade Flaubert?Mas eu tenho.(Fao este registro

    porque tenho a estupefaode no sentir com a mesma riqueza aspalavras oiseau e pssaro)Penso que seja porque a palavra pssaro emmim repercute a infnciaE oiseau no repercute.Penso que a palavra pssaro carrega at hojenela o menino que ia de tarde pradebaixo das rvores a ouvir os pssaros.Nas folhas daquelas rvores no tinha oiseauxS tinha pssaros. o que ocorre sobre lngua me. (Id., 2001b, s/p)

    Manoel de Barros aponta no menino aquilo a que se dedica: uma lingua-

    gem que expresse, no comunique, o que o aproxima de Benjamin, quando este

    fala em uma linguagem admica. A partir de uma teoria da traduo, o filsofo

    berlinense v a linguagem como a experincia da fragmentao e da diferena

    37No se trata de voltar somente origem das palavras, mas prpria origem. Segundo David, noestudo dos poemas de Barros, a origem (a perfeio) est na criana e, por isso, ela torna-se o

    exemplo mtico para o poeta. Convm apontar que, alm da imagem da criana, h outros smbo-los associados ao retorno origem tais como a terra, a gua, a pedra e a larva. O mito de origemest imbricado no mito cosmognico(David, 2005, p.19).

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    diferente, pois, da poca anterior sua tese sobre o drama barroco, quando via a

    linguagem como totalizadora da experincia fragmentada do mundo. Contrrio a

    uma filosofia da representao, Benjamin retoma, com ironia, a doutrina das idei-

    as de Plato. A ideia platnica ser revelada no nome, dimenso em que as pala-

    vras libertam-se das vicissitudes da significao para reencontrarem o frescor pa-

    radisaco da infncia de uma lngua pura, referida unicamente a si mesma (Mu-

    ricy, 1999, p.20). O nome , pois, livre de qualquer significao. Define o ser das

    ideias, restabelecendo uma dimenso em que as palavras no estavam ainda pre-

    sas aos sortilgios dos juzos cognitivos, mas expressavam o frescor da percepo

    original [...], presente na nomeao (Ibid., p.21). Completa tais reflexes uma

    teoria da alegoria, na qual a escrita ganha fora, sendo a alegoria uma escrita por

    imagens. Baseado em uma exposio de pintura chinesa, Benjamin conclui que a

    imagem pensamento, o pensamento imagem. Manoel de Barros vai alm e diz:

    Imagens so palavras que nos faltaram./ Poesia a ocupao da palavra pela I-

    magem./ Poesia a ocupao da Imagem pelo Ser (Barros, 1998, p.57). O poeta

    expressa, na averso do menino pela linguagem de prontido, o que tambm pode

    ser presenciado em O apanhador de desperdcios, no qual diz inventar, no in-

    formar:

    Uso a palavras para compor meus silncios.No gosto das palavrasfatigadas de informar.Dou mais respeitos que vivem de barriga no chotipo gua pedra sapo.Entendo bem o sotaque das guas.[...]Queria que a minha voz tivesse formato de canto.Porque eu no sou da informtica:eu sou da invenciontica.

    S uso a palavra para compor meus silncios. (Barros, 2003, p.IX)Valoriza-se, pois, a linguagem admica, expressiva, inaugural, e no aque-

    la permeada de lugares-comuns. Foge-se de um discurso utilitrio. Concordamos

    com Ricardo Rodrigues:

    O discurso utilitrio resulta do esforo (vo) para transpor uma impresso domundo (matria sinttica) em palavras (material analtico). Essa passagem dosinttico para o analtico no acontece sem que haja perda de efeito. Certamente,no tem o mesmo impacto escutar o ritmo produzido por uma bateria de escola desamba e ler a descrio desse ritmo, se houvesse como descrev-lo. Assim como

    no a mesma coisa falar da curva do rio atravs da metfora da cobra de vidromole ou pelo nomeenseada. (Rodrigues, 2006, p.86)

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    O menino de Manoel de Barros foge ao discurso utilitarista e, mais do que

    isso, viso utilitarista. Ele v tudo sob outro ngulo e d a sua lgica s coisas,

    em consonncia com o que faz, com certo humor, uma r: Falava, em tom srio,

    que o rio passava nas margens dela. [...] contou que estava estabelecida ali desde o

    comeo do mundo. Bem antes do rio fazer leito para passar. E que, portanto, ela

    tinha a importncia de chegar primeiro (Barros, 2003, p.XI). A r j aparecera

    em Tratado geral das grandezas do nfimo: Uma r se achava importante/ Por-

    que o rio passava nas suas margens./ O rio no teria grande importncia para a r/

    Porque era o rio que estava ao p dela (Id., 2005c, p.35). Isso quer dizer que a

    referncia outra, o ponto de vista no o mesmo, no senso comum. O que

    fala a r dito, em outras palavras, por um menino:O menino contouque morava nas margensde uma gara.Achei que o meninoera descomparado.Porque as garasno tm margens.Mas ele queria aindaque os lrios o sonhassem. (Id., 2005a, s/p)

    Em Brincadeiras, visvel a preferncia pelo brincar com palavras, emdetrimento do brincar com brinquedos fabricados:

    No quintal a gente gostava de brincar com palavrasmais do que de bicicleta.Principalmente porque ningum tinha bicicleta.A gente brincava de palavras descomparadas. Tipo assim:O cu tem trs letrasO sol tem trs letrasO inseto maior.O que parecia um despropsitoPara ns no era despropsito.Porque o inseto tem seis letras e o sol s tem trsLogo o inseto maior. (Aqui entrava a lgica?)[...] (Id., 2003, p.X)

    A temtica da brincadeira infantil recorrente em Manoel de Barros e a-

    ponta para as reflexes benjaminianas presentes em Livros infantis antigos e es-

    quecidos(1924),Histria cultural do brinquedo (1928),Brinquedo e brincadeira

    observaes sobre uma obra monumental(1928), entre outros. O menino barro-

    siano no precisou de brinquedos sofisticados para que sua infncia fosse rica. Da

    a crtica de Benjamin queles que creem ser necessrio produzir um entretenimen-

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    to assaz requintado para que as crianas se divirtam. Na verdade, elas se sentem

    atradas pelo universo de coisas, muitas vezes midas, que existe em um canteiro

    de obra, por exemplo. Trata-se de local favorvel imaginao infantil. Nele, a

    criana constri o seu mundo a partir do rosto que as coisas apresentam para ela.

    E, sobretudo, brinca com aquilo que imbrincvel aos olhos adultos.38

    Manoel de Barros, por meio da criana que reina em suasMemrias inven-

    tadas, remete-se e remete-nos infncia, no para que os tempos passados voltem

    pela memria meramente, mas para que sintamos o sentimento da infncia, aqui e

    agora, como crtica vida sem a percepo infantil do mundo. Em nossa socieda-

    de, tudo tem que prestar para alguma coisa, servir para alguma coisa, ter utilidade.

    Do contrrio, considerado lixo e deve, portanto, ser descartado. Entretanto, des-

    se lixo, pode surgir beleza. Pode haver gente com muito a nos ensinar. Pode ser

    matria de poesia, caso olhemos para ele com outros olhos, olhos que vejam o que

    no vemos pelo cansao de sempre vermos. Ver com a infncia nos olhos signifi-

    caria perceber o mundo de um modo que nos estranho, inaugurando-o, tocando

    nele pela primeira vez, tendo o encantamento que no temos mais. O aconteci-

    mento da infncia, propiciado por situaes simples, pode levar-nos a outro lugar

    sem sairmos do lugar. Tateantes e gaguejantes, que poderamos sentir a infncia,

    no que possamos retornar fase inicial da vida. Sentir a infncia seria ter em ns

    algo que nos permitisse, por um momento que fosse, no vermos a banalidade a

    que nos acostumamos a ver, at porque aquilo que julgamos banal pode no o ser,

    sob outro ponto de vista. No apenas ter olhos melhores, aptos a enxergarem o

    invisvel; trata-se de, pela infncia, com a infncia, a partir da infncia, seguir por

    caminhos que j caminhamos, mas nos esquecemos: o caminho do aprendizado.

    Na infncia, aprendemos a falar, e isso, assustadoramente, nos fez humanos, nos

    constituiu como tal. Aprendemos a falar e, hoje, acreditamos que j aprendemostudo. No aprendemos, ainda podemos aprender mais, eternamente. Poderamos

    sentir novamente desejos no realizados, sonhos que nutramos, vontades que vi-

    nham e passavam ligeiramente. Ascendermo-nos infncia significaria ainda

    brincar com palavras, s por brincar, porque elas trazem em si as origens. Um dia,

    no sabamos o significado de determinada palavra e, quando o descobrimos, pas-

    samos a us-la toda hora, mostrando a todos nosso novo brinquedo, nossa infantil

    38Trataremos melhor desse assunto no captulo A brincadeira, entre o canteiro de obra e o quin-tal.

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    descoberta. Um dia, olhamos para certa coisa e no sabamos nome-la e, por isso,

    inventamos um nome. Isso sentir a infncia. No significa ter saudades do que

    vivemos, mas atualizarmos o que vivemos.

    Manuel Bandeira escreveu um poema intitulado Camels, no qual fala

    de vendedores de brinquedos que do uma lio de infncia no tumulto das ruas:

    Abenoado seja o camel dos brinquedos de tosto:O que vende balezinhos de corO macaquinho que trepa no coqueiroO cachorrinho que bate com o raboOs homenzinhos que jogam boxA perereca verde que de repente d um pulo que engraadoE as canetinhas-tinteiro que jamais escrevero coisa algumaAlegria das caladas

    Uns falam pelos cotovelos:O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar um pedao de bananapara

    [eu acender o charuto. Naturalmente o menino pensar: Papai estmalu...

    Outros, coitados, tm a lngua atada.

    Todos porm sabem mexer nos cordis com o tino ingnuo de demiurgos de[inutilidades.

    E ensinam no tumulto das ruas os mitos hericos da meninice...

    E do aos homens que passam preocupados ou tristes uma lio de infncia.(Bandeira, 2009, p.127)

    Esses camels parecem estar na contramo da vida por darem uma lio de

    infncia queles que transitam, distrados, pelas ruas, absortos em pensamentos,

    qui problemas, geralmente com pressa e sem ateno ao redor e a eles, os

    vendedores. Enquanto os transeuntes passam preocupados ou tristes, l esto os

    camelsesses que se recusam a formalizar sua atividade ou no tm como faz-

    lo, demiurgos de inutilidades, como Manoel de Barros, vendendo brinquedos

    no diminutivoalegria das caladas e ensinando os mitos heroicos da meni-

    nice em uma verdadeira lio de infncia. Os camels e os dois Manuis ensinam

    aos que passam homens que parece terem boto para funcionar, como poderia

    dizer o poeta cuiabano que a alegria pode vir de pequenas coisas, o herosmo

    pode vir da criana, no se precisa fazer sentido e necessrio ser criador de inuti-

    lidades... para que a infncia acontea. Ela pode ser resgatada e salvar os cami-

    nhantes do caminho que eles prprios esto construindo. Isso o que Manoel de

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    Barros parece querer mostrar; por isso, h uma educao pela infncia na sua o-

    bra, que visa renovar o homem usando borboletas (Barros, 2004d, p.79).

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