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“Desde os tempos mais antigos, alguns homens
escravizaram outros homens, que não eram vistos
como seus semelhantes, mas sim como inimigos e
inferiores. A maior fonte de escravos sempre foram as
guerras, com os prisioneiros sendo postos a trabalhar
ou sendo vendidos pelos vencedores. Mas um homem
podia perder seus direitos de membro da sociedade
por outros motivos, como a condenação por
transgressão e crimes cometidos, impossibilidade de
pagar dívidas, ou mesmo de sobreviver
independentemente por falta de recursos. [...] A
escravidão existiu em muitas sociedades africanas bem
antes de os europeus começarem a traficar escravos
pelo oceano Atlântico”. (SOUZA, 2006, p. 47 apud
MOCELLIN; CARMARGO, 2010, p. 174).
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O Sol fulgurava nos territórios do império Mali,
espargiam-se pelo ar do deserto, minúsculas partículas do
grande astro há tanto adorado pelos homens e pelos deuses.
Fazia ele também refletir todo o esplendor daquele límpido céu
de um vívido azul, aquarelando raios alaranjados pela tarde no
espelho do velho Níger. O encontro magnânimo entre o
próspero rio e o disco solar, lançava sobre aquelas plagas,
bênçãos para o Mansa e seu povo.
Afar Akzaila Zambi desfrutava à margem do rio, com os
olhos fechados, a pouca brisa que lhe lambia a pele negra. A
formosa sudanesa, vinda de uma família de casta alta,
precisamente de um dos generais que governava uma das
províncias do império, a cidade de Tombuctu, brilhava tanto
quanto aquela poderosa bola de fogo, vindo de seus poros a
emergir uma substância qual dava a impressão de que pequenas
gotículas douradas, lhe enfeitavam a perfeita túnica que cobria
seus músculos. Aos dezesseis anos de idade, ainda não fora
apresentada a sociedade Mali por seu abastado pai, como uma
candidata ao noivado.
Sosso era um homem impiedoso quando provocado,
articulado com seu povo, bondoso de coração, mas de alma
vaidosa e idade relativamente nova, o governo de Tombuctu lhe
fora dado pelo imperador Musa, qual havia sido recentemente
sucedido por seu filho Musa II. Até então, sua grande ambição o
levara a ajudar a enriquecer a cidade e a si próprio com as
frequentes transações de ouro, sal, tecidos e peles. Tinha duas
alegrias em sua vida, a fortuna que conseguira juntar, e a quarta
filha. Afar provinha de sua terceira esposa, Farrima Sayejak, a
mulher qual verdadeiramente era apaixonado, e por este motivo
todas as atenções e mimos eram priorizados a Afar e Farrima.
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Este fato, muito desagradava suas outras filhas e esposas,
principalmente Tuma, a primeira consorte, mãe de sua
primogênita Somayaji, que fora chamada assim, para lembrar as
irmãs, quem era a legítima primeira herdeira de seu pai.
Mas longe desse universo de disputas, despeitos e
ambições, pairavam os pensamentos da jovem Afar. Adoradora
da natureza, a menina gostava de se cercar da magia das
paisagens agrestes, do doce olhar dos animais silvestres, do
aroma da vegetação nativa e do seu amigo de infância, Guma.
Tão jovem quanto ela, o rapaz, de casta muito inferior, crescera
ao lado da princesa de Sosso, por seus pais serem fiéis servos,
não escravos, mas trabalhadores do palácio central do
governante. Sua mãe Hanaman, era artesã, trabalhava para as
esposas do general, e muito apresso possuía por Farrima, pois
que a senhora sempre lhe tratava com simpatia e muitas vezes a
presenteava com panos e peles de seu próprio uso que não lhe
serviam mais. Já Goé, seu querido pai, dominava o cultivo do
plantio, e sendo camponês, cuidava das hortas de Sosso com
toda felicidade e simplicidade que possuía, simplicidade essa,
que ensinou a seu único filho. Ao general, muito agradava em
seus passeios matinais, as palestras que se habituara a ter com o
servo amigo, que muitas vezes lhe trazia reflexões esclarecidas e
interessantes à cerca da vida, e também das responsabilidades de
se exercer um cargo onde a vida de muitas pessoas dependia de
tal gestão. Assim sendo, Goé também fora privilegiado quando
Sosso lhe perguntou certa vez como poderia retribuir sua
amizade e serviços tão bem prestados, respondendo que para ele
nada queria, mas muito ficaria feliz se seu menino tivesse a
oportunidade de ser instruído, para que no futuro pudesse ser
mais que um simples camponês. Deste modo, o menino crescera
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um tanto fora de sua precária realidade, uma vez que Farrima
também fizera o pedido ao marido, que Guma, por ter a mesma
idade de Afar, recebesse as lições junto a ela, nos dias em que
sua mãe estivesse a lhe prestar os serviços. Sem nenhuma
resistência, assim se cumpriu a vontade da terceira esposa, e
logo, o menino tornou-se íntimo do palácio, pois que andava e
corria junto a Afar, nas brincadeiras infantis dos intervalos das
disciplinas e nas horas dos fartos lanches, entre as galerias
suntuosas, as salas perfeitamente ornamentadas com tapetes e
pinturas vindas de regiões longínquas, os longos corredores do
primeiro e segundo piso arquitetados em marfim, ébano e pedras
brutas, os jardins internos e externos, tão graciosamente
cuidados, e tudo mais que fazia aquela opípara construção
explodir em beleza e conforto. Guma também conquistou a
atenção e simpatia de Sosso, pelo jeito respeitoso e educado que
sua mãe lhe ensinara a ser, e pelo sentimental fato de o general,
apesar de possuir quatro esposas perfeitamente saudáveis, nunca
ter tido até o momento um filho que lhe pudesse herdar as
patentes. Guma, assim passara a receber vestes superiores a sua
própria casta, e seus pais ganharam uma casa de dois pisos perto
ao palácio, para que assim a família fosse mais facilmente
comunicada quando houvesse necessidade.
Os anos se passaram com a família de Guma sendo
favorecida pela simpatia de Sosso e Farrima. O menino raquítico
e tímido se tornou um belo rapaz, de estatura esguia, corpulento
e ágil, suas atitudes eram refinadas devido à educação
proporcionada igualmente a de Afar, possuía um vocabulário
vasto e um conhecimento sobremodo ao que sua real condição
lhe favorecia, mesmo porque era de uma curiosidade sem
tamanho e gostava de aprender sobre todas as coisas. De caráter
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íntegro, deixava visível o amor que possuía por seus pais, e o
grande respeito, gratidão e reconhecimento que adquirira por seu
protetor, o general, e sua esposa Farrima. Extravasava alegria e
bom humor, o que por muitas e muitas vezes fazia com que seu
luminoso sorriso atraísse a atenção de muitas moças de
tombuctu. Jovial e atlético, aos fins de tarde, ainda gostava de
disputar corrida com Afar até a margem do Níger e ver o sol
escaldante se despedir, dando a gentil oportunidade da
exuberante e redonda lua mostrar-se aos amantes daquele tempo.
Guma, que estava um pouco atrás da margem do rio,
ajeitava alguma coisa em sua sandália, ao se levantar percebeu
que Afar meditava com os braços abertos a saldar o sol que
partia, exatamente como sempre gostara de fazer. Dizia ela que
assim podia sentir a poderosa energia do astro rei lhe banhando
e renovando as forças. De forma gentil, ele aproximou-se e a
abraçou por trás, envolvendo carinhosamente seus braços na
curvatura da cintura da menina, e docemente beijou seu ombro.
Afar abriu um sorriso saindo completamente de sua
concentração, e deslizou as mãos com carinho pelos braços
fortes de Guma, até seus dedos se encontrarem e se cruzarem.
Afar
- Eu estava pensando, e se nós pedíssemos uma audiência com o
meu pai, e explicássemos tudo a ele?
Guma
- Explicássemos? Como assim?
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Afar
- E se eu lhe dissesse que estamos apaixonados um pelo outro?
Que sempre fomos apaixonados, e que você me respeita mais
que qualquer outra pessoa? Que acima de tudo estar com você é
o que me faz mais feliz? Se eu dissesse que eu o amo além de
qualquer coisa, e que você deseja fazer de mim sua primeira e
única esposa?
Guma disse ainda sorrindo acariciando as mãos de Afar;
- E esse seria seu discurso?
Afar
- Certamente que sim.
Guma
- Bem, se você assim o fizesse, creio que ele mandaria cortar
minha cabeça com mais gentileza.
Afar virou-se de frente para o rapaz;
- Que horror, Guma! Por que acha que meu pai faria com você?
Guma acariciou o rosto da menina;
- Afar! Parece que você não conhece seu próprio pai! O general
é fiel às tradições até na maneira de se vestir. Ele faz
rigidamente o Salah todos os dias. Sosso, nunca admitiria um
casamento em sua casa de castas diferentes.
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Afar se mostrou chateada afastando-se;
- Quando fala assim, sinto que não está disposto a lutar pelo que
diz sentir por mim. Sinto que fico parecendo uma boba
apaixonada por você, igual a todas as outras que não recebem a
sua atenção.
Guma aproximou-se novamente e segurou em suas mãos;
- Isso nunca seria verdade! Passo noites inteiras tentando
descobrir como resolver toda essa situação. Fico pensando em
como achar uma forma de pertencermos legitimamente um ao
outro. Sabe que sou tão apaixonado por você quanto você é por
mim, mas precisamos ser realistas, para que assim possamos dar
os passos certos em direção a nossa felicidade.
Afar mostrou-se desanimada;
- É verdade. Sei que tem razão. Mas me enerva só de pensar que
nosso tempo está passando e nada estamos fazendo, em breve
meu pai vai arranjar alguém da mesma casta para se casar
comigo, e tudo estará perdido. Penso que como ainda não há
propostas oficializadas, talvez ele tenha consideração pela sua.
Ele já te tem como a um filho, não é verdade? Por que se oporia
então, se seria para nossa felicidade?
Guma caminhando;
- Você não está errada. Sei que Sosso zela por sua felicidade
acima de muitas coisas, sei também que me ama como a um
filho, mas também é de conhecimento de todos sua vaidade e
teimosia. Se formos fazer isso, teremos que usar de toda nossa
delicadeza e artimanha para convencê-lo de que nos amamos. E
mesmo assim, meu amor, não é uma simples questão de
permissão da parte do seu pai, nós sabemos que é extremamente
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proibido o casamento entre castas diferentes. Este é um assunto
que vai além da nossa vontade, e isso parte meu coração todas as
vezes que penso, penso, penso, e continuo na agonia de não
arrumar uma solução.
Afar afastou-se com o olhar no horizonte;
- Então o que sugere que façamos? Não podemos fugir, não
podemos lutar, nem mesmo confrontar. Talvez você queira que
permaneçamos como estamos até o dia em que outro nos
afastará definitivamente.
Guma foi até ela e a abraçou;
- É claro que não! Alá sabe o quanto temo por este dia! (Ele a
olhou nos olhos). Se há tanto tempo procuramos uma saída e
não achamos, talvez seja porque ela não existe. Então acredito
que realmente seja a hora de revelarmos a nossa vontade
independente dos efeitos que isso causará. (Guma sorrindo, foi
até a beira do rio e com uma das mãos jogou água na namorada).
Sendo dessa forma, creio que devo me despedir do rio e dessa
vida! Pois é provável que seu pai arrume um jeito de acabar
comigo!
Afar sorriu de volta;
- Não seja tão dramático.
E saudando o misterioso casal, a lua definitivamente
banhou o níger e toda aquela quente planície com seu
sombreado prateado, trazendo frescor àqueles inflamados
corações apaixonados.
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No mediano palácio de Sosso, suas esposas
encontravam-se, como de praxe, na primeira sala de recepção,
cada uma em seu devido lugar a fazer sua específica tarefa de
lazer daquele horário. Somayaji acompanhava a mãe, ajudando-
a com o produto que passava na pele. As outras irmãs, Dana,
Taija e Suri, conversavam distraidamente sobre assuntos
irrelevantes quais faziam volta e meia se permitirem a uma
gargalhada ou outra. Budja e Farrad, a segunda e quarta esposa,
participavam da conversa. Farrima, como quase todas as noites,
fora requisitada pelo marido a lhe banhar os pés cansados em
seu aposento particular. Seguindo precisamente o ritual de
submissão, a terceira esposa o cumpria com total amorosidade e
carinho, se permitindo, uma ou duas vezes cruzar o enigmático
olhar que traduziam muitas palavras para Sosso. O orgulhoso
esposo apreciava a linda mulher com olhos de satisfação, como
se aquele simples ato estivesse a lhe comprazer a mais sutil das
fibras do seu corpo masculino. Fora quando ouviu um barulho
muito grande, como se algo houvesse se quebrado, e
imediatamente, ajeitando sua túnica, pôs-se para fora, onde seria
a varanda do segundo piso, para assim poder observar o que se
passava no jardim interno de sua morada. Igualmente a ele, os
demais assim o fizeram, na curiosidade de saber o que se tratava
tal barulho tão ensurdecedor.
Sosso, do parapeito esbravejou ao avistar Guma e Afar ao lado
de uma das gigantes jarras do jardim estraçalhada no chão:
- Afar! Guma! O que está acontecendo aqui?!
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Somayaji, que como todos também havia saído e encontrava-se
no primeiro piso, fez questão de esclarecer tão rápido quanto seu
olhar de reprovação;
- Afar e Guma derrubaram um jarro enquanto eles chegavam de
seu passeio noturno, papai.
Sosso
- Eu já disse a vocês dois que não quero ninguém fora do palácio
há essas horas?
Afar
- Mas justamente por isso nós estávamos voltando, papai!
Guma
- Devo pedir desculpas, senhor, fui eu quem fez com que Afar se
atrasasse.
Afar
- Isso não é verdade! Estávamos no rio e o sol se pôs muito
rápido, quando demos conta, já estava escuro.
Sosso
- Limpem essa bagunça e preparem-se para o jantar.
Guma
- Senhor! (Guma olhou para Afar rapidamente e a menina
percebeu que aquele seria o momento). Se não fosse incomodar,
eu gostaria de pedir uma audiência em particular antes do jantar,
senhor.
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Sosso
- Mas que assunto teria tal urgência?
Afar
- Creio que seria de sua importância, meu pai.
Sosso
- E por acaso esse assunto a envolve, minha filha?
Afar sorriu para Guma e depois para seu pai;
- Certamente que sim.
Sosso
- Então, com certeza este assunto não é tão urgente assim,
podendo vir a ficar para depois da ceia. Jante conosco Guma, e
após, eu o receberei em meu gabinete.
Guma sorriu com a boa recepção prevendo o futuro positivo da
reunião;
- Obrigado, senhor.
Em poucos minutos a grande e farta mesa fora posta
pelas escravas da casa, mulheres que haviam nascido naquela
condição, e outras, que por quaisquer motivos, perderam o
direito de sua liberdade. O general, ainda como homem bom que
se esforçava para ser, possuía muitos escravos e os tratava como
tal, contudo, sem a agressiva desumanização que muitos na
época praticavam.
Guma localizou-se ao lado de Afar. Depois de tantos
anos a frequentar a casa onde seus pais trabalhavam, e se achar
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íntimo da família, era estranho perceber que nunca havia
sentado à mesa para cear com eles. Ficou a observar como todos
eram servidos e se serviam, de certo modo parecia tímido.
Farrima
- Não se intimide Guma, uma família grande como a nossa, na
hora do banquete parece mais um bando de leões esfomeados,
não é mesmo?
Guma
- De maneira nenhuma, senhora. É que estava pensando que há
tanto tempo frequento esta casa, por toda consideração que
vocês têm por mim e meus pais, e nunca havia sentado a esta
mesa com todos desse jeito.
Tuma
- Isso não se daria por que você é um servo?
Afar prontificou-se rispidamente;
- Guma não é um servo!
Sosso a repreendeu;
- Afar! Comporte-se a mesa.
Afar
- Sim, meu pai. Só estou esclarecendo que Guma não é nosso
servo.
Sosso
- Não, ele não é. Hoje, Guma é meu convidado.
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Taija, a segunda filha de Tuma também se pronunciou:
- Ora, Guma, mas seus pais não são nossos servos?
Guma a olhou de cabeça erguida;
- São sim.
Suri, filha de Farrad, o defendeu;
- E por acaso isso seria algum problema, Taija, no caso do papai
convidá-lo para se reunir a nós? Não vejo problema algum
nisso!
Somayaji
- Penso que se seus pais são nossos servos, você também seria,
particular e injustamente nos serviços prestados a Afar.
Afar prontificou-se novamente, agora em tom ríspido;
- Guma não presta serviços a mim! Somos simplesmente
amigos!
Somayaji debochou com um sorriso;
- Jura? Não é o que parece.
Tuma
- A questão é que servos não deveriam jantar com seus senhores.
Taija
- Não deveriam fazer nenhuma atividade de lazer com seus
senhores, nem servos, nem escravos. Imagina como seria, caso
isso se tornasse uma rotina?
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Afar
- Creio que teríamos uma sociedade mais igualitária e menos
preconceituosa. Onde pessoas seriam vistas como pessoas, e não
simplesmente como servas, escravas ou seja lá como goste de
classificá-las.
Tuma sorriu;
- Ora, querida, nós somos o que somos. Mesmo que você não
queira, mesmo que a nomenclatura mude, um escravo sempre
será um escravo, um servo sempre será um servo, como um
senhor sempre será o senhor que manda neles. E essas classes
jamais deverão se relacionar diferentemente de como a
hierarquia manda. Isso se chama organização social.
Farrima explicou com a voz doce e calma;
- Mas pelo o que nós sabemos Guma não é nenhum dos dois.
Nem escravo, nem servo. Seus pais são trabalhadores, e nos
servem porque seus talentos nos ajudam e nos beneficiam, mas
Guma é um rapaz livre, e assim há de continuar por ser a
vontade do nosso marido.
Somayaji
- Ainda assim, sua casta é muito inferior a nossa.
Sosso esbravejou com um golpe de punhos fechados na mesa;
- Já chega! Chega dessa discussão absurda! Hoje Guma é meu
convidado, e mesmo que fosse escravo ou servo, eu sou o senhor
desta casa e faço o que achar melhor.
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Somayaji
- Só acho que o equilíbrio social está sendo cada vez mais posto
em risco desta forma. Imagina se servos e escravos começam a
acreditar que tem direitos iguais aos nossos?
Guma se levantou;
- Se tanto incomoda minha presença, com todo respeito ao
convite do senhor governador, eu posso me retirar.
Sosso
- Sente-se rapaz! (Guma obedeceu). Somayaji! (A filha olhou
para ele apreensiva com o tom que seu pai usou). Levante-se e
vá para o seu quarto, você não irá jantar conosco hoje.
Somayaji
- Mas papai!
Sosso subiu o tom de voz;
- Você constrangeu meu convidado e me desrespeitou. Levante-
se, e vá para o seu quarto, por favor. (A menina o obedeceu
contrariada). E se mais alguém tiver alguma opinião a expressar
contrárias as minhas decisões nessa casa, pode acompanhar
Somayaji.
Tuma levantou-se;
- Com licença.
Sosso olhou para a outra filha;
- Taija?
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Taija abaixou o olhar em respeito;
- Não papai, eu desejo ficar.
Sosso
- Então vamos comer em paz.
O jantar seguiu tranquila e descontraidamente, uma das
escravas que possuía o talento de cantar, distraiu a família
durante o descanso após a ceia. Afar mostrava-se um tanto
ansiosa para aquele momento acabar. Suas irmãs recolheram-se
cedo assim como suas mães. Farrima despediu-se do marido e
seguiu para seus aposentos particulares que ficavam na ala do
outro lado da casa. Sosso finalmente levantou-se e convidou
Guma para acompanhá-lo até seu gabinete.
O cômodo em si, era repleto de livros vindos de países
distantes, trazidos pelos acadêmicos da época, sendo estes
convidados de Sosso para formarem um corpo acadêmico em
Tombuctu, uma vez que o administrador prezava pela erudição.
A mesa larga e comprida talhada com detalhes de marfim,
guardava os inúmeros documentos e cartas que eram analisados
de maneira minuciosa diariamente. Sosso acomodou-se em sua
cadeira de chefe.
Sosso
- Sente-se meu rapaz. (Guma, um tanto temeroso, o obedeceu).
O que afinal tanto deseja falar comigo, e que deixa Afar tão
apreensiva quanto parece?
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Guma respirou fundo;
- Então senhor... É justamente sobre Afar o assunto o qual venho
abordar.
Sosso sorriu;
- Não me diga!
Guma
- Sei que pode parecer uma audácia da minha parte. Contudo,
apesar de conhecer e respeitar muito bem as regras da nossa
nação, qual muito me orgulha, devo dizer que meus mais
sinceros sentimentos me obrigam a revelar que amo sua filha, e
que reciprocamente ela me ama, e sendo desta forma, seríamos
muito felizes se o senhor permitisse que nos casássemos.
Sosso o encarou com o semblante ainda suave;
- Está me pedindo a mão de Afar?
Guma
- Respeitosamente sim, senhor.
Sosso
- Para se casar e ser o marido dela?
Guma
- Seria a maior realização da minha vida, senhor. Eu amo Afar
mais que qualquer coisa, mais que a mim mesmo, e desejo
ardentemente fazer dela minha única esposa, e amá-la até
mesmo depois de minha morte, onde a eternidade permitir.
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Sosso levantou-se calmamente;
- Guma, como o rapaz inteligente que demonstra ser, e que eu
sei que você é, deve saber que há leis nesse estado e no nosso
país que proíbe o casamento entre pessoas de castas diferentes,
não sabe?
Guma
- Sim senhor. Eu sei.
Sosso
- Então como imagina que exista a possibilidade de você e Afar
possuírem alguma comunhão neste sentido? Eu não desejo
ofendê-lo mais que minhas rebeldes filhas já o fizeram no jantar,
muito pelo contrário. Respeito seu pai que é um homem muito
sábio e digno apesar de um simples servo, por isso eu permiti
que você crescesse nesta casa. Mas me impressiona que você
acredite ser possível tal devaneio.
Guma mostrou-se constrangido e embaraçado;
- Eu... Eu... Eu e Afar nos amamos, Senhor.
Sosso
- Eu sei! Percebi isso quando vocês tinham treze anos e ela
ficava me perguntando quando você ia voltar para brincar com
ela. Inicialmente achei que fossem apenas os sentimentos de
uma criança que era solitária e recriminada pelas irmãs. Mas
conforme vocês foram crescendo, e obviamente você se tornou
um rapaz muito bonito, os olhares de Afar eram nitidamente de
uma moça apaixonada, e os seus também. (Sosso aproximou-se
de Guma). O Fato é que minha filha realmente está se tornando
uma linda mulher, e não me faltam propostas verdadeiramente
24
consideráveis. Propostas de homens muito ricos e da mesma
casta que nós. Porém, Afar é como uma pedra preciosa para
mim, e eu sei que Alá guarda um grande destino para ela. Desta
forma, não acho que seria uma sábia decisão consentir a esse
pedido tão descabido.
Guma
- Mas o senhor não se importa com a felicidade dela?
Sosso
- Sim! Claro que sim! Quando for a hora, e Afar demonstrar ter
sentimentos por alguém, eu irei respeitar a sua vontade.
Guma
- Então... O que impede de aceitar meu pedido é...
Sosso o interrompeu;
- O que estou dizendo, Guma, é que é impossível realizar seu
desejo. Não somente pela minha vontade, mas também pelas leis
desse país. (Sosso segurou em seu ombro). Mas não fique
desanimado, meu filho. Vocês ainda são tão jovens, e seu pai me
disse que muitas moças mostram-se favoráveis a uma comunhão
com tão belo e inteligente jovem como você.
Guma
- Não senhor! O senhor não entende! Eu amo Afar mais que
qualquer coisa neste mundo, faria tudo para poder amá-la como
ela merece, por inteiro. Não desejo me casar com nenhuma outra
mulher que não seja ela, e sei que ela também não aceitará se
casar com nenhum outro homem. Se o que nos separa e impede
nosso amor é uma simples lei, lutarei para que ela seja
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derrubada. Mas se ainda assim o senhor me desaprova por eu ser
filho de pessoas que não escolheram ser servas, eu insisto que
pense na minha proposta.
Sosso refletiu por um instante, se dirigiu até a porta e falou com
um dos criados:
- Chame Afar aqui.
Em instantes a menina entrou com o semblante
apreensivo, todavia a esperança brilhava em seus olhos.
Afar
- Mandou me chamar, papai?
Sosso
- Feche a porta, querida! (Afar o obedeceu). Guma veio até mim
esta noite, com um pedido.
Afar
- Sim, eu sei meu pai! Fui eu quem o convenceu a finalmente
revelar o amor que sentimos um pelo outro. (Afar aproximou-se
do rapaz). Não podemos mais fingir que não sentimos nada um
pelo outro. Eu amo Guma além de todas as coisas. Não me
importa se ele é filho de servos, ou mesmo que ele fosse um
servo, até um escravo! Eu o amo, papai! Eu o amo e quero mais
que qualquer coisa ser sua esposa.
Sosso lançou um olhar de piedade para a filha;
- Isso faria você feliz?
26
Afar respondeu em tom empolgante com um sorriso
incomparável nos lábios;
- Sim! Sim! Eu serei a pessoa mais feliz desse mundo! Não
precisarei de mais nada se puder cumprir com esse papel.
Esforçar-me-ei para ser a melhor esposa se o senhor permitir
nosso casamento.
Sosso passou uma das mãos na fronte, tinha o semblante
pesaroso, como se sofresse com tudo que estava pensando, ele
caminhou de um lado para o outro na tentativa de esclarecer
seus pensamentos.
Sosso
- Isso não é mais uma brincadeira de crianças. Vocês se amam
de verdade, não é mesmo?
Afar
- Tanto quanto o senhor ama a minha mãe e ela o senhor. Não
podemos mais viver separados.
Sosso
- Então serei breve para não mais instigar essa esperança vã que
os alimenta. É impossível que esse casamento aconteça.
Afar sentiu seu coração congelar e o sorriso que conservava
desmoronou;
- Mas papai!
27
Sosso
- Não dou o meu consentimento, assim como na figura de seu
governante, o estado também os impede de manterem qualquer
relacionamento amoroso...
Afar começou a falar desesperadamente junto com o pai;
- Mas papai! Não! Não pode fazer isso!
Sosso não parou de dar sua declaração em tom sobressalente;
- E irei desconsiderar que Guma veio até mim com um pedido
tão impertinente...
Afar começou a chorar;
- Não! O senhor não está falando a verdade! Não é verdade! Não
pode fazer isso comigo!
Sosso
- Percebendo a proporção da gravidade deste problema, devo
declarar que a partir de agora está permanentemente proibido
que vocês dois mantenham qualquer tipo de contato. E ordeno
não somente como pai, mas também como seu governador.
Afar gritava;
- Não! Eu não irei obedecê-lo! Como pode?! Como pode fazer
isso comigo?! Eu te odeio! (Ela se virou para o namorado).
Guma! Fale alguma coisa! Não deixe ele fazer isso conosco!
Guma, por favor! Guma!!!
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Guma estava paralisado, não fez absolutamente nada.
Apenas ficou observando tudo que acontecia ao seu redor como
em câmera lenta. O desespero de Afar, Sosso chamando as
criadas para que a levassem para seu quarto. Ele não ouvia mais
nada, nem os gritos da amada, nem as ordens do general, nem
seu coração que batia fraco e triste. Fora exatamente ali onde
Guma verdadeiramente se percebeu um simples filho de servos,
um homem sem casta, sem fortuna, sem permissão para amar a
mulher que desejava, sem vontades ou qualquer autoridade. E
sentiu naquele momento, em pé, vendo Afar implorar para que
ele não deixasse que a levassem para longe dele, a dor da sua
castração moral. A porta se fechou, e definitivamente ele e a
bela menina estavam separados, finalmente não pode conter sua
angústia e as lágrimas caíram de seus olhos, banhando a face
com a amargura que lhe consumia. Sosso se colocou a sua
frente.
Sosso respirou fundo;
- Guma?! Filho?! Está me ouvindo?
Guma despertou enxugando as lágrimas;
- Sim, senhor.
Sosso
- Vá para casa descansar. Amanhã pela manhã, resolveremos o
restante. (Guma deu um sinal positivo com a cabeça). Agora
pode ir.
O rapaz se retirou educadamente, mas era impossível
esconder a frustação em seu rosto. Quando chegou em casa
contou aos pais tudo que se passara.
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Goé
- Ah, meu filho! Quantas vezes eu tentei dizer que seus
sentimentos pela menina Afar não poderiam passar de uma
grande amizade? Quantas vezes, Guma?
Guma
- Sim, meu pai, mas eu não pude evitar. O que sinto por Afar vai
além da minha razão. É algo incontrolável. É como se já nos
amássemos e nos pertencêssemos há muitos e muitos anos. E
esse meu delírio me fez acreditar por um instante que
poderíamos ser considerados iguais e dignos um para o outro.
Contudo, agora percebo que nunca fui nada além do filho de
dois servos daquela casa. Fora como fui tratado esta noite.
Hanaman
- Guma, não deve sentir vergonha de ser nosso filho. Deve ter
orgulho de sermos pessoas de bem e honestas, que trabalham
honestamente para termos uma vida com dignidade. Você não é
o filho de dois servos, você é quem você decide ser. Um homem
bom e justo que seria merecedor do amor de qualquer mulher.
Nunca permita que a insanidade dos homens faça você descrer
disso.
Guma
- O que vou fazer sem poder ver Afar? Sem poder estar com ela?
Foi dessa forma como passei os últimos dez anos da minha vida,
passando cada minuto ao lado dela, e achei que assim seria para
sempre.
30
Goé
- Você vai fazer o que tiver que ser feito, meu filho. Vai superar
isso e seguir a sua vida. Vamos confiar em Alá.
Guma
- Então farei minhas preces, meu pai. Apesar de saber que Afar
jamais sairá da minha memória, e que talvez nunca entenda o
porquê que tive que me manter calado.
No palácio do governador, finalmente o desesperador
choro de Afar havia cessado, pois ela caíra no profundo sono
consolador que viera acalentar seu coração despedaçado. A casa
estava em silêncio, mas Sosso sentia um imenso pesar na área
cardíaca que lhe advertia sobre a decisão que havia tomado,
contudo, não enxergava como o destino poderia ser diferente
para a filha que tanto amava. Em seus aposentos particulares
conversava com Farrima.
Sosso
- Será que algum dia ela irá me perdoar?
Farrima acariciou os ombros do marido;
- É claro que sim, querido. Só não sabemos quando. Pode levar
uma semana, um ano, uma vida ou duas.
Sosso
- Mas a culpa não é minha! Temos regras nesse império e elas
precisam ser seguidas. Eu não poderia, no cargo que me foi dado
pelo Mansa por honra e mérito, ser a pessoa que descumpriria
com as leis. Isso poderia levar Guma à morte.
31
Farrima
- Sim, eu sei! Afar e Guma também sabem, mas são tão
apaixonados e já faz tanto tempo que se amam, que seus
sentimentos superaram a razão. Ela sabe que na verdade você só
está zelando pelo bem de Guma.
Sosso
- Eu não sei, Farrima. Eu não sei. Ela disse que me odeia!
Farrima
-Mas é claro, querido! E se alguém chegasse para você e
dissesse que nunca poderíamos ficar juntos? Que seria
impossível vivermos o nosso amor e felicidade? Que teríamos
que passar o resto de nossas vidas sem nos vermos novamente?
Sosso
- Sim, é bem verdade que eu mataria essa pessoa. (Sosso
acariciou o rosto da mulher). Jamais poderia viver longe de
você.
Farrima
- Então tente compreender a dor que Afar está vivendo.
Sosso
- Eu imagino! Mas nós somos da mesma casta! Onde eles
estavam com a cabeça quando acreditaram que poderiam algum
dia ser um casal como nós?
Farrima
- O amor faz essas coisas com os apaixonados, querido. Você
bem sabe.
32
Como dito pelo general, na manhã seguinte, antes que o
sol voltasse a comtemplar os malinqués, dois soldados bateram à
porta de Goé e Hanaman. Guma, que passara a noite em claro, já
esperava com uma pequena trouxa de roupas. O rapaz deu um
forte abraço no pai e um beijo na fronte da mãe chorosa. Nada
disse, seu olhar ofuscado pelo profundo pesar que sentia, eram
palavras o suficiente que mostravam aos pais que nada do que
dissessem faria diferença naquele momento. Guma não se
entristecia por que estava indo embora, mas porque sabia que
nunca mais veria o grande amor da sua vida. Em seguida fora
levado sem nem mesmo seus pais serem informados para onde.
Por mais que Hanaman quisesse acreditar no bom coração de
Sosso, e na consideração que tivera por eles até aquele
momento, não podia evitar de pensar que talvez seu único filho
pudesse ser capturado no meio da viagem, vindo a ser levado
para a escravidão em terras desconhecidas, ou mesmo sendo
mandado para as galés, onde se perderia para sempre, como
acontecera a muitos. Guma ouvia o choro da mãe com grande
pesar, mas aquele era um momento definitivo e irreversível em
sua vida, e que assim sendo deveria encarar o que viesse com
força e coragem. Quando passaram em frente ao palácio do
governo, o jovem sentiu a profunda tristeza rasgar seu peito, e
fechou os olhos lembrando-se dos românticos momentos que
tivera com a amada, tentando guardar em seu íntimo aquelas
memórias que tanto acalentavam seu coração.
Afar abriu os olhos quando o grande deus solar já raiava
alto, lembrou-se do ocorrido da noite passada, e mesmo sem se
aprontar, saiu pelos corredores a procurar pelo pai. Seus passos
eram apressados, quase desesperados, passou pelos criados, por
Farrad que chamou seu nome, mas a menina tinha pressa, por
33
Dana e Somayaji, que apenas a observaram, então finalmente
encontrou Sosso em seu gabinete resolvendo os pormenores da
manhã que se passava com dois senhores tão respeitáveis quanto
ele.
Afar
- Papai! Preciso que me deixe falar!
Sosso observou o estado da filha e logo se prontificou;
- Senhores! Peço desculpas pelos trajes de minha filha. (Afar
olhou-se como se só naquele momento se lembrasse de que não
estava vestida adequadamente). Tenho certeza de que todos
esses problemas que aqui discutimos irão ser resolvidos
rapidamente. Não se preocupem. Agora, se puderem me dar
licença para resolver um problema de família... (Os senhores o
cumprimentaram e logo se retiraram).
Afar já sozinha com o pai;
- Desculpe-me! Eu não quis envergonhá-lo.
Sosso fechando a porta;
- Está tudo bem. O que deseja?
Afar aproximou-se;
- Papai! Não pode obrigar a mim e a Guma a nunca mais nos
falarmos ou nos vermos! Não pode fazer isso conosco! Deve
haver alguma maneira de podermos ficar juntos, mesmo que...
(Afar indecisa antes de continuar, respirou fundo). Mesmo que
seja de forma oculta.
34
Sosso perpassava os olhos pelos documentos em sua mesa
quando a ouviu dizer a última frase e a olhou nos olhos;
- O que está sugerindo, Afar?
Afar continuou com a voz tremula;
- Estou dizendo que eu e Guma passamos todo esse tempo
juntos, como... Como pessoas comprometidas, e ninguém nunca
ficou sabendo.
Sosso enervou-se por um momento;
- Ora, Afar! Vou fingir que não está me propondo um absurdo
desses! Sem falar que todos nós sabíamos do envolvimento de
vocês dois, eu só não imaginava que fossem chegar a esse nível!
Para mim não passava de uma simples distração de crianças,
mas vejo que cometi um sério erro!
Afar igualmente irritou-se;
- Se sempre soube de nós, por que permitiu que continuássemos
juntos? Por que deixou que eu me apaixonasse dessa forma?
Agora quer tirar Guma de mim! Quando meus sentimentos
dizem que jamais irei pertencer a outro homem. Quando...!!!
Sosso a interrompeu;
- Chega! Eu já expliquei que não imaginava que estivessem
envolvidos a esse ponto.
Afar chorava;
- Não, papai! Não imaginava mesmo! Eu amo Guma! Amo mais
que qualquer coisa ou qualquer outra pessoa nesse mundo! Amo
ao ponto de pertencer a ele de alma, e se Guma alguma vez
tivesse ousado, pertenceria de corpo também.
35
Sosso encarou a filha;
- Afar! Se continuar sendo insolente dessa forma, terei de ser
obrigado a castigá-la!
Afar
- Me castigar?! Mais do que você já está me castigando?! Não
há castigo pior que não poder falar com o homem que eu amo!
Não poder pertencer a ele! Ser dele! Mas eu não irei obedecê-lo!
Eu e Guma fugiremos para bem longe desse lugar mesquinho, e
nunca mais nós voltaremos!
Sosso deixava-se ficar expressivamente nervoso com a situação
que se agravava;
- Eu acho pouco provável que consiga realizar essa façanha!
Afar emudeceu-se, encarou o pai, e logo pronunciou em baixo
tom:
- Por quê? O que você fez?
Sosso desviou o olhar da filha, pois não aguentava ver o
desespero em seu rosto;
- O que era preciso.
Farrima entrou na sala;
- O que está acontecendo aqui? Todos estão escutando a gritaria
de vocês dois.
Afar foi até a mãe;
- Mamãe! O que o papai fez com Guma? O que ele fez?
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Farrima acariciou os cabelos da filha;
- Ah! Minha filha! Você não deve mais pensar em Guma.
Afar gritou ao se distanciar da mãe;
- Não! (Ela se dirigiu ao pai). O que você fez com ele?!
Sosso respirou fundo e disse calmamente;
- Há essa hora, Guma está bem longe daqui. (As lágrimas caiam
no rosto de Afar sem que seu choro ecoasse). Dois soldados o
estão levando para aonde ele deveria ter ido há muito tempo.
Rezo para que não ocorra imprevistos durante o longo e
estarrecedor percurso.
Afar pronunciou já sem achar esperanças em sua gritaria:
- Seu monstro!
Sosso a fitou com tristeza;
- Minha filha...
Farrima
- Não fale assim com seu pai, Afar.
Afar
- Eu odeio vocês dois! Odeio! Vocês são dois hipócritas! Ou
vocês pensam que eu não sei a verdade.
Sosso voltou a ficar nervoso;
- Cale-se, Afar! Antes que eu perca a minha razão!
37
Afar
- Agora quer que eu me cale, não é papai?! Acha que não sei que
minha mãe também foi uma serva? Que o senhor se apaixonou
por ela ao ponto de enganar e falsificar documentos?
Sosso aproximou-se com a mão estendida;
- Ah! Sua insolente!
Farrima se colocou na frente e o impediu de bater no rosto da
filha;
- Sosso, não!
Sosso
- Eu quero que você vá para o seu quarto e fique lá até que eu
ordene que possa sair, e isso não irá ocorrer tão cedo! Nunca
mais! Eu disse, nunca mais, repita uma mentira dessas!
Farrima virou-se para Afar ajeitando sua roupa;
- Vá, minha filha! Obedeça a seu pai. (Afar assim o fez).
Sosso, andou de um lado para o outro tentando conter seu
nervosismo;
- Viu isso? A que ponto nós chegamos? Como pude deixar isso
acontecer?
Farrima
- Ela está com raiva, querido!
Sosso
- Ainda assim precisa saber que não pode sair por aí dizendo
inverdades.
38
Farrima
- Mas nós sabemos que não é mentira.
Sosso encarou a esposa;
- E o que quer que eu faça, Farrima? Que seja decapitado e você
enforcada junto com todo o resto da família? Alá sabe dos meus
pecados, e amar você ao ponto de enganar e mentir, não é um
deles.
Farrima
- Era somente isso que Afar estava te pedindo. Exatamente o
que fizera por mim.
Sosso
- Mas isso é muito arriscado e perigoso. E eu não vim para uma
província tão longe com toda a minha família, simplesmente
porque me apraz. Tive que mover mundos, cobrar favores e
sujar minhas mãos de sangue para que chegássemos a ter a paz
que hoje nos pertence. Você mais que qualquer outro sabe muito
bem disso.
Farrima abaixou os olhos;
- Sim, é verdade. De qualquer maneira, Guma e Afar já estão
separados para todo o sempre. Não terá mais que se preocupar
com isso.
Sosso
- Assim espero.
39
Farrima
- A melhor solução seria casar Afar o quanto antes. Quem sabe
assim ela o esquece.
Sosso mostrou-se contrariado;
- Ela não sabe, porém eu, como seu pai, mais do que ninguém,
gostaria que ela fosse feliz em seu casamento. Eu só não contava
com toda essa confusão. Contudo, espero que o tempo possa
curá-la e ela enfim se apaixonar por alguém de sua casta.
Farrima
- Então vamos esperar.
O velho Níger já não contava suas lágrimas. Quantas
vezes o abundante rio presenciou as cenas de carinho e afeição
guardadas no segredo da alma entre Afar e Guma? Quantos
momentos inesquecíveis de felicidade por serem dois espíritos
que deram a sorte de se encontrar naquele pedaço de terra?
Quantos beijos e carícias cobertos pelas águas do afluente?
Quantas vezes guardou os sonhos do futuro familiar, entre
filhinhos e filhinhas, e noites de amor? Fora ali onde cresceram,
e igualmente aquele sentimento outrora ingênuo entre crianças,
tornou-se uma paixão incontrolável, sensível ao menor e mais
singelo toque, de olhares profundos e cheios do sonho de uma
vida juntos.
Afar, pela primeira vez desobedeceu ao pai, ela passou
pelo seu quarto para arrumar-se, mas não permaneceu nele.
Precisava ver com seus próprios olhos o quarto vazio de Guma,
os pais tão amorosos, agora cabisbaixos pela perda do filho,
queria ver suas coisas no lugar de sempre e sentir que havia uma
40
esperança dele retornar, ou se seu verdadeiro amor realmente
havia partido para todo sempre.
Hanaman ainda não conseguia conter as lágrimas, a
separação do filho lhe causou uma profunda tristeza. Afar não
pode acreditar que eles também não sabiam para onde haviam
levado o rapaz. Quando finalmente se convenceu de que Goé
sabia tanto quanto ela, fora em busca de notícias através dos
guardas do pai, onde simplesmente conseguiu a informação, de
que muito cedo ainda, Guma fora visto com dois soldados, mas
seu destino era confidencial. A menina logo percebeu que o
namorado não fora forçado a nada, e que talvez por livre e
espontânea vontade tenha aceitado algum dos acordos que seu
pai, muito tinha costume de oferecer. Mesmo assim, foram
meses onde a menina procurou por notícias, notícias essas, vãs,
muitas eram descabidas, outras só faziam com que ela sentisse
que cada vez mais era levada para longe da verdade e do destino
do amado. O primeiro ano passou, lento e demorado, Afar não
desistia de insistir para que o pai revelasse para onde havia
mandado Guma, e num excesso de impaciência, ele lhe revelou
que mandara o rapaz para uma outra província, onde serviria nos
campos de conhecidos seus, mas que recebera notícias de que a
caravana qual estava a viajar havia sofrido com os saqueadores,
e logo se perdera entre contrabandistas de escravos, quando
ainda poderia ter ido parar em alguma belonave nas galeras,
sendo assim, se ainda estivesse vivo, seria sorte. Sosso falou tão
firmemente e com tanta sobriedade, que Afar não teve como não
acreditar que o pai lhe revelava finalmente a verdade.
41
Sosso
- Eu não quis te comunicar antes, porque imaginei que seria um
golpe muito duro, minha filha. Eu nunca desejei esse destino a
Guma.
Afar fora acalmada pela desesperança;
- A culpa é toda sua. Só sua.
Sosso
- Se isso fará com que se sinta melhor, posso aguentar o peso da
responsabilidade de pensar em uma vida tranquila para você.
Afar
- Tranquila? Acho que quis dizer triste, papai. Fora só o que o
senhor conseguiu, tornar-me uma pessoa triste.
Era bem verdade que Sosso havia mandado Guma para
uma província distante onde serviria a conhecidos seus, contudo,
o restante da história não passara de uma grande mentira, na
tentativa de fazer com que Afar desistisse de buscar pelo amado.
Guma fora mandado para a aldeia de Niani, o que hoje seria a
atual Guiné, onde pessoalmente serviria ao Mansa. Por ser
jovem e belo iniciou seus trabalhos no Palácio Imperial, e tão
cedo quanto pudera imaginar, ganhou a amizade de alguns
senhores importantes com sua estranha educação refinada e
sabedoria. Após cinco anos de servidão, pelo motivo de sempre
ajudar um dos comandantes da Tropa Imperial em suas
estratégias de combate e domínio em territórios inimigos, fora
indicado para o cargo de soldado, e o destino assim o levou a
conhecer Musa, o Imperador, que por coincidência ou não, tinha
a mesma idade que ele, sendo por este motivo que muito lhe
42
agradava sua companhia nos treinamentos matinais e nas
célebres distrações onde pernoitavam entre lindas mulheres, as
quais nunca conseguiram apagar de sua memória o belo rosto de
Afar.
Naquele fim de tarde em Niani, Guma descansava em
um dos mais altos entre os inúmeros terraços da construção real.
O magnânimo lugar era ornamentado por arbustos e trepadeiras
verdíssimas, flores que exalavam aromas incomparáveis, tecidos
que volitavam no ar em perfeita harmonia com a menor das
brisas, ainda mobiliado com bancos, cadeiras e almofadas as
quais possibilitava completo e perfeito descanso para o corpo de
um soldado que acabara de chegar de longa batalha. O santuário
ao ar livre ainda transmitia uma tranquilidade celestial,
harmonizando forte encontro entre a mente incandescente do
homem mundano e sua intocada essência da alma feita por
Deus, com uma perfeita e bela vista para toda a cidade e o
esplendoroso pôr do sol de laranja intenso. Guma não sabia se
fora pelo cansaço da batalha, pela paz que aquele belíssimo
ambiente lhe proporcionava, ou ainda pela lembrança dos fins
de tarde que se passavam solitários, mas após tantos anos
permitiu-se a algo que evitara por muito tempo. Deixou-se o
valente homem que seus pensamentos divagassem por aquela
paisagem, e lembrou-se que certamente em Tombuctu sua
amada também contemplava o mesmo astro. Contudo, será que
contemplava sozinha? Depois de tantos anos era certo que
estivesse casada e até mesmo com seus filhos, crianças essas que
deveriam ser suas também. Mas do que adiantava sofrer com
esses pensamentos? Muito provavelmente Afar não pensava
mais nele, afinal, já faziam longos sete anos que Guma fora
embora e não fizera questão de anunciar a ninguém, nem mesmo
43
a seus pais, onde se encontrava e como estava. A dor que sofrera
com a separação repentina o dilacerou a um ponto no qual
decidira apagar aquele passado, e recomeçar sua vida como se
fosse uma outra pessoa. Entristeceu-se ao pensar que Afar não o
reconheceria e muito menos se apaixonaria por ele caso o
conhecesse nos dias atuais. O rapaz romântico, compassivo,
tolerante e afável de Tombuctu, não mais existia.
Após ganhar a amizade de Musa, Guma adquiriu seus
documentos, onde afirmava que era um homem de posses e
completamente livre para fazer o que desejasse. O Imperador lhe
forneceu uma moradia razoável, um ótimo salário, e passou a
compartilhar com o amigo as festas e demais ocasiões onde o
que mais lhes interessava era diversão, boa comida e bebida.
Com a fama de guerreiro, Guma passou a ser apreciado por
muitas moças de dentro e de fora do grande palácio, o que
sempre lhe possibilitava estar na companhia de uma ou duas
belíssimas mulheres. Assim, descobriu ele um mundo onde não
se afundava nos pensamentos que o levavam a Afar, e que não o
fazia se sentir pequeno. Escondeu-se por trás da capa de homem
aventureiro e descontraído, de uma brutalidade inconsequente
em combate, de personalidade audaciosa respaldada por seu
amigo soberano, e de um apetite sexual insaciável. Este último
traço, sendo efeito da tentativa incansável de suprir a falta que
Afar lhe fazia. Todavia, o vazio sempre lhe batia à porta em
momentos como aquele no terraço. E percebendo o semblante
ausente de Guma, Musa quebrou o silêncio aproximando-se
segurando uma taça dourada de vinho.
44
Musa
- Quando um homem volta de uma guerra e permanece estático
assim por muito tempo, significa que ele viu muitas coisas das
quais nunca conseguirá falar. Ou isso, ou o problema tem pele
sedosa, lábios macios, voz doce.
Guma sorriu;
- Sabe que não tenho problemas com as batalhas.
Musa
- Então me diga o lindo nome desse problema que o fez ficar
aqui parado por tanto tempo.
Guma caminhou até um dos bancos e se sentou;
- Essa história tem tantos anos. E desde que fomos separados,
nunca mais pronunciei o nome dela, e desejo que assim
permaneça, para que eu não desenterre algo que já morreu faz
tempo.
Musa
- Pelo o que observo, não parece que está morto. Eu nunca o
imaginaria apaixonado por alguém, Guma. Não você!
Guma
- Pois é! Por isso é melhor nem falarmos nisso. Já passou.
Musa
- Bem, se é assim, deveria fazer como eu, e se casar com uma
bela e jovem mulher.
45
Guma
- Me casar? Com quem?
Musa
- Ora, meu amigo! Se olhar para os lados você descobrirá que
existem tantas possibilidades quanto gostaria. Sei que existe
uma jovem chamada Zaila que está perdidamente apaixonada
por você não é de hoje.
Guma novamente abriu um sorriso;
- E por acaso, você sabe disso por que Zaila é amiga de sua
esposa Sunieri?
Musa
- Claro que sim! Ela revelou a Sunieri os sentimentos que tem
por um certo soldado amigo íntimo do seu Imperador. E disse
que muito feliz a faria caso este desejasse uma comunhão com
ela.
Guma
- Não posso me casar com uma moça de casta como Zaila.
Musa
- É exatamente aí que a sua influência com o bondoso,
maravilhoso, esplêndido e belíssimo imperador, pode agir
favoravelmente na realização desse desejo.
Guma
- Do que está falando?
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Musa parou petrificando seu olhar na paisagem à frente;
- Estou falando, que a partir de hoje você não é mais um
soldado. Eu o estou promovendo a comandante, terá sua
pequena, porém, própria frota de soldados, e... (Ele virou-se para
o amigo). Sua casta está igualada aos nobres dessa aldeia, como
a casta de Zaila por exemplo. (Musa tomou um gole do vinho).
Guma foi até ele;
- Com todo respeito, mas deve estar delirando.
Musa
- Possivelmente estou mesmo, meu amigo. A aristocracia
comerá meu fígado, mas o que não se faz pela amiga da sua
linda, desejável e amorosa esposa?
Guma em um impulso abraçou Musa;
- Devo agradecer, então!
Musa
- Está bem! Não é para tanto. Estou mais ansioso pelos
agradecimentos de Sunieri
Guma
- Eu não irei decepcioná-lo.
Musa
- Claro que não, agora você se casará com Zaila querendo ou
não querendo.
47
Guma
- Na verdade não estaria fazendo esforço algum. Zaila é uma
bela moça. Seus pais irão concordar com isso?
Musa
- Ah! Depois que seu imperador os informar de que vocês se
casarão, tenho dúvidas que alguém se contraponha a minha
vontade. Eu os abençoarei e estará feito.
Guma novamente abraçou o amigo. Era estranho
perceber em uma pessoa de tamanho poder, alguém que se
aproximava de um irmão, haja vista que Musa demonstrava
incompreensivelmente sentir o mesmo pelo atual comandante.
Seus bens acumularam, e rapidamente Guma tornou-se
um homem rico, mudou-se para uma propriedade maior, onde
agora possuía servos e escravos, os quais ele nunca deixou de
tratar com respeito e consideração. Sem demorar, casou-se com
Zaila, mesmo sabendo da insatisfação de seus pais, contudo,
eram felizes. A esposa dedicada o tratava sempre com extremo
carinho, respeitando suas ordens e vontades, pois que Guma não
demorou em se empoderar do título e da vaidade que este trazia,
além do poder que a amizade com Musa lhe fornecia, o que
despertava a inveja e revolta de alguns. Dessa forma, Zaila não
se importava que o marido desfrutasse de duas ou três noites
fora de casa, onde sabia que ele praticava suas orgias, uma vez
que o comandante sempre retornava dócil e amável para casa,
nunca faltando com seus deveres de esposo, e com carícias que a
convencia de que ela era seu único e verdadeiro amor. Após o
primeiro ano de casados, seu primeiro filho, qual chamou por
Tisuz, nasceu forte e saudável, sendo motivo de festa e orgulho.
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Logo em seguida, nascera Zaira, uma dócil criança que
preencheu a vida de Guma com amor e afabilidade.
Musa presenciava a felicidade do amigo, ansioso para
que pudesse compartilhar do título de pai, mas Sunieri não
engravidava. Apesar das inúmeras tentativas, dos doutores
vindos do oriente, e das ervas milagrosas, três anos se passaram
daquela data, e Musa não tinha um filho que pudesse lhe
substituir no trono. Desta forma, o casamento do mansa decaía,
e haviam semanas em que ele nem mesmo via sua esposa,
permitindo-se esquecer-se nos salões onde todo tipo de
promiscuidade se exacerbava entre aquelas almas iludidas com o
prazer e a saciedade da carne.
O salão de colossal estrutura, fora propositalmente
decorado nas cores dourado e vermelho intenso, ostentava
tapeçarias persas e piscinas que traziam a modernidade da
arquitetura romana, possuía iluminação precária devida às
poucas janelas que traziam discrição, muitas vezes havendo a
necessidade de luzes artificiais, o que também propiciava o
fervor das peles suadas que constantemente tocavam-se em
frenesis de emoções por vezes animalescas. O ambiente imitava
o que poderíamos chamar por harém, habitado e frequentado por
jovens moças, a maioria delas sendo criadas, possuidoras de
belezas exóticas e estonteantes. Também visitado a convite
pelos amigos mais íntimos do mansa. As festividades naquele
local pareciam intermináveis, assim como o sofrimento de Musa
na infelicidade de seu casamento infrutífero.
49
Guma, que tinha total liberdade de acesso a quaisquer
dos cômodos do palácio, habituara-se a passar algumas noites no
salão, e entre um momento e outro onde procurava ar fresco nas
noites quentes de Niani, encontrou seu infeliz amigo em um dos
jardins internos.
Guma
- Vejo que um pesar te toma a todo instante. Este não deveria ser
um momento de alegria e distração como costumava ser, meu
amigo?
Musa permaneceu sentado onde estava com a postura
cabisbaixa;
- Sim, deveria, Guma. Mas existem esses pensamentos que não
me permitem desfrutar da bela vida que tenho.
Guma
- E o que mais o magnânimo Mansa poderia querer? Tens
absolutamente tudo que um homem gostaria de ter. Poder,
riqueza, mulheres, amigos, é amado e respeitado pelo seu povo.
Musa levantou-se repentinamente;
- Mas não tenho um filho! Sunieri não pode ser mãe, e assim
sendo, eu não terei meu herdeiro legítimo.
Guma
- Ora! Mas ainda há tanto tempo para se realizar esse desejo!
50
Musa alterou-se um pouco;
- Não, Guma! Teus filhos já crescem, e nós que estamos casados
antes de você e Zaila, nós não temos nada. Cada vez que nos
frustramos nos distanciamos mais.
Guma
- Está dizendo que...
Musa
- Estou dizendo que o que eu sentia por Sunieri sucumbiu ao
fato dela ser seca, como as areias do deserto. Qual a razão de um
homem se unir a uma mulher se ela não pode lhe dar uma
família?
Guma
- Mas você não a ama? Sunieri é uma esposa... dedicada.
Musa
- E de que isso me adianta? Enquanto meu reino não tiver
herdeiros, serei visto como um imperador fraco! E todo o
império herdado das dinastias que me antecederam estará em
risco. (Musa cuspiu o licor que tomava e arremessou a taça
prateada). A verdade é que qualquer um poderá me tomar este
trono enquanto eu ainda não for pai.
Guma
- Com todo o respeito ao Mansa, a verdade é que qualquer um
pode te tomar o trono enquanto ele lhe for seu. Sempre estará
propenso a sofrer este golpe, com ou sem herdeiros.
51
Musa encarou Guma;
- Não com um fiel comandante como você, meu amigo.
Guma
- Por que não se casa outra vez?
Musa
- Mais uma esposa? Isso não agradaria Sunieri, só pioraria as
coisas entre nós dois.
Guma
- E como acha que toda essa situação irá se resolver? Se Sunieri
não pode te dar um filho, então tenha uma outra esposa que
possa.
Musa refletiu;
- Bem, eu nunca lhe prometi que não possuiria outras esposas. E
mesmo que tivesse, ela não cumpriu com seu papel de dar um
herdeiro a este império.
Guma sorriu;
- Então! Já que resolvemos o problema, devo me apressar. Raja
está ao meu aguardo.
Musa lhe fez um cumprimento;
- Pois então, não a deixe esperando.
E adentrando ao salão, Guma inebriou-se daquela
atmosfera junto a Musa que novamente tomou de uma taça com
bebida, ambos se direcionaram as suas femininas distrações.
52
Raja era uma jovem de origem estrangeira, ninguém
sabia ao certo de onde viera, mas imaginava-se que possuía
descendência egípcia, tinha a pele dourada pelo sol, seus cabelos
eram ondulados e longos, os olhos castanhos e profundos, de
braços longos e finos, assim como o corpo de mulher. Fora
casada com um mercador que perdera tudo que tinha em
apostas, inclusive ela. Não demorou até que conseguisse fugir
em uma das inúmeras tentativas, desta forma fora capturada e
vendida como escrava várias vezes, vindo a cruzar o
mediterrâneo em embarcações precárias, sofrendo toda forma de
abuso que uma mulher indefesa e sozinha poderia sofrer, até que
se acostumara a dar o corpo em troca de qualquer coisa que
pudesse lhe alimentar ou vestir. E desta forma Guma a
encontrou no porão de um dos navios do inimigo que atacava.
Havia algo naquela mulher imunda além do olhar aterrador, a
magreza não roubara sua exótica beleza, haja vista que o cabelo
desgrenhado, a face esmaecida com hematomas profundos nas
maçãs devido aos prováveis golpes que levara, o corpo
macerado pelo sofrimento e a violência que sofreu naqueles
últimos dias, tornaram sua aparência próxima a de um trapo
humano. Ainda assim, o comandante compadeceu-se
profundamente daquela mulher de aparência animalesca. Ele se
aproximou lentamente, quando no porão úmido e escuro, apenas
um raio da luz solar iluminava uma pequena parte do poço
fétido onde se encontrava Raja. Mesmo com toda cautela que
procurava ter, Guma levara golpes, bofetões e arranhões da
tresloucada que demorou a entender que ele não tentava atacá-la,
mas sim ajudá-la. Quando ela finalmente fixou seus olhos
amargurados no doce olhar do seu salvador, acalmou-se e
permitiu que ele suspendesse seu corpo nu e fraco, qual possuía
algumas lacerações que indicavam a prática do famoso chicote
53
com ponta de ferro, que era usado para castigar escravos
insolentes. Raja, envolvida nos fortes braços de Guma com o
rosto afagado em seu peito, sentia-se agora, após muito tempo,
acolhida. E esse acolhimento não era simplesmente um
sentimento bom, era mais que isso, era como um carinho na
alma, como se seu guardião secular a houvesse encontrado em
meio aos escombros do mundo vil que ela quase desistira de
sobreviver. Aquela sensação durou um segundo, mas sua
gratidão seria eterna.
Guma lhe deu abrigo em uma pequena casinha que
possuía um tanto distante do palácio. Comunicou apenas Musa
sobre sua hospede, o imperador não se opôs, incentivando o
amigo na caridade que praticava. Ele ainda designou duas servas
de sua própria casa para que ficasse com Raja e lhe cuidasse até
sua total recuperação. Fora essa atitude que fez com que Zaila
desconfiasse que o marido mantinha clandestinamente uma
amante, porém, a consorte sabia que com um marido com tanto
poder e de viril beleza, seria em demasia ingenuidade acreditar
que lhe seria fiel, assim conformando-se com as aventuras de
Guma.
Após algum tempo recebendo os devidos cuidados
ordenados pelo seu querido anjo, a jovem Raja voltava a ter uma
aparência normal. Nenhuma palavra ainda trocara com aquele
belo estranho, que por vezes aparecia nos fins de tarde, a olhava
enquanto dormia e depois saía sem absolutamente emitir
nenhum som. Para aquela mulher prostituída pela fome e pelo
frio, maltratada pela ignorância e pelo primitivismo do ser, era
inconcebível que um homem nada quisesse explorar de seu
corpo. Mas Guma a resgatou quando ela só fazia parte do
54
escárnio da civilização, nem mesmo os vermes lhe desejavam a
carne fétida naquele infeliz momento. E conforme as semanas se
passavam, Raja surpreendia até mesmo as servas que
presenciavam o florescer de sua beleza. Os cabelos e os olhos
resgataram seu brilho, o rosto parecia intacto, agora era possível
observar que seus olhos eram levemente puxados como dos
felinos, o nariz afilado harmonizava-se com os lábios carnudos e
desenhados, quais agora eram de um leve rosado, o corpo
outrora esquelético, voltara a possuir suas curvas tão graciosas.
Guma entrava na pequena residência em passos firmes,
nem mesmo ele entendia por que tanta ansiedade sentia em ir
ver aquela criatura que fora tão desprezada pela vida e quem
sabe até por Deus. Contudo, a verdade é que desde que salvara
Raja dos braços da morte, pensava nela noite e dia. E por
algumas noites ele adentrava o quarto da moça, que parava o
que estava fazendo e ficava a sua frente, esperando que ele
falasse ou fizesse algo, todavia, Guma apenas trocava olhares
com ela por alguns segundos e saía. Certa feita, o comandante
entrou na casa e como de costume encontrou Raja em seu
aposento, a jovem seguiu o ritual, parando o que estava fazendo
e olhando fixamente para os olhos negros de Guma, mas desta
vez, antes que ele se retirasse, Raja desatou os nós de sua túnica,
permitindo que todo o pano caísse sobre o chão deixando-se
completamente nua. Guma a observou por mais um tempo,
caminhou lentamente até ela, e ainda muito próximo, perpassou
o olhar pelo corpo escultural, com as costas de uma das brutas
mãos, acariciou sua face, que para ele mais lembrava o de uma
linda ninfa, um dos dedos passou pelos lábios úmidos que
aguardavam um beijo, então ele se abaixou pegando a túnica do
chão e voltou a cobrir o corpo que lhe fora ofertado. Seu olhar
55
cruzou brevemente com o de Raja percebendo seu
desapontamento, e sem demora se retirou. Raja o seguiu até a
porta.
Raja exclamou num impulso:
- Se não me deseja, por que ainda me mantém aqui?
Guma que montava em seu cavalo declarou:
- Você é livre para ir quando quiser.
Sem dar tempo para uma palestra, Raja ficou na porta a
observar o animal trotar para longe dali levantando a poeira do
caminho. Não sabia ela se se sentia aliviada ou ofendida, de
certa forma tinha certeza absoluta de que estava frustrada.
Guma não voltou no dia seguinte, a moça lhe aguardou, e
da janela espiava o panorama ao longe na esperança de ver o
garanhão do seu salvador cavalgar para encontrá-la. Mais uma
semana se passou, e nem mesmo suas servas sabiam sobre o
comandante. Fora quando em uma noite ele finalmente retornou,
colocou no cesto da mesa as frutas que sempre trazia. Raja que
estava no quarto preparando-se para dormir, ouviu seus
empoderados passos aproximarem-se, e em um piscar, lá estava
aquele que agora roubava-lhe a paz do coração e os românticos
pensamentos. Ela o olhou rapidamente e logo virou o rosto
continuando sentada naquela espécie de cama, na tentativa de
lhe devolver o desdém do último encontro.
Raja
- Sinto não ter obedecido. Prometo que em alguns dias estarei
providenciando minha partida.
56
Guma caminhou calmamente para dentro do quarto;
- Mas eu não me lembro de tê-la expulsado.
Raja
- Disse que sou livre para ir quando quiser.
Guma
- Da mesma forma que é livre para ficar, se assim desejar. Se...
Não tiver ninguém que a esteja esperando.
Raja sorriu timidamente;
- Não. Não existe ninguém. (Guma prontificou-se a sair). Por
que não voltou?
Guma
- Como?
Raja
- Por que não voltou depois daquele dia constrangedor e
humilhante? Sei que deve ser um homem respeitável e sinto por
tê-lo ofendido, mas é que na dura vida que me foi consagrada,
estou acostumada a pagar pelos favores que me fazem desta
forma, já que não possuo nada além do meu corpo escravo.
Guma sorriu;
- Homem respeitável? Eu? Pelo visto os comentários que
rodeiam o palácio não passam por aqui. E não existem motivos
para se sentir constrangida ou humilhada.
57
Raja
- Por qual outro motivo me desprezaria de tal forma? Sei que
posso não ter a beleza ideal que muitos homens elogiam, mas
onde cresci, não costumam desprezar mulheres que são muito
mais feias e horrendas que eu.
Guma sorriu novamente;
- É como você se vê?
Raja
- Foi como me olhou!
Guma respondeu prontamente;
- Não, não foi! Eu... Só não quis que fizesse isso pelos motivos
errados, como ainda pouco declarou que está acostumada a
pagar por favores com seu corpo escravo. Nunca tocaria em uma
mulher que não me desejasse igualmente.
Raja
- E se eu disser que o desejo?
Guma fixou seu olhar no dela;
- Eu diria que sou marido de outra mulher.
Raja
- Entendo.
Guma continuou;
- E que não poderia esperar mais de mim do que apenas
encontros noturnos e rápidos.
58
Raja
- É mais do que já tive de qualquer outro homem.
O comandante caminhou até a moça, e fora estranho para
Guma, pois ele amava o corpo de Raja, mas era Afar quem
dominava seus pensamentos.
E após as incontáveis horas em que ele se embriagou da
bela egípcia, acreditando ser Afar, Guma cavalgou tão rápido
quanto podia para longe da moça. Sua mente parecia perturbada,
encoberta por um véu de extrema confusão. Tendo chegado
aonde chegou, sendo quem ele havia se tornado, sabia que
poderia possuir Raja como bem entendesse, e mantê-la como
sua mulher por trás da fantasiosa aparência familiar que
construíra para si, assim como a grande maioria dos homens
daquele tempo fazia. Mas era estranho o que sentia, aquele
medo lhe era uma novidade. O que ele poderia temer? Era um
homem poderoso. Repentinamente freou o animal e quis dar
meia volta. Por um segundo decidiu voltar e conferir que era
realmente Raja, quem o envolvera tão perfeitamente naquela teia
de amor e prazer, mas logo Afar lhe veio à mente, e seu cavalo
reagia tão indecisamente quanto os seus comandos confusos. Por
fim, decidiu voltar para casa, o sorriso de Zaila fora tão
receptivo e amável como sempre, e por também ser ela uma
linda mulher, de perfumes exóticos, pele de seda e olhares
atraentes, fizera amor com ela naquela noite, ainda desejando
Afar. O comandante passara três dias em profunda agonia,
sentimento este que não fugiu a observação de sua dedicada
esposa.
No terraço principal de sua casa, Guma procurava o
descanso para os nervos qual pareciam deixá-lo a cada dia ainda
59
mais tenso. Zaila surgiu com uma bebida refrescante e lhe
ofereceu.
Zaila
- Vejo meu marido andando de um recinto para o outro como se
não soubesse onde está indo, ou como se desejasse ir a um lugar
que não pode. Vejo seu olhar vazio para tudo que está do lado
de fora, mas atencioso para o que lhe consome por dentro. (Ela o
acariciou no rosto). Você tem ficado mais em casa esses dias,
mas não está aqui. É alguma coisa que posso ajudar?
Guma devolveu o carinho à esposa;
- Não querida. Não é nada que deva se preocupar.
Zaila sentou-se ao seu lado;
- Devo me preocupar com qualquer coisa que possa lhe roubar a
tranquilidade, e sei que tem passado as noites em claro trancado
em seu gabinete. O que busca, Guma? Está apaixonado por
outra mulher?
Guma segurou em sua mão;
- Sabe que nunca escondi de você o homem devasso que vive
em mim.
Zaila
- E também sei que sempre foi o melhor marido que eu pude
escolher, o que muitas vezes sempre teve um peso maior que
suas aventuras insignificantes.
60
Guma beijou sua mão;
- Por isso não serei desleal a você sobre a verdade. Faz um
tempo já, que eu resgatei uma mulher enfermiça das garras da
morte. Provavelmente ela estava, tem algum tempo, sendo
violentada de todas as formas por animais vestidos com a pele
dos homens, porque nem mesmo os bichos tratam dessa forma
suas presas. Eu a hospedei em uma residência que possuo pouco
longe daqui, e sem absolutamente nenhuma pretensão designei
duas servas para que lhe cuidassem até que se recuperasse e
retomasse as forças. Não sei por qual motivo tive esses
impulsos, mas quando vi aquela criatura jogada no porão de um
navio, mais parecia uma massa cinzenta e pútrida, senti uma
enorme compaixão e um desconforto na alma que me fez querer
tirá-la de lá, e quando eu a segurei em meu colo e caminhei para
fora dali, percebi que o que fazia era maravilhoso, e ainda me
vejo vivendo-o como em uma lentidão, porque senti naquele
exato momento, que de alguma forma eu estava a resgatar
também a mim. Porém, não compreendo como tal situação pode
me ser tão marcante.
Zaila perguntou quase que afirmando;
- E é essa moça que o perturba?
Guma se levantou mansamente;
- Em nosso casamento nunca mentimos ou guardamos segredos
um do outro. Sabes que amei alguém há muitos e muitos anos, e
que mesmo tendo feito todos os esforços para repelir esse
sentimento, ela continua guardada em meu coração, talvez não
mais da forma como foi no passado. Pois bem, a mulher outrora
enfermiça que estou hospedando, curou-se. De algum jeito, por
algum motivo, ela desperta em mim a lembrança desse alguém,
61
e junto com essas lembranças, vem milhões de frustrações e
sentimentos que não sei como domar.
Zaila mirou o horizonte;
- O que está tentando dizer é que você acha que a ama?
Guma foi até a esposa;
- Não. Isso não seria mais possível para mim, não nessa vida. Eu
não desejo te magoar, Zaila. Tem sido a melhor esposa que um
homem poderia querer. Sempre compreensiva, amiga, amante e
uma excelente mãe. Dera-me filhos perfeitos os quais enchem
minha vida de alegria e satisfação. Mas sei, e sinto que posso
compartilhar de meus verdadeiros sentimentos com você. Não
seria justo se não fosse assim. Acredito que me tornei alguém
incapaz de amar novamente.
Zaila abaixou a cabeça;
- Eu nunca quis acreditar nisso. As suas aventuras nunca me
incomodaram realmente porque eu sempre soube que eram
insignificantes para você. Mas agora parece que essa pobre
moribunda está conquistando aquilo que me esforcei para ter por
todos esses anos.
Guma abraçou a esposa;
- Como eu disse, não desejo magoá-la.
Zaila se levantou;
- Sim, eu sei. O que você não sabe, Guma, é que me magoa o
fato de saber que nunca possuirei o amor que deveria ser meu.
(Zaila caminhou até a porta de entrada para a casa). Você
pretende mandá-la ir embora?
62
Guma
- É o que você deseja?
Zaila
- Se isso fizer com que você volte a ser como antes, nem meu,
nem de ninguém, acharei justo, e poderei me conformar com o
nosso destino.
Guma
- Então considere realizado.
Naquela mesma noite, Guma cavalgou até a residência
onde hospedara Raja, desanimado, tentava manter o pensamento
focado na razão de que seria melhor assim, dar-lhe uma pequena
sacola com moedas de ouro e mandá-la ir embora para todo
sempre, sabendo que ela se perderia no mundo, e ele nunca mais
a encontraria, preservando daquela vez, a vontade de Zaila que
já lhe aturava toda a realidade e as traições. Ele entrou na casa e
estranhamente não encontrou ninguém, nem mesmo as servas,
como a casa era pequena, em pouco tempo vasculhou todos os
cômodos, e estes estavam vazios. Guma sentiu seu coração
disparar, e qual louco ia ficando ao perceber que Raja poderia
simplesmente ter ido embora. O comandante voltou a olhar
recinto por recinto, mesmo sabendo que não havia onde se
esconder devido à precariedade de mobília. Na sala, parou por
um momento com as mãos na cabeça na tentativa de organizar
os pensamentos e controlar a respiração ofegante, fora quando
ouviu a harmoniosa voz de Raja que chegava.
Raja
- Você está bem?
63
Guma inquiriu nervoso;
- Onde você estava?
Raja
- Eu fui respirar um pouco de ar...
E demonstrando que o final daquela frase pouco
importava, Guma a surpreendeu com um beijo feroz.
Não! Ele não podia simplesmente dizer a Raja que ela
deveria ir embora. Não agora após tantos anos de solidão, depois
de tantas mulheres, tantas guerras, tanto ódio não declarado,
tantos quilômetros longe de Afar, justo agora que seu corpo
havia encontrado uma casa, pois era como ele se sentia enquanto
suas peles se tocavam, e seus olhos fechados enxergavam quem
ele realmente queria ver. E por mais que ele achasse justo com
Zaila não alimentar aquele sentimento, por mais que desejasse
satisfazê-la ao menos nisso, não podia. Guma estava apaixonado
pela estrangeira.
E fora dessa forma que ela tornou-se sua amante.
Passado poucas semanas, Zaila constatou que o marido não
cumpriu com a sua palavra, e de certa forma, por mais que
alguma tristeza lhe batesse à porta, a jovem esposa continuou
suas tarefas e obrigações jamais voltando a tocar no assunto.
Zaila era realmente uma excelente esposa, além disso, alguém
que já havia entendido que tudo na vida é transitório, e que pelos
motivos que ela confiava não precisar saber, aceitava
resignadamente as dores e desafios que lhe cabiam enfrentar no
matrimônio, naquela atual encarnação.
64
Não foi por esse motivo que o riso lhe faltou. De uma
família religiosa, seguia os ritos diários da fé, do jejum, e da
reza, todavia descobrira que para falar com seu Deus, não
necessitava de cerimônias, nem mesmo palavras ou
pensamentos, bastava fechar os olhos e pensar Nele. Assim, ela
sabia que seu coração era ouvido, e como de imediato, podia
sentir como uma sutil garoa, o que era visto no mundo do éter,
como um chuvisco de luz, cair sobre ela e lhe acalentar o
coração sofrido. O que ela não sabia, é que irmãos do mundo
espiritual, especialmente familiares de outras vidas, lançavam
sobre ela, fluidos para lhe abastecer as forças psíquicas, sendo
desta forma, possível a perseverança no resgate com as faltas
cometidas em vidas pretéritas.
Musa preparou uma caravana para longa jornada.
Desejava viajar para esquecer a amargura que arruinava seu
casamento. Sunieri não quis lhe acompanhar, ele não insistiu,
haja vista que os dois praticamente não se falavam mais. Guma
precisava ficar, em poucas semanas estaria de volta às fronteiras
onde os exércitos do Mali conquistavam territórios. Mas Musa
não podia esperar mais, não parecia tão divertido passar as
noites na companhia de tantas beldades, as práticas de luxúria
não lhe alimentavam o sentido da existência, a vida perdia aos
poucos seu significado, uma vez que tudo que se habituara a
fazer, não lhe supria as expectativas da alma que era impelida ao
progresso. Era preciso esquecer e partir. Talvez dessa forma,
Sunieri voltasse a ser a esposa de antes. Talvez ele voltasse a ser
o marido que sempre fora. Talvez eles superassem a frustração e
a raiva.
65
Sem prazo para o seu retorno, Musa embarcou no que
esperava ser uma grande aventura. Beirando às margens do rio,
o comboio, em sua maior parte composto pela guarda real,
visitava as províncias e hospedava-se no palácio do Kelé-Tigui,
general chefe. Passando por Djenné, Macina e Kabara, o jovem
imperador, famoso por suas intermináveis noites de prazer e
luxúria, surpreendia seus anfitriões quando em momentos
agradáveis após a última refeição, apenas exilava-se no retiro de
seu quarto.
Musa era belo, tinha um olhar vívido, qual transmitia
toda sua sagacidade e energia enquanto imperador, todavia o
que encantava as moças não era simplesmente o título que
carregava, mas também o alegre sorriso com dentes perfeitos
que possuía o poder de emitir aquilo que havia de melhor em si.
Quando ele sorria, era como se um menino o fizesse. Apesar de
seu milenar espírito ainda permanecer submerso às frivolidades
da vida, estava ele envidado na ordem de se aprimorar a alma
transgressora, e tosar as daninhas de sua consciência imortal.
Sentia no fundo de seu coração que algo precisava mudar, mas
permanecia de certa forma desorientado pela vantajosa posição
que ocupava, qual lhe fora propositalmente concedida nos
planos do mundo espiritual, no desafio maior dele vencer as
verdadeiras dificuldades morais das facilidades cotidianas
proporcionadas na carne pelo seu cargo.
Após alguns longos meses na peregrinação em busca
daquilo em que inconscientemente clamava, chegou à cidade de
Tombuctu, sendo Sosso quem o recebeu com grande estima.
66
Desde a partida de Guma, aqueles dez anos haviam
passado para Sosso, Tuma, Budja, Farrima e Farrad, passaram
também para Somayaji, Taija, Dana e Suri. Até mesmo para
Hanaman e Goé, pais de Guma, que seguiram com devoção no
trabalho de servirem ao general. Mas Afar ainda estava lá, na
beira do rio, de braços abertos e olhos fechados, quase podia
sentir os braços de Guma lhe envolverem, e junto a ela sua
lembrança se despedia da estrela maior, pensava ainda que onde
ele estivesse também estaria sob a luz do astro rei, e talvez
pensasse nela com o mesmo carinho.
Zânia, jovem criança de apenas cinco anos, se aproximou
da bela e lhe chamou com puxões na saia.
Zânia
- Já podemos ir?
Afar baixou-se até ela;
- Por que está com tanta pressa, querida? Sempre pede para
ficarmos mais um pouco.
Zânia
- O vovô disse que o Mansa poderia estar chegando hoje.
Afar segurou em uma das pequenas mãos da menina;
- E você está ansiosa para conhecê-lo?
Zânia sorriu e respondeu entusiasmada;
- Sim! Você não?
67
Afar suspirou;
- Ah, querida! Faz muitos anos que não me sinto entusiasmada
dessa forma. Mas quem sabe eu possa ao menos sentir alguma
alegria.
No palácio de Sosso, a agitação era evidente. Criados e
escravos se confundiam em uma correria que já se podia esperar,
além, mais crianças brincavam no jardim principal. Afar chegou
com seu aparente desinteresse pelo fato de possivelmente o
Mansa já se encontrar na cidade. Zânia correu até Somayaji que
observava as crianças.
Zânia
- Mamãe! Mamãe! Ele chegou?
Somayaji abraçou a filha;
- Ah! Querida! Aonde vocês foram?! Eu já estava ficando
preocupada, Afar!
Afar
- Não entendo por que ainda se preocupa, sabe que sempre
chegamos um pouco mais tarde.
Somayaji
- Quem sabe quando você tiver seus próprios filhos, me
entenderá.
Afar falou para si mesma;
- É. Quem sabe?!
68
Sosso adentrou ao jardim cercado por guardas, as esposas e as
outras filhas lhe acompanhavam. Musa já havia sido apresentado
a todos, e agora conhecia a residência. Como Afar chegara tarde
de sua caminhada, era a única que não o tinha visto. Em gesto
respeitoso, abaixou a cabeça assim que percebera que o
imperador estava cinco passos a sua frente.
Sosso
- Esta é minha quarta filha, Afar.
Musa a encarou com seu semblante descontraído;
- A atrasada?
Afar
- Perdoe-me, mas... Atrasada para quê?
Musa sorriu;
- Para a minha chegada.
Sosso
- Eu disse ao mansa que havia desejado reunir toda a família em
sua chegada, mas não fora possível porque você sempre chega
horas depois do que promete voltar da sua caminhada até o
níger.
Afar
- Desculpe, não imaginei que fariam disso um evento.
Certamente...
69
Musa a interrompeu;
- Certamente se equivocou. A visita de seu imperador sempre
será um evento, onde quer que ele vá.
Sosso
- É provável que sim. (Afar e Musa continuaram a se encarar).
Por este motivo preparamos um grande jantar em homenagem a
sua vinda.
Musa olhou para Sosso;
- Sim! Contudo, não creio que o senhor ficaria chateado se eu
me retirasse para um breve descanso antes das festividades, a
viagem tem sido estarrecedora, e como não ficaremos mais de
dois ou três dias, devo aproveitar para recuperar as forças.
Ficaria satisfeito se pudesse assim, solicitar que uma das servas
me conduzisse até meus aposentos.
Sosso
- É perfeitamente compreensível. Mas sei que Afar ficará feliz
em levá-lo até a suíte da ala norte.
Afar
- Eu? Mas...
Sosso a interrompeu;
- Tenho certeza que para ela será um prazer poder servi-lo.
Aquele corredor parecia muito mais longo que
habitualmente, apesar de Afar raramente passar pela ala norte do
palácio, porém, o silêncio enquanto andavam fazia parecer uma
eternidade a chegada até o suntuoso cômodo que seu pai havia
70
mandado preparar para a estadia do mansa. Chegado à porta, os
guardas foram liberados por Musa, e ficaram apenas ele e a
quarta filha.
Afar fora abrir as janelas;
- Bom... Desse quarto não ficará difícil ouvir os gritos e rizadas
das crianças. Minhas irmãs tiveram muitos filhos, então se não
quiser ser perturbado, aconselho que peça a uma das escravas
para fechar as janelas se sentir algum incomodo.
Musa
- E seus filhos?
Afar se retirava quando a pergunta de Musa a impeliu;
- Senhor?
Musa
- Você disse que suas irmãs tiveram muitos filhos, e os seus?
Afar mostrou-se desconfortável;
- Eu não me casei, consequentemente não tenho filhos.
Musa
- É inacreditável que uma moça tão bonita ainda não tenha
recebido ofertas.
Afar
- Pois é! Talvez por esse motivo meu estimado pai tenha me
mandado aqui para fazer o trabalho de uma serviçal. (Afar
caminhou até a porta).
71
Musa
- Aonde vai?
Afar se virou para ele;
- Irei retomar a minha vida, se permitir.
Musa pegou um cacho de uvas que tinha na mesa e começou a
comer;
- Não.
Afar
- Como?
Musa
- Eu não permito. (Afar cruzou os braços). Eu não sou o
imperador? Acho que por esse simples e ridículo motivo você é
obrigada a me obedecer. (Ele sorriu).
Afar deixava transparecer sua irritação;
- Ao menos reconhece que é ridículo.
Musa
- Eu também poderia mandar prendê-la por isso, mas como
incrivelmente fiquei de bom humor desde o momento em que
pisei no jardim do seu pai, vou relevar.
Afar
- Não creio que por eu não possuir um marido, e ter um pai que
não mede seus esforços para me oferecer ao imperador, o senhor
deva acreditar que sou como as mulheres que o cercam em
Niani.
72
Musa colocou o cacho de uvas sobre a mesa e a encarou;
- Em momento nenhum eu a tratei como se fosse.
Afar
- Então creio que já posso me retirar?
Musa
- Pelo visto, as notícias de Niani chegam até aqui.
Afar
- Pelo visto, com perfeita clareza.
Musa
- Está bem, já pode ir. (Afar ia se virar). Não me incomodam.
Afar
- O quê?
Musa
- As crianças. Elas não me incomodam, só me alegram. Já que
não posso ter as minhas me distraio com elas.
Afar sorriu brandamente;
- Então aproveite sua estadia, alteza. (Afar fechou a porta).
Farrima conversava com Sosso em seu gabinete quando
a filha entrou sem bater.
Afar
- Não acredito que fez isso comigo?
73
Sosso
- Ah! Por favor! Você também?!
Farrima
- Não se desgaste Afar, eu já estou repreendendo seu pai pela
atitude mesquinha que teve.
Sosso
- Não foi uma atitude mesquinha! Musa gostou de Afar! Eu
pude ver assim’ que seus olhos a viram!
Afar
- Papai! Como o senhor pode fazer isso comigo? Como pode me
oferecer assim, como se eu fosse um embuste na família?
Sosso
- Muito pelo contrário. Por eu saber de sua grandeza, beleza e
simpatia é que resolvi ajudá-la.
Afar
- Ajudar? Ajudar-me em quê? Em parecer uma desesperada.
(Houve silêncio).
Sosso
- Afar, minha querida. Sabemos que já passou da hora de você
escolher um marido. Eu pensei que com a vinda do mansa,
talvez se ele se apaixonasse por você. Sem dúvida está
interessado, todos perceberam como seus olhos se iluminaram
ao te ver no jardim.
74
Afar
- Isso sim é ridículo! Todos sabemos como o imperador conduz
sua vida amorosa.
Farrima
- Neste caso, concordo com seu pai. Musa não viajou com a
esposa. Dizem que eles nem mesmo se falam mais. (Ela
aproximou-se da filha). Quem sabe se vocês ficassem amigos,
talvez você finalmente se apaixonasse por alguém.
Afar abismou-se;
- Mamãe! Até mesmo a senhora sabe que o imperador é um
homem de relacionamentos superficiais. Eu jamais poderia me
apaixonar por alguém tão desprezível. Vocês dois falam como
se não soubessem da vida promiscua que ele leva dentro e fora
do seu palácio.
Sosso
- Como pode saber se não são apenas boatos? Niani fica longe
demais para que alguma notícia verdadeiramente chegue aqui.
Alguém bateu à porta e Sosso permitiu que a abrissem,
Musa entrou calmamente.
Sosso
- Mansa!? Há quanto tempo está aí?
Musa
- Desde o momento em que o senhor concluiu pelo meu olhar
que eu gostei da sua filha, Afar.
75
Sosso
- Eu peço des...
Musa o interrompeu;
- O que eu devo constatar que foi uma observação bem
arguciosa, uma vez que é verdade.
Farrima
- Nós não desejávamos falar tudo que fora dito. Afar só está
nervosa com tudo isso. Na verdade, não acreditamos nesses
absurdos que são espalhados sobre o senhor.
Musa
- Mas deveriam. É a mais pura verdade. Creio que eu realmente
seja um homem superficial, desprezível e promíscuo. Como
sabem, desde o meu nascimento as coisas me são facilmente
ofertadas. Assim como o general fizera com Afar. E sei que não
poderia ser de outra maneira, eu me deixei levar por todo esse
universo de facilidades, festejos e belas mulheres. Ah! Sim! Se
eu possuo uma fraqueza, essa sem dúvida nenhuma é uma delas.
Todavia, creio que não devam saber a verdadeira razão de eu
fazer uma viagem tão longa. É que estranhamente nos últimos
meses, nada dessa maravilhosa vida como imperador, nem as
festas, as facilidades, ou as lindas mulheres que posso ter
quando e como quiser, tem me intrigado o suficiente para que a
felicidade permaneça em mim. (Seu olhar ficou vago). Nem
mesmo meu casamento, matrimônio este que concordei por livre
e espontânea vontade, consegue me convencer da alegria que eu
deveria sentir por ser tão abençoado. Sunieri não pode ter filhos,
e talvez... Digo, certamente, nossa relação está limitada as doces
satisfações que meu poder pode realizar, contudo, ter uma
76
criança, esse poder eu não tenho. E talvez tenha sido esse ponto
que fez com que primeiramente eu tenha sentido muita raiva de
tudo, eu só não sabia que sentia tanta raiva. Por ser fútil, sempre
achei que bastava eu querer para ter. Agora percebo que existem
porquês que não podem ser respondidos, simplesmente porque
não compreenderíamos a resposta. De qualquer forma,
finalmente estou a conhecer Tombuctu. (Musa olhou para Afar).
E reservo-me na esperança de um futuro melhor, onde sei que
poderei ser um homem melhor. Por hora, só vim pedir um
mensageiro. Keita, que viaja conosco está doente e não desejo
sobrecarregá-lo com a estrada, senão poderá correr o risco de
nem mesmo chegar ao destino.
Sosso
- Sim, é claro! Irei fazer com que providenciem.
Musa retornou aos seus aposentos, sentiu-se bem depois
de todo aquele discurso, qual mesmo fora um desabafo. Coisa
que raramente fazia era falar de si mesmo para estranhos, porém,
por algum motivo ficou confortável naquela sala entre aquelas
pessoas. Não estava determinado em conquistar Afar, apenas
não podia deixar de assumir que a beleza da moça chamara sua
atenção, mas ele sabia que este não era mais o seu objetivo.
Após aquele constrangedor momento no gabinete de seu
pai, Afar reavaliou seus julgamentos sobre o mansa. Quem sabe
os boatos fossem realmente fantasias da imaginação popular,
pois, aquele homem que ali estava não parecia ser tão superficial
e degenerado, aproximava-se mais de alguém que sofria muito e
que tentava enganar-se disso com as supérfluas distrações de sua
vida poderosa. Afar entendeu que Musa era apenas uma pessoa
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que estava perdida entre a estrada das ilusões e a do que ele
realmente desejava viver.
Os festejos seguiram com extrema alegria e exuberância,
toda a família de Sosso deveria estar presente, mas Afar deixara
de obedecer a seu pai havia muito tempo. Não pode deixar de
notar que algo a incomodava bem no centro do peito, um
desconforto que não permitia que organizasse seus pensamentos,
e ela pensava em Guma. Por algum motivo, ele voltara
fortemente do fundo de suas memórias para lhe assombrar. Por
muitos anos ela quis acreditar que o rapaz poderia reaparecer em
algum momento para levá-la para longe, onde pudessem viver
seu amor, e por este motivo Afar nunca se permitiu sequer
acreditar que poderia amar alguém novamente, pois o esperava.
Mas quando finalmente decidiu acreditar que nunca mais o
veria, que ele poderia verdadeiramente estar morto ou
escravizado, a jovem perdera o brilho que tinha em seu olhar, e
todos podiam ver que apesar da grande família que tinha, das
pessoas queridas que conhecia, ela estava mergulhada em sua
solidão. Seu pai acreditou que seria mais fácil fingir que não
percebia a tristeza da filha, e por sua vez, a bela menina
mantinha-se aparentemente normal, pois talvez nem mesmo ela
soubesse o quanto sofria.
Hanaman, a mãe de Guma, que continuara a prestar seus
serviços no palácio, entrou no quarto procurando por Afar, e a
avistou recostada sobre a janela com os olhos fixos no nada a
sua frente.
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Hanaman
- Menina Afar!? O que ainda faz aqui? Sua mãe mandou que eu
a chamasse. Todos estão comemorando a vinda do Mansa.
Afar olhou para a gentil serva;
- Hanaman, não estou para festejos essa noite.
Hanaman aproximou-se;
- Mas você está tão linda. Tenho certeza que o mansa ficará
admirado com tanta beleza. (Houve um silêncio).
Afar
- Você ainda pensa nele?
Hanaman percebeu que a menina falava de Guma, seus
olhos miraram o chão na tentativa de disfarçar a tristeza, o
sorriso murchou, mas seu semblante estava em paz. Ela se
aproximou calmamente com um pano que dobrava em sua mão.
Hanaman
- Todos os dias.
Afar
- E como faz para suportar? Você parece estar tão bem. Todos
estão bem, como se Guma nunca tivesse existido. Como se não
sentissem a falta dele.
Hanaman deu um leve sorriso;
- Mas eles não sentem. Apenas nós que o amamos é que
sentimos, querida. A única coisa que posso fazer é continuar
vivendo. Sei que Guma não gostaria de me ver triste. Também
79
sei que ele a amava o suficiente para não querer que você
deixasse de tentar ser feliz.
Afar
- Sim, é verdade, mas não posso evitar. Tenho passado todos
esses anos tentando esquecê-lo, mas não consigo. Quando passo
pelos corredores lembro-me de como corríamos brincando de
pega. Quando vou ao rio, quando passeio pelas ruas, quando
estou nos jardins... Ele está em todos os lugares desta maldita
cidade! E por mais que não esteja aqui, ele ainda está comigo,
está em mim! É insuportável porque estou tentando viver sem
ele, mas não posso, porque ele vive em mim.
Hanaman
- Então por que não desiste de tentar esquecê-lo e simplesmente
lembre-se dele sem o sofrimento de terem sido separados?
Afar
- Eu não consigo! Não consigo parar de sentir raiva por ele não
ter lutado por nós dois!
Hanaman
- Mas como ele faria isso, querida? Guma era só um rapaz, sem
casta, sem condições de te proporcionar o que você passou a
vida inteira tendo.
Afar
- Eu poderia eternamente viver na miséria ao lado dele, e ainda
estaria feliz. Do que adianta tudo isso, se sou infeliz?
80
Hanaman sorriu;
- Ah, Afar! Você ainda é tão romântica.
Afar
- De qualquer forma, estou cansada. Cansada de amá-lo e de
odiá-lo. Cansada do meu pai e deste lugar infernal. Cansada de
ainda esperar, de ainda ter esperanças. Eu só queria poder
esquecer tudo isso.
Hanaman
- Eu creio que chegou o momento que você deve se permitir
ouvir o seu coração. Não tem problema se apaixonar por outra
pessoa, sei que Guma iria querer que você fosse amada e que se
permitisse ser feliz.
Afar encarou a leal amiga e lágrimas escorreram de seus olhos;
- Eu sei! Só não quero que ele suma da minha memória! Sei que
sempre irei amá-lo, mas não posso continuar assim! Sinto como
se estivesse morrendo! Não sei o que fazer!
Hanaman a abraçou;
- Querida, isso você terá que descobrir sozinha. Guma estará
sempre em nossos corações, e sempre estaremos no dele onde
quer que ele esteja, mas você deve seguir com a sua vida, e se a
felicidade está tão perto, não permita que ela se vá novamente.
Não tem problema em você ser feliz com outra pessoa.
Afar enxugou as lágrimas;
- Está bem. Você está certa.
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Afar secou o rosto banhado de lágrimas, e ao cruzar
aquelas portas, sentiu-se aliviada, estava determinada em seguir
com a vida após tanto tempo. Quando adentrou ao salão onde
era celebrada a vinda do mansa, seus olhos se encontraram com
os dele, ela sorriu discretamente, e Musa logo percebeu que algo
havia mudado.
O gigantesco cômodo estava perfeitamente ornamentado
para uma celebração tão importante. Sosso não mediu esforços
para ostentar sua riqueza e bom gosto. Chamara ele os melhores
músicos da região, e o perfeito e contagiante som dos
instrumentos que lembravam os atabaques, dominavam a
energia do local com alegria e agitação. As batidas ritmadas
fizeram com que Afar dançasse com seu querido pai e com mais
três bonitos homens, os quais respeitosamente demonstravam
sua fascinação por ela. Musa simplesmente a observava, não
conseguindo evitar que seus olhos reparassem em outra coisa
que não fosse os perfeitos movimentos que ela fazia com os
braços e todo o corpo. Inesperadamente ele se levantou no ritmo
daquela maravilhosa batida frenética e daquele canto harmônico,
e pôs-se a dançar indo até a jovem. Os dois se divertiram, e o
imperador pode então conhecer o belo sorriso de sua anfitriã.
Após alguns minutos, Afar gentilmente lhe pediu licença, pois
que precisava tomar um pouco de ar. Enquanto a jovem olhava
para as estrelas e se sentava no beiral da fonte de um dos belos
jardins, Musa aproximou-se intrigado.
Musa ofegante perguntou em tom descontraído:
- Pode me dizer onde foi parar a moça bonita, mal criada e
rabugenta que me acha um degenerado? (Ele se sentou ao lado
dela).
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Afar sorriu;
- Me desculpe por isso. Eu estava com raiva do meu pai.
Musa
- Parece ser um bom homem, que sabe como receber seu
imperador.
Afar
- É que há muito tempo não comemoramos nada desta forma.
Meu pai na verdade é um tanto conservador, contudo, tem se
esforçado para fazer as pazes comigo. E esta festa, talvez seja
mais para mim do que para o grande mansa!
Musa
- Seria indiscrição perguntar o que ele fez?
Afar respirou fundo;
- Não, mas não desejo mais falar sobre isso. Apenas é algo que
estou tentando deixar no passado. (Musa balançou a cabeça
demonstrando compreensão). Creio que tenho me enganado
sobre você, as coisas que disse mais cedo foram... Reveladoras.
Sinto muito por seu casamento.
Musa
- Eu também sinto. Mas também é algo que não desejo falar, não
esta noite sob as estrelas com você aqui ao meu lado e de bom
humor.
Afar sorriu e se levantou;
- Quer conhecer um lugar especial?
83
Musa também se levantou;
- Sim! Mas deverá ficar para depois. Amanhã bem cedo seu pai
irá me levar para visitar as fazendas de algodão e desejo estar
bem disposto.
Afar
- Está bem. Também irei me retirar. (Ela caminhou para trás).
Está ficando tarde.
Musa
- Ainda não aprendi o caminho até meus aposentos, preciso
chamar um servo para me ajudar.
Afar
- Posso ajudá-lo, se assim desejar. Meu quarto fica na ala em
frente a sua.
Musa
- Sem dúvida seria uma companhia mais agradável, mas temo
que possam pensar coisas impróprias. Não se preocupe, eu
mesmo chamarei um de meus servos.
Afar sorriu timidamente;
- Está bem. Tenha uma boa noite. (Musa a cumprimentou com
um aceno de cabeça).
Musa conseguiu achar o caminho até seu quarto, e ao
olhar pela janela, reparou que do outro lado uma luz iluminava
um cômodo, presumiu que aquele fosse o quarto de Afar. Não
sabia ele que se sentiria tão ansioso por ver alguma sombra que
lembrasse a jovem. Contudo, sabia que precisava domar seus
84
impulsos e emoções, para que assim não se precipitasse e
acabasse por cometer mais erros irreversíveis. Ele só não
conseguia evitar sentir todo aquele desejo de logo estar com
Afar novamente.
Como prometido por Sosso, após seus rituais religiosos,
bem cedo o imperador colocou-se a disposição para visitar as
plantações de algodão. O império Mali tornara-se rico e
suntuoso, principalmente por ser um importante centro
comercial, ampliando sua rede de poder e domínio sobre outros
reinos da África. Todavia, Musa se esforçava para focar seus
pensamentos em tudo que Sosso lhe dizia. Na volta para o
palácio o imperador não conseguia mais esconder sua
curiosidade.
Musa
- Ontem a noite, eu e Afar conversamos brevemente, e ela me
disse que vocês precisavam fazer as pazes. Fiquei curioso por
que um pai precisaria se desculpar com a sua própria filha.
Sosso
- Creio que esse seja um assunto um tanto íntimo e
demasiadamente complicado para falar assim, em um simples
passeio matinal. Mas sabendo que se interessa pelos assuntos de
Afar, devo revelar que minha filha fora muito apaixonada por
um rapaz, e logicamente ele fora por ela. Quando os dois vieram
a mim para revelar suas intensões de se unirem em matrimônio,
eu tive que ser contra e separá-los de uma vez por todas.
Musa
- Mas por qual motivo o senhor tomou essa decisão?
85
Sosso
- O rapaz não tinha casta. Era simplesmente filho de um casal de
servos que trabalham para mim. Cometi o erro de permitir que
ele crescesse junto a Afar, e os dois se apaixonaram ainda
quando eram apenas duas crianças.
Musa
- Entendo.
Sosso
- Mas deve ficar surpreso se eu disser que já se passaram dez
anos.
Musa
- E Afar nunca o perdoou?
Sosso
- Não, até ontem.
Musa
- Explique-se.
Sosso
- Afar não dançava e sorria como ontem, desde seus dezesseis
anos, que fora quando eu os separei. Mas parece que sua vinda
mudou alguma coisa. Talvez ela tenha me perdoado
simplesmente.
86
Musa
- Sinceramente espero poder ajudar de alguma forma. Afar é tão
jovem quanto eu, e creio que talvez eu possa compreendê-la,
mesmo sem saber verdadeiramente o que ela sente.
Sosso
- É uma pena que não ficará conosco por mais tempo. Quem
sabe poderiam se conhecer melhor.
Musa
- Poderia estender minha permanência em Tombuctu por mais
uma semana. Niani está sendo bem administrada, e não exige
minha presença.
Sosso
- Será um prazer tê-lo conosco o tempo que precisar.
Ao retornarem, Musa sentiu a ligeira vontade de
caminhar entre os harmoniosos jardins da residência. Dentro
daquele centro familiar, havia silêncio, pensou ele que talvez as
crianças ainda estivessem dormindo, pois que era possível ouvir
o canto dos pequenos pássaros. Uma brisa lhe acariciou a pele
trazendo o doce aroma das flores, e logo avistou Afar, que
aparentemente fazia o mesmo que ele. Ela sorriu ao vê-lo
distante, e ambos se aproximaram.
Afar
- Como foi a visita às fazendas?
87
Musa respondeu sorridente;
- Mais interessante do que eu pude imaginar que seria. Na
verdade, o general concorda comigo que devo precisar ficar por
mais uma semana em Tombuctu. Há muitas coisas que eu
gostaria que ele me pusesse à par.
Afar sorriu;
- Isso seria muito bom.
Musa
- Na verdade, espero que possamos nos conhecer melhor durante
esse tempo. Pensei que talvez agora queira me mostrar o lugar
especial do qual falou na noite passada.
Afar
- Ficarei feliz em fazer, mas devo dizer que ele se torna especial
em determinado horário, justamente quando o sol está caindo e
as estrelas começando a aparecer.
Musa
- Então podemos combinar de nos encontrarmos aqui, e assim
poderá me levar até lá no momento certo.
Afar
- Está bem.
Musa precisou analisar alguns documentos naquele dia,
mas não parava de pensar no momento em que voltaria a ver
Afar, indo muitas vezes à janela verificar a posição do sol. Sua
viagem era apenas como uma expedição, mas não podia fugir
das obrigações que tinha enquanto mansa. Finalmente ele a
88
encontrou, e se surpreendia por achar que cada vez que a via ela
parecia ainda mais bonita. Afar o levou até a beira do niger, e
lhe apresentou a beleza que seus olhos viam, uma vez que o
imperador já bem conhecia toda aquela paisagem, mas não
como os olhos de Afar enxergavam. Ela lhe falou sobre o céu
alaranjado, a magia do sol, e o encantamento das estrelas. O fez
reparar em como a abóboda celeste se fundia ao flúmen
tornando-se um só painel, o qual a fazia se sentir tão pequena
naquele mundo que era só seu, ao menos por aqueles minutos.
Discursou ainda, com encantamento e beleza, sobre os espíritos
do rio e da natureza, crença essa que aprendera quando criança
quando brincando de esconder, ouvia alguns dos escravos
conversando e rezando para aquelas entidades.
Musa estava apaixonado, as palavras de Afar fluíam com
tanta naturalidade, seus lábios se mexiam em perfeitos
movimentos como se dançassem uma valsa. A voz melodiosa e
feminina lhe despertava uma sensação de aconchego e
intimidade, todavia, a antes odiosa jovem, revelava-se uma
criatura doce e divertida. E quase sem perceber, eles
conversaram por horas sobre os mais diversos assuntos, e riram
de suas próprias bobagens e dos assuntos mais tolos. Por um
breve momento, Guma retornara às lembranças de Afar, e seu
semblante enrijeceu, Musa não pode deixar de reparar.
Musa
- Está pensando em alguém?
Afar fitou o horizonte;
- Apenas me veio à lembrança um velho amigo. É que
costumávamos fazer exatamente isso.
89
Musa
- Sinto muito se eu a entristeci.
Afar aproximou-se dele;
- Não! De maneira nenhuma. É que há muitos anos que não me
sinto como estou me sentindo agora.
Musa
- E como está se sentindo?
Afar sorriu timidamente;
- Feliz.
Musa retribuiu ao sorriso;
- Fico aliviado em saber. Também não me sinto assim há
bastante tempo. Na verdade acho que eu nunca havia
experimentado esse tipo de sensação antes. (Ele se aproximou
dela). E confesso que te daria um beijo agora mesmo se não
acreditasse que você fosse me achar um aproveitador
degenerado.
Afar fitou aqueles olhos que transbordavam alegria e se
aproximou calmamente, possibilitando que seu corpo ficasse
bem próximo ao de Musa, todavia era possível perceber seu
nervosismo pela respiração que tentava controlar.
Afar
- Talvez se eu o beijasse não correríamos esse risco.
Musa sorriu;
- Certamente que não.
90
Lentamente ela aproximou seus lábios do dele, e os uniu
em um longo beijo. Musa esforçava-se para se controlar, mas
em certo ponto, ele se esqueceu de quem era. Seus pensamentos
rodopiavam e todos os seus sentidos voltaram-se para o toque na
pele dela.
Naquela noite, eles retornaram ao palácio de Sosso e
cearam com toda a família que podia perceber os olhares que
trocavam.
No final daquela semana Musa precisava voltar aos
planos da viagem, todavia, as noites de namoro com Afar à beira
do niger lhe fizeram decidir por passar o resto do mês, e quando
o final daquele mês mostrou-se presente, o imperador mandou
breve missiva a Niani informando sobre a necessidade
administrativa de se permanecer na cidade de Tombuctu. Após
quatro meses de sua ausência na cidade imperial, Axar, seu
conselheiro e amigo íntimo, lhe respondeu a última missiva
informando que ele não deveria se ausentar por tanto tempo, e
que rumores já se espalhavam pelas ruas de Niani. Musa
somente respondeu dois meses depois, dizendo que confiava no
corpo suplementar que deixara em sua falta, e que Guma poderia
tomar as decisões que lhe coubessem, uma vez que estava frente
aos exércitos e era do seu círculo de pessoas que mais confiava.
Axar não se contentou com o descaso do mansa, escreveu-lhe
uma carta com insinuações de que muitas coisas aconteciam na
sua ausência, e que acreditava que o imperador deveria escolher
alguém mais imparcial para lhe substituir nas responsáveis
decisões imediatistas que se necessitava tomar, dizendo ainda,
que não deveria incumbir tarefas de alta responsabilidade, por
mera simpatia e predileções. A vaidade de Musa fora afetada por
aquelas palavras, e tão logo respondeu com outra carta dizendo
91
que o conselheiro devia escolher melhor suas palavras para com
o seu soberano. Disse ainda que se fosse se preocupar com os
boatos sobre sua vida, certamente não poderia ser aquele que
chamam por mansa, pois que seu cargo lhe permitia tomar as
decisões que ele compreendesse e acreditasse serem melhor para
o povo e para o império, no mais, exigiu que não o
contestassem, e que suas ordens fossem cumpridas sem
queixumes e ciúmes tolos.
Por onze meses Musa permaneceu em Tombuctu, e no
décimo segundo mês, após Axar continuar lhe enviando
missivas exigindo sua presença, Musa se casou com Afar,
tornando-a sua segunda esposa em uma belíssima celebração na
mesquita que Sosso havia mandado construir. E para não haver
drama, informou por carta que estava a possuir uma segunda
legítima esposa, e que esta informação deveria ser divulgada a
todos da cidade imperial, até mesmo para a imperatriz, qual
deveria receber sua nova companheira com estima e respeito.
Era certo que o imperador necessitava retornar para Niani, haja
vista que estava consciente de ter extrapolado o tempo de sua
ausência. Então, no décimo terceiro mês, ele retornara à cidade
com sua mais nova esposa.
Afar nunca tinha feito uma viagem tão longa, só havia
conhecido Niani pelas pinturas que os artistas contratados por
seu pai, muitos deles árabes, retratavam em folhas de papiro
aquilo que suas memórias conseguiam lembrar. Quando avistou
a grandiosa cidade de construções monumentais e seus relevos,
sentiu o coração disparar. Niani era tão esplendorosa quanto os
minuciosos retratos pintados por aqueles talentosos homens. E
quando o comboio aproximou-se, o povo malinquê recebeu seu
92
mansa e sua nova esposa com alegria e festividade. Musa estava
feliz por voltar, mas o cansaço e as preocupações surgidas a
partir das missivas de Axar, fizeram com que ele dispensasse as
receptivas comemorações. E fora o conselheiro quem
primeiramente o recebeu no palácio imperial. De prontidão, o
imperador designou um corpo de escravas que serviriam a Afar,
e com um carinhoso beijo lhe informou que seria melhor que ela
descansasse em seus aposentos antes dele lhe apresentar a quem
cabia. Compreensiva, a jovem esposa o obedeceu, permitindo-se
ser levada para a parte do palácio que lhe serviria como casa,
composta por uma majestosa sala de estar, duas deslumbrantes
varandas, uma lauta sala de banho, e uma deslumbrante suíte.
Guma encontrou Musa no caminho até a sala do trono,
deram um longo e forte abraço seguido da euforia de se
reencontrarem após tanto tempo. Mas não fora possível
abordarem nenhum outro assunto, assim que as portas do
cômodo real se abriram, Musa avistou Sunieri sentada em seu
acento ao lado do trono, estava belíssima como nunca deixara de
estar, e em seus braços segurava um bebê que aparentava seus
onze meses. O imperador pode perceber o nervosismo da
primeira esposa que lhe olhava fixamente aguardando qualquer
reação de sua parte, mas Musa não sabia o que pensar.
Rapidamente fez os cálculos do tempo que passara fora,
lembrando-se de que mesmo antes de viajar, ele e Sunieri já não
se encontravam em momentos íntimos. O silêncio o perturbou, e
houve um minuto em que ele olhou para Axar mostrando que só
agora compreendia sua preocupação. Em seguida virou-se para
Guma que estava do lado oposto do conselheiro, mas o
comandante abaixou a cabeça.
93
Musa
- O que está acontecendo aqui?
Sunieri se levantou com a criança nos braços;
- Olá, querido! Viemos te dar as boas vindas!
Musa se aproximou;
- Isso é alguma brincadeira de mau gosto?
Axar
- Antes fosse, senhor.
Sunieri
- Não há nenhuma brincadeira, apenas eu e seu filho o
estávamos esperando. Eu expliquei a Axar que, enquanto
viajava pelas cidades vizinhas, nós nos encontrávamos nos
caminhos.
Musa franziu o sobrolho;
- Isso é ridículo! Eu... Eu não sei nem o que dizer Sunieri! Você
está louca? Essa criança jamais poderia ter sido concebida por
você.
Axar
- Devo informar senhor, que a imperatriz gestou a criança
durante o tempo devido, e consequentemente a concebeu através
do parto. Eu mesmo estava na sala.
94
Sunieri entregou a criança a uma escrava;
- O que comprova que o motivo de nossos tormentos, onde você
me culpava por não poder te dar um filho, estava errado. Sou
perfeitamente capaz de fazê-lo, sou uma esposa completa.
Musa ficava nervoso;
- Isso é um absurdo! Sabemos que esse filho não é meu!
Axar
- Nós quatro sabemos. O povo acredita que a imperatriz o
encontrava durante a viagem. Assegurei que Sunieri não
aparecesse em público quando desconfiei do ocorrido e o senhor
ignorou meus chamados.
Musa olhou para Guma e partiu para cima dele;
- Foi você?! Foi você, Guma?! Eu confiei em você! Confiei na
sua amizade?!
Sunieri gritou;
- Não foi o Guma!
Musa parou de empurrar o amigo que não revidara;
- Então quem foi?! Diga-me quem foi e ele morrerá ainda hoje
pelas minhas mãos!
Axar
- Foi um viajante, senhor.
Musa encarou novamente o amigo que olhava para baixo;
- Por que sinto que estão conspirando contra mim?
95
Guma
- Não existe conspiração, Musa. Apenas tentamos assegurar que
não se promovesse um escândalo onde o governo pudesse ser
abalado.
Musa
- E qual foi o seu real papel nisso?
Axar
- Sabendo que Guma era de sua inteira confiança, pedi a ele que
cassasse o culpado dessa traição. Sabia que o senhor desejaria
fazer justiça com as próprias mãos. Contudo, mesmo o
comandante esgotando seus esforços, não fora possível, o infeliz
escapou.
Sunieri aproximou-se de Musa;
- Veja pelo lado bom, querido. Agora seu reino pode dizer que
tem um herdeiro, e não sofrerá mais ameaças por causa disso.
Musa empurrou abruptamente a mão de Sunieri que lhe tocava
no braço;
- Não me toque! Eu não tenho um herdeiro! Esse filho não é
meu! E você será julgada por traição.
Sunieri
- E um escândalo irá se espalhar por todas as cidades do seu
império, e logo outros reinos saberão, e seus soberanos pensarão
que o Mansa é fraco e impotente, então eles acharão que podem
tomar o seu poder. Niani entrará em guerra...
96
Musa gritou;
- Chega! (Ele olhou para Guma).
Guma
- Sunieri tem razão. Todo nosso esforço foi para que justamente
a força e virilidade do Mansa não viesse cair em dúvida ou
descrédito. Não sabemos como isso pode repercutir.
Musa
- E o fato de eu ter me casado novamente? De ter uma linda e
maravilhosa esposa? Isso não conta? (Ele se virou para Sunieri).
Pois eu me livrarei de você e dessa criança bastarda ainda essa
semana, nem que eu a condene a viver aprisionada nas alas dos
escravos.
Axar
- O fato do senhor ter se casado novamente é muito positivo,
quanto mais esposas tiver mais sua força e virilidade são
reafirmadas. Mas o senhor esteve ausente por muito tempo, não
aconselho um escândalo ou qualquer suspeita nesse momento.
Estamos fragilizados e precisamos conquistar a tranquilidade do
povo.
Guma
- Ganhamos muitos territórios enquanto esteve fora, mas
também fomos atacados mais frequentemente.
Musa
- Mas isso é inacreditável! Estão me dizendo que essa mulher
me traiu, teve um filho de outro homem, e mesmo eu sendo seu
senhor não posso fazer nada para puni-la?
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Axar
- O senhor pode puni-la como desejar, só não podemos permitir
que o povo saiba e que a notícia se espalhe. Na verdade, todos
acreditam que o filho é seu, pois a Imperatriz veiculou a notícia
o quanto antes.
Musa caminhou de um lado para o outro, passou um das
mãos sobre a testa que fervilhava em mil pensamentos confusos
de vingança e ódio. O velho homem que ainda o habitava, não
conseguia se controlar mediante tal provação. Ele queria segurar
o pescoço de Sunieri e apertar até que ela parasse de respirar.
Musa
- Se descobrirem que tudo isso aconteceu e eu não fiz nada, serei
visto como fraco da mesma maneira.
Axar
- Eu posso assegurar que ninguém além de nós, sabe a verdade.
Para todos os efeitos, o senhor e a imperatriz receberam a graça
de Alá. O povo está feliz.
Musa caminhou até Sunieri;
- Eu vou te odiar pelo resto da minha vida por isso. Não por ser
a mulher imunda que me traiu com um forasteiro, mas por não
poder te matar.
Lágrimas caíram do rosto da jovem mãe. Sunieri sabia
que a partir daquele dia, não receberia as regalias das quais
estava acostumada, viveria como imperatriz para o povo, mas
como um fantasma para seu marido, se havia alguma esperança
em voltarem a se amar como antes, seu erro arruinara tudo. Ela
98
se retirou da sala sem mais nada dizer. Musa sentou-se em seu
trono, os olhos guardavam rancor e certa suspeita. A história que
Axar contava e Guma reafirmava não lhe parecia tão
contundente.
Fora quase em seguida que as portas se abriram para
Afar, que fora conduzida por uma serva até onde Musa se
encontrava. Ela entrou sorridente, com seu semblante reluzente
e entusiasmado, precipitava-se em dizer algo insinuando que não
estava cansada e que desejava que Musa lhe mostrasse o
encantador palácio, porém, logo seu semblante mudou e a face
endureceu, o coração disparou fazendo com que a forte
adrenalina tomasse todo o seu corpo, possibilitando que ela
sentisse algo como um grande choque sobre seus nervos.
Percebera ela que o forte homem que estava de pé ao lado de
Musa era em demasia muito parecido com as lembranças que
tinha de Guma. E ao encará-lo e perceber em seus olhos tanta
surpresa e espanto quanto ela, pode quase afirmar que via o
fantasma do seu velho amor, bem ali, na sua frente.
Musa percebeu que a esposa cambaleou e logo se
prontificou em ir ampará-la.
Musa
- Afar! Mas o que houve?
Afar tentou tirar os olhos do comandante;
- Eu não sei! Talvez eu esteja realmente muito cansada e não
tenha percebido. Creio mesmo que estou até vendo coisas.
99
Musa a conduziu para apresentá-la;
- Agora que está aqui, desejo que conheça Axar, meu
conselheiro mais confiável.
Axar a cumprimentou devidamente;
- Senhora.
Musa
- E este é Guma, nosso comandante, e também um grande amigo
meu.
No instante em que Afar ouviu o nome de Guma, ela
teve absoluta certeza que era ele quem realmente estava ali, a
menos de dois passos dela. Ele, quem a jovem tanto procurou,
tanto esperou, e tanto sofreu por pensar estar morto. Guma não
conseguia falar, fez respeitoso gesto com a cabeça, seus olhos
reconheceram os olhos de Afar, e ela pode perceber que ele
também sabia quem era ela.
Axar
- Com devido respeito, o Mansa não nos contou que estava a se
casar com uma beldade das margens do niger.
Afar pronunciou sem pensar;
- Tombuctu! Meu pai, o general Sosso, governa a província.
Musa sorriu;
- Pois quem diria que tão longe de casa eu acharia uma gema tão
preciosa como Afar. Ela iluminou minhas noites com o sol que
brilha em seu coração. Agora você entende porque tive que me
100
ausentar por tanto tempo. Não podia eu voltar sem minha Afar.
(Ele passou o braço por sua cintura). Mas o que veio mesmo me
dizer?
Afar
- Não se preocupe, posso pedir para que um escravo me
apresente o palácio. Ele é tão colossal que creio ser mesmo
demorado o passeio.
Musa
- Sinto não poder satisfazê-la nesse momento, mas é que cheguei
e já me cercam grandes problemas para pensar e resolver com
Axar. Talvez Guma possa lhe apresentar, ele conhece este lugar
como ninguém.
Guma
- Não! Não posso! (Musa estranhou a negativa do amigo). É que
Zaila me espera com as crianças e...
Afar
- Zaila? Que nome bonito.
Musa
- Ah! Sim! Vocês irão se conhecer em breve! Zaila é esposa de
Guma e tenho certeza que poderão ser amigas.
Afar esforçava-se para sorrir;
- E o senhor tem filhos?
Guma respondeu sem conseguir encará-la nos olhos;
- Sim. Tenho dois. Uma menina e um menino.
101
Afar
- Em breve espero poder ter os meus também. (Ela aproximou-
se de Musa). Digo, os nossos.
Musa
- Tenho certeza que Alá não nos furtará de tal felicidade.
Afar
- Foi um prazer conhecê-los. Talvez seja melhor que a visita seja
feita outra hora... (Ela virou-se para Musa). Quando finalmente
puder me acompanhar. Sei que com nenhuma outra pessoa será
tão agradável quanto passar o meu tempo com você.
Guma pareceu mudar de ideia, talvez fosse melhor
esclarecer logo as coisas para Afar. Explicar por que ele nunca a
procurou, os motivos que o levaram a se manter longe de
Tombuctu, mesmo após sua ascensão. Dizer que jamais teria se
casado com outra sabendo que Afar ainda poderia ser sua.
Guma
- Então, talvez eu possa levá-la até seus aposentos.
Afar
- Tenho certeza que estou segura. Gambini, minha serva, poderá
me conduzir.
Musa
- Afar tem o ligeiro costume de ser um tanto rebelde com
desconhecidos. Eu mesmo levei um tempo para lhe conquistar a
confiança. (Ele virou-se para ela). Sei que pode permitir que
102
Guma demonstre sua estima servindo-a como seu guia neste
momento.
Afar deu um ligeiro sorriso;
- Como meu marido quiser.
Guma pôs-se a andar na frente. Afar observou seu
caminhar, o mesmo de anos atrás do jovial menino que ela
seguia por todos os cantos onde quer que ele fosse. Não sabia o
porquê mais estava enfurecida, esforçando-se ao máximo para
não gritar e bater naquele homem, que agora se fazia ainda mais
belo que antes. E ao chegarem nos aposentos da segunda esposa,
Guma tomou a ousada atitude de permitir que Afar entrasse,
entrando com ela em seguida e fechando a porta. Afar só
conseguiu se virar com todo ódio que sentia e mesmo sem
querer e nem perceber, havia lágrimas no seu rosto.
Afar
- Eu te odeio! Odeio! Odeio tanto! Não acredito que esperei todo
esse tempo, Guma!
Guma aproximou-se dela e lhe segurou os braços que tentavam
bater nele;
- Eu posso explicar, Afar! Me deixe explicar! Pare de tentar me
bater, é inútil! Temos pouco tempo!
Afar se afastou desvencilhando-se de suas mãos abruptamente,
o ar lhe faltava;
- Eu não quero ouvir nada! Não agora, depois de todos esses
anos!
103
Guma tentava manter-se calmo;
- Mas você precisa saber.
Afar parou e o encarou;
- Saber o quê? Que foi fácil pra você me esquecer e se casar com
outra? Você teve filhos!!! Filhos, Guma!!!
Guma se aproximou;
- Fale baixo! Musa não sabe de nada. Nunca contei sobre você
pra ninguém, e percebo que não contou de mim.
Afar acalmava-se;
- Não o suficiente.
Guma
- Seu pai me mandou para cá...
Afar
- Eu sei da culpa do meu pai, mas também sei que você não
lutou por nós. Agora entendo por quê?
Guma
- Eu não planejei nada disso! Fui mandado para cá para servir
senhores de menor poder que eu atualmente possuo.
Praticamente fui forçado a me casar para que me firmasse como
homem livre, onde não preciso obedecer ninguém além de
Musa, mesmo porque é mais a sua amizade que me reserva tal
poder que qualquer outro motivo. Mas sou livre e aprisionado ao
mesmo tempo, porque nunca deixei de te amar, mesmo quando
tentava te esquecer.
104
Afar
- Deve ser um verdadeiro sofrimento, por isso teve dois filhos.
Guma
- Deveria me entender, está casada com Musa.
Afar irritou-se novamente;
- Ah! Não ouse! Eu desperdicei todos esses anos da minha vida
esperando que você voltasse e me levasse com você. Eu ia todas
as tardes ao níger pedir aos espíritos do rio que trouxessem você
de volta pra mim. Eu chorei noites e dias inteiros acreditando
que você estava morto, e por fim, tornei-me uma mulher amarga
e odienta que nunca se permitiu amar outra pessoa além de você.
Guma falou após longo silêncio;
- Parece que agora, você e Musa... Você o ama? Porque para
mim o que importa é que você esteja feliz, como eu nunca
poderei ser.
Afar o fitou com seu olhar melancólico;
- Eu o amo. (Guma abaixou sua cabeça). De um jeito que jamais
será como eu amei você.
Guma
- Musa é meu amigo, talvez o único que eu tenha. E desejo sua
felicidade mais que a minha. Sou um homem poderoso e rico
agora, se você tivesse se casado com qualquer outra pessoa, eu
certamente a roubaria para mim, a faria minha esposa, e a
amaria todos os dias e noites do resto da minha vida, porque não
houve um minuto sequer, ou uma única mulher que tive, que eu
não tenha te procurado na sede de afogar todo esse amor que eu
105
nunca deixei de sentir por você, Afar. Mas parece que o destino
insiste em nos separar, e sinto que mesmo em vidas passadas,
fui, e sou compelido a viver com você sem poder te ter.
(Lágrimas caíram sobre a face de Guma). Eu não sei que odioso
pecado foi esse que pratiquei para um castigo tão tormentoso,
mas sei que devo tentar obedecer à vontade maior.
Afar num impulso abraçou Guma;
- Eu não acredito que você está vivo! Que está aqui bem na
minha frente! (Ela acariciou seu rosto). Que posso finalmente te
tocar.
Guma sobrepôs uma de suas mãos sobre a dela, seus
dedos se entrelaçaram e se seguraram fortemente, os olhos
fechados para sentir melhor o toque não permitiram que ele
mantivesse o raciocínio claro, e quando deu por si, estava
beijando Afar com a força e a vontade reprimida de todos
aqueles longos anos. Porém, o quanto antes e logo, o
comandante se afastou recriminando-se por sua falta de controle
em trair o amigo.
Guma
- Eu devo me retirar. Isso não está correto.
Afar
- Por favor, fique. Preciso saber sobre a sua vida depois de todos
esses anos.
106
Guma a olhou nos olhos;
- Tudo que precisava saber eu já disse. Preciso ir agora, Musa
chegará logo para vê-la. Depois das notícias que recebeu, sei
que está ansioso para estar com você. (Guma se retirou).
Afar
- Guma! Não vá!
A porta se fechou, e novamente Afar pode sentir aquela
velha sensação amarga de não poder segui-lo onde quer que ele
fosse. Estranhamente também sentia raiva daquelas amarras
invisíveis que lhe seguravam e apertavam o coração, não
possibilitando que sua alegria por saber que Guma estava vivo, e
que igualmente passara todos esses anos a amando, fosse
completa. Fechou os olhos pela confusão que lhe embaralhava
os pensamentos, e o gosto do doce beijo do antigo amor lhe
arrancou um sincero sorriso. Ela passou os dedos sobre os lábios
e Musa lhe veio à mente causando nova perturbação, pois que se
casou acreditando amá-lo, e verdadeiramente o amava, mas não
conseguia evitar a explosão da enorme paixão que Guma ainda
despertava em seu peito.
Por sua vez, Guma parecia ainda mais perturbado que
Afar. Sempre sorridente e comunicativo, o povo lhe tinha
estima, e mesmo possuindo alguns inimigos invejosos, na sua
maioria não havia quem não lhe fosse amigo, ou não lhe
cumprimentasse ao vê-lo por suas andanças nas ruas de Niani.
No caminho até sua casa, encontrara Raja, qual já havia se
mudado, por influenciação do amante, para uma melhor
residência próxima ao palácio. Acostumada a não precisar se
conter frente aos demais, uma vez que Guma não fizera esforços
107
para esconder seu relacionamento extraconjugal, o que também
despertava os mais inflamados boatos sobre o devasso e
intocável amigo do Mansa, Raja tentou lhe abraçar, mas logo
fora impedida pelo próprio moço que lhe segurou os braços
repreendendo-a.
Raja
- Oras! O que foi? Um bicho peçonhento o mordeu?
Guma olhava para as varandas do palácio como se procurasse
por alguém;
- Claro que não! Já falei que essas demonstrações de afeto em
público incomodam minha esposa.
Raja
- Você falou, mas nunca me recriminou! E desde quando se
importa tanto com ela assim?
Guma deixava aparente seu incomodo;
- Desde que me casei com ela. Como se sentiria se fosse com
você?
Raja emburrou-se;
- O que está acontecendo, Guma? Está estranho desde que
recebera o Mansa.
Guma olhou para ela e a acariciou no braço enquanto respirava
fundo;
- Desculpe-me, não é nada. Apenas tenho muitos problemas para
discutir e resolver com Musa, mas ele está impedido.
108
Raja
- Deve estar distraído com a nova esposa. Ouvi dizer que sua
beleza é surpreendente, que o Mansa só tem olhos para ela.
Guma
- Certamente que sim.
Raja
- Você a viu?
Guma
- Brevemente.
Raja
- E é verdade o que dizem?
Guma
- Poderá ver com seus próprios olhos na celebração que se dará
daqui a cinco dias.
Raja
- Pelo o que conheço dos homens, não está querendo assumir
para mim que também se encantou com sua beleza.
Guma
- Por que me encantaria com a dela se tenho a sua?
Raja sorriu;
- Falou com Musa sobre me tornar sua segunda esposa?
109
Guma
- Raja, Musa está ocupado com outras coisas. E aqui não é lugar
para falarmos sobre esse assunto. Sabe que já existem muito
comentários sobre nós.
Raja olhou para ele com afeto;
- Está bem, você tem razão. Mas o quanto antes me tornar sua
esposa, esses comentários cessarão. Vou esperá-lo esta noite
como sempre, não se atrase.
Guma concordou se despedindo breve e friamente, pôs-
se a caminhar para sua casa sem nem mesmo olhar para os
lados. O corpo de aparência forte e sagaz lhe trazia uma
sensação de fraqueza e insegurança, como se não pudesse
controlá-lo e a qualquer momento seus joelhos pudessem lhe
faltar e ele cair sobre o chão. Zaila estranhou o atormentado
semblante do marido e lhe aconselhou que tirasse à tarde de
descanso, ofertando-lhe frutas e chás curativos, disponibilizando
ainda o colo reparador cheio de carinho e cuidados após ordenar
que as criadas ficassem com as crianças, para que assim, não
perturbassem o pai. A sábia esposa não lhe fizera nenhuma
pergunta, apenas comentou com o marido que as batalhas
cominadas às noites mal dormidas, não permitiam que ele
recuperasse suas forças, e que agora que a juventude passava, as
mesmas começavam a faltar. Guma concordava com tudo e não
se abstinha a nada, todavia sabia que o mal repentino que se
sobrepusera, era o fato de seu doloroso passado estar de volta a
sua vida, e além disso, descobrira que o amor que sentia por
Afar quando ainda era só um garoto, estava mais vivo que
nunca, e todos os mínimos impulsos nervosos de seu corpo,
desejavam lhe conduzir até ela, segurá-la no colo e levá-la para
110
longe dali, onde ela poderia ser sua e ele poderia ser dela. O que
Guma não sabia, é que as ideias que insistiam em impregnar sua
mente, eram também reminiscências de vidas anteriores, onde
ele e Afar já haviam praticado o adultério e abandono de seus
dedicados cônjuges e lares, partindo os mesmos corações que
agora lhe eram novamente destinados a amar, que por lei de
causa e de efeito, e a lei maior de reparação, viam-se
enfrentando o mesmo paradigma que há tantas vidas se repetia
não lhes possibilitando o progresso. Guma logo estava enfermo
e altíssima febre lhe possuiu o corpo de músculos claramente
aparentes. Os delírios lhe tomaram a mente, delírios esses que
nada mais eram que as cenas do seu delituoso passado, onde ele,
por cobiça e ciúmes, seduzira a mulher do irmão mais novo,
roubando-lhe a felicidade do lar. Essa mulher que na atual
existência chamou-se Afar, e o irmão que agora era seu melhor
amigo, Musa, concordaram na reparação da dívida, onde o
desafio se repetiria. E por justiça, não foi permitido que Guma
esquecesse ainda que também abandonara dedicada esposa e os
filhinhos que órfãs ficaram de pai, e também de mãe, uma vez
que em seu passado, Zaila definhou até a morte por desgosto e
por lhe faltar condições de manter-se sem o marido, vindo a
separar os irmãos que tiveram uma vida amargurada e trágica.
Ouvia-se os aterrorizantes gritos do forte timbre de
Guma por todo o entorno de sua enorme casa. Foram
necessários dez escravos bem dispostos na tentativa de conter a
ira do comandante que entrara em profundo transe, onde se
contorcia e se batia na desesperadora luta com a sua própria
consciência. Nunca ouviu-se um homem bramir tão
desesperador choro, pois que Guma também presenciava o
suicídio do irmão que desprezado pela amada esposa, traído pelo
111
adorado irmão, vingou-se jogando sobre eles a culpa de toda sua
desgraça. O comandante ainda urrava desesperadamente, a face
rubra permitia a visão das veias sobressalentes que saltavam da
garganta que implorava por misericórdia. Guma via a tão amada
mulher, que por fraqueza roubara de seu irmão, também tirar a
própria vida, outrossim, ela não suportara a culpa de ter
desgraçado o marido traído, e a loucura de sua paixão por quem
Guma fora, a fizera acreditar que ele a traía, o que também fora
verdade, uma vez que passando por complicada situação
financeira após toda a tragédia familiar, Guma viu-se obrigado a
corresponder os flertes de uma distinta moça que usava seu
poder e dinheiro para atraí-lo até sua libertina cama, esta moça
era Raja, deixando o relacionamento com Afar em aterrador
colapso, o que a conduziu ao suicídio passional. Dilacerado pela
perda dos entes que mais amava e pela precária situação, Guma
também desistiu da vida acreditando que poderia reencontrar
Afar no mundo dos mortos, mas ele apenas encontrou a
repetição das cenas narradas, onde morava a dor da sua
usurpadora consciência. E assim se torturou anos após anos e
anos, onde pode até mesmo esquecer-se de quem era e por que
sofria, até que recebera ajuda de uma luminosa silhueta, a qual
lhe trouxera o refrigério da esperança na reparação de suas
faltas, qual lhe fora a esposa desprezada e novamente lhe
prometia ser dedicada esposa na vida que programavam, esta era
Zaila.
A face de Guma, banhada em suor e choro, acalmava-se,
e lá estava Zaila a lhe limpar a fronte, exatamente como
prometera antes de retornar ao vaso da vida terrena. Ela esperou
que ele adormecesse, e ainda assim, ficou perto a segurar sua
mão. O comandante abriu os olhos na tarde do dia seguinte,
todas aquelas dolorosas lembranças lhe exigiram muito de seus
112
fluidos, e o corpo ainda estava como se acabasse de voltar de
longa e estarrecedora batalha.
Guma tentava se erguer;
- O que aconteceu?
Zaila
- Querido! Não se levante! Ainda está fraco.
Guma sentou-se;
- Eu estou bem.
Zaila
- Não se lembra de nada do que aconteceu?
Guma
- Lembro-me de sentir forte agonia no peito e uma dor imensa
na cabeça, como se tivesse caído sobre pedras de um lugar bem
alto. (Ele pôs uma das mãos sobre o crânio). Na verdade ainda
posso sentir. Parece que minha mente foi estilhaçada, quebrada
em mil pedaços. Me esforço, mas ainda não consigo organizar
os pensamentos.
Zaila
- Deve ficar de repouso por hoje. Pode deixar, eu irei mandar
uma criada avisar ao Mansa sua situação.
Guma
- Musa! Musa se casou! Ele se casou com Afar.
113
Zaila
- Sim, dizem que esse é o nome da segunda esposa.
Guma encarou a mulher;
- Zaila, preciso te contar uma coisa.
Zaila
- Estou aqui por você, querido! Pode me contar o que quiser.
Guma
- Sabe a mulher que amei por toda a minha vida, mas nunca
pude ter?
Zaila
- Aquela que sempre evita falar?
Guma
- Essa mesma. Eu a reencontrei ontem no Palácio.
Zaila obscureceu o semblante;
- Guma, não me diga que...
Guma
- Sim! Afar se casou com Musa, meu único e melhor amigo.
Afar é a mulher que eu sempre amei, e agora é a segundo esposa
do Mansa.
Zaila
- Então... Então por isso passou tão mal?!
114
Guma
- Creio que sim! Nunca imaginei que fosse reencontrá-la, muito
menos nessa situação.
Zaila
- E o que pretende fazer? Vai revelar a Musa?
Guma respirou fundo;
- Não! Isso só pioraria as coisas. E de forma alguma posso trai-
lo, musa é como um irmão querido para mim, e sei da sua
reciprocidade quanto a isso.
Zaila
- Somente por este motivo não ficaria com ela?
Guma aproximou-se da mulher e acariciou um dos lados de sua
face;
- Zaila! Eu verdadeiramente amo você, mas sabemos que esse
amor que sinto é diferente. Não é maior nem mesmo menor,
apenas diferente.
Zaila deu um breve sorriso;
- Eu entendo, e o aceito como é. Afar já o reconheceu?
Guma
- Sim. Em certa oportunidade disse que pensava que eu estava
morto, que me odiava.
Zaila
- Talvez isso seja bom. Assim manterão distância.
115
Guma cambaleou ao andar;
- Sim, é verdade.
Zaila prontificou-se em socorrê-lo e o ajudou a se sentar
novamente;
- Fique deitado, querido! Ainda está debilitado, não deve fazer
esforços.
Guma obedeceu à mulher;
- Devo me encontrar com Musa ainda esta tarde, mas creio que
posso descansar mais um pouco. (Ele pôs novamente uma das
mãos sobre a cabeça). Meus pensamentos ainda parecem
desorganizados.
Zaila cuidou para que o marido ficasse bem acomodado,
e se prontificou em dar ordens às criadas para que lhe suprissem
as necessidades sem que ele precisasse fazer qualquer esforço.
Quando já estava na sala de recepção a dar as ordens, ouviu
como que por um assalto, uma estridente voz feminina chamar
pelo nome de Guma repetidas e desesperadas vezes. A esposa
imaginou que fosse a ciumenta Raja, uma vez que sabia que o
marido não fora vê-la naquela noite que passou como de
costume, devido à repentina enfermidade que o tomou. Uma das
criadas apressou-se para ir resolver o pequeno escândalo que a
amante fazia em sua porta, porém, Zaila educadamente a
impediu, e colocou-se a frente, indo de encontro a rival. Quando
Raja avistou a majestosa matrona, espantou-se pela sua
iniciativa de ir ao seu encontro. A moça de longos cabelos
soltos, agarrara-se nas grades do grande portão que separava o
belo jardim da rua comum. A massa de transeuntes, ciente de
toda a situação amorosa do comandante e senhor mais
116
importante do império, lançava olhares de repressão e sarcasmo
sobre a atitude de Raja, qual não se importava mais com os
desenfreados comentários sobre a vida de Guma. Zaila ergueu a
cabeça e aproximou-se calmamente do portão, o semblante
estava sério e impenetrável.
Raja falou sem saber controlar tão bem sua ira:
- Onde ele está?! Onde está, Guma? Você o impediu de ir me
ver?
Zaila a olhou bem nos olhos;
- Acalme-se Raja! Está chamando toda a atenção para você.
Raja
- Eu não vou me acalmar enquanto não me disser onde ele está!
O que fez para que ele não fosse me visitar?
Zaila
- Guma está doente.
Raja
- Está mentindo. Ontem mesmo nos falamos, e ele estava bem.
Zaila
- O que acha que eu conseguiria fazer com um homem da altura
e do porte de Guma? Sua força me impeliria a obedecê-lo no
que ele quisesse se assim ele precisasse me tratar.
Raja
- Não sei! Talvez você o tenha envenenado! Guma nunca deixou
de cumprir com seus compromissos comigo!
117
Zaila
- Ele ainda é meu marido, e pai dos meus filhos, eu o amo.
Jamais faria isso! E queira você acreditar ou não, temos a
convivência de um casal que se ama e é apaixonado.
Raja riu;
- Talvez por isso ele esteja planejando me ter como sua segunda
esposa.
Zaila mostrou-se surpresa, mas não perdeu sua postura;
- Isso seria impossível. Você não é da mesma casta que nós.
Raja deixou aparentar não saber do que Zaila estava falando;
- Isso não interessa! Guma consegue tudo o que quer! E ele quer
a mim!
Zaila
- De qualquer forma, ele não irá atendê-la. Vá para a sua casa e
o espere como está acostumada. E não volte mais a fazer
escândalos no meu portão. Sou uma senhora distinta e
respeitável neste império, e sei que o Mansa não iria gostar de
receber reclamações, logo ele diria ao meu marido para que se
livrasse de você. Então se faça o favor de se dar o devido
respeito.
Zaila virou-se de costas e pôs-se a caminhar de volta
para sua casa. A balbúrdia que Raja fizera espalhou-se por todos
os cantos de Niani, e chegara aos ouvidos de Musa. Apesar do
recente casamento e dos agradáveis momentos com Afar, o
imperador não conseguia controlar a ligeira irritação que lhe
corroía os mais minúsculos nervos do corpo. Musa acreditava
118
que assim estava devido ao descobrimento da traição de Sunieri,
passava grande parte das horas pensando em como poderia se
vingar da esposa, mas não era simplesmente por isso que uma
incomoda ansiedade o consumia. Se ele parasse por um simples
segundo e interrogasse sua consciência, e se perguntasse o
porquê de estar se sentindo tão atormentado, haveria chance de
entender que no fundo de seu coração, a traição de Sunieri não
lhe ofendia tanto assim, e se fosse possível que ele superasse seu
orgulho, procuraria entender que também era culpado por aquele
erro, afinal, Musa a deixou sozinha e emocionalmente
desamparada no momento em que os dois mais precisavam um
do outro para que resolvessem as tribulações e provas que
surgiram no caminho do matrimônio. O imperador ainda poderia
descobrir, se lhe fosse possível desvendar seu passado e os
escaninhos de sua própria alma, que aquele sentimento vinha de
um lugar da sua memória que lhe fora escondido pelo véu do
esquecimento temporário, mas que não escapava a sensibilidade
das fibras do espírito imortal que nada esquece. Ele saberia que
a ansiedade provinha da intuição que sentia, em novamente estar
se aproximando o momento da prova, onde Afar e Guma
deveriam lhes ser fiel e não se renderem a egóica ideia de
viverem seu atemporal romance. Entretanto, Musa não possuía
esses conhecimentos, nem mesmo aprendera a ouvir a voz da
intuição que fala no silêncio oculto dos nossos pensamentos.
Assim, atribuía todo o desconforto que sentia a traição da
primeira esposa, pois que era mais fácil.
O imperador aguardava Guma no fim daquela tarde, após
longa reunião com seus conselheiros. Musa estava
aparentemente cansado, e no intervalo de suas
responsabilidades, requisitara a presença da segunda esposa
119
como um pequeno momento de refrigério para suas tormentas.
Todavia, Afar também passava por oculta agonia, pois por mais
que se esforçasse para acreditar que seu amor por Musa
prevaleceria ao passado que tinha com o comandante, seu
coração tinha a legítima certeza dos verdadeiros sentimentos que
perduraram por todos aqueles anos, reprimidos pela força do
destino, porém, vívidos no ígneo eterno de seu espírito. Haja
vista, a bela esposa não perdera o carinho que viera a possuir
pelo afetuoso marido, e como se habituaram naqueles meses de
convívio conjugal, trocavam íntimas e ternas carícias na solidão
daquela sala de reuniões. Afar e Musa davam caloroso beijo
quando Guma, por força do hábito e pela intimidade que
possuía, entrou sem ser anunciado, possibilitando assim, que
presenciasse a particular cena do casal. Pelo susto, virou-se de
costas o comandante.
Guma
- Perdão! Eu não sabia que estava ocupado, Musa! Posso voltar
outra hora.
Musa levantou-se sorridente;
- Fique, Guma! Eu é que devo aprender a controlar minhas
indiscrições, uma vez que este não seria um local apropriado
para tal situação. Mas o que fazer? Sou um marido apaixonado
pela minha linda esposa. Muitas vezes não sei como me
controlar. Mas é provável que você entenda muito bem tudo
isso. (Guma acenou com a cabeça, ainda se sentindo
constrangido).
120
Afar também se levantou;
- Eu irei me retirar. Não quero atrapalhar suas obrigações,
querido.
Musa segurou em uma de suas mãos;
- Não, meu amor! Fique! Guma é mais como o irmão que não
tive. E iremos basicamente falar sobre assuntos corriqueiros,
como as frequentes fugas dos escravos, e o fato de eu desejar
nomeá-lo conselheiro.
Afar e Guma pronunciaram juntos;
- Como?!
Guma
- Musa, que novidade é essa? Estou satisfeito com o posto na
guarda real. Além do mais, sabe que a maioria do conselho será
contra, tenho meus inimigos, e esse é um fato que prefiro não
ignorar.
Musa
- Sim, é verdade! Mas sabemos também que essas implicâncias
não passam de ciúmes bobos. Ultimamente tenho sentido que
existe a possibilidade de estarem conspirando contra o império,
e na verdade, não vejo a figura de amigo em muitos por aqui.
Posso apenas estar passando por um momento de delírios devido
ás ultimas notícias, mas devo me precaver. Preciso de alguém
dentro da cúpula do conselho para que verdadeiramente me
informe o que acontece fora do alcance dos meus olhos.
121
Guma
- Sei que posso muito bem cumprir esse papel sem que precise
me nomear conselheiro, todos sabem a autonomia e força que já
me concede no império. Sem falar que não acredito que haja
nenhuma conspiração. Quanto aos escravos, designei a Attos
que investigasse, e descobrimos que um dos guardas estava
facilitando a fuga no intuito de capturar os mesmos para vendê-
los aos comerciantes do oriente.
Musa
- E você já liquidou este traidor?
Guma
- Ele está preso, mas ouso dizer que acredito nos ser mais
vantajoso escravizá-lo que lhe tirar a vida. Não nos fará
recuperar o número que já perdemos, mas servirá de lição aos
demais guardas.
Musa
- Sim, eu concordo, contanto que lhe açoitem frente a todos,
para que a lição seja bem aproveitada.
Guma
- Direi a Attos para que cuide disso.
Afar
- Mas isso parece tão cruel. Eu não sabia que aqui se tratavam
pessoas de forma tão desumana.
Musa
- Mas não são pessoas, querida, são escravos.
122
Afar olhou para Guma;
- O comandante concorda com a opinião do meu marido?
Guma igualmente a encarou;
- Não tenho autoridade para concordar ou discordar do Mansa.
Meu lugar neste império é confiar e obedecer.
Afar
- E se fossem seus pais a serem escravizados e açoitados?
Musa sorriu;
- Isso seria impossível, Afar! Guma veio de uma província
distante, não possui parentes aqui. Mesmo que sua pergunta
seja metafórica, ainda seria descabida. O infeliz não é só um
escravo, ele traiu o império para benefício próprio.
Afar
- Ainda assim é desumano.
Guma
- Ouso perguntar se de onde veio, seus pais não possuíam
escravos e não os tratava da mesma forma?
Afar
- Particularmente nunca presenciei nenhuma atitude dessas de
meu pai para com seus criados.
Guma
- O que não significa que ele nunca tenha feito.
123
Ouviu-se gritos alarmantes vindos do corredor, a voz
feminina, qual Guma percebera ser a de Raja, promovia grande
escândalo naquela ala do palácio, e por gritar seu nome, ele logo
se prontificou em ir ver o que se passava, mas não fora
necessário. A jovem adentrou a sala do trono, tresloucada e
enfurecida, dois guardas tentavam lhe conter, quando Guma
ordenou que a largassem.
Musa
- Mas o que está acontecendo?
Raja foi até Guma e lhe desferiu alguns golpes no peitoral;
- Por que você não foi me ver ontem, Guma?! Por quê?! Não
quer mais me ver?! Está enjoado de mim?! Não me ama mais?
Guma a segurou com força e esbravejou firmemente;
- Chega! Pare com isso, Raja! Respeite seu Mansa! (Raja se
conteve).
Afar
- Oras! Achei que sua esposa se chamasse Zaila, comandante.
Guma respondeu encabulado;
- Sim, este é o nome da minha esposa.
Afar proferiu um cínico sorriso;
- Então não estou entendendo.
124
Raja
- A primeira esposa se chama Zaila, mas logo eu serei sua
segunda esposa, e não haverá mais queixumes e boatos quanto a
nossa relação.
Musa
- Guma! Controle Raja! Gostaria que alguém me explicasse o
porquê de toda essa bagunça.
Guma se prontificou demonstrando aparente irritação;
- Não é nada que deva perturbá-lo! Raja perdeu seu equilíbrio e
está fora de si!
Raja
- Então não irá se casar comigo?! (Raja o empurrou
violentamente sem conseguir causar grande abalo em sua
estrutura física). Seu mentiroso! Eu...
Musa
- Chega! (Raja conteve-se por si só). Estou sabendo dos
escândalos que Raja tem causado. Não acho apropriado esse tipo
de comportamento e liberdade. Sem falar que os casamentos
realizados nesse império só ocorrem após passar pela minha
aprovação. Guma nunca mencionou o desejo de possui-la como
sua segunda esposa. Além do mais, a união matrimonial de
vocês jamais poderia ocorrer, uma vez que são de castas
diferentes.
Guma falou em tom sobressalente;
- Eu já expliquei isso a ela! (Ele a pegou por um dos braços).
Agora vamos, antes que me envergonhe ainda mais!
125
Raja se soltou;
- Não! Você disse que poderia me tornar sua esposa! Disse que
falaria com o Mansa. Pois bem, aqui estamos.
Afar virou-se para Musa;
- Ah! Por favor! Eu não sou obrigada a presenciar esse tipo de
cena deprimente. Sou senhora desse império e não desejo
permanecer no mesmo recinto que as vulgas mulheres dessa
cidade. Não sabia que era de costume a frequência dessa classe
dentro do palácio. (Ela virou-se para Musa). Se me permite,
desejo me retirar.
Musa acenou positivamente com a cabeça, e sem nem
mesmo esperar que as portas lhe fossem abertas, Afar saiu da
sala em passos que pareciam quase quebrar o chão, o rosto
estava visivelmente enfurecido, o que não escapou a observação
de Guma, nem de Raja. Musa chamou a atenção do comandante
mais uma vez sobre controlar suas relações extraconjugais, e
ordenou que mantivesse a amante longe do palácio. No caminho
até seus aposentos Afar avistou uma linda mulher a ser cuidada
por suas criadas, e no seu colo havia um bebê, ela estacionou,
imaginando que aquela seria a imperatriz. Sunieri não pode
ignorar a presença da segunda esposa, nem tão pouco a beleza
que lhe pertencia, agora entendia o motivo de seu marido
realmente não precisar perdoá-la. Com um gesto, mandou que
fechassem a porta, deixando claro para Afar que não desejava
tecer nenhum tipo de amizade com ela.
Naquela mesma tarde, Guma levou Raja para a casa onde
a hospedava, e proferiu grande discurso enfurecido sobre suas
últimas atitudes. Raja estava mesmo diferente naquela semana,
126
ela se perguntava por que se via tão amedrontada pela ideia de
não possuir aquele homem que tanto amava. Acreditava que a
paixão por Guma a estivesse fazendo perder o controle sobre
suas atitudes, e de certo, isso também ocorria, todavia, não sabia
ela que já há muitas encarnações que alimentava em si a
obsessão por ele, onde na vida anterior à que vivia, fora uma
mulher rica e poderosa, qual o atraiu e tentou obter seu amor
através da sua abastada situação econômica e suas influências.
De início, Guma na figura do amante miserável, se viu propelido
as condições daquela jovem senhora viúva que se esbaldava nas
noites quentes. Com o coração apertado por saber que traía a
verdadeira mulher que amava, o cavalheiro não demorou em se
habituar a deitar-se com ela sem nem mesmo lembrar que o que
fazia era errado. Pela manhã, sempre voltava a sua humilde casa
com uma pequena sacola, e dali tirava o sustento da semana e os
mimos que desejava dar a esposa que encarnou na atual história
como Afar. A jovem, sabendo das traições do companheiro, viu-
se em profunda tormenta, e logo começou a ter furiosas
discussões com o mesmo. Em noite sombria, quando pelo ar se
espargiam os eflúvios da pele dos amantes de perfume agridoce,
a atmosfera envolvida pelas densas camadas construídas através
dos pensamentos daquelas almas iludidas pela sedução do corpo,
e pela perversão do sexo descompromissado com os belos
sentimentos da união esponsal, Guma rompeu por definitivo seu
devasso envolvimento com a viúva. Por sua vez, ela lhe
ameaçou dizendo que não mais o sustentaria, e que com sua
influência, tornaria impossível que ele arrumasse emprego
digno, logo então, ele estaria de volta a seus pés, implorando por
seu perdão. Assim a rica senhora fizera, porém, ao contrário do
que pensava, Guma não retornou, ficando em condições
degradantes por não conseguir arrumar emprego. E por um surto
127
de ciúmes, acreditando que sempre conseguiria o que desejasse,
a jovem senhora traçou um plano, vindo a pagar altas quantias
para que dois brutos homens, criaturas que ainda obtinham em
seu íntimo a índole primitiva do assassínio, para que dessem fim
a vida de Afar, fazendo parecer que ela havia tirado a própria
vida. Pensava a viúva, que sem o empecilho da presença do
verdadeiro amor de Guma, logo ele endereçaria seus
sentimentos para ela, contudo, como sabemos, pela dificuldade
de sobrevivência, mas principalmente pela perda da mulher
amada e a culpa de seu falecimento, veio ele a cometer o pior
dos crimes contra à leis de Deus, tirando a própria vida quando
em noite deprimente, atirou-se de um penhasco estraçalhando o
próprio crânio nas duras pedras da amargura. E apesar de seus
erros naquela encarnação, por ser bom e generoso, e também
pela misericórdia de Deus que sempre enxerga o maravilhoso
potencial de caminharmos até Ele, mesmo que pelos caminhos
escabrosos da própria alma, Guma passou alguns longos anos
perdido e confuso no mundo das sombras, não sabendo dizer
quem era, ou onde estava, ou até mesmo por quem procurava.
Porém, pela divina força do amor, fora resgatado por amigos e
familiares que tanto se esforçavam e rogavam à espiritualidade
maior a seu favor, sendo possível delicado tratamento na
reorganização do órgão de seu corpo espiritual, vilipendiado
pela ação da escolha da própria morte, não escapando ele da lei
de causa e efeito, aonde viria para o seu próprio bem, resgatar
em momento oportuno a falta cometida. E por abandonar a
família e os filhos, imputou-lhe o destino que fosse separado
daqueles que mais lhe teriam amor, seu pai e sua mãe, espíritos
esses comprometidos com ele pela afinidade dos milênios e os
fortes fios do coração.
128
Voltando aquela tarde, Raja ainda pressentia que algo
ruim estava acontecendo, o peso sobre o peito e a amargura
presa na garganta, fazia com que ela sentisse que Guma estava a
lhe escapar por entre os dedos, sendo a sensação velha e familiar
para ela. De fato, desde a chegada de Afar, o comandante não
conseguia achar tempo para pensar em outra pessoa que não
fosse o antigo amor, e sabia ele que perderia o interesse em
qualquer outra mulher, se lhe fosse possível viver seu sonho de
amar Afar. Outrossim, as possibilidades lhe atormentavam, uma
vez que a consciência e o inconsciente lhe alertavam que aquele
ainda não seria o momento em que poderiam viver o amor
pleno, pois que era preciso vencer o egoísmo e a vaidade de
estarem juntos apesar do sofrimento alheio. Guma estava
chateado com o destino, e por ainda vivenciar na infância da
alma a rebeldia de não poder ter o que desejava no momento em
que lhe fosse conveniente, descontava e acusava implicitamente
Raja, mesmo porque, sua recente memória não lhe permitia, mas
não escapava dos pergaminhos de seu espírito eterno, as dores
que no passado Raja veio lhe causar. A discussão fora intensa, a
jovem descontrolada, no desespero de saber que o estava
perdendo, lhe arremessou os objetos da casa que tinha acesso,
não deixando de tentar machucar Guma como podia.
Raja
- Eu odeio você! Odeio você, Guma! Maldita hora em que você
apareceu na minha vida! Preferiria mil vezes apodrecer naquele
porão, que encontrá-lo!
Guma em seu excesso de raiva também esbravejava;
- Pois então se sinta a vontade para retornar para lá! Eu estou
cansado das suas crises de ciúme! Você parece uma louca!
129
Definitivamente foi um erro mantê-la aqui! Só o que faz é me
envergonhar e prejudicar minha imagem! Já não basta o que
meus inimigos inventam sobre mim, você ainda os ajuda com
suas demonstrações em público!
Raja chorava furiosamente;
- Ah! Sim! Agora que já sugou de mim tudo que eu podia te
oferecer! Agora que já experimentou e fez de mim o que bem
quis, quer me jogar fora?! Dar-me aos cães?! Por que está
fazendo isso comigo? Por que não me ama mais? Existe outra
mulher?! Me diz quem é?!
Guma se desconsertou e desviou o olhar a tentativa de disfarçar;
- Deixe de loucura, Raja! Eu não poderia... Isso seria
inaceitável!
Raja
- Está vendo?! Você tem outra! Eu sei que tem! Posso sentir! E
você nem mesmo consegue disfarçar!
Guma respirou fundo tentando conservar o pouco da paciência
que lhe restava;
- Já chega! Eu vou embora!
Raja o segurou pelo braço e gritou;
- Não! Você não vai embora até me dizer quem é ela! É melhor
me dizer logo! Por acaso é a segunda esposa do Mansa?!
130
Guma congelou os olhos nos de Raja, tentava descobrir como
ela poderia saber tão rápida e precisamente, e como se a moça
lesse seus pensamentos logo respondeu:
Raja
- Eu vi como olhou para ela e como ela o correspondeu.
Guma tentou disfarçar;
- Está mesmo ficando louca! O que diz é um absurdo!
Raja
- Não minta para mim! Eu sei que é ela!
Guma
- Como poderia saber?! Isso... Isso... Isso é ridículo! E chega
dessa conversa!
Raja continuava gritando;
- Está vendo como fica desconsertado só de falar nela?! Mal
consegue olhar para mim, Guma! Está apaixonado por ela?!
Você a ama?! Ama Afar?! Já esteve com ela?! Me diz, Guma!
Não minta para mim! Você a ama?! Ela ama você?!...
Guma em seu excesso de raiva e pela confusão que os
gritos e as perguntas de Raja lhe causavam na mente já
desbaratada, gritou com fúria;
Guma
- Sim!
131
Raja petrificou, assim como o comandante, que de
imediato se arrependeu de ceder à pressão que a amante
descontrolada lhe fazia. Não vendo como voltar atrás e escapar
da situação, Guma concluiu rapidamente que talvez fosse
melhor contar logo toda a verdade.
Guma disse calmamente olhando nos olhos fixos de Raja;
- Sim, eu a amo. Eu a amo antes mesmo de conhecer você, ou
Zaila, ou Musa, ou qualquer outra pessoa desse lugar. Eu cresci
com Afar e a amo desde o dia em que soube da sua existência
nesse mundo. Eu a amo, mas não posso tê-la. E sim, desde a sua
chegada tenho estado distante não só de você, mas de todas as
outras pessoas, inclusive das mulheres que me saciavam além de
você, as quais você nunca desconfiou porque eu sempre
consegui agir naturalmente com todas, mas agora não. Não
posso e não consigo mais fingir.
Raja se acalmava;
- Então me enganou por todo esse tempo?
Guma respondeu de prontidão;
- Não! Eu me apaixonei por você, e é por esse motivo que a
mantenho aqui. É por esse motivo que desafiei os comentários
feitos por toda Niani, o que você sabe que poderia muito bem
acabar com a minha reputação e tudo que construí. Eu sempre
me envolvi com muitas mulheres, me casei pela condição que
me foi imposta, e me apaixonei por você porque sempre tivemos
uma conexão. Eu não sei o que é isso, nem como pode
funcionar, já que sempre estamos brigando como dois animais
que se odeiam.
132
Raja chorava;
- Mas eu amo você.
Guma continuou;
- Mas agora... Eu estou cansado, Raja! Estou cansado e confuso,
e chateado. Não quero enganá-la, mas não quero que me odeie.
Raja
- Está dizendo que não me ama?
Guma
- Estou dizendo que nunca fui essa pessoa que você diz que ama.
Eu nem mesmo sei o que pode ver em mim que tanto a atrai. Por
mais que eu diga que tenho outras mulheres...
Raja aproximou-se dele e segurou suas mãos;
- Eu não me importo! Não me importo com elas! Posso suportar
que se deite com quantas mulheres quiser! Posso suportar que
não corresponda o meu amor! Que não me torne sua esposa!
Mas não sei se posso suportar que ame outra.
Guma se afastou;
- Não percebe quanto egoísmo tem nas suas palavras? O que
sente por mim não é amor, você apenas está preocupada em me
ter de alguma forma. Se verdadeiramente me amasse nunca
concordaria com absurdas condições. Não vê que é impossível
amar outra pessoa quando não amamos a nós mesmos?
Raja
- Do que está falando? É claro que eu te amo!
133
Guma inspirado pelos amigos espirituais tentava resolver o
impasse de longos anos com aquela alma ególatra, atormentada
pelo desejo de possui-lo;
Guma
- Não! Você não me ama, Raja! Apenas precisa saber que me
possui de alguma forma! Pra você, pode ser que isso ainda seja
amor, pois que desconhece o que é verdadeiro. Aquele que é
desprendido de todas as coisas e todas as posses. O amor que
tudo liberta e que nada pede em troca, nem mesmo o seu
reconhecimento. O amor que não conta o tempo, nem pede de
volta. Aquele que abnega e se sustenta por si só, sem pedir
recompensa. Onde mesmo quando tarda, é impossível de acabar.
Não diminui com a demora, nem se extingue quando aparecem
as dificuldades do caminho longo e tardio. Esse amor que aceita
derrotas, que suporta as dores do destino, e que na humildade da
sua resiliência, espera e confia. Isso é amor, e reconheço que eu
também preciso aprender com as lições que a vida tenta me
ensinar, para que enfim eu possa também dizer que sei amar.
Mas antes disso, é impossível que possamos sentir pelo outro
aquilo que nem mesmo sentimos por nós. Quando assim o
fizermos, estaremos amando a Deus sobre todas as coisas, pois
que Ele vive em nós, e nós somos partes d’Ele. Amar ao
próximo então será simples tarefa de exercício, onde
despertaremos para a prática desse sentimento maior.
Raja, ainda mergulhada na escuridão da própria
ignorância, ouviu as palavras de Guma, mas não lhe absorveu a
essência. O jovem comandante, também surpreso pela singular
reflexão, pode sentir uma ligeira dormência por todo o corpo,
como se estivesse a flutuar poucos centímetros do chão, não
134
sabendo ele que aquela pequena sensação de paz que
brevemente o tomou, era os resquícios dos fluidos deixados
pelos espíritos amigos que tentavam ajudar aquelas duas almas
endividadas com a Justiça Divina.
Guma
- Acho que por hoje já chega. Estou cansado das nossas brigas.
Raja tristemente falou:
- Aonde vai?! Hoje você deveria ficar comigo.
Guma
- Creio que concordamos que se ficarmos juntos hoje, nada de
bom sairá de nós. Vou para casa, tenho assuntos a resolver.
E sem esperar a contestação da amante, Guma saiu, ainda
a refletir sobre o equívoco de revelar a Raja sobre seu amor pela
segunda esposa do Mansa. Como se não bastasse os escândalos
provocados pelos ciúmes da moça, o comandante enfrentava
forte resistência de poucos conselheiros e certo grupo de
importantes e influentes homens ligados ao imperador, os quais
insistiam em fazer fortes reclamações sobre a vida pessoal do
militar, explanando que sua fama e índole prejudicavam a
imagem do império. Ainda, contestavam que para a posição qual
Guma ocupava na hierarquia Mali, o poder e a liberdade dados a
ele pelo Mansa, eram descabidos e por certo inadmissíveis.
Musa recebia semanalmente insistentes reclamações, uma vez
que Guma não importava-se verdadeiramente em ostentar sua
riqueza que só crescia, e o poder de comando que a amizade de
Musa lhe conferia. De qualquer forma, o amigo do imperador
era intocável, e mesmo seguindo os pedidos de Musa na
135
tentativa de ponderar suas atitudes, não deixara de incomodar
aqueles que tanto desejavam vê-lo longe de Niani. Se não
reclamavam dos festejos e noites desregradas do comandante,
acusavam-lhe de exageros em seu comando na usurpação de
suas funções, quando ainda, por forte despeito, não reclamavam
do exibicionismo do seu corpo escultural que provocava as
damas da cidade.
Do contrário, o imperador agora experimentava nova
experiência no seu íntimo, uma vez que a semente germinada
pelo Criador na primitiva terra do ser, é sempre convidada a
arvorecer no quintal da alma de quem se permite o cultivo do
amor e do bem. Sentia ele, que não lhe cabia mais os
comportamentos de outrora, não fugindo ainda à observância de
que o velho homem retornava-lhe nos impulsos diários, quando
se tratava dos desafios de seu orgulho e da soberba vaidade, qual
consumiam seus nervos a cada hora que os assuntos pessoais lhe
tomavam a mente por assalto, sendo essa a verdadeira armadilha
de seus inimigos invisíveis, conquistados ao longo de suas
encarnações, quais tentavam alimentar seus pensamentos com as
perniciosas imagens sugestivas, plantadas em seu imaginário
pelos mudos sussurros das sombras. Musa sentia-se confuso,
todavia, havia com ele também amigos espirituais que de tudo
faziam para lhe proteger, na tentativa de que lhe fosse possível,
pelas escolhas das próprias atitudes, alcançar os objetivos
desejados antes mesmo de vestir aquele corpo. Nos momentos
que podia, obedecia ao profundo desejo de permanecer em suas
meditações, e era no silêncio da consciência onde encontrava
paz e alívio para aquelas angústias quais nem mesmo ele sabia
responder de onde vinham. E mesmo sem perceber, as práticas
religiosas lhe foram tomando às prioridades, não lhe sendo
136
possível escapar das dificuldades naturais do espírito em
ascensão, partindo do simples e ignorante para a áurea grandeza
da Sabedoria Maior, dentro da caminhada de cada instante do
leme da vida. Musa, vivia o antigo conflito dos homens entre o
bem e o mal da própria índole.
Por força da vontade, certa noite fora visitar Sunieri,
encontrando-a em seus aposentos a brincar com a pequena
criança. O Mansa a observou primeiramente, e de forma sutil, os
amigos do invisível lhe convenciam que aquela criança que ali
estava, nada tinha a ver com os erros de sua esposa sênior, nem
mesmo com os que ele também não deixara de praticar. O
pensamento surgia como se fosse seu, e junto a ele uma
agradável sensação lhe diminuía o peso do coração amargurado
com aquela mulher. Musa sorriu por um breve momento,
pensando na possibilidade de perdoar, e desta forma, voltar a
viver a felicidade que possuía com Sunieri.
Sunieri
- Você está aí?
Musa aproximou-se;
- Sim, estou.
Sunieri ostentava leve semblante;
- Finalmente arranjou tempo.
Musa
- Tenho pensado em tudo que ocorreu conosco, e muitas vezes
me vejo querendo insistir em sentir uma raiva que na verdade
não possuo.
137
Sunieri sorriu;
- Você sempre foi muito teimoso.
Musa também sorriu;
- Tem razão. Mas agora posso reconhecer que seus erros não
foram mais graves que os meus. Eu deveria ter ficado e insistido
em resolver tudo antes de precisar partir. Deveria tê-la
priorizado.
Sunieri
- Nunca é tarde para consertarmos as coisas, querido.
Musa
- Sim, mas existem coisas que ficam passando pela minha
mente. Imagens e perguntas que não posso evitar.
Sunieri entregou a criança a uma serva e aproximou-se de
Musa;
- Eu direi tudo que quiser saber.
Musa
- Se apaixonou por ele?
Sunieri
- Sim! Assim como se apaixonou por Afar.
Musa
- É diferente, mas posso compreender melhor sendo desta forma.
Talvez não a pudesse perdoar se tivesse agido friamente.
138
Sunieri
- Foi algo impensado, contudo, já passou.
Musa
- Por que não foi embora com ele?
Sunieri
- Não podia simplesmente jogar fora tudo que havíamos vivido
juntos. Eu me apaixonei, mas creio só ter acontecido pela
imensa solidão e revolta que sentia por estarmos tão aborrecidos
um com o outro. De outra forma, não sei se teria permitido que
acontecesse.
Musa
- Então... Está me dizendo que no fim das contas, o que sentia
por mim pesou mais do que o que sentiu por ele?
Sunieri
- Ficamos brigados por muito tempo, mas eu nunca disse que
deixei de te amar por isso. (Musa caminhou em silêncio pela
sala mostrando estar confuso). Espero que você também não
deixe que o que tínhamos morra desta forma.
Musa
- Estou apaixonado por Afar.
Sunieri
- Eu sei. Quem não ficaria? É uma bela mulher, e creio que se
não fosse o fato dos meus ciúmes me fazerem odiá-la,
poderíamos ter afinidades a trocar. Mas sempre acreditei que eu
bastaria.
139
Musa logo declarou;
- E teria bastado. Você teria sido a única se... Se tudo fosse
diferente. Mas agora parece que estamos presos aos
acontecimentos, e eu fico me perguntando como chegamos até
aqui? Como todos aqueles momentos que tivemos pode permitir
que chegássemos a esse ponto, onde somos quase estranhos.
Sunieri
- Eu também não sei. Só sei que desejo cumprir todas as tarefas
que me pedir. Serei a esposa que sempre fui, e se nada mais
quiser comigo, eu entenderei, mas ainda estarei aqui para você.
Musa
- Quem sabe um dia não seja possível que essa mágoa se desfaça
e possamos viver o que prometemos um ao outro.
Sunieri
- Eu estarei aguardando quando assim for.
Musa sorriu brandamente e logo se retirou. Não podia
evitar que uma tristeza se alojasse no peito traído, quando as
felizes memórias de sua relação com Sunieri retornavam às
fotografias da memória. Ao chegar no quarto de Afar, sem
demora, a lindíssima imagem da nova cônjuge que arrumava-se
para se deitar, lhe fez esquecer tudo aquilo. A jovial esposa
vestida com a mais bela túnica de seda, tinha a pele iluminada
pela prateada luz da abundante lua que invadia o ambiente de
seu quarto através da grande janela. Musa ordenou que as vinte
escravas que serviam Afar se retirassem, e estando sozinho com
a esposa submissa, pôs-se a admirá-la no implícito jogo de
sedução, onde Afar continuou os cuidados que dava a pele negra
140
de tom perfeitamente uniforme, passando os produtos que
mandava importar do continente europeu. Aprazia ao Mansa
apenas a observar, e aquele ritual de encantamento e beleza lhe
enchia de ânimo e vivacidade. Enfeitiçado pelos olhares que
Afar ligeiramente lhe lançava, e também pelos incensos que
perfumavam a sala, se permitiu envolver e embriagar da paixão
que queimava seu corpo feito brasa fumegante.
Na manhã seguinte as obrigações de soberano
chamavam-no, passara o dia com muito bom humor. Musa
estava inspirado pelos planos que tinha na vontade de realizar
grandiosas construções e marcar seu império pelas
materializações de seus objetivos. Desejava erguer madraças e
mesquitas, porém, para isso precisava trazer arquitetos e
estudiosos do oriente, além, ambicionava a edificação de uma
universidade, pois lembrava-se de ter conversado sobre tal
empreendimento com Sosso, o pai de Afar, qual assemelhava-se
com suas ideias visionárias. Guma, que inevitavelmente estava
sempre com Musa, não pode deixar de reparar na espontânea
alegria que brotava de seus poros, irradiando para todos os lado
do palácio, o olhar vívido e alegre que enxergava o maravilhoso
em tudo, o sorriso fácil e gentil que passou a seduzir até os
criados. Era impossível não saber que a responsável por toda
aquela felicidade era sua amada, uma vez que Musa não se
privava de conversar com o amigo sobre a maravilha que estava
vivendo junto à nova esposa.
Musa
- Mas estou aqui, falando pelos cotovelos, quando na verdade
reparo que você está estranhamente cabisbaixo, Guma. O que
está acontecendo?
141
Guma
- Não é nada. Só estou cansado.
Musa
- Algum problema com a família? Sei que seus filhos estão
crescendo saudáveis e fortes, e Zaila não perdeu a beleza que
sempre lhe pertenceu.
Guma
- Minha família está bem, por isso, só tenho a agradecer.
Musa
- Então me diga logo, o que o aborrece tanto?
Guma virou-se para Musa;
- Tenho andado cansado de tudo isso. Raja tem me causado
muitas dores de cabeça...
Musa sorriu;
- Isso é verdade.
Guma
- E não sei como faço para me livrar dela.
Musa
- Como assim? Não está apaixonado por ela?
Guma
- Por um momento, acreditei que estivesse, mas agora nossa
relação é quase tóxica. Fica cada vez mais insustentável estar
com ela. (Ele virou-se para Musa). Estive pensando, acha que
142
seria possível me tornar kelé-tigui em alguma dessas províncias
que conquistamos?
Musa
- General chefe? Para quem seria um escravo é uma ambição e
tanto, não acha?
Guma abaixou a cabeça entristecido;
- Tem razão, foi o que eu pensei.
Musa
- O trabalho que Raja está dando é tanto que está pensando em ir
embora?
Guma
- Não somente por isso. Estou farto das perseguições que venho
sofrendo. Sinto que talvez eu precise recomeçar em outro lugar.
Musa
- E nossa amizade, como ficaria?
Guma
- Sabe que tem minha amizade e lealdade para sempre. Por isso
preciso partir.
Musa franziu o sobrolho;
- Não entendo.
143
Guma tentou disfarçar;
- Por que não desejo mais decepcioná-lo e causar os
aborrecimentos que venho causando. Sei que os boatos sobre a
vida que levo são muitos, e tudo isso chegou a um ponto que
não sei mais como faço para consertar.
Musa abraçou Guma pelo ombro;
- Ah, meu amigo! Não se preocupe com isso! As palavras o
vento leva, só o que perdura é o que for verdadeiro, e eu sei o
quanto você é merecedor de tudo que conquistou. Mas... Se
realmente estiver precisando de um novo começo, posso torná-lo
o Kelé-tigui de uma dessas províncias. Aliás, não sei se conhece
a cidade de Tombuctu, mas vi grande potencial ali para realizar
algum dos meus projetos.
Guma
- Sim, conheço bem, mas pensei que já houvesse um general
responsável pela cidade.
Musa
- O pai de Afar. Mas ele está velho, e lamento por isso, contudo
não demorará para que precise de alguém que o auxilie na
administração daquela fortaleza. Afinal, esse trabalho é duro e
requer muita responsabilidade. O general Sosso é um homem
interessante, penso que vocês se dariam muito bem.
Guma
- De qualquer forma, farei o que me pedir.
144
Musa
- Bem, agora devo dispensá-lo. Axar pediu-me uma reunião e
penso que será demorada como todas as outras. Creio mesmo
que durará todo o dia, mas me conforta saber que pela noite
tenho a melhor companhia que poderia desejar. (Eles se
despediram).
No final daquela tarde, Guma sabia que precisava
descansar seu coração, pois que sentia no fundo da alma uma
tristeza lhe tomar conta devido às ideias que o consumia, quais
deixavam claro que Afar jamais poderia ser sua. Todavia, existia
uma força dentro dele que gritava com toda sua vontade que ele
poderia simplesmente abdicar de tudo, não se importar com
mais nada, e viver seu romance com ela, mesmo que para isso
precisasse voltar a miséria. Vivendo o mais temido confronto
dos homens, aquele qual se deve vencer as próprias
imperfeições, o comandante buscou pelo único lugar onde
sempre recorria para sentir um pouco da paz que nunca lhe
pertenceu. O terraço mais alto do palácio, onde o arborizo
jardim permitia que entre as flores acampasse a tranquilidade,
para a perfeita apreciação da fenomenal paisagem do horizonte
que anoitecia. Mas, uma surpresa o tomou quando lá chegou. A
silhueta de Afar estava no mesmo lugar que ele costumava ficar
quando contemplava o pôr do sol. Guma logo tentou dar meia
volta, mas Afar percebeu sua presença sem nem mesmo precisar
se virar.
Afar se virando para ele;
- Não vá! Fique um pouco.
145
Guma parou onde estava;
- Pensei que não tivesse ninguém aqui. Geralmente não tem,
essa ala do palácio fica deserta por ser um tanto longe dos
cômodos principais e toda a movimentação.
Afar respirou tranquilamente;
- Sim, eu percebi. Estou com saudades de casa. Sinto falta do
meu pai, da minha mãe, e até mesmo das minhas irmãs. Esse foi
o único lugar que eu consegui achar que me lembrasse de
Tombuctu.
Guma se aproximou e se posicionou ao seu lado olhando para o
sol que se punha;
- Eu costumava vir aqui quase todos os finais de tarde e ver o
pôr do sol.
Afar olhava para o seu perfil;
- Como fazíamos à margem do rio?
Guma sorriu brandamente ao se lembrar daqueles tempos;
- Sim, como fazíamos à margem do rio. Vinha exatamente nesse
momento em que o sol está se pondo. Fechava meus olhos, abria
os braços, e podia sentir com se estivesse lá.
Afar
- E você se lembrava de mim?
Guma se virou para ela e a olhou nos olhos;
- Eu nunca precisei me lembrar de você, Afar, porque nunca te
esqueci. Você sempre esteve comigo.
146
Afar
- Por isso se casou e teve tantas amantes?
Guma virou-se se apoiando no balaústre do parapeito;
- Sabia que em algum momento iria me confrontar com esse
assunto.
Afar
- Mas foi a cena que eu vi. E também o que as escravas
comentaram sobre você. Muitas até alegam já terem sido sua
amante em algum momento. Algumas até mesmo choram por
você nunca mais tê-las procurado
Guma andou tentando fugir das acusações;
- Está exagerando! Você... Você não deveria falar com as
escravas.
Afar
- Oras! Por que não?
Guma
- Porque são escravas e você é uma soberana.
Afar
- Você é um comandante e nem por isso deixou de dormir com
elas.
Guma encarou Afar e percebeu que ela estava rindo;
- Está se divertindo comigo?
147
Afar
- Você está preocupado com os meus ciúmes, isso me diverte.
(Ela se aproximou dele). Tem sorte por eu já ter descontado os
impulsos da minha raiva nas almofadas da minha cama. Mas
com a cabeça fria pude compreender porque se tornou esse
homem sem critérios.
Guma sorriu;
- Sem critérios?
Afar fez certa expressão com a face ratificando o que dizia;
- Sem nenhum critério.
Guma
- E o que concluiu?
Afar
- Foi como soube lhe dar com a falta que eu fazia. Por tanto me
querer e não poder me ter. Por tanto me amar, e não poder me
dar tudo isso, passou esses anos me procurando nessas pobres
coitadas. Mas o que você sente por mim, é meu. Assim como o
que eu sinto por você nunca deixou de ser seu.
Guma olhava para o horizonte tentando disfarçar a dor que o
rosto não escondia;
- É estranho, porque ainda sinto a sua falta. Você está aqui, mas
ainda assim é intocável para mim.
148
Afar se aproximou e segurou nas mãos de Guma;
- Isso não é verdade. Estou aqui, e posso ser sua. (Ela colocou
uma de suas mãos sobre seu rosto). Eu sou sua, Guma! Sempre
fui.
Guma recuou;
- Afar! Do que está falando? Está casada com Musa! Ele a ama e
está feliz como nunca vi.
Afar aproximou-se novamente;
- Mas eu não sei, não quero, e não consigo evitar o que sinto por
você! E posso sentir que você também não!
Guma
- Está certa. Eu te amo e não negarei isso, mas o que vamos
fazer? Trair alguém que também amamos e nos tornar amantes?!
Por que você não sabe! Não sabe os milhares de planos e
possibilidades que já tracei e desenhei na minha mente tentando
arrumar uma maneira de ficar com você, e todos eles me levam
a culpa de estar traindo aquele que me tornou quem eu sou hoje!
Essa é uma escolha que não sei se consigo fazer.
Afar
- Então me escolha! (Afar o segurou com força pela roupa)
Porque eu escolho você! Escolho trair o mundo, e quem mais for
preciso! Escolho sofrer a pena desse pecado dez mil vezes por
dez mil vidas se for necessário, para que eu seja sua por inteiro.
Eu só preciso que você me ame! E posso ser responsabilizada
por todos os erros de todos os amantes, Guma! Eu não ligo! (Ela
aproximou seu rosto do dele e disse calmamente). Não ligo. Eu
amo você.
149
Guma a beijou, e naquele momento verdadeiramente
nada mais importava. Não era possível que o raciocínio lhe
retornasse, uma vez que suas mãos tocavam o corpo de Afar, e o
peito nu sobre o dela pesava-lhe na sincronia dos dois corpos
que se amavam na conexão que apenas as almas que se
pertencem podem ter. Era como se ele e a jovem fossem uma
única consciência, mesmo quando ainda indivíduos inteiros,
estavam completos por estarem juntos. Após o ato de amor,
deitados sobre o sofá de descanso, Guma tinha Afar em seus
braços novamente, e por mais que soubesse que aquilo estava
errado, os sentimentos conflitavam por parecer tão certo, uma
vez que a sensação de plenitude os saciava e as carícias
preenchiam os diálogos dispensando palavras.
Afar disse enquanto passeava uma das mãos pelo peitoral do
comandante;
- Deveríamos fugir.
Guma
- Fugir para onde?
Afar
- Não sei! Apenas fugir!
Guma se sentou e vestiu a túnica;
- Por que diz isso?
Afar sentou-se também;
- Porque posso fingir amar Musa, mas não sei se posso fingir
não amar você.
150
Guma sentia o peso de sua consciência;
- Afar! Está ouvindo o que está me dizendo? O que aconteceu
aqui foi um erro. Não devemos repetir isso nunca mais. Logo
estarei indo embora e...
Afar se levantou vestindo-se;
- O quê? Eu é que pergunto se está se ouvindo? Depois de tudo
isso, de toda a nossa história, você me diz que o que fizemos foi
um erro? E ainda diz que tem planos para ir embora? Eu
realmente devo ter me enganado sobre você! Não acredito que
permiti que me tocasse depois de ouvir todas aquelas histórias!
Guma foi até ela;
- Não é nada disso!
Afar
- Você deve mesmo ter se tornado um boçal, ignorante e
insensível! Ou a fortuna e a fama com certeza o tornaram quem
é hoje!
Guma a segurou pelos braços;
- Pare de falar essas coisas! Sabe que não sou assim! Olha pra
mim! (Afar o obedeceu). Eu amo você, tudo que fizemos foi
incrível. E posso dizer que jamais amei uma mulher como amei
você hoje, mas não seremos felizes sabendo que para ficarmos
juntos teremos que magoar outras pessoas. Você não pensa
nisso? Porque o coração que ainda me resta está explodindo de
felicidade por tê-la, mas também sofre por ter traído um irmão.
151
Afar se acalmou;
- É claro que penso. Aprendi a amar Musa, mas o que sinto por
ele nem mesmo se compara ao amor que tenho por você. Talvez
ele supere e seja feliz com outra pessoa. Sei que ele e Sunieri
foram felizes e apaixonados por um tempo. Prefiro acreditar que
tudo ficará bem.
Guma
- E se não ficar?! Conheço Musa melhor que ele mesmo, e sei
que esse tipo de coisa o destruiria! Ele iria nos odiar, caçar e
matar! Sou excelente com minha espada, mas sou um único
homem, e longe daqui não tenho poder algum. Serei apenas um
guerreiro. Também preciso ser realista e pensar que construí
uma família e uma vida aqui, não posso simplesmente ir embora
com você e esquecê-los, como se nunca tivessem existido.
Afar
- Sim, você pode! Nós podemos! Será meu guerreiro, e eu serei
sua todas as noites e pelo tempo que desejarmos. Não teremos
que nos preocupar se estarão nos vigiando, ou se seremos pegos.
Posso aprender a trabalhar, podemos dar um jeito...
Guma a interrompeu e a acariciou no rosto;
- Não, Afar, não faremos isso. Não podemos mais nos ver. Musa
irá providenciar a minha partida, eu aceitarei qualquer lugar que
me mandar ir, em qualquer posição que me colocar, não
questionarei. Serei o marido que Zaila sempre mereceu ter, e o
pai que deveria estar sendo. Você ficará, viverá com Musa como
sua esposa e irá amá-lo. E talvez, talvez um dia a felicidade nos
pertença.
152
Afar segurava Guma pelos braços;
- Não Guma! Não faça isso comigo outra vez! Não me deixe!
Não desista de nós! Eu não irei viver sem você! Não vou
suportar essa dor outra vez!
Guma a abraçou acalentando seu choro;
- Você vai, Afar! Vai viver sem mim, e eu sem você, até o dia
em que a terra consumir nossos corpos e nossas almas
finalmente se unirem no eterno. Viveremos separados porque é
assim que o destino nos pede que seja. Não sabemos o porquê,
mas devemos ser obedientes. (Ele a olhou nos olhos e Afar pode
perceber que ele também chorava). Eu te amo e vou te amar para
sempre, mas devemos nos separar.
Repentinamente, palmas foram ouvidas, Musa saiu das
sombras onde os tecidos volitavam ao sopro da brisa refrescante.
Os olhos vermelhos deixavam lágrimas escorrerem feito lava
vulcânica pelo rosto igualmente rubro de raiva, qual claramente
demonstrava que o Mansa sabia exatamente o que estava
acontecendo. Axar o acompanhava e servia de testemunha da
cena romântica entre o casal de amantes. Musa bateu três vezes
no centro do próprio peito com um dos punhos fechado. Afar e
Guma ficaram estupefatos.
Musa
- Punhaladas! Duas punhaladas! É o que estou recebendo dos
dois!
Guma
- Musa...
153
Musa gritou;
- Calado! Não tem o direito de dirigir a palavra ao seu soberano
sem que ele permita, seu traidor! Eu devo parabenizá-lo por todo
o fingimento dessa manhã, onde você me jurou sua fidelidade,
canalha! (Ele se virou para Axar). Axar! Chame os guardas! O
comandante será preso e julgado como traidor insolente que é!
Afar
- Não! Não pode fazer isso!
Musa a fitou com ódio e gritou;
- Não o defenda! Como ousa fazer isso bem na minha frente?!
Como ousa falar comigo, olhar para mim depois de tudo que
disse?
Afar
- Musa, por favor! Sei que podemos explicar se assim permitir.
Musa gritou furiosamente indo para cima de Afar;
- Não há o que explicar!
Guma por um reflexo deu um salto para frente no
impulso de defender Afar, uma vez que pareceu que o imperador
desejava agredi-la, mas logo se conteve percebendo que Musa
não tinha essa intenção.
Musa virou-se para ele;
- O que foi?! Acha que pode defender a minha esposa da minha
ira?! Seu tolo! Eu sou o marido dela! Ela pertence a mim! A
mim!!!
154
Guma
- Precisa se acalmar, Musa! Para tudo que ouviu existe uma
explicação.
Musa aproximou-se dele;
- Não existe explicação para traição! (Musa cuspiu em seu
rosto). Em pensar que ainda hoje eu o chamei de meu amigo. (A
guarda chegou). Levem Guma para a ala dos escravos, e
prendam-no no buraco mais desprezível desse lugar.
Afar
- Musa, por favor! Deixe-me explicar, Guma não tem culpa! Fui
eu quem o seduziu!
Musa se irritou ainda mais;
- Eu não quero ouvir nem mais uma palavra, Afar! Você já
deixou bem claro a quem realmente pertence o seu amor. Será
escoltada até seus aposentos, e será mantida lá até segunda
ordem. Levem eles! E que nenhuma palavra do que aqui
aconteceu seja dita nem mesmo dentro deste palácio.
Guma deixou-se levar sem nenhuma resistência,
conhecia o trajeto até as pequenas e fétidas saletas onde os
escravos mais rebeldes eram deixados nas galerias subterrâneas.
De repente, viu-se um miserável, pensando que não havia saída
se Musa realmente ouviu tudo que fora dito, todavia, não
desejava mentir se lhe fosse dada a oportunidade de se explicar.
Às cinco horas e meia que passou sentado no chão gelado de
lodo e excrementos não o atormentaram, e nem mesmo ele
entendia como podia estar tão calmo em uma situação tão
desesperadora, uma vez que sabia que Musa não o perdoaria
155
pela falta de verdade entre eles, e por ser ele o dono do coração
de Afar. Seu pai, Goé, qual já havia falecido alguns poucos
anos, por ser espírito entendido e resignado, fora resgatado por
seus amigos e familiares espirituais pouco tempo após seu
falecimento, e na verdadeira vida do mundo dos espíritos, fora-
lhe concedido que acompanhasse a trajetória do filho errante,
qual havia se responsabilizado como pai quando lhe ajudou a
conceder a vida de Guma na carne. Goé ainda se sentia
responsável, e lá estava, na masmorra escura e sombria ao lado
do filho, fazia preces, rogando ao alto para que o fardo de seu
amado filho, fosse leve, e que o Senhor pudesse conceder-lhe a
força e a coragem para suportá-lo até o fim, uma vez que Goé já
pressentia o possível caminho que Guma teria que percorrer na
remissão de seus crimes cometidos não somente naquela vida,
mas também em vidas passadas, para que lhe fosse possível
alçar o belo voo da alma pecadora em direção a purificação de
sua própria consciência, caminho este, inevitável a cada um de
nós. A calma de Guma provinha dos fluidos que o pai lançava
sobre ele com o auxilio da prece e dos espíritos superiores, quais
os olhos humanos não podiam enxergar devida à sutileza da
matéria fluídica, mas uma redoma de luz esbranquiçada se
adensava ao seu entorno, e sobre fluxo contínuo, concentravam-
se na cabeça e no tórax na parte cardíaca.
Guma estava resignado, pois por mais que seus
pensamentos superficiais rodeassem não o permitindo entender
por que se sentia estranhamente imperturbável, seu inconsciente
sabia que o momento da prova lhe havia chegado, haja vista que
a oportunidade de escolher não trair o irmão amigo outra vez,
abdicando de suas vontades na prática do desprendimento de si
mesmo, lhe fora dada para que pudesse viver outra possibilidade
um tanto branda, no pagamento das mesmas dívidas que o
156
destino não deixaria de cobrar de qualquer maneira. Contudo, o
velho guerreiro não conseguiu resistir como observado nas
cenas anteriores, de modo que o caminho agora escolhido por
sua fraqueza e traçado pela lei de causa e efeito, lhe seria
inevitavelmente mais cruel.
Guma fora arrancado do cubículo por soldados, os quais
não demoraram em esquecer que até o dia anterior recebiam
ordens do mesmo infeliz que ali estava, e mesmo sabendo que
sua estrutura corpulenta e forte lhe permitia revidar naqueles
quatro homens os golpes que levava no rosto e no abdômen,
decidiu sofrer o ataque. Por vontade de Musa, suas vestes nobres
lhe foram tiradas e substituídas pelos trapos dos escravos. Por
um momento pensou em Zaila e nas crianças, e lembrou-se de
orar para o seu Deus pedindo para que Ele os amparasse, pois
temia nunca mais poder vê-los novamente, recordando que
naquela manhã não fora se despedir da filha que brincava no
jardim como de costume, porque seus pensamentos estavam em
Afar. Guma fora levado para a sala do trono, onde Musa o
esperava incrédulo de sua inocência.
O semblante de Musa, agora estava coberto por certa
frieza, Guma fora compelido a prostrar-se diante dele, e em sinal
de respeito, mas principalmente porque conhecia sua culpa,
manteve a cabeça baixa. Suas mãos estavam atadas para trás e
claramente se via pelos ombros caídos o cansaço psicológico
que o abatia, assim como também era visível em Musa.
Musa
- Por quê? É só o que eu quero saber, depois você será
executado.
157
Guma
- Afar e eu nos conhecemos bem antes de...
Musa falou irritado;
- Ela já me contou esse absurdo!
Guma, cansado, olhava nos olhos de Musa;
- Então irá se lembrar de que há muitos anos, no mesmo terraço
de hoje, antes mesmo de eu me casar, reparou que eu sofria de
certa forma por causa de uma mulher a qual eu não quis revelar
o nome...
Musa riu desacreditado;
- Isso é um absurdo. Vai me dizer que a mulher era Afar?
Guma
- Me arrependo de não ter sido totalmente sincero naquele
momento.
Musa
- Isso sim é verdade! Não foi sincero comigo, Guma!
Guma
- Me contou que no tempo que esteve em Tombuctu, Afar o
levava para a margem do rio para verem o pôr do sol. Ela fazia a
mesma coisa comigo, por isso sei que quando o sol está prestes a
desaparecer, ela abre os braços, fecha os olhos e roga aos
espíritos do rio para que estejam ao lado dela. Crença essa, que
aprendeu com os escravos do pai.
158
Musa aproximou-se de Guma;
- Isso não é possível! Você... Você não pode ser justamente
aquele que eu mais invejei.
Guma
- E vai conseguir se lembrar de que sempre que estava comigo
ao pôr do sol, me via fazendo a mesma coisa, porque na verdade
fui eu que a levei naquele rio certa vez onde nos amávamos
antes de nos separarem.
Musa
- Já chega! (Musa caminhou desnorteado de um lado para o
outro). Então, a cidade de onde viera...
Guma
- Tombuctu. Eu nasci lá e cresci com Afar, meus pais eram fies
servos de Farrima e Sosso, a mãe, e o pai de Afar, que foi quem
me mandou para cá para servi-lo, simplesmente porque nos
amamos desde criança. Mas nem os anos ou à distância
conseguiram fazer com que eu a esquecesse. Afar foi arrancada
de mim, e eu dela, como as raízes são tiradas da terra na
tentativa de que se elimine o mal por definitivo. Eu quis
acreditar que isso seria possível, mas quando você a trouxe e eu
a vi bem na minha frente, como sua esposa, eu...
Musa
- Por isso me pediu para ir embora?
159
Guma
- Sim! Eu nunca planejei trai-lo! Você sempre foi um irmão pra
mim, e saber que Afar era sua, foi... Eu tinha que ir embora,
sabia da minha fraqueza e precisava partir.
Musa
- Então por que me traiu? Por que não foi embora antes?
Guma
- Teria resistido se fosse você no meu lugar? A mulher que você
sempre amou, e que sabe que também te ama está ao alcance das
suas mãos. O coração acelera e você não consegue mais pensar,
apenas age com o instinto animal que ainda vive fortemente
dentro de você. Você se esquece de onde está, de quem é, do
que é certo ou errado, nem mesmo sabe se ainda respira porque
sua consciência desliga e você está tão interiorizado que não
ouve nenhum outro som sem ser a voz dela. Você está... Está tão
mergulhado no turbilhão de sentimentos dentro de você que não
se sente mais uma pessoa. É como se tudo se expandisse e você
fosse imenso como o céu e ao mesmo tempo pequeno como um
grão de areia. Eu o traí porque fui fraco em sentir um amor tão
forte ao ponto de não me importar se isso custaria a minha vida.
Musa
- Então não está arrependido?
Guma
- Me arrependo de magoá-lo.
160
Musa
- Por que não disse, Guma, assim que olhou para ela? Assim que
soube que era ela? Por que não me contou tudo isso?
Guma
- Já estava casado com ela! Do que adiantaria? O que faria de
diferente? Deixaria de me odiar?
Musa
- Eu não te odeio porque você a ama, te odeio por não ter sido
sincero, por não ter sido meu irmão. Odeio por ter sido tão fácil
me trair depois da vida que eu te dei. Eu fiz você se tornar quem
é hoje, por isso me devia sua lealdade, e por isso também irá
pagar com a vida pelo seu erro. (Musa falou a um dos soldados).
Tragam Afar aqui!
Afar não conseguiu parar de chorar, imaginando o que
Musa iria fazer com Guma. Nas horas anteriores, contou e
repetiu toda sua história com o comandante até o momento do
seu reencontro com ele, não deixando de afirmar a Musa que
sempre o amou, e que apesar de ter se apaixonado pelo
imperador, ainda era a Guma que pertencia seu coração. Quando
a jovem avistou o ex-comandante na terrível situação em que
estava, pois que o rosto sangrava e o corpo estava sujo, teve o
impulso de ir ao seu encontro abraçá-lo.
Afar
- Guma! O que fizeram com você?!
161
Musa ordenou;
- Segurem-na! (Ele caminhou até Afar). O que você fez com ele.
Guma responderá por seus crimes porque você se deixou
seduzir.
Afar
- Eu já disse que não fui seduzida. Isso é o que você quer
acreditar.
Musa gritou inflamado pela fúria;
- Cale-se ou eu...!!! Eu esquecerei que apesar de tudo, ainda a
quero para mim. (Ele voltou a se acalmar). É necessário que eu
pergunte, para que assim possa determinar melhor a sentença, se
devo apenas torná-lo um escravo, ou se deve ser executado.
Você se entregou para ele?
Afar
- Não! Não fizemos nada! Escravize-o! Mande-o para outro
lugar, mas não tire sua vida! Não faça isso, Musa! Eu imploro!
Musa caminhou até Guma e o encarou;
- É verdade?
Guma engoliu sua sinceridade, não se achou no direito
de mentir mantendo-se calado, porém, seu olhar confirmou que
havia feito amor com Afar. Como Musa o conhecia bem,
entendeu a silenciosa resposta.
Musa
- Muito bem! Será executado pela manhã, mas não antes de ser
castigado.
162
Afar gritou desesperadamente;
- Não!!! Não pode fazer isso!!! Não pode matá-lo!!! Eu vou te
odiar, Musa! Vou te odiar pelo resto da minha vida! Vou te
odiar por toda minha existência! Não faça isso! Deixe-o ir e eu
serei sua esposa! Serei a melhor esposa que poderá ter! Eu vou
te amar! Mas deixe que Guma vá embora! Castigue-o, mas deixe
que ele viva!
Musa a fitou friamente;
- O que pensa que sou? Uma criança? Que pode me convencer
com promessas? Guma será executado, e apesar de ainda ser
minha esposa, você será uma serva para mim e fará tudo que eu
mandar. Viverá enclausurada nos seus aposentos, as janelas
serão fechadas e nunca mais verá o pôr do sol, até o dia em que
seus olhos se fecharem para sempre. Se não me obedecer, serei
obrigado a usar a força e o poder que me é legítimo. (Ele virou-
se de costas e ordenou aos guardas). Agora levem eles daqui.
As ordens de Musa foram severamente cumpridas. Guma
recebeu as chicotadas, quais foram dadas sem misericórdia,
onde suas carnes foram retalhadas pela pequena ponta de prata.
O imperador se sentou sozinho na sala que conservava pouca
luz, descansado sobre o trono de ébano, sentia como se seu
corpo carregasse o peso de mil homens. Havia uma voz sutil e
quase falha no fundo da sua consciência lhe dizendo para que
não fizesse aquilo, que vingar-se seria errado, que apesar de sua
dor, deveria perdoá-los e permitir que seguissem suas vidas se
assim desejassem, uma vez que o próprio destino se encarregaria
de cobrar suas dívidas. A voz lhe instruía para o esquecimento
de si mesmo, fazendo-o saber que Deus o ajudaria a curar suas
feridas. Mas Musa não conseguia escutar, o orgulho estava
163
ferido e a vaidade derrotada inflamou seu ódio, o que
possibilitou que gerasse em volta de si um campo energético
propício para que a falange de espíritos comprometida com as
trevas se aproximasse por sintonia e invadisse seus
pensamentos, lhe hipnotizando com ideias malévolas e
despeitadas. O Mansa, assim, por ainda não saber e não
conseguir administrar seus sentimentos, fechou-se no calabouço
de sua cólera e se entregou a escuridão de sua alma.
Todavia, na calada noite que ainda se alongava, um
soldado qual muito admirava seu comandante, de nome
Abdulaye, despistou os companheiros que tomavam conta da
sela de Guma após o cumprimento do castigo, e sem nenhuma
dificuldade, conseguiu resgatar o amigo ferido. Surpreso com a
atitude do garoto, Guma não negou a ajuda, entendendo que
precisava aproveitar a oportunidade que lhe aparecia. Sabia ele
que não poderia mais ficar em Niani, e triste por não ter tempo
para poder se explicar e se despedir da esposa e dos filhos,
pegou o camelo que Abdulaye deixou atrás do palácio e seguiu
pela rota de fuga que sabia ser a dos escravos.
Zaila fora comunicada do destino do marido, e sem
pensar duas vezes, correu até Musa para implorar pela vida do
pai de seus filhos. Seu pedido fora insistentemente negado, mas
o mansa lhe prometeu que não tiraria sua fortuna, e que
permitiria que seus filhos vivessem se caso ela viesse a se mudar
para outras terras que não fossem as suas. Sem escolhas, Zaila
manteve-se forte, e obedeceu a implícita ordem.
Quando Musa foi avisado da fuga de Guma, sua ira fez
com que apontassem um responsável, e Abdulaye não escapou à
164
memória dos soldados que havia enganado. O menino de apenas
dezoito anos fora executado no lugar de seu protegido.
Afar, presa em seus aposentos, sem nenhuma de suas
criadas para lhe servir, estava incomunicável, portanto não ficou
sabendo que seu amado havia escapado da morte. Debulhou-se
em lágrimas e gritou por todo aquele dia como uma louca,
acreditando que a vida de Guma já havia sido tirada. Até que o
cansaço a venceu, e a voz lhe faltou, uma vez que seus gritos
foram tão aterrorizantes que suas cordas vocais sofreram séria
inflamação, não lhe permitindo mais falar por longo tempo.
Alguns meses se passaram, não sendo necessário dizer que
desde aquele dia tudo nela virou deserto. Quando Musa a
visitava, tinha certeza que dentro do corpo imóvel e dos olhos
vazios, não havia mais uma pessoa. Afar foi congelada pela
imensa tristeza que a consumiu, desta forma, o imperador
permitiu que suas criadas voltassem com seus cuidados, uma
vez que observou que a jovem esposa definhava, não se
movimentando mais, nem mesmo comendo, apesar da gravidez,
onde gerava um filho que sabia ser de Guma. Um dia, uma das
escravas que a banhava, atreveu-se a dizer em seu ouvido que o
comandante Guma havia fugido antes de ser levado para a
execução, e que o imperador proibiu que falassem nesse assunto
quando estivessem com ela. Afar, após todo aquele tempo,
direcionou seu olhar para o da escrava, permitindo que um
ligeiro e gentil sorriso brotasse no canto da boca.
Com o estado debilitado de sua segunda esposa, Musa
enviou uma longa carta a Sosso onde contou com detalhes tudo
que se passou até aquele momento, e junto à correspondência,
enviava também a criança qual Afar veio a dar a luz, um menino
forte de nome Goé, explicando-lhe que o filho não era seu.
165
Pouco tempo depois, pelo sofrimento da separação de Guma e
agora de seu filho amado, Afar faleceu sozinha em seu quarto,
quando pela falta da vontade de viver, contribuiu que o corpo
enfraquecesse a tal ponto que não lhe fosse possível conservar a
vida. Decisão essa, também considerada uma forma de suicídio,
uma vez que somos responsáveis pela preservação e bem-estar
da matéria que nos é dada, feito maravilhoso presente, onde
devemos seguir o cumprimento das expiações de nossas provas,
para assim ascendermos às camadas da luz e do bem, na divina
direção do progresso espiritual.
O que não tinha como ninguém saber, era de que forma
se seguiu o destino do nosso guerreiro. Guma percorreu longo
caminho sobre o camelo, que de esgotamento e desidratação
morreu na estrada. Mesmo sendo ele um homem forte, o
sangramento das feridas o abateu, sofrendo ainda com a fome e
a sede no inóspito clima onde era muito quente pelo dia, porém
muito frio à noite, uma vez que caminhou por longo período
pensando ser perseguido pelos guardas de Musa, arrancando as
últimas fibras de sua resistência, quando seus pés machucados
pelas pedras do caminho, cederam aos maus-tratos. Guma usou
uma rocha para apoiar o corpo que implorava por descanso, e
encolhido feito animal ferido, tentava se proteger do frio e do
vento. Assim fora achado por mercadores de escravos, quais
vinham do oriente. Deduzindo que o forte negro havia fugido de
seu senhor, os mercadores apanharam o comandante que não
teve forças para se defender. E por poucos meses Guma sofreu
fortes golpes de homens tão brutos quanto ele, uma vez que
tentava convencê-los de que não era escravo, contudo, aos
mercadores não interessava seu nome ou sua história, Guma era
uma boa mercadoria devido ao seu porte. Acorrentado pelos pés
166
e pelas mãos, as covardes surras que levava toda vez que repetia
seu nome, o fizeram inibir sua própria identidade, ele percebeu
que de nada adiantaria tentar provar que não era um escravo,
uma vez que a vida o havia tornado um. Em certa caravana,
acorrentado a outros tantos negros fugidos, capturados e mesmo
roubados de suas famílias, viajou para o Egito onde fora vendido
para as galeras do Mediterrâneo. E mesmo tento aprendido a se
manter calado e obediente, Guma inexplicavelmente despertava
a fúria dos companheiros de miséria, onde muitas vezes se via
obrigado a se defender em lutas truculentas, quais sempre
ganhava, com homens onde suas ideias e atitudes
assemelhavam-se a bestialidade de animais ferozes, almas ainda
enraizadas no primitivismo do ser. Certa feita, quando ainda
dormia, por vingança e covardia, Guma recebeu um forte golpe
na cabeça, qual o fizera sangrar até perder a consciência. O ex-
soldado foi deixado na estrada, sua respiração e seus batimentos
cardíacos ficaram tão fracos que fizeram acreditar que ele estava
morto. Mas, pela necessidade de se resgatar com suas faltas das
vidas pretéritas, ao acordar não conseguiu recobrar sua
consciência, perdendo a fala e a memória, sendo lesadas as
partes de seu cérebro quais na vida passada ele violentou por
vontade própria na decorrência do suicídio.
Pela lei de causa e efeito, pela força e necessidade do
resgate das próprias faltas, qual nos é cobrada através da própria
consciência, essência Divina pela qual somos criados, imaculada
semente de luz que vive em nós sob as terras da insensatez e da
ignorância da alma infantil, o velho guerreiro passou anos a
mendigar pelas ruas de Alexandria, não tinha memória, não
sabia quem era, mas também se soubesse, desaprendera a falar,
ainda com os pensamentos perturbados e assombrados pelos
167
espíritos que vinham volta e meia cobrar suas dívidas pelas
ações ignóbeis praticadas em outras existências, Guma ficara
conhecido como o louco do sol, pois que todo fim de tarde,
aproximava-se do oceano, e sem nem mesmo saber por que fazia
aquilo, abria seus braços para o poente, fechava os olhos e sentia
leve alívio na alma sofredora. Goé, seu pai, nunca o abandonou,
e por todos aqueles cinquenta anos ele esteve ao seu lado
rogando a espiritualidade maior, a Jesus e a Deus, fazendo
preces pelo filho louco e maltrapilho que vivia das migalhas da
pouca compaixão que encontrava pelo caminho. Guma veio a
falecer com quase oitenta anos, quando em uma bela e calma
tarde, onde o ar perfumado pela maresia refrescante e o aroma
das flores amareladas adoçavam seu simpático sorriso
conformado com o destino calejado, onde seus passos já
vacilantes devido à idade, aproximaram-se de um elevado
rochedo, não muito alto, para contemplar e se despedir do astro
rei, viera ele a tropeçar nos próprios pés, causando-lhe a queda
inevitável sobre as pedras, onde seu corpo fora levado pelas
ondas do mar, vindo a desaparecer no fundo do oceano. O louco
do sol se desprendeu do fardo terreno.
Pela misericórdia Divina, e por ter cumprido boa parte
dos seus deméritos, Guma nada sentiu quando o vaso da vida se
quebrou nas rochas, desatando os nós que seguram a alma ao
corpo físico. Amigos espirituais, organizados por seu
benevolente pai e por sua amorosa mãe, ajudavam a afastar os
espíritos cobradores que lhe aguardavam no mundo das
sombras, onde ainda se mantinham presos pela força do
pensamento angustiante, entre eles estavam Raja e Musa, que
também sofriam no mundo espiritual. Contudo, o comandante
fora levado adormecido pelo efeito de fluidos, à sublime colônia
168
espiritual, cidade magnífica, de beleza exuberante, esfera astral
que emitia cintilante luz, qual resplendia sobre as camadas do
planeta e do cosmos. Avistavam-se ainda as belas construções
egípcias, templos monumentais e jardins suntuosos, quais
pareciam transmitir divina paz e exalar límpida tranquilidade
aos habitantes daquela maravilhosa colônia, sintonia de
sentimentos estes, que parecia ser possível respirar nas
micropartículas daquele ar etéreo, como se seus moradores
emanassem sutilmente tal efeito maravilhoso. Tudo naquele
lugar despertava sensação de alegria e beleza.
Guma fora levado para certo local onde seria possível a
reorganização de seu corpo fluídico, no qual receberia
primeiramente os devidos cuidados nas áreas afetadas do seu
cérebro lesado, para que assim lhe fosse possível recobrar as
vias da razão e a memória secular, tratamento esse que era
delicado e demasiadamente demorado, feito por amigos
especialistas na área da medicina espiritual. Outro grupo
trabalhava com passes na reorganização dos membros e o
funcionamento dos órgãos, revitalizando as áreas necessárias da
sutil matéria. Após longo tempo, foi possível que ele
despertasse.
A sala de cor branca reluzente possuía gravuras de cores
fascinantes em linha reta na parede, eram belos desenhos que
retratavam histórias que Guma sentia saber do que se tratava.
Fixou seus olhos no desenho de um homem que pregava em
uma montanha, e aproximou-se cambaleante, quando tentou
tocar, visualizou suas mãos, estavam jovens, e quando tocou seu
rosto, percebeu ter a idade de um homem não mais velho que
uns trinta e poucos, percepção essa que não lhe revelava muito,
169
uma vez que quando perdeu a memória estava com essa mesma
aparência, pois que após o choque, não percebera a passagem do
tempo e nem mesmo o envelhecer do corpo físico. Os
pensamentos ainda estavam confusos, e a memória, mesmo
restaurada nos seus mecanismos, ainda lhe falhava, uma vez que
passara muito tempo preso ao fardo carnal sem de nada lembrar,
seu corpo então, como engrenagem empoeirada, precisava ainda
do retorno de seu regular funcionamento através da força da sua
vontade. Uma jovem mulher abriu a porta com leveza, trazia-lhe
uma bandeja com um copo de água, a qual possuía fluidos
revigorantes. Guma não a reconheceu, mas pode sentir a bem
querência despertada em seu âmago, e não poderia ser diferente
sua reação, uma vez que aquela singela mulher fora sua mãe
pelos laços da carne e do coração. Hanaman tentava controlar
sua emoção, pois sabia que a possibilidade de seu filho a
reconhecer de imediato não era evidente.
Hanaman
- Olá, Guma! Como está se sentindo hoje?
Guma
- Ainda estou um pouco tonto. Sinto leve dor na cabeça.
Hanaman
- Onde? (Guma lhe mostrou o lobo temporal e Hanaman o
acariciou transmitindo-lhe fluidos analgésicos). Não se
preocupe, logo irá melhorar.
170
Guma
- Sinto que já está melhor! Mas... Onde estou? Não me lembro
de muita coisa, e apesar de não conseguir evitar a tranquilidade
que me toma, tenho leve inquietação sobre isso.
Hanaman
- Não se desgaste tanto. As lembranças voltarão a seu tempo.
Por hora, tente me dizer do que se lembra?
Guma parou com o olhar no vazio;
- Lembro-me de um clarão queimando meus olhos, mas de uma
forma boa. Vejo braços para cima e ouço um barulho aquoso.
(Ele inquieta-se). Nada faz sentido!
Hanaman sorriu carinhosamente;
- Está tudo bem. (Ela o acomodou na cama e o fez beber a
água). Não precisa se apressar, temos todo tempo do mundo.
Guma deu um gole;
- Também não me lembro de me dizer quem é você.
Hanaman o fitou com amor;
- Eu sou Hanaman. (Ela esperou para ver sua reação e logo
sorriu com singeleza). Sou enfermeira nessa localidade e vou
ajudá-lo até sua total recuperação.
Guma
- E eu estou me recuperando de quê?
171
Hanaman
- Você sofreu um acidente muito grave. Caiu e se machucou,
mas está se recuperando bem, e logo suas lembranças irão
retornar, vai ser nesse momento que precisará manter a calma e
o equilíbrio.
Guma sentiu leve desconforto na região do chacra esplênico;
- Calma e equilíbrio. Tentarei me lembrar.
Hanaman tocou em sua fronte;
- Não se preocupe. Você está seguro aqui. Deve descansar. Logo
estará recuperado.
A mão que Hanaman acariciava a fronte de Guma
transmitia-lhe paz e reconforto, pacificando os sentimentos que
as lembranças ainda escondidas no calabouço do inconsciente
traziam, no ansioso desejo que ele tinha de recobrá-la. Não era
mesmo aconselhável que Guma recobrasse por inteiro tudo que
havia passado, pois ele sofreria grande choque, e de certo isso
lhe seria prejudicial, podendo retardar a sua recuperação ou
mesmo prejudicá-lo. Ele adormeceu, e por muitas vezes
acordou, recebendo os cuidados da mulher misteriosa que o
fazia se sentir seguro e em paz. Qual também sempre aliviava as
eventuais dores que sentia na cabeça e no corpo. Após a
avaliação do seu estado, Guma fora levado até outra sala onde se
realizaria nova cirurgia. Despertando somente quando estava de
volta ao seu quarto, percebeu que a mulher zelava seu sono
reparador, ainda não se lembrando de nada, nem mesmo
sabendo que lugar seria aquele, tão diferente e belo.
172
Hanaman
- Se sente melhor?
Guma sorriu;
- Sim, porém ainda sofro a frustração de não me lembrar de
nada.
Hanaman
- Tenha calma.
Guma
- Só consigo ver a mesma imagem, de novo e de novo. (Ele a
olhou nos olhos). Sempre.
Hanaman
- Tenho certeza que ela o afaga de alguma forma.
Guma
- É certo que sim, mas também me causa grande agonia, como
se faltasse algo, como uma parte de mim.
Hanaman manteve-se quieta e Guma permitiu que seus
pensamentos divagassem, fora quando como que por um assalto,
algo lhe veio à mente.
Guma
- Espere! Afar!
Hanaman o fitava calmamente;
- Quem?
173
Guma deu um salto da cama;
- Eu... Eu não sei! Sinto que preciso vê-la! Ela está aqui?! Eu
preciso vê-la!
Hanaman o amparou;
- Acalme-se, Guma. Logo suas perguntas serão respondidas.
Guma
- Você a conhece? Ela está aqui?
Hanaman
- Não, não está. Mas fique calmo, nós a acharemos.
Guma a olhou no fundo dos olhos;
- Estou me controlando para ficar calmo, mas as lembranças...
(Ele torna a vaguear o olhar). Elas estão vindo! Vindo como um
rio que viaja e não cessa! Não posso evitá-las! Não consigo!
Talvez... Oh, Não! Afar! Tombuctu! O níger! (Guma se
emocionava) Não! Não é possível! Xerxes!
Xerxes fora o nome de Musa em sua encarnação na
pérsia, e era o nome qual por hora Guma conseguia recordar.
Hanaman o levou de volta para a cama;
- Não se perturbe, Guma! Vai ficar tudo bem.
Mais uma vez, a mãe zelosa colocou uma das mãos sobre
a fronte do enfermo, e assim ele se acalmou, adormecendo em
profundo e demorado sono.
No dia seguinte, Guma despertou aos prantos, não
somente sua memória recente havia sido recobrada, mas uma
174
boa parte de vivências anteriores, onde viu a crueldade de seus
atos e a iniquidade com que os praticava. A dor que sentia em
seu peito fora tanta que caiu de joelhos e implorou perdão a
Deus. Quando Hanaman abriu a porta, Guma atirou-se em seu
colo abraçando-a fortemente.
Guma
- Mãe! Perdoe-me! Perdoe-me, mãe! Eu falhei novamente!
Falhei novamente! Me perdoe!
Hanaman o envolveu em seus braços, confortando o forte
choro compulsivo, deixando que a túnica enxugasse as doloridas
lágrimas do filho. Guma não conseguia conter-se e os urros do
sofrimento seriam inexplicáveis se apenas tivesse recobrado os
erros da recente existência terrena. Porém, o guerreiro viu um
importante rei de coração cruel e egoísta, qual se aliou a bela
jovem que o seduziu tornando-se sua amante, possuidora dos
conhecimentos dos segredos ocultos da alquimia e do verbo
sobrenatural com o além, Mahara era conhecida pelo dom da
magia, haja vista que muitas vezes viera a usá-lo em benefício
próprio, causando grande dor até mesmo para todo um reino.
Em dia ensolarado, sobre as lajes de Persépolis, quando ainda
fazia sua caminhada, apaixonou-se de imediato pelo jovem Oco,
desde que o avistou entre a guarda real. General do exército,
Oco fora precocemente nomeado sátrapa, uma vez que seu dom
para a guerra fora observado pelo pai. Era destemido e possuía
sagacidade surpreendente para a arte da luta, e sendo o terceiro
filho, esforçava-se para obter a atenção do pai. Certa feita,
Mahara o surpreendeu em seus aposentos e ofereceu-se para
segui-lo onde quer que ele fosse, prometendo que o guiaria por
muitas vitórias, podendo mesmo torná-lo grande como ela o
175
enxergava. Oco também se apaixonou imediatamente por aquela
mulher misteriosa, de estupenda beleza e olhar penetrante.
Mesmo casando-se com sua sobrinha, qual teria sido Raja,
Mahara permaneceu ao seu lado como amante, uma vez que não
podia se imaginar sem aquele homem. Apesar de Oco não ser
herdeiro direto, veio a reinar como Xá, após organizar uma
revolta contra seu meio irmão, assassinando-o com fogo,
vingança essa também fomentada pelo fato de que esse meio
irmão havia assassinado seu pai e seu querido irmão Xerxes pela
conquista do poder. Oco tornou-se um rei sanguinolento,
incitado pelo relacionamento com Mahara, que também por
ciúme e despeito, direcionava sua raiva para suas vítimas,
fomentando junto ao seu amado, práticas de tortura como o
escafismo contra aqueles que julgavam seus inimigos, inclusive
seus parentes.
Ali estava o motivo pelo qual Guma e Afar precisavam
manter-se separados. Por muitos anos, em muitas vidas, mesmo
unidos por um sentimento puro, o casal de amantes contribuiu
para que um, tanto quanto o outro, aumentasse ainda mais sua
dívida com a Lei Maior, a Lei de Amor e de Caridade, qual
todos somos impelidos ao aprendizado no transcurso secular dos
erros da vida, da livre escolha e do amadurecimento humano.
No mais, Guma e Afar sacrificaram vidas no objetivo de se
manterem unidos e invictos, criando dívidas com esses irmãos,
acima de tudo, com suas próprias consciências. E já havendo
passado algumas encarnações desde a Pérsia, também houvera o
arrependimento de ambas as partes, no que tange o resgate de
suas dívidas, contudo, Guma descobriu antes de Afar, que
somente pelo caminho da abnegação, da resignação e da fé, que
se é possível alçar voo em direção ao Altíssimo e a verdadeira
176
felicidade. Ainda assim, seu amor por aquela criatura,
sentimento esse que nasceu no berço das ilusões sedutoras da
promiscuidade e da sensualidade, amadureceu durante o
processo do longo fio das vidas que tiveram juntos, e se tornou
árvore belíssima com fortes raízes fincadas no terreno do
coração.
Por mais que os tempos tivessem passado e Guma já
entendesse que Deus não nos culpa nem nos pune por nossas
malévolas ações, e que essa cobrança é feita verdadeiramente
pela nossa própria consciência que através das vivências
inevitavelmente amadurece no bem, o sofrimento o abalava,
sendo ainda difícil que ele próprio se perdoasse, uma vez que
também sabia que aquela mulher que o abraçava com todo
carinho e dedicação, e que viera lhe dar a vida na última
existência terrena possibilitando seu avanço moral e espiritual
através da experiência na carne, fora uma de suas vítimas no
passado, assim como o pai que ele tanto amava. Guma chorava
rios de lágrimas que brotavam da nascente do fundo de seu
peito, e desaguavam por seus sofridos olhos negros como fonte
de bálsamo que expurga as chagas da alma arrependida.
Hanaman também se emocionava, mas suas lágrimas eram de
gratidão por finalmente estar vendo aquele ser tão querido
passar pelas etapas mais duras do crescimento e da iluminação
da alma, com força e com fé.
Hanaman
- Meu filho, precisa descansar! (Hanaman o ajudou a se
levantar).
177
Guma a encarou com o rosto banhado em lágrimas;
- Como poderei viver com tudo isso?! Com todas essas
lembranças?!
Hanaman
- Como todos nós vivemos. Na senda da vida, somos todos
infratores da lei de amor e caridade, e quando chegamos ao
ponto em que entendemos isso, podemos também compreender
quando nosso próximo, ainda cego da verdade maior, comete
seus enganos. Dessa forma, entendemos o que é o verdadeiro
perdão, e então podemos ser úteis praticando o bem. Assim,
haverá um dia em que teremos feito mais o bem que o mal, e
essas lembranças não nos machucarão tanto, pois irão servir
apenas para nos lembrar de que foi necessário passar por essa
ponte, fazendo-nos entender os irmãos que ainda estão
cruzando-a.
Guma
- Ainda assim, é difícil me perdoar.
Hanaman
- O tempo é remédio para todos os males, Guma. (Hanaman
sorriu brandamente). Tem alguém aqui que deseja te ver.
Goé passou pela porta, e movido pela força da saudade,
deu forte abraço no filho que agora se emocionava por
reencontrá-lo.
Guma
- Pai! Que saudade, pai! Também preciso te pedir perdão!
178
Goé emitia luminoso sorriso;
- Guma, meu filho! Que bom que está entre nós! Só falamos de
perdão com aqueles que se sentem ofendidos, eu estou é muito
feliz por finalmente poder vê-lo se recuperando.
Guma
- Por que não veio antes?
Goé
- Tenho trabalhado muito, junto a outros irmãos, graças a Deus!
E sabendo que sua mãe reservou esse tempo para cuidar de
você, não precisei me preocupar. (Guma manteve-se pensativo).
Sei que está ansioso para ver Afar, mas precisa se recuperar
antes.
Guma
- Eu sei, é que não consigo evitar os pensamentos sobre como
ela está. Eu a deixei em circunstâncias tão comprometedoras.
Sei que também sofreu e sofre com tudo isso.
Goé
- Mas precisa entender que você não poderia ajudá-la nesse
momento, antes, deve estar totalmente equilibrado.
Guma
- E onde ela está? Eu poderei vê-la?
Goé
- Não, meu filho. Afar encontra-se em um lugar onde seus
sentimentos estão afinizados. Creio não ser o melhor momento
para lhe revelar isso, mas sei também que não te furtará a
179
preocupação e a curiosidade só te corroerá as energias que deves
empenhar na tua melhora para ajudar aqueles que tu amas.
Contudo, saiba de antemão que temos amigos tão empenhados
quanto nós no progresso de Afar. Mesmo eu tenho sempre ido
visitá-la e muitas vezes conversamos. Afar exasperou-se e
entrou em profunda depressão após aquele triste dia em que
você fugiu. Musa esforçou-se para que ela acreditasse que sua
morte havia sido concluída, e mesmo uma serva lhe revelando
que você havia escapado, a jovem não encontrou forças para
suportar novamente a ideia de viver sem você. Quando a
gravidez foi descoberta... (Guma arregalou os olhos de surpresa
e Goé lhe segurou uma das mãos). Sim, Afar teve um filho seu,
Guma. Quando descobriu que estava grávida, ainda enxergou
certa esperança no futuro, lutando para que a tristeza não a
consumisse, conservando e transferindo todo o amor que tinha
para a criança. Porém, assim que o menino nasceu, Musa o
mandou para a casa de Sosso, mas a criança recém-nascida não
resistiu a viagem. Afar enlouqueceu antes mesmo que seu corpo
definhasse por completo, e mesmo já havendo deixado o corpo
putrefato na clausura daquele quarto, sua alma ainda acreditava-
se presa no recinto em eterna agonia. Não fora fácil fazê-la
perceber que seu físico já havia morrido, todavia, mesmo
percebendo que estava na vida após a morte, não conseguiu
abandonar o sofrimento por todos esses anos, isolando-se em
vale tenebroso.
Houve longo silêncio no ambiente, mas a face e o
profundo olhar de sofrimento de Guma, diziam muitas palavras.
Estava ele dilacerado pela dor de saber que sua amada até
aqueles dias ainda sofria a sua falta, e sentiu-se responsável por
todos aqueles acontecimentos, mesmo pelo filho amado que não
conheceu e que tão breve morreu.
180
Goé
- Não se deixe abalar pela tristeza, Guma. A planta, para
contemplar o sol, antes precisa vencer o impositivo da terra
sobre ela, abrindo caminho com sua própria força de vontade até
chegar à superfície, onde realmente começará sua jornada. Só
poderá ajudar Afar, se estiver suficientemente forte para resistir
às vibrações de dor e desespero que os assola. Precisas estar
bem para ajudá-los.
Hanaman
- Escute seu pai, meu filho! Aproveite esse tempo longe de Afar
para crescer e aprender. E através da superação de si mesmo e
do burilamento que os aprendizados da vida nos oferecem,
quando menos esperar poderá estar junto a ela.
Guma
- E Xerxes?
Goé
- Está perguntando sobre Musa. Ele ainda não se perdoou pelos
erros que cometeu após a sua partida. Culpa-se incansavelmente
pela morte de Afar, qual sabemos que ele criou fortes laços
quando em vivências anteriores, foi seu marido. Ainda
encarnado mudou alguns hábitos, fez peregrinações, atos
religiosos, mas não percebeu que essas atitudes eram externas, e
que o que precisava mudar era seu íntimo, os sentimentos que
conservava, o ódio que o consumia, e o perdão que nunca
conseguiu consentir. Ao se desprender do corpo, isolou-se no
seu sofrimento, e não nos permiti chegar perto desde então. Ele
sempre o procurava, e incitava os escravos ao seu redor para que
brigassem com você, até que conseguiu machucá-lo na cabeça.
181
Infelizmente, não pode perdoar sua traição. Mas devemos
perseverar. Musa possui grande coração, apenas precisa superar
o orgulho inflamado pelas muitas vidas que teve favorecidas
pelo poder e a glória.
Guma
- Sei que sou culpado por seu sofrimento. Eu nunca quis
machucá-lo, mas sempre que tento não fazer isso, parece que
todas as forças me arremessam a fazer justamente o contrário.
Hanaman
- Meu filho, do que adianta desperdiçar esse tempo se punindo?
Assim que estiver recuperado, nós conversaremos, e creio que
será possível que possa ajudar Musa a vir conosco para a
colônia. Como todos nós, Musa fez coisas ruins, mas tem seus
méritos. E não temos dúvidas de que ele também o ama como a
um irmão.
Goé
- Sim. É inacreditável como tantos irmãos perdidos pelo
desvario do ódio, não percebem que esse sentimento também é
uma forma de amor.
Aos poucos, a felicidade foi brotando de dentro do nosso
guerreiro, trazida pela esperança de dias melhores, e pela certeza
de que Deus estava junto a ele. Guma podia sentir aquela força
maior no seu coração, como se fizesse sólido abrigo, onde era
impossível existir qualquer sensação de vazio ou de solidão, até
mesmo quando em dias de profunda melancolia, isolava-se em
recantos de tranquilidade serena, a força dentro dele, como
182
amigo incansável, o revigorava lhe dizendo em seu íntimo:
Ânimo, meu filho! A vida é maravilhosa!
Passou-se poucos anos até que ele pudesse finalmente
visitar Musa. O irmão de outrora e imperador do Mali,
encontrava-se em região trevosa, moldada pelos fios do rancor e
da raiva que sentia, onde também encontravam-se outros tantos
espíritos que possuíam afinidade com aquela vibração de sede
de vingança e ódio. Todavia, Musa passara tempo o suficiente
preso naquela camada vibracional, possibilitando o agravamento
de seu sofrimento, e agora encontrava-se exausto, uma vez que
naquele lugar, não possuía escravos e nem era imperador, nem
mesmo coisa nenhuma. Espíritos de perversidade maior, o
haviam capturado, e ele fora escravizado por certo tempo, até
que lhe foi possível fugir com a ajuda de amigos espirituais que
tentavam resgatá-lo, porém, aterrorizado, Musa sentia medo e
fugia.
Guma, com o auxílio de Goé, Hanaman e mais alguns
experientes amigos, foi levado até fétida caverna de profunda
escuridão e frio intenso, onde no canto de uma parede,
encontrou seu irmão praticamente desnudo e com o corpo
coberto por lama e algumas feridas, agachado e encolhido perto
da parede rochosa. O guerreiro sabia que não poderia demorar,
uma vez que os sentimentos que moldavam aquele panorama
eram muito intensos, e Guma ainda não possuía força o
suficiente para permanecer em tal local sem sucumbir ao
envolvimento com aquela energia. Uma áurea cintilante e
brilhosa circundava todo o seu corpo, e fora ela que iluminou
aquele lugar chamando a atenção de Musa, que de imediato não
o reconheceu e gritou para que ele se afastasse, escondendo o
rosto barbado e desfigurado pelo sofrimento, entre os braços e as
183
pernas magras pela fome que ele acreditava sentir. O irmão não
insistia e partia. Guma fora recepcionado dessa forma nas três
tentativas quando retornava à caverna para resgatar Musa. Na
quarta, ele finalmente conseguiu se aproximar, e Musa o
reconheceu, contudo, ainda preso aos sentimentos da traição, o
xingava e tentava agredi-lo. Ferido e exausto, percebera que
suas investidas de nada adiantavam, até que finalmente aceitou,
ainda a contra gosto, a ajuda de Guma, que com amor e carinho
o levou para a colônia onde pudesse se recuperar. Após
determinado tempo, Musa passou por processo parecido com o
de Guma, lembrou-se das muitas vezes em que o irmão o
magoou, mas também não pode lhe fugir às memórias das
muitas vezes em que Guma tudo fez para salvá-lo pelo tanto que
o amava. Mesmo ainda sendo difícil, longos anos se passaram,
até que finalmente entendeu que precisava perdoar o irmão pela
sua fraqueza, uma vez que ele próprio não era perfeito e também
praticara seus equívocos.
Guma alegrou-se, e cada vez mais sentia as raízes da fé
viva se fincarem em seu peito, com a alegria e confiança que
construía em si mesmo, através dos trabalhos de resgate que
fazia nos planos espirituais junto a Goé e Hanaman. Assim,
aprendera a esperar sem questionar, mesmo sabendo que não
podia esconder seus sentimentos e a saudade que sentia de sua
Afar.
E lá estava o comandante, de volta ao reino do Mali, no
palácio imperial agora deserto e silencioso, onde somente a
melodia do vento era orquestrada pelas lembranças que possuía.
Afar ainda acreditava-se presa naquele quarto escuro e frio, e
nenhuma tentativa de qualquer irmão espiritual a convenceu de
184
que seu sofrimento não a ajudaria, e que ela poderia abandonar
aquele local. Mas a jovem, submersa pela escuridão da própria
alma, não se interessava em ser resgatada e se sentia exausta
para ter interesse em se levantar dali. Guma penetrou nos
escaninhos da confusa e deprimida vibração que Afar criou em
torno de si, encontrando-a recolhida em uma parede, imóvel
como um objeto inanimado, ela repetia palavras para si mesma,
e clamava por seu nome. Guma esperou não precisar que aquele
momento chegasse, fez preces para que Afar conseguisse sair
daquela situação antes que ele fosse autorizado a vê-la, mas lá
estava sua amada. Ele se aproximou tentando conter o impulso
de ir abraçá-la, segurá-la no colo e tirá-la dali, mas não, isso
seria imprudente, era necessário pelo bem de Afar que ela
mesma vencesse seus obstáculos e buscasse o caminho da
regeneração. Era preciso que a sua própria vontade a tirasse da
situação em que ela se colocara.
Afar inquiriu ainda imóvel;
- Quem está aí? Já disse que não irei a lugar algum! Guma virá
me buscar, nós resgataremos nosso filho e fugiremos para longe!
(Ela gritou). Vá embora!
Guma se abaixou ao lado dela calmamente, tentando
controlar a desconfortável emoção que sentia por ver aquele ser
tão amado em estado emocional tão deprimente. A fraqueza de
Afar era evidente, recolhida como a um animal indefeso, a
energia que seus pensamentos liberavam era de medo e tristeza.
Ela ainda não havia olhado para o rosto iluminado de Guma,
estava decidida que ninguém a tiraria dali.
185
Guma
- Afar, eu não a forçarei sair daqui se não desejar. Na verdade,
só quem pode decidir a hora que deve sair, é você.
Afar ainda com o rosto escondido entre os braços e os joelhos;
- Pois então vá embora e me deixe em paz! Estou esperando
pelo Guma! Ele vai voltar! Vai voltar para mim, e nós vamos
fugir para bem longe!
Guma
- Por que você não olha para mim? Talvez eu possa te ajudar a
encontrá-lo.
Afar sem vê-lo;
- Não! Não pode! Eu estou presa nesse quarto infernal! Musa me
prendeu aqui! Mas Guma virá me resgatar!
Guma falava pacientemente;
- Oras, se você está presa, como foi que eu entrei?
Afar
- Eu não sei! Você é servo dele? É servo de Musa?! Deixe-me
em paz! Vá embora!
Guma manteve a calma;
- Não, eu não sou servo de Musa, estou aqui para ajudá-la a
reencontrar Guma.
Afar finalmente o fitou, e por um instante seus olhos
penetraram os de Guma. O guerreiro logo observou suas
profundas olheiras, o rosto pesaroso pelo sofrimento que a pobre
186
alma enfrentava no íntimo de seus sentimentos, aguardou para
saber se ela o havia reconhecido, implorando a Deus em seus
pensamentos para que o ajudasse naquele momento, uma vez
que para ele, passar por tal situação, assistindo um ser amado
mergulhado em seu próprio sofrimento que nem mesmo
conseguia reconhecê-lo, estava sendo verdadeira prova de fé e
controle.
Afar
- Quem é você?
Guma
- Sou um amigo, sei que posso levá-la até onde Guma está se
desejar sair daqui.
Afar segurou em seus braços;
- Você o viu? Sabe onde ele está? Por que ainda não veio me
resgatar? Sinto que está demorando, nosso filho precisa que eu o
alimente! Musa o arrancou de mim... (Afar começou a chorar).
Guma a abraçou delicadamente, e tentando fazer com
que ela não penetrasse ainda mais naquelas lembranças que
traziam ainda mais desespero e tristeza, a interrompeu com a
voz branda. O amor pelo qual Guma fora envolvido naquele
momento, não cabia em si, a luz a sua volta resplandecia, mas
era necessário que ele se controlasse para que Afar não se
assustasse e continuasse a vê-lo. Com Afar em seus braços feito
uma criança ferida e desprotegida, Guma encheu-se do espírito-
santo, esse jarro de sentimentos benévolos, onde somente o
amor e o bem podem reinar, mesmo na caverna obscura do ser
ainda em caminhada rumo ao Altíssimo.
187
Guma
- Está tudo bem, minha querida. Eu posso levá-la até ele, mas é
necessário que você queira ir. Este lugar não nos serve para mais
nada, podemos sair se você aceitar ir comigo.
Afar esboçou um leve sorriso aceitando lhe dar as mãos;
- Está bem.
Guma conseguiu fazer com que ela se erguesse do chão,
e após tanto tempo, necessitou lhe dar auxilio nos primeiros
passos. Ele segurava sua mão firmemente, com o olhar
compenetrado no dela, preocupado em lhe passar segurança e
amor. Afar conseguiu sair do quarto, e o panorama a sua volta
ainda era aquilo que ela se lembrava sobre o palácio onde
vivera.
Afar olhava assustada;
- Onde estão todos? Está tão vazio aqui, tão quieto.
Guma
- Vou levá-la a um lugar especial. Sei que vai gostar.
Afar caminhava receosa;
- Que lugar? Guma está me esperando?
Guma
- Sim, ele sempre a esperou. (Lágrimas saíam do canto dos olhos
de Afar).
Afar sorrindo;
- E eu também, sempre o esperei. Onde ele está? Preciso vê-lo!
188
Guma
- Tenha calma. Não se exalte tanto. Confie em mim, e logo
estará com ele.
Eles penetraram o último lugar onde estiveram juntos
sob a atmosfera do amor que os unia, o terraço onde se podia
apreciar o radiante pôr do sol do Mali. Afar observou aquele
lugar, e um brilho retornou ao seu olhar, a face não mais se
encontrava coberta pelas escamas do sofrimento, mesmo ainda
inquieta, já era possível ver a esperança retornar em seu coração.
Ela soltou as mãos de Guma e caminhou até o parapeito para
observar a paisagem alaranjada que Guma e outros amigos
ocultos ajudavam a construir. A brisa passou por sua pele,
volitou os tecidos, e balançou levemente as flores que exalaram
maravilhoso perfume.
Afar fechou os olhos e respirou fundo;
- Ar fresco.
Guma aproximou-se brandamente por trás;
- Você se lembra como era quando o sol batia em nossa pele?
Afar sorriu;
- Sim, posso até mesmo sentir nesse momento, o sol aquecendo
cada centímetro do meu corpo. Era como... Como se quando
abrisse meus braços... (Afar fez o movimento narrado).
...permitisse que minha alma se abrisse também, e fosse
alimentada por sua luz e seu calor.
Guma aproximou-se mais, e repetiu o gesto cheio de
carinho que fazia quando encarnado, levando uma de suas mãos
189
até a de Afar que se estendia no alto, entrelaçando seus dedos
aos dela. Afar sentiu como se um choque muito forte tivesse
atingido seu coração e se espalhado por todo seu corpo, e
mesmo antes de se virar, sabia que aquele que estava junta a ela,
era seu grande amor. – Guma! Ela se virou repentinamente
abraçando-o com toda força que podia empregar naquele
momento, lágrimas molhavam todo o seu rosto, mas não eram
apenas as suas que a banhava, Guma não conseguiu controlar
suas emoções, e o choro compulsivo tomou-lhe o peito pesado
de saudades, ele segurou Afar em seus braços com toda força
que podia, temendo, mesmo sabendo ser improvável, que ela
voltasse a esquecer de que era ele quem estava ali junto a ela. E
como um coração que acha sua casa, Guma e Afar
experimentaram uma paz que há muito havia desacreditado que
existia. Os bons amigos espirituais socorristas que ajudavam
Guma, envolveram o casal, aproveitando-se daquele momento, e
os ajudaram a retornar para a devida colônia.
Afar precisou repousar em um grande centro de
recuperação, os danos que possuía se manifestaram mais no seu
psicológico, no consciente e no inconsciente, do que
propriamente no organismo físico, que sofrera o desencarne pela
falta da energia dos alimentos. Por muito haver sofrido no além-
túmulo, era necessário passar por vigorosa regeneração dos
fluidos no que chamamos por corpo fluídico. Dormira longo
sono, onde por muitas vezes necessitou tomar passes que
permitiriam a volta de sua consciência e memória. Ao acordar
recebera a assistência de amigos e familiares devotados ao bem
maior, porém, nenhuma palavra interessou-se em trocar. Não
demorou para que Guma estivesse ao seu lado com amistoso
sorriso.
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Guma
- Vejo que está melhor. (Afar ajeitou-se sentada na cama). Não
se exalte. É necessário que poupe suas forças.
Afar
- Estamos mortos?
Guma respondeu com tom de felicidade;
- Se sente morta?
Afar sorriu;
- Não.
Guma
- É porque o que chamamos por morte, é apenas o nosso
desprendimento do corpo físico, apenas ele morre, retornando ao
pó, à natureza.
Afar
- Então... O que foi tudo aquilo? Todo aquele frio? O escuro? As
vozes sem rostos? O medo? A solidão?
Guma
- Existem perguntas às quais não tenho respostas, ainda. Sei que
tem suas dúvidas, e todas elas serão respondidas no tempo que
lhes cabe, de antemão, é necessário que aprendamos a ouvir.
Mas não vamos mais nos prender ao que passou. É preciso
confiar em Deus, e vamos aprendendo a fazer isso quando nos
percebemos ainda como criancinhas, simples e ignorantes,
necessitados de todo aprendizado.
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Afar o fitava nos olhos;
- Nós tivemos um filho.
Guma deixou seu sorriso desaparecer;
- Eu sei.
Afar
- Por que não voltou? Disseram que havia fugido.
Guma
- Eu não consegui. A história é longa, teremos tempo para que
eu possa te contar com detalhes a necessidade que tive de passar
por tudo que passei, e responderei cada pergunta que me fizer,
mas sei que não é isso que quer, sei que está magoada comigo.
Afar
- Se tivesse me ouvido, nada disso teria acontecido. Teríamos
vivido uma vida juntos.
Guma a fitou com o olhar cheio de compaixão;
- Não pense assim, Afar. Haverá um momento que você vai
entender que o que vivemos era para ser vivido, de um jeito ou
de outro, e graças a Deus por isso, pois o que seria de nós se não
pudéssemos espiar nossas culpas e expurgar nossas faltas
através da vivência na carne, pelos espinhos que plantamos e
sobre as pedras que nós mesmos colocamos no caminho?
Afar
- O que aconteceu com o nosso filho?
192
Guma
- Ele foi mandado para o seu pai no mesmo dia em que nasceu,
mas é claro que não resistiu à viagem. Sosso recebeu o corpo de
uma criança.
Afar não resistiu às lágrimas, outrossim, Guma não
conseguia esconder a mesma dor que sentia, todavia, o guerreiro
encontrava-se resignado aos designíos de Deus, confiante na fé
que reinava no santuário do seu ser.
Guma
- Sei que vai precisar de tempo.
Afar
- Tudo que eu queria era estar com você, mas agora... Agora não
sei mais. Sei que estou aqui, com você, porém, sinto como se
uma parte de nós tivesse morrido dentro de mim.
Guma
- Aceito que me culpe por todas as coisas que sinta necessidade
de culpar, sou servo do amor que sempre possuí por você, e se
for necessário que me seja imputada todas as culpas para que
possas usufruir um pouco de paz, pagarei a penitência de por
hora não ter seu amor, com alegria no meu coração. Contudo, já
é tarde para nós, que tantas dores causamos, e é preciso que
aprendamos a perdoar para que sejamos perdoados. Preciso que
saiba que após muito sofrer, Musa está aqui. (Afar olhou em
seus olhos).
Afar enrijeceu o semblante;
- Musa? Como ousa falar de Musa para mim?
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Guma continuou com o tom de voz sereno e pacífico;
- Fique calma. Você não precisa vê-lo, mas sei que haverá um
momento em que desejará isso. Ele necessita do seu perdão.
Afar
- Jamais! Musa é a causa de todo o meu sofrimento, do seu
também, da nossa separação! Da morte do nosso filho! Como
pode falar nele? Você o perdoou? Como pode perdoá-lo? Ele
quis te matar! O açoitou sem piedade! Ele é o responsável por
tudo isso, por toda essa desgraça!
Guma se aproximou de Afar e segurou em suas mãos, a
calma que dominava os mínimos impulsos de sua alma,
imperava sobre a revolta de Afar, e aos poucos ela foi sentindo
seu corpo e seus pensamentos relaxarem, como um nó que se
afrouxa, uma vez que os olhos cristalinos de Guma transmitiam
serenidade plena.
Guma
- Eu preciso que me escute, Afar, pois vou falar com você como
alguém que te ama profundamente, e mesmo que nesse
momento sua mágoa para comigo se sobreponha aos
sentimentos que você tão lindamente possui, sei que também
conserva esse sublime amor por mim. Não a recrimino por sentir
raiva, por estar magoada, por até mesmo desejar ferir assim
como foi ferida, eu mesmo tive esse impulso por muitas vezes,
mas reflita sobre os nossos atos, e pense se fomos totalmente
honestos e justos, ao ponto de não merecermos tudo que
passamos. Não existe um caminho pelo qual eu possa te
conduzir e fazer com que veja e entenda o que somente hoje eu
consigo compreender, quisesse eu que existisse. Mas o Pai,
194
onipresente, onisciente e onipotente, fez com que fosse assim
para que possamos desfrutar da Sua sabedoria, do Seu amor e da
Sua paz, em plenitude, através do próprio esforço e merecimento
no aprendizado. Precisei caminhar os meus passos até aqui, e
posso dizer que não foi fácil. Não odiei Musa por desejar a
minha morte, nem mesmo por fazer de você sua prisioneira ao
ponto de te deixar morrer de tristeza e solidão. Não o odiei por
me tornar escravo e mendigo, por passar fome e frio, perdendo
minha família, meus filhos, deixando-os ao relento para morrer.
Eu sabia que a culpa de tudo isso era minha, eu o traí, e o que
ele sentia por você, era a fonte de luz que poderia resgatá-lo da
escuridão que tentava cobri-lo, fui egoísta e não respeitei isso.
Mas não posso mentir e dizer que não o odiei por deixar aquela
criança morrer, nosso filho, fruto inocente do amor que
sentimos. Mesmo assim, só pude perdoar Musa no instante em
que me vi tão criminoso, e que Deus me perdoe pela falta de
coragem nessas palavras, mas devo dizer que fui mesmo até pior
que ele. Dizimei famílias inteiras por capricho e pela ira da
minha vaidade soberana. Quantos filhos e filhas, pais, mães, e
casais como nós, em muitas vidas eu fiz morrer porque
simplesmente podia lhes tirar a vida, fosse pelo comando ou
pela força das minhas próprias mãos. Nada há de eximir a minha
culpa, que eu pagarei pela misericórdia de Deus, pois que não
haverá paz em mim se assim eu não puder me redimir.
Houve breve silêncio.
Afar
- Eu não sei o que dizer, Guma. Entendo tudo que diz, mas meu
coração está carregado com o peso da mágoa que carrego, tanto
de Musa que uma vez eu me permiti amar, por todo o sofrimento
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que nos causou, quanto de você, que eu sempre conservei
infinito amor, por me sentir abandonada.
Guma
- Não exigirei compreensão de sua parte, o amor que tenho por
você, sabe respeitar o momento certo em que estará pronta para
entender. Contudo, quero que saiba que por onde desejar
caminhar, seja por lindo jardim de gramíneas, ou por estrada
pedregosa, se Deus permitir, eu estarei com você. Todavia, meu
coração clama ao Pai para que você possa estar ao meu lado
nesse sentimento de perdão e resignação, para que possamos
caminhar juntos rumo à verdadeira felicidade.
Afar silenciosamente deixava lágrimas caírem no canto dos
olhos;
- Sei que há muitas coisas as quais eu ainda preciso saber. Sinto
como se um pano empoeirado cobrisse um velho móvel, não me
possibilitando apreciar seus detalhes. Talvez, quando me for
possível ver com clareza, eu possa compartilhar desses
sentimentos com você.
Guma
- Sim! Nenhuma outra pessoa lhe poderá tirar esse pano, apenas
você. Mas é preciso que antes analise seus sentimentos, e
fortaleça essa vontade maior de amar e perdoar.
Afar
- Não sei se consigo, Guma. Acho que tudo que tínhamos se
perdeu dentro de mim quando você se perdeu e deixou-me outra
vez.
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Guma
- Eu saberei esperar, e quando estiver pronta, eu estarei aqui.
Nada abala o verdadeiro sentimento edificado pela força dos
destinos no imo do ser. Assim, eu permanecerei te amando.
Por longo período Afar encontrou-se em estado
melancólico, mesmo recebendo toda a assistência necessária dos
irmãos espirituais que nunca descansam no trabalho do bem
onde cada um é especial, como somos aos olhos de Deus. Após
sua recuperação, ela pode reencontrar sua mãe Farrima e seu pai
Sosso. Guma não deixou de atuar junto à equipe de espíritos
socorristas ajudando aos espíritos desencarnados que por falta
de crença ou por dificuldades maiores, sofriam no mundo das
sombras. Ele sempre buscava o trabalho no bem com o coração
resignado, firme no propósito de sua alto-iluminação. Muitas
vezes encontrou Raja no plano espiritual em centros de grande
promiscuidade, onde tentava lhe trazer para a razão da
consciência, mas a jovem, ainda submersa no mundo das ilusões
humanas, debochava de suas atitudes e provocava-o com
argumentos que deliberavam sobre suas condutas quando
encarnado. Guma, qual amigo incansável, não se permitia
envolver por aquela atmosfera de provocações, e sempre a
deixava fazendo preces por sua melhora. Sabia ele, que antes de
Raja ser sua sobrinha esposa na Pérsia, antes de ser viúva
apaixonada por ele, e mesmo de ser a sofrida egípcia que ele
encontrara moribunda no porão de uma galera, ela havia sido
rude homem, estuprador e explorador de meninas e mulheres,
qual uma delas fora mesmo Guma, encarnação qual Raja
apaixonou-se por ele.
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Com o passar dos anos, fora inevitável a melhora de
Afar, sempre estimulada a assistir as dissertações públicas,
organizadas por espíritos tão benevolentes e articulados na arte
linguística, onde o intuito maior era pautado no esclarecimento
das leis Divinas e no amor do Cristo. Seu reencontro com Musa
não foi tão difícil quanto imaginou que seria, pois que já era
possível acessar a memória em que ela tanto o fez sofrer.
Mesmo assim, observou friamente as copiosas lágrimas que
encharcavam o rosto do algoz que incansavelmente lhe pedia
perdão ao cair de joelhos, quando em encontro particular. Afar,
acima de tudo, sentia-se constrangida, pois mesmo que não
conseguisse absolver Musa pelos seus sofrimentos na verdade
de seu coração, tinha plena consciência de suas culpas na
recente existência terrena, e em tantas outras. Amparado por
seus genitores, Musa experimentou forte alívio no peito, mesmo
percebendo a dificuldade que Afar encontrava em perdoá-lo, e
assim cumpria-se a certeza que ele tinha em seu íntimo, que
Deus sabia do seu real arrependimento e de sua vontade de se
redimir com aquela mulher qual tanto amou e odiou. Para Musa,
não importava mais o quanto ela já o havia magoado, não podia
ele medir ou pesar quaisquer erros e dores que ela havia lhe
causado ao longo das existências, só importava que ele
encontrasse a paz da consciência, e para tanto, sabia a
necessidade de espiar seus erros pela lei de causa e efeito em
existências futuras. Certa ansiedade tomava seus dias na colônia,
onde devotadamente buscava absorver os conhecimentos na
esperança de se instruir para as novas oportunidades que teria.
Não descobrira totalmente a felicidade, mas também sabia que a
tristeza não lhe ajudaria a impulsionar para a realização de seus
nobres ideais.
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Zaila, que desencarnou antes de Guma, fora um dos
espíritos que o ajudou muitas vezes, mesmo quando ele ainda
vestia-se do fardo carnal. Sempre empenhada na melhora
daquele que em existência pretérita havia sido sua esposa traída
e explorada, abandonada a própria sorte, virando vítima fácil aos
brutos homens de épocas remotas. A jovem esposa, agora
veneranda amiga, contentava-se em manter-se solícita às
necessidades do amigo, no âmbito de prestar incansável apoio a
Afar, que com paciência soube aprender a admirar a devoção
com a qual Zaila lhe prestava assistência.
E fora desta forma, que através dos tempos, por
orientação e programação de amigos da espiritualidade, nosso
grupo de espíritos veio a reencarnar na terra de Santa Cruz,
quando esta já batizada por Brasil expandia seus engenhos de
açúcar na Capitania de Pernambuco, hoje conhecida por
Alagoas, para que assim pudessem espiar as Marcas do
Passado.
Fim.
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Título: Mágoas para beber
Autora: CAMILA DE ALMEIDA
Membro Titular da ACLAC
Capa: Artista Plástico “Caó”
Diagramação e Edição:
LENARDO SANCHES
EDIÇÃO 2017
(PRODUÇÃO INDEPENDENTE)
CONTATOS:
http://camiladalmeida.blogspot.com/