LUZ GARCÍA NEIRA Estampas na tecelagem brasileira Da origem à

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  • LUZ GARCA NEIRA

    Estampas na tecelagem brasileira

    Da origem originalidade

    So Paulo2012

  • LUZ GARCA NEIRA

    Estampas na tecelagem brasileira Da origem originalidade

    Tese apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Arquitetura e Urbanismo.

    rea de concentrao: Histria e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo.

    Orientao: Prof. Dr. Luiz Amrico de Souza Munari

    So Paulo2012

  • FOLHA DE APROVAO

    Nome: NEIRA, Luz Garca.Ttulo: Estampas na tecelagem brasileira. Da origem originalidade.

    Tese apresentada Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo para obteno do ttulo de Doutor em Arquitetura e Urbanismo.

    Aprovado em: _____/_____/2012.

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio: ________________________________________________

    Julgamento: ____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio: ________________________________________________

    Julgamento: ____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio: ________________________________________________

    Julgamento: ____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio: ________________________________________________

    Julgamento: ____________________ Assinatura: __________________

    Prof. Dr.___________________________________________________

    Instituio: ________________________________________________

    Julgamento: ____________________ Assinatura: __________________

  • Dedicatria

    Ao Walter, que me acompanha.

  • Agradecimentos

    Como no poderia deixar de ser, agradeo, primeiramente e de maneira emocionada,

    ao meu orientador, Prof. Dr. Luiz Amrico de Souza Munari. Em minha primeira aula

    na Maranho, ele se disps a ler o projeto e na semana seguinte me aceitou. Durante

    os quatro ltimos anos, reagiu de maneira positiva s minhas necessidades, dvidas e

    inseguranas, sugerindo e respeitando meu trabalho e esforo, apesar das fragilidades

    que, eu sei, ainda constituem a pesquisa.

    Em segundo lugar mas com imensa importncia, tenho que agradecer ao Walter, no

    s pelo apoio incondicional nos momentos de fracasso e de sucesso, mas sobretudo

    por acreditar em minha capacidade. Sem ele a incrvel estadia em Londres no teria se

    realizado, e eu jamais teria passado tanto frio, comido tantos sanduches e visto tantos

    museus e arquivos. Isso tudo sem contar a oportunidade de viver de modo intenso

    com meus filhos uma experincia nica na vida de todos ns, que incluiu muitos

    passeios e picnics em parques, inmeras viagens em trens, shows, luta de WWE,

    cantorias no metr, lojas de games e de msica, alguns papos com a polcia britnica,

    livrarias e Mac Donalds. Aproveito para agradecer ao Fernando e Vitria pelo amor

    recebido em todos esses momentos, pois, sem ele (e sem eles), eu no estaria aqui.

    Agradeo tambm, e muito, ao ambiente familiar, que inclui no s minha famlia

    biolgica, mas tambm os que me acolheram e que comigo convivem. Finais

    de semana, frias na praia, aniversrios, viagens, casamentos e datas especiais

    atravessaram esta pesquisa, que sempre foi assunto repetitivo meu e, apesar

    disso, despertaram interesse, preocupao e apreo dessas pessoas que vivem no

    meu corao. Meu pai, que mora no cu, tambm teria compartilhado tudo isso,

    principalmente em razo do vis poltico do assunto. S a famlia tambm compartilha

    na ausncia...

    Devo ao Dr. Philip Sykas a inspirao para a abordagem do tema. Seu pronto

    atendimento s minhas dvidas, seu conhecimento incomensurvel sobre os tecidos

    estampados, sua capacidade em extrair histrias das fontes imagticas, me mostrou

    que possvel fazer um grande trabalho a partir de algo simples.

    Agradeo, pela leitura cuidadosa e atenta e pelas sugestes enriquecedoras da banca de

    qualificao, da qual participaram os professores Maria Claudia Bonadio e Artur Simes

  • Rozestraten. No posso deixar de agradecer tambm s professoras Maria Eduarda Arajo

    Guimares, Cyntia Malagutti de Sousa, Ana Paula Simioni (que, alis, sugeriu o orientador

    via Maria Claudia) e Lilia Moritz Schwarcz, que leram alguns trechos ou at integralmente

    e se dispuseram a apontar detalhes que eu ainda no havia percebido. Agradeo queles

    que, como Sarah e Catherine Wain, Sr. Gasto Leonidas de Camargo, Priscilla e Sr. Paulo

    Cortez, entre outros, me deram informaes que, sem eles, eu jamais saberia, pois no

    encontram-se em livro algum. Sou muito grada Miriam Keiko Matsuda que leu, corrigiu

    e palpitou sobre este trabalho e sobre o andamento da pesquisa muitas e muitas vezes,

    sempre com carinho e respeito.

    Instituies e pessoas generosas tambm so muito lembradas neste momento especial:

    Sr. Marcos Mascarenhas, do Museu Txtil Dcio Mascarenhas, em Caetanpolis,

    Minas Gerais, por ter me apresentado, sem restries, seu precioso arquivo.

    Elisabeth, que l me recebeu, conhece o arquivo profundamente e me antedeu

    com toda a disposio deste mundo e com pacincia mineira.

    BradfordTextileArchive, em Bradford, que abriu o arquivo que ainda no pblico

    e fotografou as imagens dos pattern-books de tecidos negociados com o Brasil.

    BlyteHouseArchive, em Londres, que passou meu nome na frente para que

    eu pudesse consultar as revistas e pattern-books tantas vezes quantas fossem

    necessrias, antes de meu regresso ao Brasil.

    AssociaoBrasileiradaIndstriaTxtil, em especial sua bibliotecria, Cida, que

    me recebeu milhes de vezes, incansavelmente.

    AssociaoBrasileiradeTcnicosTxteis que organizou eventos que permitiram o

    contato com depoentes, com conhecedores tcnicos do ramo e com novas ideias de

    pesquisa, tambm para o futuro.

  • Todo lo que puedas imaginar es real.

    Pablo Picasso

    Modelo que estampa matria

    sobre o algodo brasileiro na

    Revista Manchete (1974).

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO SISTEMA INTEGRADO DE BIBLIOTECAS

    Reviso do texto: Persio Nakamoto e Miriam Keiko MatsudaArte da Capa: Luz Garca Neira

    Diagramao do texto: Luz Garca Neira

    AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNI-CO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    E-mail: [email protected]

    Neira, Luz Garca N415d Estampas na tecelagem brasileira. Da origem origi-nalidade/Luz Garca Neira. So Paulo, 2012. 306 p. : il. Tese (Doutorado - rea de Concentrao: Histria e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo

    Orientador: Luiz Amrico de Souza Munari

    1. Indstria txtil Brasil 2. Design txtil 3. Estamparia I. Ttulo

    CDU 677(81)

  • RESUMO

    A indstria txtil brasileira viveu seu apogeu econmico nas dcadas de 1950, 1960 e

    1970. Seus expressivos nmeros, associados ao clima eufrico nacionalista, contriburam

    para transformar esse setor num segmento importante para a consolidao de

    sentidos acerca da existncia de uma identidade nacional, que se teria dado por

    meio da produo de estampas genuinamente brasileiras. Com base nessa hiptese,

    esta pesquisa dedica-se a explorar o processo de produo de sentidos nacionalistas e

    patriticos implantados e difundidos por imagens, tendo como metodologia principal

    a investigao dos processos internos da indstria e a observao da divulgao dada

    atuao da indstria txtil naquele perodo. Procura-se comprovar que os sentidos

    produzidos foram decorrentes bem mais de um discurso eficiente do que de uma

    criao autntica ou genuna que tenha havido nesse setor.

    Palavras-chave: indstria txtil: histria; design txtil: estamparia; design txtil: projeto.

  • ABSTRACT

    The Brazilian textile industry reached its apogee in the period 1950-1970. The

    widespread impact it made in a climate of euphoric nationalism, led to this sector

    being turned into a means of strengthening feelings about the existence of a particular

    Brazilian national identity, which it achieved by producing printed designs that were

    genuinelyBrazilian. On the basis of this supposition, this research project is devoted to

    exploring the way nationalistic and patriotic feelings have been instilled and spread

    through images, by employing a methodology that mainly involves investigating the

    inner processes of industrialisation and the observation of the promotion of the textile

    industry in that period. The study seeks to support the view that the feelings that have

    been evoked, arise more from an effective discourse than any authentic or genuine

    creation that has taken place in this sector.

    Keywords: textile industry: history; textile design: printed textile; design.

    a investigao dos processos internos da indstria e a observao da divulgao dada

    atuao da indstria txtil naquele perodo. Pro

  • Sumrio

    Breve introduo ao tema 12

    A instaurao do problema da pesquisa 13

    A insero da pesquisa frente historiografia dos txteis 20

    Procedimentos metodolgicos 26

    Estrutura e organizao da tese 29

    Perspectivas da pesquisa 31

    Tecido estampado: origem, percurso e indstria 33

    Antecedentes histricos 34

    Desenvolvimentos posteriores 57

    Fluxograma de trabalho e processos de impresso 60

    Consideraes finais sobre os meios de produo e as linguagens de expresso 62

    A ornamentao em debate: no tempo, o fazer e a crtica 64

    A ornamentao como problema 65

    A ornamentao txtil 71

    Princpios da ornamentao txtil: questo de estilo? 79

    O sculo XIX: tipologias 83

    Primeira metade do sculo XX: estruturas 84

    Segunda metade do sculo XX: linguagem 90

  • Origens e condies de desenvolvimento da estamparia txtil no Brasil 101

    A indstria txtil e o segmento de estamparia 102

    Made in Brazil: por uma Histria do projeto txtil 126

    Demandas para uma esttica brasileira nos tecidos estampados 127

    Condies para uma esttica brasileira nos tecidos estampados 142

    A ausncia de um passado artesanal 142

    O ensino artstico para as artes industriais 145

    A distncia entre a indstria e os artistas 150

    A cultura industrial 157

    Iniciativas de inovao no desenho industrial 167

    O nascimento de uma linguagem 176

    Da origem originalidade 216

    A dimenso do problema 217

    Estampando identidades 220

    Diferentes conformaes de nossa identidade txtil 227

    A proposta dos artfices: tradio 230

    A proposta dos artistas: modernidade 236

    A proposta dos designers: antropofagia 246

    O mundo tropical! 268

    A visualidade dos tecidos brasileiros industrializados 279

    Brasil: originalidade e identidade no design de txteis 283

    Fontes e bibliografia 292

  • 12

    Breve introduo ao tema

    Estampas na tecelagem brasileira: da origem

    originalidade discute a hiptese de que, no Brasil,

    as noes de desenvolvimento, progresso e

    modernidade da nao foram apoiadas pelas

    indstrias txteis. Sobretudo durante as dcadas

    de 1950, 1960 e 1970, indstrias, governo e

    veculos de comunicao aderiram ao discurso

    de desenvolvimento por meio da adoo de uma

    suposta identidade visual brasileira na estamparia

    que se relacionava nossa cultura.

    O desenvolvimento do tema partiu de alguns

    pressupostos: por meio dos tecidos, como

    exemplares da cultura material e visual,

    possvel construir-se uma narrativa histrica se

    considerados luz de sua existncia prtica; como

    tal, os tecidos podem ser usados, assim como

    outros artefatos, tanto por suas funes prticas

    quanto simblicas e; finalmente, como legtima

    produo cultural do contexto no qual se inserem,

    tm potencial lingustico para compartilhar

    sentidos socialmente.

  • 13

    A instaurao do problema da pesquisa

    O senso comum, muitas vezes, aposta que existe uma esttica brasileira1 ou estilo

    brasileiro2 prprios dos tecidos estampados. A lembrana da chita, como um

    tecido genuno, fato corriqueiro e, depois dela, os tecidos floridos e coloridos de

    algodo tambm so signos de uma brasilidade associada ao ambiente tropical e

    alegria do nosso povo, considerada, muitas vezes, o carter que nos identifica. E

    essa sensao no algo que tenha se manifestado somente um tempo e espao

    que hoje so distantes de ns. Uma prova muito recente disso, por exemplo, foi a

    coleo de tecidos lanada pela Tecelagem Santa Constncia, a qual descrita como

    uma homenagem s estampas brasileiras. A empresa explica a brasileirice em suas

    palavras:

    O mundo est de olho no Brasil que deixa de ser apenas o pas do futebol para ser tambm o pas da moda, que faz moda e referncia para ela! Os temas tropicais so abordados pela Santaconstancia em seu projeto Estampas

    1 A partir deste momento, a expresso esttica brasileira ser utilizada muitas vezes como referncia composio visual para a estamparia, que pretende filiar-se num sentido de origem nao brasileira. Deve-se entender, dessa forma, que a insero do adjetivo j caracteriza um produto produzido no Brasil e forjado para promover esse significado no espectador, no havendo, sobre ele, qualquer juzo de valor que no seja essencialmente evocado por sua forma, ou seja, que no se refira sua concepo com essa inteno especfica. A conotao, desse ponto de vista, compartilhada socialmente e independe do sujeito espectador.2 Como tratamento razoavelmente homogneo dado aos recursos expressivos de uma determinada cultura.

    1. Corner de produtos brasileiros expostos na Galerie Lafayette, Paris, durante

    as celebraes do Ano Brasil na Frana (2005). A imagem denota claramente a associao do tecido brasileiro chita.

    A decorao desse setor foi inspirada pelo livro Chita Bacana (bibliografia)

    e com o auxlio da A Casa - Museu do Objeto Brasileiro em So Paulo, que

    tambm publicou em francs a parte textual do livro.

    Fonte: desconhecida (web).

  • 14

    Brasileiras com uma personalidade absolutamente nacional, antenados com os ltimos e mais interessantes movimentos internacionais de moda e arte. Aps o sucesso da primeira edio (maro|2011), a tecelagem apresenta a segunda verso de seu projeto com 43 estampas concebidas, feitas e fabricadas por brasileiros sob a coordenao de Estilo e viso vanguardista de Costanza Pascolato.

    O Brasil e os elementos tropicais ganham evidncia em coloraes inditas que passeiam de tons pastel a cores mais vibrantes e em desenhos - ora explcitos, ora subjetivos - inspirados em elementos da natureza como o cu, repleto de borboletas e pssaros, e a gua, com peixes e ondas, imprimindo um ar bem brasileiro s colees. []. Os temas brasileiros so universais quando tratados de maneira moderna e em compasso ao contemporneo, comenta Costanza sobre a nova edio de Estampas Brasileiras Sta. Constncia.

    Para oferecer mltiplas possibilidades de modelagens, a Santaconstancia coloriu com o melhor da brasilidade tecidos planos []. Acho impossvel o tema [Brasil] se esgotar, porque depender do olhar. H uma infinita maneira de ver as mesmas coisas!, finaliza Costanza entusiasmada com o novo olhar para o pas3.

    Se, ao final da leitura deste texto, pairar uma ideia de que a associao da imagem

    brasileira ao repertrio tropical j tradicional soa ultrapassado e principalmente

    equivocado, provavelmente se tratar de um engano. Conforme muito bem afirma

    Leito (2007, p. 206), nos ltimos anos

    [] h um retorno, por parte da produo e divulgao de moda no Brasil, temtica do nacional. Nos grandes eventos nacionais de moda ocorridos em 2004 e 2005, assim como na escolha de imagens e discursos a respeito deles por parte da imprensa nacional, v-se uma presena hiperblica de Brasil. Nos discursos de produtores de moda e da imprensa especializada tal presena toma consistncia em falas sobre procurar razes, valorizar nossa cultura popular, positivar nossa natureza, e fazer uso do que h de mais autenticamente brasileiro. Nas imagens, em colees de alta moda repletas de referncias flora e fauna, materializam-se tipos nacionais/regionais, religiosidade popular, patrimnio histrico e paisagens tursticas.

    A conservao desse conjunto de sentidos, no poder ser tomado como oposto ao

    pas com o qual nos identificamos pois, afinal, quem vive numa metrpole como

    So Paulo dificilmente convive cotidianamente com esses smbolos , entretanto,

    considerando que esse imaginrio social razoavelmente generalizado no pode ser, como

    a prpria histria afirma, algo repentino, mas consequncia de uma sociabilidade que

    engendra um processo especfico, esta investigao dedica-se a percorrer a sequncia de

    3 http://www3.santaconstancia.com.br/moda/tendencias/estampa-brasileira-sta. Acesso em 25nov. 2011.

    2. Estampa brasileira segundo a Tecelagem Santa Constncia.

    Fonte: www.santaconstancia.com.br. Acesso em 01.jul.2011.

  • 15

    acontecimentos que contriburam para sua elaborao e a investigar se, por fim, existe

    algo de particular em nossos tecidos estampados4 que legitime tal entendimento.

    Apesar da ausncia de pesquisas anteriores, na impossibilidade de fazer um recorte

    muito abrangente, a pesquisa limita-se por duas margens, tentando destacar o

    perodo (dcadas de 1950, 1960, 1970) e o tipo especfico de artefatos (tecidos

    estampados), nos quais as questes discutidas, pensando no segmento txtil,

    parecem ser mais intensas. Uma vez que tais enquadramentos configuram categorias

    extra-artsticas (BELUZZO, 1988) que no possibilitam a insero de parmetros ou

    referncias para a anlise formal dos artefatos, procura-se ento situar a questo

    por meio da discusso e da compreenso desse contexto, e tambm elaborar sua

    verificao segundo os critrios do prprio campo, fundamentalmente das artes e do

    design aplicados aos txteis. Tenta-se escapar s anlises externalistas e, sobretudo,

    deterministas, que condicionam toda a produo artstica ao contexto social e

    econmico no qual se desenvolvem ou, pelo menos, a justificam dessa forma.

    As margens que delimitam a investigao, o que aqui se chama de campo de prova,

    restringem a pesquisa ao universo dos tecidos estampados, pois em outros produtos

    txteis industrializados a inovao de linguagem bem mais contida e bem menos

    identificvel e idiossincrtica. A escolha devida potencialidade da tcnica de

    produo que, no perodo selecionado, j permitiria praticamente a livre criao

    artstica com poucos limites cromticos e de composio visual, alm de seu grande

    apogeu no Brasil tambm coincidir com o perodo selecionado para o estudo.

    A pesquisa debrua-se sobre as dcadas 1950, 1960 e 1970, selecionadas em termos

    prticos e sociais. Antes da dcada de 1950 no se podia contar com recursos eficientes

    para a estamparia industrial no Brasil, e alternativas artesanais devem ser descartadas,

    pois o problema da pesquisa foca-se no trabalho das indstrias. Esse incio tambm

    definido, ao mesmo tempo, pelo fortalecimento do discurso sobre a imagem positiva do

    pas, tomando a palavra imagem em seu sentido estrito, j que os meios de comunicao

    a disseminavam. O trmino, ao final da dcada de 1970, foi determinado porque, naquele

    momento, com o pas a caminho de uma democracia oficial e inserido num sistema de

    moda global, o discurso de fortalecimento da nao de forma patritica j tinha deixado

    de fazer tanto sentido, de maneira que desapareceram dos veculos de comunicao a

    4 Restringindo a investigao e a anlise ao conjunto selecionado e denominado, no decorrer da pesquisa, como campo de prova selecionado e que a seguir ser mais bem explicado.

  • 16

    associao da indstria txtil poltica desenvolvimentista e nacionalista. Por mais que

    ainda possam existir exemplos a partir de ento, como o da Tecelagem Santa Constncia

    anteriormente citado, provavelmente eles no fazem parte do processo aqui estudado.

    Assim, o problema discutido, pode ser entendido como o estudo da produo de

    sentido em um sistema codificado por imagens. No se trata, portanto, de decodificar

    o uso de tais imagens, mas de compreender a sua elaborao e justificar a relao

    imagem e produo de sentido como uma produo histrico-social. A nfase dada

    na visualidade, tomando-a como um agente social como sugere Meneses (2003).

    O tema bem acolhido pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, especialmente

    pela linha de pesquisa Histria e fundamentos da arquitetura e urbanismo. Trata-se

    essencialmente da discusso de um problema prprio do campo da histria da arte e do

    design industrial que privilegia a realidade brasileira e promove a elaborao de uma

    crtica sobre o produto industrial calcado nas linguagens artsticas. Cabe mencionar, a

    ttulo de curiosidade, que o programa de ps-graduao da FAUUSP ocupa aquela que

    foi a residncia de Antonio lvares Penteado (1852-1912), incentivador da indstria

    nacional: no salo de entrada da Vila Penteado, trs pinturas de Oscar Pereira da Silva e De

    Servi (1867-1939) narram a histria da indstria txtil nacional por intermdio da fiao

    de algodo representada pelo indgena que fia a mo, pela mulher que fia na roca e

    pela alegoria da glria da indstria , e abrem as portas para esta pesquisa.

    A narrativa qual esta pesquisa se prope passa necessariamente pela histria da

    indstria txtil brasileira, tanto em seus aspectos sociais quanto econmicos, mas no se

    limita a eles. Dedicando-se a compreender o processo de desenvolvimento de produtos,

    entende-se que a melhor maneira de tratar o objeto no divorciar a pesquisa histrico-

    social da histrico-econmica, ou seja, o consumo da produo. Afinal, uma no existe

    sem a outra, fato j apontado por Roche (2000). Ao contrrio, economia e sociedade so

    passveis de integrao a fim de alcanar uma nova anlise e, inclusive, inaugurar um

    novo campo para a reflexo e o debate sobre a produo industrial brasileira. Ressalva-se

    que pesquisas prvias que tangenciam o tema so focadas ora em aspectos econmicos

    ora sociais da nossa indstria e de seus produtos, majoritariamente de forma isolada.

    As referncias histricas, que aqui so utilizadas na reviso bibliogrfica, so em

    parte decorrentes do reconhecimento, no incio do sculo passado, da importncia

    econmica e social da indstria txtil brasileira. Isso aconteceu com certo atraso em

    3. Evoluo da indstria txtil brasileira. As pinturas decoram o hall da Vila Penteado.

    Fonte: Contribuio ao estudo do Art Nouveau no Brasil .

  • 17

    relao Europa e aos Estados Unidos, que j haviam descoberto sua importncia em sua

    natureza especfica: a abrangncia de seus produtos, a inerente diviso do trabalho, os

    constantes avanos tcnicos e cientficos que haviam reverberado na sociedade.

    Estudos recentes desenvolvidos nas faculdades de economia e de histria5 esto

    atentos ao fato e colocam-na entre os principais segmentos geradores de emprego e

    de riqueza para o pas, pelo menos desde a ltima dcada do sculo XIX. As pesquisas

    pioneiras a seu respeito, como as desenvolvidas por Caio Prado Jnior em meados da

    dcada de 1930, pelo brasilianista Stanley Stein na dcada de 1950 e as posteriores,

    produzidas por Alice Canabrava, Nicia Vilela Luz, Flvio Rabelo Versiani e outros, so

    apenas alguns dos exemplos que apresentam um retrato da economia e do trabalho

    (como histria social e econmica) no Brasil a partir da indstria txtil, especialmente

    no segmento6 de fiao e tecelagem. Tais estudos j refletem a renovao do

    pensamento social brasileiro e tambm a apropriao pelos historiadores do mtodo

    de interpretao materialista, no qual se destaca a preocupao em explicar as

    relaes sociais a partir das bases materiais (MOTA, 2008, p.70).

    Por outro lado, difcil localizar qualquer pesquisa acerca dos produtos desenvolvidos pela

    indstria txtil, porque o campo do design tambm recente entre ns j que a abordagem

    socioeconmica foi prioritria. O tecido, propriamente, foi muito pouco ou nada discutido:

    padres, cores, estampas, tipos e qualidades foram sempre ignorados pelos estudos

    disponveis (PAULA, 2004, p. 76) e somente nos ltimos anos, no Brasil, uma nova viso

    historiogrfica considera a possibilidade de tomar os txteis como objetos da cultura material,

    apesar de esses trabalhos ainda no terem obtido, no mercado editorial, o merecido destaque.

    Sem dvida, a escassez das pesquisas deve-se tambm s dificuldades que

    impossibilitaram, at ento, o seu desenvolvimento. Se os documentos que

    sobrevivem, como postula Le Goff (1994), so uma escolha da sociedade, j h razes

    suficientes para abandonar o tema. A carncia de fontes essencialmente primrias, seja

    devido s condies climticas dos pases tropicais, seja ao desconhecimento dos que nos

    antecederam sobre a importncia de preservar sua memria, foi responsvel pelas maiores

    5 Na bibliografia podem ser consultados os estudos recentes realizados na ltima dcada por pesquisadores brasileiros. Alm das fontes utilizadas na investigao, na biblioteca da FFLCH-USP verificou-se a existncia de muitos estudos sobre a indstria txtil na perspectiva histrica e social.

    6 terminologia comum na indstria txtil a utilizao da palavra segmento para explicar a rea fabril de cada empreendimento. Os segmentos so fiao, tecelagem, malharia e acabamento, sendo que tanto tecelagem quanto malharia se dedicam produo de tecidos, mas o que as diferencia o tipo de equipamento utilizado. As malharias tambm produzem alguns semi ou confeccionados, como o caso das meias, por exemplo.

    4. Capa do relatrio de 1922 de Arno Pearse sobre a produo e

    beneficiamento do algodo no Brasil. Este relatrio, elaborado a pedido

    do governo britnico, procurava apresentar um panorama do algodo

    no Brasil, tanto do ponto de vista da agricultura quanto da indstria que o

    beneficiava. Fonte: Brazilian cotton.

  • 18

    dificuldades enfrentadas durante a pesquisa e, por isso, tiveram que ser substitudas por

    outras muitas vezes. Comparando-nos aos pases europeus que conservam em seus acervos

    txteis peas com muitas centenas de anos, com as quais conseguem elaborar diferentes

    narrativas de sua prpria histria, vemo-nos desprovidos de memria, isto , de recursos

    necessrios para interpretar nosso desenvolvimento nesse segmento.

    A inconformidade, no entanto, um vcio do pesquisador e, por isso, a inovao temtica

    foi uma das principais justificativas para a postulao desta pesquisa que, quando se

    tratava de um projeto, alegava no existirem no Brasil trabalhos que se dedicassem ao

    design de txteis na perspectiva da cultura e, de modo especial, ao estudo dos nossos

    tecidos estampados. Apesar de esta pesquisa adentrar esse espao, a sua extenso no

    esgotou o tema. H muito que se descobrir ainda a respeito dos produtos, dos processos,

    da ao projetual e as razes sobre as bases nas quais o design de txteis se desenvolveu

    no pas e, por outro lado, identificar quais so as interferncias externas a ele que se

    manifestaram em seus processos e em sua visualidade em diferentes momentos.

    Resumidamente fala-se de histria da cultura material, pois se procura compreender

    como os artefatos txteis so apropriados pelos indivduos (nesse caso, as pessoas, a

    sociedade e o governo) que os utilizam prtica e simbolicamente, construindo com

    eles uma relao de identidade (ATTFIELD, 2000), ou de maneira mais restrita ainda,

    mas com o mesmo enfoque, de histria da cultura visual, ou seja, de tomar os objetos

    visuais e compreender seu uso e sua significao (MENESES, 2003) . Do ponto de vista

    prtico, obviamente, o estudo poderia ser resumido questo funcional que justificasse

    a preferncia por determinadas materialidades e visualidades em detrimento de outras,

    porm esta abordagem privilegia as funes personalizadora e humanizadora dos txteis

    (SCHOESER, 1986) por acreditar que os objetos, as relaes fsicas ou humanas que eles

    criam no podem se reduzir a uma simples materialidade, nem a simples instrumentos

    de comunicao ou distino social (ROCHE, 2000, p.13), j que prpria materialidade

    condiciona a leitura dos objetos como afirma o autor. Entende-se que os tecidos

    produzidos nas diferentes fases do nacionalismo7 no so sintomas daqueles contextos,

    mas que, eles mesmos, possuem uma realidade que permite produzir discursos e

    mentalidades que, nesse caso, so consideradas nacionalistas.

    7 Ao longo da pesquisa no se buscou definir o termo. De modo geral, aqui utilizado para designar o desejo de conquistar a unidade da nao e o bem estar de seu povo de modo geral. Em Anderson (2009), h uma interessante definio utilizada por Ernest Gellner e que bem resume o sentimento verificado ao longo da investigao: O nacionalismo no o despertar das naes para a autoconscincia: ele inventa naes onde elas no existem.

  • 19

    Diagrama 1: Mapa conceitual que identifica e organiza a relao entre as principais questes

    articuladas durante a pesquisa.

  • 20

    A insero da pesquisa frente historiografia dos txteis

    Desde a mais remota antiguidade, ao cobrir o corpo com txteis, o homem revelou sua

    alma. Se em algum momento da existncia humana essa espcie de artefato obtido

    pelo entrelaamento de fibras vegetais ou peles de animais limitou-se proteo

    humana, logo adquiriu funes simblicas e, mais tarde, tornou-se um elemento de

    distino social.

    Os tecidos, como os entendemos hoje, sobrepem uma srie de significaes que, em

    sua confluncia, os caracterizam majoritariamente pelo seu valor prtico, esttico ou

    simblico8. Nesse sentido, quando seu valor simblico enfatizado a ponto de determinar

    sua esttica ou sua funo, todas as variveis de sua vida social (APPADURAI, 1986) so

    determinantes para sua conformao material, tanto do ponto de vista do substrato

    (a matria), quanto de sua ornamentao, sendo essa ltima merecedora de grande

    destaque j que , em teoria, prescindvel s funes primrias do artefato txtil.

    Nem o fato de grande parte da potencialidade expressiva dos tecidos ter sido,

    ao longo de muito tempo, concentrada em sua superfcie ou em sua aparncia

    superficial e, portanto, no ornamento livrou-os do tribunal modernista9, isto ,

    das crticas sua prpria configurao. Do ponto de vista prtico, a ornamentao

    de tecidos tornou-se uma atividade relegada ao segundo plano, e uma prova disso

    que, na indstria moderna, foi um trabalho majoritariamente desempenhado por

    mulheres que historicamente ocuparam postos de trabalho considerados menos

    importantes. Em seu aspecto terico, foi tema marginalizado e abandonado durante

    um longo tempo, tornando-se, nas palavras de Trilling (2003), criticamente

    8 Para Bernd Lbach (2001), resumidamente, os produtos do desenho industrial podem destacar seu valor simblico, esttico ou prtico em maior ou menor medida, conforme a relao que acontece com o usurio. Entende-se que os tecidos estrangeiros, que originalmente possuam melhor desempenho prtico e esttico que os de produo nacional, transformaram esse valor em simblico, consolidando-se como signos de beleza, moda, qualidade, refinamento etc. Deve-se notar que nesse caso o valor simblico no gerado no momento em que o produto concebido, mas negociado socialmente e, por isso, depende muito das prticas de circulao e do consumo dos objetos no meio social.

    9 Ao longo deste trabalho, os termos modernismo, modernidade, moderno e modernizao sero repetidos. Para contextualizar seu entendimento desde o incio, esclarece-se que as distines entre eles foram buscadas em Teixeira Coelho (2005). O autor define modernismo como um fato; modernidade como as mais diversas e variadas reflexes sobre ele; e, finalmente, moderno como a ideia do novo, em oposio (o no moderno, portanto), estaria o velho e arcaico. Modernizao cultural, contudo, como o caso, est mais associada ao projeto de renovao cultural e cientfica da rea na qual atuamos, sem desconsiderar que existem outros desdobramentos como o processo de independncia das manifestaes culturais de normas rgidas (Estado e Igreja, por exemplo) e a aposta na educao e na democratizao da cultura e do conhecimento.

  • 21

    invisvel (p. 228). Acredita-se que as principais reflexes sobre o tema tenham

    surgido a partir da influncia da arquitetura, isto , quando txteis e interiores

    integraram-se (SCHOESER, 1986).

    A partir das ideias difundidas pelo austraco Adolf Loos (1870-1933) ao publicar,

    em 1908, Ornament and crime, a antiornamentao10 tornou-se um discurso

    consideravelmente homogneo, exceo do Art dco11, quando, alis, a

    estamparia txtil gozou de um brilho especial. Para Trilling (2001), esse o marco

    do movimento moderno para artistas e designers e uma das razes apontadas

    para que o mundo do design tenha, ao longo do sculo XX, voltado seus olhos

    para a filosofia que se desenvolvia na Alemanha (SCHOESER, 1986), por ter o pas

    assumido e at liderado essa perspectiva. Nenhum desses fatos, no entanto, deve

    ser isoladamente responsabilizado pela ausncia de envolvimento artstico e crtico

    sobre esse tipo de material.

    Primeiramente, os txteis sempre foram considerados uma arte menor devido

    ao valor material que lhes era atribudo se comparados com outros tipos de

    patrimnios histricos ou artsticos no interior dos museus (PAULA, 1998); em

    segundo lugar, o dficit de discusso tambm devido velocidade com a qual

    os tecidos so substitudos tanto em razo de novos desenvolvimentos, quanto

    pela atualizao dos estilos, o que eventualmente, destaca algumas produes

    em detrimento de outras. Soma-se a isso o fato de ser um objeto muito mais

    difcil de lidar do que outras manifestaes mais perenes da arte e do design.

    difcil torn-los documentos de anlise (JACKSON, 2002) devido a um processo

    acelerado de troca de matria-prima, tcnica e design em constante evoluo

    que prprio dos txteis. Ainda, em virtude de uma grande variedade e

    simultaneidade de linhas estilsticas adotadas num mesmo tempo-espao,

    os estudos dominantes versam sobre o vesturio acabado ou sobre o txtil

    tridimensional (PAULA, 1998), isto , nas roupas, pois estes tendem a consolidar

    estilos, principalmente depois que os ciclos da moda, como perodos nos quais

    se difundem determinadas premissas estticas em detrimento de outras,

    instauraram-se com fora no incio da Idade Moderna.

    10 No captulo sobre a ornamentao essa questo ser aprofundada.

    11 Estilo de decorao que floresceu entre 1918 e 1939 na moda, interiores, arquitetura e design. O nome decorre da Exposition Internationale des Arts Dcoratifs et Industriels Moderns de 1925. Caracteriza-se, esteticamente, por elementos florais, figurativos e geomtricos.

  • 22

    A efemeridade do material tambm fundamental nesse caso, tornando-se, por vezes,

    determinante de algumas possibilidades. Ao observar as publicaes que trazem

    reprodues de tecidos da Antiguidade e da Idade Media, por exemplo, percebe-se que

    muitos deles pertenciam nobreza e ao clero e, por isso, sobreviveram: so de melhor

    qualidade material, resistiram ao uso e esto menos deteriorados, alm de terem sido

    guardados de forma mais adequada, fazendo parte de heranas e inventrios. Essa

    apenas uma reflexo que comprova que a materialidade hoje disponvel tambm

    uma seleo, o que nos permite perceber a responsabilidade que temos sobre a

    preservao dos materiais txteis que hoje ainda esto em trnsito social.

    Dada a condio de privilgio de algumas espcies materiais, uma primeira reviso

    bibliogrfica sobre a histria dos txteis aponta que j na primeira metade do

    sculo XIX, quando arquitetos propuseram estudos focados nesse tema, gerou-se

    preferncia pelo estabelecimento de categorias estticas correspondentes aos

    estgios de desenvolvimento da arte em diferentes civilizaes e culturas, de

    alguma forma semelhante ao que j era feito na historiografia artstica. Percebe-

    se, inclusive, grande semelhana com o desenvolvimento da historiografia da

    arquitetura que tambm se deteve em alguns momentos nas correspondncias

    naturais entre expresses artsticas e perodos histricos determinados, sobretudo,

    por fatos histricos relevantes, como se a um perodo, obrigatoriamente,

    correspondesse uma determinada esttica.

    O trabalho mais emblemtico desse momento (1877), LOrnament des tissus, comprova esse

    entendimento. Organizado por Monsieur Dupont Auberville, adotou um vis classificatrio

    cronolgico e geogrfico inspirado em Grammar of Ornament de Owen Jones (1856), com

    a inteno de subsidiar a criao industrial para que essa se limitasse a reviver os estilos

    anteriores. Dessa maneira, teoriacamente, impediria a produo de grande variedade de

    modelos que fugissem a padres de beleza leia-se equilbrio e proporo vigentes.

    Esse tipo de abordagem, no entanto, como proposta cientfica caracterizada pela

    organizao cronolgica e tipolgica, foi sendo substitudo ao longo do tempo pela

    narrativa histrica que colocava os tecidos como fio condutor de parte da histria

    humana. Tal concepo revela os valores de uma histria anterior Nova Histria12,

    ou seja, antes da dcada de 1970, e que estava caracterizada pelo estabelecimento

    12 chamado Nova Histria o movimento que tem origem na Frana, na dcada de 1960, e que tem seu foco de estudo em novos objetos.

  • 23

    de ordens cronolgicas e de desenvolvimento humano apoiada em alguns nomes, datas,

    inventos e por acontecimentos prximos e contextuais, permitindo, com isso, atribuir certo

    herosmo s sucessivas etapas de aprimoramento tcnico prprias da transio para a

    industrializao. Nessas abordagens, percebe-se que o tratamento dado s fontes visuais

    no nos conduz compreenso de um fenmeno histrico particular, ou porque priorizaram

    a classificao e o julgamento, ou porque priorizaram a narrativa baseada em datas e fatos.

    No entanto, nas ltimas quatro dcadas, a renovao da historiografia dos txteis

    foi arejada. Isso foi em razo, provavelmente, das propostas trazidas por Fernand

    Braudel (1902-1985) histria que, alm de sugerir a ampliao de suas temticas,

    apontou diferentes formas de apreenso dos objetos, sem que ainda se falasse,

    necessariamente, sobre o seu design, mas j se enfatizando aspectos prticos,

    estticos e simblicos desses objetos em circulao ou em sua sociabilidade.

    Na perspectiva do design, somente nas ltimas dcadas do sculo XX que trabalhos

    de grande extenso so identificados. Pode-se citar Mary Schoeser, Susan Meller,

    5. Acima direita, lmina de ornamentao persa em Grammar of

    Ornament de Owen Jones (1856).6. Acima esquerda, lmina com

    os tecidos persas catalogados em Lornament des tissus de Auberville (1877).

    Nas duas lminas buscou-se definir tipologias ornamentais a partir de

    conceitos geogrficos polticos e culturais, ou seja, o objetivo foi o de categorizar as produes artsticas.

  • 24

    Lesley Miller, Philip Sykas ou Jennifer Harris, que encontram na trajetria dos

    txteis (produo, circulao e consumo) o principal foco de novas investigaes.

    Eles tm como fonte essencial de pesquisa acervos museogrficos pblicos ou

    privados associados aos dados e s estatsticas da histria econmica, e expandem o

    conhecimento ao contar com a contribuio dos dados advindos da antropologia,

    da qumica e de outras cincias (GINSBURG, 1993). Por essa razo, a partir de

    ento, os txteis, que j vinham sendo acumulados no patrimnio dos museus,

    tenham passado a ser utilizados como fontes de pesquisa para temas variados nas

    universidades (MILLER, 2006), como gnero, relaes comerciais, antropologia,

    engenharia etc. Atualmente admite-se a classificao dos txteis ou uma

    perspectiva para fins de estudos, como arqueolgicos, etnogrficos e histricos. Os

    tecidos modernos, portanto, entram nesse ltimo grupo.

    Comunidades acadmicas dedicadas aos estudos, reunio de especialistas,

    disseminao do conhecimento, discusso de trabalhos, metodologias e outras

    questes sobre os txteis, esto espalhadas pelas Amricas do Norte e do Sul e

    Europa13. Publicaes cientficas que acolhem os txteis como objetos de estudo

    tambm tm crescido substancialmente.

    A mais importante delas, que adota a perspectiva histrica, surgiu em 1968 na Inglaterra

    e at hoje ativa. Patrocinada pela Pasold Research Fund, fundao dedicada pesquisa

    da histria dos txteis, foi fruto da iniciativa pessoal de um industrial do segmento

    13 Dado nosso posicionamento geogrfico e nossa herana histrica, essas correntes so as que mais nos influenciam.

    7. Capas da revista Textile History publicadas pela Maney Publishing com

    apoio da Pasold Research Fundation. Fonte: www.pasold.co.uk .

    Acesso em 01.05.2011.

  • 25

    txtil e de vesturio. Interessada sobretudo na histria da indstria txtil, a publicao

    Textile History adquiriu prestgio internacional ao longo do tempo, caracterizando-se,

    no entender do editor David Jenkins (2008), por ter inovado cientificamente ao tratar

    simultaneamente dois aspectos do desenvolvimento txtil que, talvez, sempre tenham

    sido tratados de maneira separada: a histria econmica da indstria txtil e o campo da

    arte e do design txtil (p.10).

    No difcil perceber que essa proposta se insere na fase mais recente da historiografia

    e, por essa razo, tem um dilogo profcuo com a histria do design, superando

    algumas restries e submetendo-se a novos desafios, como o de privilegiar as

    grandes tendncias sociais e culturais que condicionaram o desenvolvimento do

    design, e no as biografias dos designers mais famosos (CARDOSO, 2004, p. 13).

    Entende-se que, nesse caso, condicionar no determinar a priori.

    Esse tipo de partido atribui tanto ao visual quanto ao verbal o carter de argumento

    (CARDOSO, 2004), o que, pode-se entender, capaz de apaziguar o desconforto

    manifestado por Ulpiano Meneses (2003) ao elencar as inmeras abordagens e

    controvrsias existentes nas definies dos campos da cultura material e cultura visual

    e das respectivas pesquisas focadas nessas vertentes. Os txteis, em sua condio

    especfica de objeto industrial, tanto nos intriga por sua materialidade da concepo

    ao descarte , quanto por sua visualidade, especialmente os ornamentados.

    Ornamento, esclarece-se, no se limita etapa de beneficiamento posterior possvel

    de ser aplicada sobre txtil, mas inclui a concepo de fios, a estrutura de tecimento e

    tambm o arranjo de fragmentos txteis que d origem a novas superfcies, como o

    caso dos xadrezes e listrados ou patchwork (tecido construdo a partir do recorte e da

    costura de tecidos formando um novo), por exemplo.

    Isso no quer dizer, sem dvida, que unicamente se apreendam os tecidos por meio de

    exemplos materiais. Segundo Ulpiano Meneses (2003), o erro mais comum nesse tipo

    de metodologia que

    [...] alm da impropriedade de conformar a modalidade de pesquisa natureza da fonte e no do problema histrico, h o inconveniente suplementar de se reduzir o alcance das questes substantivas, principalmente por essa limitao da fonte a uma tipologia exclusiva. (p. 26)

  • 26

    E tambm:

    a interao social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, no espao, nos lugares e circunstncias sociais, nos agentes que intervm) determinados atributos para dar existncia social (sensorial) a sentidos e valores e faz-los atuar. Da no se poder limitar a tarefa procura do sentido essencial de uma imagem ou de seus sentidos originais, subordinados s motivaes subjetivas do autor, e assim por diante. necessrio tomar a imagem como um enunciado, que s se apreende na fala, em situao. Da tambm a importncia de retraar a biografia, a carreira, a trajetria das imagens. (p. 28)

    Partindo de tais orientaes metodolgicas, nesta pesquisa tomou-se uma srie

    de imagens que circularam em tecidos estampados no para interpretar nelas

    significados. Ao contrrio. Os significados dados pelos distintos sujeitos que foram

    confrontados s imagens sem que a elas fosse atribudo o carter de discurso14 visual.

    Assim, os tecidos selecionados pelo recorte desta pesquisa, em sua materialidade e

    visualidade, erguem apenas uma plataforma de observao (MENESES, 2003) para

    que se possa conhecer melhor o contexto no qual circularam como parte da histria

    humana, essencialmente do Brasil e dos brasileiros na segunda metade do sculo XX.

    Procedimentos metodolgicos

    Por mais que aparentemente a pesquisa pudesse ser desenvolvida a partir de uma

    metodologia de anlise visual, tendo como objetos tecidos ou suas reprodues

    imagticas, essa opo mostrava-se desde o incio empobrecida, pois o tema da

    pesquisa residia, como dito anteriormente, em considerar as imagens uma parte

    viva da nossa sociabilidade. Seu carter sgnico tomaria parte de sua existncia, mas

    no seria analisado em si mesmo, e seu carter documental seria utilizado e at

    privilegiado, mas, sobretudo, colocado em contexto e no como condutor da narrativa.

    Determinou-se tambm que a pesquisa no deveria assumir a abordagem da

    comunicao, ou seja, no se dirigiria compreenso dos processos de significao ou

    eficincia destes tanto no que tange aos tecidos como no que se relaciona aos discursos.

    Extrairia, dos discursos e das imagens, dados e fatos que permitissem compreender o

    design e o papel de determinados artefatos txteis naquele contexto poltico e social

    14 O termo discurso ao longo da pesquisa utilizado na perspectiva das cincias da linguagem, ou seja, como um lao social estruturado pela linguagem, onde o que se diz perde importncia se comparado ao como dito. Trata-se de uma herana de minha pesquisa de mestrado (ECA-USP), fundamentada nas aulas e conversas com a inesquecvel e saudosa Profa. Dra. Jeanne Marie Machado de Freitas.

  • 27

    to importante para a histria do pas, ou seja, permitiria a aproximao histria das

    atitudes em relao ao objeto e mercadoria, como prope Roche (2000, p.17).

    Tal demanda apresentou-se como um grande desafio, sobretudo em funo da

    inexperincia metodolgica com esse tipo de problema e objeto. As competncias

    necessrias para trabalhar com fontes diversas que orbitariam ao redor de imagens

    falantes, foram sendo conquistadas a partir da aproximao s metodologias mais

    recorrentemente utilizadas no tratamento de problemas similares, tendo-se chegado

    experincia inglesa15 como a mais relevante a ser seguida, ainda que no seja a

    nica. Assim como no Brasil, na Inglaterra o design de txteis estampados passou

    a ter grande importncia quando tornou-se um produto industrial, e naquele pas as

    pesquisas costumam cotejar informaes da histria social e econmica simultaneamente,

    prtica que no to comum entre ns, onde esses campos, muitas vezes, so considerados

    inclusive linhas de pesquisa distintas. A Inglaterra, nesse sentido, acabou tornando-se

    o elemento de dilogo do Brasil com o mundo no universo da tecnologia dos tecidos

    estampados, balizando a anlise da produo e da crtica nacional tanto no que tange aos

    seus aspectos estruturais quanto de criao.

    Diferentemente do caso britnico, contudo, a pesquisa no contava nem com

    bibliografia substancial anterior que tenha sido publicada em lngua portuguesa sobre

    os txteis (independentemente da abordagem) que permitisse que a investigao

    nela se apoiasse, muito menos sobre os tecidos no Brasil, problema j apontado

    por outros pesquisadores (PAULA, 2004; ANDRADE, 2006). Desse modo, para fazer

    sentido, a pesquisa exigiu a construo de um quadro que situasse o pas frente

    historiografia dos txteis num plano global (com nfase no Ocidente), assim como

    aos principais parmetros da ornamentao txtil, o que serviria para subsidiar a

    anlise da produo local no perodo de recorte da investigao. Deve-se ressaltar que

    essa abordagem tambm permite inserir os txteis dentro da perspectiva da histria

    da arte e da cultura e aproveitar, desse modo, a utilizao de diferentes concepes

    estticas no Brasil para melhor apreend-los em nosso contexto.

    15 Pelo menos desde a feira das indstrias de 1851 em Londres, a Inglaterra mostrou-se ao mundo por seu domnio industrial e que inclua, tambm, uma preocupao com o design. Resumidamente, a poltica industrial inglesa, ao longo dos anos, baseou-se na educao em design, na cultura para seu consumo (ou educao do povo) e no desenvolvimento tecnolgico. Em 1946, aps o fim da guerra e com o mercado internacional prejudicado, o governo ingls e entidades diversas patrocinaram uma grande exposio no V&A Museum, em Londres, denominada Britain We Can Make It. Procurava-se, com esse evento, mostrar populao a capacidade de produo e a grande qualidade do design dos produtos ingleses, que possibilitavam colocar a Inglaterra, novamente, no comercio internacional de produtos industrializados.

  • 28

    Apesar de condies to favorveis, que permitiriam tratar o tema com liberdade

    temtica e de nfase, decidiu-se adotar uma prtica prudentemente regressiva, como

    sugeriu Marc Bloch (2002), j que estimava-se contar com um maior nmero de fontes

    para consulta, tentando evitar, dessa forma, perseguir fenmenos que poderiam resultar

    imaginrios como adverte o autor.

    Chegou-se ao perodo da pesquisa a partir dos resultados obtidos em pesquisa inicial, utilizada

    no projeto de pesquisa apresentado no processo seletivo para ingresso na ps-graduao

    da FAUUSP, quando verificou-se a existncia de etapas com caractersticas bem distintas que

    marcaram o desenvolvimento de txteis no Brasil. Na ltima etapa, a segunda metade do

    sculo XX, identificou-se a viabilidade de investigar a hiptese formulada, que props que

    durante as dcadas de 1950, 1960 e 1970, solues visuais para as estampas e produo de

    discursos sobre elas, procuraram destacar a grandeza do pas.

    Tabela 1: Evoluo da indstria txtil brasileira, sua estrutura e as caractersticas

    de seus produtos em diferentes momentos histricos.

  • 29

    Deve-se ressaltar que, nesta pesquisa, muito embora os produtos txteis sejam

    o objeto de interesse, eles no so, em si mesmos, o principal objeto de anlise.

    Isso porque o que interessa desvendar a relao existente entre os produtos e os

    discursos sobre eles produzidos, para que se revele, nesse contexto, a ao projetual

    que deveria atender demanda por uma visualidade que correspondesse ao discurso

    nacionalista, este configurado como um dado a priori. Assim, os elementos que

    articulam na forma de referentes, tanto quanto o mtodo e os recursos de trabalho,

    so parte imprescindvel da anlise j que condicionam, invariavelmente, o produto

    resultante. A ao projetual (considerando os diferentes polos de criao existentes e

    que sero explicados no decorrer da tese) que visa produo de estampas poderia

    ainda mostrar todos os componentes da estrutura qual estamos submetidos. Esse

    procedimento foi utilizado para evitar que a anlise acontecesse prioritariamente na

    forma da leitura das imagens, a fim de que fosse possvel iluminar a imagem com

    informao histrica [no somente] externa a ela e ultrapassar a tentativa de se

    buscar um sentido naquilo que se v (MENESES, 2003, p. 37).

    Estrutura e organizao da tese

    Sem dvida, tanto o mapa conceitual que articula os dados da pesquisa bem como

    o procedimento da investigao devem diferenciar-se da estrutura da tese, que visa

    transmitir ao leitor os resultados alcanados a partir de uma metodologia isenta e

    vlida para tal. Dessa forma, a organizao ou estrutura da tese foi planejada para

    atender necessidade de inserir o tema entre ns, mapear a produo txtil do

    Tabela 2: Aes em anlise. No eixo de aes em anlise, acredita-se, de

    acordo com a hiptese formulada, que se impe uma nova relao com os modelos e aqualificao humana e tcnica relativa

    indstria txtil.

  • 30

    perodo e justificar a criao na e para a sociedade na qual ela se desenvolvia. Somente

    a partir desses dados que a produo selecionada foi analisada.

    Para melhor compreender o objetivo dos captulos para o desenvolvimento da

    hiptese e o processo de sua construo, explica-se, a seguir, a estrutura da tese e as

    fontes de pesquisa utilizadas.

    O primeiro captulo traz uma abordagem histrica dos tecidos estampados, que explica

    o desenvolvimento da tcnica, a sua descoberta comercial pelos portugueses no sculo

    XVI e a sua industrializao na Europa a partir do desenvolvimento de tecnologias para

    a sistematizao e mecanizao do trabalho de estamparia. O captulo justificado

    porque no se dispe no Brasil de publicaes com o tema na abordagem aqui

    proposta, importante tanto para a histria da arte quanto para a histria da moda e do

    design. As fontes de pesquisa utilizadas so inglesas e francesas, muitas delas publicadas

    antes da dcada de 1950, j que, pde-se verificar, os raros trabalhos produzidos no

    Brasil que se referem ao assunto cometem equvocos, sobretudo em decorrncia da

    incompreenso de termos tcnicos e da prtica da estamparia txtil propriamente dita.

    O segundo captulo dedicado questo da ornamentao. justificado em face da

    necessidade de compreender os pressupostos que direcionaram o desenvolvimento

    da ornamentao txtil no Ocidente e tambm a sua crtica. Alm de revises

    bibliogrficas sobre os estudos ornamentais arquitetnicos, foram utilizados guias para

    a ornamentao txtil moderna e anlises de criaes contemporneas (dcadas de

    1950 a 1970) publicadas na The Ambassador Magazine16. Ainda que esse captulo no

    esgote o tema, ele rene os principais pensamentos que permitem compreender, nos

    captulos seguintes, o desenvolvimento do projeto para o design de txteis no mundo

    ocidental e tambm no Brasil, alm dar subsdios para a anlise esttica das estampas

    aqui investigadas.

    O terceiro captulo dedica-se ao desenvolvimento da indstria txtil no Brasil, com

    nfase no segmento de estamparia. Elaborado predominantemente a partir de fontes

    16 Revista inglesa dedicada divulgao da indstria britnica de moda e de tecidos, sobretudo para o mercado de exportao. Foi publicada entre 1933 e 1987, sendo que o perodo de mais relevncia e atuao o ps-guerra. Inicialmente chamava-se International Textiles, quando ainda tratava-se de uma publicao decorrente da parceria entre a Inglaterra e a Holanda. Aps a guerra, mais especificamente a partir de 1946, passou a nomear-se The Ambassador Magazine enquanto o ttulo International Textiles passou a ser publicado na Holanda. Ao longo do trabalho utiliza-se somente o ttulo The Ambassador, com finalidade de uniformizao. Seu primeiro diretor de arte foi Lszl Moholy Nagy, professor da Bauhaus. O arquivo completo encontra-se em Londres, no Blyte House Archive.

  • 31

    secundrias dedicadas histria econmica e social da indstria txtil no Brasil e

    tambm a partir da consulta ao acervo da Revista Txtil primeira publicao tcnica

    do setor a ser editada no Brasil desde 1931 sendo o editor o seu proprietrio, Sr.

    Ricardo Haydu , esse captulo contribui decisivamente para compreender as bases

    tecnolgicas nas quais as estampas ditas modernas e brasileiras foram desenvolvidas.

    A Revista Txtil uma importante publicao do setor, editada ainda hoje em

    peridiocidade bimestral, voltando-se atualmente tambm cobertura especializada

    tcnica da moda. Pelo menos durante suas quatro primeiras dcadas de publicao dedicou-

    se de maneira destacada a instruir os profissionais tcnicos da indstria txtil brasileira17.

    No quarto captulo, os principais argumentos da tese so formulados e apresentam-se

    as demandas e condies para a proposio de uma esttica brasileira aplicada aos

    tecidos, a partir da seleo de exemplos destacados de momentos significativos e

    qualitativos (BELLUZZO, 1988) e no a partir de amostragem quantitativa.

    No quinto captulo, no qual se alcanam as concluses da pesquisa, a produo de

    estampas brasileiras por diferentes sujeitos analisada em sua visualidade e em

    confronto com os conceitos de nacionalidade estabelecidos nos captulos anteriores.

    Cada uma das abordagens discutida separadamente e compreendida segundo sua

    prpria natureza e suas premissas de desenvolvimento. A nfase dada nos tecidos

    produzidos pela indstria, j que estes so o foco desta pesquisa.

    Perspectivas da pesquisa

    Este trabalho no tem a pretenso de esgotar o tema, porm pretende pontuar os

    principais marcos ou as aes externas aos txteis que, na histria do pas, alteraram a

    maneira de produzir tecidos e com eles interagir, ou seja, projeto e produto.

    Esta tese almeja contribuir, ainda que modestamente, para a construo de nossa

    histria projetual com nfase na indstria txtil. Tem tambm o objetivo de compreender

    17 Acerca dessa fonte, merece ser destacado que o ento proprietrio da revista, Sr. Ricardo Haydu, era tambm proprietrio, diretor e professor da Primeira Escola de Tecelagem em So Paulo. Isso foi verificado a partir de muitos anncios publicados pela revista, onde so apresentados os cursos ministrados e os programas. Vendem-se, tambm, alguns materiais teis aos futuros tcnicos em txteis. A revista basicamente caracterizava-se por matrias de cunho tecnolgico, procurando instruir os leitores. Reportagens sobre feiras, informaes sobre processos, usos de novos insumos, materiais etc., e poucas matrias sobre criao ou desenvolvimento de produtos do ponto de vista esttico. Os anunciantes primeiramente so os de engenharia txtil em geral (mquinas e peas) e, a partir da metade da dcada de 1950, muitos anunciantes das indstrias qumicas. O arquivo consultado encontra-se na Associao Brasileira da Indstria Txtil - ABIT.

  • 32

    a permanncia de alguns processos internos s indstrias txteis, que revelam a

    fragilidade da formao superior no pas que ainda v com preconceito as atividades

    relacionadas ao fazer manual e indstria. Quem sabe, poder apresentar o segmento

    industrial txtil como um campo de atuao importante, inexplorado e promissor para

    a pesquisa cientfica aplicada na rea de desenvolvimento de materiais, processos,

    produtos e profissionais, j que, como se ver a seguir, um segmento que parece dever

    seu desenvolvimento e aprimoramento sua motivao interna.

  • 33

    Tecido estampado: origem, percurso e indstria

    A estamparia txtil tm origem artesanal, a partir

    de diferentes mtodos desenvolvidos no Oriente.

    Primeiramente absorvida pelas manufaturas

    europeias, a tcnica de estampar por blocos

    foi sendo aprimorada a ponto de transformar-

    se em uma tecnologia promissora, que teve

    grande importncia para a Revoluo Industrial

    na Inglaterra. Nesse momento, o trabalho do

    designer tambm passou a ser incorporado pelo

    processo produtivo, e grande parte do debate que

    se travou desde meados do sculo XIX a respeito

    do papel social do design, da atividade criativa

    e projetual e, por fim, da relao entre os objetos

    produzidos pela indstria e o objeto artstico,

    deve-se, ao menos parcialmente, s profundas

    transformaes provocadas pelas indstrias

    txteis em todos os seus segmentos.

  • 34

    Antecedentes histricos

    Muito embora o algodo possa ser encontrado em diferentes pontos do globo

    como uma espcie nativa, foi com a sua utilizao na produo de tecidos

    estampados na ndia e do interesse que estes despertaram na Europa a partir

    do sculo XVII, que sua utilizao destacou-se mundialmente. Sua importncia

    como valiosa mercadoria de troca uma commodity18 inquestionvel desde

    a Antiguidade, e seu destaque no mbito da histria industrial advm do difcil

    processo de transformao de uma tcnica artesanal to bem-sucedida em uma

    indstria promissora.

    No possvel localizar no tempo a descoberta dessa fibra como uma matria-

    prima txtil, mas algumas fontes indicam o seu uso desde, pelo menos, o sculo

    V a.C. (ARKWRIGHT, 1835) pelos indianos e egpcios. Sua rvore, os indianos

    a chamavam de tala, e ao algodo florescido, chintz (ARKWRIGHT, 1835), mas a fibra foi recebendo nomes variados em diferentes localidades medida que

    seu comrcio se expandiu. Primeiramente pela Prsia e pelo Egito e, mais

    tarde, durante a Era Crist, foi introduzida pelos navegantes gregos, na forma

    de tecidos lisos ou ornamentados, nos portos da Arbia, e entrou tambm no

    mundo romano e nas cidades gregas. Ainda segundo Arkwright (1835), dadas

    as caractersticas da fibra e dos tecidos a partir dela obtidos, naquela poca os

    tecidos de algodo no concorriam com as luxuosas sedas, circunscrevendo-se

    s vestes mais simples.

    H controvrsias acerca da origem da arte de estampar tecidos, mas certo

    que Herdoto a relatou, dando indcios que sua origem, portanto, anterior ao

    sculo V a.C. e por isso, provavelmente, se deu em linho e algodo:

    No Caucaso [...] Assegura-se possurem eles uma espcie de rvore cujas folhas pisadas e deitadas ngua, promovem uma tinta com a qual pintam nos trajes figuras de animais. A gua no apaga, absolutamente, essas figuras, que ali se gravam como se fossem tecidas no desbotando seno com o desgaste da prpria fazenda19.

    18 Mercadoria com pouca ou nenhuma industrializao, produzida por grande nmero de fornecedores, e que, negociada em grandes mercados tem um valor global.

    19 Conforme CC111, p. 126, Livro 1 - Clio. Traduo do grego por P.H. Lamcher e verso para o portugus de J. B. Broca. Fonte: Perseus Digital Library, Tufts University. Disponvel em www.perseus.tufts.edu. Acesso em 30.abr.2012.

    8. Uma das espcies de arbusto de algodo.

    Fonte: The cotton manufacture.

  • 35

    Plnio, o velho, o mais importante naturalista da Antiguidade, ao relat-la

    em 70 d.C., afirma que a tcnica de estampar tecidos teria sido desenvolvida

    primeiramente no Egito (PERCIVAL, 1923), assim como Arkwright (1835), que

    afirma:

    Os indianos foram no somente os primeiros manufaturadores, mas tambm, provavelmente, os primeiros que imprimiram ou pintaram algodes. Plnio menciona que os linhos tintos (mas sem dvida eram algodes) foram os primeiros tecidos desse gnero vistos pelos gregos na guerra de Alexandre com os indianos. Antes disso, Herdoto mencionou uma nao s margens do Cspio que pintava figuras de animais em suas vestes com uma tinta vegetal. (p. 254-255, grifos nossos)

    B. Closter (s/d, conforme Perseus Tufts Digital Library), ao traduzir Plnio,

    concluiu que

    muito difcil, provavelmente impossvel, atualmente, determinar qual das naes da Antiguidade participou, sem dvida, da inveno da arte do tingimento. Sabe-se que txteis foram coloridos em vrias partes do Pentateuch, e esta a razo para supor, que a arte foi praticada, desde um perodo muito primrio, pelos egpcios, fencios e indianos. Eles chegaram a conhecer o tingimento parcial, o que tecnicamnte nomeado impresso, aplicado ao algodo ou ao linho.

    Se certificar a veracidade das origens um debate que na atualidade pode gozar de

    pouca importncia, discriminar as tcnicas e compreender sua relao com a sociedade

    o ponto de partida para as pesquisas na histria do design: por essa razo, a identificao

    das tcnicas normalmente necessria construo de novos argumentos.

    Schoeser (2003) afirma que tanto a pintura quanto o tingimento de padres ou a

    impresso (estampagem) so tcnicas decorativas de txteis com uma perspectiva

    vertiginosamente diferente das do trabalho com fios de cores diferentes, seja pelo

    entrelaamento, seja pela sua aplicao na forma de bordados. Elas [as tcnicas de

    pintura, tingimento ou impresso] so uma resposta para o meio tanto quanto a base

    dele (p. 134).

    Os princpios fsico-qumicos que possibilitam a elaborao de estampas sobre

    superfcies txteis, bem como a manuteno da cor em determinadas reas aps o

    uso e as lavagens, baseiam-se na ao dos mordentes, que so substncias qumicas

    que regulam a tonalidade da cor e fazem a tinta permanecer (REATH, 1925, p. 143).

  • 36

    9. Tecido indiano para o comrcio exterior, estampado pelo mtodo de

    blocos sobre algodo tinto. Gujarat, c. 1340-1380.

    Fonte: V&A Pattern Indian Florals.

  • 37

    Sendo aplicados antes, junto ou aps o processo de estampagem e/ou tingimento,

    eles fazem com que o corante aplicado no se solte facilmente do tecido. Dessa forma,

    o domnio da tcnica de estampar exige necessariamente um conhecimento qumico

    aplicado bastante profundo, que varia conforme as tcnicas e o tipo de ornamentao,

    bem como em funo dos substratos txteis e dos elementos corantes disponveis.

    praticamente impossvel o desenvolvimento acidental dos princpios que regem a

    tcnica e seus processos, afirma Reath (1925).

    Existem apenas dois fundamentos de aplicao de cor em reas pr-definidas

    (isto , de formao de desenhos) sobre uma superfcie txtil, explica Schoeser

    (2003). Eles, por sua vez, determinam o tipo de expresso plstica possvel e

    resultante:

    A primeira, conhecida como shibori, mantm protegida toda a rea com resistncia fsica tal como dobras, pregas, amarras e grampos (a ltima frequentemente feita ao redor do arroz, sementes, galhos, pedras ou entre tbuas). O tie-and-dye (chamado bahda na ndia e plangi pelos malaio-indonsios), o tritik (protegendo a rea com pontos costurados) e o ikat (no qual o urdume e/ou a trama a serem tranados so previamente tintos em reas salteadas antes do tecimento) entram nessa categoria. O outro grupo de tcnicas de desenho de superfcie direta ou aditiva. O tecido preso esticado, mas no com grande tenso, sem a necessidade de estar erguido ou de usar bastidores. Dedos, galhos, pincis rudimentares ou outros objetos com superfcie texturada com suficiente proeminncia tambm so usados para elaborar desenhos e padres complexos diretamente sobre o tecido, aplicando-se ocres disponveis na terra ou secrees de frutas e vegetais. O batique, o uso de blocos e todas as formas de impresso mecnica e originadas pelo uso dessas ferramentas bsicas [so exemplos desse grupo]. (SCHOESER, 2003, p. 134)

    Joyce Storey (1974), por sua vez, divide em quatro os princpios de impresso de

    desenhos nos tecidos: por resistncia (onde esto o shibori/tie-and-dye e o batique); por tingimento, com uso de mordentes que determinam a rea de absoro do

    corante (equivale ao que Schoeser tambm chamou de aditiva); por descarga, no

    qual uma cor preexistente retirada pela ao de um alvejante; e finalmente o

    princpio direto, em que se supe a aplicao da cor sobre o tecido, seja com o uso de

    pincis (pintados), seja com o uso de moldes planos (estncil) ou em relevo, como

    os blocos de madeira. Todas elas compem o universo da esttica que se associa

    estamparia txtil.

    10. Tecido ornamentado com a tcnica ikat com origem na sia Central (c.1883).

    Fonte: objeto IS 1366-1833 - Victoria & Albert Collection.

  • 38

    possvel que a ideia de depositar ou retirar cor dos tecidos tenha sido a primeira

    tcnica a ser desenvolvida pelo homem para a ornamentao de txteis dedicados

    ao vesturio (REATH, 1925). Embora no Oriente ela tenha sido comum a diferentes

    regies, tecidos impressos e/ou pintados produzidos no continente americano, datam

    de antes do Imprio Inca (previamente ao sculo XIII) e so provenientes do Peru

    (REATH, 1925), podendo ter sofrido, segundo Schoeser (2003), alguma influncia das

    rotas indianas. Acredita a autora que tanto incas quanto astecas seriam conhecedores

    do shibori ou tie-and-dye e ikat, processos que no permitem o acesso dos corantes

    a determinadas reas, mas no dominariam a aplicao da cor no tecido para a

    formao do desenho em reas determinadas.

    Para haver estamparia ou tingimento eficientes, h, sem dvida alguma,

    domnio sobre a extrao da cor da natureza e tambm sobre seu processo de

    transformao em substncia corante para sua posterior fixao no substrato txtil.

    Isso inclui a extrao da substncia corante de plantas, insetos ou animais e da

    eliminao, por processo de purga, das ceras e resinas presentes na substncia, o

    que feito por meio de uma srie complexa de operaes em solues aquosas

    macerao (corte e esmagamento), ebulio (pela fervura), fermentao usando

    temperaturas controladas e acidez (DELAMARE; GUINEAU, 2009, p. 34).

    11. direita, tecido ornamentado com a tcnica tie-and-dye (shibori), produzido

    na Inglaterra em 1961. Fonte: objeto CIRC 97-1962 - Victoria &

    Albert Collection.12. Abaixo, tecido ornamentado com a

    tcnica batik, produzido em Java no final do sculo XIX.

    Fonte: objeto IS 131-1984 - Victoria & Albert Collection.

  • 39

    A estamparia exige ainda que diferentes cores sejam extradas e aplicadas adequadamente

    cada substrato txtil exige um tipo de substncia corante e mordente especfica ,

    normalmente em sequncias precisas, especialmente nos processos que se utilizam do

    mordente como substncia reveladora do desenho, como o caso do processo indiano.

    Se a origem dos tecidos estampados, como anteriormente exposto, incerta, a ideia de

    estampar com blocos dividindo a composio do desenho em partes, segundo as cores

    que o formam, uma tcnica de origem egpcia, j que a prtica indiana, ao menos

    inicialmente, era a de criar contornos com um nico bloco e preencher as diferentes

    cores a mo (PERCIVAL, 1923). Pelo que se sabe, foi esse o processo que inspirou o

    desenvolvimento da tcnica da estamparia e de sua industrializao na Inglaterra e na

    Frana - como poder ser visto a seguir -, tendo sido os portugueses os responsveis

    pela sua descoberta quando visitaram a ndia em 1498 (ARKWRIGHT, 1835), ainda

    que, pelo menos desde os sculos IV ou V a.C., tenham sido estampados tecidos na

    Europa, especificamente pelos gregos.

    Isso no significa, segundo Reath (1925), que o desenvolvimento do processo tenha

    sido grego, pois tanto o domnio dos egpcios no perodo Ptolomaico (323-30 a.C.)

    (DELAMARE; GUINEAU , 2009), quanto o contato com os chineses, inventores da

    xilogravura, podem ter contribudo para o desenvolvimento da tcnica naquele local,

    apesar de os chineses no serem conhecedores do algodo antes do sculo XIII.

    Na sia menor, um tecido de algodo estampado com blocos de madeira no sculo VI ou VII foi encontrado em uma tumba na Prssia, e alguns tecidos armnios tambm so conhecidos. Uma vez que os armnios eram tanto orientais quanto cristos, era natural a relao entre o leste e o oeste. Seus tecidos estampados com a tcnica da resistncia, utilizados nos frontes dos altares do sculo XVII, com arquitetura bizantina nos desenhos, e barrados com flores e figuras persas e turcas, so uma ligao entre os tecidos estampados da sia e aqueles da Europa. (REATH, 1925, p. 144)

    13. direita, blocos de impresso de tecidos em vista lateral e frontal

    14. Acima, exemplo da separao da impresso em partes, contorno e

    preenchimento Fontes: Manual of Textile Printing e

    acervo pessoal de fotografias.

  • 40

    A prtica da estamparia direta na Europa antes da Idade Mdia pouco provvel,

    segundo Percival (1923). Os romanos, afirma o autor, at ento no conheciam

    qualquer processo de tingimento de fibras de origem vegetal ou animal e, por isso,

    substncias para colorao utilizadas para outras finalidades tinham seu uso estendido

    aos txteis a fim de produzir cpias baratas de tecidos ornamentados, procurando

    imitar desenhos gerados por processos de tecimento20, como a seda e o brocado,

    sem ter, no entanto, caractersticas apropriadas a eles. Deve-se estimar, entretanto, a

    possibilidade de que o domnio sobre os gregos tenha lhes rendido o desenvolvimento

    dessas tcnicas.

    A partir do sculo XI, evidncias materiais indicam que nos Mosteiros de Rhineland,

    na Alemanha, a tcnica de impresso com blocos, com o objetivo de ser aplicada aos

    tecidos, comeou a ser desenvolvida. Os primeiros desenhos tambm procuravam

    imitar brocados e sedas a partir, inclusive, da aplicao de tons metlicos obtidos por

    uma espcie de cola misturada ao p de metal.

    Segundo observam Delamare e Guineau (2009), as iluminuras medievais revelam

    diferentes nveis de tecidos no tintos, isto , aqueles que apresentam vrias

    tonalidades do marrom caracterstico das fibras naturais utilizadas (que pode ir do

    quase branco a um bege bem escuro) e trazem tambm novas tonalidades. Podiam

    ser obtidos tambm diferentes tons de azul a partir da amora e da groselha; malvas

    foram retirados de moluscos martimos e de fungos; flores e piaava deram origem

    aos amarelos; outras flores e madeiras revelavam os vermelhos; castanhas e nozes, os

    marrons; e finalmente o sumac, uma espcie de tempero, e a noz moscada permitiam atingir os pretos. Na ocasio, a qualidade da cor era medida pelo seu brilho e intensidade

    alm, obviamente, da estabilidade aps o uso e as lavagens. A maioria das substncias

    era trazida por mercadores da ndia, da Malsia, do Ceilo, da Prsia e tambm do Brasil,

    especificamente o pau-brasil para a obteno de variedades de vermelhos.

    As padronagens obtidas pelo entrelaamento dos fios seriam, ento, referncia mais

    prxima para o desenvolvimento da estamparia e seriam substitudas pelos tecidos

    estampados em um curto espao de tempo. A mudana de gosto que atingiu a Frana

    e a Inglaterra notada no s pela materialidade promovida pelo toque e pela leveza

    20 Com fios tintos, tecidos com a utilizao de tcnicas adequadas, possvel obter tecidos plenamente ornamentados a partir de mltiplas possibilidades para o seu entrelaamento, o que se denomina woven design. Em portugus, no existe um termo que substitua adequadamente essa expresso e, normalmente, a palavra padronagem utilizada com essa finalidade, embora se refira tambm aos tecidos estampados.

  • 41

    do tecido de algodo, mas pelas cores e referncias dessas novas estampas que se

    distanciaram das referncias medievais.

    Se anteriormente ao sculo XIV valorizavam-se, sobretudo, os tecidos pesados, como

    damascos, brocados e veludos (moda ibrica), a partir de ento se difundiu uma moda mais

    leve de raiz francesa, que ps em evidncia a leveza da seda, do algodo e do linho. Charles II

    (1630-1685) era admirador da Frana e, por isso, foi incentivador das importaes francesas,

    responsveis pela difuso desse gosto na Inglaterra (THOMAS, 1924).

    A entrada dos tecidos indianos na Inglaterra foi favorecida pela permisso de

    importao obtida em 1631 pela Companhia das ndias Ocidentais (PERCIVAL, 1923;

    THOMAS, 1924) e potencializada pela proibio de importao de tecidos franceses,

    que vigorava desde 1678 (ou 1676) que terminaria por completo somente em 1774.

    No s a Companhia das ndias inglesa, mas tambm a francesa e a holandesa

    puderam negociar sedas, clicos21, chintzes e musselinas em grande quantidade,

    difundindo o gosto por esses tecidos primeiramente aos mais pobres, mas depois a

    todas as classes sociais a ponto de, ao longo dos sculos XVII e XIX, pr fim moda

    dos tecidos com fio de ouro, a glria da Inglaterra (THOMAS, 1924).

    Esses tecidos, que aliavam elegncia a preo baixo, primeiramente foram utilizados

    no segmento da decorao dos lares, mas em seguida serviram confeco de

    roupas para homens, mulheres e crianas, chegando a ser considerados uma praga

    (THOMAS, 1924). Em virtude do prejuzo financeiro que esse consumo causou s

    indstrias inglesas, William III (1650-1702), em 1700, acabou por proibir a importao

    de tecidos pintados ou impressos de algodo que, se num primeiro momento

    limitaram-se ornamentao indiana, aos poucos desenvolveram um negcio na

    ndia que permitia, inclusive, a compra por encomenda de desenho:

    Exemplos e pedidos eram ento enviados para a ndia por meio de encomendas especiais com casacos de brases e outros padres europeus, assim como os desenhos eram enviados para a China para serem copiados na porcelana Lowestoft22. (REATH, 1925, p. 145)

    21 Nome que tambm dado aos tecidos estampados, em virtude de sua origem em Calicute na ndia.

    22 Nome de cidade inglesa que, na metade do sculo XVIII, abrigou uma oficina artesanal com o mesmo nome e que produzia uma porcelana de alta qualidade, que caracterizada pelo fundo branco e desenhos coloridos, mas com nfase no azul e, numa primeira fase, com motivos orientais. Esta tambm foi produzida na China. Fonte: http://www.lowestoftporcelain.com/history.htm. Acesso em 09.mar.2011.

    15. Retrato de Richard Sackville pintado por William Larkin (1616). Esse tipo de ornamento, caracterizado como

    brocado, constitui um woven design, imitado pelas estampas de origem

    europeia. O retrato apresenta, tambm, a voga da explorao do

    pattern nos tecidos, como importante elemento decorativo.

    Fonte: www.azerbaijanrugs.com. Acesso em 07.nov.2011.

  • 42

    Tal movimento mercantil provocou a desvalorizao dos tecidos ingleses,

    notadamente sedas e pesadas ls que eram o seu principal produto at ento,

    provocando o controle e a proibio de novas importaes. Assim, segundo Thomas

    (1924), foi estimulado, pela necessidade, o desenvolvimento interno desse tipo de

    segmento j que, por si s, os atos governamentais no eram capazes de fazer retornar

    o gosto de consumo quilo que os britnicos acreditavam ser old fashioned, como a

    produo de tecidos pesados.

    Antes do desenvolvimento cientfico do sculo XVII e XVIII, a migrao das tcnicas

    de produo era possvel pelo trabalho de intermedirios, viajantes e artesos que se

    deslocavam entre as regies. Isso fez com que, alm do gosto, a prtica se transferisse

    da ndia para a Inglaterra e a Frana (GEKAS, 2007).

    As primeiras manufaturas inglesas de algodo estampado se instalaram somente

    a partir de 1641 no entorno de Londres e, a partir do sculo XVIII, transferiram-se

    para o norte do pas nas regies de Lancashire e Yorkshire, pois essas reas reuniam

    caractersticas importantes para o assentamento dessas indstrias (fora motriz de

    gua, energia de origem material e ferro), alm de boas linhas de comunicao que

    permitiam a ligao com outras regies do pas para a aquisio de insumos e para o

    transporte da produo e das matrias-primas.

    Durante aproximadamente cinquenta anos, a produo no foi nem muito expressiva

    nem muito significativa. A data oficial para o surgimento dessa indstria na Inglaterra

    passa a ser ento o ano de 1690, quando uma pequena manufatura de estampar tecidos

    teve sua patente registrada e foi montada por Ren Grillet, um refugiado francs que

    chegou Inglaterra com a revogao em 1685 do dito de Nantes, documento assinado

    pelo Rei da Frana Henri IV em1598, que concedia tolerncia aos protestantes franceses.

    Apesar das inmeras referncias a esse contexto, possvel, pela descrio de outros

    autores citados por Thomas (1924), que o proprietrio do negcio tivesse sido um catlico

    romano obrigado a deixar a Frana no por questes religiosas, mas devido proibio

    de produzir tecidos estampados em territrio francs, que vigorava desde 1686. Antes de

    chegar Inglaterra, Grillet teria se instalado temporariamente na Holanda.

    Thomas (1924) afirma que, antes dessa data, j havia tecidos sendo impressos na

    Inglaterra pelo menos desde 1676, e isso confirmado pela patente dada a um

    William Sherwin naquele ano pela inveno de uma nova e veloz maneira para

    16. Madame de Pompadour, grande apreciadora dos tecidos estampados

    (chintz indianos), retratada por Franois Hubert Drouais (1763-1764)

    utilizando um vestido plenamente adornado com pintura manual.

    Fonte: National Gallery, Londres.

  • 43

    imprimir casimira, na qual a velha e verdadeira maneira de impresso da ndia

    ocidental permanece em tais tipos de gneros (p. 209). Percival (1923), por outro

    lado, revela uma curiosa patente anterior concedida a Jerome Lanyer em 1634,

    relacionada a uma mquina que produziria desenhos com a aplicao de uma cola que

    poderia fixar substncias e gerar uma superfcie com textura aveludada. So diferentes

    relatos que indicam que a estamparia comeava a despertar na Inglaterra.

    Toda a impresso inglesa, sem dvida, era feita sobre tecidos de algodo importado

    ou linho, que poderiam ser trazidos da Holanda ou produzidos no pas. Havia um

    problema de domnio de tcnica de fiao que impedia a produo de tecidos de

    algodo na Inglaterra adequados estamparia, e esse obstculo s foi superado

    ao redor de 1750, quando os britnicos conseguiram produzir fios de algodo com

    suficiente resistncia para a sua utilizao na urdidura, a partir das invenes e dos

    aprimoramentos de filatrios, desenvolvidos primeiramente por James Hargreaves

    (1720-1778) e, mais tarde, por Richard Arkwright (1732-1792) (THOMAS, 1924).

    Elas teriam possibilitado a produo de fios adequados produo de tecidos feitos

    inteiramente de fibras de algodo, assim como os originais indianos.

    A expanso de manufaturas inglesas semelhantes, via de regra, aconteceu na forma

    de ampliao de um negcio de comercializao de tecidos lisos e estampados j

    em funcionamento. A importao de tecidos lisos para posterior beneficiamento foi,

    tambm, uma maneira encontrada de dar trabalho populao inglesa e manter as

    relaes comerciais com a ndia no s pela compra dos tecidos, mas pela transferncia

    de tcnicas (ou de ideias) necessrias boa impresso e que j era domnio daquele

    povo desde a mais remota antiguidade. A questo relativa permanncia das cores

    aps as lavagens ainda era o grande desafio a ser superado, j que, de acordo com

    as descries dos produtos obtidos, fica claro o desconhecimento ingls acerca dos

    processos qumicos necessrios ao desenvolvimento e fixao das cores, o que ainda

    seria um problema durante algumas dcadas (THOMAS, 1924).

    Essa deficincia seria superada apenas a partir de 1742, quando um missionrio francs

    que esteve na ndia aproximou-se da tcnica de impresso em todas as suas etapas.

    Padre Courdoux publicou os segredos para a impresso de tecidos desenvolvida pelos

    indianos e que, na verdade, no era muito diferente do processo descrito por Plnio em

    relao aos egpcios (PERCIVAL, 1923). Segundo o autor, o religioso teria afirmado que

  • 44

    tanto os trabalhadores quanto os cientistas europeus no tinham conseguido alcanar as

    cores e a sua estabilidade nos tecidos como os indianos, pois no possuam as mesmas

    substncias corantes nem tampouco a sua gua, insumo auxiliar na preparao das tintas

    para o tingimento e a pintura. No entanto, o domnio da tcnica foi insistentemente

    perseguido pelos ingleses, que viam na estamparia de tecidos mecanizada, que utilizava

    tcnicas de ornamentao velozes e permitia a repetio interminvel dos desenhos, um

    modo de promover lucros incrveis aos fabricantes (CARDOSO, 2004).

    O desenvolvimento da tcnica de estampar tecidos tambm havia sido estimulado

    na Frana em funo do gosto pelas mercadorias indianas. Embora o surgimento

    da estamparia naquele pas seja semelhante ao percurso ingls, sua implantao,

    entretanto, foi mais planejada do que na Inglaterra: Ela [a indstria] foi possvel graas

    instalao de uma colnia de armnios em Marselha, onde foi criado um porto-franco

    por Colbert23 (1619-1683) em 1669. E nasceram os primeiros indiennes provenales

    comparveis aos chafarcanis vindos do Levante (RENAU, 2000, p. 62) que, por sua vez,

    eram inspirados tambm nos tecidos indianos:

    Desde o sculo XVII, mas particularmente no XVIII, os tecidos indianos comearam a tornar-se moda no imprio otomano e, pelo menos para a camada mais alta, produtores otomanos comearam a imitar os tecidos indianos. O chafarcani era tecido e impresso na maioria das vezes em Diyabakir, no Kudisto, pondo fim velha produo txtil localizada nos centros iranianos e de Mosul. E a maioria destas tcnicas viajou com os mercadores armnios do Ir, especificamente de Nova Julfa, o subrbio de Isfahan, um assentamento de artesos e mercadores armnios do sculo XVII. (GEKAS, 2007, p. 12)

    Segundo Raveux (2008), o aprimoramento da estamparia e dos negcios decorreu de

    condies especficas favorveis, relativas tanto habilidade industrial, que abrange

    a capacidade de absorver as tcnicas orientais e de estruturar-se para a produo,

    quanto habilidade comercial, que diz respeito ao desenvolvimento de expanso dos

    negcios para alm do territrio de produo.

    Como o interesse popular pelos tecidos estampados foi equivalente, em alguns aspectos

    concretos, ao cenrio ingls, as indstrias de l e de seda francesas sentiram-se igualmente

    ameaadas. A partir de 1686, desse modo, a deciso legislativa oscilou entre a proibio e a

    permisso das importaes, da produo local e at mesmo do uso de tecidos estampados.

    23 Jean Baptiste Colbert, que serviu ao estado de 1665 a 1683, foi ministro de finanas francs da corte de Lus XIV.

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    17. Madame Moitessier, por Jean-August Dominique Ingres (1856).

    Nesta obra Ingres apresenta a moda do perodo, atualizando a obra que

    tinha sido iniciada muitos anos antes. O detalhamento do tecido,

    onde a padronagem se acomoda ao panejamento, traduz a importncia

    que a roupa tem para o artista na construo de seu retratado.

    Fonte: National Gallery, Londres.

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    Segundo Reath (1925), uma vez que a Frana est prxima de pases nos quais no

    havia proibio de qualquer espcie fabricao, ao uso ou ao comrcio de tecidos

    estampados, as presses para a nulidade dos embargos, bem como a informao

    sobre a moda, eram bem mais fortes que na Inglaterra. Ao mesmo tempo, verificou-se

    que internamente, dada a existncia dos portos livres, tanto a fabricao clandestina

    quanto o