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Tipos de Individualismo Steven Lukes “Individualismo” é um termo que se refere a uma grande variedade de atitudes, doutrinas e teorias, e esta diversidade de significados aumenta quando se leva em conta as alterações históricas nas conotações da palavra "indivíduo" e seus sinônimos (Mauss, 1937; Ulmann, 1966). A relação entre estes vários significados é, em grande parte, função de uma semelhança familiar, embora "individualismo" tenha sido usualmente compreendido como expressando certo agrupamento de tais significados, que se distinguem uns dos outros ou se supõe que são logica ou conceitualmente relacionados. I. História do termo "individualismo" Os primeiros usos do termo em sua forma francesa, “individualisme”, cresceram no contexto da crítica contra- revolucionária ao Iluminismo. O pensamento conservador no início do século XIX era virtualmente unânime em condenar os apelos à razão, interesses e direitos do indivíduo, compartilhando com o desprezo de Burke pela “reserva privada de razão” do indivíduo e seu medo de que a comunidade pudesse “desintegrar-se, ser desconectada na poeira da individualidade” (Reflections on the Revolution in France, 1790). Estas atitudes eram especialmente marcantes entre os teocratas franceses: no mais antigo uso conhecido da palavra, Joseph de Maistre diz, em 1820, que "esta profunda e assustadora divisão de mentes, esta infinita fragmentação de todas as doutrinas, o protestantismo político, levaram ao mais absoluto individualismo”, passagem encontrada em “Extrait d'une conversation” in Oeuvres complètes” (Lyon [1886], XIV, 286), enquanto Lamennais escreveu que "a mesma doutrina que produz anarquia nas mentes produz ainda uma irremediável anarquia política, e destrói as bases da sociedade humana" e, depois de perguntar: “O que é poder sem obediência? O que é lei sem dever?”, sua resposta foi: individualismo (Des Progrès de la révolution et de la guerre contre l'église [1829], Cap. I). Os Sansimonistas, influenciados pelos teocratas, foram os primeiros a usar o termo sistematicamente Lukes, Steven - Individualism, types of . IN: Dictionary of the History of Ideas. NEW YORK: WILNER, 1973 Tradução de Ana Maria Jacó Vilela. Revisão de Antônio Carlos Cerezzo. Rio de Janeiro:UERJ, 1999. 1

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Tipos de Individualismo Steven Lukes

“Individualismo” é um termo que se refere a uma grande variedade de atitudes, doutrinas e teorias, e esta diversidade de significados aumenta quando se leva em conta as alterações históricas nas conotações da palavra "indivíduo" e seus sinônimos (Mauss, 1937; Ulmann, 1966). A relação entre estes vários significados é, em grande parte, função de uma semelhança familiar, embora "individualismo" tenha sido usualmente compreendido como expressando certo agrupamento de tais significados, que se distinguem uns dos outros ou se supõe que são logica ou conceitualmente relacionados.

I. História do termo "individualismo"

Os primeiros usos do termo em sua forma francesa, “individualisme”, cresceram no contexto da crítica contra-revolucionária ao Iluminismo. O pensamento conservador no início do século XIX era virtualmente unânime em condenar os apelos à razão, interesses e direitos do indivíduo, compartilhando com o desprezo de Burke pela “reserva privada de razão” do indivíduo e seu medo de que a comunidade pudesse “desintegrar-se, ser desconectada na poeira da individualidade” (Reflections on the Revolution in France, 1790). Estas atitudes eram especialmente marcantes entre os teocratas franceses: no mais antigo uso conhecido da palavra, Joseph de Maistre diz, em 1820, que "esta profunda e assustadora divisão de mentes, esta infinita fragmentação de todas as doutrinas, o protestantismo político, levaram ao mais absoluto individualismo”, passagem encontrada em “Extrait d'une conversation” in Oeuvres complètes” (Lyon [1886], XIV, 286), enquanto Lamennais escreveu que "a mesma doutrina que produz anarquia nas mentes produz ainda uma irremediável anarquia política, e destrói as bases da sociedade humana" e, depois de perguntar: “O que é poder sem obediência? O que é lei sem dever?”, sua resposta foi: individualismo (Des Progrès de la révolution et de la guerre contre l'église [1829], Cap. I). Os Sansimonistas, influenciados pelos teocratas, foram os primeiros a usar o termo sistematicamente em meados dos anos vinte do século XIX, referindo-se a um complexo de elementos relacionados que utilizavam para caracterizar a moderna "época crítica" que se origina com a Reforma. Tais elementos eram a estreita e negativa filosofia do século XVIII, que glorifica o interesse próprio e a consciência e direitos do indivíduo; o liberalismo em política; a anarquia e a exploração na esfera econômica; e o egoísmo ilimitado em todos os lugares. Viam os filósofos do século XVIII como “defensores de individualismo”, reavivando o egoísmo de Epicuro e dos estóicos e asseguravam que o resultado político inevitável do individualismo é a "oposição a qualquer tentativa de organização de uma direção centralizada para os interesses morais do gênero humano..." (Doctrine de Saint-Simon: exposition-première année, 1829, 1830, 12ª seção).

Em parte por causa da influência extraordinariamente penetrante das idéias de Saint-Simon, o termo “individualismo” tornou-se amplamente utilizado durante o século XIX. Principalmente no meio francês obteve, e continua tendo, uma avaliação negativa, embora tenha havido uma “Sociedade dos Individualistas” - com vida curta - na França carbonária nos anos vinte do século XIX, e vários pensadores tenham adotado o rótulo de individualista, entre eles Proudhon – embora mesmo Proudhon tenha escrito que "fora do grupo só há abstração e fantasmas" (Lettres sur la philosophie du progrès [1853], Letter I, Part IV). É possível alinhar vários pensadores franceses em uma história das idéias individualistas (Schatz, 1907, mas notar o tom defensivo), contudo poucos deram boas-vindas ao epíteto, e muitos acentuaram a oposição (formulada primeiro pelo teólogo suíço Alexandre Vinet) entre Lukes, Steven - Individualism, types of . IN: Dictionary of the History of Ideas. NEW YORK: WILNER, 1973 Tradução de Ana Maria Jacó Vilela. Revisão de Antônio Carlos Cerezzo. Rio de Janeiro:UERJ, 1999.

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“individualismo”, implicando anarquia e fragmentação social, e “individualidade”, implicando liberdade pessoal e autodesenvolvimento. No pensamento francês, “individualismo” quase sempre apontou para as fontes de dissolução social, embora tenha havido grandes divergências em relação à natureza dessas fontes e da ordem social que elas ameaçam como também das estruturas históricas nas quais são conceitualizadas.

Para alguns, individualismo implica idéias perigosas; para outros, é anarquia social ou econômica, ausência de instituições e normas necessárias; para outros, ainda, é a prevalência de atitudes de interesse próprio entre os indivíduos. Homens do Direito, de De Maistre a Veuillot, de Brunetière a Maurras, viram-no como tudo aquilo que mina uma ordem tradicionalista e hierárquica. Socialistas, inclusive Leroux, Pecqueur, Cabet, Blanc e Blanqui, contrastaram-no com "associação" e “associacionismo”, "filantropia", "altruísmo", "socialismo” e "comunismo”, embora Blanc também tenha acentuado seu aspecto progressista como rejeição à autoridade e como "transição necessária” para uma idade futura de fraternidade, enquanto os seguidores de Fourier negaram qualquer oposição básica entre individualismo e socialismo, e Jaurès tenha entendido o socialismo como conclusão lógica do individualismo. Liberais como Tocqueville condenaram-no como hostil à liberdade. Para Tocqueville, o individualismo era o produto natural da democracia ("Individualismo é de origem democrática e ameaça se desenvolver tão logo as condições são equalizadas"), envolvendo a retirada apática dos indivíduos da vida pública e o isolamento uns dos outros, com um conseqüente enfraquecimento da sociedade e o crescimento desenfreado do poder político do Estado. “Individualismo" ("uma expressão recente que uma idéia nova deu à luz") é "um sentimento deliberado e calmo que predispõe cada cidadão a se isolar da massa de seus companheiros e se colocar à parte com a família e amigos", que "no princípio, solapa só as virtudes da vida pública, mas, com o tempo, (...) ataca e destrói todas as outras e é finalmente absorvido em puro egoísmo" (De la démocratie en Amérique [1835], Livro II, Parte II, Cap. II). Os americanos, Tocqueville pensou, só evitaram esta conseqüência devido às suas instituições livres e à tradição de cidadania ativa: eles conquistaram o individualismo (implicando privacidade e nascimento da igualdade) por meio da liberdade (implicando que liberdade é uma virtude pública, nascida do auto-interesse iluminado (pela razão).

Não menos diversas têm sido as perspectivas históricas dentro das quais os pensadores franceses conceberam o individualismo. É diferentemente atribuído à Reforma, ao Renascimento, ao Iluminismo, à Revolução, ao declínio da aristocracia, da Igreja ou da religião tradicional, à Revolução Industrial ou ao crescimento do capitalismo, mas há ampla concordância em vê-lo como um mal e uma ameaça à ordem social. (A mais recente edição do Dictionnaire de l'Académic Française, 1932-35, define-o simplesmente como "subordinação do interesse geral ao interesse do indivíduo”). Talvez o lugar do individualismo no pensamento francês seja devido parcialmente ao sucesso prático da legislação “individualista" na época da Revolução (Palmer, 1948), ao lado de suas conseqüências sociais, administrativas e políticas. Porém, pode ser também que o curso do pensamento francês, especialmente no século XIX, tenha expressado, através do individualisme, o isolamento social, moral e político de indivíduos desenraizados, centrados em auto-interesses aquisitivos, desinteressados de ideais sociais e impermeáveis ao controle social. Como escreveu Tocqueville: "Nossos pais não tiveram a palavra individualismo que nós cunhamos para nosso próprio uso, porque no tempo deles não havia nenhum indivíduo que não pertencesse realmente a um grupo e que pudesse ser considerado como absolutamente só" (L'ancien régime et la révolution [1856], Livro II, Cap. II).

Bastante distinto do uso francês do termo é outro, cuja referência característica é alemã, a saber, a idéia romântica de individualidade (Individualität), reagindo contra os padrões abstratos e uniformes do Iluminismo e glorificando a singularidade, a originalidade e o autodesenvolvimento individidual. Os próprios românticos não usaram o termo Individualismo, o que só veio a ocorrer na década de 40 do século XIX, quando um liberal

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alemão, Karl Brüggemann, contrastou o significado sansimonista com aquele individualismo “infinito” (unendlichen) e “íntimo” (innigen), caracteristicamente alemão, significando "a autoconfiança infinita no propósito individual para ser pessoalmente livre em moralidade e em verdade" (K. II. Brüggemann, Dr. Lists nationales System der politischen Ökonomie, 1842; ver Koebner, p. 282). A partir daí, o termo se tornou virtualmente sinônimo, principalmente no uso alemão, da concepção romântica inicial de individualidade, como aparece nos escritos de Wilhelm von Humboldt, Schlegel e Schleiermacher. Assim, em 1917, Simmel escreveria:

O novo individualismo poderia ser chamado qualitativo, em contraste com o individualismo quantitativo do século XVIII. Ou poderia ser denominado o individualismo da uniqueness (Einzigkeit) contra o da singleness (Einzelheit). De qualquer modo, o Romantismo foi talvez a via mais ampla pela qual [o individualismo] alcançou a consciência do século XIX. Goethe criou sua base artística e Schleiermacher sua base metafísica: o Romantismo forneceu sua fundação sentimental e experiencial (1950, p.81).

Uma síntese dos significados franceses e alemães do termo pode ser encontrada na obra de Jacob Burckhardt, Die Kultur der Renaissance in Italien (1860), onde "individualismo" combina a noção de agressiva auto-afirmação de indivíduos livres de uma estrutura de autoridade externamente determinada (como aparece em Louis Blanc), com a noção de retirada do indivíduo da sociedade para uma existência privada (como em Tocqueville), com a idéia, mais claramente expressa por Humboldt, do desenvolvimento completo e harmonioso da personalidade individual, visto como representando a humanidade e apontando para seu maior desenvolvimento cultural (Koebner, 1934). O italiano do Renascimento era, para Burckhardt, o primogênito da Europa moderna, em virtude da autonomia de sua moral, de seu cultivo da privacidade e da individualidade de seu caráter.

Foi na América que "individualismo" veio a especificar um conjunto completo de ideais sociais e a adquirir um imenso significado ideológico: expressou os ideais operativos do final do século XIX e do início do XX (e com certeza continua representando o principal papel ideológico), levando adiante um conjunto de reivindicações universais vistas como incompatíveis com as reivindicações paralelas do socialismo e do comunismo do Velho Mundo. Refere-se não às fontes de dissolução social ou à transição penosa para uma futura ordem social harmoniosa, mas à real ou iminente realização do estágio final do progresso humano, uma ordem de iguais direitos individuais, governo limitado, laissez-faire, justiça natural e igualdade de oportunidades, além de liberdade, autodesenvolvimento e dignidade individuais. Naturalmente, as suas interpretações variam amplamente.

Importado com conotações negativas através dos escritos de vários europeus, entre eles os socialistas e o sansimonista Michel Chevalier, o economista Friedrich List, e Tocqueville, “individualismo” adquiriu um significado positivo e expressou uma reinterpretação desenvolvida pela ideologia americana. Em 1839, um artigo no United States Magazine and Democratic Review (VI, 208-09) já descrevia o "curso da civilização" como "o progresso do homem de um estado de individualismo selvagem para este, de um individualismo mais elevado, moralizado, e refinado". Concepções de individualismo desenvolveram-se sob as influências sucessivas do puritanismo da Nova Inglaterra, da tradição jeffersoniana e da filosofia dos direitos naturais; do Unitarismo, do Transcendentalismo, e do Evangelismo; da necessidade de elaborar uma defesa ideológica do sistema social do Norte contra o desafio do Sul; e das idéias imensamente populares de Herbert Spencer (o precursor do "individualismo austero”), junto com o ímpeto continuado de ideologias alternativas oriundas da Europa (Arieli, 1964). Para Emerson, o individualismo, por ele dotado de significado religioso e moral, ainda não havia sido experimentado; era a rota

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Chico Portugal, 20/11/12,
[diferença]
Chico Portugal, 20/11/12,
[solidão, isolamento]
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para a perfeição, uma ordem social espontânea de indivíduos autoconfiantes e independentes. “A União”, escreveu, “deve ser ideal no individualismo verdadeiro" (“New England Reformers”, 1844). Para Walt Whitman, a força progressista da história moderna era o conceito "da singleness do homem, o individualismo" (Democratic Vistas, 1871), embora nas mãos de darwinistas sociais, como William Graham Sumner, o termo tenha adquirido um significado mais desagradável e completamente menos idealista. Finalmente, veio a fundir a doutrina do laissez-faire com uma ideologia empresarial e foi assim usado por Andrew Carnegie e Henry Clews, autores de The Wall Street Point of View (1900), que falam "daquele sistema de Individualismo que guarda, protege e encoraja a competição", cujo espírito era "o Espírito Americano o amor à liberdade, à indústria livre, com oportunidades livres e desimpedidas..." (Individualism versus Socialism [1907], Cap. I). Em 1928, Herbert Hoover pronunciou seu famoso discurso de campanha sobre o "sistema americano de individualismo austero”. Contudo, até mesmo críticos radicais do capitalismo, como os Single Taxers e os Populists, argumentaram em nome do individualismo. Como observou James Bryce, ao longo de sua história "o individualismo, o amor ao empreendimento, o orgulho pela liberdade pessoal, foram considerados pelos americanos não apenas sua escolha, mas sua posse peculiar e exclusiva” (The American Commonwealth [1888], III, Parte V, Cap. XCII).

Na Inglaterra, o termo representou um papel menor. Robert Owen e John Stuart Mill, sob influência francesa, usaram-no pejorativamente, referindo-se aos males da competição capitalista. Como um epíteto favorável para o liberalismo inglês, embora raramente usado pelos economistas do laissez-faire e os benthamistas, veio a ser mais amplamente usado na segunda metade do século XIX. O ministro Unitarista William McCall proferiu o discurso "Princípios do Individualismo"; Spencer adotou o termo, assim como o ultra spenceriano Auberon Herbert, autor de The Voluntaryist Creed (1908) e editor de The free Life (onde descreveu seu credo como sendo "individualismo total” ). T. H. Green usou-o favoravelmente, enquanto Dicey, em um uso influente, comparou-o com o benthamismo e o liberalismo utilitário (ver mais adiante). Segundo Dicey, foi largamente usado para significar a ausência ou a mínima intervenção estatal nas esferas econômicas e outras (em contraste com "coletivismo"), e normalmente está associado, tanto por seus partidários quanto por seus oponentes, com o liberalismo clássico, ou negativo. L. T. Hobhouse mostra este significado claramente quando escreve que o "individualismo, quando luta com os fatos, caminha não distante da linha socialista” (Liberalism, 1911, Cap. IV). Finalmente, "individualismo" foi aplicado às qualidades genuínas de ingleses livres e auto-confiantes, como quando Samuel Smiles escreveu sobre aquele "individualismo enérgico que... constitui a melhor educação prática” (Self-Help, 1859), Cap. I).

Os historiadores e sociólogos vieram a usar o termo em uma variedade de contextos. Alguns, como Ernst Troeltsch, associam-no com o Cristianismo primitivo e a Ética Evangélica; outros, como Burckhardt, com o Renascimento italiano; outros, como Max Weber e R. H. Tawney, com o Protestantismo, especialmente o Calvinismo, e a ascensão do capitalismo (Weber, 1904-05; Tawney, 1926), ou com o crescimento de uma "sociedade de mercado possessiva” na Inglaterra do século XVII (Macpherson, 1962). Outros, como Otto Gierke, associam individualismo com a moderna teoria da Lei Natural, da metade do século XVII ao início do século XIX (Gierke, 1913), e ainda outros, como Simmel e Friedrich Meinecke, com a ascensão do romantismo. Finalmente, quando economistas do tipo doutrinário liberal, como os liberais austríacos Ludwig von Mises e F. A. Hayek, e Milton Friedman, como também ideólogos do laissez-faire, como Ayn Rand, aderem ao "individualismo", neste sentido, o termo indica uma tendência ideológica da direita, de significado comparativamente menor na maioria das sociedades industriais contemporâneas.

II - Idéias componentes do individualismo

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Quase todos estes usos de “individualismo” combinam vários significados diferentes ou unidade de idéias, e é este o valor da tentativa de analisar estes elementos. Nesta tentativa, o objetivo é indicar amplos esboços conceituais, em parte por definição (positivo e negativo) e em parte por alusão histórica, mas sem pretensão de que os itens seguintes sejam mutuamente exclusivos ou totalmente exaustivos.

1. Primeiro, há o princípio moral último do valor supremo e intrínseco do ser humano individual, uma idéia que A. D. Lindsay descreve como "a grande contribuição ao individualismo" do Novo Testamento e de todo o Cristianismo (1930-35, pág. 676), embora também seja encontrado na ética religiosa, senão social, do hinduísmo. Ausente do judaísmo inicial (no qual a preocupação de Deus concernia a Israel, a nação), é prenunciado pelos profetas e claramente exposto nos Evangelhos, em declarações como: "Porquanto fizeram ao menor destes meus irmãos, é a mim que o fizeram" (Mateus 25:40). Em sua forma cristã, centrada em Deus e implicando o valor supremo da alma, esta idéia foi reafirmada no momento da Reforma, com a preocupação de Lutero e Calvino com a salvação do indivíduo, e o princípio sectário que todos os homens são como crianças semelhantes a Deus, cada um com seu propósito único específico. Por outro lado, [esta idéia de valor supremo do indivíduo] perdera sua ênfase com a tese medieval da estrutura corporativa da sociedade (ela mesma embasada em concepções romanas), expressa pelo princípio “Utilitas publica prefertur utilitati privatae (“a utilidade pública é preferível à utilidade privada”). De acordo com esta tese, “o que importa é o bem-estar da sociedade e não o bem-estar das partes individuais que a constituem"; o "indivíduo não existe por sua própria causa, mas por causa da sociedade inteira” (Ullmann [1966], pp. 36, 42).

A idéia do valor supremo do indivíduo foi eloqüentemente expressa de forma diferente pelos humanistas do Renascimento, para quem a dignidade do homem era o tema favorito, principalmente nos escritos de Giannozzo Manetti, Marsilio Ficino e Pico della Mirandola. De fato, esta idéia penetrou na moderna teoria ética e social do Ocidente. Alguns pensadores modernos (excluídos alguns teocratas, românticos tardios, neo-hegelianos, fascistas, e outros da extrema direita) rejeitaram-no explicitamente; entretanto, para dizer o mínimo, o tema tem sido tratado com diferentes graus de seriedade. Alguns estão preparados para rapidamente ignorá-lo, ou para qualificá-lo comparando-o com outros princípios; outros, das seitas iniciais até os anarquistas, derivaram dele conclusões mais imediatas e igualitárias. Além disso, há lugar para disputas infinitas no que concerne às suas implicações práticas.

Está subjacente ao princípio benthamista de que todo homem vale como um homem, nenhum valendo como mais de um, está incrustado na Declaração dos Direitos do Homem, e é central no pensamento de Rousseau, que escreveu: "O homem é um ser muito nobre para simplesmente servir como instrumento para outros... " (Julie, ou La Nouvelle Héloïse [1761], V, Carta 2). Alcançou sua mais comovente e sistemática expressão nos escritos de Kant que afirmou que "o homem e em geral todo ser racional existe como um fim em si mesmo, não somente como um meio..." (Grundlegung zur Metaphysik der Sitten [1785], Cap. II). Kant chamou isto de um "princípio objetivo” do qual "deve ser possível derivar todas as leis para a vontade", e como requerendo o imperativo prático: "Aja de tal modo que sempre trate a humanidade, seja na sua pessoa ou na de outro, nunca simplesmente como um meio, mas sempre, ao mesmo tempo, como um fim" (ibid, trans. H. J. Paton). Em seus escritos pré-críticos, Kant buscou fundamento para isto em um sentimento natural inato, universal, enquanto nos escritos críticos ofereceu uma (fracassada) prova transcendental. Mais recentemente, o filósofo J. McT. E. McTaggart discutiu isto num brilhante artigo intitulado "The Individualism of Value" (em seus Philosophica Studies, 1934), cuja tese é que "somente os seres conscientes e seus estados têm valor" e que, em particular, "o indivíduo é um fim, a sociedade é somente um meio". Em geral, tem o status lógico de um postulado religioso ou

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moral, que é fundamental para transformar um princípio, de justificativa geral, em argumento moral.

2. Distinta desta primeira idéia é uma segunda: a noção de autodesenvolvimento individual. Esta idéia e o fenômeno do autocultivo a que se refere podem ser traçados até o Renascimento italiano (como o fez Burckhardt), mas foi mais completamente trabalhada entre os primeiros românticos. Assim Schleiermacher, em seu Monolog (1800) descreve como

... ficou claro para mim que cada homem deve representar a humanidade em si mesmo e de seu próprio modo, por sua própria combinação especial de elementos, de forma que ela se revele em cada maneira especial, e, na plenitude de espaço e tempo, tornar-se tudo o que pode emergir como algo individual, fora das profundidades de si mesmo.

A mesma idéia é encontrada em Wilhelm von Humboldt, para quem o "verdadeiro fim do homem" é "o maior e mais harmonioso desenvolvimento dos seus poderes no sentido de um todo completo e consistente” cujo “ideal mais alto... da co-existência de seres humanos" consiste em "uma união na qual cada um se esforça para se desenvolver a partir de sua própria natureza íntima, e para seu próprio fim”, concluindo que

...a razão não pode desejar para o homem nenhuma outra condição que aquela em que cada indivíduo não só desfruta a liberdade mais absoluta de se desenvolver por suas próprias energias em sua individualidade perfeita, mas na qual a natureza externa mesma é até deixada de lado por qualquer agência humana, mas só recebe a impressão dada por cada indivíduo, dele e de sua própria vontade livre, de acordo com a medida de seus desejos e instintos, e restrita apenas pelos limites de seus poderes e direitos (Ideen zu einem Versuch, die Gränzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimnen [1852], Cap. II; trans. J. Coulthard).

A história desta idéia é bem conhecida: tão logo desenvolvido numa teoria de comunidade orgânica, o termo Individuelle tem sua referência deslocada de pessoas para forças suprapessoais, e individualidade tornou-se um predicado do Volk ou do Estado. À parte este aspecto, entrou na tradição liberal especialmente através de John Stuart Mill em “On Liberty” (1859, Cap.III: Of Individuality...), e também como um elemento crucial no fundamento ético do pensamento de Marx, como em Die deutsche Ideologie (1845-46, Parte I, Seção C, onde Marx descreve o indivíduo sob o comunismo "cultivando seus dons em todos os sentidos"), enquanto permaneceu atraente para artistas de todos os tipos, desde Byron e Goethe. Em geral, especifica um ideal para a vida dos indivíduos - um ideal tanto anti-social (como em alguns dos primeiros românticos), extra-social (como em Mill), ou altamente social (como em Marx, ou Kropotkin, ou os idealistas ingleses).

3. O terceiro elemento do individualismo poderia ser chamado de idéia de autodireção, ou autonomia, de acordo com a qual os indivíduos submetem as normas com as quais são confrontados a uma avaliação crítica e tomam decisões práticas como resultado de reflexão independente e racional.

Poder-se-ia argumentar que esta idéia foi claramente expressa primeiro (desde Aristóteles) por São Tomás de Aquino. De acordo com a doutrina medieval tradicional, a ordem de um superior, justa ou injusta, deve ser obedecida; para São Tomás, isto não é

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necessário, se a consciência proíbe sua execução. Seu argumento era que "todos são obrigados a examinar suas próprias ações à luz do conhecimento recebido de Deus" (Quaestiones disputatae de Veritate, qu. 17, art. 4). Como Ullmann comentou: "O princípio geral que defendeu era que 'todo homem tem que agir em consonância com a razão'... um princípio que persuasivamente demonstra o avanço na ética individual e um princípio com o qual se começa a afirmar a autonomia do indivíduo na esfera moral” (1966, pág. 127).

Na esfera religiosa, esta autonomia é claramente evidente no argumento de Lutero: "... cada um e todos nós somos padres porque todos temos uma fé, um único evangelho, um e o mesmo sacramento; por que então não deveríamos ser titulados para provar ou testar, e julgar o que é certo ou errado na fé "? (An den Christlichen Adel deutscher Nation von des christlichen Standes Besserung [1520] I. ii)], e nos ensinamentos de Calvino (pelo menos com respeito à igreja romana), onde "nossas consciências têm a ver não com homens, mas somente com Deus" (Institutio religiones Christianae [1536], IV, X, 5). Na esfera social, e especialmente na política, era um dos valores cardeais do Iluminismo e o alvo principal dos críticos posteriores, que ficaram horrorizados com esta exaltação do julgamento privado do indivíduo: daí vem o “protestantismo político” de Maistre.

As exposições mais sistemáticas da idéia de autonomia estão na Ética de Spinoza (1677) e, acima de tudo, em Kant. O terceiro princípio prático de Kant para a vontade era "... a Idéia da vontade de todo ser racional como sendo uma vontade que faz a lei universal" de acordo com a qual "todas as máximas são repudiadas se não estão de acordo com a própria promulgação da lei universal. A vontade não está então somente sujeita à lei, mas é como sujeito que deve ser considerada como também fazendo a lei para si mesma e, justamente por isso, como primeiro de todo tema da lei (da qual pode se ver como o autor)" (Grundlegung..., Cap. II; trans. H. J. Paton). Kant argumentou que, "para a Idéia de liberdade há, inseparavelmente ligado, o conceito de autonomia, e, por sua vez, o princípio universal de moralidade”, e que "... quando pensamos em nós mesmos como livres, nós nos transferimos ao mundo inteligível como membros e reconhecemos a autonomia da vontade junto com sua conseqüência a moralidade " (ibid).

Em si mesma, esta idéia é neutra com respeito ao problema da relatividade de valores (e para Kant era evidentemente compatível com a certeza moral objetiva; mas veja abaixo: II, 10) embora freqüentemente considerada incompatível com a maioria das versões de determinismo. Como Kant colocou, "... ser independente da determinação de causas no mundo sensível (e isto é o que a razão sempre atribui a si) é ser livre” (ibid). Isto pode ter o status lógico tanto de uma proposição universal (a priori ou empírica) relativa às condições da ação humana (ou moral) quanto de um princípio moral de primeira ordem, ou de um tipo ideal sociológico, como em “The Lonely Crowd” (1950) de David Rieman.

4. A quarta idéia-unidade é a noção de privacidade, de uma existência privada no mundo público, uma área na qual o indivíduo é livre de interferências e capaz de fazer e pensar qualquer coisa que escolha. Esta é uma idéia essencialmente moderna, completamente ausente de civilizações antigas e da Europa medieval. Constitui talvez a idéia central do liberalismo, cuja história foi em grande parte uma argumentação sobre onde se encontram os limites, de acordo com que princípios serão justificados, de onde deriva a interferência, e como isto será verificado. Pressupõe uma imagem de homem para quem a privacidade é essencial, até mesmo sagrada, para uma vida própria ser vivida. Sir Isaiah Berlin caracterizou esta idéia como “liberdade negativa”, envolvendo uma “sensação de privacidade,... da área de relações pessoais como algo sagrado por seu próprio direito...”, assim afirmando:

Isto é a liberdade tal como foi concebida por liberais no mundo moderno, dos dias de Erasmo (alguns diriam, de Occam) aos nossos. Todo argumento em prol

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de liberdades civis, todo protesto contra exploração e humilhação, contra o abuso da autoridade pública, ou a hipnose das massas pelos costumes ou propaganda organizada, emerge desta individualista, e muito controvertida, concepção de homem (1958, pp. 14, 12).

Já encontramos esta idéia em Tocqueville que, embora alarmado pelas conseqüências sociais e políticas do retraimento excessivo na privacidade sob a democracia, sustentou, entretanto, esta “liberdade negativa” como um valor preeminente. Isto é encontrado (com concepções diferentes sobre a área privada de não interferência) em Locke, Paine, Burke, Jefferson, e Acton. É encontrado principalmente nos escritos de John Stuart Mill e de Benjamim Constant que contêm as justificativas liberais clássicas para preservar a liberdade privada. Para Mill, a “única parte da conduta de alguém acessível à sociedade é a que concerne aos outros. Na parte que somente concerne a ele, sua independência é, por direito, absoluta. Sobre si, sobre seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano” (On Liberty, Cap. I). Para Constant,

... tudo que não interfere com a ordem; tudo que só pertence à natureza interior do homem, como a opinião, tudo que, na expressão da opinião, não prejudica outros... tudo que, com respeito à indústria, permite o livre exercício da competição - é individual e não pode ser sujeitado legitimamente ao poder de sociedade (Mélanges de littérature et de politique [1829], Preface).

Constant mais adiante comenta sobre o caráter essencialmente moderno desta noção de liberdade como "o pacífico prazer da independência pessoal”: os antigos, “para preservar sua importância política e sua parte na administração do Estado, estavam prontos a renunciar à sua independência privada”, enquanto que "quase todos os prazeres dos modernos encontram-se em suas vidas privadas: a imensa maioria, sempre excluída do poder, necessariamente tem somente um interesse passageiro em suas vidas públicas” (De l'esprit de conquête [1814], Parte II, Cap. VI).

Esta idéia contrasta não só com vários tipos de autoritarismo, mas também com aquela tradição poderosa do pensamento (que podemos retornar de Elton Mayo até Rousseau) que salienta “comunidade” e “grupismo”, como concentrando esforços para curar doenças psicológicas e sociais, ou alcançar propósitos políticos e sociais por ação destes grupos, sejam grupos primários, grupos de trabalho, associações profissionais, classes, partidos, ordens religiosas, corporações, cidade-estados, ou nações. É esta tradição que David Riesman ataca em seu ensaio “Individualismo Reconsiderado" no qual conclui que, "celebrar aquela conformidade com a sociedade não somente como uma necessidade mas também como um dever, [é] destruir aquela margem de liberdade que dá à vida seu sabor e sua possibilidade infinita de progresso" (Individualism Reconsidered [1954], Cap. 2).

Talvez a mais notável expressão contemporânea de “grupismo” e, certamente, a mais influente, esteja no pensamento de Mao Tse-Tung. De acordo com Mao, o liberalismo "é extremamente prejudicial em um coletivo revolucionário... um corrosivo que destrói pouco a pouco a unidade, mina a coesão, causa apatia e cria dissensão"; "origina-se do egoísmo pequeno-burguês, coloca em primeiro lugar os interesses pessoais, e os interesses da revolução como secundários..." Um comunista deveria “estar mais interessado no Partido e nas massas que em qualquer pessoa privada, e mais interessado nos outros que em si mesmo” (Combat Liberalism, September 7, 1937).

Em geral, a idéia de privacidade se refere a uma relação entre o indivíduo, por um lado, e a sociedade ou o Estado, por outro - uma relação caracteristicamente assegurada pelos

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liberais como desejável, ou como valor final, ou (como em Mill) como meio para a realização de outros valores. 5. A quinta idéia-unidade de individualismo, a noção de indivíduo abstrato, precisa ser especificada cuidadosamente, porque tem sido freqüentemente mal interpretada, especialmente por seus oponentes do século XIX. Implica uma concepção de sociedade de acordo com a qual arranjos sociais reais ou possíveis são vistos como respondendo às exigências de indivíduos com determinadas capacidades, desejos e necessidades. As regras da sociedade e instituições são, nesta visão, consideradas coletivamente como um artifício, um instrumento modificável, meios de cumprir determinados objetivos individuais; os meios e os fins são distintos. O ponto crucial desta concepção é que as características relevantes dos indivíduos determinam os fins que os arranjos sociais garantem (de fato ou idealmente) cumprir; sejam estas características chamadas instintos, faculdades, necessidades, desejos, ou direitos, são assumidas como dadas, independentemente de qualquer contexto social.

Morris Ginsberg denomina esta visão “individualismo sociológico” e a define como "a teoria em que a sociedade é concebida como um agregado de indivíduos cujas relações uns com os outros são puramente externas" (1956, pág. 151). É o que Gierke quis dizer quando observou que “o fio condutor de toda especulação na área da lei natural foi sempre, do princípio ao fim, o individualismo - um individualismo levado continuamente às suas conclusões lógicas”, de forma que, para os teóricos modernos da lei natural, de Hobbes a Kant, "uma soberania prévia do indivíduo foi a última e única fonte da autoridade de grupo" e "a comunidade era só um agregado - uma mera união, restrita ou não - das vontades e poderes de pessoas individuais”; todos eles concordaram que "todas as formas de vida comum eram criação de indivíduos" e "só poderiam ser consideradas como meios para objetivos individuais” (1934, pp. 96, 106, 111).

Gierke estava certo ao localizar o predomínio desta idéia entre meados do século XVII e início do século XIX. Estava, obviamente, intimamente relacionada à argumentação nos moldes do “contrato social” e, em geral, a argumentos relativos à sociedade baseados na concepção de homem no estado de natureza, embora esta noção abstrata de homem também possa ser vista de forma diferente nos primeiros utilitaristas e nos economistas clássicos. Desnecessário dizer, os “indivíduos” envolvidos aqui (pré-social, trans-social ou não-social) – homens naturais, utilitários ou econômicos – sempre se mostram como sendo sociais e, ainda, historicamente específicas (por exemplo, Macpherson, 1962). “A natureza humana” pertence sempre, em realidade, a um tipo particular de homem social.

Para Hobbes, o individualista abstrato arquetípico, o Leviatã era um dispositivo artificial construído para satisfazer as exigências dos elementos componentes da sociedade – “como se os homens houvessem germinado da terra agora, e de repente, como cogumelos, atinjam a maturidade completa, sem compromisso uns com os outros” (De cive [1642], VIII, 1). Locke discutiu de forma semelhante, como o fizeram muitos pensadores do século XVIII, especialmente na França e Alemanha. Até mesmo Rousseau, desde que usou a idéia de contrato social, brincou com esta concepção, embora a propulsão central de seu pensamento fosse incompatível com isto. Talvez a expressão mais explícita (e mais característica do século XVIII) apareça em um artigo de Turgot, na Encyclopèdie (1752-72) de Diderot: “Os cidadãos têm direitos, direitos que são sagrados para todo o corpo da sociedade; eles constituem os elementos necessários da sociedade; só a consideram para se colocar, com todos os seus direitos, sob a proteção dessas mesmas leis para as quais sacrificam sua liberdade” (artigo em “Fondation (Politique et Droit Naturel)”, Vol. VII).

A idéia de indivíduo abstrato constitui o objetivo principal de muitos pensadores do século XIX, muitos dos quais asseguraram ser ela um dogma tipicamente estreito e superficial do Iluminismo. Foi atacada por contra-revolucionários e conservadores românticos na França, Inglaterra e Alemanha, por Hegel e Marx e seus respectivos seguidores, por Saint-Simon e seus discípulos, por Comte e os positivistas, por sociólogos, especialmente na França, por

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historiadores alemães, e por idealistas ingleses. É o que Bonald tinha em mente quando escreveu: “Não só o homem não constitui a sociedade, como é a sociedade que constitui o homem, quer dizer, o forma através da educação social...” (Théorie du pouvoir [1796], Preface); e é isso que F. H. Bradley pensava quando escreveu que “o indivíduo, fora da comunidade, é uma abstração”. O homem, para Bradley, “ é um ser social; ele só é real porque é social...” e se nós abstraímos dele todas as características que são resultado de seu contexto social, ele se torna “uma tentativa teórica de isolar o que não pode ser isolado” (Ethical Studies [1876], essay V, “My Station and its Duties”).

6. Distinta desta idéia (embora, em certas interpretações, seja uma aplicação dela) é uma doutrina que veio a ser conhecida como individualismo metodológico. Ela afirma que todas as tentativas para explicar o fenômeno social devem ser rejeitadas (ou, de acordo com uma versão corrente, mais sofisticada, rejeitadas como explicações de “baixo nível”) a menos que sejam totalmente expressas em termos de fatos sobre indivíduos. Assim, de acordo com seu principal expoente contemporâneo, Sir Karl Popper: “... todo fenômeno social, e especialmente o funcionamento de todas as instituições sociais, deveria sempre ser compreendido como sendo o resultado das decisões, ações, atitudes, etc., de indivíduos humanos, e... nunca deveríamos ficar satisfeitos com explicações em termos dos assim chamados ‘coletivos’...” (The Open Society and its Enemies [1945], Vol II, Cap. XIV).

Esta idéia foi articulada claramente primeiro por Hobbes, para quem “tudo é melhor compreendido por suas causas constitutivas” (De cive, Preface), as causas do composto social sendo os homens hobbesianos. Foi abraçada pelos pensadores do Iluminismo, dentre os quais, com algumas exceções importantes (como Vico e Montesquieu), um modo individualista de explicação tornou-se preeminente, embora com grandes divergências sobre o que e quanto deve ser incluído na caracterização dos elementos explicativos. O homem foi visto por alguns como egoísta, por outros como cooperativo; alguns supuseram um mínimo de condições sociais, outros (como Diderot) empregaram uma genuína psicologia social. Como vimos, muitos argumentaram como se os “indivíduos” em questão fossem “anteriores” à sociedade, quer dizer, não determinados por características do contexto social.

O individualismo metodológico foi confrontado, ao longo do século XIX, por um grande número de pensadores que trouxeram, para a compreensão da vida social, uma perspectiva que outorgou ao fenômeno coletivo prioridade em relação aos indivíduos. Na Alemanha esta era uma tendência influente, envolvendo todas as ciências sociais, como história, economia, direito, psicologia e filologia (de, digamos, Adam Muller em diante). Na França, esta tradição passou de Saint-Simon e Comte, através de Alfred Espinas, para Émile Durkheim, cuja sociologia inteira foi fundada na negação do individualismo metodológico. Os marxistas e hegelianos igualmente fizeram tal negação, da mesma forma que a corrente principal da sociologia americana moderna. Porém, muitos continuaram apoiando esta idéia. Os utilitaristas estavam com John Stuart Mill, afirmando que as “leis do fenômeno da sociedade são resultado, e só podem ser, das ações e paixões de seres humanos”, isto é, “das leis da natureza humana individual” (A System of Logic [1843], Livro VI, Cap. VII, 1). Semelhantemente, muitos cientistas sociais foram individualistas metodológicos, entre os quais obviamente daqueles que apelaram para elementos psicológicos fixos como fatores explicativos últimos – como Pareto (“resíduos”), McDougall (“instintos”), Sumner (“motivos”), e Malinowski (“necessidade”).

O debate acerca do individualismo metodológico repetiu-se sob diferentes disfarces – na disputa entre a escola “histórica” alemã em economia e a teoria “abstrata” de economia clássica e neo-clássica (especialmente como exposta por Carl Menger e a Escola austríaca), em disputas infindáveis entre filósofos da história e entre os sociólogos e psicólogos, e, acima de tudo, na prolongada controvérsia entre Durkheim e Gabriel Tarde (na qual a maioria dos

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problemas foi mais claramente apresentada). Entre outros, Georg Simmel e Charles Horton Cooley tentaram solucionar a questão, como o fizeram Georges Gurvitch e Morris Ginsberg (Ginsberg, 1954), mas ela constantemente reaparece, por exemplo, em reações à macro teorização de Talcott Parsons e seus seguidores, e no debate provocado pelas polêmicas metodológicas de Popper e Hayek em nome do individualismo metodológico.

Sinteticamente, pode-se dizer que o individualismo metodológico adquire uma amplitude de significados diferentes conforme a quantidade de “sociedade” que é construída nos “indivíduos” explicativos. Num extremo estão os pensadores como La Mettrie e H. J. Eysenk, que buscam uma explicação final fisiológica, até mesmo física, do fenômeno social; há outros, como Pareto e Freud, que em última instância se utilizam de variáveis psicológicas, mas sem referência social; em seguida, há aqueles, de Tarde a George Homans, que buscam explicações em termos de formas gerais e “elementares” de comportamento social, mas com uma referência social mínima; e finalmente, há os que apelam para indivíduos concretos, não abstratos, que incorporam todas as características pertinentes do contexto social. (Para elaboração adicional e discussão do tema, ver Lukes, 1968).

7. Em seguida, há um conjunto de idéias familiares que coletivamente podem ser denominadas individualismo político, que pode ser definido genericamente como uma doutrina prescritiva que encontra a fonte e o terreno da autoridade política em propósitos individuais e os limites para tal autoridade no mínimo requerido para alcançar esses propósitos. Um pouco artificialmente, pode-se dizer que as diferentes variedades de individualismo político surgiram de diferentes pressupostos sobre como os propósitos individuais pertinentes são identificados e sobre a quantidade de autoridade necessária para alcançá-los. (Assim como o individualismo metodológico, o individualismo político, abstraído de um contexto social, se torna uma aplicação da idéia do indivíduo abstrato).

Hobbes é novamente de importância histórica central aqui. Para ele, a autoridade política derivou de propósitos humanos, não de lei divina ou natural (no sentido antigo e medieval), ou de tradição imemorial; conforme escreveu: “As pessoas regem em todos os governos. Até mesmo em monarquias as pessoas comandam” (De cive, XII, 8). Como Hegel justamente observou, Hobbes, diferentemente de seus predecessores, “buscava derivar o laço que une o Estado, que dá ao Estado seu poder, de princípios que repousam em nós, que reconhecemos como nossos” (Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, 2ª ed. [1840]. Vol III, Parte III, Seção ii, Cap. I, B [3]). Locke desenvolveu esta idéia, mas sem dar-lhe significado operacional; foi Rousseau que a levou à sua conclusão lógica, com a visão que “as convenções formam a base de toda a autoridade legítima entre homens”, sendo o Soberano “totalmente formado pelos indivíduos que o compõem” (Contrat social [1762], Book I, Cap. IV, VII). O individualismo político se tornou um lugar comum no século XVIII, com sua predileção por contrato e consentimento. O artigo de Diderot sobre “Autorité” na Encyclopédie expõe esta visão muito claramente:

O príncipe deriva de seus súditos a autoridade que tem sobre eles; e esta autoridade está limitada pelas leis da natureza e do estado. As leis da natureza e do estado são as condições sob as quais eles se submetem - ou se supõe que se submetam - à regra dele. Uma destas condições é que, não tendo nenhum poder ou autoridade sobre eles exceto por escolha e consentimento deles, ele nunca pode usar esta autoridade para quebrar o ato ou contrato pelos quais foi conferido a ele... (Vol. I).

Verifica-se que, como dissemos, as fronteiras do individualismo político são em princípio amplas, abarcando teóricos da soberania popular em um extremo e indo até o outro,

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daqueles “democratas totalitários” que reivindicaram conhecer os “reais” propósitos dos homens e os usaram como uma justificativa para a tirania. Na prática, o termo foi normalmente restrito àquele tipo de liberalismo político que objetiva confinar as funções e a autoridade do Estado dentro de limites fixos. Aqui, o que conta como “propósitos individuais” equivale freqüentemente às reivindicações (principalmente econômicas) dos indivíduos de classes particulares. É neste sentido que Dicey caracterizou a legislação do utilitarismo como “individualismo sistematizado”, observando que “o Benthamismo não significou nada mais que a tentativa de levar a cabo, por meio de legislação efetiva, os ideais políticos e sociais fixados antes dele por todo comerciante, negociante ou artesão inteligente” (Lectures on the Relation Between Law and Publica Opinion in England during the nineteenth century [1905], Lecture VI, Part [B]). Como o trabalho de Macpherson sugere (Macpherson, 1962), dentro de certos limites o individualismo político é a teoria política requerida pela oitava idéia, a ser considerada a seguir.

8. Esta é o individualismo econômico. Em sua forma mais simples, é uma crença na liberdade econômica; eqüivale à justificativa de certos padrões culturais específicos de comportamento e uma conseqüente conclusão contra a regulamentação econômica, seja pela Igreja ou pelo Estado. Já desde Weber e Sombart, historiadores econômicos e outros discutiram a respeito de quando e como estes padrões de comportamento emergiram no Ocidente e, em particular, sobre sua relação com as várias formas de Protestantismo, que freqüentemente lhe ofereceu uma justificativa inicial (Weber, 1904-05; Tawney, 1926; Robertson, 1933). Porém, somente após meados do século XVIII esta justificativa pôde fazer uso de uma teoria econômica coerente, com o trabalho de Adam Smith na Inglaterra e do marquês d’Argenson, dos fisiocratas e de Turgot na França. Daí em diante, o individualismo econômico se tornou tanto uma teoria econômica quanto uma doutrina normativa, afirmando (caso uma tradição ou conjunto de tradições possam ser reduzidos a uma fórmula) que um sistema econômico espontâneo baseado na propriedade privada, no mercado e na liberdade de produção, no contrato e na troca, e no auto-interesse de indivíduos livres, tende a estar mais ou menos auto-regulado e que isto conduz à máxima satisfação dos indivíduos e ao progresso.

Os economistas liberais do século XIX levaram a teoria e a doutrina mais adiante. A história subseqüente da análise econômica não marxista pode ser vista como uma elaboração sempre mais sofisticada do modelo desse sistema, estando retirados todos os fatores políticos e sociais. Léon Walras e Alfred Marshall providenciaram as versões mais completas deste modelo no século XIX, mas, depois disso, alguns embora não todos economistas buscaram distinguir a teoria da doutrina, não necessariamente desejando fazer a realidade conformar-se ao modelo. Apenas aqueles que o fizeram são tidos como partidários de individualismo econômico, que é essencialmente a visão de que a liberdade econômica universal é eficiente e desejável. Sua rejeição é, talvez uma definição negativa genérica de “socialismo” - um termo cunhado na década de vinte do século XIX em oposição explícita a essas suposições (Swart [1962], pág. 81).

A defesa contemporânea mais sistematizada e bem definida do individualismo econômico é a de F. A. Hayek, que o vê como uma forma de preservar aquelas “formações espontâneas que são as bases indispensáveis de uma civilização livre”, em particular um “mercado efetivamente competitivo” [1949, pp. 25, 21], passando para uma pesquisa um pouco tendenciosa da ascendência intelectual desta posição).

Ao longo de sua história houve discordâncias sobre os melhores meios políticos para alcançar este resultado: num extremo há a doutrina do laissez-faire (de Frédéric Bastiat a Ludwig von Mises) e, em outro, várias formas de intervencionismo seletivo (do próprio Adam Smith a J. M. Keynes).

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9. Há ainda o individualismo religioso, estreitamente relacionado conceitualmente às noções de autonomia e de privacidade (veja acima: II, secs. 3 e 4). Pode ser definido como a visão de que o crente individual não precisa de intermediários, que ele tem o direito, e às vezes o dever, de se relacionar com Deus de sua própria maneira e por seu próprio esforço. É, assim, tanto uma doutrina religiosa quanto, por implicação, uma visão da natureza de religião, e aponta para duas outras idéias importantes: igualdade espiritual e auto-escrutínio religioso. A primeira foi acentuada nos primórdios da Igreja e a segunda encontra sua expressão suprema no pensamento de Santo Agostinho. Na verdade, o individualismo religioso poderia ser localizado bem mais atrás, pelo menos em Jeremias, mas suas formas modernas datam caracteristicamente da Reforma, quando foi expresso em termos da doutrina da “luz interna” e do sacerdócio universal dos crentes.

Evidentemente isto abarca um amplo campo, das formas mais comunais de Protestantismo aos cultos privados de misticismo, mas usualmente está associado ao Calvinismo. Aqui o auto-escrutínio espiritual e a “internalização da consciência” foram levados ao extremo. Como Max Weber escreveu: “Apesar da necessidade de associação na verdadeira Igreja para a salvação, a relação do calvinista com seu Deus ocorria num isolamento espiritual profundo” (Weber, 1904-05 [1930], pp. 106-107; ver Watt, 1957 para um exame das conseqüências literárias da tendência introspectiva do Puritanismo). Weber salientou a conexão entre a doutrina da predestinação e “um sentimento de solidão sem precedentes do indivíduo isolado”, dada “a eliminação completa da salvação através da Igreja e dos sacramentos (que estava no luteranismo mas não foi desenvolvida até sua conclusão final)...”:

No que era para o homem da época da Reforma a coisa mais importante de sua vida, sua salvação eterna, ele foi forçado a seguir seu caminho sozinho, para encontrar um destino que tinha sido decretado para ele desde a eternidade (ibid., pp. 104-05).

Este “isolamento interno do indivíduo”, Weber discutiu, “forma uma das raízes do individualismo desiludido e pessimista, que pode ser identificado hoje até mesmo no caráter nacional e nas instituições dos povos com um passado puritano...” (ibid., pág. 105).

10. As últimas duas idéias a serem analisadas são teorias filosóficas (moral e epistemológica) cujas relações conceituais e históricas com as idéias discutidas acima são complexas e merecedoras de exploração. A primeira delas, que pode ser chamada de individualismo ético, é uma visão da natureza da moralidade. De acordo com esta visão, a fonte de valores morais e de princípios, o criador de todo critério de avaliação moral, é o indivíduo: ele se torna o árbitro supremo dos valores morais (e, por implicação, de outros), a autoridade moral final no sentido mais fundamental. De certo modo, esta visão pode ser vista como a conseqüência filosófica de levar a idéia de autonomia até sua conclusão lógica extrema. Além disso, está intimamente vinculada à dissociação lógica de fato e valor (e só pode ser expressa dentro de um vocabulário que incorpora esta disjunção). Esta idéia pode ser vista como latente no pensamento de Kant e de Hume, mas ambos evitaram suas implicações, o primeiro postulando uma lei moral impessoal, o segundo apelando à uniformidade moral de gênero humano.

Os dilemas do individualismo ético só se tornaram acentuados neste século, embora fossem claramente revelados no pensamento de Nietzsche e de Weber; este argumentou que, quando enfrenta posições morais e contraditórias, “o indivíduo tem que decidir o que é Deus para ele e o que é o diabo” (“Wissenschaft als Beruf”, 1919). Muitos tipos de existencialismo,

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emotivismo e prescritivismo todos os três negando princípios de uma moral universal objetiva são formas de individualismo ético. Suas expressões contemporâneas mais coerentes estão nos escritos iniciais de Jean-Paul Sartre, por exemplo, L’existentialism est un humanisme (1948), e no trabalho do filósofo contemporâneo de Oxford, R. M. Lebre, e. g., The Language of Morals (1951).

11. Finalmente, há o individualismo epistemológico, uma teoria sobre a natureza do conhecimento que afirma que a fonte deste se encontra no indivíduo. Deixando de lado certas variedades de solipsismo e pragmatismo, o verdadeiro individualista epistemológico é o empirista (embora se possa dizer que a metafísica de Leibniz implica uma epistemologia individualista). Empiristas tradicionais afirmam que não conhecemos nada além de nossa própria experiência, puramente subjetiva, fechada no círculo da mente e das sensações que recebe, sejam as idéias de Locke, as impressões e idéias de Hume, ou o “sensa” e dados da sensação de teóricos mais recentes. Freqüentemente esta visão defende um atomismo psicológico, o problema sendo reconstruir o conhecimento a partir de seus elementos mais simples; como Hume disse: “Idéias complexas podem, talvez, ser bem conhecidas por... uma enumeração dessas partes ou das idéias simples que as compõem”, elas sendo cópias de “impressões ou sentimentos originais” (Enquiry Concerning Human Understanding [1748], VII, Seção I). Os discípulos franceses de Locke e Hume no século XVIII levaram este sensacionismo muito seriamente. Em geral, esta idéia está intimamente relacionada à tentativa de explicar tudo, incluindo estruturas sociais e políticas, decompondo-as em seus elementos mais simples (veja acima: II, Seção 6).

O empirismo individualista experimentou uma retomada no século XX, menos na forma de uma doutrina psicológica que de uma lógica, uma teoria sobre o significado e a compreensão. A objeção crucial a isto, e ao individualismo epistemológico em geral, apresenta-se sob duas formas relacionadas: primeiro, um apelo a um mundo público compartilhado e, segundo, o compartilhar de uma linguagem “intersubjetiva” como precondições do conhecimento. A última objeção se tornou um lugar comum na teoria sociológica e antropológica (recebendo uma afirmação clássica nos estudos de Durkheim sobre o pensamento primitivo e a religião) e na filosofia contemporânea pós Wittgenstein. Geralmente, o individualismo epistemológico deve ser contrastado com todas aquelas teorias que asseguram que o conhecimento é, ao menos em parte, o produto do que Wittgenstein chamou “formas de vida” e é testado como genuíno através da referência ao mundo público.

GLOSSÁRIO

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SAINT-SIMON (sansimonistas)Industrial = produtor, indicativo de sociedade nova Socialismo planificado e tecnocrático, Estado organizado reacionalmente por cientistas e

industriais Meritocracia, emancipação feminina, abolição do direito de herança; Propriedade privada

implicando organização anárquica da produção e exploração do homem pelo homem A cada um segundo suas necessidades, de cada um segundo suas capacidades

TEOCRATAS - Oposição à Revolução e à razão filosófica, contrapondo-lhe a fé e o senso comum, alimentados numa única fonte: a Igreja Católica (de Maistre)UTILITARISMO (Bentham) - felicidade está no afastamento da dor e no encontro do prazer, somente que

não em função da satisfação individual, mas da felicidade de todos O bem se identifica com o útil; a utilidade é o princípio de todos os valores, tanto no

conhecimento quanto na açãoFISIOCRATAS Quesnay - século XVIII, ordem natural Doutrina do produto líquido: dinheiro é apenas intermediário, riqueza decorre de um

produto líquido consumível, o que só existe na agricultura. Contra o mercantilismo

CARBONÁRIOS - sociedade secreta derivada da franco maçonaria e criada para lutar contra o domínio de Napoleão no reino de Nápoles. Depois de 1818, é difundida na França e conquista os bonapartistas liberais. Muitos complôs, fracassadosPROUDHON A propriedade é um roubo “Filosofia da Miséria” (1846) ocasiona o afastamento de Marx, que responde com “A

miséria da filosofia” (1848) Após o fracasso da revolução de 1848, passa a defender somente o mutualismo e a

organização de crédito gratuito como resposta aos problemas da miséria social Influente na classe operária pelo crédito gratuito = supressão dos juros sobre o crédito

levariam à supressão das classes; Individualismo solidário

UNITARISMO - em religião, doutrina de grupos dissidentes da Reforma que negavam o dogma da Trindade por interpretá-lo como abandono do monoteísmo

TRANSCENDENTALISMO - escola filosófica norte-americana representada por Emerson e caracterizada por misticismo panteísta

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