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Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 21768765 Vol. 1 (2009) AUGUSTINE. Augustine: Political Writings. ATKINS, E. M.; DODARO, R. J. (org.), Cambridge: Cambridge University Press, “Cambridge Texts in the History of Political Thought”, 2001, li+299 p. Luiz Marcos da Silva Filho* ___________________________________________ Augustine: Political Writings, livro da coleção Cambridge Texts in the History of Political Thought, organizada por Geuss e Skinner, constitui-se de trinta e cinco epístolas e sermões de Agostinho selecionados por Atkins e Dodaro. Inevitavelmente, a seleção guarda certa arbitrariedade, mas que sinaliza diligência na escolha de algumas obras entre centenas de missivas e prédicas. Além disso, os próprios editores observam na introdução – didática, instrutiva e cônscia de problemas que permeiam o agostinianismo e agostinismo políticos – que Agostinho não pretendeu desenvolver uma “teoria política sistemática”, e nem é possível considerar seus textos apenas “escritos políticos”. Metafísica, ontologia, lógica, ética, retórica, exegese bíblica atravessam talvez todas as obras de Agostinho, e se aceitarmos, com Gilson, que nelas há certo “cristocentrismo”, então poderíamos falar de “escritos teológico-políticos” em relação ao livro examinado. As obras selecionadas, de toda forma, possuem teor político e são devidamente dispostas pelos editores em temas que estruturam o sumário: “Cristianismo e Cidadania”, “Bispos e Autoridades Civis”, “Autoridades Judiciais”, “A Controvérsia Donatista”, “Guerra e Paz”. Conforme padrão das edições dos Cambridge Texts in the History of Political Thought, o leitor encontra aporte em inúmeras seções do livro. Além da esclarecedora “Introdução”, as “Notas do tradutor” anunciam desde o início zelosa tradução das obras agostinianas na medida em que explicam os significados e opções em língua * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

Luiz Marcos da Silva Filho* · teoria política, mas flagra propriamente política imperial e religiosa, desdobramentos práticos do que se divisa em teoria n’A cidade de Deus

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  • Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    AUGUSTINE. Augustine: Political Writings. ATKINS, E. M.; DODARO, R. J.

    (org.), Cambridge: Cambridge University Press, “Cambridge Texts

    in the History of Political Thought”, 2001, li+299 p.

    Luiz Marcos da Silva Filho* ___________________________________________

    Augustine: Political Writings, livro da coleção Cambridge Texts in the History of

    Political Thought, organizada por Geuss e Skinner, constitui-se de trinta e cinco

    epístolas e sermões de Agostinho selecionados por Atkins e Dodaro.

    Inevitavelmente, a seleção guarda certa arbitrariedade, mas que sinaliza diligência

    na escolha de algumas obras entre centenas de missivas e prédicas. Além disso,

    os próprios editores observam na introdução – didática, instrutiva e cônscia de

    problemas que permeiam o agostinianismo e agostinismo políticos – que

    Agostinho não pretendeu desenvolver uma “teoria política sistemática”, e nem é

    possível considerar seus textos apenas “escritos políticos”. Metafísica, ontologia,

    lógica, ética, retórica, exegese bíblica atravessam talvez todas as obras de

    Agostinho, e se aceitarmos, com Gilson, que nelas há certo “cristocentrismo”,

    então poderíamos falar de “escritos teológico-políticos” em relação ao livro

    examinado.

    As obras selecionadas, de toda forma, possuem teor político e são

    devidamente dispostas pelos editores em temas que estruturam o sumário:

    “Cristianismo e Cidadania”, “Bispos e Autoridades Civis”, “Autoridades

    Judiciais”, “A Controvérsia Donatista”, “Guerra e Paz”. Conforme padrão das

    edições dos Cambridge Texts in the History of Political Thought, o leitor encontra

    aporte em inúmeras seções do livro. Além da esclarecedora “Introdução”, as

    “Notas do tradutor” anunciam desde o início zelosa tradução das obras

    agostinianas na medida em que explicam os significados e opções em língua

                                                                                                                             * Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).

  • 2 AUGUSTINE. Augustine: Political Writings  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    inglesa de inúmeros termos latinos prenhes de conteúdo: res publica, iustitia,

    caritas, amor, dilectio, pietas, salus, entre outros. Há também calendário histórico-

    biográfico bastante informativo que associa eventos políticos, sociais e religiosos

    à produção letrada de Agostinho. Por meio dele é possível, por exemplo,

    conferir quais epístolas e sermões foram escritos antes e durante a redação d’A

    cidade de Deus, bem como questionar por que Agostinho nada escreveu sobre

    alguns acontecimentos políticos, como a divisão do Império entre Ocidente e

    Oriente imediatamente após a morte de Teodósio I.

    Não podemos deixar de mencionar as longas listas de bibliografia atualizada

    referentes às biografias sobre Agostinho, à “Vida social e política na Antiguidade

    Tardia romana” e, sobretudo, ao “Pensamento político de Agostinho”. Ao fim do

    livro, ainda são dispostas “Notas biográficas” com breve explicação sobre os

    principais personagens e interlocutores citados por Agostinho. Nelas

    encontramos, por exemplo, elucidação sobre cada um dos quatro Donatos

    envolvidos na controvérsia donatista, por vezes confundidos entre si. As “Notas

    do texto” são fartas, sendo tanto de referências como explicativas, e repletas de

    indicações bibliográficas sobre questões pontuais. Por fim, existem índices de

    nomes próprios e lugares e de tópicos.

    Com relação ao conteúdo do livro, uma das grandes virtudes dos escritos

    é conceder aos estudiosos material selecionado para desenvolver tarefa que

    Marrou dizia considerar a mais urgente e útil nas discussões agostinianas, qual

    seja: interpretar a noção central de cidade1. Em cada uma das epístolas e

    sermões de Augustine: Political Writings, encontramos o conceito de civitas

    (expresso por vezes como res publica) em elaboração, e subordinado a ele estão

    todas as questões discutidas. Em síntese, Agostinho desenvolve um conceito a-

    histórico, imaterial e metafísico de civitas: Roma não mais é o modelo por

    excelência de cidade e as res gestae deixam de ser o fundamento da res publica.

    Para dizer pouco, isso exige reconfiguração da idéia romana de direito, de pátria,

                                                                                                                             1 MARROU, H-I. “La théologie de l’histoire”, Augustinus Magister, III, Paris, 1954, p. 193-212, aqui p. 198.

  • 3 AUGUSTINE. Augustine: Political Writings  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    de virtudes cívicas, de poder e autoridade, de guerra justa, entre outras que

    Agostinho não deixa intactas nas missivas e prédicas.

    Não por acaso, a Epístola 138, já bastante comentada pela literatura, mas

    não esgotada, está presente no volume. Nessa epístola, o autor antecipa o que,

    anos depois, desenvolveu n’A cidade de Deus: a refutação e redefinição dos

    conceitos de populus e res publica de Cícero. Vale dizer que nos escritos

    selecionados o senador romano é um dos autores mais mobilizado por

    Agostinho (cf. Epístolas 103, 104, 138, 155, e aquelas em que a referência não é

    nominal: 90, 91, 153, 189 etc.). Isso quer dizer, como A cidade de Deus também

    atesta, que o modelo de civitas partilhado por muitos de seus interlocutores e

    contra o qual Agostinho se volta é o ciceroniano. É nesse sentido que aqui e ali o

    bispo de Hipona precisa dilapidar a concepção de Roma como “cidade eterna” e

    explicar o que são as cidades terrena e celeste para dizer quais juízos e condutas

    morais e políticos o cidadão deve ter ao longo da peregrinatio (cf. Sermão sobre o

    saque da urbe de Roma, Epístolas 90, 91, 103, 104).

    Por conseqüência, é fundamental vislumbrar o empenho de Agostinho em

    redefinir conceito de civitas para que seja compreensível por que ele tomou parte

    em tantas discussões políticas, a tal ponto de reclamar a máquina imperial em

    função de interesses religiosos com cada vez mais vigor ao longo dos anos (cf.

    Sermões 13, 302, Epístolas 133, 134, 153 e todo material referente à controvérsia

    donatista). Diferentemente de outros autores cristãos da Antiguidade, Agostinho

    não possui uma apolitia porque foi capaz de “aditar à noção cristã de uma vida

    eterna a idéia de uma civitas futura, uma Civitas Dei, onde os homens mesmo após

    a morte continuariam a viver em uma comunidade. Sem essa reformulação dos

    pensamentos cristãos por meio de Agostinho, a política cristã poderia ter

    permanecido [...] uma contradição em termos”2.

    Delimitar o conceito de civitas a partir de fontes precisas ainda concede

    oportunidade para estabelecer, para além d’A cidade de Deus, em que medida ele

    implica certa idéia de teocracia – que atravessou, aliás, o debate aberto por                                                                                                                          2 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Trad. Barbosa, M. W. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 107.

  • 4 AUGUSTINE. Augustine: Political Writings  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    Arquillière sobre o agostinismo político, freqüentemente confundido com o

    agostinianismo. É principalmente segundo A cidade de Deus, epístolas (como a

    138) e sermões que Gilson diz que “embora ele [Agostinho] jamais tenha

    formulado o princípio de um governo teocrático, a idéia não é inconciliável com

    sua doutrina, pois, se o ideal da Cidade de Deus não implica essa idéia, não a

    exclui”3.

    De fato, ainda que o bispo de Hipona nunca tenha expresso com todas as

    letras uma forma de governo para assunção do Império, sua interferência

    episcopal em questões jurídicas (Epístolas 90, 91, 103, 104), militares (Epístolas

    189, 220, 229), sociais (Sermão 302) e outras pertinentes ao Império, evidenciam

    que magistrados e políticos deveriam se portar como cidadãos da cidade celeste,

    o que aponta para fins imperiais religiosos, para não falar teocráticos. “Agostinho

    engajou-se nessa direção (a) ao admitir a legitimidade do recurso ao exército

    secular contra os heréticos; (b) ao impor ao Estado, como um dever, subordinar-

    se aos fins da Igreja, que são os fins da Cidade de Deus”4.

    Em suma, Augustine: Political Writings se distingue como uma das maiores

    contribuições para a reflexão sobre a política em Agostinho. Ao lado de ótimas

    edições de De civitate dei, como a publicada em 1998 também pelos Cambridge

    Texts in the History of Political Thought, a atenção para epístolas e sermões de teor

    político revela um Agostinho engajado em negócios públicos e distante do otium

    que procurou em Cassicíaco e de que até mesmo um autor de tratados políticos

    pode usufruir. O leitor dos “escritos políticos”, na verdade, encontra pouca

    teoria política, mas flagra propriamente política imperial e religiosa,

    desdobramentos práticos do que se divisa em teoria n’A cidade de Deus. Assim,

    Agostinho não seria apenas “o maior teórico da política cristã”5, mas também um

    dos maiores políticos cristãos.

                                                                                                                             3 GILSON, É. Introdução ao estudo de santo Agostinho. Trad. Ayoub, C. N. A. São Paulo: Discurso Editorial/Paulus, 2006, p. 346. 4 Ibidem. 5 ARENDT, H. Op. cit., p. 107.

  • Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)    

    BERTOLACCI, A. The Reception of Aristotle’s Metaphysics in Avicenna’s

    Kitab al-Sifa. A Milestone of Western Metaphysical Thought, Leiden:

    Bril, “Islamic Philosophy, Theology and Science” LXIII, 2006, xvii+675p.

    Alfredo Storck*

    ___________________________________________

    “Reforma e abandono, continuidade e ruptura, tradição e inovação: essa dupla atitude de Avicena com relação à Metafísica de Aristóteles é a essência de sua ‘interpretação’ dessa obra.” (p. ix)

    A frase acima exprime o diagnóstico do A. face ao modo aviceniano de ler a

    Metafísica de Aristóteles. De fato, a história das pretensões da metafísica de

    firmar-se como disciplina teórica esteve por muito tempo ligada à interpretação

    da obra aristotélica. Porém, o período que vai do aparecimento do texto

    fundador até o seu completo abandono por Descartes e Hume, não foi

    totalmente livre de tribulações. Desde cedo, as obscuridades e mesmo as

    inconsistências presentes no livro de Aristóteles fizeram-se observar e

    demandaram a intervenção de mais de um comentador. Provavelmente o mais

    importante e radical dos intérpretes da Metafísica tenha sido Avicena.

    Conhecedor de boa parte dos comentários gregos tardios disponíveis em árabe,

    bem como das diferentes correntes interpretativas que se desenvolveram no

    mundo muçulmano, Avicena inova ao perguntar se aquela disciplina pode

    satisfazer os critérios de cientificidade apresentados pelo próprio Aristóteles nos

    Segundos Analíticos. A reposta de Avicena já era conhecida dos medievistas: na

    forma em que Aristóteles deixou a disciplina, ela é impossível, pois é

    contraditória. É preciso reestruturá-la e colocar em evidência os elementos que

                                                                                                                             * Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/CNPq.

  • 6 BERTOLACCI,  A.  The  Reception  of  Aristotle’s  Metaphysics  in  Avicenna’s  Kitab  al-‐Sifa  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    caracterizam sua cientificidade. O que nos era, entretanto, muito menos

    conhecido e que constitui o mérito e a originalidade de Bertolacci são os

    detalhes dessa reestruturação.

    Não é raro encontrar em Avicena indicações sobre a necessidade de

    reorganizar os escritos de Aristóteles de modo a que eles obtenham uma forma

    rigorosa ou axiomática. A Física seria, segundo Avicena, um bom exemplo disso,

    pois o filósofo grego teria deixado lado a lado os problemas relativos aos

    fundamentos da disciplina (e que deveriam ser tratados na metafísica) e aqueles

    que constituem sua atividade científica propriamente dita. No caso da metafísica,

    a intervenção deveria ser ainda maior, uma vez que, no estágio deixado por

    Aristóteles, haveria diversas descrições do objeto de investigação da disciplina,

    apontando, assim, para diferentes projetos inconsistentes entre si. Analisar o

    modo como essa reestruturação é operada constitui um dos pontos centrais do

    livro de Bertolacci.

    Após uma primeira parte (capítulos 1 a 3) na qual são analisadas as

    diversas traduções árabes da metafísica usadas por Avicena (capítulo 1) e as

    influências de pensadores gregos e árabes (notadamente Amônio e al-Farabi), o

    A. examina (capítulos 4 a 7) a nova estrutura da ciência metafísica. O capítulo 4

    mostra como a tensão entre ontologia e teologia no seio da metafísica não

    aparece como problema para os comentadores gregos, v.g. Teofrasto,

    Alexandre, Temístio, Siriano, Amônio e Asclépio. Ela será o resultado da maneira

    como al-Kindi interpreta a teologia aristotélica e das fortes reações de al-Farabi,

    o que levará, conforme mostra o capítulo 5, Avicena a colocá-la no início de sua

    obra. O capítulo 6 aborda as razões que teriam conduzido o pensador persa a

    conferir tamanha importância aos Segundos Analíticos em sua leitura da Metafísica.

    De fato, os especialistas contemporâneos de Aristóteles normalmente sustentam

    que a Física e a Metafísica não são tratados científicos, mas versam sobre os

    fundamentos da ciência. Ora, se pareceu importante a Avicena não aplicar o

    método dialético à metafísica, isso deveu-se tanto aos (poucos) textos em que

    Aristóteles (em sua tradução árabe) afirma que o método não é dialético (e.g.,

  • 7 BERTOLACCI,  A.  The  Reception  of  Aristotle’s  Metaphysics  in  Avicenna’s  Kitab  al-‐Sifa  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    1004b22-26), quanto à influência de Alexandre, al-Kindi e al-Farabi. O capítulo 7

    versa sobre a relação da metafísica com as demais ciências, ficando claro o papel

    fundacional atribuído por Avicena àquela disciplina. Em uma palavra, cabe à

    metafísica demonstrar os princípios das demais ciências.

    A terceira parte da obra versa sobre o conteúdo da disciplina. No

    capítulo 8, é examinada a principal fonte de Avicena, ou seja, a própria Metafísica.

    O capítulo identifica as diversas traduções árabes empregadas por Avicena,

    classifica os diversos modos de citação, analisa e explica cada uma delas,

    dividindo-as em explícitas determinadas, explícitas indeterminadas e implícitas. O

    resultado é oferecido em um quadro bastante útil e instrutivo. O capítulo 9 põe

    em evidência “a principal fonte da concepção de Avicena acerca da metafísica, o

    livro Gama”, por meio da análise das citações dessa obra. As citações

    concentram-se no primeiro tratado, justamente aquele dedicado a tratar da

    delimitação da estrutura da disciplina. São citações tiradas diretamente das

    traduções árabes e sem sofrer qualquer mediação da parte de outros autores.

    Essas citações revelam ainda que a estrutura do primeiro tratado aviceniano

    segue a seqüência de temas de Gama: começa com uma discussão do “existente

    qua existente” como objeto da metafísica e termina com um tratamento dos

    axiomas. Ou seja, é Gama que servirá de fio condutor para adequar a estrutura

    da metafísica aos critérios de cientificidade dos Segundos Analíticos. O capítulo 10

    examina a atitude de Avicena frente ao livro B, ao passo que o capítulo 11

    investiga as demais fontes de Avicena.

    “Uma edição crítica completa da Ilahiyyat é, sem dúvida, uma aspiração

    maior nos estudos avicenianos” (p. 484). Essa frase não apenas abre o Apêndice A

    da obra de Bertolacci, como também sugere para o leitor o tipo de resultado

    alcançado e o método empregado. A fina análise filológica da tradição manuscrita

    árabe constitui indubitavelmente um dos pontos de destaque desse livro e leva

    diretamente à conclusão da necessidade de uma nova edição da obra aviceniana.

    De fato, a edição padrão da Metafísica publicada no Cairo (= C) em 1960 é

    baseada em apenas 5 dos mais de 70 manuscritos conhecidos. Ela não segue os

  • 8 BERTOLACCI,  A.  The  Reception  of  Aristotle’s  Metaphysics  in  Avicenna’s  Kitab  al-‐Sifa  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    padrões de cientificidade atualmente exigidos de uma edição crítica, não

    apresentando, vg., um stemma codicum ou uma descrição do método empregado.

    Mas a real debilidade da edição C é tornada patente pelas quase 70 páginas de

    correções sugeridas pelo A. como resultado da comparação de C com outros

    manuscritos, versões publicadas sob outras bases e mesmo outras obras de

    Avicena. Mais 5 apêndices completam o estudo e oferecem o índice dos autores

    e obras citadas por Avicena, uma apresentação de suas das principais obras

    metafísicas em ordem cronológica, a análise das expressões usadas para nomear

    a metafísica, o estilo em geral da Shifa, e, por fim, a terminologia da

    “propriedade” na obra de Avicena.

    Em suma, trata-se de uma obra de fôlego que disseca filologicamente a

    maneira como Avicena reinterpreta a Metafísica de Aristóteles. Investigação de

    grande erudição e rigor científico, já é considerada pelos especialistas uma fonte

    primária para os estudos avicenianos. Saliente-se, por fim, que o A. publicou,

    ainda como resultado desse trabalho, uma tradução italiana com revisão do texto

    árabe (AVICENNA. Libro della guarigione. Scienza delle cose divine, Torino: UTET,

    2007) a qual permitirá ao leitor um mais fácil manuseio da imensa massa de novas

    informações produzidas durante a elaboração da pesquisa que deu origem obra

    aqui resenhada.

  • Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”, Paris: Vrin,

    “Conférences Pierre Abélard”, 2008, 192p.

    Ana Rieger Schmidt* ___________________________________________

    Em 7 de março de 1277, o bispo de Paris, Étienne Tempier, proibiu o ensino de

    219 teses filosóficas que eram objeto de discussão nas universidades parisienses.

    Essa condenação tem recebido grande atenção dos historiadores a muitos

    séculos, os quais investigam as motivações e os efeitos para a prática filosófica na

    Idade média. No prólogo de seu texto, Tempier acusa os mestres da faculdade

    das artes de camuflarem teses heréticas recorrendo à doutrina da “dupla

    verdade”, a qual sustentaria que existem dois tipos de verdades incompatíveis: a

    verdade da razão, ou dos filósofos, obtida através de raciocínio e argumentação;

    e a verdade da fé, obtida por revelação. Luca Bianchi pretende investigar a

    presença da expressão duplex veritas nesse texto que tanto marcou o ensino e a

    prática da filosofia durante a Idade Média.

    Os primeiros dois capítulos procuram traçar as referências textuais que

    evocam a doutrina da dupla verdade. O ponto de partida do A. está em apreciar

    a afirmação feita por dois historiadores, Daniel Hoffmann no final do século XVII,

    e Pierre Bayle no século XVIII, a qual atribui a doutrina a Lutero. Segundo Bayle,

    Lutero, na disputa de 1539, sustentaria que uma mesma tese pode ser verdadeira

    e falsa – verdadeira em Teologia e falsa em Filosofia, ou mesmo verdadeira em

    Moral e falsa em Física. Seria necessário evitar a identidade entre verdade

    teológica e verdade filosófica, sob o risco de submeter a primeira à segunda. Em

    sua tese n. 41, Lutero faz alusão à universidade parisiense, dizendo que seu meio

    teria alimentado o erro de identificar as duas verdades, chamando em

    consequência a Sorbonne de mater errorum, ou “mãe dos erros”.

                                                                                                                             * Doutoranda na Université de Paris I, bolsista CAPES.

  • 10 BIANCHI,  L.  Pour  une  histoire  de  la  “double  vérité”  

     

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    Com efeito, em seu primeiro capítulo o A. propõe explicitar os motivos

    que teriam levado Lutero a considerar essa tese como uma marca da

    Universidade de Paris. Para tanto prefere, ao invés de resgatar as fontes precisas

    de Lutero, esclarecer como o princípio segundo o qual “a mesma coisa é

    verdadeira em filosofia e em teologia” se difundiu em Paris. Isso leva o autor a

    explorar a concepção de Henrique de Gand sobre as relações entre fé e razão.

    Em sua Suma, questão 13 artigo 7, Henrique pretende sustentar a coexistência

    da teologia e da filosofia. Para tanto, vale-se da autoridade aristotélica e da tese

    segundo a qual os princípios do ser e os princípios do conhecimento são os

    mesmos (Metafísica, 993b 30-31), bem como do princípio de não contradição,

    segundo o qual uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o

    mesmo aspecto (Metafísica, Gama 4). Somado a isso, observa que a razão natural,

    se é reta e não pretende ultrapassar as suas limitações, não pode emitir juízos

    contrários à teologia. As teses filosóficas são fixadas por seres falíveis e não

    devem ser identificadas com a própria disciplina. Isso permite a Henrique

    concluir que os “verdadeiros filósofos, cujas teses são realmente constatadas nas

    coisas”, jamais poderiam contradizer a revelação divina. A “duplicidade” de

    verdades é assim evitada. A verdade é una. Henrique de Gand e tantos outros

    procuraram harmonizar o saber advindo da razão com o advindo da palavra

    divina recorrendo ao caráter limitado do primeiro. O A. refere-se ainda aos

    esforços de Marsílio de Inghen, Boécio de Dácia e Gilherme de Baudin em

    suprimir o mesmo conflito. Boécio, por exemplo, teria feito uma distinção entre

    aquilo que é verdadeiro absolutamente, segundo os ensinamentos da revelação, e

    aquilo que é verdadeiro relativamente, no domínio das ciências particulares.

    A intervenção do bispo Tempier tinha como objetivo frear a autonomia da

    pesquisa filosófica e submetê-la à soberania da teologia. No entanto, é bem

    verdade que havia duas maneiras de conceber essa relação. Por um lado, a

    soberania da teologia foi tomada como excludente, de modo que haveria uma

    alteridade entre a razão mundana e a fé cristã. Essa posição, sublinha o A., exclui

    definitivamente a possibilidade da “dupla verdade”. Por outro lado, uma posição

  • 11 BIANCHI,  L.  Pour  une  histoire  de  la  “double  vérité”  

     

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    menos radical tomava os domínios da fé e da ciência como inclusivos e era

    marcada pelo esforço em compatibilizar os resultados de uma com os da outra.

    Apesar da dura censura representada pela condenação de 1277, esses dois

    modelos coexistiam nos meios acadêmicos. Lendo tanto a oposição dramática

    entre filosofia e teologia, quanto as posições análogas à de Henrique de Gand,

    percebemos por que Lutero endereçou o erro de identificar a verdade cristã

    com a verdade racional à Universidade de Paris.

    Após apresentar a hipótese de Bayer e Hoffmann e identificar a origem da

    crítica de Lutero aos “parisienses”, o A. permite-se indagar se é possível traçar

    as origens da doutrina da dupla verdade até a Idade Média, tema que nos conduz

    ao segundo capítulo. O A. adverte, de início, que procurar sinais da doutrina da

    dupla verdade através da pesquisa das ocorrências da expressão duplex veritas é

    inútil, pois a expressão, além de pouquíssimo frequente, é muitas vezes

    empregada com propósitos completamente diferentes ao da doutrina em

    questão. Tal é o caso, por exemplo, de Boaventura e Tomás de Aquino, ambos

    defensores da unicide da verdade. A única ocorrência da expressão duplex veritas

    em um sentido próximo ao da doutrina ocorre no contexto das disputas entre

    Pedro de Rivo e Henrique de Zomeren acerca do problema dos futuros

    contingentes. Segundo o célebre problema herdado de Aristóteles, se uma

    proposição que descreve um evento futuro contingente – seja, por exemplo,

    uma batalha naval - é verdadeira antes que o evento se realize, parece seguir-se

    que esse evento não pode não ocorrer e que, portanto, ocorrerá

    necessariamente; se falso, tal evento não pode ocorrer, isto é, necessariamente

    não ocorrerá. Assim, os eventos futuros já estão logicamente determinados, pois

    estão determinados quanto ao seu valor de verdade – o que elimina a

    contingência dos eventos futuros. Tal resultado é incompatível com a evidência

    de contingência no mundo, notadamente das ações livres dos homens. Uma

    estratégia visada pelos comentadores do De Interpretatione era a de suspender os

    valores de verdade para proposições desse tipo “problemático”. Proposições

    futuras em matéria contingente seriam, nesse sentido, indeterminadas. Contudo,

  • 12 BIANCHI,  L.  Pour  une  histoire  de  la  “double  vérité”  

     

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    essa solução cria claros problemas aos teólogos: por um lado, eles têm de

    explicar como Deus possui conhecimento de proposições sem valor de verdade;

    por outro lado, como as profecias podem ser admitidas como verdadeiras,

    mesmo que não tenham sido ainda atualizadas.

    O A. faz então referência ao trabalho de Chris Schabel1 sobre a solução de

    Pedro Aureoli ao problema mencionado e sua repercussão entre os teólogos

    parisienses do século XIV, cujo epílogo trata da recepção da disputa em Louvain.

    Rivo sustenta que é possível harmonizar a solução que ele atribui a Aristóteles e

    a Epicuro (e mesma de Aureoli), segundo a qual as proposições futuras em

    matéria contingente são indeterminadas, à tese segundo a qual as profecias são

    verdadeiras. As profecias seriam verdadeiras segunda a verdade não-criada;

    enquanto que as proposições que descrevem eventos futuros contingentes não

    podem ser verdadeiras segundo a verdade criada. A ocorrência que interessa ao

    A. está na crítica que Guilherme Baudin endereça à posição de Rivo. Segundo

    ele, Rivo teria submetido seu intelecto aos gentios ao afirmar que certas

    proposições não são verdadeiras segundo a filosofia pagã, ainda que sejam

    verdadeiras segundo a fé.

    Encontramos finalmente aqui um teólogo acusado de sustentar a doutrina

    da dupla verdade dois séculos depois da condenação de 1277 e de endereçá-la

    aos que aderiram a teses anti-crsitãs aristotélicas e averroístas. Baseando-se

    nesse achado, o A. ataca a afirmação feita por Van Steenberghen em seu artigo

    sobre o tema da dupla verdade2, segundo a qual ninguém teria sustentado a

    duplex veritas durante a Idade Média.

    Tendo finalmente encontrado uma fonte medieval para doutrina da dupla

    verdade, o A. passa a estudar como as autoridades eclesiásticas procuraram

                                                                                                                             1   SCHABEL,   C.   Theology   at   Paris   -‐   1316-‐1345:   Peter   Auriol   and   the   problem   of   divine  

    foreknowledge   and   future   contingents,   Hants:   Ashgate   Publishing   Press,   “Ashgate   Studies   in  Medieval  Philosophy  “,  2000.  2  VAN  STEENBERGHEN,  F.  “Une  Légende  tenace:  la  théorie  de  la  double  vérité”.  In:  Introduction  à  l’étude   de   la   philosophie   médiévale.   Louvain/Paris:   Publication   Universitaires/Béatrice-‐

    Nauwelaerts,  1974.  

  • 13 BIANCHI,  L.  Pour  une  histoire  de  la  “double  vérité”  

     

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    “supervisionar” as posições dos principais filósofos diante dos argumentos cujas

    conclusões são contrárias aos artigos de fé - os argumentos contra fidem. Os dois

    últimos capítulos são dedicados aos estatutos de 1272 e 1513 e seus efeitos nas

    universidades européias.

    Tomás de Aquino sustenta, em seu comentário ao De Trinitate de Boécio,

    que opiniões filosóficas contrárias à fé cristã não pertencem à verdadeira filosofia

    e podem ser refutadas pelos próprios instrumentos da filosofia, mostrando que

    as conclusão de tais argumentos não são necessárias, mas apenas resultados

    possíveis ou prováveis. Dado que as premissas dos argumentos contra fidem são

    frutos da razão humana, elas têm um alcance limitado. Entretanto, haveria uma

    diferença, (sustentada, dentre outros, por Caetano), entre saber que os

    argumentos contrários à fé são errôneos e saber efetivamente refutá-los.

    Muito menos sutis são as diretrizes do estatuto de 1272: antes ainda da

    condenação das teses que ameaçavam a fé cristã em 1277, foi elaborado em 1º

    de abril de 1272 o Estatuto Parisiense, o qual oferecia diretrizes específicas de

    como tratar as questões que envolviam artigos de fé e argumentos filosóficos. Os

    teólogos, durante o estudo de um texto em classe, eram convidados a refutar

    todos os argumentos que ameaçassem a fé. Como tal tarefa nem sempre era

    fácil, eles estariam autorizados a simplesmente declarar falsas as suas conclusões.

    O A. insiste sobre a importância histórica deste estatuto no ensino de filosofia na

    Universidade de Paris e seu papel na vida intelectual da Idade Média tardia. Não

    se dedica, porém, a examinar o conteúdo das condenações, mas apenas a relação

    da verdade com a filosofia e as obrigações dos teólogos para com os preceitos

    cristãos, cuja validade era inquestionável. O efeito esperado da censura de 1272

    era de neutralizar as opiniões filosóficas incompatíveis com a fé cristã. No

    entanto, o resultado foi consideravelmente abrandado e no início XVI já não era

    mais respeitado em Paris. É impossível negar, todavia, a marcante influência do

    estatuto nos séculos XIV e XV, não somente em Paris, mas em outras

    universidades européias (como Viena e Heidelberg).

  • 14 BIANCHI,  L.  Pour  une  histoire  de  la  “double  vérité”  

     

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    O quarto e último capítulo leva-nos a considerar o caso - não menos

    importante - das universidades italianas, nas quais a questão das relações entre

    verdade filosófica e verdade revelada tomou um rumo muito diferente do

    francês. Na Itália dos séculos XV e XVI, o problema da refutação dos

    argumentos contra fidem toma uma dimensão mais acentuada. É neste momento,

    diz o A., que a atenção das autoridades eclesiásticas será especialmente atraída e

    que medidas rigorosas serão tomadas para limitar a liberdade do ensinamento

    filosófico, “retomando e desenvolvendo a política iniciada em Paris com o

    estatuto de 1272”.

    Em 19 de dezembro de 1513 e no contexto da problemática ao redor da

    imortalidade da alma, o concílio de Latrão V aprova a constituição Apostolici

    Regiminis, a qual afirma que a alma do homem é verdadeiramente e por ela

    mesma forma do corpo, condenando simultaneamente as interpretações

    averroísta e alexandrista. O ponto que interessa ao A. diz respeito à proibição

    expressa de ensinar a unidade e a mortalidade da alma seguindo os argumentos

    dos filósofos, valendo-se do princípio segundo o qual “uma verdade não pode

    contradizer outra verdade”, ou seja, não pode haver uma verdade incompatível

    às verdades adquiridas pela fé. Todas as afirmações contrárias deveriam ser

    imediatamente declaradas falsas e aquele que as difundisse seria declarado

    herege. As diferentes seções do Apostolici Regiminis detalhavam as medidas a

    serem tomadas com relação ao ensino de filosofia a mesmo à organização dos

    estudos. No que toca aos professores universitários, quando ensinassem os

    argumentos filosóficos contra fidem, deveriam se esforçar em mostrar as suas

    falhas, tomando uma posição claramente pro fidem e manifestar a verdade cristã.

    Tais decretos constituem uma grande mudança se comparados aos de

    1272: não se trata de um conjunto de indicações de “autolimitação” dos

    teólogos, mas de um conjunto de regras precisas e rígidas impostas às

    universidades. Um professor que não as respeitasse corria sérios riscos. Mesmo

    assim, nota o A., a falta de instrumentos eficazes de controle possibilitou que

    estas regras fossem frequentemente contrariadas. É um consenso entre os

  • 15 BIANCHI,  L.  Pour  une  histoire  de  la  “double  vérité”  

     

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    historiadores que o Apostolici Regiminis não foi bem sucedido ao impor a

    concórdia entre filosofia e teologia, assim como barrar a difusão das teses não

    ortodoxas nas universidades italianas, exceto por efetivamente levar muitos

    teólogos a não revelarem ou mesmo a mudarem suas opiniões em público.

    Vimos que Tomás defende a unicide da verdade e a limitação da razão

    diante da fé, assim como a possibilidade de refutar os argumentos filosóficos

    cujas conclusões são contrárias à fé, reconhecendo seu próprio erro. Segundo

    Bianchi, a constituição Apostolici Regiminis reflete uma concepção de verdade

    escolástica e tomista. Ela endossa a relação entre razão e fé tal como formulada

    por Tomás e largamente difundida na renascença.

    O A. encerra seu texto mostrando a influência da temática na condenação

    de 1633, cuja vítima foi Galileu quando submetido ao tribunal da inquisição.

    Melchior Inchofer teria sido o então responsável pela legitimação doutrinal da

    condenação de Galileu afirmando que em toda discussão filosófica deve-se

    observar as disposições do decreto de 1513, a saber, proclamar a verdade

    ensinada pela fé e refutar os argumentos dos filósofos. Ele acusa Galileu de

    distinguir entre verdade filosófica e verdade teológica com vistas a defender o

    sistema astronômico de Copérnico – considerado, sabe-se bem, incompatível

    com a religião, sendo o geocentrismo considerado um artigo de fé.

    Ao final da leitura dessa obra, somos levados a concluir pelo ganho de

    informações acerca da origem de uma noção que por tempos dividiu os

    especialistas. O mérito do A. está em trazer à tona textos não antes

    considerados e que apontam para os mecanismos de formação e difusão de uma

    idéia central em tantos debates históricos.

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    DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir, Paris, Vrin, “Sic et

    non”, 2007, 474p.

    Alfredo Storck* ___________________________________________

    Essa obra retoma parcialmente os resultados de uma tese de doutorado

    defendida em 2005 na Ecole Pratique des Hautes Etudes, sob a orientação de

    Olivier Boulnois e que tinha por título: Les Seconds Analytiques au XIIIe siècle et la

    théorie de la connaissance de Jean Duns Scot. A versão publicada contém apenas a

    parte dedicada a Duns Scotus.

    Como o A. deixa claro desde as primeiras linhas, a teoria do saber de

    Duns Scotus foi concebida para resolver problemas teológicos, a saber, aqueles

    relativos à possibilidade e aos limites do conhecimento humano, à natureza dos

    princípios do conhecimento e seu objeto, à estrutura e fundamentos das ciências

    específicas e, por fim, à possibilidade mesma da metafísica. Todas essas questões

    são apresentadas por Scotus em um quadro marcado, em um duplo sentido, pela

    teologia. Em primeiro lugar, em um sentido histórico, pois foi a polêmica acerca

    do status de cientificidade da teologia no século XIII que impôs o exame das

    condições de possibilidade do conhecimento humano. O A. mostra-nos como,

    por um gesto revolucionário, Henrique de Gand vai romper com a história

    interna da metafísica de inspiração aristotélica e colocar, no início de sua Suma,

    uma série de artigos que desempenharão o papel de verdadeira introdução

    epistemológica à obra. Ora, as teses defendidas por Henrique são rejeitadas por

    Scotus que o acusará de sustentar uma teoria da dupla verdade a qual conduziria

    ao ceticismo. Por óbvio, não se trata aqui da famosa teoria da dupla verdade

    atribuída, por algum tempo, a Averróis, mas de uma outra, própria a Henrique,

                                                                                                                             * Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/CNPq.

  • 17 DEMANGE,  D.  Jean  Duns  Scot.  La  théorie  du  savoir  

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    segundo a qual o conhecimento obtido por abstração produz uma verdade

    distinta e inferior à verdade pura e indubitável da revelação. O A. examina tanto

    as teses de Henrique quanto as de Scotus para mostrar como o Doutor Sutil será

    conduzido a redefinir o conhecimento científico de um modo puramente

    abstrativo. Estamos assim face a uma das particularidades desse livro: a

    preocupação de apresentar, sempre de modo preciso, claro e em seus

    elementos centrais, as teorias às quais Scotus se opõe. Seremos freqüente e

    agradavelmente supreendidos pelo poder de análise do A. e por sua capacidade

    de resumir em poucas palavras teorias bastante complexas.

    O segundo sentido no qual o ponto de partida de Scotus mostra-se

    profundamente teológico diz respeito a sua teoria da alma humana. No estado

    presente, o intelecto humano é capaz de um conhecimento exclusivamente

    abstrativo, ou seja, dependente dos sentidos e da imaginação. Essa dependência

    não faz, todavia, parte da natureza do intelecto, mas unicamente de sua condição

    atual, pois a alma humana é naturalmente destinada à visão beatífica. A teologia

    do conhecimento distinguirá, assim, entre: 1) as condições de um intelecto

    enquanto tal; 2) os limites do conhecimento de um intelecto finito; e 3) os

    limites do conhecimento do intelecto humano, ou seja, marcado pelo pecado

    original e que é sua condição atual. Não distinguir os três níveis e fazer, como o

    faz Tomás de Aquino, do ser material o objeto natural do intelecto é o mesmo

    que falar como filósofo. Ora, Duns Scotus pretende exprimir-se como teólogo.

    É, portanto, por meio de premissas teológicas que começa a sua teoria do saber.

    Suas premissas são a expressão daquilo que o A. denomina “as três experiências

    fenomenológicas”, a saber: a distinção entre o conhecimento intuitivo e

    abstrativo; a ausência atual de conhecimento intuitivo do singular; e a tese

    segundo a qual todo conhecimento presente resulta da apreensão de

    propriedades comuns ou acidentais. Por conseguinte, o ato de significação da

    substância revela-se mais preciso do que sua intelecção. Ora, a distinção entre o

    ato de significação e de intelecção é aqui central e separa a filosofia da teologia.

    O filósofo sustenta que um objeto é inteligível porque cai sob o conceito de ser.

  • 18 DEMANGE,  D.  Jean  Duns  Scot.  La  théorie  du  savoir  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    O teólogo sabe que, no estado da alma restaurada, o conhecimento das coisas

    singulares produz-se sem o intermédio da abstração. A razão comum do ser

    usada pelo metafísico não é, portanto, a razão do objeto. Mas isso, apenas o

    teólogo o sabe.

    Essas são, em poucas palavras, as idéias essenciais do primeiro capítulo.

    Para tornar a seqüência de nossa exposição mais simples, vamos dividir os oito

    capítulos restantes em três partes. Na primeira (capítulos 2 a 5), são abordadas

    as questões que dizem respeito ao conhecimento humano, a saber: a natureza e

    os tipos de predicação; o papel da experiência para o conhecimento; a noção de

    evidência e sua função na ciência; e, por fim, a teoria do objeto e a noção de

    verdade. Na segunda parte (capítulos 6 a 8), o A. examina as relações entre as

    ciências, começando pela lógica e metafísica, o que lhe permite retomar o

    incontornável problema da univocidade do ente. Aborda, em seguida, as relações

    entre as ciências especulativas reais: a física, a matemática e a metafísica para,

    após, concluir com as relações entre a metafísica e a teologia. O último capítulo,

    que serve de conclusão à obra, explora a questão do objeto primeiro do

    intelecto.

    O segundo capítulo é consagrado aos problemas epistemológicos, como a

    teoria da predicação, da definição e da demonstração retirados da massa de

    comentários aos Segundos Analíticos produzidos no século XIII. Ora, são

    identificadas no período quatro formas de predicação por si, das quais duas são

    particularmente importantes. Em primeiro lugar, a segunda, ou seja, quando o

    sujeito entra na definição do predicado. Scotus a compreende de acordo com a

    propriedade de “inclusão virtual” e o A. põe em evidência as proximidades entre

    as posições de Scotus e de Simon de Feversham. Em segundo lugar, é digno de

    nota o quarto modo de predicação, ou seja, quando um objeto pertence a uma

    coisa por ela mesma. Dessa vez, é a interpretação de Tomás de Aquino que será

    seguida por Scotus par explicar as propriedades naturais não essenciais e que

    servem de premissas em uma demonstratio potissima. A importância desse quarto

    tipo de predicação para a compreensão da teoria escotista do conhecimento por

  • 19 DEMANGE,  D.  Jean  Duns  Scot.  La  théorie  du  savoir  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    experiência aparece claramente quando do terceiro capítulo. O modelo adotado

    não é aquele da indução por generalização, que encontramos em Aristóteles,

    mas o de um conhecimento por experiência cuja origem está em Roberto

    Grosseteste e Rogério Bacon. O A. falará aqui de um intelectualismo da

    experiência em Duns Scotus, para mostrar que apenas o intelecto é capaz de

    produzir uma certeza adquirida segundo uma ordem cronológica que apresenta

    três etapas: o conhecimento puramente nominal; o conhecimento geral ou

    universal; o conhecimento distinto ou determinado. O resultado é uma teoria da

    proposição na qual se pode distinguir proposições conhecidas por si

    confusamente de proposições conhecidas por si distintamente, o que conduzirá a

    uma concepção da autonomia das ciências por relação à metafísica. Essa disciplina

    que é, tal como a lógica, uma ciência comum, não é necessária para a prática de

    nenhuma ciência particular. Evidentemente, a afirmação necessita ser qualificada,

    sobretudo no que diz respeito à possibilidade de seu objeto de conhecimento.

    Isso constitui precisamente a tarefa do quinto capítulo que é, segundo nos

    parece, o capítulo central da obra. É nele que a originalidade do pensamento de

    Duns Scotus é colocada em evidência. O A. não hesita em falar de um

    verdadeiro “giro copernicano”, célebre expressão que mostra bem a importância

    atribuída à noção de objeto no pensamento de Duns Scotus. Escutemos o

    próprio autor:

    “Segundo Duns Scotus, todo conhecimento – mesmo o divino – funda-se em, ou se deixa reduzir a um objeto (obiectum). Trata-se assim de uma propriedade constitutiva da intelecção e do conhecimento enquanto tais. Esse conceito de objeto designa, assim, o centro da teoria scotista do conhecimento, mas igualmente de sua teoria da ciência, pois o conhecimento discursivo, como também todo conhecimento científico, encontra sua causa última, seu fundamento, em um objeto. Ao afirmar a identidade do sujeito da ciência e do objeto do intelecto, Duns Scotus identifica, por conseguinte, o ponto no qual se ligam a noética, a teoria do conhecimento e a epistemologia.” (p. 201)

  • 20 DEMANGE,  D.  Jean  Duns  Scot.  La  théorie  du  savoir  

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    Em suma, não estamos mais no modelo aristotélico segundo o qual é a

    forma da coisa que está no intelecto, mas no modelo de conhecimento como

    representação. Ora, essa não é a primeira vez que alguém chama a atenção para a

    noção de representação em Duns Scotus. Olivier Boulnois, que orientou a tese

    na origem desse livro, destacou bastante bem o mesmo ponto em uma obra

    intitulada justamente Être et représentation (Paris, PUF, 1999). Mas o que é

    original no A. é o modo como ele soube explorar as noções de sujeito e de

    representação a fim de reconstruir, com habilidade e precisão admiráveis, a

    teoria do saber de Scotus. Todos os problemas epistemológicos relativos aos

    fundamentos, estrutura e relações entre as ciências, que serão abordados na

    segunda parte do livro, são formulados e resolvidos por Scotus por relação a sua

    teoria do objeto.

    Para Duns Scotus, o objeto não é uma coisa, pois é definido por relação a

    uma faculdade. Objeto designa o modo de presença de uma coisa em uma

    faculdade, ficando assim óbvia a importância da noção de representação. O objeto

    do conhecimento não é uma coisa exterior. Ele é interno ao intelecto, a tal ponto

    que a existência da coisa exterior não é condição para a aquisição de um

    conhecimento científico. A res externa é apenas a ocasião para o intelecto

    formar-se certas verdades. Mas a sua existência não é a causa da verdade. Para

    ser mais preciso, uma proposição é dita verdadeira seja formalmente, seja

    objetivamente. No primeiro caso, a verdade não depende de um intelecto que

    apreenda a proposição, pois a proposição é verdadeira se ela está de acordo

    com a realidade exterior. No segundo caso, a proposição é verdadeira se retira

    sua evidência de um objeto do intelecto. Assim, a proposição “Deus é trino” é

    formalmente verdadeira sem o ser objetivamente. Já o conhecimento científico é,

    por sua vez, puramente abstrativo e independente das coisas exteriores. O

    essencial para as ciências é a noção de evidência, pois seus primeiros princípios

    são evidentes a partir dos termos que os compõem.

    Passemos agora à segunda parte da obra, ou seja, ao momento de definir a

    estrutura e as relações entre as ciências. O A. examina três problemas: as

  • 21 DEMANGE,  D.  Jean  Duns  Scot.  La  théorie  du  savoir  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    relações entre a metafísica e a lógica; as relações entre as ciências especulativas

    reais; e as relações entre a teologia e a metafísica. O primeiro problema divide

    os especialistas entre, de um lado, aqueles que sustentam uma correspondência

    formal entre a lógica e a metafísica e, de outro, os partidários de uma

    independência total entre as duas disciplinas. Ora, o A. ensina-nos que ambas as

    posições são equivocadas, pois o conceito de ente é logicamente unívoco, mas

    metafisicamente equívoco, tese original de Scotus que não prosperou entre seus

    sucessores. O problema da relação entre as ciências reais é posto sob a forma da

    teoria da subalternação. Scotus segue, nesse aspecto, a tradição inglesa,

    representada por Roberto Grosseteste e Roberto Kilwarby, opondo-se assim a

    Alberto Magno e Tomás de Aquino. As relações entre metafísica e teologia são

    examinadas em um capítulo que inicia pela análise da prova da existência de

    Deus. Ora, essa prova, amplamente inspirada em Avicena, é realizada pela

    metafísica. Já a teologia revelada será compreendida como uma disciplina prática

    baseada, evidentemente, nos artigos da fé, mas fazendo também apelo a

    conceitos metafísicos em suas proposições.

    O último capítulo trata do objeto primeiro do intelecto humano. Nele, o

    A. explica-nos que Scotus abandonou a tese aviceniana segundo a qual o objeto

    primeiro do intelecto não é outro senão o conceito unívoco e metafísico de

    ente. O Doutor Sutil sustentará, então, que o ente, primeiro objeto do intelecto, é

    uma noção unívoca que remete à totalidade do inteligível, ou seja à ordem do

    puro possível lógico. Novamente, a teologia escotista manifesta-se aqui em toda

    sua radicalidade.

    Em suma, estamos frente a um trabalho de grande envergadura que deve

    ser saudado tanto por seu esforço de elucidar os intrincados conceitos scotistas,

    quanto pela exegese histórica reveladora das dependências e disputas nas quais

    foi cunhado o pensamento de Duns Scotus.

  • Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    CASTEIGT, J. Connaissance et vérité chez Maître Eckhart. Seule le juste

    connaît la justice, Paris: Vrin, “Études de philosophie médiévale”,

    2006, 480p.

    Rodrigo Guerizoli* ___________________________________________

    A obra do dominicano Eckhart de Hochheim (†1328), Mestre Eckhart, coloca

    para seu leitor não apenas questões filosóficas e teológicas, tratadas de modo

    amiúde intencionalmente inovador, mas também um problema de cunho

    hermenêutico, que concerne à unidade de suas partes, latina e alemã. Já J. Quint

    diagnosticou a dificuldade aqui em jogo: a diversidade lingüística e a quantidade

    de textos curtos de Eckhart costumam gerar a tendência de que se baseie cada

    interpretação em um novo “colorido mosaico” de pequenas e heterogêneas

    passagens1. Os efeitos desse procedimento são evidentes: Eckhart torna-se um

    autor exageradamente maleável e se vê como paradigma de irreconciliáveis

    convicções filosóficas e políticas2.

    Desde há pelo menos 20 anos tal situação começou a se modificar. Em

    lugar dos mosaicos denunciadas por Quint, os estudos passaram a pautar-se cada

    vez mais por uma regra sugerida por K. Ruh, que recomendava que os

    intérpretes, para tornar Eckahrt menos “manipulável”, baseassem suas análises na

    totalidade de um ou mais textos, renunciando à concatenação de trechos

    afastados de seus contextos imediatos3.

    Nesse sentido, o primeiro interesse da obra de J. Casteigt está em explorar

    uma nova aproximação hermenêutica ao texto eckhartiano, não sem paralelos

                                                                                                                             * Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/CNPq. 1 QUINT, J. Die Überlieferung der deutschen Predigten Meister Eckharts, Bonn: Röhrscheid, 1932, p. XVIII. 2 Cf. DEGENHARDT, I. Studien zum Wandel des Eckhartbildes, Leiden: Brill, 1967. 3 RUH, K. Meister Eckhart. Theologe, Prediger, Mystiker, 2a ed., Beck, München, 1989, p. 136s.

  • 23 CASTEIGT,  J.,  Connaissance  et  vérité  chez  Maître  Eckhart  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    com os “complexos de questões e respostas” de A. de Libera4. Nem um

    mosaico, nem uma análise da totalidade de textos a reconstrução de “redes de

    remissões” em torno, no caso, às noções de verdade e conhecimento, que

    articulam a diversidade lingüística da obra eckhartiana em uma série de topoi

    comuns: mesmas citações bíblicas, filosóficas, recorrência de certas metáforas,

    estruturas argumentativas etc. Assim, partindo do Comentário ao evangelho de

    João, a autora percorre um caminho de análises que passa por momentos do

    Prólogo geral à obra tripartida, do Prólogo à obra das proposições, do Comentário ao

    livro do Gênesis, chegando à obra alemã de Eckhart, a seus sermões e ao Livro da

    divina consolação.

    Mas não é apenas pela metodologia que o nexo entre as obras latina e

    alemã de Eckhart é preservado no estudo de J. Casteigt. Antes, sua hipótese

    central busca uma articulação sistemática desses dois momentos, que, de acordo

    com a autora, pode ser encontrada na compreensão eckhartiana de verdade e de

    conhecimento, na medida em que, com efeito, tal compreensão reconheceria o

    conhecimento da verdade desenvolvido nos textos latinas por meio do

    instrumental escolástico no tema-chave dos escritos alemães, o nascimento de

    Deus na alma.

    Após a apresentação de sua hipótese e de um arrazoado da bibliografia, a

    autora se dedica, no primeiro capítulo, à explicação do modo como Eckhart

    articula os legados agostiniano e tomasiano a respeito da noção de verdade e de

    seu critério, elaborando, com isso, a idéia de um critério “interior” de verdade,

    representado paradigmaticamente na expressão “apenas o justo conhece a

    justiça”. Trata-se, assim, de indicar que a verdade do discurso depende de um

    critério mais fundamental que a adequação, isto é, que ela depende da identidade

    entre quem conhece e o que conhece. O critério “interior” da verdade

    apontaria, desse modo, não apenas para um plano puramente noético, mas

    também para um nível ontológico: ele prolongaria a identificação, no ser, do

                                                                                                                             4  Cf.  LIBERA,  A.  de.,  L’art  des  généralités.  Théories  de  l’abstraction,  Paris:  Aubier,  1999,  p.  625  e  

    passim.  

  • 24 CASTEIGT,  J.,  Connaissance  et  vérité  chez  Maître  Eckhart  

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    conhecido ao cognoscente, o que é tratado na obra latina sob o modelo do

    engendramento interior do conhecido no cognoscente e na obra alemã sob o

    modelo do nascimento de Deus na alma.

    O segundo capítulo dedica-se ao esclarecimento da noção de

    conhecimento como engendramento, oferecendo uma imagem bastante

    completa da epistemologia eckhartiana. Inicialmente é analisado o paradigma de

    conhecimento “interior” preconizado por Eckhart, a saber, o conhecimento que

    o Filho, o Cristo, possui do Pai. A partir da análise do comentário a Jo 1, 18, e da

    “rede de remissões” que a partir daí se forma, toma corpo a idéia de que o

    objetivo de Eckhart consiste em explorar o valor epistêmico daquela relação

    tendo em vista sua aplicação à relação entre o homem e Deus, de modo a

    “demonstrar em termos filosóficos a possibilidade de conhecer a Deus como

    princípio segundo a essência e as Pessoas” (p. 85). Para isso, contudo, Eckhart

    precisa dar alguns passos ousados no sentido de uma modificação da famosa

    teoria das species (pp. 123ss.) e, sobretudo, de uma rejeição da exegese

    tradicional que vê a relação unívoca entre o Cristo e o Pai como uma relação sui

    generis, de modo a, interpretando a encarnação como a assunção pelo Cristo da

    natureza humana, poder tomá-la como estruturalmente ao alcance de todos. O

    que se revela, assim, é a possibilidade de uma relação essencial do homem com

    Deus, da qual resulta uma união em ato, que insere os relata numa unidade de

    natureza e que deixa como único espaço para a diferença o âmbito da relação.

    É exatamente esse famoso e controverso modelo eckahrtiano de união em

    ato que é tema do terceiro capítulo. A questão é desenvolvida, por um lado, a

    partir da análise do comentário a Jo 1, 12-13, e, por outro, por meio da

    reconstrução da recepção da teoria aristotélica da percepção e de momentos-

    chave da leitura de Tomás de Aquino do quinto livro da Metafísica. Tudo aqui se

    orienta em direção à construção das bases filosóficas das idéias de que “o ser em

    ato dos correlativos passivo e ativo é único e idêntico segundo a natureza” (p.

    166) e de que a união em ato do cognoscente e do conhecido constitui o

    modelo noético mais adequado à compreensão da união entre o homem, na

  • 25 CASTEIGT,  J.,  Connaissance  et  vérité  chez  Maître  Eckhart  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    medida em que é imago, e Deus. Evidentemente, a idéia de uma união substancial

    entre Deus e a alma, ainda que, de acordo com Eckhart, remeta à noética

    agostiniana, não deixa de despertar a surpresa de seus contemporâneos e as

    estratégias de sua defesa são analisadas na parte final do capítulo. Dessas análises

    se mostra que, ainda que se admita uma união substancial entre Deus e a alma

    (unum in actu), não se deve, para Eckhart, perder de vista a insuperável distinção

    segundo a relação aí em jogo – trata-se, pois, de perceber que a união em ato, a

    identidade de natureza, na medida em que deixa intocada a distinção segundo a

    relação, não conduz a uma completa indistinção dos pólos em questão.

    Se no capítulo precedente a união em ato foi tratada desde a leitura

    eckhartiana das tradições filosófica e teológica, o penúltimo capítulo da obra

    dedica-se à análise daquela mesma idéia em seus aspectos semânticos,

    ontológicos e, por fim, noéticos. O ponto de partida consiste aqui naquilo que

    Eckhart apresenta como o elemento-chave da hermenêutica de sua obra e o

    paradigma concreto daquela união, qual seja, o conhecimento do justo pela

    justiça, do qual decorre a identificação do justo enquanto justo à justiça5. O

    paradigma do justo e da justiça é analisado, nesse contexto, em primeiro lugar,

    por meio de uma interpretação fortemente ontológica dos parônimos, concreto

    e abstrato, aqui em jogo. Tal relação é transposta, assim, de um plano puramente

    semântico para um plano ontológico e se desdobra numa correlação unívoca

    entre aqueles termos imposta pela função desempenhada pelo elemento

    reduplicativo, o inquantum, cuja tarefa seria a de atribuir de maneira unívoca ao

    homem o ser justo e, com isso, facultar sua identificação à própria justiça. Essa

    passagem da semântica à ontologia se estende, por fim, ao plano noético, em que

    a relação entre o justo e a justiça torna-se exemplo da relação entre o intelecto

    humano e o intelecto divino. Trata-se, pois, de, por meio do inquantum, conceber

    a possibilidade de o intelecto humano assimilar-se univocamente ao intelecto

                                                                                                                             5 Pr. 6 [Deutsche Werke I, p. 105 in: MEISTER ECKHART, Die deutschen und lateinischen Werke, hrsg. im Auftrage der Deutschen Forschungsgemeinschaft, Stuttgart: Kohlhammer, 1936-]: “Swer underscheit verstât von gerehticheit und von gerehtem, der verstât allez, daz ich sage” [“Quem compreende a diferença entre a justiça e o justo compreende tudo que eu digo”].

  • 26 CASTEIGT,  J.,  Connaissance  et  vérité  chez  Maître  Eckhart  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    divino e ganhar, com isso, o modo de conhecer que lhe é naturalmente próprio,

    isto é, que lhe é próprio enquanto imago. O que se mostra com isso é a abertura

    de um nível de correlação unívoca, expresso pela idéia de causalidade formal,

    entre os planos de intelectualidade humana e divina, o que, contudo,

    confirmando o resultado do capítulo precedente, não deixa de reservar um lugar

    à diferença, agora expressa na restrição imposta pelo elemento reduplicador:

    apenas inquantum justo, no plano de uma causalidade formal, o justo é a justiça,

    apenas inquantum intelecto o intelecto humano realiza sua natureza de imago.

    Tomados em si, o justo e o intelecto permanecem um “puro nada”, totalmente

    dependentes de uma causa eficiente que lhes sustenha. A união de natureza

    mostra-se, pois, como união segundo a forma e o espaço deixado para a

    diferença funda-se, por sua vez, na distinção que subsiste entre o homem e Deus

    quanto ao poder sustentar seu próprio ser.

    O último capítulo da obra tem por finalidade inserir o quadro noético até

    então traçado no contexto de uma cosmologia da criação. O que se mostra aqui,

    a partir sobretudo do comentário a Gn 1, 3-4, é a imbricação, operada

    basicamente pelas noções de criação pelo Verbo e de causalidade essencial, entre

    causalidade formal e causalidade essencial no evento da criação, o que justifica a

    idéia anteriormente exposta de que ambos estão em jogo tanto na constituição

    humana, testemunha de um “duplo ser”, quanto no ato de união do justo à

    justiça. O que se descobre é, portanto, o modelo intelectualista de criação que

    anima a obra de Eckhart e que representa um desdobramento de uma certa

    tradição filosófica medieval, sobretudo daquela que se forma na esteira do

    pensamento de Dietrich de Freiberg.

    Não há dúvida de que a obra de J. Casteigt tornar-se-á um ponto de

    referimento da literatura sobre Mestre Eckhart. Sua metodologia inovadora,

    baseada na idéia de “redes de remissão”, faculta-lhe uma apresentação

    consistente e extremamente orgânica da tese de que as obras latina e alemã de

    Eckhart confluem na unidade de um projeto único pela transposição teológica da

    tese filosófica do conhecimento da justiça pelo justo em termos de nascimento

  • 27 CASTEIGT,  J.,  Connaissance  et  vérité  chez  Maître  Eckhart  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    de Deus na alma humana e traduz-se numa pormenorizada reconstrução do que

    fundamenta e constitui essa possibilidade de conhecimento. Mas não apenas isso.

    Sobretudo, desde um ponto de vista sistemático, a obra desemboca, em sua

    conclusão, numa breve apreciação dos âmbitos em que se pode mostrar frutífera

    a consideração da posição eckhartiana: articulação entre teologia e filosofia,

    semântica e ontologia, discussões em torno à noção de critério de verdade e em

    torno à natureza e significação do ato de conhecer. Em todos esses âmbitos se

    verifica o interesse e quiçá a originalidade do pensamento eckhartiano e,

    indiretamente, da tradição escolástica como um todo.

  • Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    PERINI-SANTOS. E., La théorie ockhamienne de la connaissance

    évidente, Paris, Vrin, “Sic et non”, 2006, 219p.

    Aurélien Robert* ___________________________________________

    Existem muitos livros sobre Guilherme de Ockham, indo desde monografias cujo

    objetivo é apresentar de maneira sistemática a filosofia do Venerabilis inceptor, a

    estudos mais atentos ao seu nominalismo ou, ainda, à sua teoria da linguagem

    mental. Todavia, um dos elementos indispensáveis ao projeto filosófico de

    Ockham não havia recebido ainda toda a atenção que merecia até o livro de

    Ernesto Perini-Santos: sua teoria da ciência demonstrativa. Trata-se, com efeito,

    de um tema central, em que lógica, semântica e psicologia, mas também

    ontologia, se encontram. O exame atento da teoria da ciência de Ockham

    mostra o quanto seu projeto nominalista estende-se para além da semântica e,

    sobretudo, o quanto nos encontramos na presença de um pensamento

    sistemático.

    Pode-se perguntar pela relação entre o título do livro e a teoria

    ockhamiana da scientia. A resposta encontra-se no termo “evidência”. O estudo

    de Ernesto Perini-Santos permite-nos compreender melhor a concepção

    ockhamiana de ciência, entendida como um assentimento dado a uma proposição

    verdadeira. Essa exigência responde à necessidade de um conhecimento evidente

    de certas proposições, não apenas como atitudes psicológicas e subjetivas, mas

    também como critério de distinções entre diferentes níveis de saber. Mas como

    reduzir a ciência a um assentimento ou a um tipo de assentimento? Quais são os

    mecanismos pelos quais o espírito é conduzido a aceitar como verdadeira e

    como evidente uma proposição, quer se trate de um princípio ou de uma

    conclusão em uma demonstração? Tais são alguns dos numerosos problemas

                                                                                                                             * CNRS, Centre d’Etudes Supérieures de la Renaissance.

  • 29 PERINI-‐SANTOS.  E.,  La  théorie  ockhamienne  de  la  connaissance  évidente  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    abordados nesse livro, sem mencionar os necessários esclarecimentos das

    diferenças entre certeza e evidência, entre fé, opinião e saber.

    Segundo Ockham, a ciência diz respeito a proposições e não aos objetos

    da experiência. Ora, a tipologia ockamiana das proposições e dos silogismos

    demonstrativos é bem conhecida e bem descrita pelos comentadores. Sabemos

    que a Suma de Lógica se organiza segundo um plano que encaminha o leitor da

    natureza dos termos simples às proposições, em seguida das proposições aos

    silogismos e, então, dos silogismos à demonstração. Assim, ainda que Guilherme

    de Ockham não tenha comentado os Segundos Analíticos de Aristóteles, isso não

    o impediu de desenvolver uma verdadeira teoria do silogismo demonstrativo.

    Com efeito, o problema da evidência dos princípios é um dos pontos centrais do

    livro, sendo muito bem tratado por Perini-Santos. Para escapar a certos

    paradoxos, como aquele exposto no Mênon de Platão, que consistia em provar

    que o intelecto não poderia adquirir novos conhecimentos por demonstração,

    Aristóteles desenvolveu uma teoria da origem do conhecimento dos princípios

    em um capítulo que figura entre os mais complicados dos Segundos Analíticos (II,

    19). Os comentadores medievais dessa obra tentaram, a partir de Roberto

    Grosseteste, refinar a resposta do Estagirita. É nisso que, aliás, consiste,

    sublinhemo-lo, um dos interesses do livro de Perini-Santos, que nos apresenta as

    principais balizas da recepção medieval da teoria aristotélica da ciência,

    principalmente em Roberto Grossetest e João Duns Scotus, mas também, de

    maneira menos explorada e com referência a questões mais precisas, em Gilles

    de Roma, Walter Burley ou ainda João de Reading. Esse percurso histórico deixa

    claramente vir à tona senão a ruptura operada por Ockham nessa tradição, ao

    menos sua profunda originalidade.

    Ernesto Perini-Santos desdobra uma primeira particularidade dos

    comentadores medievais, que consiste em interpretar a teoria aristotélica da

    ciência em termos causais. Já em Duns Scotus a causalidade opera tanto no nível

    da origem dos princípios quanto no das relações entre a conclusão e os

    princípios. A conclusão segue casualmente os primeiros princípios. Inscrevendo-

  • 30 PERINI-‐SANTOS.  E.,  La  théorie  ockhamienne  de  la  connaissance  évidente  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    se nessa tendência, Ockham radicalizará essa visão causalista do conhecimento e

    da ciência, descrevendo o processo cognitivo como um todo em termos causais.

    A origem do conhecimento simples, sensível e intelectual é causal, assim como a

    relação entre termos e proposições, a passagem dos princípios às conclusões e,

    last but not least, o nexo entre a proposição e as atitudes proposicionais no

    espírito (crença, dúvida, evidência etc.). Essa sistematicidade realmente faz a

    originalidade de Ockham e pode ser compreendida apenas dentro da economia

    mais global daquilo que foi tradicionalmente chamado seu nominalismo.

    Ernesto Perini-Santos mostra muito bem como processo causal como um

    todo é possibilitado por uma ontologia dos termos e das proposições, e isso,

    segundo Ockham, estrutura o pensamento na linguagem mental. As proposições

    são compostas de termos que são qualidades individuais as quais, enquanto res,

    podem manter relações naturais entre si e, notadamente, relações causais. Numa

    palavra, em termos contemporâneos, diríamos que se trata de uma teoria

    naturalista do espírito que busca reduzir o processo cognitivo como um todo a

    mecanismos naturais e causais. Se o espírito é de início uma tabula rasa, ele pode

    adquirir novos conhecimentos demonstrativamente, isto é, adquirir um novo

    saber, que será verdadeiro e evidente e cuja verdade aparecerá na própria

    evidência a qual, por sua vez, aparece imediatamente ao intelecto quando este

    apreende as proposições. A evidência não é, portanto, somente o efeito do

    verdadeiro, mas serve de indicador do verdadeiro para o intelecto. Tem-se,

    portanto, um saber científico na medida em que se sabe com evidência que uma

    certa proposição é verdadeira. Da formação dos termos simples mentais às

    conclusões conhecidas graças ao conhecimento intelectual dos termos que a

    compõem, o todo da ciência é regulado por uma causalidade que segue o que o

    autor do livro chama ocasionalmente “uma ordem racional”.

    Para compreender como se organiza um tal sistema causal do

    conhecimento e da ciência, seria necessário explicar o resultado desse processo,

    isto é, a natureza e a lógica da evidência no espírito. Ora, o que pode causar a

    evidência de uma proposição? Terá a vontade um papel a desempenhar nesse

  • 31 PERINI-‐SANTOS.  E.,  La  théorie  ockhamienne  de  la  connaissance  évidente  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    mecanismo ou trata-se de uma ação puramente natural de objetos (coisas,

    termos, proposições) sobre o espírito? É difícil apresentar em poucas linhas a

    riqueza da posição ockhamiana e, do mesmo modo, a precisão das análises dos

    textos ockhamianos realizadas por Perini-Santos, mas é possível afirmar que esta

    última propõe, em filigrana, uma verdadeira chave de leitura das teorias

    medievais da ciência e do conhecimento dos princípios. O que aparece

    claramente é que, pouco a pouco, é posta em ação uma verdadeira teoria das

    atitudes proposicionais.

    O livro termina por um curto estudo, que nos parece todavia fundamental,

    acerca da resposta oferecida por João Buridan à teoria causal da evidência de

    Ockham. João Buridan percebeu, de fato, um dos problemas fundamentais de

    uma teoria causal forte como aquela de Ockham. Com efeito, se o processo

    cognitivo segue leis causais, então, uma vez que as premissas sejam conhecidas

    com evidência, o espírito deveria naturalmente deduzir todas as conclusões

    dedutíveis de tais premissas. Ockham rejeita explicitamente essa conseqüência,

    mas a questão que se coloca é a de saber se sua teoria não está obrigada a

    aceitá-la. Mais precisamente, a teoria ockhamiana coloca o problema chamado de

    “o fechamento dedutivo dos sistemas de crença”, segundo a expressão

    consagrada pelo filósofos anglo-saxões: se a conclusão fosse conhecida ao

    mesmo tempo que uma das premissas, então seria forçoso aceitar-se que o

    espírito pode conhecer todas as conclusões que se desdobram de nossas

    crenças. Buridan acrescenta, assim, um certo número de cláusulas que permitem

    o exercício da causalidade natural do espírito. É fato digno de arrependimento

    que essa solução buridaniana, assim como os debates que ela suscitou entre os

    filósofos e teólogos das gerações seguintes não apareçam na versão publicada na

    forma desse livro, sobretudo quando o autor os havia tratado em sua tese, base

    da presente obra, e que nós tivemos o prazer de ler.

    Como não superar o papel de historiador da filosofia ao reler Ockham

    como um tipo de precursor do programa de naturalização do espírito ou da

    lógica das atitudes proposicionais? O método do livro e sua justificação por seu

  • 32 PERINI-‐SANTOS.  E.,  La  théorie  ockhamienne  de  la  connaissance  évidente  

    Traditio.  Caderno  de  resenhas  do  GT  História  da  Filosofia  Medieval  e  a  Recepção  da  Filosofia  Antiga  http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/  ISSN:  2176-‐8765  Vol.  1  (2009)  

    autor são, com relação a esse ponto, exemplares. Se Ernesto Perini-Santos não

    pretende propor uma reconstrução analítica, no sentido como a entende Claude

    Panaccio, o método e os resultados apresentados nesse livro o filiam

    incontestavelmente a essa família historiográfica. Mas seu trabalho mescla

    reflexões históricas aos elementos mais analíticos, alia a erudição e a escolha

    sintética de textos, restitui o latim na mesma medida em que reformula certos

    elementos em uma linguagem mais contemporânea e lógica. Parece-me que esse

    equilíbrio, raramente alcançado, aqui se concretiza; e disso se segue que não se

    encontrará grande coisa a retrucar às demonstrações que se lerá.

    Tradução de Rodrigo Guerizoli (UFRJ)/CNPq

    AUGUSTINE. Augustine: Political WritingsBERTOLACCI, A. The Reception of Aristotle’s Metaphysics in Avicenna’s Kitab al-SifaBIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoirCASTEIGT, J. Connaissance et vérité chez Maître EckhartPERINI-SANTOS. E., La théorie ockhamienne de la connaissance