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Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
AUGUSTINE. Augustine: Political Writings. ATKINS, E. M.; DODARO, R. J.
(org.), Cambridge: Cambridge University Press, “Cambridge Texts
in the History of Political Thought”, 2001, li+299 p.
Luiz Marcos da Silva Filho* ___________________________________________
Augustine: Political Writings, livro da coleção Cambridge Texts in the History of
Political Thought, organizada por Geuss e Skinner, constitui-se de trinta e cinco
epístolas e sermões de Agostinho selecionados por Atkins e Dodaro.
Inevitavelmente, a seleção guarda certa arbitrariedade, mas que sinaliza diligência
na escolha de algumas obras entre centenas de missivas e prédicas. Além disso,
os próprios editores observam na introdução – didática, instrutiva e cônscia de
problemas que permeiam o agostinianismo e agostinismo políticos – que
Agostinho não pretendeu desenvolver uma “teoria política sistemática”, e nem é
possível considerar seus textos apenas “escritos políticos”. Metafísica, ontologia,
lógica, ética, retórica, exegese bíblica atravessam talvez todas as obras de
Agostinho, e se aceitarmos, com Gilson, que nelas há certo “cristocentrismo”,
então poderíamos falar de “escritos teológico-políticos” em relação ao livro
examinado.
As obras selecionadas, de toda forma, possuem teor político e são
devidamente dispostas pelos editores em temas que estruturam o sumário:
“Cristianismo e Cidadania”, “Bispos e Autoridades Civis”, “Autoridades
Judiciais”, “A Controvérsia Donatista”, “Guerra e Paz”. Conforme padrão das
edições dos Cambridge Texts in the History of Political Thought, o leitor encontra
aporte em inúmeras seções do livro. Além da esclarecedora “Introdução”, as
“Notas do tradutor” anunciam desde o início zelosa tradução das obras
agostinianas na medida em que explicam os significados e opções em língua
* Doutorando no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP).
2 AUGUSTINE. Augustine: Political Writings
Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
inglesa de inúmeros termos latinos prenhes de conteúdo: res publica, iustitia,
caritas, amor, dilectio, pietas, salus, entre outros. Há também calendário histórico-
biográfico bastante informativo que associa eventos políticos, sociais e religiosos
à produção letrada de Agostinho. Por meio dele é possível, por exemplo,
conferir quais epístolas e sermões foram escritos antes e durante a redação d’A
cidade de Deus, bem como questionar por que Agostinho nada escreveu sobre
alguns acontecimentos políticos, como a divisão do Império entre Ocidente e
Oriente imediatamente após a morte de Teodósio I.
Não podemos deixar de mencionar as longas listas de bibliografia atualizada
referentes às biografias sobre Agostinho, à “Vida social e política na Antiguidade
Tardia romana” e, sobretudo, ao “Pensamento político de Agostinho”. Ao fim do
livro, ainda são dispostas “Notas biográficas” com breve explicação sobre os
principais personagens e interlocutores citados por Agostinho. Nelas
encontramos, por exemplo, elucidação sobre cada um dos quatro Donatos
envolvidos na controvérsia donatista, por vezes confundidos entre si. As “Notas
do texto” são fartas, sendo tanto de referências como explicativas, e repletas de
indicações bibliográficas sobre questões pontuais. Por fim, existem índices de
nomes próprios e lugares e de tópicos.
Com relação ao conteúdo do livro, uma das grandes virtudes dos escritos
é conceder aos estudiosos material selecionado para desenvolver tarefa que
Marrou dizia considerar a mais urgente e útil nas discussões agostinianas, qual
seja: interpretar a noção central de cidade1. Em cada uma das epístolas e
sermões de Augustine: Political Writings, encontramos o conceito de civitas
(expresso por vezes como res publica) em elaboração, e subordinado a ele estão
todas as questões discutidas. Em síntese, Agostinho desenvolve um conceito a-
histórico, imaterial e metafísico de civitas: Roma não mais é o modelo por
excelência de cidade e as res gestae deixam de ser o fundamento da res publica.
Para dizer pouco, isso exige reconfiguração da idéia romana de direito, de pátria,
1 MARROU, H-I. “La théologie de l’histoire”, Augustinus Magister, III, Paris, 1954, p. 193-212, aqui p. 198.
3 AUGUSTINE. Augustine: Political Writings
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de virtudes cívicas, de poder e autoridade, de guerra justa, entre outras que
Agostinho não deixa intactas nas missivas e prédicas.
Não por acaso, a Epístola 138, já bastante comentada pela literatura, mas
não esgotada, está presente no volume. Nessa epístola, o autor antecipa o que,
anos depois, desenvolveu n’A cidade de Deus: a refutação e redefinição dos
conceitos de populus e res publica de Cícero. Vale dizer que nos escritos
selecionados o senador romano é um dos autores mais mobilizado por
Agostinho (cf. Epístolas 103, 104, 138, 155, e aquelas em que a referência não é
nominal: 90, 91, 153, 189 etc.). Isso quer dizer, como A cidade de Deus também
atesta, que o modelo de civitas partilhado por muitos de seus interlocutores e
contra o qual Agostinho se volta é o ciceroniano. É nesse sentido que aqui e ali o
bispo de Hipona precisa dilapidar a concepção de Roma como “cidade eterna” e
explicar o que são as cidades terrena e celeste para dizer quais juízos e condutas
morais e políticos o cidadão deve ter ao longo da peregrinatio (cf. Sermão sobre o
saque da urbe de Roma, Epístolas 90, 91, 103, 104).
Por conseqüência, é fundamental vislumbrar o empenho de Agostinho em
redefinir conceito de civitas para que seja compreensível por que ele tomou parte
em tantas discussões políticas, a tal ponto de reclamar a máquina imperial em
função de interesses religiosos com cada vez mais vigor ao longo dos anos (cf.
Sermões 13, 302, Epístolas 133, 134, 153 e todo material referente à controvérsia
donatista). Diferentemente de outros autores cristãos da Antiguidade, Agostinho
não possui uma apolitia porque foi capaz de “aditar à noção cristã de uma vida
eterna a idéia de uma civitas futura, uma Civitas Dei, onde os homens mesmo após
a morte continuariam a viver em uma comunidade. Sem essa reformulação dos
pensamentos cristãos por meio de Agostinho, a política cristã poderia ter
permanecido [...] uma contradição em termos”2.
Delimitar o conceito de civitas a partir de fontes precisas ainda concede
oportunidade para estabelecer, para além d’A cidade de Deus, em que medida ele
implica certa idéia de teocracia – que atravessou, aliás, o debate aberto por 2 ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Trad. Barbosa, M. W. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 107.
4 AUGUSTINE. Augustine: Political Writings
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Arquillière sobre o agostinismo político, freqüentemente confundido com o
agostinianismo. É principalmente segundo A cidade de Deus, epístolas (como a
138) e sermões que Gilson diz que “embora ele [Agostinho] jamais tenha
formulado o princípio de um governo teocrático, a idéia não é inconciliável com
sua doutrina, pois, se o ideal da Cidade de Deus não implica essa idéia, não a
exclui”3.
De fato, ainda que o bispo de Hipona nunca tenha expresso com todas as
letras uma forma de governo para assunção do Império, sua interferência
episcopal em questões jurídicas (Epístolas 90, 91, 103, 104), militares (Epístolas
189, 220, 229), sociais (Sermão 302) e outras pertinentes ao Império, evidenciam
que magistrados e políticos deveriam se portar como cidadãos da cidade celeste,
o que aponta para fins imperiais religiosos, para não falar teocráticos. “Agostinho
engajou-se nessa direção (a) ao admitir a legitimidade do recurso ao exército
secular contra os heréticos; (b) ao impor ao Estado, como um dever, subordinar-
se aos fins da Igreja, que são os fins da Cidade de Deus”4.
Em suma, Augustine: Political Writings se distingue como uma das maiores
contribuições para a reflexão sobre a política em Agostinho. Ao lado de ótimas
edições de De civitate dei, como a publicada em 1998 também pelos Cambridge
Texts in the History of Political Thought, a atenção para epístolas e sermões de teor
político revela um Agostinho engajado em negócios públicos e distante do otium
que procurou em Cassicíaco e de que até mesmo um autor de tratados políticos
pode usufruir. O leitor dos “escritos políticos”, na verdade, encontra pouca
teoria política, mas flagra propriamente política imperial e religiosa,
desdobramentos práticos do que se divisa em teoria n’A cidade de Deus. Assim,
Agostinho não seria apenas “o maior teórico da política cristã”5, mas também um
dos maiores políticos cristãos.
3 GILSON, É. Introdução ao estudo de santo Agostinho. Trad. Ayoub, C. N. A. São Paulo: Discurso Editorial/Paulus, 2006, p. 346. 4 Ibidem. 5 ARENDT, H. Op. cit., p. 107.
Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
BERTOLACCI, A. The Reception of Aristotle’s Metaphysics in Avicenna’s
Kitab al-Sifa. A Milestone of Western Metaphysical Thought, Leiden:
Bril, “Islamic Philosophy, Theology and Science” LXIII, 2006, xvii+675p.
Alfredo Storck*
___________________________________________
“Reforma e abandono, continuidade e ruptura, tradição e inovação: essa dupla atitude de Avicena com relação à Metafísica de Aristóteles é a essência de sua ‘interpretação’ dessa obra.” (p. ix)
A frase acima exprime o diagnóstico do A. face ao modo aviceniano de ler a
Metafísica de Aristóteles. De fato, a história das pretensões da metafísica de
firmar-se como disciplina teórica esteve por muito tempo ligada à interpretação
da obra aristotélica. Porém, o período que vai do aparecimento do texto
fundador até o seu completo abandono por Descartes e Hume, não foi
totalmente livre de tribulações. Desde cedo, as obscuridades e mesmo as
inconsistências presentes no livro de Aristóteles fizeram-se observar e
demandaram a intervenção de mais de um comentador. Provavelmente o mais
importante e radical dos intérpretes da Metafísica tenha sido Avicena.
Conhecedor de boa parte dos comentários gregos tardios disponíveis em árabe,
bem como das diferentes correntes interpretativas que se desenvolveram no
mundo muçulmano, Avicena inova ao perguntar se aquela disciplina pode
satisfazer os critérios de cientificidade apresentados pelo próprio Aristóteles nos
Segundos Analíticos. A reposta de Avicena já era conhecida dos medievistas: na
forma em que Aristóteles deixou a disciplina, ela é impossível, pois é
contraditória. É preciso reestruturá-la e colocar em evidência os elementos que
* Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/CNPq.
6 BERTOLACCI, A. The Reception of Aristotle’s Metaphysics in Avicenna’s Kitab al-‐Sifa
Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
caracterizam sua cientificidade. O que nos era, entretanto, muito menos
conhecido e que constitui o mérito e a originalidade de Bertolacci são os
detalhes dessa reestruturação.
Não é raro encontrar em Avicena indicações sobre a necessidade de
reorganizar os escritos de Aristóteles de modo a que eles obtenham uma forma
rigorosa ou axiomática. A Física seria, segundo Avicena, um bom exemplo disso,
pois o filósofo grego teria deixado lado a lado os problemas relativos aos
fundamentos da disciplina (e que deveriam ser tratados na metafísica) e aqueles
que constituem sua atividade científica propriamente dita. No caso da metafísica,
a intervenção deveria ser ainda maior, uma vez que, no estágio deixado por
Aristóteles, haveria diversas descrições do objeto de investigação da disciplina,
apontando, assim, para diferentes projetos inconsistentes entre si. Analisar o
modo como essa reestruturação é operada constitui um dos pontos centrais do
livro de Bertolacci.
Após uma primeira parte (capítulos 1 a 3) na qual são analisadas as
diversas traduções árabes da metafísica usadas por Avicena (capítulo 1) e as
influências de pensadores gregos e árabes (notadamente Amônio e al-Farabi), o
A. examina (capítulos 4 a 7) a nova estrutura da ciência metafísica. O capítulo 4
mostra como a tensão entre ontologia e teologia no seio da metafísica não
aparece como problema para os comentadores gregos, v.g. Teofrasto,
Alexandre, Temístio, Siriano, Amônio e Asclépio. Ela será o resultado da maneira
como al-Kindi interpreta a teologia aristotélica e das fortes reações de al-Farabi,
o que levará, conforme mostra o capítulo 5, Avicena a colocá-la no início de sua
obra. O capítulo 6 aborda as razões que teriam conduzido o pensador persa a
conferir tamanha importância aos Segundos Analíticos em sua leitura da Metafísica.
De fato, os especialistas contemporâneos de Aristóteles normalmente sustentam
que a Física e a Metafísica não são tratados científicos, mas versam sobre os
fundamentos da ciência. Ora, se pareceu importante a Avicena não aplicar o
método dialético à metafísica, isso deveu-se tanto aos (poucos) textos em que
Aristóteles (em sua tradução árabe) afirma que o método não é dialético (e.g.,
7 BERTOLACCI, A. The Reception of Aristotle’s Metaphysics in Avicenna’s Kitab al-‐Sifa
Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
1004b22-26), quanto à influência de Alexandre, al-Kindi e al-Farabi. O capítulo 7
versa sobre a relação da metafísica com as demais ciências, ficando claro o papel
fundacional atribuído por Avicena àquela disciplina. Em uma palavra, cabe à
metafísica demonstrar os princípios das demais ciências.
A terceira parte da obra versa sobre o conteúdo da disciplina. No
capítulo 8, é examinada a principal fonte de Avicena, ou seja, a própria Metafísica.
O capítulo identifica as diversas traduções árabes empregadas por Avicena,
classifica os diversos modos de citação, analisa e explica cada uma delas,
dividindo-as em explícitas determinadas, explícitas indeterminadas e implícitas. O
resultado é oferecido em um quadro bastante útil e instrutivo. O capítulo 9 põe
em evidência “a principal fonte da concepção de Avicena acerca da metafísica, o
livro Gama”, por meio da análise das citações dessa obra. As citações
concentram-se no primeiro tratado, justamente aquele dedicado a tratar da
delimitação da estrutura da disciplina. São citações tiradas diretamente das
traduções árabes e sem sofrer qualquer mediação da parte de outros autores.
Essas citações revelam ainda que a estrutura do primeiro tratado aviceniano
segue a seqüência de temas de Gama: começa com uma discussão do “existente
qua existente” como objeto da metafísica e termina com um tratamento dos
axiomas. Ou seja, é Gama que servirá de fio condutor para adequar a estrutura
da metafísica aos critérios de cientificidade dos Segundos Analíticos. O capítulo 10
examina a atitude de Avicena frente ao livro B, ao passo que o capítulo 11
investiga as demais fontes de Avicena.
“Uma edição crítica completa da Ilahiyyat é, sem dúvida, uma aspiração
maior nos estudos avicenianos” (p. 484). Essa frase não apenas abre o Apêndice A
da obra de Bertolacci, como também sugere para o leitor o tipo de resultado
alcançado e o método empregado. A fina análise filológica da tradição manuscrita
árabe constitui indubitavelmente um dos pontos de destaque desse livro e leva
diretamente à conclusão da necessidade de uma nova edição da obra aviceniana.
De fato, a edição padrão da Metafísica publicada no Cairo (= C) em 1960 é
baseada em apenas 5 dos mais de 70 manuscritos conhecidos. Ela não segue os
8 BERTOLACCI, A. The Reception of Aristotle’s Metaphysics in Avicenna’s Kitab al-‐Sifa
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padrões de cientificidade atualmente exigidos de uma edição crítica, não
apresentando, vg., um stemma codicum ou uma descrição do método empregado.
Mas a real debilidade da edição C é tornada patente pelas quase 70 páginas de
correções sugeridas pelo A. como resultado da comparação de C com outros
manuscritos, versões publicadas sob outras bases e mesmo outras obras de
Avicena. Mais 5 apêndices completam o estudo e oferecem o índice dos autores
e obras citadas por Avicena, uma apresentação de suas das principais obras
metafísicas em ordem cronológica, a análise das expressões usadas para nomear
a metafísica, o estilo em geral da Shifa, e, por fim, a terminologia da
“propriedade” na obra de Avicena.
Em suma, trata-se de uma obra de fôlego que disseca filologicamente a
maneira como Avicena reinterpreta a Metafísica de Aristóteles. Investigação de
grande erudição e rigor científico, já é considerada pelos especialistas uma fonte
primária para os estudos avicenianos. Saliente-se, por fim, que o A. publicou,
ainda como resultado desse trabalho, uma tradução italiana com revisão do texto
árabe (AVICENNA. Libro della guarigione. Scienza delle cose divine, Torino: UTET,
2007) a qual permitirá ao leitor um mais fácil manuseio da imensa massa de novas
informações produzidas durante a elaboração da pesquisa que deu origem obra
aqui resenhada.
Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”, Paris: Vrin,
“Conférences Pierre Abélard”, 2008, 192p.
Ana Rieger Schmidt* ___________________________________________
Em 7 de março de 1277, o bispo de Paris, Étienne Tempier, proibiu o ensino de
219 teses filosóficas que eram objeto de discussão nas universidades parisienses.
Essa condenação tem recebido grande atenção dos historiadores a muitos
séculos, os quais investigam as motivações e os efeitos para a prática filosófica na
Idade média. No prólogo de seu texto, Tempier acusa os mestres da faculdade
das artes de camuflarem teses heréticas recorrendo à doutrina da “dupla
verdade”, a qual sustentaria que existem dois tipos de verdades incompatíveis: a
verdade da razão, ou dos filósofos, obtida através de raciocínio e argumentação;
e a verdade da fé, obtida por revelação. Luca Bianchi pretende investigar a
presença da expressão duplex veritas nesse texto que tanto marcou o ensino e a
prática da filosofia durante a Idade Média.
Os primeiros dois capítulos procuram traçar as referências textuais que
evocam a doutrina da dupla verdade. O ponto de partida do A. está em apreciar
a afirmação feita por dois historiadores, Daniel Hoffmann no final do século XVII,
e Pierre Bayle no século XVIII, a qual atribui a doutrina a Lutero. Segundo Bayle,
Lutero, na disputa de 1539, sustentaria que uma mesma tese pode ser verdadeira
e falsa – verdadeira em Teologia e falsa em Filosofia, ou mesmo verdadeira em
Moral e falsa em Física. Seria necessário evitar a identidade entre verdade
teológica e verdade filosófica, sob o risco de submeter a primeira à segunda. Em
sua tese n. 41, Lutero faz alusão à universidade parisiense, dizendo que seu meio
teria alimentado o erro de identificar as duas verdades, chamando em
consequência a Sorbonne de mater errorum, ou “mãe dos erros”.
* Doutoranda na Université de Paris I, bolsista CAPES.
10 BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”
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Com efeito, em seu primeiro capítulo o A. propõe explicitar os motivos
que teriam levado Lutero a considerar essa tese como uma marca da
Universidade de Paris. Para tanto prefere, ao invés de resgatar as fontes precisas
de Lutero, esclarecer como o princípio segundo o qual “a mesma coisa é
verdadeira em filosofia e em teologia” se difundiu em Paris. Isso leva o autor a
explorar a concepção de Henrique de Gand sobre as relações entre fé e razão.
Em sua Suma, questão 13 artigo 7, Henrique pretende sustentar a coexistência
da teologia e da filosofia. Para tanto, vale-se da autoridade aristotélica e da tese
segundo a qual os princípios do ser e os princípios do conhecimento são os
mesmos (Metafísica, 993b 30-31), bem como do princípio de não contradição,
segundo o qual uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o
mesmo aspecto (Metafísica, Gama 4). Somado a isso, observa que a razão natural,
se é reta e não pretende ultrapassar as suas limitações, não pode emitir juízos
contrários à teologia. As teses filosóficas são fixadas por seres falíveis e não
devem ser identificadas com a própria disciplina. Isso permite a Henrique
concluir que os “verdadeiros filósofos, cujas teses são realmente constatadas nas
coisas”, jamais poderiam contradizer a revelação divina. A “duplicidade” de
verdades é assim evitada. A verdade é una. Henrique de Gand e tantos outros
procuraram harmonizar o saber advindo da razão com o advindo da palavra
divina recorrendo ao caráter limitado do primeiro. O A. refere-se ainda aos
esforços de Marsílio de Inghen, Boécio de Dácia e Gilherme de Baudin em
suprimir o mesmo conflito. Boécio, por exemplo, teria feito uma distinção entre
aquilo que é verdadeiro absolutamente, segundo os ensinamentos da revelação, e
aquilo que é verdadeiro relativamente, no domínio das ciências particulares.
A intervenção do bispo Tempier tinha como objetivo frear a autonomia da
pesquisa filosófica e submetê-la à soberania da teologia. No entanto, é bem
verdade que havia duas maneiras de conceber essa relação. Por um lado, a
soberania da teologia foi tomada como excludente, de modo que haveria uma
alteridade entre a razão mundana e a fé cristã. Essa posição, sublinha o A., exclui
definitivamente a possibilidade da “dupla verdade”. Por outro lado, uma posição
11 BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”
Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
menos radical tomava os domínios da fé e da ciência como inclusivos e era
marcada pelo esforço em compatibilizar os resultados de uma com os da outra.
Apesar da dura censura representada pela condenação de 1277, esses dois
modelos coexistiam nos meios acadêmicos. Lendo tanto a oposição dramática
entre filosofia e teologia, quanto as posições análogas à de Henrique de Gand,
percebemos por que Lutero endereçou o erro de identificar a verdade cristã
com a verdade racional à Universidade de Paris.
Após apresentar a hipótese de Bayer e Hoffmann e identificar a origem da
crítica de Lutero aos “parisienses”, o A. permite-se indagar se é possível traçar
as origens da doutrina da dupla verdade até a Idade Média, tema que nos conduz
ao segundo capítulo. O A. adverte, de início, que procurar sinais da doutrina da
dupla verdade através da pesquisa das ocorrências da expressão duplex veritas é
inútil, pois a expressão, além de pouquíssimo frequente, é muitas vezes
empregada com propósitos completamente diferentes ao da doutrina em
questão. Tal é o caso, por exemplo, de Boaventura e Tomás de Aquino, ambos
defensores da unicide da verdade. A única ocorrência da expressão duplex veritas
em um sentido próximo ao da doutrina ocorre no contexto das disputas entre
Pedro de Rivo e Henrique de Zomeren acerca do problema dos futuros
contingentes. Segundo o célebre problema herdado de Aristóteles, se uma
proposição que descreve um evento futuro contingente – seja, por exemplo,
uma batalha naval - é verdadeira antes que o evento se realize, parece seguir-se
que esse evento não pode não ocorrer e que, portanto, ocorrerá
necessariamente; se falso, tal evento não pode ocorrer, isto é, necessariamente
não ocorrerá. Assim, os eventos futuros já estão logicamente determinados, pois
estão determinados quanto ao seu valor de verdade – o que elimina a
contingência dos eventos futuros. Tal resultado é incompatível com a evidência
de contingência no mundo, notadamente das ações livres dos homens. Uma
estratégia visada pelos comentadores do De Interpretatione era a de suspender os
valores de verdade para proposições desse tipo “problemático”. Proposições
futuras em matéria contingente seriam, nesse sentido, indeterminadas. Contudo,
12 BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”
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essa solução cria claros problemas aos teólogos: por um lado, eles têm de
explicar como Deus possui conhecimento de proposições sem valor de verdade;
por outro lado, como as profecias podem ser admitidas como verdadeiras,
mesmo que não tenham sido ainda atualizadas.
O A. faz então referência ao trabalho de Chris Schabel1 sobre a solução de
Pedro Aureoli ao problema mencionado e sua repercussão entre os teólogos
parisienses do século XIV, cujo epílogo trata da recepção da disputa em Louvain.
Rivo sustenta que é possível harmonizar a solução que ele atribui a Aristóteles e
a Epicuro (e mesma de Aureoli), segundo a qual as proposições futuras em
matéria contingente são indeterminadas, à tese segundo a qual as profecias são
verdadeiras. As profecias seriam verdadeiras segunda a verdade não-criada;
enquanto que as proposições que descrevem eventos futuros contingentes não
podem ser verdadeiras segundo a verdade criada. A ocorrência que interessa ao
A. está na crítica que Guilherme Baudin endereça à posição de Rivo. Segundo
ele, Rivo teria submetido seu intelecto aos gentios ao afirmar que certas
proposições não são verdadeiras segundo a filosofia pagã, ainda que sejam
verdadeiras segundo a fé.
Encontramos finalmente aqui um teólogo acusado de sustentar a doutrina
da dupla verdade dois séculos depois da condenação de 1277 e de endereçá-la
aos que aderiram a teses anti-crsitãs aristotélicas e averroístas. Baseando-se
nesse achado, o A. ataca a afirmação feita por Van Steenberghen em seu artigo
sobre o tema da dupla verdade2, segundo a qual ninguém teria sustentado a
duplex veritas durante a Idade Média.
Tendo finalmente encontrado uma fonte medieval para doutrina da dupla
verdade, o A. passa a estudar como as autoridades eclesiásticas procuraram
1 SCHABEL, C. Theology at Paris -‐ 1316-‐1345: Peter Auriol and the problem of divine
foreknowledge and future contingents, Hants: Ashgate Publishing Press, “Ashgate Studies in Medieval Philosophy “, 2000. 2 VAN STEENBERGHEN, F. “Une Légende tenace: la théorie de la double vérité”. In: Introduction à l’étude de la philosophie médiévale. Louvain/Paris: Publication Universitaires/Béatrice-‐
Nauwelaerts, 1974.
13 BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”
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“supervisionar” as posições dos principais filósofos diante dos argumentos cujas
conclusões são contrárias aos artigos de fé - os argumentos contra fidem. Os dois
últimos capítulos são dedicados aos estatutos de 1272 e 1513 e seus efeitos nas
universidades européias.
Tomás de Aquino sustenta, em seu comentário ao De Trinitate de Boécio,
que opiniões filosóficas contrárias à fé cristã não pertencem à verdadeira filosofia
e podem ser refutadas pelos próprios instrumentos da filosofia, mostrando que
as conclusão de tais argumentos não são necessárias, mas apenas resultados
possíveis ou prováveis. Dado que as premissas dos argumentos contra fidem são
frutos da razão humana, elas têm um alcance limitado. Entretanto, haveria uma
diferença, (sustentada, dentre outros, por Caetano), entre saber que os
argumentos contrários à fé são errôneos e saber efetivamente refutá-los.
Muito menos sutis são as diretrizes do estatuto de 1272: antes ainda da
condenação das teses que ameaçavam a fé cristã em 1277, foi elaborado em 1º
de abril de 1272 o Estatuto Parisiense, o qual oferecia diretrizes específicas de
como tratar as questões que envolviam artigos de fé e argumentos filosóficos. Os
teólogos, durante o estudo de um texto em classe, eram convidados a refutar
todos os argumentos que ameaçassem a fé. Como tal tarefa nem sempre era
fácil, eles estariam autorizados a simplesmente declarar falsas as suas conclusões.
O A. insiste sobre a importância histórica deste estatuto no ensino de filosofia na
Universidade de Paris e seu papel na vida intelectual da Idade Média tardia. Não
se dedica, porém, a examinar o conteúdo das condenações, mas apenas a relação
da verdade com a filosofia e as obrigações dos teólogos para com os preceitos
cristãos, cuja validade era inquestionável. O efeito esperado da censura de 1272
era de neutralizar as opiniões filosóficas incompatíveis com a fé cristã. No
entanto, o resultado foi consideravelmente abrandado e no início XVI já não era
mais respeitado em Paris. É impossível negar, todavia, a marcante influência do
estatuto nos séculos XIV e XV, não somente em Paris, mas em outras
universidades européias (como Viena e Heidelberg).
14 BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”
Traditio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN: 2176-‐8765 Vol. 1 (2009)
O quarto e último capítulo leva-nos a considerar o caso - não menos
importante - das universidades italianas, nas quais a questão das relações entre
verdade filosófica e verdade revelada tomou um rumo muito diferente do
francês. Na Itália dos séculos XV e XVI, o problema da refutação dos
argumentos contra fidem toma uma dimensão mais acentuada. É neste momento,
diz o A., que a atenção das autoridades eclesiásticas será especialmente atraída e
que medidas rigorosas serão tomadas para limitar a liberdade do ensinamento
filosófico, “retomando e desenvolvendo a política iniciada em Paris com o
estatuto de 1272”.
Em 19 de dezembro de 1513 e no contexto da problemática ao redor da
imortalidade da alma, o concílio de Latrão V aprova a constituição Apostolici
Regiminis, a qual afirma que a alma do homem é verdadeiramente e por ela
mesma forma do corpo, condenando simultaneamente as interpretações
averroísta e alexandrista. O ponto que interessa ao A. diz respeito à proibição
expressa de ensinar a unidade e a mortalidade da alma seguindo os argumentos
dos filósofos, valendo-se do princípio segundo o qual “uma verdade não pode
contradizer outra verdade”, ou seja, não pode haver uma verdade incompatível
às verdades adquiridas pela fé. Todas as afirmações contrárias deveriam ser
imediatamente declaradas falsas e aquele que as difundisse seria declarado
herege. As diferentes seções do Apostolici Regiminis detalhavam as medidas a
serem tomadas com relação ao ensino de filosofia a mesmo à organização dos
estudos. No que toca aos professores universitários, quando ensinassem os
argumentos filosóficos contra fidem, deveriam se esforçar em mostrar as suas
falhas, tomando uma posição claramente pro fidem e manifestar a verdade cristã.
Tais decretos constituem uma grande mudança se comparados aos de
1272: não se trata de um conjunto de indicações de “autolimitação” dos
teólogos, mas de um conjunto de regras precisas e rígidas impostas às
universidades. Um professor que não as respeitasse corria sérios riscos. Mesmo
assim, nota o A., a falta de instrumentos eficazes de controle possibilitou que
estas regras fossem frequentemente contrariadas. É um consenso entre os
15 BIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”
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historiadores que o Apostolici Regiminis não foi bem sucedido ao impor a
concórdia entre filosofia e teologia, assim como barrar a difusão das teses não
ortodoxas nas universidades italianas, exceto por efetivamente levar muitos
teólogos a não revelarem ou mesmo a mudarem suas opiniões em público.
Vimos que Tomás defende a unicide da verdade e a limitação da razão
diante da fé, assim como a possibilidade de refutar os argumentos filosóficos
cujas conclusões são contrárias à fé, reconhecendo seu próprio erro. Segundo
Bianchi, a constituição Apostolici Regiminis reflete uma concepção de verdade
escolástica e tomista. Ela endossa a relação entre razão e fé tal como formulada
por Tomás e largamente difundida na renascença.
O A. encerra seu texto mostrando a influência da temática na condenação
de 1633, cuja vítima foi Galileu quando submetido ao tribunal da inquisição.
Melchior Inchofer teria sido o então responsável pela legitimação doutrinal da
condenação de Galileu afirmando que em toda discussão filosófica deve-se
observar as disposições do decreto de 1513, a saber, proclamar a verdade
ensinada pela fé e refutar os argumentos dos filósofos. Ele acusa Galileu de
distinguir entre verdade filosófica e verdade teológica com vistas a defender o
sistema astronômico de Copérnico – considerado, sabe-se bem, incompatível
com a religião, sendo o geocentrismo considerado um artigo de fé.
Ao final da leitura dessa obra, somos levados a concluir pelo ganho de
informações acerca da origem de uma noção que por tempos dividiu os
especialistas. O mérito do A. está em trazer à tona textos não antes
considerados e que apontam para os mecanismos de formação e difusão de uma
idéia central em tantos debates históricos.
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DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir, Paris, Vrin, “Sic et
non”, 2007, 474p.
Alfredo Storck* ___________________________________________
Essa obra retoma parcialmente os resultados de uma tese de doutorado
defendida em 2005 na Ecole Pratique des Hautes Etudes, sob a orientação de
Olivier Boulnois e que tinha por título: Les Seconds Analytiques au XIIIe siècle et la
théorie de la connaissance de Jean Duns Scot. A versão publicada contém apenas a
parte dedicada a Duns Scotus.
Como o A. deixa claro desde as primeiras linhas, a teoria do saber de
Duns Scotus foi concebida para resolver problemas teológicos, a saber, aqueles
relativos à possibilidade e aos limites do conhecimento humano, à natureza dos
princípios do conhecimento e seu objeto, à estrutura e fundamentos das ciências
específicas e, por fim, à possibilidade mesma da metafísica. Todas essas questões
são apresentadas por Scotus em um quadro marcado, em um duplo sentido, pela
teologia. Em primeiro lugar, em um sentido histórico, pois foi a polêmica acerca
do status de cientificidade da teologia no século XIII que impôs o exame das
condições de possibilidade do conhecimento humano. O A. mostra-nos como,
por um gesto revolucionário, Henrique de Gand vai romper com a história
interna da metafísica de inspiração aristotélica e colocar, no início de sua Suma,
uma série de artigos que desempenharão o papel de verdadeira introdução
epistemológica à obra. Ora, as teses defendidas por Henrique são rejeitadas por
Scotus que o acusará de sustentar uma teoria da dupla verdade a qual conduziria
ao ceticismo. Por óbvio, não se trata aqui da famosa teoria da dupla verdade
atribuída, por algum tempo, a Averróis, mas de uma outra, própria a Henrique,
* Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)/CNPq.
17 DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir
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segundo a qual o conhecimento obtido por abstração produz uma verdade
distinta e inferior à verdade pura e indubitável da revelação. O A. examina tanto
as teses de Henrique quanto as de Scotus para mostrar como o Doutor Sutil será
conduzido a redefinir o conhecimento científico de um modo puramente
abstrativo. Estamos assim face a uma das particularidades desse livro: a
preocupação de apresentar, sempre de modo preciso, claro e em seus
elementos centrais, as teorias às quais Scotus se opõe. Seremos freqüente e
agradavelmente supreendidos pelo poder de análise do A. e por sua capacidade
de resumir em poucas palavras teorias bastante complexas.
O segundo sentido no qual o ponto de partida de Scotus mostra-se
profundamente teológico diz respeito a sua teoria da alma humana. No estado
presente, o intelecto humano é capaz de um conhecimento exclusivamente
abstrativo, ou seja, dependente dos sentidos e da imaginação. Essa dependência
não faz, todavia, parte da natureza do intelecto, mas unicamente de sua condição
atual, pois a alma humana é naturalmente destinada à visão beatífica. A teologia
do conhecimento distinguirá, assim, entre: 1) as condições de um intelecto
enquanto tal; 2) os limites do conhecimento de um intelecto finito; e 3) os
limites do conhecimento do intelecto humano, ou seja, marcado pelo pecado
original e que é sua condição atual. Não distinguir os três níveis e fazer, como o
faz Tomás de Aquino, do ser material o objeto natural do intelecto é o mesmo
que falar como filósofo. Ora, Duns Scotus pretende exprimir-se como teólogo.
É, portanto, por meio de premissas teológicas que começa a sua teoria do saber.
Suas premissas são a expressão daquilo que o A. denomina “as três experiências
fenomenológicas”, a saber: a distinção entre o conhecimento intuitivo e
abstrativo; a ausência atual de conhecimento intuitivo do singular; e a tese
segundo a qual todo conhecimento presente resulta da apreensão de
propriedades comuns ou acidentais. Por conseguinte, o ato de significação da
substância revela-se mais preciso do que sua intelecção. Ora, a distinção entre o
ato de significação e de intelecção é aqui central e separa a filosofia da teologia.
O filósofo sustenta que um objeto é inteligível porque cai sob o conceito de ser.
18 DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir
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O teólogo sabe que, no estado da alma restaurada, o conhecimento das coisas
singulares produz-se sem o intermédio da abstração. A razão comum do ser
usada pelo metafísico não é, portanto, a razão do objeto. Mas isso, apenas o
teólogo o sabe.
Essas são, em poucas palavras, as idéias essenciais do primeiro capítulo.
Para tornar a seqüência de nossa exposição mais simples, vamos dividir os oito
capítulos restantes em três partes. Na primeira (capítulos 2 a 5), são abordadas
as questões que dizem respeito ao conhecimento humano, a saber: a natureza e
os tipos de predicação; o papel da experiência para o conhecimento; a noção de
evidência e sua função na ciência; e, por fim, a teoria do objeto e a noção de
verdade. Na segunda parte (capítulos 6 a 8), o A. examina as relações entre as
ciências, começando pela lógica e metafísica, o que lhe permite retomar o
incontornável problema da univocidade do ente. Aborda, em seguida, as relações
entre as ciências especulativas reais: a física, a matemática e a metafísica para,
após, concluir com as relações entre a metafísica e a teologia. O último capítulo,
que serve de conclusão à obra, explora a questão do objeto primeiro do
intelecto.
O segundo capítulo é consagrado aos problemas epistemológicos, como a
teoria da predicação, da definição e da demonstração retirados da massa de
comentários aos Segundos Analíticos produzidos no século XIII. Ora, são
identificadas no período quatro formas de predicação por si, das quais duas são
particularmente importantes. Em primeiro lugar, a segunda, ou seja, quando o
sujeito entra na definição do predicado. Scotus a compreende de acordo com a
propriedade de “inclusão virtual” e o A. põe em evidência as proximidades entre
as posições de Scotus e de Simon de Feversham. Em segundo lugar, é digno de
nota o quarto modo de predicação, ou seja, quando um objeto pertence a uma
coisa por ela mesma. Dessa vez, é a interpretação de Tomás de Aquino que será
seguida por Scotus par explicar as propriedades naturais não essenciais e que
servem de premissas em uma demonstratio potissima. A importância desse quarto
tipo de predicação para a compreensão da teoria escotista do conhecimento por
19 DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir
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experiência aparece claramente quando do terceiro capítulo. O modelo adotado
não é aquele da indução por generalização, que encontramos em Aristóteles,
mas o de um conhecimento por experiência cuja origem está em Roberto
Grosseteste e Rogério Bacon. O A. falará aqui de um intelectualismo da
experiência em Duns Scotus, para mostrar que apenas o intelecto é capaz de
produzir uma certeza adquirida segundo uma ordem cronológica que apresenta
três etapas: o conhecimento puramente nominal; o conhecimento geral ou
universal; o conhecimento distinto ou determinado. O resultado é uma teoria da
proposição na qual se pode distinguir proposições conhecidas por si
confusamente de proposições conhecidas por si distintamente, o que conduzirá a
uma concepção da autonomia das ciências por relação à metafísica. Essa disciplina
que é, tal como a lógica, uma ciência comum, não é necessária para a prática de
nenhuma ciência particular. Evidentemente, a afirmação necessita ser qualificada,
sobretudo no que diz respeito à possibilidade de seu objeto de conhecimento.
Isso constitui precisamente a tarefa do quinto capítulo que é, segundo nos
parece, o capítulo central da obra. É nele que a originalidade do pensamento de
Duns Scotus é colocada em evidência. O A. não hesita em falar de um
verdadeiro “giro copernicano”, célebre expressão que mostra bem a importância
atribuída à noção de objeto no pensamento de Duns Scotus. Escutemos o
próprio autor:
“Segundo Duns Scotus, todo conhecimento – mesmo o divino – funda-se em, ou se deixa reduzir a um objeto (obiectum). Trata-se assim de uma propriedade constitutiva da intelecção e do conhecimento enquanto tais. Esse conceito de objeto designa, assim, o centro da teoria scotista do conhecimento, mas igualmente de sua teoria da ciência, pois o conhecimento discursivo, como também todo conhecimento científico, encontra sua causa última, seu fundamento, em um objeto. Ao afirmar a identidade do sujeito da ciência e do objeto do intelecto, Duns Scotus identifica, por conseguinte, o ponto no qual se ligam a noética, a teoria do conhecimento e a epistemologia.” (p. 201)
20 DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir
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Em suma, não estamos mais no modelo aristotélico segundo o qual é a
forma da coisa que está no intelecto, mas no modelo de conhecimento como
representação. Ora, essa não é a primeira vez que alguém chama a atenção para a
noção de representação em Duns Scotus. Olivier Boulnois, que orientou a tese
na origem desse livro, destacou bastante bem o mesmo ponto em uma obra
intitulada justamente Être et représentation (Paris, PUF, 1999). Mas o que é
original no A. é o modo como ele soube explorar as noções de sujeito e de
representação a fim de reconstruir, com habilidade e precisão admiráveis, a
teoria do saber de Scotus. Todos os problemas epistemológicos relativos aos
fundamentos, estrutura e relações entre as ciências, que serão abordados na
segunda parte do livro, são formulados e resolvidos por Scotus por relação a sua
teoria do objeto.
Para Duns Scotus, o objeto não é uma coisa, pois é definido por relação a
uma faculdade. Objeto designa o modo de presença de uma coisa em uma
faculdade, ficando assim óbvia a importância da noção de representação. O objeto
do conhecimento não é uma coisa exterior. Ele é interno ao intelecto, a tal ponto
que a existência da coisa exterior não é condição para a aquisição de um
conhecimento científico. A res externa é apenas a ocasião para o intelecto
formar-se certas verdades. Mas a sua existência não é a causa da verdade. Para
ser mais preciso, uma proposição é dita verdadeira seja formalmente, seja
objetivamente. No primeiro caso, a verdade não depende de um intelecto que
apreenda a proposição, pois a proposição é verdadeira se ela está de acordo
com a realidade exterior. No segundo caso, a proposição é verdadeira se retira
sua evidência de um objeto do intelecto. Assim, a proposição “Deus é trino” é
formalmente verdadeira sem o ser objetivamente. Já o conhecimento científico é,
por sua vez, puramente abstrativo e independente das coisas exteriores. O
essencial para as ciências é a noção de evidência, pois seus primeiros princípios
são evidentes a partir dos termos que os compõem.
Passemos agora à segunda parte da obra, ou seja, ao momento de definir a
estrutura e as relações entre as ciências. O A. examina três problemas: as
21 DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoir
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relações entre a metafísica e a lógica; as relações entre as ciências especulativas
reais; e as relações entre a teologia e a metafísica. O primeiro problema divide
os especialistas entre, de um lado, aqueles que sustentam uma correspondência
formal entre a lógica e a metafísica e, de outro, os partidários de uma
independência total entre as duas disciplinas. Ora, o A. ensina-nos que ambas as
posições são equivocadas, pois o conceito de ente é logicamente unívoco, mas
metafisicamente equívoco, tese original de Scotus que não prosperou entre seus
sucessores. O problema da relação entre as ciências reais é posto sob a forma da
teoria da subalternação. Scotus segue, nesse aspecto, a tradição inglesa,
representada por Roberto Grosseteste e Roberto Kilwarby, opondo-se assim a
Alberto Magno e Tomás de Aquino. As relações entre metafísica e teologia são
examinadas em um capítulo que inicia pela análise da prova da existência de
Deus. Ora, essa prova, amplamente inspirada em Avicena, é realizada pela
metafísica. Já a teologia revelada será compreendida como uma disciplina prática
baseada, evidentemente, nos artigos da fé, mas fazendo também apelo a
conceitos metafísicos em suas proposições.
O último capítulo trata do objeto primeiro do intelecto humano. Nele, o
A. explica-nos que Scotus abandonou a tese aviceniana segundo a qual o objeto
primeiro do intelecto não é outro senão o conceito unívoco e metafísico de
ente. O Doutor Sutil sustentará, então, que o ente, primeiro objeto do intelecto, é
uma noção unívoca que remete à totalidade do inteligível, ou seja à ordem do
puro possível lógico. Novamente, a teologia escotista manifesta-se aqui em toda
sua radicalidade.
Em suma, estamos frente a um trabalho de grande envergadura que deve
ser saudado tanto por seu esforço de elucidar os intrincados conceitos scotistas,
quanto pela exegese histórica reveladora das dependências e disputas nas quais
foi cunhado o pensamento de Duns Scotus.
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CASTEIGT, J. Connaissance et vérité chez Maître Eckhart. Seule le juste
connaît la justice, Paris: Vrin, “Études de philosophie médiévale”,
2006, 480p.
Rodrigo Guerizoli* ___________________________________________
A obra do dominicano Eckhart de Hochheim (†1328), Mestre Eckhart, coloca
para seu leitor não apenas questões filosóficas e teológicas, tratadas de modo
amiúde intencionalmente inovador, mas também um problema de cunho
hermenêutico, que concerne à unidade de suas partes, latina e alemã. Já J. Quint
diagnosticou a dificuldade aqui em jogo: a diversidade lingüística e a quantidade
de textos curtos de Eckhart costumam gerar a tendência de que se baseie cada
interpretação em um novo “colorido mosaico” de pequenas e heterogêneas
passagens1. Os efeitos desse procedimento são evidentes: Eckhart torna-se um
autor exageradamente maleável e se vê como paradigma de irreconciliáveis
convicções filosóficas e políticas2.
Desde há pelo menos 20 anos tal situação começou a se modificar. Em
lugar dos mosaicos denunciadas por Quint, os estudos passaram a pautar-se cada
vez mais por uma regra sugerida por K. Ruh, que recomendava que os
intérpretes, para tornar Eckahrt menos “manipulável”, baseassem suas análises na
totalidade de um ou mais textos, renunciando à concatenação de trechos
afastados de seus contextos imediatos3.
Nesse sentido, o primeiro interesse da obra de J. Casteigt está em explorar
uma nova aproximação hermenêutica ao texto eckhartiano, não sem paralelos
* Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/CNPq. 1 QUINT, J. Die Überlieferung der deutschen Predigten Meister Eckharts, Bonn: Röhrscheid, 1932, p. XVIII. 2 Cf. DEGENHARDT, I. Studien zum Wandel des Eckhartbildes, Leiden: Brill, 1967. 3 RUH, K. Meister Eckhart. Theologe, Prediger, Mystiker, 2a ed., Beck, München, 1989, p. 136s.
23 CASTEIGT, J., Connaissance et vérité chez Maître Eckhart
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com os “complexos de questões e respostas” de A. de Libera4. Nem um
mosaico, nem uma análise da totalidade de textos a reconstrução de “redes de
remissões” em torno, no caso, às noções de verdade e conhecimento, que
articulam a diversidade lingüística da obra eckhartiana em uma série de topoi
comuns: mesmas citações bíblicas, filosóficas, recorrência de certas metáforas,
estruturas argumentativas etc. Assim, partindo do Comentário ao evangelho de
João, a autora percorre um caminho de análises que passa por momentos do
Prólogo geral à obra tripartida, do Prólogo à obra das proposições, do Comentário ao
livro do Gênesis, chegando à obra alemã de Eckhart, a seus sermões e ao Livro da
divina consolação.
Mas não é apenas pela metodologia que o nexo entre as obras latina e
alemã de Eckhart é preservado no estudo de J. Casteigt. Antes, sua hipótese
central busca uma articulação sistemática desses dois momentos, que, de acordo
com a autora, pode ser encontrada na compreensão eckhartiana de verdade e de
conhecimento, na medida em que, com efeito, tal compreensão reconheceria o
conhecimento da verdade desenvolvido nos textos latinas por meio do
instrumental escolástico no tema-chave dos escritos alemães, o nascimento de
Deus na alma.
Após a apresentação de sua hipótese e de um arrazoado da bibliografia, a
autora se dedica, no primeiro capítulo, à explicação do modo como Eckhart
articula os legados agostiniano e tomasiano a respeito da noção de verdade e de
seu critério, elaborando, com isso, a idéia de um critério “interior” de verdade,
representado paradigmaticamente na expressão “apenas o justo conhece a
justiça”. Trata-se, assim, de indicar que a verdade do discurso depende de um
critério mais fundamental que a adequação, isto é, que ela depende da identidade
entre quem conhece e o que conhece. O critério “interior” da verdade
apontaria, desse modo, não apenas para um plano puramente noético, mas
também para um nível ontológico: ele prolongaria a identificação, no ser, do
4 Cf. LIBERA, A. de., L’art des généralités. Théories de l’abstraction, Paris: Aubier, 1999, p. 625 e
passim.
24 CASTEIGT, J., Connaissance et vérité chez Maître Eckhart
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conhecido ao cognoscente, o que é tratado na obra latina sob o modelo do
engendramento interior do conhecido no cognoscente e na obra alemã sob o
modelo do nascimento de Deus na alma.
O segundo capítulo dedica-se ao esclarecimento da noção de
conhecimento como engendramento, oferecendo uma imagem bastante
completa da epistemologia eckhartiana. Inicialmente é analisado o paradigma de
conhecimento “interior” preconizado por Eckhart, a saber, o conhecimento que
o Filho, o Cristo, possui do Pai. A partir da análise do comentário a Jo 1, 18, e da
“rede de remissões” que a partir daí se forma, toma corpo a idéia de que o
objetivo de Eckhart consiste em explorar o valor epistêmico daquela relação
tendo em vista sua aplicação à relação entre o homem e Deus, de modo a
“demonstrar em termos filosóficos a possibilidade de conhecer a Deus como
princípio segundo a essência e as Pessoas” (p. 85). Para isso, contudo, Eckhart
precisa dar alguns passos ousados no sentido de uma modificação da famosa
teoria das species (pp. 123ss.) e, sobretudo, de uma rejeição da exegese
tradicional que vê a relação unívoca entre o Cristo e o Pai como uma relação sui
generis, de modo a, interpretando a encarnação como a assunção pelo Cristo da
natureza humana, poder tomá-la como estruturalmente ao alcance de todos. O
que se revela, assim, é a possibilidade de uma relação essencial do homem com
Deus, da qual resulta uma união em ato, que insere os relata numa unidade de
natureza e que deixa como único espaço para a diferença o âmbito da relação.
É exatamente esse famoso e controverso modelo eckahrtiano de união em
ato que é tema do terceiro capítulo. A questão é desenvolvida, por um lado, a
partir da análise do comentário a Jo 1, 12-13, e, por outro, por meio da
reconstrução da recepção da teoria aristotélica da percepção e de momentos-
chave da leitura de Tomás de Aquino do quinto livro da Metafísica. Tudo aqui se
orienta em direção à construção das bases filosóficas das idéias de que “o ser em
ato dos correlativos passivo e ativo é único e idêntico segundo a natureza” (p.
166) e de que a união em ato do cognoscente e do conhecido constitui o
modelo noético mais adequado à compreensão da união entre o homem, na
25 CASTEIGT, J., Connaissance et vérité chez Maître Eckhart
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medida em que é imago, e Deus. Evidentemente, a idéia de uma união substancial
entre Deus e a alma, ainda que, de acordo com Eckhart, remeta à noética
agostiniana, não deixa de despertar a surpresa de seus contemporâneos e as
estratégias de sua defesa são analisadas na parte final do capítulo. Dessas análises
se mostra que, ainda que se admita uma união substancial entre Deus e a alma
(unum in actu), não se deve, para Eckhart, perder de vista a insuperável distinção
segundo a relação aí em jogo – trata-se, pois, de perceber que a união em ato, a
identidade de natureza, na medida em que deixa intocada a distinção segundo a
relação, não conduz a uma completa indistinção dos pólos em questão.
Se no capítulo precedente a união em ato foi tratada desde a leitura
eckhartiana das tradições filosófica e teológica, o penúltimo capítulo da obra
dedica-se à análise daquela mesma idéia em seus aspectos semânticos,
ontológicos e, por fim, noéticos. O ponto de partida consiste aqui naquilo que
Eckhart apresenta como o elemento-chave da hermenêutica de sua obra e o
paradigma concreto daquela união, qual seja, o conhecimento do justo pela
justiça, do qual decorre a identificação do justo enquanto justo à justiça5. O
paradigma do justo e da justiça é analisado, nesse contexto, em primeiro lugar,
por meio de uma interpretação fortemente ontológica dos parônimos, concreto
e abstrato, aqui em jogo. Tal relação é transposta, assim, de um plano puramente
semântico para um plano ontológico e se desdobra numa correlação unívoca
entre aqueles termos imposta pela função desempenhada pelo elemento
reduplicativo, o inquantum, cuja tarefa seria a de atribuir de maneira unívoca ao
homem o ser justo e, com isso, facultar sua identificação à própria justiça. Essa
passagem da semântica à ontologia se estende, por fim, ao plano noético, em que
a relação entre o justo e a justiça torna-se exemplo da relação entre o intelecto
humano e o intelecto divino. Trata-se, pois, de, por meio do inquantum, conceber
a possibilidade de o intelecto humano assimilar-se univocamente ao intelecto
5 Pr. 6 [Deutsche Werke I, p. 105 in: MEISTER ECKHART, Die deutschen und lateinischen Werke, hrsg. im Auftrage der Deutschen Forschungsgemeinschaft, Stuttgart: Kohlhammer, 1936-]: “Swer underscheit verstât von gerehticheit und von gerehtem, der verstât allez, daz ich sage” [“Quem compreende a diferença entre a justiça e o justo compreende tudo que eu digo”].
26 CASTEIGT, J., Connaissance et vérité chez Maître Eckhart
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divino e ganhar, com isso, o modo de conhecer que lhe é naturalmente próprio,
isto é, que lhe é próprio enquanto imago. O que se mostra com isso é a abertura
de um nível de correlação unívoca, expresso pela idéia de causalidade formal,
entre os planos de intelectualidade humana e divina, o que, contudo,
confirmando o resultado do capítulo precedente, não deixa de reservar um lugar
à diferença, agora expressa na restrição imposta pelo elemento reduplicador:
apenas inquantum justo, no plano de uma causalidade formal, o justo é a justiça,
apenas inquantum intelecto o intelecto humano realiza sua natureza de imago.
Tomados em si, o justo e o intelecto permanecem um “puro nada”, totalmente
dependentes de uma causa eficiente que lhes sustenha. A união de natureza
mostra-se, pois, como união segundo a forma e o espaço deixado para a
diferença funda-se, por sua vez, na distinção que subsiste entre o homem e Deus
quanto ao poder sustentar seu próprio ser.
O último capítulo da obra tem por finalidade inserir o quadro noético até
então traçado no contexto de uma cosmologia da criação. O que se mostra aqui,
a partir sobretudo do comentário a Gn 1, 3-4, é a imbricação, operada
basicamente pelas noções de criação pelo Verbo e de causalidade essencial, entre
causalidade formal e causalidade essencial no evento da criação, o que justifica a
idéia anteriormente exposta de que ambos estão em jogo tanto na constituição
humana, testemunha de um “duplo ser”, quanto no ato de união do justo à
justiça. O que se descobre é, portanto, o modelo intelectualista de criação que
anima a obra de Eckhart e que representa um desdobramento de uma certa
tradição filosófica medieval, sobretudo daquela que se forma na esteira do
pensamento de Dietrich de Freiberg.
Não há dúvida de que a obra de J. Casteigt tornar-se-á um ponto de
referimento da literatura sobre Mestre Eckhart. Sua metodologia inovadora,
baseada na idéia de “redes de remissão”, faculta-lhe uma apresentação
consistente e extremamente orgânica da tese de que as obras latina e alemã de
Eckhart confluem na unidade de um projeto único pela transposição teológica da
tese filosófica do conhecimento da justiça pelo justo em termos de nascimento
27 CASTEIGT, J., Connaissance et vérité chez Maître Eckhart
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de Deus na alma humana e traduz-se numa pormenorizada reconstrução do que
fundamenta e constitui essa possibilidade de conhecimento. Mas não apenas isso.
Sobretudo, desde um ponto de vista sistemático, a obra desemboca, em sua
conclusão, numa breve apreciação dos âmbitos em que se pode mostrar frutífera
a consideração da posição eckhartiana: articulação entre teologia e filosofia,
semântica e ontologia, discussões em torno à noção de critério de verdade e em
torno à natureza e significação do ato de conhecer. Em todos esses âmbitos se
verifica o interesse e quiçá a originalidade do pensamento eckhartiano e,
indiretamente, da tradição escolástica como um todo.
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PERINI-SANTOS. E., La théorie ockhamienne de la connaissance
évidente, Paris, Vrin, “Sic et non”, 2006, 219p.
Aurélien Robert* ___________________________________________
Existem muitos livros sobre Guilherme de Ockham, indo desde monografias cujo
objetivo é apresentar de maneira sistemática a filosofia do Venerabilis inceptor, a
estudos mais atentos ao seu nominalismo ou, ainda, à sua teoria da linguagem
mental. Todavia, um dos elementos indispensáveis ao projeto filosófico de
Ockham não havia recebido ainda toda a atenção que merecia até o livro de
Ernesto Perini-Santos: sua teoria da ciência demonstrativa. Trata-se, com efeito,
de um tema central, em que lógica, semântica e psicologia, mas também
ontologia, se encontram. O exame atento da teoria da ciência de Ockham
mostra o quanto seu projeto nominalista estende-se para além da semântica e,
sobretudo, o quanto nos encontramos na presença de um pensamento
sistemático.
Pode-se perguntar pela relação entre o título do livro e a teoria
ockhamiana da scientia. A resposta encontra-se no termo “evidência”. O estudo
de Ernesto Perini-Santos permite-nos compreender melhor a concepção
ockhamiana de ciência, entendida como um assentimento dado a uma proposição
verdadeira. Essa exigência responde à necessidade de um conhecimento evidente
de certas proposições, não apenas como atitudes psicológicas e subjetivas, mas
também como critério de distinções entre diferentes níveis de saber. Mas como
reduzir a ciência a um assentimento ou a um tipo de assentimento? Quais são os
mecanismos pelos quais o espírito é conduzido a aceitar como verdadeira e
como evidente uma proposição, quer se trate de um princípio ou de uma
conclusão em uma demonstração? Tais são alguns dos numerosos problemas
* CNRS, Centre d’Etudes Supérieures de la Renaissance.
29 PERINI-‐SANTOS. E., La théorie ockhamienne de la connaissance évidente
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abordados nesse livro, sem mencionar os necessários esclarecimentos das
diferenças entre certeza e evidência, entre fé, opinião e saber.
Segundo Ockham, a ciência diz respeito a proposições e não aos objetos
da experiência. Ora, a tipologia ockamiana das proposições e dos silogismos
demonstrativos é bem conhecida e bem descrita pelos comentadores. Sabemos
que a Suma de Lógica se organiza segundo um plano que encaminha o leitor da
natureza dos termos simples às proposições, em seguida das proposições aos
silogismos e, então, dos silogismos à demonstração. Assim, ainda que Guilherme
de Ockham não tenha comentado os Segundos Analíticos de Aristóteles, isso não
o impediu de desenvolver uma verdadeira teoria do silogismo demonstrativo.
Com efeito, o problema da evidência dos princípios é um dos pontos centrais do
livro, sendo muito bem tratado por Perini-Santos. Para escapar a certos
paradoxos, como aquele exposto no Mênon de Platão, que consistia em provar
que o intelecto não poderia adquirir novos conhecimentos por demonstração,
Aristóteles desenvolveu uma teoria da origem do conhecimento dos princípios
em um capítulo que figura entre os mais complicados dos Segundos Analíticos (II,
19). Os comentadores medievais dessa obra tentaram, a partir de Roberto
Grosseteste, refinar a resposta do Estagirita. É nisso que, aliás, consiste,
sublinhemo-lo, um dos interesses do livro de Perini-Santos, que nos apresenta as
principais balizas da recepção medieval da teoria aristotélica da ciência,
principalmente em Roberto Grossetest e João Duns Scotus, mas também, de
maneira menos explorada e com referência a questões mais precisas, em Gilles
de Roma, Walter Burley ou ainda João de Reading. Esse percurso histórico deixa
claramente vir à tona senão a ruptura operada por Ockham nessa tradição, ao
menos sua profunda originalidade.
Ernesto Perini-Santos desdobra uma primeira particularidade dos
comentadores medievais, que consiste em interpretar a teoria aristotélica da
ciência em termos causais. Já em Duns Scotus a causalidade opera tanto no nível
da origem dos princípios quanto no das relações entre a conclusão e os
princípios. A conclusão segue casualmente os primeiros princípios. Inscrevendo-
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se nessa tendência, Ockham radicalizará essa visão causalista do conhecimento e
da ciência, descrevendo o processo cognitivo como um todo em termos causais.
A origem do conhecimento simples, sensível e intelectual é causal, assim como a
relação entre termos e proposições, a passagem dos princípios às conclusões e,
last but not least, o nexo entre a proposição e as atitudes proposicionais no
espírito (crença, dúvida, evidência etc.). Essa sistematicidade realmente faz a
originalidade de Ockham e pode ser compreendida apenas dentro da economia
mais global daquilo que foi tradicionalmente chamado seu nominalismo.
Ernesto Perini-Santos mostra muito bem como processo causal como um
todo é possibilitado por uma ontologia dos termos e das proposições, e isso,
segundo Ockham, estrutura o pensamento na linguagem mental. As proposições
são compostas de termos que são qualidades individuais as quais, enquanto res,
podem manter relações naturais entre si e, notadamente, relações causais. Numa
palavra, em termos contemporâneos, diríamos que se trata de uma teoria
naturalista do espírito que busca reduzir o processo cognitivo como um todo a
mecanismos naturais e causais. Se o espírito é de início uma tabula rasa, ele pode
adquirir novos conhecimentos demonstrativamente, isto é, adquirir um novo
saber, que será verdadeiro e evidente e cuja verdade aparecerá na própria
evidência a qual, por sua vez, aparece imediatamente ao intelecto quando este
apreende as proposições. A evidência não é, portanto, somente o efeito do
verdadeiro, mas serve de indicador do verdadeiro para o intelecto. Tem-se,
portanto, um saber científico na medida em que se sabe com evidência que uma
certa proposição é verdadeira. Da formação dos termos simples mentais às
conclusões conhecidas graças ao conhecimento intelectual dos termos que a
compõem, o todo da ciência é regulado por uma causalidade que segue o que o
autor do livro chama ocasionalmente “uma ordem racional”.
Para compreender como se organiza um tal sistema causal do
conhecimento e da ciência, seria necessário explicar o resultado desse processo,
isto é, a natureza e a lógica da evidência no espírito. Ora, o que pode causar a
evidência de uma proposição? Terá a vontade um papel a desempenhar nesse
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mecanismo ou trata-se de uma ação puramente natural de objetos (coisas,
termos, proposições) sobre o espírito? É difícil apresentar em poucas linhas a
riqueza da posição ockhamiana e, do mesmo modo, a precisão das análises dos
textos ockhamianos realizadas por Perini-Santos, mas é possível afirmar que esta
última propõe, em filigrana, uma verdadeira chave de leitura das teorias
medievais da ciência e do conhecimento dos princípios. O que aparece
claramente é que, pouco a pouco, é posta em ação uma verdadeira teoria das
atitudes proposicionais.
O livro termina por um curto estudo, que nos parece todavia fundamental,
acerca da resposta oferecida por João Buridan à teoria causal da evidência de
Ockham. João Buridan percebeu, de fato, um dos problemas fundamentais de
uma teoria causal forte como aquela de Ockham. Com efeito, se o processo
cognitivo segue leis causais, então, uma vez que as premissas sejam conhecidas
com evidência, o espírito deveria naturalmente deduzir todas as conclusões
dedutíveis de tais premissas. Ockham rejeita explicitamente essa conseqüência,
mas a questão que se coloca é a de saber se sua teoria não está obrigada a
aceitá-la. Mais precisamente, a teoria ockhamiana coloca o problema chamado de
“o fechamento dedutivo dos sistemas de crença”, segundo a expressão
consagrada pelo filósofos anglo-saxões: se a conclusão fosse conhecida ao
mesmo tempo que uma das premissas, então seria forçoso aceitar-se que o
espírito pode conhecer todas as conclusões que se desdobram de nossas
crenças. Buridan acrescenta, assim, um certo número de cláusulas que permitem
o exercício da causalidade natural do espírito. É fato digno de arrependimento
que essa solução buridaniana, assim como os debates que ela suscitou entre os
filósofos e teólogos das gerações seguintes não apareçam na versão publicada na
forma desse livro, sobretudo quando o autor os havia tratado em sua tese, base
da presente obra, e que nós tivemos o prazer de ler.
Como não superar o papel de historiador da filosofia ao reler Ockham
como um tipo de precursor do programa de naturalização do espírito ou da
lógica das atitudes proposicionais? O método do livro e sua justificação por seu
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autor são, com relação a esse ponto, exemplares. Se Ernesto Perini-Santos não
pretende propor uma reconstrução analítica, no sentido como a entende Claude
Panaccio, o método e os resultados apresentados nesse livro o filiam
incontestavelmente a essa família historiográfica. Mas seu trabalho mescla
reflexões históricas aos elementos mais analíticos, alia a erudição e a escolha
sintética de textos, restitui o latim na mesma medida em que reformula certos
elementos em uma linguagem mais contemporânea e lógica. Parece-me que esse
equilíbrio, raramente alcançado, aqui se concretiza; e disso se segue que não se
encontrará grande coisa a retrucar às demonstrações que se lerá.
Tradução de Rodrigo Guerizoli (UFRJ)/CNPq
AUGUSTINE. Augustine: Political WritingsBERTOLACCI, A. The Reception of Aristotle’s Metaphysics in Avicenna’s Kitab al-SifaBIANCHI, L. Pour une histoire de la “double vérité”DEMANGE, D. Jean Duns Scot. La théorie du savoirCASTEIGT, J. Connaissance et vérité chez Maître EckhartPERINI-SANTOS. E., La théorie ockhamienne de la connaissance