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Lugares e não Lugares do Carnaval de Salvador Por Elias Sampaio Muito interessante à pesquisa divulgada por um site de Salvador sobre a exposição, em tempo de televisão, de algumas das atrações do carnaval deste ano. Foram três as categorias pesquisadas e elencadas: Blocos e Trios, Camarotes e Artistas e Bandas. A informação que nos chama atenção é que o terceiro colocado no ranking de Blocos e Trios mais vistos, dentre as 24 emissoras locais e nacionais no período de 16 a 21 de fevereiro foi o Bloco Afro Ilê Aiyê e o décimo colocado foi o Afoxé Filhos de Gandhi, na mesma categoria. Dentre os Blocos, antes do Ilê aparecem apenas o Bloco Eva e o Corujas, comandados respectivamente por Saulo Fernandes e Ivete Sangalo. Observem que o que está evidenciado nessa pesquisa não é a contribuição histórica que esses grupos deram (desde os blocos de índio e de samba da década de sessenta) e vem dando a partir dos anos oitenta (pagodes e axé music) ao carnaval do presente. Na verdade, quando tratamos de tempo de exposição midiática, buscamos destacar é que o que sustenta do ponto de vista conceitual e de conteúdo cultural do chamado moderno carnaval de Salvador, inclusive, o novíssimo circuito Barra-Ondina, é fruto de um grande manancial cultural vindo das mais diversas partes da cidade, principalmente da periferia de pretos e de pobres que, infelizmente, vem sendo apropriada e expropriada, principalmente nos últimos vinte e cinco anos, concidentemente junto com a tentativa de dar à chamada axé music, uma conotação cultural maior do que de fato ele sempre foi: uma síntese relativamente tosca de uma profusão de coisas que acontecem todos os anos em todos os cantos de Salvador e que nas ultimas três décadas vem sendo utilizada de forma pasteurizada, quase que vendida em embalagens plásticas cada ano por uma nova sensação do verão. Isso,

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Lugares e não Lugares do Carnaval de Salvador

Por Elias Sampaio

Muito interessante à pesquisa divulgada por um site de Salvador sobre a exposição, em tempo de televisão, de algumas das atrações do carnaval deste ano. Foram três as categorias pesquisadas e elencadas: Blocos e Trios, Camarotes e Artistas e Bandas. A informação que nos chama atenção é que o terceiro colocado no ranking de Blocos e Trios mais vistos, dentre as 24 emissoras locais e nacionais no período de 16 a 21 de fevereiro foi o Bloco Afro Ilê Aiyê e o décimo colocado foi o Afoxé Filhos de Gandhi, na mesma categoria. Dentre os Blocos, antes do Ilê aparecem apenas o Bloco Eva e o Corujas, comandados respectivamente por Saulo Fernandes e Ivete Sangalo.

Observem que o que está evidenciado nessa pesquisa não é a contribuição histórica que esses grupos deram (desde os blocos de índio e de samba da década de sessenta) e vem dando a partir dos anos oitenta (pagodes e axé music) ao carnaval do presente. Na verdade, quando tratamos de tempo de exposição midiática, buscamos destacar é que o que sustenta do ponto de vista conceitual e de conteúdo cultural do chamado moderno carnaval de Salvador, inclusive, o novíssimo circuito Barra-Ondina, é fruto de um grande manancial cultural vindo das mais diversas partes da cidade, principalmente da periferia de pretos e de pobres que, infelizmente, vem sendo apropriada e expropriada, principalmente nos últimos vinte e cinco anos, concidentemente junto com a tentativa de dar à chamada axé music, uma conotação cultural maior do que de fato ele sempre foi: uma síntese relativamente tosca de uma profusão de coisas que acontecem todos os anos em todos os cantos de Salvador e que nas ultimas três décadas vem sendo utilizada de forma pasteurizada, quase que vendida em embalagens plásticas cada ano por uma nova sensação do verão. Isso, talvez, pode explicar o porque de enquanto Magary Lord lota espaços como as praças do pelourinho, o parque da cidade e põe na boca de Saulo Fernandes o grande sucesso do EVA deste ano, alguns dos chamados artistas históricos do axé music, em conjunto, sequer conseguem encher a praça Tereza Batista num show aberto ao público em geral, como aconteceu a dias antes do carnaval desse ano.

A questão fundamental nisso tudo e diferencial deste carnaval de 2012 é que a despeito da pujança mercantilista que se transformou o carnaval dos blocos de “gente bonita” e de “camarotes sofisticados” do circuito Barra-Ondina é que, do ponto de vista cultural e do conteúdo do carnaval stricto senso, esse modelo simplesmente mostra claros sinais de esgotamento e esse ano parece ser um divisor de águas. A ida do Chiclete com Banana, por exemplo, para abertura do carnaval do centro da cidade deve ser vista por dois ângulos muito bem definidos e que concorrem para isso. O primeiro diz respeito a questão econômica. Só foi possível levar uma das mais caras e principais atrações para abertura do carnaval porque do ponto de vista comercial o carnaval de Salvador, consegue financiamento para todas aquelas atrações que os seus organizadores julguem necessário, quando realmente querem. Nesse sentido, a ida do Chiclete para o centro

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sem as cordas é apenas um detalhe, mesmo porque, as cordas do Nana e do Camaleão, blocos que eles puxam, servem apenas para apartar os associados desses respectivos blocos, dos foliões pipoca (pretos e pobres em sua maioria) e garantir os lucros altíssimos das vendas dos abadás que na verdade são apenas over head uma vez que não faltam patrocínios para esses blocos.

O segundo aspecto pode ser introduzido com a seguinte pergunta: o que o Chiclete foi fazer mesmo no centro da cidade na abertura do carnaval? Na verdade, eles foram simplesmente levar os filhos para passear na Praça Castro Alves, uma vez que nem o público da Castro Alves tem nada a ver com os camaleozinhos (confesso que não sei direito o nome da banda. 8798??) e muito menos aqueles meninos tem nenhuma afinidade com aquele lugar. Se esse meu questionamento é verdadeiro, outra pergunta se faz necessária: porque que o Chiclete não foi se encontrar com Armandinho, na Castro Alves ou o Olodum, grupos que tem afinidade não apenas histórica, mas ainda, no caso especifico do Olodum que passa pela praça, vindo do pelourinho, há trinta e dois anos na sexta-feira de carnaval? Mesmo que o interesse comercial de fazer a casadinha da dinastia Chiclete com Banana na abertura do carnaval, do ponto de vista do conteúdo da folia, não poderia ser feito algo tão asséptico do ponto de vista cultural e é nesse sentido que os dados de exposição de mídia são reveladores, uma vez que, nem mesmo o imperialismo da mídia consegue retirar de forma integral a importância que tem as manifestações culturais mais genuínas do carnaval de Salvador que na pesquisa são muito bem representados pelo Ilê e pelo Gandhi.

Esses dados são reveladores e exemplos emblemáticos de uma realidade que de há muito a grande mídia local e os grandes interesses comerciais e políticos, por trás da festa de momo na cidade, procuram esconder da forma mais cínica possível: que a força do carnaval da Bahia está na marca indelével da cultura negra impressa, direta ou indiretamente, em todas as suas dimensões. Rara são as vezes que a música, o ritmo, a dança ou quaisquer outras “novidades” do carnaval não seja fruto da criatividade e, principalmente, da síntese de tradições que tanto os Blocos Afros quanto os Afoxés e demais manifestações da cultura afro-baiana que apesar de culminarem no período do carnaval, são construídas a partir de um sem número de ações e atividades que passam por religiosidade, ações sociais e arranjos produtivos da economia criativa da cidade espalhados pelos lugares que a grande mídia e os interesses comerciais ortodoxos e pouco inteligentes procuram esconder.

Engana-se quem pensa que as novidades “black” de Salvador surgem apenas do carnaval e do pelourinho. Ao contrário, a despeito de ser uma espécie de vitrine para muitas dessas manifestações, tanto o carnaval quanto o pelô são apenas uma parte (muito importante) da história. As outras partes estão na periferia da cidade ou até mesmo na periferia do próprio pelourinho, uma vez que dependendo do dia da semana acontecem diversas manifestações artísticas que vão da literatura à poesia, passando pela “black music” de todos os tons e não apenas o axé, que muitos desavisados sequer imaginam que existem mas que, a despeito da invisibilidade de todo esse caldeirão da cultural local, o que se observa é que é desse mosaico que saem não somente as musicas

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do carnaval, mas o ethos do carnaval de Salvador que não é necessariamente aquele que as televisões focalizam no período da festa, em particular o que ocorre de quinta a sábado da barra a ondina.

A pista do que vai ocorrer nos circuitos da folia começa a ser dada nas festas populares de verão, nos ensaios dos blocos afro, afoxés, blocos de samba e de pagode. Toda a negrada de Salvador sabe o que vai “bombar” no carnaval antes mesmo que os pseudo articulistas da cultura sequer saibam o que está acontecendo e isso ocorre por um detalhe muito simples: a cultura negra de Salvador acontece em lugares em que se conhece, se convive e se vive, de fato, durante todo o ano e não apenas no período do carnaval e sob os olhos estrangeiros locais e do exterior nos pontos turísticos das cidade. No que se refere aos blocos afros, por exemplo, quem quiser saber o que está acontecendo e o que vai acontecer é só ir ao Curuzu, a Itapoan, a Pirajá, a Periperi, ao Monte Belém ou andar pelo pelourinho de segunda a segunda e não apenas na terça da benção. No olodum, por exemplo, acontece coisas muito importantes de domingo à domingo durante todo o ano.

É obvio que varias das observações feitas nesse sentido já foram fruto de análises e publicações motivadas pelos mais diversos interesses. O que aqui quero pontuar com ênfase necessária para atrair mais uma reflexão sobre esse debate é que mesmo com todo o aparato midiático, comercial e financeiro durante todo o período antes do carnaval, inclusive, com os mais diversos incursões televisivas, os grupos, os artistas e as bandas que conseguem hegemonizar o carnaval do ponto de vista econômico, não conseguem totalizar do ponto de vista da cultura e do conteúdo da festa o nosso carnaval, graças aos orixás! Os dados revelam apenas dois dos mais importantes representantes da cultura negra de Salvador, O Ilê Aiyê e os Filhos de Gandhi, mas um olhar mais atento observará que o moderno carnaval de Salvador só sobrevive em virtude do que é produzido nos lugares da cidade onde ainda existem os verdadeiros mananciais da nossa cultura. O bloco EVA, por exemplo, que foi o mais visto, de acordo com a pesquisa, neste ano de 2012, além de ter emplacado como hit, a musica do Negão, Magary Lord, trabalhou toda sua estratégia de verão (inclusive o próprio festival de verão) à luz do que eles chamaram de Conexão Tambor, parabéns para eles, mas será que foi mera coincidência? Logico que não! A conexão tambor de Saulo, nesse ano, inovou também com a parceria no camarote do Ilê na Castro Alves. Aliás, diga-se de passagem, Saulo Fernandes, não apenas esteve presente em vários dos ensaios dos blocos afros como os convidou (junto com outros representantes da musica negra da Bahia) para participarem de seu show no festival de verão

Enfim, não nos parece ser à toa, também, que a cantora Claudia Leite ter levado para a avenida nada mais, nada menos que o tema África e que um dos grupos convidado do Camarote de Daniela Mercury foi o Cortejo Afro. Se associarmos a isso a existência já de algum tempo do Afropop de Margarete Menezes, podemos afirmar sem sombra de dúvidas de que apesar da força da mídia, inclusive, através de comerciais de lojas de eletrodomésticos e automóveis, a força do conteúdo cultural do carnaval de Salvador tem cara, nome e lugar. A cara é preta e vem dos lugares de toda a cidade e não dos não

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lugares que alguns poderosos da comunicação e da economia pouco inteligente tentam inventar.