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LUCIELE GONÇALVES DA SILVA INTERFERÊNCIA DE FATORES CULTURAIS DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA NA ADAPTAÇÃO DO CONTO DE FADAS PARA O CINEMA Porto Alegre 2015

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LUCIELE GONÇALVES DA SILVA

INTERFERÊNCIA DE FATORES CULTURAIS DA SOCIEDADE

CONTEMPORÂNEA NA ADAPTAÇÃO DO CONTO DE FADAS PARA O CINEMA

Porto Alegre

2015

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LUCIELE GONÇALVES DA SILVA

INTERFERÊNCIA DE FATORES CULTURAIS DA SOCIEDADE

CONTEMPORÂNEA NA ADAPTAÇÃO DO CONTO DE FADAS PARA O CINEMA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras pelo Programa de Pós-Graduação Centro Universitário Ritter dos Reis Laureate International Universities.

Orientadora: Profa. Dra. Rejane Pivetta de Oliveira

Porto Alegre

2015

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LUCIELE GONÇALVES DA SILVA

INTERFERÊNCIA DE FATORES CULTURAIS DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA NA ADAPTAÇÃO DO CONTO DE FADAS PARA

O CINEMA

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de

Mestre em Letras pela banca examinadora constituída por:

_____________________________________________ Profa. Dra. Rejane Pivetta de Oliveira Centro Universitário Ritter dos Reis

_____________________________________________ Prof. Dr. Wagner Coriolano de Abreu Centro Universitário Ritter dos Reis

_____________________________________________ Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Porto Alegre

2015

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AGRADECIMENTOS

À professora e orientadora, Rejane Pivetta, por dedicar-me momentos de

aprendizagem, compreensão, paciência e competência em suas valiosas

orientações.

Ao meu esposo, Guilherme da Cunha, por sua dedicação e apoio, parceiro de todas

as horas, um grande incentivador.

Aos meus pais, Feliciano e Zeni, a gratidão por todo o esforço e carinho dedicado a

mim e a minha irmã.

À CAPES ( Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal e Nível Superior-

Ministério da Educação), pelo apoio financeiro.

Aos colegas do mestrado e aos professores do Programa de Pós- Graduação em

Letras da UniRitter. Obrigada pela oportunidade de aprender e conviver com cada

um de vocês.

À colega e amiga, Maria Dorothea Barone Franco, por suas sugestões e paciência

ao ouvir-me em momentos de inquietações, por acreditar em mim e ser uma grande

incentivadora.

Muito Obrigada!

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Back Home

We don’t matter where we go

Because we always find a way back home. (Unknown author).

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RESUMO

As adaptações cinematográficas, usualmente, refletem os anseios da

sociedade e da cultura onde são realizadas e consumidas. No caso das adaptações

de conto de fadas, observamos a clara intenção dos cineastas em atualizar os temas

expostos no conto original, tal como acontece na adaptação do conto Branca de

Neve, recolhido pelos Irmãos Grimm. O objetivo principal deste trabalho é explicitar a

interferência de questões sociais contemporâneas presentes nas adaptações Branca

de Neve e o Caçador (2012), e Espelho, Espelho Meu (2012), evidenciando que

temas como a vaidade, a beleza e as disputas de poder não apenas são atualizados

como transformados em fatores determinantes na estrutura das adaptações. Para

tanto, este trabalho desenvolve-se em quatro capítulos. No primeiro, são

examinadas as vinculações do conto original com elementos sociais e culturais

característicos da Idade Média, contexto onde o gênero desenvolveu-se, além de se

proceder à análise do conto Branca de Neve, destacando-se seus motivos principais

e aspectos da estrutura narrativa, conforme postulados por Vladimir Propp.

Segundo, discute-se o processo de adaptação cinematográfica dos contos de fadas,

com base na teorização de Linda Hutcheon e Robert Stam; num terceiro momento

são analisados os filmes que compõem o corpus, identificando-se os fatores

culturais na estruturação da narrativa fílmica e as modificações sofridas no processo

de transposição. Por fim, o último capítulo reflete sobre a interferência das questões

culturais presentes nas adaptações, relacionando-as ao contexto social

contemporâneo, a partir das formulações de Gilles Lipovetsky e Zygmunt Bauman. A

pesquisa demonstrou que, embora as adaptações cinematográficas atualizem os

contos clássicos, elas mantêm a sua estrutura narrativa tradicional, conservando

fórmulas populares de recepção, que proporcionam ao grande público a retomada

de temas, personagens e experiências fixados pelo gênero literário e ressignificados

contemporaneamente pelo cinema.

Palavras-chave: Contos de Fadas; Questões Sociais; Adaptação Cinematográfica.

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ABSTRACT

Nowadays, film adaptations are reflecting to contemporary society and culture

issues where such adaptations are consumed. In the matter of fairy tales, in turn

impregnated of historic and cultural motivations, we clearly observe the filmmaker’s

intention to actualize issues that were exposed in the original fairy tale, such as in the

adaptation of Snow White which was collected by the Grimm Brothers. We defined as

main goal of this work clarify the influence of contemporary social issues that have

been demonstrated in film adaptations of Snow White, namely, Snow White and the

huntsman (2012) and Mirror Mirror (2012), in order to explain that social issues and

cultural aspects such as vanity, beauty, and clashes for power are determinant

factors in the structure of adaptations. In order to reach it, this work is divided in 4

stages. First, it examines links between the original fairy tale and social issues and

cultural aspects from middle ages, it is necessary because such fairy tales were

originated and developed in this historic context. In addition, we perform an analysis

about Snow White highlighting their main motivation and aspects from their narrative

structure in accordance to Vladimir Propp. Second, it discusses the adaptations of

cinematographic process to fairy tales based on authors such as Linda Hutcheon and

Robert Stam. Third, it analyses the movies to identify the importance of cultural

factors in structuration of film narrative along with modifications in transcription

process. Finally, it discusses about the influence of social issues presented in film

adaptations in order to understand the relationship of both of them and the

contemporary social context based on authors such as Gilles Lipovetsky e Zygmunt

Bauman. This research demonstrates that film adaptations have updated fairy tales,

despite film adaptations have maintained its traditional narrative structure, keeping

the popular reception formulas, which provides to the audience an resumption of

themes, characters, and experiences brought in by literary genre and, presenting a

contemporary resignified to the cinema.

Keywords: Fairy Tales; Social Issues, Film Adaptation

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .........................................................................................................1

2 O CONTO DE FADAS COMO GÊNERO LITERÁRIO E SUA VINCULAÇÃO

HISTÓRICO-CULTURAL ............................................................................................4

2.1 INTERAÇÃO SOCIAL E FORMA NARRATIVA .....................................................4

2.2 CONTOS DE FADAS E O CONTEXTO SOCIOCULTURAL ...............................17

2.3 BRANCA DE NEVE: ESTRUTURA NARRATIVA E REPRESENTAÇÕES

SOCIAIS NO CONTEXTO DA IDADE MÉDIA...........................................................22

3. CAMINHOS DA ADAPTAÇÃO .............................................................................29

4. RECRIAÇÃO DO CONTO DE FADAS PARA AS TELAS ....................................43

4.1 BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR ..................................................................43

4.2 ESPELHO, ESPELHO MEU................................................................................57

5. SOCIEDADE E CULTURA CONTEMPORÀNEA NAS ADAPTAÇÕES DE

BRANCA DE NEVE .................................................................................................74

5.1 VAIDADE E BELEZA...........................................................................................74

5.2 AFIRMAÇÃO DA MULHER ................................................................................76

5.3 DISPUTA PELO PODER .....................................................................................80

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................83

REFERÊNCIAS.........................................................................................................86

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1 INTRODUÇÃO

Os primeiros contos infantis foram publicados no século XVII, na França,

durante o reinado de Luís XIV. Trata-se de uma coletânea denominada Contos da

Mãe Gansa (1697), de Charles Perrault, composta por algumas histórias coletadas

da memória do povo, entre as quais, A Bela Adormecida no Bosque, Chapeuzinho

Vermelho, O Gato de Botas, O Barba Azul, entre outras. A Literatura Infantil foi

constituída e reconhecida um século após as primeiras pesquisas filológicas

realizadas pelos Irmãos Grimm, na Alemanha, no século XVIII. Outros prestigiosos

intelectuais dedicaram-se a resgatar as antigas estórias, armazenadas na memória

popular, tais como Jean de La Fontaine e Hans Christian Andersen. Cada um

desses autores, a seu tempo e a sua hora, em seu contexto, contribuiu para que os

contos de fadas fossem explorados e reconhecidos mundialmente.

Ao longo dos séculos, surgiram várias histórias, contos e mitos, simbolizando

as ansiedades e aspirações da sociedade, muitas vezes histórias que ilustravam um

herói, as intrigas, injustiças e desequilíbrios recorrentes na vida do povo e da corte,

todas fundamentadas na sabedoria popular. Muitas dessas histórias receberam

releituras, adaptações que estão presentes até hoje, em histórias em quadrinhos,

óperas, filmes, na literatura, mantendo-se, assim, inseridas na cultura em geral.

O conto Branca de Neve possui algumas versões contemporâneas

importantes para cinema e televisão, dentre elas o filme a Branca de Neve e o

Caçador, dirigido por Rupert Sanders, em 2012; o filme Blancanieves, dirigido por

Pablo Berger, em 2012; o seriado Once Upon a Time criado por Edward Kitsis e

Adam Horowitz, estreado no Brasil em 2012 no canal Sony. Acrescente-se ainda

Espelho, Espelho Meu, dirigido por Tarsem Singh, em 2012.

A adaptação Blancanieves é um filme mudo, preto e branco, a trama é

ambientada na Espanha, em que o roteirista apresenta a personagem Branca de

Neve em volta ao universo das touradas, uma vez que mistura símbolos do

imaginário popular do país à adaptação do conto de fadas.

A trama do seriado se passa na cidade fictícia de Storybrooke, em Maine,

EUA, na qual a filha e o neto de Branca de Neve tentam quebrar uma maldição

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poderosa que transportou os personagens dos contos de fadas para essa cidade.

A adaptação Branca de Neve e o Caçador apresenta como principais

características a disputa de poder entre a Rainha Ravenna e Branca de Neve, a

vingança e a busca eterna pela beleza, aspectos bastante característicos do

comportamento na sociedade atual, reconhecida pelo individualismo, pela

valorização das aparências e pelo hiperconsumo, tal como afirmam Gilles Lipovetsky

(2000) e Zygmunt Bauman (2008). Espelho, Espelho Meu apresenta características

sociais semelhantes à adaptação Branca de Neve e o Caçador, como a disputa de

poder entre a Rainha e Branca de Neve, a disputa pelo amor do príncipe e a busca

eterna pela beleza, aspectos estes, como já citados, bastante presentes no cotidiano

contemporâneo.

Num primeiro momento, estudamos a vinculação dos contos de fadas a

aspectos culturais do contexto medieval onde se desenvolveram, centrando a

análise especialmente no conto Branca de Neve, uma vez que as adaptações dessa

história têm sido recorrentes no cinema atual. Nessas adaptações, observamos a

clara intenção dos cineastas em atualizar os temas clássicos expostos no conto

original, tais como a vaidade, a beleza, a disputa de poder e a afirmação da mulher,

os quais assumem relevância na reflexão sobre as relações sociais

contemporâneas. Desse modo, elegemos para análise, neste trabalho, dois filmes

representativos dessa produção cinematográfica, quais sejam, Branca de Neve e o

Caçador e Espelho, Espelho Meu, no intuito de explicitar a interferência de questões

sociais contemporâneas, determinantes na estrutura das adaptações

cinematográficas do conto. O trabalho desdobra-se em três objetivos específicos.

Primeiro, examinar as vinculações do conto original com elementos sociais e

culturais característicos da Idade Média, contexto onde o gênero se originou e

desenvolveu. Segundo, abordar o processo de adaptação cinematográfica dos

contos de fadas e a importância dos fatores culturais na estruturação da narrativa

fílmica. Terceiro, examinar a interferência das questões sociais presentes nas

adaptações e relacioná-las com o contexto social contemporâneo.

Tendo como corpus o conto clássico Branca de Neve e as releituras

cinematográficas aqui citadas, pretendemos explicitar o modo como valores e

comportamentos da sociedade contemporânea estão presentes e se traduzem em

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escolhas no que concerne à caracterização de atitudes e pensamentos das

personagens, bem como aspectos da forma narrativa fílmica. Esta pesquisa permite-

nos avaliar o aproveitamento da literatura, especialmente dos contos de fadas, como

suporte para a compreensão de fatores culturais estruturantes de processos de

significação atuantes na sociedade contemporânea, transpostos para o cinema, uma

das manifestações artísticas e culturais de maior visibilidade e abrangência de

público.

O presente trabalho organiza-se em quatro capítulos. No primeiro, apresenta-

se o gênero literário conto de fadas, em especial o conto Branca de Neve, como

forma narrativa e de interação social, enfatizando sua vinculação ao contexto

histórico-cultural de onde emerge, valendo-nos da concepção bakhtiniana de que os

gêneros não podem ser estudados fora do contexto social. No segundo capítulo

abordam-se os caminhos da adaptação, a fim de compreendermos os aspectos que

caracterizam uma adaptação cinematográfica, de acordo com estudos de Linda

Hutcheon e Robert Stam. No terceiro capítulo analisam-se as recriações

cinematográficas, atentando-se para aspectos da estruturação narrativa e as

modificações operadas na passagem para a tela. No quarto e último capítulo

tecemos algumas reflexões sobre os termos em que o aproveitamento de temas

como a vaidade, a beleza, o poder e a afirmação da mulher traduzem

comportamentos da sociedade contemporânea, de acordo com formulações de

Zygmunt Bauman e Gilles Lipovetsky.

Com este trabalho, esperamos contribuir para a compreensão da presença

dos contos tradicionais em nossos dias, alimentando e inspirando novas produções

culturais, sobretudo cinematográficas.

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2 O CONTO DE FADAS COMO GÊNERO LITERÁRIO E SUA VINCULAÇÃO HISTÓRICO- CULTURAL

2.1 – INTERAÇÃO SOCIAL E FORMA NARRATIVA

Segundo Bakhtin (1997), os gêneros estão presentes em toda e qualquer

esfera da comunicação humana, possuem características próprias, podem estar

representados oralmente ou na escrita, nos diversos usos da linguagem, e

funcionam como um instrumento de interação social entre os indivíduos. Para

Bakhtin, (1997), “o gênero é um tipo relativamente estável de enunciado”. (Bakhtin,

1997, p. 279).

O agir é que motiva e ativa certos tipos de enunciados, determinados pelas

condições e objetivos de cada esfera da linguagem. Logo, a utilização da língua

elabora tipos relativamente estáveis de enunciados, que mudam em função das

alterações das práticas sociais. Segundo afirma Bakhtin,

“Não há razão para minimizar a extrema heterogeneidade dos gêneros do discurso e, consequentemente dificuldade quando se trata de definir o caráter genérico do enunciado. Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença essencial existente entre gênero de discurso primário (simples) e o gênero de discurso secundário (complexo). Os gêneros secundários do discurso – o romance, o teatro, o discurso científico, o discurso ideológico etc. – aparecem em circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita: artística, científica, sociopolítica. Durante todo o processo de sua formação, esses gêneros secundários absorvem os primários (simples) de todas as espécies, que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea”. (Bakhtin, 1997, p. 281).

Entretanto, cabe salientar que os estudos relacionados aos gêneros, orais e

escritos da língua, não podem ser estudados separados do contexto da sociedade,

tampouco do uso diário, principalmente, por estarem envolvidos nas manifestações

da linguagem, tendo em vista uma situação comunicativa. Tal entendimento é

reiterado por Bronckart (2003):

“tipos relativamente estáveis de enunciados são elaborados, sociohistoricamente, por diferentes esferas das atividades humanas, sempre apresentando conteúdo, estruturação, relação entre os interlocutores e estilo específicos. Seu estudo deve, obrigatoriamente, considerar usos e funções numa situação comunicativa”. (Bronckart, 2003, p. 101 –102).

Assim, compreende-se que o conceito de gênero resulta de uma abordagem

discursiva, fruto da interação das vozes sociais. Logo, a comunicação humana não é

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para simples manifestação e decodificação de informações. Há agentes envolvidos,

participantes do processo comunicativo, da situação social. Desse modo, considera-

se a presença das múltiplas vozes, tanto implícitas quanto explícitas, que produzem

o discurso.

Cabe destacar que os gêneros fazem parte de um interacionismo

sociodiscursivo, com implicações para estudos no âmbito da teoria literária, no que

tange às condições de circulação social dos gêneros. Desse modo, o gênero é uma

interação social, conforme postula Schneuwly,

“Na perspectiva, do interacionismo social, a atividade é necessariamente concebida como tripolar: a ação é mediada por objetos específicos, socialmente elaborados, frutos das experiências das gerações precedentes, através das quais se transmitem e se alargam as experiências possíveis. Os instrumentos encontram-se entre o indivíduo que age e o objeto sobre o qual ou a situação na qual ele age: eles determinam seu comportamento, guiam-no, afinam e diferenciam sua percepção da situação na qual é levado a agir. A intervenção do instrumento – objeto socialmente elaborado – nessa estrutura diferenciada dá a atividade uma certa forma; a transformação do instrumento transforma evidentemente as maneiras de nos comportarmos numa situação”. (Schneuwly, 2004, p.23).

Nesse contexto, compreende-se que os gêneros possuem abordagens tanto

na escala dialógica, enquanto instrumento de interação social, como também, na

escala entre gêneros primários e secundários.

Os gêneros primários são aqueles abrangentes da vida cotidiana,

pertencentes à esfera oral, ou seja, à comunicação verbal espontânea, e possuem

relação direta com o contexto imediato como, por exemplo, o bilhete, a conversa

telefônica, entre outros.

Por outro lado, os gêneros secundários abrangem as esferas de comunicação

mais elaboradas, como a religiosa, a acadêmica, roteiros, a jornalística, a artística,

entre outras. Os gêneros secundários são pertencentes à esfera escrita, abrangem

os primários, quer dizer, os absorvem, transformando-os, devido à perda da relação

com o contexto imediato.

Além disso, os gêneros têm sua unidade garantida pela relação entre as

características concentradas no enunciado, as quais são carregadas de valor que

dão sentido ao enunciado. Tais características são denominadas tema ou conteúdo

temático, pragmático ou contextual; composição, ou elemento estrutural da

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construção textual; e estilo, as opções de expressividade e enunciação. Segundo

Bakhtin,

“A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais - , mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. Estes três elementos (conteúdo temático, estilo e construção composicional) fundem-se indissoluvelmente no todo do enunciado, e todos eles são marcados pela especificidade de uma esfera de comunicação. Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos de gêneros do discurso”. (BAKHTIN, 1997, p. 279).

Na perspectiva bakhtiniana (1997), o tema está para o conjunto de elementos

externos de que o falante se apropria para construir significação em uma ação

comunicativa. De um ponto de vista mais abrangente, tema é o conjunto de

informações trazidas pelos interlocutores em determinadas situações, tendo em

vista a construção textual. Em outras palavras, o tema está associado a condições

que definem os usos específicos de gêneros, é o domínio de sentido do qual trata o

gênero. Além disso, o tema é um modo particular de orientação da realidade, e seus

fatores essenciais são os modos de ver, a avaliação social e a relação com o

interlocutor. Dessa forma, compreende-se que o tema é um elemento constitutivo de

gênero, indissociável do contexto de produção, o que reforça, em outras palavras,

conforme Schneuwly (2004, p. 26), a ideia de que “o que deve ser dito define a

escolha de um gênero”.

Logo, a escolha de um gênero é alicerçada em parâmetros como finalidade,

interlocutores, situação e conteúdo. Nesse sentido, Bronckart (2003), na perspectiva

relacionada ao interacionismo social, à ação social, ao condicionamento histórico

ideológico e psicológico, diz que um texto é produto de fatores que estão na relação

entre o indivíduo e o meio social. Conforme o autor, “a tese central do interacionismo

sociodiscursivo é que a ação constitui o resultado da apropriação, pelo organismo

humano, das propriedades da atividade social mediada pela linguagem”. (Bronckart,

2003, p. 42).

Entretanto, o autor apresenta um aspecto do contexto de produção da

linguagem, que pode ser definido como “parâmetros externos que exercem

influência sobre a forma como um texto é organizado”. (Bronckart, 2003, p. 93).

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Desse modo, os parâmetros são classificados em duas ordens: física e social. A

primeira é o lugar de produção, o momento de produção, o emissor e o receptor. Já

a segunda é a ação social, cujos parâmetros são mediados por condições sociais.

Então, na segunda ordem, estão: o lugar social; a posição social do emissor; a

posição social do receptor; e o objetivo do texto ou ponto de vista que o emissor

quer passar ao receptor.

Além disso, ainda de acordo com Bronckart (2003), há nesses parâmetros

mais fatores que influem na produção textual. Além do conteúdo temático, há,

também, o intertexto. O primeiro é visto pelo autor como uma construção discursiva,

já o segundo, o intertexto, como a área condicionada aos gêneros em que o falante

vai produzir seu texto.

Assim, o conteúdo temático não é apenas o conteúdo informacional ou

referencial do texto, ele é também uma reestruturação de verdades do mundo, no

mundo discursivo. Quanto ao intertexto, é nele que os falantes fazem suas escolhas,

aquele que está na história dos gêneros, ou melhor, na construção dos gêneros.

Logo, os gêneros, como instrumentos sociais de interação comunicativa, têm raízes

históricas, que os originaram. Dessa forma, conforme Bronckart (2003), “ o

intertexto é constituído pelo conjunto de gêneros de textos elaborados pelas

gerações precedentes, tais como são utilizados e eventualmente transformados e

reorientados pelas formações sociais contemporâneas”. (Bronckart, 2003, p. 100).

Sob este aspecto, como no caso da adaptação cinematográfica, por exemplo,

o filme é um gênero cinematográfico, transformado e reorientado nas formações

sociais contemporâneas. Cabe ainda ressaltar que cada formação social conta com

sua criação comunicativa, como é o caso, por exemplo, da literatura, que em um

contexto significativo e vasto criou os gêneros literários. Assim, o papel social do

produtor do texto é instigar a leitura do indivíduo interessado pelo texto, seja esse

apresentado através de narrativas, em suportes como livros, como também, nas

telas do cinema. Nesse sentido, produtor e receptor estão envolvidos nessa tarefa

social, em que o papel do expectador é colocar-se disponível à recepção, ficando a

cargo do produtor a tarefa de instigar e convencer o público receptor.

Por esse motivo, não há como diferenciar texto de gênero, ambos coexistem,

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realizando-se em si, ou melhor, os textos realizam um gênero e todos os gêneros

realizam sequências típicas. Assim, os gêneros são em geral tipologicamente

heterogêneos.

Acrescente-se ainda, de acordo com Bronckart (2003), que o intertexto é o

papel do agente produtor, que escolhe o modelo textual orientado historicamente

pelo intertexto. Dessa forma, há uma relação entre indivíduo, mundo e linguagem,

fundamentada pela escolha do gênero, uma vez que esse faz parte do contexto de

produção, ao lado dos papéis sociais dos interlocutores, seguidos de seus objetivos

e do lugar social. Assim, conforme Bronckart (2003),

Essa escolha apresenta características de uma verdadeira decisão estratégica: o gênero adotado para realizar a ação da linguagem deverá ser eficaz em relação ao objetivo visado, deverá ser apropriado aos valores do lugar social implicado e aos papéis que este gera e, enfim, deverá contribuir para promover a “imagem de si” que o agente submete à avaliação social de sua ação. (Bronckart, 2003, p. 101).

Ainda, na tríade bakhtiniana (1997), relacionada ao gêneros e suas

características, faz-se necessário abordar a estrutura composicional ou composição

do gênero discursivo.

O elemento composicional são as estruturas comunicativas e semióticas

compartilhadas pelos textos pertencentes aos gêneros. Assim, conforme Bakhtin,

“se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos; se

tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala; se tivéssemos de

construir cada um dos nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase

impossível”. (Bakhtin, 1997, p. 302).

No entanto, a estrutura composicional é o modo de organizar os elementos

textuais, ela apresenta a estrutura própria de cada gênero. Com tal organização, por

exemplo, é possível imaginar a estrutura de uma narrativa, ou a estrutura de uma

opinião. Uma vez que as narrativas primordiais eram constituídas de uma sequência

caracterizada por uma situação inicial, seguida de ação, complicação, solução e

moral final, isso faz com que, no contexto atual, possamos prever essa sequência,

seja em um conto, em um filme, em um romance, ou até mesmo em novelas.

Quanto aos gêneros secundários, os formatos textuais desses estão ligados

ao círculo acadêmico, mais complexos, como é o caso, por exemplo, de textos que

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exijam técnicas de escrita, como os artigos científicos, ensaios, ofícios, teses, e

dissertações, ou seja, são textos relacionados à cultura letrada.

A última característica a ser abordada, e não menos importante, é o estilo.

Compreende-se que o estilo é a marca do autor, ou seja, é a forma particular como

ele atuará no texto, o tratamento dado por ele ao texto, seguido de graus de

formalidade e valor, em outras palavras, o estilo é a voz do autor, que por meio de

seleção linguística e enunciativa preocupa-se com o interlocutor e com a

compreensão ativa e responsiva do enunciado. Compreende-se, então, que o estilo

é uma espécie de marca de autoria, em que o autor é responsável pela sua voz e

pelas vozes dos demais interlocutores, já que, no momento da escrita, o autor-

narrador considera o outro, e se posiciona de modo responsivo, a fim de que o

enunciado se torne compreensível, podendo estar embasado de forma avaliativa ou

crítica. Adicionalmente, cabe destacar que os gêneros discursivos estão disponíveis

na cultura. Nesse sentido, os gêneros são construídos pelos indivíduos, que ao

produzir um texto, seja em forma oral ou escrita, consideram variados elementos,

formais ou informais da linguagem, a relação social entre os interlocutores, o tipo de

situação e a finalidade da atividade social. Entretanto, a composição de um texto se

dá pela escolha das palavras e frases, assim como o gênero em que irá se realizar

este texto dependerá dos objetivos e da imagem que o indivíduo, construtor do

texto, tem dos seus interlocutores.

Poderíamos, aqui, falar mais a respeito das sequências de natureza

linguística, entretanto, é necessário destacar que o objeto de nosso estudo é o

conto Branca de Neve, bem como as interferências sociais e culturais nas

adaptações do conto para o cinema, por este motivo, abordaremos a seguir a

sequência narrativa, justamente porque filme e conto, embora sejam artes distintas,

apresentam caracteres semelhantes, por serem narrativas.

A sequência narrativa está presente desde os primeiros relatos míticos, de

Homero aos textos contemporâneos. A narrativa constitui-se de um padrão

estrutural, conservado ao longo da história, absorvido tanto pela tradição oral como

letrada, constituindo um campo específico de estudos da teoria literária.

Nesse sentido, encontramos em Propp (1984) alguns elementos que

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configuram a construção narrativa, entre eles, as funções dos personagen. A teoria

narrativa de base estrutural passou a embasar-se nestas características básicas, a

partir da década de 1960, utilizadas para os estudos sobre contos e romances.

Conforme Propp (1984, p. 3), o estudo de “narrativas segundo as funções dos

personagens se revela útil também para os gêneros narrativos não só do folclore,

mas também da literatura”.

Antes de atentarmos para os critérios que configuram a construção narrativa,

é necessário descrever uma definição para o “conto maravilhoso”. Em princípio,

conforme Propp (1984), o conto de magia é uma narrativa construída de acordo com

a sucessão ordenada das funções em suas diferentes formas, com ausência de

algumas e repetição de outras, conforme o caso.

Portanto, os contos possuem uma construção peculiar, independente dos

seus personagens, antropomórficos ou não. Outro aspecto importante a ser

considerado a respeito dos contos refere-se ao termo magia e sua definição, ora

chamado de magia, ora maravilhoso. Há de considerar-se que lendas, fábulas, entre

outros gêneros, possuem a mesma construção por conta da sucessão de funções.

Conforme o autor, o termo “magia” não define todos os contos, mas ele prefere

conservar essa denominação, que poderá ser modificada quando se estudarem

outras categorias de contos. (PROPP, 1984, p. 92).

Além disso, cabe destacar que não se pode estudar os contos, tampouco

classificá-los de forma imediata, em virtude de sua dimensão. O conto maravilhoso

atribui as mesmas ações aos homens, aos objetos e aos animais, considerando os

atributos desses, ou seja, os aspectos e particularidades externas dos personagens,

que podem ser: situação, sexo, idade, condição social, entre outros. Esses atributos

proporcionam encanto, colorido e beleza ao conto. Sendo assim, é notório que, ao

falarmos de conto maravilhoso, é impossível não relembrarmos das fadas,

princesas, castelos, da floresta e dos mistérios envolvendo os personagens.

Uma vez que o conto sofre a influência da realidade histórica, ele se

caracteriza por um processo metamórfico e suas transformações estão sujeitas a

determinadas leis. Logo, por esse motivo, não há como definir uma única fonte para

os contos, podendo ter raízes psicológicas, como também, próprias da realidade

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11

cotidiana. Sendo assim, os contos, em virtude de sua natureza herética, podem ser

narrados em qualquer tempo, por serem descendentes dos mitos, carregam consigo

uma construção similar, desse modo, alguns contos apresentam esta construção,

por assemelhar-se à fonte originária ao mito. Da mesma forma, essa estrutura pode

ser encontrada em outros exemplos, como os romances de cavalaria, uma vez que

naturalmente este gênero tenha seu elo no conto maravilhoso.

Entretanto, cabe mencionar que os enredos dos contos maravilhosos estão

estreitamente ligados uns aos outros, já que se pode encontrar diversas estórias,

com personagens diferentes, porém com o mesmo enredo. Desse modo, conforme

Propp (1984), “por enredo entendo o tema, no qual se interprenetram diferentes

situações – os motivos”. (Propp, 1984, p. 20). Desse modo, entende-se como motivo

algo que desencadeou um ou mais conflitos, e todos os outros impasses presentes

no conto maravilhoso. Ainda de acordo com o autor, há de considerar que o motivo é

a unidade mais simples da narração, não é uno, nem indivisível, logo, o motivo não

é único e pode ser dividido, até mesmo em diversos motivos menores.

Nesse cenário, faz-se necessário destacar que nos contos maravilhosos há

ações constantes, as quais foram denominadas pelo autor de funções. Essas ações

são frequentemente iguais em personagens diferentes, assim o que não muda são

as ações ou funções, e os personagens. Em outras palavras, a função seria a ação

de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar

da ação, ou seja, o nó da intriga.

Logo, tais funções ou ações constantes não dependem dos personagens que

as praticam e sim podem ser executadas por diversos personagens e das mais

variadas maneiras. Assim, compreende-se que os personagens do conto

maravilhoso, por mais diferentes que sejam, realizam constantemente as mesmas

ações. O meio em si, pelo qual se realiza uma função, desvela-se de uma grandeza

variável. O que se diversifica nos contos no que tange aos personagens são os

nomes e, consequentemente, também os atributos, que permitem análises

relacionadas ao contexto histórico-cultural. Por essa razão, o conto maravilhoso

pode ser estudado em diferentes contextos e épocas, pois assim é uma forma de

resgatar o folclore, mitos, costumes, a cultura em geral de outros povos, como

também atentarmos a questões contemporâneas da sociedade.

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12

Contudo, já que as funções de alguns personagens dos contos maravilhosos

se transferem para outros personagens, cabe lembrar que há, então, numerosos

personagens e isso explica a dupla perspectiva do conto maravilhoso: há de um

lado, uma extraordinária diversidade e, de outro lado, uniformidade e repetição.

Dessa maneira, Propp (1984) focou seu estudo nas ações/funções dos

personagens, e não na comparação dos personagens em si, e disso resulta a

definição de uma especialidade do conto popular maravilhoso como gênero. Por

esse viés o autor procurou aproximar uma explicação histórica para a uniformidade

dos contos em todas as regiões, do Oriente ao Ocidente.

Assim, o autor definiu as ações como funções, as quais estruturam a

narrativa. Além disso, há funções constantes e funções variáveis. E, entre essas,

constantes e variáveis, denominou-as de invariantes e variantes dos contos.

Observemos os seguintes exemplos de contos, (PROPP, 1984, p. 25) que

apresentam essas invariantes e variantes:

1- O rei dá uma águia ao destemido. A águia o leva para outro reino;

2- O velho dá um cavalo ao camponês. O cavalo o leva para outro reino;

3- O feiticeiro dá a Ivan um barquinho. O barquinho o leva para outro reino;

Nesses exemplos, a invariante é ordem (dar) e a consequente partida,

vinculada a uma busca. Já as variantes são os agentes da ordem, os sujeitos da

partida e da busca, como também os objetos de busca.

Sob este ponto de vista, o autor estabeleceu o estudo sobre os contos, a

partir das funções dos personagens, estabelecendo 31 funções invariantes dos

contos maravilhosos. São elas: (PROPP, p.30).

1) ausência/ afastamento: um dos membros da família distancia-se de casa;

2) proibição/interdição: uma proibição é imposta ao herói;

3) transgressão/interdição: a proibição/transgressão é transgredida, essa

função constitue um par, juntamente com a função 2.

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13

4) interrogatório: tem como finalidade descobrir o lugar onde se encontra um

personagem, ou objeto. O antagonista tenta esclarecimentos.

5) Informação/esclarecimento: o antagonista recebe informações sobre a

vítima.

6) Ardil/perfídia: O antagonista tenta enganar sua vítima, assume feições

alheias, como por exemplo, “dragão” se transforma em “cabra” e assim aproveita-se

da vítima ou de seus bens.

7) Cumplicidade: o herói deixa-se persuadir em tudo pelo antagonista e

involuntariamente o primeiro ajuda o segundo, por exemplo, o herói deixa-se

convencer pega o anel.

8) Dano/malfeito: O antagonista causa um dano, um mal a um membro da

família, por exemplo, o dragão rapta a filha do rei.

9) Mediação: o malfeito é anunciado, faz-se um pedido ou uma prece ao

herói, ele é mandado embora, é enviado em expedição.

10) Início da reação/ decisão: O herói decide reagir ou assente no que lhe

pedem, geralmente este momento se caracteriza, por exemplo, quando são diferidas

palavras como: “Permita-me partir em busca da tua filha, a princesa”.

11) Partida/ o herói deixa a casa: a partida do herói.

12) O herói é submetido a uma Prova: O doador/mediador - auxiliar submete

o herói à prova ajeitando-o para receber um objeto ou ajuda mágica.

13) Reação: O herói reage diante das ações do futuro doador ou mediador-

auxiliar.

14) A posse do objeto mágico: o herói apropria-se do meio mágico, como

exemplo, espadas, animais, objetos, etc.

15) Transporte: O herói é transportado ou levado ao lugar onde se encontra o

objeto que procura, geralmente, este lugar fica entre reinos distantes, outra terra.

16) Luta/Combate: O herói e o antagonista entram em combate, em uma

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briga, uma luta.

17) A marca: O herói é marcado, fica ferido em combate lhe conferindo uma

cicatriz.

18) Vitória: O antagonista é vencido.

19) Dano inicial ou a carência são reparados: eliminação do mal.

20) Regresso/ a volta: O herói retorna, depois da vitória,

21) Perseguição: O herói é perseguido.

22) Salvação: O herói é resgatado da perseguição.

23) O oculto: O herói chega incógnito à sua casa ou a outro país.

24) A falsidade: um falso herói pretende tomar a vitória e glória do herói.

25) Desafio: tarefa difícil é proposta ao herói.

26) Realização: a tarefa é cumprida com sucesso.

27) Reconhecimento: O herói é reconhecido.

28) Desmascaramento: O falso herói ou malfeitor é desmascarado.

29) Transfiguração/metamorfose: o herói recebe nova aparência.

30) Castigo: O antagonista, o inimigo é castigado.

31) Final feliz: O herói casa e sobe ao trono.

Como vimos, o autor estabeleceu em trinta e uma as funções dos contos,

sendo que tais não excluem uma a outra, pois pertencem a vários eixos ao mesmo

tempo, e com isso sobrepõem-se, fundem-se uma a outra. Dessa forma, um vasto

número de funções agrupam-se em pares, e outras podem reunir-se em grupos. Por

um lado, há a proibição – transgressão; interrogatório - informação; combate -

vitória, e assim sucessivamente, formando e reunindo novos grupos de funções. Por

outro lado, o dano, o envio, a reação, a partida do lar, constituem o nó da intriga, da

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trama.

Entretanto, se muitas das funções podem se repetir não excluindo uma a

outra, por serem narrativas complexas, a estrutura do conto pode ser reduzida em

algumas funções invariantes, desse modo, teremos: uma situação de crise ou

mudança; aspiração, desígnio ou obediência; viagem; desafio ou obstáculo;

mediação; e por último a conquista. Adicionalmente, destaca-se, de acordo com

Propp (1984), que nem todas as funções se encontram obrigatoriamente num conto,

mas, geralmente, uma função conduz a outra. Conforme o autor, as funções se

realizam de modo absolutamente idêntico em virtude da assimilação de uma forma a

outra, reconhece-se uma função somente pelas suas consequências. Como

exemplo de assimilação de funções, o autor fala de alguns casos em que o envio

inicial do herói é assimilado à função da tarefa difícil, assim como certos exemplos

de prova à qual o herói é submetido pelo agressor ou pelo doador. Além disso, é

preciso atentar-se para não confundir a primeira função do doador com a tarefa

difícil imposta pelo antagonista, uma vez que a contraposição destas duas funções,

ou seja, a prova preliminar que proporciona ao herói o objeto mágico, e a prova

fundamental que leva à reparação da carência ou do dano, estão relacionadas com

a forma dos contos de magia, como gênero.

Conforme vimos, Propp (1984) estudou os contos a partir da sua estrutura,

em que sua composição se dá por meio de funções ou ações dos personagens.

Entretanto, para o autor, o motivo no qual a história está inserida é o tema, que pode

ser dividido em vários sub-temas ou tópicos dentro de um único motivo/tema. Além

disso, há também o estilo, e a respeito desse entende-se que é a escolha, a forma

como o autor/ contador irá contar o conto.

Sob a perspectiva de Bakhtin (1997), como vimos, o autor aborda o gênero e

suas características, enfatizando o tema, composição e estilo. O autor compreende

que o gênero está na esfera da comunicação oral de todos os indivíduos e tem

como finalidade a interação social. A perspectiva de ambos os autores mostra-se

produtiva e, até certo ponto, convergente para o estudo do conto, na medida em que

suas teorias fornecem elementos que orientam a análise dos aspectos

característicos dos contos, cujas transformações importam considerar na passagem

para a mídia cinematográfica.

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16

Os autores tratam da composição do gênero em si, e definem suas

características, sendo que cada um deles trata de explicar um mesmo objeto, com

abordagens e perspectivas diferenciadas. Nesse sentido, ambos tratam da narrativa

oral, o gênero, tema, composição e estilo. Para Propp (1984), o enredo é o tema, e

esse não é uno nem indivisível, compreende-se que a partir de um tema, pode-se

gerar sub-temas, que por sua vez dizem respeito ao contexto em que a história está

inserida, considerando os aspectos culturais e sociais desse contexto, sendo assim,

o tema, ou o enredo, como o autor também o chama, em outras palavras, pode ser

adaptado, já que considera o contexto histórico-social. A estrutura composicional,

sob o ponto de vista do autor, foi definida em funções ou ações dos personagens da

narrativa, e o estilo diz respeito ao produtor/contador/narrador da história que levará

em conta o seu entendimento e responsabilidade acerca do tema, para o público

leitor/espectador/ouvinte da história.

Contudo, compreende-se, sob a perspectiva bakhtiniana, que o tema é o

conjunto de elementos externos de que o falante se apropria para construir

significação em uma ação comunicativa. Em outras palavras, entende-se que o

tema é o conjunto de informações trazidas pelos interlocutores em determinadas

situações, tendo em vista a construção textual. Logo, é um modo particular de

orientação da realidade, e seus fatores essenciais são os modos de ver, a avaliação

social e a relação com o interlocutor. Além disso, está associado a condições que

definem os usos específicos de gêneros, é o domínio de sentido do qual trata o

gênero.

O estilo, por sua vez, é a forma particular como o autor age no texto, uma

espécie de marca do autor, em que a voz desse está presente. Na narrativa oral, o

estilo está relacionado à performance do contador, que leva em conta a presença do

interlocutor. Mas também o texto escrito atenta a compreensão responsiva do

enunciado, tendo em vista a orientação para o leitor, que determina as escolhas

linguísticas do autor-narrador. Muito embora esse autor também seja o responsável

pela sua voz, como também, pelas vozes dos interlocutores, pois no momento da

escrita, da fala, geralmente, o autor considera o outro, e assim, de uma forma

responsiva, posiciona-se, com a finalidade de que o enunciado se torne

compreensível, embora fundamentado de modo crítico ou avaliativo.

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17

Desse modo, é possível identificar a estrutura de uma narrativa, por exemplo,

sobretudo das narrativas primordiais, já que essa apresenta sequência

caracterizada por situação inicial, uma ação, complicação e uma moral final.

Nesse sentido, por estar na esfera sociohistóricocultural, os contos clássicos

sofreram adaptações ao longo dos séculos, desde a época de sua recolha,

entretanto, ainda fazem parte do cotidiano atual, ou seja, fazem-se presentes na

contemporaneidade, embora a narrativa oral tenha perdido espaço para outras

mídias, o que não quer dizer que ela tenha desaparecido. Essas novas mídias

exploram os contos maravilhosos de forma diferenciada, mas sempre com o

propósito de recontar essas histórias, atualizando-as para o presente. Dessa forma,

esses contos inserem-se no contexto histórico atual e, ao mesmo tempo,

apresentam o contexto histórico passado, trazendo e valorizando culturas antigas,

ao mesmo tempo que se incorporam na atual.

Dessa forma, temos a narrativa oral, conto maravilhoso, como gênero

explorado pelas novas mídias, sendo alvo de releituras, reveladoras de novas

formas de interação social. Sendo assim, as adaptações desse gênero estão

presentes em diversos esferas da sociedade contemporânea, passando de um

contexto de oralidade para explorações em novas mídias, seja a televisão, os

quadrinhos, cartoons, que subtituíram, aos poucos, o papel do contador de histórias.

Logo, as adaptações dos contos clássicos vão ganhando novos espaços, sobretudo

releituras cinematográficas, passando do gênero narrativa literária para outro,

fílmica. O cinema, por apresentar caracteres diferenciados a respeito da nova forma

de contar histórias, serviu-se dos seus recursos próprios, como som, imagem, além

de outras técnicas cinematográficas, para encantar e reencantar o público

leitor/espectador.

2.2 CONTOS DE FADAS E O CONTEXTO SOCIOCULTURAL

Os contos de fadas são narrativas, ou estórias, transmitidas de geração em

geração, e apresentam em seu conteúdo elementos que remetem às experiências

de vida, que dizem do modo como os seres humanos evoluem e se afirmam como

comunidade, povo ou nação.

Conforme Mendes (2000), os contos permitem entender a realidade social de

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18

um povo, sua economia, seu sistema político, seus costumes e suas crenças.

Através das histórias é que eram explicadas a vida individual e social, passada,

presente e futura.

Da mesma forma, destacamos Italo Calvino, em relação à fábula, forma

narrativa das mais antigas:

“... as fábulas são verdadeiras. São, tomadas em conjunto, em sua sempre repetida e variada casuística de vivências humanas, uma explicação geral da vida, nascida em tempos remotos e alimentada pela lenta ruminação das consciências camponesas até nossos dias; são o catálogo do destino que pode caber a um homem e a uma mulher, sobretudo pela parte da vida que justamente é o perfazer de um destino: a juventude, do nascimento que tantas vezes carrega consigo um auspício ou uma condenação, ao afastamento de casa, às provas para tornar-se adulto e depois maduro, para confirmar-se como ser humano”. (CALVINO, 1992, p.15).

Segundo Darnton (1986), os contos mostram o contexto da sociedade da

época, o modo de pensar e o comportamento social. Esses contos não eram

destinados a crianças, e sim a adultos, que aprenderam a narrar histórias desde

cedo, transmitindo de geração em geração essas narrativas orais. Tais narrativas

eram uma forma de superar tamanhas tristezas, fome, pobreza e conflitos sociais,

resultantes de uma sociedade conturbada por guerras.

Na sociedade medieval, onde surgiram os contos de fadas, eram constantes

a fome, a pobreza e a mortalidade, como também, grande número de madrastas,

órfãos, magias e sacrifícios. Essas condições sociais, além do misticismo medieval,

influenciavam os contos, quase sempre com o intuito de passar uma mensagem de

ajuda ou superação. Os contos eram narrados e adaptados pelos camponeses, de

acordo com o contexto e a realidade em que viviam.

Sendo assim, grande parte dessa sociedade era influenciada pelo misticismo

medieval e vivia sob a constante demonstração do sobrenatural, podendo estar

representado em Deus, como na floresta, ou em alguma criatura, simbolizando

mistérios e perigos. Nesses contos, os símbolos são tanto de danação como de

salvação, caso típico da tão recorrente presença da floresta, que pode funcionar

tanto como refúgio dos males, uma vez que sob a luz diurna tornava-se tranquila e

fácil à busca de um caminho novo, sem fome, misérias e pestes, onde a felicidade e

o sagrado se manifestavam. Por outro lado, o imaginário medievo acreditava,

também, que a floresta simbolizava um lugar de maldades, bruxarias e de trevas,

pois em sua escura mansidão noturna abrigavam-se criaturas temerosas com sons

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horripilantes e desconhecidos.

Nesse cenário, surgiram várias histórias, contos e mitos, simbolizando as

ansiedades e aspirações daquela sociedade, muitas vezes histórias que ilustravam

um herói, podendo estar representando um senhor feudal, visto como um civilizador,

como também um ser divino, visto como sagrado.

Dessa forma, encontramos, por exemplo, o caso do rei Arthur, representado

como um herói de guerra, que lutava com bravura contra invasões em seu país.

Outro exemplo é o personagem Robin Hood, representando um rebelde justiceiro,

que vivia na floresta, e roubava as carruagens dos comerciantes ricos para dar aos

pobres, já que naquela sociedade a fome, misérias, doenças e desgraças climáticas

eram constantes. Robin Hood, então, defendia as camadas mais pobres da

sociedade, excluídas da partilha dos bens.

Em geral, os contos narrados pelos camponeses, no período medieval,

segundo Darnton (1986), ligavam-se à subnutrição, visto que o tópico alimentação e

sobrevivência mantêm-se como prioridade em várias narrativas. A busca por

alimentos é um assunto importante em vários contos, os quais cabem ser

destacados: O Pequeno Polegar, João e Maria, Branca de Neve e os Sete Anões.

As estórias possuem características semelhantes por tratarem da triste e dura

realidade da Europa Medieval de fome e pobreza. As guerras, os invernos rigorosos,

as constantes secas e a falta de técnicas agrícolas ocasionavam a escassez de

alimentos. Em conseqüência, a comida tornou-se um assunto constante, um sonho

para muitos que almejavam ter a sua mesa farta e assim obter sua realização

pessoal. Conforme Darnton, “Comer até se encher, comer até a exaustão do apetite

(manger à faim), era o principal prazer que tentava a imaginação dos camponeses e

que eles raramente realizavam em vida”. (Darnton, 1986, p. 53).

Sob este aspecto, compreendemos que os camponeses buscavam sobreviver

e almejavam uma nova ordem social, entretanto, as dívidas aumentavam, da mesma

forma que o ódio e a inveja também, logo, os conflitos de interesse perseguiam a

sociedade.

Diante disso, muitas famílias abandonavam seus filhos na floresta, a exemplo

da estória de o Pequeno Polegar, como também os deixavam nas portas das igrejas,

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20

para que as famílias ricas os adotassem, e a sorte dessas crianças assim era

lançada, na tentativa de salvá-las. Outras famílias os expulsam de casa, colocando-

os sob provas da vida, por acreditarem que eles deveriam buscar seu próprio

caminho, amadurecerem, logo alcançariam ascensão social, espiritual e assim

constituir-se-iam como seres humanos.

Por outro lado, nem sempre a comida era sinônimo de sonho e realização

pessoal. Esse é o caso das histórias de João e Maria e Branca de Neve, pois ambas

possuem em comum não só a fome, miséria e abandono na floresta, como também,

a comida representando um perigo.

Na estória de João e Maria, duas crianças abandonadas e perdidas na

floresta, vagando por ela, encontram uma casa de doces, onde vivia uma velha

bruxa, que planejava engordar as crianças, para depois comê-las. Da mesma forma,

encontramos no conto da Branca de Neve a maçã envenenada, oferecida por uma

bruxa. Desse modo, ambas as histórias valem-se da alimentação como um

componente fundamental de sua trama, com forte poder de atração sobre os heróis,

usada como elemento de dominação sobre eles. Porém, ao mesmo tempo, a oferta

de comida por pessoas estranhas, por mais tentadora que seja, representa sempre

um perigo de morte. Contudo, nem sempre os contos foram assim, as temáticas

dependiam dos lugares, das regiões. Por serem narrativas orais, cada um que as

contava apresentava versões diferenciadas de acordo com o contexto. Conforme

esclarece Darnton,

Enquanto os contos franceses tendem a serem realistas, grosseiros,

libidinosos e cômicos, os alemães partem para o sobrenatural, o poético, o

exótico e o violento. Naturalmente, as diferenças culturais não podem ser

reduzidas a uma fórmula – astúcia francesa contra crueldade alemã – mas

as comparações possibilitam que se identifique o tom peculiar que os

franceses davam a essas histórias; e a maneira como eles contam histórias

fornece pistas quanto à sua maneira de encarar o mundo. (DARNTON,

1986, p. 75).

No contexto medieval, marcado por várias disputas de reinos, constantes

alterações geográficas, sociais e políticas, é que os contos de fadas foram

desenvolvidos. Tal configuração histórica serviu de pano de fundo para os contos,

mostrando sua estreita vinculação às condições sociais e culturais em que eram

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produzidos e veiculados. Assim, a despeito do caráter maravilhoso do conto de

fadas, não podemos subestimar as questões ideológicas que perpassam essas

histórias à época de sua recolha pelos irmãos Grimm. Contradições sociais e as

questões relacionadas aos princípios de conduta individual, por exemplo, são uma

constante, pois os contos trazem características da sociedade medieval marcada

por conflitos.

Sob esta perspectiva, destacamos Propp,

...a vida real cria sempre figuras novas, brilhantes, coloridas, que se sobrepõem aos personagens imaginários; o conto sofre a influência da realidade histórica contemporânea, do epos dos povos vizinhos, e também da literatura e da religião, tanto dos dogmas cristãos como das crenças populares locais. O conto guarda em seu seio traços do paganismo mais antigo, dos costumes e ritos da antiguidade. Pouco a pouco, vai sofrendo uma metamorfose, e suas transformações também estão sujeitas a determinadas leis”. (Propp, 1984, pág. 80).

No entanto, compreendemos que os contos não eram destinados às crianças,

nem sequer usados para preveni-las a respeito dos perigos e da desobediência aos

pais, logo, não poderiam ser referidos a vinculações pedagógicas. Isso implica que

os contos foram transformados, pois a modernidade trouxe os códigos civis e o

reconhecimento das crianças como sujeitos dotados de uma especificidade. Nesse

contexto, os contos de fadas começaram a ser vistos a partir de novos horizontes,

principalmente estudos com enfoques psicanalítico e pedagógico, passando a fazer

parte do cotidiano das crianças, como também do nosso. Além disso, as narrativas

tradicionais tratam de temas que atravessam o tempo, relacionados aos dilemas do

crescimento, aos ritos de passagem, às relações familiares, uma vez que cultos

primitivos valorizavam a iniciação, ou seja, a formação do ser social. Com isso,

preparavam e ensinavam os sujeitos para desempenharem seus papéis e valores no

grupo, tribo, ou sociedade. Essas narrativas tradicionais estavam também

relacionadas aos fenômenos da natureza, às questões climáticas, demonstradas

através da passagem de uma estação para outra, de forma que carregam consigo o

simbolismo dos nossos antepassados e de seus rituais. Todavia, cabe destacar, as

relações familiares e os conflitos psíquicos também se prestam a uma série de

releituras, que incorporam elementos sociais e culturais de cada época. Nesse

sentido, é importante abordar a forma como os contos de fadas são estruturados e

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apresentados, visto que a caracterização destes se dá através das ações dos

personagens, bem como apresentam os anseios da sociedade da época.

2.3 BRANCA DE NEVE: ESTRUTURA NARRATIVA E REPRESENTAÇÕES

SOCIAIS NO CONTEXTO DA IDADE MÉDIA

No início do conto Branca de Neve, a protagonista era a princesa em um

reino onde imperava a felicidade e a harmonia.

A narrativa nos conta que, num reino distante havia uma rainha que, em certo

dia de inverno, estava sentada costurando e admirando a neve cair, até que num

momento de distração espeta o dedo com uma agulha e três gotas de sangue caem

sobre a neve. A rainha logo desejou ter uma filha tão branca quanto a neve, tão

corada como sangue, e de cabelos tão negros quanto o ébano desta janela.

Passado algum tempo, seu desejo é concretizado, a rainha dá à luz a uma linda

menina, e a chama de Branca de Neve. Logo após o nascimento da princesa, a

rainha morre, pouco tempo depois, o Rei casa-se novamente.

Neste ponto, podemos relacionar a opção dos autores da história em retratar

questões sociais vividas naquele contexto, como mortes precoces que ocorriam por

diversos motivos, conforme assinala Darnton (1986), seja por doenças causadas por

falta de higiene, fatores climáticos, fome, epidemias, guerras, entre outros.

A narrativa de Branca de Neve desenvolve-se a partir do medo que a rainha

tem de que Branca de Neve a supere em beleza e poder tal medo é alimentado na

narrativa pela vaidade e ciúmes da rainha em relação à princesa. Para Bettelheim a

disputa também é pela atenção do olhar masculino, representado pelo espelho

mágico. (BETTELHEIM, 2000, p. 246).

Neste sentido, é possível relacionar o conflito entre a rainha/madrasta e

Branca de Neve, mediado pelo espelho ao julgamento social. Portanto, o espelho

enquanto reflexo do olhar masculino, socialmente dominante, reforça as

características da personalidade, tais como vaidade, beleza, e poder.

Entretanto, cabe destacar que a morte precoce da rainha mãe causa uma

ruptura na história. Tal ruptura ocorre logo nos primeiros trechos do conto, e todo o

desenrolar da trama se dá em virtude desta ação. Esta ação é denominada por

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Propp (1984) como ausência/afastamento, visto que a personagem da rainha, mãe

de Branca de Neve, distancia-se de casa, neste caso definitivamente. Portanto, os

dois itens iniciais da estrutura básica de Propp encontram-se destacados aqui, ou

seja, o início e a ruptura. No entanto, o pai de Branca de Neve, o Rei, casa-se com

uma bela mulher, essa, porém, orgulhosa e vaidosa, não admite que nenhuma

mulher no mundo seja mais formosa do que ela. Por isso, incansavelmente

contempla sua bela imagem, por horas, diante de seu fiel amigo, o espelho mágico,

a quem sempre pergunta:

“Dize a pura verdade, dize, espelho meu” “Há no mundo mulher mais bela do que eu”? E num belo dia, o espelho respondeu: “Aqui neste quarto sois vós, com certeza”, “Mas Branca de Neve possui mais beleza”. (GRIMM, p.359).

A partir desse momento, dá-se o confronto segundo a estrutura básica de

Propp (1986), pois a rainha, então, passa a odiar e invejar Branca de Neve com todo

rancor que poderia existir na face da Terra. Inicia, então, o martírio da jovem

ingênua e órfã Branca de Neve. A madrasta, possessa de ódio e rancor, chama um

caçador e dize-lhe:

“Leva a menina para a floresta, bem longe. Não suporto mais vê-la perto de mim. Mata-a e, como prova de que cumpriste a minha ordem, traze-me o seu pulmão e o seu fígado”. (GRIMM, p.359).

Cabe destacar, conforme Propp, que a ação do personagem da madrasta em

chamar o caçador para levar Branca de Neve até a floresta caracteriza um

dano/malfeito, uma vez que o mal, um dano, é desejado e feito à heroína, pois o

caçador rapta a princesa e a leva para a floresta. Dessa forma, a rainha caracteriza-

se por ser uma mulher bela, porém ambiciosa e invejosa. Branca de Neve, além de

ser uma concorrente em virtude da sua beleza, também é um obstáculo para ela em

sua ascensão ao poder, uma vez que o anseio da rainha era reinar linda e soberana,

e Branca de Neve era herdeira legítima do trono. Por este motivo a rainha manda

matar Branca de Neve. Conforme Bettelheim (2000), embora a morte não signifique

o fim da vida, pois Branca de Neve ressuscita, a morte nesse sentido simboliza que

a madrasta deseja sumir com a princesa. (BETTELHEIM, 2000, p. 234).

O fato de a rainha desejar comer o pulmão e o fígado da Branca de Neve

está relacionado, conforme Bettelheim (2000), com os costumes primitivos ligados à

antropofagia, segundo os quais adquirimos os poderes e características daquilo que

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24

comemos. Conforme Bettelheim (2000), a rainha, com ciúmes de Branca de Neve,

deseja incorporar o encanto, a beleza da mesma, simbolizado pelos seus órgãos

internos. (BETTELHEIM, 2000, p. 246).

Por outro lado, numa outra perspectiva de interpretação, o canibalismo da

rainha está relacionado à metáfora da fome – nesse caso, uma fome de beleza,

para manter o corpo vivo e atraente, em contraste com a fome real, por falta de

alimentos, enfrentada pela gente do povo, os súditos da rainha. O caçador,

apiedando-se da menina, que implorava a ele que não a matasse, observando-a tão

bela e tão jovem, a solta, dizendo para que fugisse e não retornasse mais. Esse

episódio alude a sociedade medieval, pois frequentemente eram abandonados os

filhos e as crianças na floresta, para que as feras os devorassem, ou até mesmo

para tentarem a sorte longe dos seus familiares, os quais careciam de cuidados

consigo mesmos, e um filho era problema ainda maior. Neste ponto, segundo Propp

(1986), inicia-se a superação de obstáculos e perigos que envolvem a heroína. Por

outro lado, ao receber informações a respeito de Branca de Neve, através de seu

espelho mágico, através da ação denominada, conforme Propp, de

informação/esclarecimento, a madrasta vai até a casa dos anões e tenta enganar a

princesa. De fato, consegue, pois assume outra feição, já que disfarça-se para

conseguir eliminar a princesa de seu caminho. Esta ação, segundo Propp

denomina-se ardil/perfídia, assumida pela madrasta para enganar sua vítima,

Branca de Neve.

Ainda referente aos tópicos de sobrevivência e alimentação, destacamos que

a madrasta, na tentativa de tirar a vida de Branca de Neve, só obtém êxito quando

esta come a maçã envenenada. Neste aspecto, a maçã representa não apenas um

alimento, desejado por todos, era também um alimento incomum e fresco,

considerado uma relíquia.

Após Branca de Neve ter mordido a maçã, ela morre. Os anões a encontram,

e tristes com o acontecimento, choram por três dias. Logo, resolvem colocar Branca

de Neve em um caixão de vidro transparente, com letras de ouro escrevem o nome

dela e acrescentam que era filha de um rei. Depois a põem no alto de uma colina

para que possam continuar vendo-a, e um dos anões sempre fica ao lado, montando

guarda. Um belo dia um príncipe passa por aquela floresta, vê o caixão no alto da

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25

colina com Branca de Neve e diz aos anões que pagaria por ele todo o ouro do

mundo. Quando o príncipe e seus servos estavam levando o caixão, um dos servos

tropeça em uma raiz, com isso o caixão balança e Branca de Neve começa acordar,

pois estava engasgada com o pedaço de maçã que havia comido. A princesa, então,

retorna à vida, ponto em que se encerra a fase de superação de obstáculos e

perigos. O príncipe encanta-se com Branca de Neve, a leva até o seu castelo e a

pede em casamento; logo os preparativos para festa começam acontecer,

caracterizando a fase de restauração. Por fim, o desfecho inicia quando a madrasta

aceita o convite para ir ao casamento, curiosa em conhecer a rainha mais bela de

todas. Concretiza-se, assim, o castigo, pois a rainha má é obrigada a calçar

sapatinhos em brasa e dançar até morrer.

Além de aspectos estruturais, fatores sociais, políticos e econômicos, estão

representados nos contos de fadas, e, portanto, devem fazer parte da sua análise.

O conto Branca de Neve foi coletado pelos filólogos e folcloristas irmãos

Grimm, preocupados em relatar a realidade histórica da época, em pesquisar

elementos lingüísticos para fundamentarem a língua alemã, a fim de que futuros

estudos de caráter filológico pudessem acontecer. Os irmãos Grimm não dedicaram

suas pesquisas apenas com foco em estudos lingüísticos, também se preocupavam

com elementos culturais, uma vez que defendiam a fixação de textos do folclore

literário germânico como expressão cultural do povo. Para isso os irmãos reuniam-

se em sessões de contos, em que contavam histórias guardadas na mente, como

também ouviam os demais narradores que transmitiam conhecimentos sobre o

folclore. Dessa forma, registraram as narrativas orais contadas pelos camponeses,

sendo esses indispensáveis para o registro dos primeiros contos. Após a troca de

experiências, ao ouvirem muitas histórias na roda de amigos, tais ações ajudaram

os irmãos a estruturar de forma definitiva os contos. Os irmãos Grimm então foram

dando forma aos contos, publicando-os a partir de 1812, transformando-os em obras

clássicas da Literatura Infantil, mundialmente reconhecidas. Conforme Aguiar

(1985), tal sucesso está relacionado ao estilo de escrita dos irmãos, pois a

capacidade de condensar de forma mágica as histórias, assim como a trajetória das

ações dos personagens, os anseios e aspirações humanas, bem como a utilização

de uma linguagem despojada de artificialismo e expressões, contribuíram para que

os contos alcançassem sucesso, abordando uma temática que trata do crescimento

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26

e das experiências humanas da sociedade.

Os variados contos como Branca de Neve e os Sete Anões, O Pequeno

Polegar, João e Maria, A Bela Adormecida, Chapeuzinho Vermelho, entre outros,

representam situações cotidianas da sociedade da época, conforme pretendemos

explicitar especificamente através do conto da Branca de Neve e os Sete Anões.

O conto, assim como muitos outros que hoje tornaram-se leitura para

crianças não eram destinados a esse público. Na maioria das vezes, os contos

eram transmitidos em momentos de descontração, em reuniões à beira da lareira,

em que mulheres e homens trabalhavam, elas fiando, eles em meio às suas caixas

de ferramentas. Os objetivos das histórias eram diversos, poderiam servir tanto para

divertir os adultos, quanto para assustar as crianças.

A história da Branca de Neve apresenta caracteres semelhantes às demais

personagens, como Cinderela e Bela Adormecida, e tantas outras, em que jovens

sofrem com maus tratos de suas madrastas. Esses contos não só apresentavam

aspectos sociais e culturais semelhantes, como também mortes precoces, fome,

miséria, raiva, ódio, inveja, impostos abusivos, problemas financeiros, entre outros.

Diante das dificuldades, encontramos, também, órfãos, madrastas, magias,

bruxas, rituais, senhoras e senhores viúvos que carregam a responsabilidade de

manter seus filhos. Nesse sentido, a luta pela sobrevivência é travada, em um

contexto de emoções reprimidas, onde a inveja e o ódio estão presentes. Os contos

Branca de Neve e Cinderela, por exemplo, representam questões relacionadas à

morte de um dos pais, pois ambas perdem as mães, e ficam sob a responsabilidade

de madrastas cruéis.

O conto Branca de Neve baseia-se em uma estrutura básica, reconhecível,

isso é possível em virtude de possuir raízes orais. O conto foi recontado várias

vezes, transmitido de geração em geração, agregando valores culturais, políticos e

sociais, muitas vezes ganhando novos elementos, novos pontos de vista, mantendo

seu tema original, por vezes complementado por sub-temas até chegar aos dias

atuais.

Ainda a respeito dos contos, é necessário destacar que o conto de fadas por

ser um gênero narrativo está na esfera da comunicação oral, relatando um fato ou

determinado acontecimento, tendo em vista uma situação comunicativa, como

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27

também a interação social entre os indivíduos. Conforme Bakhtin (1997), os gêneros

estão presentes em toda e qualquer esfera da comunicação humana, possuem

características próprias, podem estar representados oralmente ou na escrita,

funcionam como instrumento de interação social. Para o autor, “o gênero é um tipo

relativamente estável de enunciado, que muda em função das alterações das

práticas sociais”. (BAKHTIN, 1997, p. 279). Tal conceito é reiterado por Bronckart

(2003, p. 101-102), tipos relativamente estáveis de enunciados são elaborados

sociohistoricamente, por diferentes esferas das atividades humanas, sempre

apresentando conteúdo, estruturação, relação entre os interlocutores e estilo

específicos. Sendo assim, o gênero resulta de uma abordagem discursiva, fruto da

interação das vozes sociais.

Seja no tema, na composição ou no estilo, elementos analisados por Bakhtin,

o conto incorpora os valores sociais, como podemos identificar nas características

que descrevem as personagens. A rainha madrasta é uma mulher bela, vaidosa e

mística. A característica de beleza é proveniente, talvez, de uma boa alimentação,

pois a rainha possui uma boa condição de vida, e com isso bom acesso a alimentos,

o que a diferencia em relação aos demais membros da sociedade da época. É

extremamente vaidosa, característica que se apresenta, por exemplo, todas as

vezes que ela contempla o seu espelho. Cabe destacar que conforme Bettelheim

(2000), o espelho mágico pode representar um olhar masculino. No contexto deste

trabalho, podemos definir que o olhar do espelho também representa a forma como

o olhar do outro é assimilado à perspectiva do sujeito que olha para si, buscando

confirmar a expectativa do olhar alheio. Portanto, a imagem que a rainha tem de si é

um reflexo de uma visão social. Por outro lado, a rainha caracteriza-se por ser uma

mulher que se utiliza da magia, representada na maçã envenenada e no próprio

espelho mágico. Na época, por conta do misticismo medieval, a mulher que fizesse

uso da magia e de outras crenças era mal vista pelo povo, pois tais práticas estavam

relacionadas, segundo a sabedoria popular, a pestes, maldições, bruxaria e magia

negra. Neste sentido, podemos observar diversas questões presentes na sociedade

da época internalizadas no conto.

A princesa Branca de Neve, por sua vez, caracteriza-se por ser uma moça

piedosa, ingênua e dedicada, além, das características físicas marcantes, como

cabelos negros, pele branca como a neve e bochechas coradas como o sangue.

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28

A piedade de Branca de Neve pode ser exemplificada pelo fato de ela deixar-

se comover pela madrasta em algumas situações, motivada pelo sentimento de

compaixão, como por exemplo, na cena em que aquela pobre velhinha vendedora

oferece-lhe uma maçã.

Por outro lado, outra característica da Branca de Neve é ser ingênua, essa

característica fica em evidência, por exemplo, quando atende ao chamado da

madrasta disfarçada, embora os anões tivessem alertado-a para não deixar ninguém

entrar na casa deles, enquanto estivessem fora, trabalhando.

Com relação à dedicação de Branca de Neve, cabe destacar a realização de

tarefas domésticas para os anões, condizentes com o perfil da mulher desejada pela

sociedade da época.

Sob este aspecto é importante destacar que tais características apresentadas

pela princesa eram valorizadas pela sociedade medieval (não de todo ausente nos

dias de hoje). A idealização feminina está diretamente relacionada à ideia de que a

mulher é submetida aos homens, ao seu poder e controle. As ações da mulher

diziam respeito à vontade do homem, e não à sua própria vontade, conforme a

expectativa da sociedade.

Em virtude destes aspectos, a mulher ideal era aquela dedicada, ingênua,

piedosa, a perfeita dona de casa, a rainha do lar que cuidava do marido e dos filhos,

características apresentadas por Branca de Neve, representada, nesses aspectos,

exatamente de acordo com padrões instituídos pela sociedade, que assim

determinava um modo de pensar e agir para a mulher.

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29

3 CAMINHOS DA ADAPTAÇÃO

As adaptações, atualmente, estão presentes nos mais variados tipos de

segmentos, sendo o cinema uma das principais mídias onde esse fenômeno é

incidente. O cinema, ao mesmo tempo que projeta imagens, preocupa-se em

apresentar o seu sentido ao público. O cinema é um meio de comunicação de

grande impacto, uma vez que combina várias artes em uma só, como música, artes

visuais, teatro, literatura, fotografia, entre outras. Além disso, o cinema,

principalmente no âmbito das adaptações, é feito por uma série de convenções e

regras acatadas pelas pessoas que trabalham com esta modalidade, pois no cinema

não trabalham apenas atores e artistas. Adaptar é uma arte complexa e exige

esforço de roteiristas, técnicos de som, de equipamentos, produtores e diretores, e

muitos outros colaboradores. Com isso, adaptar abrange vários estilos artísticos,

criando ao mesmo tempo uma forma representativa única.

O cinema e a literatura são artes próximas, ambos alimentam-se um do outro,

num contínuo processo de transformações e reconfigurações. Isso não quer dizer

que haja prevalência de uma arte sobre a outra, pois apesar da proximidade, cada

qual explora as potencialidades de sua própria linguagem. A literatura permanece no

cerne do texto, e isso não torna o cinema vazio. Por este motivo, ambas as artes

(re) significam-se, uma com o silêncio que as letras carregam, e a outra com a

inquietude dos sons, luzes e imagens.

As histórias são formas de representação, são variantes do tempo e da

cultura e, por isso, as adaptações são companheiras antigas, Shakespeare, por

exemplo, contou a história de sua cultura através das páginas dos livros, que logo

foram adaptadas para o palco, e mais tarde para o cinema, tornando-as disponíveis

para diferentes públicos. Desse modo, as adaptações são fundamentais às culturas

de diferentes contextos, conforme lembra Linda Hutcheon: “contar histórias, é

sempre a arte de repetir histórias”. Uma adaptação tem sua própria aura, sua

própria presença no tempo e no espaço, uma existência única no local onde ocorre”.

(HUTCHEON, 2011, p. 16).

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Em vista disso, ao longo dos anos, muitos adaptadores1, sem dar ouvidos a

críticas relacionadas à adaptação, compreenderam o que para alguns deles já era

óbvio, a arte deriva de outra arte; as histórias nascem de outras histórias. No

entanto, continuamente a adaptação é mal vista para alguns. Críticas foram tecidas

a respeito da adaptação, muitos textos acadêmicos e resenhas jornalísticas

disseminam uma ideia de que adaptações, principalmente as populares

contemporâneas, também conhecidas como Best Sellers, são secundárias e

inferiores culturalmente. Consequentemente, uma vez propagada a ideia de que o

cinema vem prestando um desserviço à literatura, são recorrentes ainda avaliações

de caráter discriminatório. Conforme Stam (2008, p.20), termos como “infidelidade,

traição, deformação, violação, vulgarização, adulteração e profanação”, carregam e

veiculam sua própria carga de opróbrio, apesar dos variados termos e acusações, a

sua motriz parece ser sempre a mesma: a de que o livro era melhor.

Para Stam (2008) uma adaptação é automaticamente diferente e original

devido à mudança do meio de comunicação. Sob este aspecto, o autor diz que a

passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio

multifacetado como o filme, que joga não somente com palavras, sejam escritas ou

faladas, como também com efeitos sonoros e visuais, há pouca probabilidade de

uma fidelidade literal, podendo ser qualificada até como indesejável.

Da mesma forma, compartilha Hutcheon (2011), se a adaptação é tida como

vulgar na história, em conformidade com alguma hierarquia de mídia e gênero

imaginada, tem tudo para ser negativa. Hutcheon observa que a arte do cinema

sofreu com as primeiras adaptações grande preconceito, sendo acusado de

simplificar a obra literária tornando-se assim seu “parasita”, culpado de fazer da

literatura sua “presa e vítima”. Ainda assim, para a autora, o cinema tem potencial

para desenvolver e falar por ele próprio: “o cinema tem em seu alcance inúmeros

símbolos para emoções que até hoje não encontraram expressão nas palavras”.

(HUTCHEON, 2011, p. 23).

Por outro lado, sob a perspectiva da psicanálise, Metz afirma que o cinema

“nos conta histórias contínuas; ele diz coisas as quais poderiam ser expressas na 1 O termo adaptadores é usado no sentido de definir todos os participantes do processo de adaptação. Em virtude

do cinema abranger muitos colaboradores, ou seja, realizadores, não significa que estamos atribuindo a uma

só pessoa o processo que envolve as transformações que englobam a passagem da literatura para o cinema.

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31

linguagem das palavras, porém, as diz de modo distinto”. (METZ, 1980, p. 44).

Entretanto, as histórias contadas provêm de outros lugares, e não são

integralmente inventadas, as adaptações possuem uma relação com textos

anteriores, esses chamados de fonte. Os adaptadores reconsideram, ampliam,

selecionam as histórias, contando-as a sua maneira, usam a mesma forma dos

contadores de histórias, conforme Hutcheon (2011, p. 24). As histórias que contam,

entretanto, são tomadas de outros lugares, e não inteiramente inventadas. Tal como

as paródias, as adaptações têm uma relação declarada e definitiva com textos

anteriores, mas diferentemente das paródias, costumam anunciar abertamente sua

relação.

Sob este aspecto, conforme Stam (2008), há teorias que lançam ideias e

dúvidas acerca da pureza, origem e essência da adaptação, ou seja, acerca da

fidelidade oriunda de textos anteriores. Para ele, embora no passado fossem tecidas

críticas acerca da adaptação, muitos estudos manifestando-se a favor da adaptação

avançaram no assunto, desde a narratologia à teoria da recepção, além da teoria

performativa e filosófica, assim como os estudos propostos por Gérard Genette, que

define a intertextualidade como tudo aquilo que coloca um texto em relação com

outros textos, seja essa relação manifesta ou secreta, conforme estabelecido por

Julia Kristeva, baseada em estudos anteriores como o dialogismo de Bakhtin. Desse

modo, a teoria da intertextualidade, trazida por Kristeva, enfatizou a permutação de

traços textuais, e não a fidelidade de um texto em relação ao anterior, abordando

assim o tema de forma menos discriminatória.

Para tanto, conforme Stam (2006, p.23), o propósito bakhtiniano é uma

reavaliação em relação à originalidade artística. Para Bakhtin, a expressão artística

é uma construção híbrida que mistura a palavra de uma pessoa com a de outra.

Uma vez que, para o autor, a literatura é vista como uma construção híbrida, isso

também é válido para um meio que abrange colaboração como, por exemplo, o

filme. Sendo assim, compreende-se, de acordo com autor, que a arte revitaliza-se,

recorrendo a estratégias de formas e gêneros anteriormente marginalizadas,

canonizando o que outrora fora desprezado.

Ainda sob o aspecto das críticas a respeito da adaptação, Stam (2006, p.21)

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32

enumera diversas questões, nominadas por ele como preconceito, que estão

relacionadas a outras formas de manifestação da arte. São elas:

1) Antiguidade: o pressuposto de que as artes antigas são

necessariamente artes melhores.

2) Pensamento dicotômico: o pressuposto de que o ganho do cinema

constitui perdas para a literatura.

3) Iconofobia: o preconceito culturalmente enraizado contra as artes

visuais, cujas origens remontam não só às proibições judaico-islâmico-

protestantes dos ícones, mas também à depreciação platônica e neo-

platônica do mundo das aparências dos fenômenos.

4) Logofilia: a valorização oposta, típica de culturas enraizadas na

“religião do livro”, a qual Bakhtin chama de “palavra sagrada” dos

textos escritos.

5) Anti-corporalidade: um desgosto pela incorporação imprópria do texto

fílmico, com seus personagens de carne e osso, interpretados e

encarnados, e seus lugares reais e objetos de cenografia palpáveis;

sua carnalidade e choques viscerais ao sistema nervoso.

6) A carga de parasitismo: adaptações vistas como duplamente “menos”:

menos do que o romance porque uma cópia, e menos do que um filme

por não ser um filme puro.

Dessa forma, a originalidade completa não é possível, tampouco desejável. A

originalidade da adaptação já não é tão valorizada, pois não é configurada como

uma traição à adaptação de um texto, já que muitos deles podem gerar inúmeras

leituras e, consequentemente, seja qual for o romance, ou texto-fonte, pode ser

adaptado.

Por isso, a adaptação herda raízes do dialogismo intertextual e do gênero. O

primeiro, contribui para superar os paradoxos da fidelidade, assim, a adaptação não

é a ressuscitação de uma palavra original, porém uma volta no processo dialógico

em andamento. O segundo, (o gênero) está para uma espécie de compromisso com

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33

o gênero no gênero, ou melhor, um conjunto de convenções de gêneros, já que as

adaptações cinematográficas de romances, sobrepõem uma espécie de acordo de

gênero, uma vez que é derivada do intertexto genérico do próprio romance-fonte, e

por outro lado também é composta pelos gêneros utilizados pela mídia tradutória do

filme. Desse modo, a adaptação cinematográfica é uma arte, que consiste na

escolha de quais convenções de gênero são possíveis transpor para o novo meio, e

quais necessitam ser transcodificadas, descartadas, ou substituídas.

Ainda de acordo com Stam (2008, p. 23), é importante ressaltar que o gênero

antes mesmo de ser destacado como gênero fílmico/cinematográfico ou literário é

proveniente de tensões históricas, sociais e culturais. Sendo assim, o gênero

geralmente vem acompanhado de avaliações sociais e conotações de classe já que

é através da narrativa que os indivíduos usam as histórias, principalmente, dão

forma e sentido às coisas, não exclusivamente na escrita, mas em diferentes

linguagens e meios.

A arte narrativa faz da história o seu gene, que se manifesta especificamente

no texto, o que faz da narrativa ser polimorfa, uma vez que assume as mais

variadas formas, tanto pessoais, quanto públicas esboçadas no dia a dia, entre

essas, por exemplo, há histórias em quadrinhos, notícias, o cinema, e a publicidade

em geral, entre outras. Por esse motivo, conforme o autor, a literatura e o romance

não mais ocupam um lugar privilegiado, a adaptação por implicação assume um

lugar legítimo ao lado do romance como apenas mais um meio narratológico. Logo,

o romance e o filme não são retratos de uma realidade pré-existente, e sim são

expressões comunicativas situadas no âmbito social moldadas historicamente.

Sob este aspecto, Hutcheon (2011, p. 230-231) diz que os contextos culturais

são considerados nas adaptações, citando como exemplo o cineasta africano

Ousmane Sembène, considerado na África um griot, ou contador de histórias orais

moderno, pois utiliza o cinema para recontar relatos tradicionais. Por outro lado, há

também adaptações que podem desestabilizar a identidade cultural e, desse modo,

mudar as relações de poder. O caráter subversivo de algumas adaptações contribui

para que essa exerça poder e fascínio sobre os adaptadores e o público.

Sob este viés, a autora toma como exemplo o poeta inglês Percy Bysshe

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34

Shelley que, no século XIX, ao ler um manuscrito o qual tratava de uma jovem

italiana que sofrera com incesto e assassinato, resolveu escrever uma peça em

versos, contando a história da jovem. Tal peça caracterizava-se por uma espécie de

protesto histórico, contra o que foi uma tragédia privada, e um escândalo público, já

que a jovem foi presa e morta em praça pública por ter planejado e executado a

morte de seu abusador e um decreto papal autorizou a execução da jovem. Desse

modo, compreende-se que a adaptação trata de contextos históricos, sociais e

culturais, assim como possíveis mudanças relacionadas ao poder, desigualdades de

gêneros, autoridades tiranas, entre outras situações.

Além disso, cabe destacar que a adaptação também está relacionada com o

mercado financeiro, pois alguns adaptadores tendem a adaptar conforme o

mercado, ou seja, de forma mais segura, com romances, textos-fontes confiáveis e

consagrados, tanto financeiramente quanto em relação à censura. Alguns se

arriscaram a adaptar romances populares, como os filmes de Hollywood, no período

clássico, outros, como o cinema britânico, no entanto, preferiram romances já

consagrados dos séculos XVIII e XIX, como por exemplo, os romances de Jane

Austen.

Entretanto, as adaptações são motivadas tanto por questões econômicas,

quanto por motivos pessoais e políticos, pois conforme Hutcheon (2011) as

adaptações são coletivas, quando preparadas em mídias performativas ou

participativas, sendo que para compreendê-las é importante considerar o processo

criativo do adaptador, já que esse aborda questões estéticas e políticas do contexto

criativo, entre outras peculiaridades. Stam (2008) compreende que as adaptações

fílmicas se encaixam no conceito de palimpsesto, cunhado por Gerárd Genette, em

que um texto ensaia mais de um texto em uma mesma obra, sendo hipertextos

nascidos de hipotextos preexistentes, transformados por operações de seleção,

ampliação, concretização e realização. E ainda acrescenta Stam que as adaptações

fílmicas caem no contínuo redemoinho de transformações e referências

intertextuais, de textos que geram outros textos, num interminável processo de

reciclagem, transformação e transmutação, sem um ponto de origem visível.

Sendo assim, também para Hutcheon (2011) a ideia de fidelidade da

adaptação não pode ser referendada, uma vez que termos como alterar, tornar

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adequado ou ajustar, entre outros, podem ser referidos ao conceito de adaptação.

Além disso, outras perspectivas podem ser designadas à adaptação, tais

como processo de criação, produto formal e processo de recepção, apesar de

perspectivas diferenciadas, essas estão sempre inter-relacionadas. Desse modo, a

adaptação poderá envolver uma mudança de mídia, de um gênero, e de foco. No

primeiro, mudança de mídia, entende-se, por exemplo, como uma mudança de um

poema (contar) para um filme (mostrar). Já no segundo, no gênero, compreende-se,

como uma mudança entre gêneros. Por exemplo, uma adaptação do romance para

o cinema, ou teatro. No último e não menos importante, há mudança de foco, que

pode ser compreendida como uma mudança de contexto, ou seja, recontar a

mesma história com ponto de vista diferente, assim, desencadeando uma

interpretação distinta. Cabe destacar que mudança de forma (ex: poesia, imagens,

sons), gênero (ex: romance, teatro), modo/foco (narrativo, dramático), foram

explorados pela autora como formas de engajamento, como: contar, mostrar e

interagir. Como processo de criação, a adaptação é vista tanto como uma (re)

interpretação, quanto uma (re) criação. Já na perspectiva que envolve o processo de

recepção, a adaptação é uma forma de intertextualidade.

Ainda nesse cenário é importante destacar que a arte tem sua especificidade

material e formal. Segundo Hutcheon (2011, p. 62), cada mídia, conforme as formas

que utiliza para explorar, combinar e multiplicar os materiais familiares de expressão

– como ritmo, movimento, gesto, música, fala, imagem, escrita, cada mídia possui

sua própria energia comunicativa.

Para tanto, a mudança de mídia e as formas de engajamento,

especificamente, do contar para mostrar, isto é, da literatura para o cinema, é

considerada como uma transposição angustiante, uma vez que envolve uma longa e

complexa mudança, pois muitas delas podem reduzir, ampliar, cortar, principalmente

se estiverem envolvidas, por exemplo, com os romances. Por isso, muitos dos

discursos sobre a adaptação para o cinema concentram-se em termos de perda.

Conforme Hutcheon (2011, p. 66), em alguns casos isso que chamam de perda é

simplesmente uma redução no escopo: modifica-se a extensão, eliminando detalhes

e alguns comentários.

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36

Por outro lado, as adaptações cinematográficas também inserem na narrativa

vozes, músicas, corpos, sons, assim, configurando uma nova roupagem ao texto

literário. Ao mesmo tempo em que o valoriza, a adaptação também valoriza a si

mesma, por ser um processo que (re) transforma, (re) cria, seja no espaço do

cinema ou da própria literatura.

Dessa maneira, a autora explora o cinema enquanto mídia, desafiando

conceitos já pré-estabelecidos, como por exemplo, a ideia de que o cinema presta

um desserviço às demais artes. Conforme Hutcheon (2011), historicamente o

romance sucedeu o drama, porém, absorveu algumas de suas qualidades

(personagem, diálogo), ao mesmo tempo acrescentou novas possibilidades

(monólogo interior, ponto de vista, reflexão, comentário, ironia, entre outros). Logo,

compreende-se que o cinema inicialmente seguiu os princípios básicos da narrativa

em prosa e copiou o teatro de palco, enquanto desenvolvia suas próprias técnicas e

formas, assim como mecanismos particulares de produção e distribuição de

consumo.

Por outro lado, encontramos em Stam (2008) que a teoria da adaptação

herda questões anteriores relativas à intertextualidade e gênero. A palavra gênero

etimologicamente é proveniente do latim, genus, que significa “tipo”, além disso,

através da classificação dos diversos tipos de textos literários e a evolução das

formas literárias, foram aparecendo teorizações acerca dos gêneros, surgidas no

Ocidente. Sendo assim, temos, por exemplo, Aristóteles, que faz a distinção entre o

meio de representação, os objetos representados e o modo de apresentação,

resultando, na clássica distinção entre o épico e o dramático, à qual se acrescenta o

lírico como desdobramento posterior. Logo, o mundo do cinema herdou esse antigo

hábito de classificar as obras em “tipos”, alguns extraídos da literatura, como por

exemplo, comédia, tragédia, melodrama. Por outro lado, há outros mais visuais e

cinemáticos, como animações. Assim, as adaptações fílmicas de romance-fonte

sobrepõem um conjunto de convenções de gênero, sendo que uma é extraída do

intertexto genérico do próprio romance-fonte, a outra é constituída pelos gêneros

empregados pela mídia tradutória do filme.

Ainda nesse cenário, outro ponto a considerar, de acordo com Hutcheon

(2011), é que a adaptação é o processo de criação, pois envolve-se em uma (re)

Page 45: luciele gonçalves da silva interferência de fatores culturais da

37

interpretação, uma (re) criação, podendo ser chamados de apropriação ou

recriação. Dessa forma, essa perspectiva diz respeito à preservação de relatos

valiosos que muito pouco comunicaria a um público contemporâneo, sem certa

“recriação”, reanimação criativa. Como no caso das lendas orais tradicionais

africanas, em que a adaptação preserva uma rica herança em um modo visual e

auditivo, a um público contemporâneo que pouco compreenderia tal contexto da

história e sua importância, sem o auxílio da reanimação criativa.

A última perspectiva é o processo de recepção. Sob esta perspectiva, a

adaptação é uma forma de intertextualidade, caracteriza-se por uma transposição

declarada de uma ou mais obras reconhecíveis; um ato criativo e interpretativo de

apropriação/recuperação. Nesse sentido, a adaptação é uma derivação que não é

derivativa, uma segunda obra não secundária, e sim ela mesma é sua própria coisa

palimpséstica. Sendo assim, a adaptação abrange desde filmes a videogames e arte

interativa, é tanto um desejo de repetição quanto de mudança, já que é baseada em

uma ou mais obras preexistentes, todavia, reencenada, transformada.

Sob este aspecto, explica Stam (2008, p.24), em termos históricos e de

gênero, o romance e o filme reinventam-se, através dos gêneros e mídias

antecedentes. Logo o romance iniciou harmonizando uma diversidade polifônica de

materiais, literatura de viagem, alegoria religiosa, entre outras, transformados em

uma nova narrativa, reafirmando, anexando artes vizinhas, criando novos híbridos,

romances dramáticos, poéticos, epistolares, entre outros.

Entretanto, o cinema enquanto meio de comunicação, linguagem rica e

sensorialmente composta, é aberto aos mais variados tipos de energias literárias,

imagísticas, enfim, aos diversos tipos de simbolismo, e a todas as representações

coletivas, ideológicas, tendência estéticas, como também ao infinito jogo de

influências nas demais artes e da cultura em geral. Ademais, o cinema carrega a

intertextualidade consigo, já que a trilha da imagem tem suas raízes na história da

pintura e das artes visuais, enquanto o som herda a história da música, seguido do

diálogo e da sonoridade. Desse modo, compreende-se, de acordo com Stam, que a

adaptação é a ampliação do texto-fonte através de múltiplos intertextos, o núcleo é

transportado para outras mídias e gêneros, sobre as diferentes formas de empenho,

desde o contar, até o mostrar e interagir. Assim a adaptação visa a uma passível

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38

equidade relacionada ao sistema simbólico para os mais variados aspectos da

história, como: temas, personagens, eventos, motivações, contextos,

consequências, ponto de vista, entre outros.

Contudo, a adaptação ocorre de forma material em particular, cujos

adaptadores (teóricos/cineastas) refletem acerca de elementos históricos,

individualmente, muito embora estejam motivados por questões técnicas ou pelas

diferentes mídias seguidas de seus elementos distintos. Com isso, é previsível que o

tema, seja adaptado mais vezes, entre mídias, gêneros e contextos, uma vez que

através de uma história é possível trabalhar vários temas tradicionais variáveis,

como aspectos da natureza, amor, tristeza, ódio, vingança, revelação, elementos

mágicos, entre outros. Além disso, os personagens da história podem ser

transportados de um texto ao outro, tornando-se importantes tanto para efeitos

retóricos, quanto estéticos da narrativa, e assim aguçando o imaginário dos

leitores/espectadores.

No entanto, além do tema e dos personagens da história, podem ser

adaptadas as unidades da história, da fábula, do conto, ou seja, resumidas,

expandidas, traduzidas para demais idiomas, com a finalidade de tornar

compreendidas essas histórias. Por mais que tais mudanças ocorram na adaptação,

seja por motivos técnicos, ou por ponto de vista, conduzem a variações relevantes.

Por outro lado, conforme Hutcheon (2011), há de considerar que algumas

adaptações também transformam o ponto de partida, a conclusão da história, ou até

mesmo o próprio enredo pode ser substituído, como, por exemplo, o caso de uma

crise política, no contexto histórico social no momento em que a adaptação está

sendo preparada, tal crise poderá ser substituída por uma crise pessoal, a depender

dos objetivos e circuntâncias do adaptador. Além disso, esses fatos, geralmente,

ocorrem porque cada forma envolve um modo diferenciado, tanto pela parte do

adaptador quanto pelo público. Cada forma adapta diferentes coisas de diferentes

maneiras, ou seja, contar uma história é diferente de mostrar, interagir, pois, numa

história contada, como no caso de romances e contos, o contador/narrador percorre

o tempo e o espaço, relatando, resumindo, expondo e por vezes, ousa empreender

mergulhos na mente do personagem.

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39

Por outro lado, mostrar uma história implica envolver elementos auditivos,

visuais, palavras, sons, luzes, já que estas histórias, geralmente, são apresentações

de teatro, musicais, filmes, óperas, como também as adaptações demandam dos

adaptadores contrair, subtrair, cenas dos romances, por exemplo.

Outro ponto a destacar a respeito das adaptações é que nem todas se

envolvem em atos de corte, em termos técnicos, quer dizer, subtração ou contração,

já que os contos, por exemplo, são adaptados, sem que o adaptador necessite

utilizar de ferramentas como o corte, para que a adaptação aconteça em tal modelo

narrativo. Desse modo, em muitas ocasiões, os contos, ou seja, as fontes precisam

ser ampliadas, de qualquer maneira, o adaptador fará tal procedimento da forma

mais apropriada que este julgue pertinente, independente das razões, embora essas

sejam muitas, o adaptador poderá transcodificar uma mídia para outra ou um gênero

específico.

Nesse sentido, outro aspecto relevante a ser destacado é que existem

também os propósitos econômicos, políticos, históricos, sociais, culturais e

artísticos, de interesse do adaptador e do mercado que orientam a adaptação de

uma obra, de um texto literário. Esses aspectos são um dos motivos pelos quais é

um equívoco a preocupação com o quesito fidelidade à obra. Por outro lado, cabe

mencionar, conforme Hutcheon (2011), que a adaptação é uma ação um tanto

quanto de recuperação, como também de apropriação, envolvendo ao mesmo

tempo um processo duplo de interpretação, quanto à criação de algo novo. Por isso,

compreende-se que a adaptação, enquanto adaptação, é uma espécie de

intertextualidade e o adaptador, geralmente, considera o seu público, seja esse

leitor, espectador, ou ouvinte.

Para tanto, é importante dizer que cada processo possui suas especificidades

em diferentes mídias, para que a imaginação seja despertada, e assim entremos no

universo do imaginário. Quer seja no mostrar uma história, como em filmes e peças,

ou no contar, como em contos e romances, entranhamo-nos no mundo da

percepção sensorial. Há também o modo participativo, esse por sua vez mais afeito

às mídias interativas, como o videogame, diferenciando-se, assim, das demais

mídias, principalmente pelo seu aspecto de lançarmo-nos no mundo físico e

sinestésico. Embora esse processo adaptativo possua suas especificidades, ambos

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40

carregam caracteres ativos, tanto imaginativos, quanto cognitivos. Ainda nesse

sentido, cabe destacar, em virtude de o foco do nosso trabalho estar relacionado

com a passagem da literatura para o cinema, aspectos que caracterizam a

adaptação, assim como os meios de passagem de um gênero a outro, de uma

mídia a outra.

Por isso, a passagem do gênero literário narrativo para o cinema, ou seja, do

contar para mostrar, passa primeiramente pelo campo da imaginação, para depois

envolver questões visuais, auditivas, entre outras técnicas que o cinema engloba.

Logo, é o processo da imaginação, guiado pelas palavras, essas já selecionadas,

que conduzem o texto, do contar para o mostrar, aspecto apresentado

principalmente no cinema, ou peças teatrais, entre outros. Assim, a imaginação

passa para o campo da linguagem do cinema, misturando ao mesmo tempo

detalhes, em um eixo ampliado. Uma vez que um filme embase-se em uma

estrutura de três atos, o primeiro deles é o começo que estabelece o conflito; o

segundo é um meio que explora as implicações do conflito; e o terceiro é um fim que

resolve o conflito. (Hutcheon, 2011, p. 37). Logo, compreende-se que um filme

possui a mesma estrutura de um conto, uma narrativa.

Dessa forma, conforme Hutcheon (2011), o modo performativo nos ensina

que a linguagem não é a única forma de expressar o significado ou de relacionar

histórias. Logo, as representações visuais e gestuais são ricas e complexas, a

música corresponde às emoções dos personagens, provocando reações afetivas no

público. Desse modo, o som, geralmente, tanto reforça, quanto realça, como

também contradiz os elementos visuais e verbais. Nesse sentido, não há diferença

entre texto verbal e imagens visuais, pois atos comunicativos, expressivos, -

narração, argumentação, descrição, exposição e outros dos chamados “atos de fala”

- não possuem mídia específica, não “pertencem” a uma mídia ou outra.

Sendo assim, compreende-se que não há mídia performativa melhor ou pior,

boa ou ruim, uma vez que tais mídias possuem uma essência em si, utilizam

diferentes meios de expressão. Por outro lado, há de considerar que contar uma

história, seja escrita ou falada, diferencia-se de mostrar. Conforme já dito, o campo

do mostrar envolve elementos que perpassam desde o som a luzes, cada qual com

sua peculiaridade conquistam o público, leitor/espectador. Além disso, as histórias

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41

não se resumem apenas a uma mera transmissão de elementos, como meio,

regras, a passagem de uma mídia a outra, ou de gênero para gênero. Ao contrário,

esses elementos harmonizam e ao mesmo tempo regulam os objetivos da narrativa,

uma vez que essa faz sentido para um indivíduo em algum contexto, ao mesmo

tempo em que é criada por um indivíduo com o mesmo propósito. Dessa forma, a

teoria da adaptação abrange um vasto contexto significativo, com a finalidade de

significar a narrativa na adaptação.

Diante disso, faz-se necessário destacar que Stam (2006, 51: 35) entende a

adaptação como uma realidade pré-existente seja na obra ou no filme, ambas são

expressões comunicativas, situadas no âmbito social e moldadas historicamente.

Ademais, o autor considera que para uma adaptação seja considerada adequada, é

necessário que haja consideração entre tema e estilo. Além disso, é importante a

afinidade entre autor literário e adaptador/cineasta, como também as questões

relacionadas com as modificações e permutas da história.

Outro elemento considerado importante para Stam para refletir sobre a

adaptação relaciona-se com os personagens, refletir de que modo as adaptações

adicionam, eliminam ou condensam os personagens, contribui para o

leitor/espectador refletir sobre a adaptação enquanto adaptação. E o último

elemento que o autor considera é o contexto. O contexto é muito importante, já que

as adaptações, como os romances, são capazes de refletir questões ideológicas e

culturais, assim como discursos dominantes à época em que foi produzida.

No entanto, sob a mesma perspectiva, para Hutcheon (2011), o contexto pode

modificar o significado, não importa onde ou quando, pois no geral, as adaptações

transculturais provocam mudanças nas políticas, tanto raciais quanto de gênero. Por

outro lado, também pode haver mudanças dentro de uma única cultura, tais

mudanças podem abranger uma mesma sociedade, e assim podem ocorrer

adaptações transculturais em um nível local. Entretanto, a autora considera que uma

adaptação mostra como as histórias evoluem, transformando-se e adequando-se a

novos tempos e a diferentes lugares, já que uma história pode ser adaptada para o

uso em diferentes contextos, países e culturas, uma vez que um novo escritor e

adaptador incluam novos temas em obras anteriores, possibilitando a reflexão

acerca de novas ou antigas demandas sociais. Por este motivo, entende-se que a

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42

adaptação é repetição sem replicação.

Neste capítulo, procurou-se refletir acerca da teoria da adaptação, mais

especificamente, adaptações transculturais. Como vimos, Stam e Hutcheon

apresentam considerações inter-relacionadas acerca da adaptação, pois baseiam-se

em pesquisas anteriores, essencialmente, fundamentadas nos estudos sobre o

dialogismo de Bakhtin. Tanto Hutcheon quanto Stam refletem sobre a literatura e o

cinema enquanto narrativas, uma vez que a adaptação envolve dois textos que

comunicam a mesma narrativa, e assim lançam base e fundamentam a Teoria da

Adaptação.

Nesse sentido, questões em comum são abordadas pelos autores, uma delas

está relacionada à fidelidade à obra anterior, literária, pois ambos acreditam que

essa questão não é possível, uma vez que um texto engloba outro texto, assim

como um indivíduo engloba a fala de outro em sua fala, ou seja, em seu discurso.

Por este motivo, a questão que engloba a fidelidade à obra enquanto adaptação,

não passa de um ideal teórico.

Outro aspecto elencado pelos autores no que diz respeito à literatura e às

adaptações cinematográficas é que ambos entendem que as adaptações são

provenientes da narrativa, pois cabe lembrar que antes mesmo de definirem os

gêneros, como literários, cinematográficos, fantasia, entre outros, estes eram

resultados de fatores históricos, sociais, e culturais. Além disso, os gêneros são

baseados no dialogismo intertextual de gênero, permitindo assim que a adaptação

reoriente-se em um processo dialógico em movimento, já que os indivíduos também

utilizam a narrativa para dar sentido e forma a acontecimentos.

Ainda nesse sentido, os autores entendem que as histórias são consideradas

formas de representação, e, portanto, variam com o tempo e a cultura, por isso, não

é diferente com o processo de adaptação literária para o cinema.

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43

4 RECRIAÇÃO DO CONTO DE FADAS PARA AS TELAS

4.1 BRANCA DE NEVE E O CAÇADOR

A adaptação fílmica Branca de Neve e o Caçador (2012) foi dirigida por

Rupert Sanders, sendo uma das mais atuais versões para o cinema. Cabe destacar

que, em virtude de o conto ter sido adaptado várias vezes, tais adaptações inspiram

as versões atuais a inovarem, como um processo de reciclagem, pois muitas vezes

inserem novos elementos, às vezes os mantêm, ou ainda, os substituem, a fim de

manter a versão atualizada com o contexto, sem apegar-se somente ao texto

original. Nesse sentido, conforme Stam, “a existência de tantas adaptações

anteriores alivia a pressão pela fidelidade, ao mesmo tempo que estimula a

necessidade de inovação”. (STAM, 2006:43).

Por este motivo existem traços de adaptações anteriores nas adaptações

atuais, uma vez que as adaptações possuem relação recíproca com textos

anteriores, e não visa à fidelidade de um texto em relação ao outro, esses

chamados de fonte. É o caso das adaptações escolhidas para este trabalho, uma

vez que ambas apresentam em comum a exploração dos temas da vaidade e da

beleza, da relação de poder e da afirmação da mulher, cada qual com seu processo

de inovação e de acordo com as demandas da sociedade contemporânea.

No intuito de melhor apresentar o desenvolvimento da adaptação do conto

Branca de Neve para o filme Branca de Neve e o Caçador, valeremo-nos dos

aspectos que compõem a estrutura básica, propostos por Propp (1984), a saber,

início, ruptura, confronto, superação de obstáculos e perigos, restauração e

desfecho. Entretanto, descreveremos primeiramente o tema, o estilo e a

caracterização dos personagens de acordo com sua ação.

O tema da narrativa fílmica Branca de Neve e o Caçador desenvolve-se a

partir da afirmação da mulher representada, principalmente, por Branca de Neve, tal

tema é embasado nas características e objetivos da personagem. Adicionalmente,

temas como vaidade, beleza e poder também são destacados nesta adaptação. A

vaidade e a beleza são representadas pela rainha, visto que ela é obcecada pela

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44

juventude, pois não aceita o envelhecimento e não mede esforços para preservar

sua beleza e jovialidade. Com relação ao poder, a rainha utiliza-se deste para

subjugar o povo, e conseguir recursos sempre no intuito de manter-se jovem.

Diferentemente do conto literário, o estilo da adaptação fílmica não é

caracterizada pelo contar e sim pelo mostrar. Nesse contexto, podemos analisar o

estilo proposto nesta adaptação por Rupert Sanders através, por exemplo, dos

figurinos, dos cenários e da própria caracterização visual dos personagens. Estes

apresentam traços sombrios e negros, como se sempre houvesse algo mágico por

trás dos acontecimentos. Assim, o adaptador quis reforçar o seu ponto de vista

acerca do tema não só através da representação das características e ações dos

personagens, como também através de um cenário místico medieval representado

pelo castelo, assim como pelo figurino da rainha Ravenna. A personagem usa

vestidos imponentes e sombrios, o que está relacionado aos aspectos sombrios e

amargurados apresentados pelo perfil da rainha. Neste ponto, cabe destacar que

embora o figurino represente, talvez, os aspectos sombrios de Ravenna, este

também pode estar representando uma questão social, pois a rainha veste-se

diferente dos demais membros do reino, destacando as grandes desigualdades

sociais. Além disso, o cenário também está representado através do espelho mágico

de Ravenna, de forma a reforçar o ponto de vista do adaptador, utilizando

características visuais no espelho que lembram o metal precioso, o ouro, dessa

forma ressaltando a característica da vaidade da rainha.

Com relação à caracterização dos personagens em conformidade com sua

ação, descreveremos a caracterização da rainha Ravenna e Branca de Neve. A

personagem da madrasta, representada pela rainha Ravenna, caracteriza-se por ser

uma mulher vaidosa, bela, mística e que nutre um ódio profundo pelos homens.

A característica relacionada ao ódio de Ravenna pode ser observada na

cena, descrita na Figura 1, em que ela e o rei encontram-se no quarto em sua

primeira noite juntos, após o casamento. Nesta cena, por exemplo, ela diz ao rei que

já foi levada à ruína por outro rei, quando substituía a esposa dele, pois essa era

muito velha, e com o tempo Ravenna também sabia que seria substituída. Neste

ponto, compreende-se que o ódio de Ravenna provém do fato de ela ter sido

substituta da mulher do rei, por ser mais jovem do que ela. Sob esta cena ainda

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45

podemos observar que outra característica de Ravenna se torna visível, a afirmação

da mulher. A rainha busca a independência e demonstra tomar as rédeas de seu

destino, por si própria, sem que um homem escolhesse por ela, o que seria uma

escolha dela mesma. Tal característica da afirmação da mulher é representada pela

rainha, no desejo de afirmar-se como mulher, e está presente no fato de ela

demonstrar que pode buscar seus meios de subsistência sem a necessidade de um

provedor masculino.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Cabe destacar que diferentemente do conto literário dos irmãos Grimm, esta

adaptação cinematográfica agrega a característica da afirmação da mulher,

representada pelo desejo de afirmação da rainha, o que considera o contexto atual,

uma vez que o perfil de mulheres contemporâneas aproxima-se do desejo da rainha

de afirmar-se na sociedade atual enquanto mulher independente que não necessita

de um provedor masculino.

As características da vaidade e da beleza da rainha Ravenna apresentam-se,

principalmente, todas as vezes que ela consulta o seu espelho mágico. (conforme

Figura 2). De modo semelhante ao conto literário, o espelho pode ser compreendido

como a maneira que a sociedade observa a rainha.

Figura 1 - Rainha Ravenna em sua noite de núpcias

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Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

A preocupação da rainha com a beleza está relacionada à alimentação, uma

vez que ela come as entranhas dos animais, como, por exemplo, os pulmões e o

coração, visando adquirir beleza, juventude e vitalidade, conforme vemos na Figura

3.

Figura 3 – A rainha Ravenna come as entranhas dos animais.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Tal aspecto, conforme Bettelheim (2000), está relacionado com costumes e

pensamentos primitivos, segundo os quais são adquiridos os poderes e

características daquilo que comemos. Outro ponto a destacar diz a respeito às

jovens mulheres do reino, das quais Ravenna consome seus corpos, incorporando

Figura 2 – O espelho mágico e a rainha Ravenna

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tais características das jovens, a fim de manter-se sempre bela.

Neste ponto, é importante destacar que estas ações diferem do conto literário

dos irmãos Grimm, pois, no conto a rainha deseja comer os pulmões e o fígado de

Branca de Neve a fim de incorporar as características da princesa. Na adaptação de

Branca de Neve e o caçador, tal desejo está representado nas entranhas dos

animais, e na espécie de magia que Ravenna pratica com as jovens mulheres

prisioneiras do castelo consumindo-lhes a beleza, juventude e vitalidade com a

finalidade de com isso o poder se manter em suas mãos para sempre, como

observamos na Figura 4.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Como podemos observar na figura 4, destacamos a cena onde a rainha

Ravenna alimenta-se da juventude de uma jovem prisioneira do castelo. Nesta cena

é a juventude o alimento que a rainha utiliza para manter a sua aparência jovem,

uma vez que, conforme Ravenna envelhece, necessita subtrair tal característica de

outras mulheres. Cabe destacar que, ao utilizar sua magia Ravenna consome sua

própria aparência juvenil. Portanto, quanto mais Ravenna apela para a magia mais

ela necessita de corpos jovens. Ainda neste contexto se faz necessário destacar

uma questão social escolhida para este trabalho, representada pela forma como a

mulher é tratada ao ficar velha. Nesse sentido, observa-se que tal característica

Figura 4 - Rainha Ravenna consome corpos de jovens.

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aproxima-se do contexto da sociedade contemporânea, pois, como sabemos, a

sociedade atual costuma valorizar o jovem em detrimento do mais velho.

Ainda sobre as características apresentadas pela rainha Ravenna, a última

característica representa o místico. O misticismo da rainha nesta adaptação é

abordado diferentemente do que no conto literário dos irmãos Grimm. Mesmo que

Ravenna utilize-se da magia diversas vezes, como vemos, na Figura 5, da maçã

envenenada, tal qual no conto original, o consumo de corpos de jovens mulheres

para nutrir sua beleza e juventude é introduzido apenas nesta adaptação. Da

mesma forma, para controlar o exército e manter-se no poder, utiliza a magia para

enganar o rei e usurpar o seu trono, e ainda para enganar o caçador, uma vez que

ela faz falsas promessas a ele, pois seu objetivo é que ele traga a princesa de volta.

Assim que prende a princesa, da primeira vez, o caçador descobre o ardil e se torna

aliado da princesa.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Cabe destacar que, na sociedade atual, podemos relacionar os mais

diversos procedimentos estéticos utilizados pelas mulheres, no intuito de que elas

pareçam mais jovens, à questão da magia e do místico apresentada nesta

adaptação. Quando a mulher moderna busca alternativas estéticas para tentar

parecer mais jovem, ela nada mais está fazendo do que buscar alternativas que

Figura 5 – A maçã envenenada oferecida a Branca de Neve pela Rainha

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muitas vezes não passam de promessas mágicas. Por este motivo, a rainha

encaixa-se nessas características, uma vez que a adaptação aborda a utilização da

magia pela personagem de Ravenna, de forma a trazer prejuízos às demais

mulheres, em benefício próprio. Visto que Ravenna concentra todos os seus

pensamentos, emoções e sua vontade em ações que dizem respeito à jovialidade

eterna, apoiando-se na magia praticada em quase todos os seus atos, a fim de

encontrar a juventude eterna, a magia apresentada na adaptação está relacionada à

personalidade de Ravenna, uma vez que o egocentrismo dela é evidente, pois

submete tudo em prol de sua vontade e vaidade.

As características de Branca de Neve estão representadas através das suas

ações de astúcia, liderança e bravura. Branca de Neve é astuta e líder porque

consegue convencer o caçador, os anões, e mais tarde os demais membros da

sociedade que apenas ela conseguiria destronar a rainha e reaver o trono, não só

por ela ser da realeza e descendente direta do rei, e com isso ter direito sobre este,

mas também por ela conseguir cativar e reconquistar a esperança de um povo

cansado das maldades da rainha.

Para caracterizar a astúcia de Branca de Neve, podemos, por exemplo,

destacar, na Figura 6, a cena em que a princesa consegue convencer o caçador a

não entregá-la para a rainha.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Figura 6 – Branca de Neve convence o caçador a não entregá-la para a rainha.

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Também é possível observar a característica de astúcia da princesa, na cena

em que convence os anões a dar ajuda a ela e ao caçador afim de esconderem-se

do exército da rainha Ravenna. A característica de liderança está presente na cena

em que Branca de Neve consegue convencer o povo a confiar nela para que juntos

derrotem a rainha, conforme é possível observar na Figura 7.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

A outra característica de Branca de Neve está representada em sua bravura,

pois a princesa busca por seus objetivos e luta por eles, além disso, não apenas

convoca o povo a ajudá-la, como também se coloca na situação de batalha, uma

vez que tal característica está representada na cena em que a princesa, vestida com

armadura e de espada em punho, trava uma batalha com a rainha para reaver o

trono e o reino, conforme vemos na Figura 8.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Figura 7 – Branca de Neve exerce sua liderança e

convence o povo a lutar contra a rainha

Figura 8 – Batalha no castelo, em que Branca de Neve retoma o reino

derrotando a rainha

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Tais características apresentadas por Branca de Neve nesta adaptação

representam características identificadas nas mulheres da sociedade atual, pois

todas as características são relacionadas com a questão do feminismo,

representadas pela afirmação da mulher contemporânea. A mulher atual é brava e

toma as rédeas do seu destino, é astuta para vencer as adversidades impostas, por

exemplo, pelo mercado de trabalho e em muitas vezes a mulher se torna líder, pois

necessita, por exemplo, chefiar sua família.

Descrevemos as características apresentadas pela rainha Ravenna e por

Branca de Neve, resta-nos agora procederemos à análise da adaptação baseada na

estrutura proposta por Propp (1984).

O início dá-se quando a rainha, a primeira, admirava a neve cair, quando vê

uma rosa desafiando o frio; ao tocá-la, espeta o dedo, e gotas de sangue caem

sobre a neve, logo ela desejou que, se um dia tivesse uma filha tão branca quanto a

neve, lábios tão rubros quanto aquele sangue e cabelos negros como as asas de

um corvo e como a força desta rosa. Após algum tempo, o seu desejo é realizado, e

assim dá a luz a uma menina que a chamou de Branca de Neve. Neste ponto, surge

nos braços do rei e da rainha, um bebê representando a princesa, a heroína da

adaptação.

No início destacamos a cena em que a rainha, mãe de Branca de Neve, fala à

filha, essa ainda uma criança, - “Que é a rara a beleza que você possui, conserve-a,

pois será de grande valia quando for rainha”. Nesta cena encontramos o aspecto da

beleza apresentado pela Rainha mãe, no sentido figurado quando fala que a filha

possui beleza interior, ou seja, bondade em seu coração.

A ruptura, ou seja, o problema que desestabiliza a paz inicial ocorre em três

momentos, o primeiro surge com a morte da rainha, mãe de Branca de Neve. O

segundo se dá com o casamento do pai, o rei. O terceiro momento onde há ruptura

ocorre com a morte do rei. Na ruptura destacamos a seguinte cena, após o

casamento, o rei e a rainha encontram-se no quarto, ele diz a ela: “Você será minha

ruína”, ela responde: “De fato meu senhor”, e prossegue falando a ele, - “que já

havia sido levada à ruína por um rei como ele”, - “substituía a rainha dele, pois ela

era muito velha e com o tempo, eu também serei substituída”. – “quando uma

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mulher consegue ficar jovem e bonita para sempre, o mundo é dela”. Logo após,

Ravenna domina o rei, enquanto diz a ele: - “primeiro tirarei a sua vida, meu senhor,

depois usurparei seu trono”. E assim, um dos seus objetivos se concretiza, o rei está

morto.

Além disso, nesta cena é possível observarmos a primeira evidência em

relação aos aspectos sociais abordados neste trabalho, pois aspectos relacionados

à afirmação da mulher são apresentados também pela rainha Ravenna, entre os

quais, a busca pela independência, o desejo de tomar as rédeas de seu destino por

si própria, sem que primeiro um homem escolhesse por ela, para só após decidir o

que ou não a mulher pudesse fazer. Outro aspecto da cena que podemos observar

está relacionado à vaidade e à beleza, em que a conquista do ser belo para sempre

é motivo de preocupação para rainha, uma vez que ela expõe a forma como uma

mulher é tratada após ficar velha. Tal questão está relacionada ao contexto atual, já

que muitas das ações do ser humano baseiam-se em uma espécie de ensejo

descartável, fazendo com que seja jogado no lixo, seja por estar velho demais, ou

por não se prestar mais à sua finalidade, assim como muitas ações de mulheres que

vão em busca do belo por crerem que após conquistar o corpo, cabelo ou a

maquiagem perfeita, o mundo também foi conquistado por elas.

Por outro lado, o confronto inicia na cena em que a princesa vê seu pai morto,

a rainha então passa a comandar o castelo, e com isso faz com que o seu exército

expulse ou mate todos que no castelo vivem, entretanto, a princesa não consegue

fugir, tornando-se prisioneira da rainha Ravenna. Após anos trancada em uma torre

a princesa passou a incomodar a rainha, mesmo não sabendo disso, pois Ravenna

detinha um espelho mágico, seu fiel amigo, e sempre o consultava para saber se

havia alguém no mundo mais bela do que ela. E um dia o espelho diz que há uma

mulher mais bonita do que ela, e por este motivo os poderes da rainha estavam

perdendo força, Ravenna descobre que Branca de Neve havia se tornado uma

mulher bela.

Ainda sob o aspecto das questões sociais escolhidas para analisarmos neste

trabalho, é possível observarmos nesta cena a presença da vaidade e da beleza,

principalmente, quando o espelho fala à rainha que a princesa é mais bela do que

ela. Entretanto, o espelho diz que a pureza e inocência de Branca de Neve podem

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destruí-la, como também podem salvá-la, e para isso ela deveria tomar o coração da

princesa. A rainha não consegue perceber que tomar o coração da princesa pode

estar relacionado ao amor, à compaixão e à amizade.

Neste aspecto compreendemos, conforme Propp (1984), que há o confronto

entre as personagens, embora Branca de Neve não saiba exatamente o que está

acontecendo, ela começa a imaginar que algo precisa ser feito para que ela deixe

de ser prisioneira da rainha. Assim, Branca de Neve reage ao irmão da rainha,

personagem acrescido na trama cinematográfica. Este, cumprindo ordens de

Ravenna, tentou retirar a princesa da prisão e levá-la até a rainha. Com tal fato, a

princesa consegue fugir do castelo, provocando ainda mais a ira de Ravenna.

Ainda nesse contexto, a rainha, possessa de ódio, ordena ao irmão que

encontre a princesa, inicia-se pelo reino a busca por Branca de Neve, sem

conseguir alcançá-la, a princesa foge para a floresta negra. Entretanto, a rainha não

desiste, e ordena novamente ao seu irmão que tragam a princesa, dessa vez é

necessário encontrar alguém que realmente conheça a floresta negra. O Caçador é

enviado a Ravenna, que determina que ele encontre a princesa, caso se recuse,

será morto.

Conforme a proposta deste trabalho, observamos nesta cena que um aspecto

social é abordado, isso ocorre quando a rainha, ao determinar que o Caçador

encontre a princesa na floresta, ilude-o, prometendo que se ele obedecer a sua

ordem trará sua esposa de volta à vida. É evidente que a rainha possui poderes

ocultos, poderes como matar ou preservar vidas, mas trazer de volta à vida alguém

é impossível, pois estes poderes não se prestam a fatos como este. Tais poderes

são possíveis observar, por exemplo, na cena em que houve duas lutas entre o

caçador e o irmão da rainha: na primeira, o caçador levou a melhor e feriu

mortalmente o irmão, que afunda ferido no pântano ou terra movediça. Na segunda,

o caçador também o fere mortalmente e o irmão chega a pedir ajuda, mas a rainha

está muito fraca e não consegue atendê-lo. Nesse sentido, uma questão social é

encontrada nesta cena, a ética, uma vez que a rainha faz promessas que não pode

cumprir, apenas no intuito de alcançar seu objetivo e mostrar-se poderosa, afinal ela

é a rainha, uma autoridade, e suas ordens devem ser acatadas.

Page 62: luciele gonçalves da silva interferência de fatores culturais da

54

Ainda de acordo com a estrutura de Propp (1984), a superação ocorre na

cena em que Branca de Neve está na floresta, uma vez que ela encontra-se diante

de obstáculos, na floresta sombria, a princesa ouve sons e o medo a faz fantasiar

situações.

Desse modo, Branca de Neve, na tentativa de sair da floresta, é encontrada

pelo caçador, que decide não entregar a princesa, pois percebe que as promessas

feitas por Ravenna não serão cumpridas, e também é convencido por Branca de

Neve para que não a entregue, porque a rainha a quer morta. Com isso, o caçador

torna-se seu preceptor, passa a protegê-la e a ensiná-la a arte de defender-se.

Contudo, compreende-se que a superação é a fase de desafios e superar

obstáculos ocorre em vários momentos, um deles é quando a princesa chega à

floresta. O outro ocorre quando ela convence os anões a ajudá-la, e o outro

momento da superação prossegue ainda quando a princesa passa pela floresta e

chega até a aldeia. Por outro lado, ainda há superação quando a rainha oferece a

maçã à princesa, a garota morre, e após ela ressuscita. Desse modo, compreende-

se, segundo Propp (1984), que nesse momento houve a superação, uma vez que a

princesa superou novamente um obstáculo.

Ademais, Branca de Neve consegue convencer os anões e o príncipe a

seguir adiante com ela, a fim de derrotar a rainha. Não há dúvidas de que o fato de

conseguir convencer todos os que estão a sua volta demonstra características de

uma mulher valente e decidida, típicas de uma personalidade determinada.

Cabe destacar ainda, conforme a estrutura estabelecida por Propp (1984),

que a restauração inicia-se quando Branca de Neve consegue passar pela floresta

negra, com a ajuda do Caçador, eles chegam até uma aldeia, em que são recebidos

por mulheres com rostos mutilados. Nessa situação inicia-se também a descoberta e

a busca de algo novo, há esperança, uma vez que a princesa encontra refúgio na

aldeia, embora novas situações e obstáculos possam surgir, a princesa está segura.

Entretanto, a busca continua, já que o propósito da princesa é encontrar o castelo

do duque, e é neste caminho acompanhada pelo caçador que eles encontram os

anões na floresta. Uma situação inesperada ocorre, já que os anões prendem a

princesa e o Caçador, porque não confiam neles e querem desfazer-se de ambos,

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55

visto que o Caçador é um antigo desafeto dos anões, esses logo imaginam que

Branca de Neve é uma cúmplice do Caçador. Porém, essa situação é logo desfeita,

devido à princesa mostrar-se astuta, em razão de desafiar os anões e conseguir

convencê-los de que eles são fugitivos da rainha, para que assim possam ser

libertados.

Nesta cena, Branca de Neve pergunta aos anões se eles lutariam contra a

rainha, e revela a eles que ela é a princesa, todavia os anões desconfiam. Por outro

lado, Branca de Neve também obtém êxito com os anões devido ao fato de que o

anão mais velho do grupo a observa, e consultado pelos demais anões, ele confirma

que a garota é mesmo quem diz ser, pois ela tem o sangue azul e está

predestinada, e dessa forma ele vê o fim para a escuridão, assim, os anões aceitam

ajudar ambos a encontrarem o castelo do duque.

Nestas cenas é possível observar mudanças de paradigma. Conforme Stam

(2008), o contexto é muito importante, já que as adaptações, como os romances, por

exemplo, são capazes de refletir questões ideológicas e culturais, assim como

discursos dominantes à sua época.

Sob este aspecto ainda, conforme (Hutcheon 2011), uma adaptação mostra

como as histórias evoluem, transformam e adequam-se a novos tempos e a

diferentes lugares, já que uma história pode ser adaptada para o uso em diferentes

contextos, países e culturas, uma vez que o novo escritor, e adaptador, incluam

novos temas em obras anteriores, possibilitando a reflexão acerca de novas ou

antigas demandas sociais.

Portanto, as cenas do filme apresentam-se diferentes em comparação ao

conto original. Na adaptação os anões não se mostram bonzinhos logo de primeira,

tampouco estão dispostos a ajudar a princesa de imediato, pelo contrário, precisam

ser conquistados, e de fato isso ocorre quando Branca de Neve apresenta as

características da afirmação da mulher, uma mulher que usa sua inteligência e

poder para influenciar os demais membros, e com isso conquistar o que almeja.

Portanto, compreende-se que o adaptador optou por utilizar as características da

mulher atual, ou seja, as características do contexto atual, de uma demanda social

que necessita valorizar a mulher continuamente, como também enviar um recado às

Page 64: luciele gonçalves da silva interferência de fatores culturais da

56

demais que ainda se encontram mergulhadas em incertezas quanto ao seu destino.

Ainda conforme Propp (1984), sob o aspecto da restauração, temos a cena

em que Branca de Neve, acompanhada dos anões e do caçador no caminho para o

castelo do duque, encontram o santuário, é o lugar onde vivem as fadas.

Encantados com o lugar resolvem acampar. Nesta cena, há um momento de

restauração, porque se inicia novamente o processo do novo, e logo após inicia o de

superação, já que surgem novos obstáculos e perigos, pois os súditos de Ravenna

os encontram, e um novo confronto inicia-se, uma nova situação de desequilíbrio

ocorre, em razão de um dos anões morrer em batalha. Nessa situação, ocorre um

novo desequilíbrio para Branca de Neve, uma nova superação há de vir, antes da

restauração. Logo, o exército de Ravenna é derrotado, e seu irmão também é morto,

há neste ponto um desequilíbrio também para a rainha, ou seja, a situação sai do

seu controle, e uma superação e restauração surgem também para ela. Mesmo

assim, Branca de Neve, os demais anões e o Caçador permanecem acampados na

floresta. Porém, a rainha, sabendo que seu exército havia sido derrotado, insiste em

seguir adiante, Ravenna aparece com o corpo do flecheiro e embrenha-se na

floresta em busca da princesa, entretanto, a encontra e, seduzindo-a com uma

maçã, Branca de Neve morre e enfim a rainha sente-se poderosa e vencedora.

Os anões levam Branca de Neve para o castelo do duque, lá a princesa

desperta por meio do beijo do caçador e isso a faz mais forte do que antes, com

uma condição de líder convoca a todos que puderem unir-se a ela contra a rainha. É

nessa cena, de acordo com a estrutura proposta por Propp (1984), que ocorre a

superação, já que a princesa desperta com o beijo do caçador, pois o encanto se

quebrou, e assim Branca de Neve toma partido e deseja confrontar a rainha

convocando todos a auxiliá-la. Neste ponto ainda podemos interpretar que existe

uma espécie de transição do velho para o novo que fez com que a princesa

amadurecesse, tal amadurecimento pode ser compreendido como a representação

de muitas mulheres que necessitam passar por uma transição, decisão, uma

escolha importante em suas vidas, para conquistar o que almejam, ou o seu lugar na

sociedade. Nesse contexto, o universo maravilhoso do conto de fadas pode ajudar

a desenvolver as características de cada um, principalmente, em indivíduos em

formação, da infância e adolescência ao início da fase adulta, para que assim

possamos entender o universo humano e suas potencialidades.

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57

Por fim, o desfecho inicia na cena em que os aliados da princesa e ela

cavalgam em direção ao castelo da rainha Ravenna, os anões conseguem entrar no

castelo primeiro, abrem o caminho para princesa e seus aliados. No entanto, Branca

de Neve mostra-se decidida em honrar a sua palavra e buscar seu objetivo, derrotar

a rainha, tomar o poder para que a situação retorne a ser o que era antes, quando

seu pai, o rei, governava. E assim é feito, a princesa consegue derrotar a rainha,

após é coroada rainha, e o desfecho ocorre.

A princesa mostra-se decidida, uma mulher valente, apresentando

características de diversas mulheres na sociedade atual, aquela mulher que vai à

luta em busca de seus objetivos, que anseia crescimento, independência e

sabedoria, que confia em seu potencial. Sob este aspecto, é importante destacar

que houve nesta adaptação uma transformação em relação à Branca de Neve do

conto, texto fonte, pode-se perceber que o adaptador utilizou uma questão social

proposta neste trabalho, no caso, a afirmação da mulher, uma vez que nesta

adaptação é valorizada a mulher e todos os seus potenciais, pois na sociedade

contemporânea cada vez mais as mulheres vêm conquistando espaço e afirmando-

se. Além disso, como um gênero forte, aguerrido e que busca seu espaço, a mulher

está disposta a pagar o preço por suas escolhas, pensar e definir seu próprio

destino. Muitos espectadores talvez não tenham compreendido o final da história

adaptada, pois não houve casamento ou indício desse fato, houve, sim, indício de

que ela “aguardava” o Caçador. Entretanto, a adaptação mostrou que nem sempre

os finais felizes irão condizer com a expectativa do público, seja de um conto, ou

romance cinematográfico, e sim estará de acordo com as demandas vigentes na

sociedade contemporânea. Nesse sentido, as adaptações são importantes para

ajudar a desconstruir paradigmas que muitas vezes não condizem mais com os

anseios do público feminino.

4.2 ESPELHO, ESPELHO MEU

A adaptação fílmica Espelho, Espelho Meu (2012) é outra versão do conto

Branca de Neve recolhido pelos Irmãos Grimm, entre o final do século XVIII, início

do XIX, dirigida por Tarsem Singh.

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58

A narrativa fílmica desenvolve-se a partir do tema vaidade e beleza,

centralizando na personagem da rainha. Ademais, temas como poder e afirmação

da mulher também são destacados nesta adaptação. A afirmação da mulher é

representada por Branca de Neve, visto que a princesa adquire confiança e

liderança no decorrer da trama e afirma-se enquanto mulher. Em relação ao poder

este é representado através do personagem da rainha, que para manter sua

vaidade e vida de exibicionismo e opulência utiliza-se do poder para dominar o

povo, através de taxação de impostos para conseguir recursos para manter suas

futilidades.

É importante destacar que o estilo em uma adaptação fílmica é apresentado

de forma distinta ao do conto literário, uma vez que a narrativa fílmica destaca-se

pelo mostrar e não pelo contar. Desse modo, temos como resultado vários pontos de

vista envolvidos nesta construção, uma vez que é nesta construção criativa que o

adaptador, e os demais envolvidos na arte da recriação do conto para as telas do

cinema irão desenvolver uma perspectiva que pode estar representada no figurino,

no cenário, na caracterização visual das personagens, como também na escolha do

gênero, seja comédia, fantasia, drama, romance, entre outros. Nesse contexto, é

possível observar o estilo apresentado por Tarsem Singh nesta adaptação, através,

por exemplo, do figurino da rainha e de Branca de Neve. Tais figurinos apresentam

um visual aprimorado e um tanto quanto extravagante, talvez, para adaptação já ir

ganhando força, ao mesmo tempo que apresentando o estilo do adaptador. O

cenário é configurado por um castelo exuberante em que se observa a presença da

cor dourada, que lembra o ouro, símbolo da opulência, da vaidade e da obsessão

por dinheiro nutrida pela rainha. Além disso, tal cenário e a caracterização visual

das personagens apresentam traços alegres, extravagantes, visto que o adaptador

utilizou tais características para apresentar seu ponto de vista sobre o tema, ao

mesmo tempo em que apresenta o seu estilo na caracterização do figurino, do

cenário e na apresentação das personagens. Essas, por sua vez, apresentam-se de

maneira irônica e extravagante, principalmente a personagem da rainha. Dessa

forma, com a apresentação de tais elementos, o adaptador também reforça a

escolha do gênero pela comédia, pois o que ele pensa e quis dizer a respeito do

tema são apresentados em tons sarcásticos por parte da rainha. Da mesma forma,

reforça a questão social da vaidade, da beleza, do poder e da afirmação da mulher.

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59

As características que representam a rainha, madrasta de Branca de Neve,

continuam sendo a vaidade e a beleza, acrescidas de exibicionismo e misticismo. A

vaidade e beleza da rainha apresentam-se, por exemplo, na cena em que a rainha

solicita ao espelho um conselho, sendo esse representado por um reflexo sem rugas

dela mesma, conforme é possível observar na Figura 9.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

O espelho diz à rainha que ela passou muito tempo nutrindo sua vaidade, e

por isso está falida. Neste ponto, observamos a característica da vaidade

representada pela rainha. Tais características podem ser observadas, também, na

cena em que ela, ao oferecer uma festa no castelo para impressionar o príncipe,

prepara-se em um ritual de beleza, exagerando nos procedimentos de tal

preparação, conforme vemos na Figura 10.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

Figura 9 – A rainha e o espelho

Figura 10 – A rainha em ritual de beleza

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60

Assim, é possível observar que tais cenas podem fazer referência a atitudes

que a mulher moderna toma no sentido de preservar a sua juventude a qualquer

preço, como, por exemplo, o uso de substâncias prejudiciais e procedimentos

inadequados ao corpo. Dessa maneira, a adaptação fílmica vale-se de

comportamentos contemporâneos a fim de ironizar valores da sociedade atual.

A rainha é exibicionista, preocupa-se em mostrar que ela e seu próprio reino

possuem mais riquezas do que realmente possuem. A cena em que a rainha

promove uma grande festa para receber o príncipe de outro reino mais abastado

demonstra tal característica da rainha, conforme é possível observar na Figura 11.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

Cabe destacar aqui que a rainha utiliza-se de tal exibicionismo no intuito de

impressionar o príncipe para que este se case com ela e assim resolva seus

problemas de ordem financeira. Tal situação, diferentemente da adaptação Branca

de Neve e o caçador, mostra a rainha em busca de um provedor. Esta cena é

apresentada de maneira cômica e inteligente, demonstrando um toque irônico do

adaptador com relação a este tipo de união matrimonial que ainda ocorre na

sociedade atual, mas que a cada dia se torna menos recorrente, em virtude da

afirmação da mulher moderna.

Outra característica da rainha está representada pelo misticismo, uma vez

que ela utiliza de poderes mágicos, como, por exemplo, da magia negra para

conquistar o que almeja. Esta característica também é possível observar na cena

Figura 11 – Festa no castelo oferecida pela rainha

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em que a rainha manda marionetes até a casa dos anões para derrotar Branca de

Neve, sendo que tais marionetes eram controladas pela própria rainha, representada

pelo reflexo dela mesma. O misticismo da rainha também pode ser observado na

cena em que ela solicita ajuda ao espelho dizendo que deseja usar a magia para

encantar o príncipe, e assim poder casar-se com ele, conforme vemos na Figura 12.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

O espelho alerta que futuramente ela pagará o preço por utilizar a magia. Tal

característica é abordada nesta adaptação de modo semelhante à adaptação

cinematográfica Branca de Neve e o caçador, visto que a rainha desta adaptação

também utiliza da magia diversas vezes para alcançar seus objetivos, tendo em

vista a solução de seus problemas. Da mesma forma, na versão do conto literário,

compilado pelos irmãos Grimm, a magia é utilizada pela rainha diversas vezes, até

ela seduzir Branca de Neve com a maçã envenenada.

A adaptação Espelho, espelho meu difere do conto literário dos Grimm e

também da versão cinematográfica de Branca de Neve e o caçador, no aspecto da

apresentação do místico relacionado à alimentação. Como vimos, no conto literário

a característica do misticismo na alimentação é apresentada pelo desejo da rainha

comer o pulmão e o fígado de Branca de Neve, a fim de incorporar as

características da princesa.

Nesta adaptação tal desejo não é apresentado pela rainha, uma vez que seu

súdito, após ter cumprido a ordem de executar a princesa na floresta, retorna ao

castelo trazendo um pacote com as vísceras de um animal selvagem, dizendo à

Figura 12 – A rainha pede ajuda ao espelho para usar a magia.

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rainha que tais vísceras pertenciam a Branca de Neve, ao que a rainha ironicamente

responde ao súdito que isso não é necessário e ordena a ele que se retire

imediatamente e leve consigo tal pacote. Nesta cena, é possível perceber a intenção

do adaptador em aguçar a memória do espectador, fazendo com que ele relembre o

conto literário, como acontece também na adaptação Branca de Neve e o caçador.

Além disso, nesta cena também é possível observar a intenção do adaptador em

reforçar a escolha do gênero comédia na adaptação, representado na ironia e

sarcasmo das personagens.

Em Branca de Neve e o caçador, o misticismo está representado na cena em

que a rainha come tais órgãos, mas de uma ave. Neste sentido, pode ser observado

que o adaptador abordou o aspecto do misticismo da alimentação modificando a

forma de apresentar tal aspecto, ao mesmo tempo conservando elementos da

versão literária do conto, a fim de que o leitor/espectador reconheça este aspecto na

versão atual. Além disso, nesta adaptação a personagem da rainha utiliza a magia

mais no sentido de manter-se na imortalidade, sempre jovem e bela.

Por este motivo, em Espelho, espelho meu, o adaptador não aborda tal

característica. Embora a maçã apareça apenas no final da adaptação, esta não é

apresentada com a mesma finalidade que nas demais adaptações. Como vimos, no

conto literário e na adaptação de Branca de Neve e caçador, a maçã aparece sendo

oferecida pela rainha a Branca de Neve, que acaba comendo a maçã e

adormecendo. Assim a rainha acredita ter derrotado a princesa. Em Espelho,

espelho meu, a rainha também oferece a maçã a Branca de Neve, porém a

princesa, demonstrando de modo cômico e sagaz o seu conhecimento a respeito

dos contos de fadas, não a come, e ainda oferece a maçã para própria rainha.

Por outro lado, cabe lembrar que, nesta adaptação, o misticismo ocorre por

parte da rainha, principalmente, quando ela usa dos poderes da magia mais para

alcançar o que deseja. Neste ponto, assemelha-se ao objetivo do conto literário dos

irmãos Grimm, a rainha madrasta dessa versão também utiliza a magia com a

finalidade de alcançar seus objetivos.

As características de Branca de Neve estão representadas através da

astúcia, liderança e confiança. Tais características podem ser observadas, por

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63

exemplo, através de algumas cenas.

Na cena em que os anões tentam roubar a carruagem da rainha, é

apresentada a característica de astúcia da princesa, porque ela consegue

convencer os anões que roubar não é o ideal, mesmo que esse roubo seja praticado

contra a rainha, pois o dinheiro roubado provém dos impostos cobrados do próprio

povo conforme vemos na Figura 13.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

Na seqüência, ela devolve o dinheiro ao povo, dizendo a eles que os

responsáveis por tal restituição eram os anões, ao mesmo tempo em que destaca o

mérito dos anões, a princesa sugere ao povo que reconheçam eles como moradores

do reino, já que há algum tempo eles haviam sido expulsos do reino pela rainha, que

os considerava como indesejáveis, com isso impedindo-os de viver no reino. Neste

ponto, é possível observar que a rainha expulsou os anões do reino por conta de

sua condição física e com isso a questão social do ser belo está representada

negativamente na condição física deles.

Ainda neste contexto, podemos observar que o adaptador optou por

apresentar duas questões sociais, uma delas é a negação do belo, representada

pela condição física dos anões, e a outra, representada pelo trabalho dos anões,

pois são ladrões. Diferentemente do que ocorre com os anões do conto literário dos

irmãos Grimm, no qual os anões são apresentados como trabalhadores das minas,

Figura 13 – A princesa devolve o dinheiro dos impostos ao povo

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que trabalham arduamente e voltam para casa no final do dia. Da mesma forma, é

possível observar esse aspecto na adaptação Branca de Neve e o caçador, pois os

anões são trabalhadores das minas, porém, o adaptador agregou rebeldia aos

anões desta adaptação, percebida pela resistência destes em colaborar com os

personagens de Branca de Neve e do caçador.

A característica de liderança da princesa é apresentada, por exemplo, na

cena em que Branca de Neve, treinada pelos anões, aprende a arte de lutar com

espadas e com resultado de seu desempenho, torna-se a líder dos anões, conforme

é possível ver nas Figuras 14 e 15.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

Desse modo, é possível perceber que a princesa consegue se superar,

Figura 14 – Branca de Neve treina com espadas

Figura 15 – Branca de Neve torna-se líder dos anões.

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65

defender-se, e assim acreditar em si e que é capaz de enfrentar e destronar a

rainha. Nesse contexto, podemos relacionar tal condição de liderança ao papel

desempenhado pela mulher moderna nas instituições, visto que as instituições

visam contratar profissionais qualificados, treinados, preparados para o mercado de

trabalho.

Outra característica da princesa está representada na confiança que a

princesa desenvolve ao longo da trama, visto que no início da adaptação Branca de

Neve é uma menina insegura que vive dentro dos limites físicos e psicológicos

determinados pela Rainha. Por exemplo, ela não pode sair dos limites do reino e, ao

mesmo tempo, deve reportar todas as suas atividades à Rainha. Após a conversa

de Branca de Neve com uma das serviçais do castelo, ela toma coragem, sai do

castelo e observa como realmente o povo está sobrevivendo, conforme vemos na

Figura 16.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

Deste ponto em diante da adaptação, Branca de Neve passa por diversas

situações, principalmente relacionadas aos anões, mas também relacionadas ao

povo e ao príncipe, que a fazem amadurecer e se tornar confiante. A confiança

demonstrada por Branca de Neve, tal qual a liderança, são características que a

mulher atual deve possuir, visto que o perfil de mulher dependente e insegura que

Figura 16 – Branca de Neve conversa com a confeiteira.

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necessita de um provedor masculino já não é mais tolerável e aceitável como um

padrão na sociedade atual.

Cabe destacar que em Espelho, Espelho meu, o início ocorre com a

madrasta de Branca de Neve contando a história: uma vez num reino muito distante,

havia uma menininha que acabara de nascer, sua pele era branca como a neve, seu

cabelo era escuro como a noite, e seus pais a chamaram Branca de Neve.Trata-se

de um modo inovador de introduzir a heroína da história, mas a seqüência da

narrativa é preservada. Logo, após o parto a rainha mãe de Branca de Neve faleceu.

Assim, o rei, pai de Branca de Neve, sozinho, passa a cuidar da princesa, e a

prepara para governar o reino como ele. O reino era um ambiente feliz, seus

habitantes também, gostavam do rei e da princesa. Com o passar dos anos, o rei

percebeu que não conseguiria cuidar da princesa sozinho, pois havia certos pontos

na educação da menina que exigiam o auxílio de uma mulher, com isso o rei foi à

procura de uma nova rainha.

A mulher escolhida para ser a rainha era a mais bela, inteligente e forte, o rei,

apaixonado, fazia tudo pela rainha, que significava muito para o rei. Porém, uma

magia negra tomou conta do reino, e com isso o rei teve de ir embora, cavalgando

floresta adentro, deixando para Branca de Neve, sua adaga favorita, e assim a

princesa ficou sob os cuidados da madrasta. Os anos passaram e Branca de Neve

se tornou uma jovem linda, e sua beleza despertou o ciúme e a inveja da rainha, sua

madrasta. Com isso a rainha, para continuar sendo a mais bela das mulheres

daquele reino, teria de desbancar Branca de Neve. Como vimos na descrição da

cena acima, de acordo com Propp (1984), no início se dá o aparecimento da

heroína, logo após o adaptador opta por apresentar a história de uma forma

diferenciada, uma vez que a madrasta narra a história. Além disso, o início é

diferenciado, se comparado à adaptação Branca de Neve e o Caçador, pois a

rainha, mãe de Branca de Neve, já havia falecido, o rei cuidou da princesa sozinho,

a mimou, e passados alguns anos ele se deu conta que precisava de uma nova

esposa. Outro aspecto a ser destacado é que no início a história é apresentada sob

o ponto de vista da rainha. Essa hipótese é fundamentada no início da adaptação,

visto que essa é contada pela rainha. Cabe destacar, que tal trecho é narrado de

modo a reforçar a intenção do adaptador em utilizar o gênero comédia na adaptação

de Espelho, espelho meu, pois a rainha de uma forma sarcástica, conta a história de

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67

Branca de Neve como se fosse a sua própria história.

Já a ruptura se dá no instante em que Branca de Neve, ao completar

aniversário, ouve da confeiteira que ela continua ali trabalhando, pois sabe que um

dia a princesa terá o seu reino de volta, e gostaria de estar ali quando isso

acontecesse. Branca de Neve diz à confeiteira, que o reino não é dela, e sim da

rainha. A confeiteira reitera que sim, o reino pertence à princesa, já que o pai de

Branca de Neve desejava que assim fosse. Ainda na conversa, a mulher diz à

princesa o que houve, que a rainha convenceu o reino de que ela era uma garota

patética, insegura e incapaz de sair do castelo, e que ela acreditou nisso. Então, a

empregada, que havia guardado a adaga que pertenceu ao pai da princesa, dá o

objeto que lembra o pai à princesa e a incentiva para que ela veja com os próprios

olhos o que houve com o reino que pertence a ela: as pessoas não cantam mais,

tampouco dançam, por isso estão infelizes.

Ainda na ruptura, o contato da rainha com o espelho se dá pela primeira vez

devido à rainha pedir um conselho a ele, aqui também vemos o aspecto do poder e

da vaidade da rainha, sendo o espelho um reflexo dela mesmo. O espelho diz à

rainha que ela precisa casar imediatamente, já que ela passou muito tempo nutrindo

sua vaidade, e agora está falida. Neste aspecto, é importante destacar que a ruptura

ocorre em outros momentos na trama, como por exemplo, no caso em que Branca

de Neve precisa mudar de atitude, visto que necessita assumir o reino e assim é

preciso que ela encare os desafios de acreditar que dispõe de valentia para tal fato.

Por outro lado, a ruptura também ocorre em relação à rainha, pois ela precisa mudar

a situação financeira dela, e isso só acontecerá se ela encontrar um marido rico que

possa sustentá-la e assim tirar o reino da miséria. A ruptura ocorre ainda quando o

espelho diz à rainha que ele é apenas um reflexo dela, porém sem rugas. A rainha

retruca, dizendo que não são rugas, e sim marquinhas, nesse sentido, há aqui uma

das evidências da vaidade por parte da rainha.

Outra questão social evidenciada é afirmação da mulher, presente na cena

em que o príncipe fica em uma situação constrangedora, após o ataque dos anões

ladrões. Sob esse fato é importante dizer que nesta adaptação foi abordada de

forma contemporânea, como no aspecto do roubo e assalto, visto que essas

questões se fazem cada vez mais presentes no contexto da sociedade atual. O

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68

aspecto da afirmação da mulher também é destaque, visto que ocorre quando o

príncipe conhece Branca de Neve, que resolveu acatar o conselho oferecido pela

confeiteira de sair e conhecer o reino.

Ainda no caminho para a aldeia, na floresta, Branca de Neve se depara com o

príncipe e seu companheiro de viagem, esses estão amarrados, seminus e

dependurados em uma árvore, vítimas de um assalto. O príncipe então ordena a

Branca de Neve que os soltem, porém a garota não acata a ordem e diz que só fará

depois que o príncipe seja mais gentil e educado, e que lhe pedisse, “por favor”.

Nesse aspecto, é possível observar mesmo que sutilmente a presença da afirmação

da mulher, e manifestações de coragem e valentia da princesa, uma vez que ela não

acatou de imediato as ordens do príncipe.

De outro modo, é importante destacar, de acordo com Propp (1984), o

confronto, que inicia no momento em que a princesa conhece o príncipe, e mais

tarde a rainha o conhece, fazendo com que um interesse igual seja compartilhado

por ambas, no caso, o interesse é o príncipe. Como vimos, Branca de Neve ajuda o

príncipe e seu companheiro de viagem a soltarem-se da árvore, após ajudar Branca

de Neve se interessa afetivamente pelo príncipe, e ele por ela, entretanto, ambos

seguem caminhos diferentes, ele para o norte e ela para o sul.

Desse modo, cada um chega ao seu destino, ele encontra o castelo da

rainha e conta o que houve, apresenta-se a ela, pedindo desculpas pela forma como

se apresenta seminu, pois foi atacado por ladrões. Nesse instante, percebe-se que a

rainha se interessa por ele, já que ela procura um homem rico para casar, o príncipe

se encaixa nesse perfil, porque seu reino dispõe de recursos naturais, entre outras

riquezas. Já Branca de Neve chega até a aldeia e lá constata o que lhe fora dito, o

povo está infeliz e passando muitas dificuldades, por conta do descaso da rainha.

A rainha, empolgada com o príncipe, logo arquiteta um plano para

impressioná-lo, e manda seu súdito preparar uma festa no castelo, porém, o súdito,

preocupado, diz a ela que não há como cobrir as despesas, visto que a rainha e o

reino estão falidos, nesse caso ela ordena a ele que vá cobrar mais impostos do

povo, o súdito afirma que não sabe mais como fazer isso, porque o povo não

acredita mais nela. A rainha, sem se preocupar, manda que ele invente algo ao falar

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69

para o povo, porque para esses uma boa metáfora serve, pois o povo adora

metáforas. Neste ponto, encontramos uma das questões sociais abordadas neste

trabalho, pois vemos a relação de poder que a rainha mantém, ostenta, para com o

povo, por pensar apenas em si, e em atingir seus objetivos: o povo está faminto,

passando necessidades devido ao individualismo da rainha.

Outro aspecto que cabe destacar diz respeito à rainha, quando está se

preparando para a festa de boas-vindas ao príncipe, divertindo-se em um ritual de

beleza, esgotando os recursos possíveis do reino, pois ao exagerar na sua

preparação, não está considerando a falida situação financeira em que vive. Esta

situação abordada pela adaptação alude também à questão das loucuras e

bizarrices que muitas mulheres fazem ao cuidar da beleza, muitas vezes sem os

cuidados devidos com a saúde, adotando procedimentos não adequados, por vezes

mal feitos tanto por profissionais quanto por clínicas de beleza que oferecem estes

serviços, carecendo de recursos e capacitação para executar tais procedimentos.

Nesse aspecto, compreende-se que o adaptador, ao abordar tais questões nesta

adaptação cinematográfica, estava considerando o contexto contemporâneo.

É importante ressaltar, segundo Propp (1984), que ainda ocorre o confronto

na cena do baile, em que a rainha e Branca de Neve confrontam-se com olhares.

Branca de Neve dança com o príncipe sem a rainha saber, a princesa, na tentativa

de pedir ajuda a ele para recuperar o reino, conta ao príncipe os atos que a rainha

comete contra o povo.

Entretanto, Branca de Neve não consegue pedir ajuda ao príncipe, pois é

descoberta pela rainha, que manda seu súdito buscá-la no salão. O confronto

persiste, já que Branca de Neve violou as regras do castelo determinadas pela

rainha, tais regras consistiam em não andar pelo castelo quando houvesse festas, e

ainda não sair deste. Porém, como a própria rainha percebeu, Branca de Neve

sentiu-se encorajada a confrontá-la, visto que foi até a aldeia ver o que realmente

acontecia com o povo, como também encorajada pela confeiteira, saiu de seu

quarto e participou do baile, afrontou a rainha dizendo que ela não tinha o direito de

governar da forma que fazia, tratando mal o povo e o reino. Assim como relembrou a

rainha que era ela a líder legítima do reino, por ser a princesa. Além disso, o

interesse de ambas pelo príncipe é elemento de confronto entre as personagens,

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70

conforme é possível observar na Figura 17.

Fonte: Adaptação fílmica Espelho, Espelho meu, 2012.

Se, por um lado, a princesa violou as leis do castelo, por outro lado, aos

poucos ela se torna corajosa e demonstra que é capaz de enfrentar a rainha pelo

povo, e reviver os ideais do seu pai, o rei, ou seja, tratar o povo bem e dar a eles o

que mereciam para assim ser feliz.

Além disso, o confronto se torna mais evidente quando Branca de Neve diz à

rainha que era ela que possuía o direito de ser a líder legítima do reino, por ser a

princesa. Nesse ponto, o confronto acontece de forma evidente, uma vez que a

rainha não aprova a conversa de ambas, e solicita ao seu súdito que leve a princesa

para floresta e a deixe lá para que seja devorada pela fera. Nesse aspecto,

diferentemente do que ocorre na outra adaptação escolhida para este trabalho,

percebe-se que a rainha manda matar a princesa não pela vaidade e sim para

manter-se no trono e o poder prevalecer em suas mãos. Desse modo, a questão

social relacionada ao poder se faz presente também nessa cena.

Assim, Branca de Neve deixada na floresta, na tentativa de encontrar uma

saída, desmaia. Os anões que passavam por ali a encontram ajudam-na e a levam

Figura 17 – Branca de Neve confronta a rainha

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71

para casa deles. Admiram a beleza da princesa enquanto ela não acorda. Após

despertar, a princesa diz aos anões quem é eles sem muito acreditar pensam em

devolvê-la, ao mesmo tempo em que sabem que ela é a filha do rei, então é rica e

assim podem pedir resgate em troca. Logo, uma reunião é iniciada entre os anões,

para que decidam se a princesa pode ficar na casa. Eles optam por Branca de Neve

permanecer com eles, em seguida saem para trabalhar e a princesa prepara o jantar

e arruma a casa. Ao voltarem, se deparam com tudo organizado.

Branca de Neve agradece a hospedagem aos anões de uma forma que

lembra uma mulher idealizada, dona de casa, sensível e adorada por todos. Branca

de Neve, ao mesmo tempo, segue em frente diante dos obstáculos, desse modo,

observa-se que a princesa está em uma transição, entre o perfil de uma mulher

tradicional e liberada.

Por outro lado, a adaptação aborda a questão social relacionada à corrupção

e ao roubo, observa-se que corrupção está por conta do súdito da rainha, ao buscar

o dinheiro do povo referente aos impostos, rouba algumas moedas de ouro do saco,

com tal atitude mostra-se antiético tanto como profissional, já que é empregado da

rainha, como também com o povo, pois está preocupado apenas com sua situação

financeira. Ainda nesse cenário, ao passar pela floresta, o súdito é assaltado pelos

anões que lhe roubam todo o dinheiro. Os anões, ao chegarem em casa, revelam a

Branca de Neve que são ladrões, roubam do povo e da realeza, a princesa chama a

atenção deles, pois roubar não é trabalho e os alerta que estes atos são

inapropriados, já que o reino está falido e os habitantes pouco dispõem de recursos.

Por este motivo a princesa pede a eles que o dinheiro seja devolvido ao povo,

entretanto, os anões revelam que o povo não gosta deles, uma vez que a rainha

expulsou os indesejáveis do reino, e o povo não ofereceu ajuda a eles. O fato de os

anões apresentarem características físicas diferentes dos demais, pois eram feios,

fez com que a rainha os banisse de conviver socialmente com o restante do povo.

Isso mostra o quão irresponsável é a rainha, além disso, é possível observar

novamente a questão social relacionada à vaidade, já que as condições físicas dos

anões para a rainha era um incômodo.

Sendo assim, Branca de Neve tenta ajudar os anões, encoraja-os, e segue

insistindo que eles devolvam o dinheiro ao povo, logo percebe que é inútil, assim ela

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72

mesma resolve ir até a aldeia e devolver o dinheiro. Com segurança, independência

e valentia ela faz com que o povo volte a considerar as atitudes dos anões, e desse

modo eles são redimidos. Nesse sentido, compreende-se que Branca de Neve, com

essa atitude, supera obstáculos e perigos em virtude de seu ideal, e consegue

devolver o ouro ao povo.

Os anões, propõem à princesa que ela deve se juntar a eles nos assaltos, já

que pretendem roubar apenas da rainha, porém Branca de Neve impõe uma

condição, a de que todo o ouro roubado seja devolvido ao povo, os anões aceitam,

assim tornam-se tutores da princesa, e a ensinam a arte de lutar, defender-se e

acreditar, já que ela necessita aprender para se superar.

Cabe destacar, por outro lado, em relação à adaptação cinematográfica, que

o adaptador da trama utilizou traços de outras histórias, contos e demais

adaptações, pois ao observarmos a cena em que os anões assaltam, e após o fato

de Branca de Neve propor que devolvam o dinheiro ao povo, lembramos de outros

textos, histórias, assim como demais adaptações cinematográficas, como, por

exemplo, Robin Hood, devido ao fato de esse personagem roubar de comerciantes

ricos que transitavam pela floresta para dar ao povo.

Sob este aspecto, conforme Stam (2008), as adaptações são hipertextos

nascidos de outros textos preexistentes, transformados por operações de seleção,

ampliação, concretização e realização. Além disso, conforme o autor, adaptações

fílmicas caem no contínuo redemoinho de transformações e referências

intertextuais, de textos que geram outros textos num interminável processo de

reciclagem, transformação e transmutação, sem um ponto de origem visível, sendo

assim que ocorre a adaptação.

Ainda na questão sobre a superação, na cena em que Branca de Neve

descobre que o príncipe irá se casar com a rainha, essa envia uma magia negra

para casa dos anões, a fim de destruí-los juntamente com a princesa. Isso ocorre

através de bonecos de pau, representados através de marionetes que estão ligadas

à rainha. Compreende-se que estes bonecos aludem à própria princesa, já que ela

está em processo de transformação, pois necessita aprender e permanecer decidida

e valente para que não se torne mais manipulada nas mãos da rainha. Entretanto,

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73

Branca de Neve e os anões lutam para derrotar tais bonecos, mas é a princesa que

consegue derrotá-los, e assim consegue superar a rainha, uma vez que os encantos

da magia foram rompidos. Além disso, outro momento da superação ocorre quando

Branca de Neve seqüestra o príncipe que está sob os efeitos de uma magia

realizada pela rainha. Ademais, Branca de Neve sabe que o encanto precisa ser

quebrado, e isso só ocorrerá com um beijo de amor verdadeiro, assim é feito, o

príncipe é beijado por ela e com isso livra-se do encanto, Branca de Neve mais uma

vez supera um obstáculo, e a rainha é impedida de realizar seu objetivo.

Outro aspecto a ser destacado, conforme a estrutura de Propp (1984), diz

respeito à restauração, isso ocorre no momento em que Branca de Neve luta com a

rainha. Já que essa não conseguiu atingir seus objetivos, vai atrás de Branca de

Neve na floresta, a encontra e a batalha entre ambas reinicia. A rainha põe uma fera

a lutar com a princesa, sendo que o final acontece no momento em que a princesa

mais uma vez corta um cordão que liga a fera às forças da rainha. Sem saber,

Branca e Neve acaba descobrindo que a fera é mais uma vítima manipulada pela

magia da rainha, esta fera é o rei. Desse modo, o encanto se quebrou, ou seja, a

magia é desfeita, e a rainha começa a pagar o preço por utilizar a magia e é

derrotada.

Ainda conforme Propp (1984), o desfecho se dá quando o rei retorna ao

trono, e concede o casamento entre Branca de Neve e o príncipe, assim a princesa

demonstrou-se decidida, corajosa e líder, pois não deixou de acreditar em seu

próprio potencial e dessa maneira alcançou seus ideais.

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74

5 SOCIEDADE E CULTURA CONTEMPORÂNEA NAS ADAPTAÇÕES DE

BRANCA DE NEVE

5.1 VAIDADE E BELEZA

Atualmente, o culto da beleza e da vaidade em nossa sociedade é

influenciado por fatores como a moda e suas tendências, a indústria dos

cosméticos, personalidades da mídia, disputas de beleza, inveja, entre outros.

Nesse contexto, a questão da vaidade também é amplamente discutida em

praticamente todas as versões do conto da Branca de Neve. Sob este aspecto da

atual sociedade nos diz Bauman:

“a corrida aos inúmeros salões de beleza nasce, em parte, de preocupações existenciais, e o uso de cosméticos nem sempre é um luxo. Por medo de caírem em desuso como obsoletos, senhoras e cavalheiros tingem o cabelo, enquanto quarentões praticam esportes para se manterem esguios. “Como posso ficar bela?”, indaga o título de um folheto recém-lançado no mercado; os anúncios de jornal dizem que ele apresenta maneiras de “permanecer jovem e bonita agora e para sempre”. (BAUMAN, 2008, p.14).

Na famosa frase “Espelho, espelho, meu, existe alguém no mundo mais bela

do que eu” está em jogo a competição da rainha, motivada pela afirmação de sua

beleza e de seu poder em relação aos súditos de seu reino. O espelho é um símbolo

central dessa busca, abrindo dois eixos principais de debate sobre o comportamento

na sociedade contemporânea. Primeiro, quando nos analisamos no espelho, não

estamos apenas nos avaliando em relação a nós mesmos, por exemplo: “estou mais

magra”, “estou mais gorda”, “meu cabelo está mais ou menos bonito”. Estamos,

também, nos avaliando em relação a outras pessoas, pois ao se afirmar mais bela,

uma mulher nada mais está fazendo do que competir com outras, comparando-se

com as demais e avaliando o que em seu corpo pode ser mais belo do que em

outros corpos. Um exemplo disto é facilmente observado em nossa sociedade,

basta analisarmos o comportamento da mulher em relação à análise do vestuário e

aparência de outra, ou até mesmo na comparação entre partes do corpo como rosto,

cabelo, pernas, olhos, etc. Segundo, ao nos avaliarmos no espelho, também

estamos trazendo conosco questões sociais como, por exemplo: “o que determinada

pessoa vai pensar de minha roupa?”, “será que essa roupa está adequada para

determinado evento social?”, “a pessoa por quem me interesso afetivamente vai

apreciar?”.

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75

Na adaptação Branca de neve e o Caçador, tais questões estão relacionadas

a cenas em que Ravenna literalmente consome corpos de mulheres jovens, visando

subtrair a juventude e a beleza das mesmas e tornar-se mais bela, como se

seguisse, ao extremo, o apelo contemporâneo da indústria de cosméticos. O filme

ironiza o grande consumo de produtos de beleza e de procedimentos estéticos,

como substâncias butolínicas, rituais de beleza nos centros estéticos e ainda as

constantes idas e vindas às clínicas de cirurgia plástica, onde a corrida se dá em

busca do método mais avançado de cultuar o jovem e o belo ou do produto

milagroso que faz a mulher parecer mais jovem, ou ainda mais bela.

Analisando de outro ponto de vista, a vaidade aparece novamente em seu

contexto social. Podemos, a esse respeito, tomar como exemplo a cena em que os

anões encontram Branca de Neve e ficam, desde o primeiro olhar, encantados com

a jovem princesa. Na sociedade atual, a aparência é um valor fundamental, segundo

modelos impostos pela mídia, pelos ditos “famosos” e, em verdade, pela sociedade

como um todo. Em suma, quanto mais belo e bem apresentado o ser se mostra,

melhor é sua aceitação na sociedade. Assim, definitivamente, a aparência física é

melhor e mais importante que a beleza interior.

No filme Espelho, Espelho Meu, observamos que os fatores relacionados ao

consumismo, à vaidade e à beleza são apresentados principalmente pela rainha.

Observamos, por exemplo, que a beleza e a vaidade estão presentes na relação da

Rainha com o espelho, tal qual em Branca de Neve e o Caçador, em que ela, a

rainha, aparece transportando-se para um espaço, o espelho, em que existe apenas

ela e seu reflexo, competindo contra ela mesma, enquanto imagem refletida.

Segundo Ferber (2007), “o espelho da madrasta de Branca de Neve é tanto um

meio de magia e uma ferramenta mundana de vaidade”. (FERBER, 2007, p.126).

Essa situação, mesmo que inconsciente, acontece rotineiramente nos dias

atuais, pois o espelho tornou-se uma espécie de juiz, diante dele nos sentimos

constantemente avaliados, mesmo que, em muitos casos, sobretudo as mulheres,

não acreditem que estejam tão belas, ou tão feias.

Além disso, acrescente-se ainda, o celular tornou-se uma ferramenta

contemporânea ao espelho, pois com frequência ele faz as vezes de câmera

Page 84: luciele gonçalves da silva interferência de fatores culturais da

76

fotográfica, em busca da foto perfeita, “selfie”, a fim de ser compartilhada nas redes

sociais, na internet em geral, e com isso tornando-se um novo juiz de valor, já que,

em muitos casos, somos avaliados por tais atos. Desse modo, analogamente à

definição que Ferber (2007) fez do espelho da madrasta podemos compreender da

mesma forma o aparelho celular: “a câmera do celular tornou-se uma ferramenta,

um tanto que necessária, como também mundana de vaidade”.

Logo, as questões da vaidade e da beleza dizem respeito a comportamentos

em evidência em nossa sociedade. E, nesse sentido, o conto Branca de Neve,

expõe um tema ainda relevante, profundamente enraizado na cultura e na

sociedade contemporânea.

5.2 AFIRMAÇÃO DA MULHER MODERNA

Cabe destacar os perfis de mulher conceituados por Lipovetsky (2000). Se

tomarmos a figura da madrasta, podemos descrevê-la como um arquétipo, que se

encaixa no conceito de “primeira mulher”, cunhado por Lipovetsky (2000), como

aquela depreciada, diabólica, mal vista por todos. A madrasta do conto, como

sabemos, cultuava a beleza e a vaidade como determinantes em sua vida, fato que

não condiz com a sociedade da época, pobre e faminta. Portanto, existe aqui uma

grande desigualdade e um grande contraste social.

Por outro lado, após o conceito da primeira mulher, aquela vista como a

responsável pelas incertezas e infelicidade dos homens, eis que surge, então, o

arquétipo da “segunda mulher”. Sob este arquétipo, podemos definir o perfil da

Branca de Neve, uma vez que este arquétipo representa a figura da mulher

enaltecida, encantadora e sensível, “bem vista” e “aceita” pela sociedade. Segundo

Lipovetsky (2000), esta representação surgiu a partir do século XII, em que a

sociedade começou a cultuar a dama, valorizar a mulher, vê-la como musa

inspiradora, como um ser de luz, tão sublime quanto uma divindade e enaltecia o

homem, cujo destino era iluminado pela presença feminina.

Alguns séculos mais tarde, conforme Lipovetsky (2000), já em meados do

século XVIII e XIX, sacraliza-se a esposa, mãe, educadora. A mulher já era uma

espécie de fada do lar, nesse sentido era vista como a responsável pela educação

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77

dos filhos, e zelosa com o marido e o lar. Sendo assim, o arquétipo da “segunda

mulher”, encaixa-se no perfil da Branca de Neve, já que essa zelava e cuidava dos

anões, em troca de abrigo e aconchego do lar.

Apesar da veneração da sociedade em relação à mulher, ela estava longe de

conquistar autonomia e igualdade, vivendo sem determinação em meio a uma

sociedade hierarquizada, a mulher permanecia presa ao domínio masculino, já que

as decisões tanto econômicas quanto políticas e intelectuais eram tomadas pelo

homem.

Desse modo, Branca de Neve representa o símbolo de mulher sensível,

amada e adorada, aquela reconhecível como dona do lar, mãe, e ao mesmo tempo

vivendo sem autonomia e determinação, já que na sociedade da época, o poder,

determinação e grandes decisões, principalmente as que não estivessem envolvidas

com o lar, eram sustentadas pelos homens.

Cabe ressaltar ainda, conforme Lipovetsky (2000), outro perfil de mulher,

esse denominado por terceira mulher. Neste perfil, a mulher apresenta

características de independência que não estão presente no conto original Branca

de Neve. Entretanto, tais características são apresentadas em adaptações

cinematográficas atuais, como Branca de Neve e o Caçador e Espelho, Espelho

Meu, analisadas nesse trabalho. Sob este aspecto, conforme Lipovetsky (2000), até

nossos dias a existência feminina sempre foi ordenada em função de caminhos

social e “naturalmente” pré-traçados: casar, ter filhos, exercer as tarefas subalternas

definidas pela comunidade social. Essa época termina sob os nossos olhos: com a

pós-mulher no lar, o destino do feminino entrou pela primeira vez em uma era de

imprevisibilidade ou de abertura estrutural. Dilemas da mulher hoje: O que estudar?

Tendo em vista qual profissão? Que plano de carreira adotar? Casar ou viver em

concubinato? Divorciar-se ou não? Que número de filhos e em que momento? Tê-

los no quadro da instituição matrimonial ou fora do casamento? Trabalhar em tempo

parcial ou tempo integral? Como conciliar vida profissional e vida maternal? Tudo,

na existência feminina, pelo menos nas sociedades ocidentais, tornou-se escolha,

objeto de interrogação e de arbitragem; nenhuma atividade mais está, em princípio,

fechada às mulheres, nada mais fixa imperativamente seu lugar na ordem social; ei-

las, da mesma maneira que os homens, entregues ao imperativo moderno de definir

Page 86: luciele gonçalves da silva interferência de fatores culturais da

78

e inventar inteiramente sua própria vida. Se for verdade que as mulheres não têm as

rédeas do poder político e econômico, não há dúvida de que ganharam o poder de

governar a si próprias sem caminho social pré-ordenado. Aos antigos poderes

mágicos, misteriosos, maléficos atribuídos às mulheres sucedeu o poder de se auto-

inventar, de projetar e construir um futuro indeterminado. Tanto a primeira como a

segunda mulher estavam subordinadas ao homem; a terceira mulher é sujeita de si

mesma. A segunda mulher era uma criação do ideal dos homens, a terceira mulher

é uma autocriação feminina.

O papel da mulher tem se alterado rapidamente nos últimos anos. A visão da

mulher que cuida do marido e dos filhos, definida por Lipovetsky (2000, p.232) como

a “segunda mulher”, tem dado lugar à mulher mais dinâmica que cada vez mais

assume papel de destaque nos mais variados setores da sociedade, como nas

artes, na política, nos esportes, na mídia, nos negócios, entre outros.

Em Branca de Neve e o caçador, temos um perfil de mulher decidida,

independente, líder, brava e valente, considerada por Lipovetsky (2000, p.232) a

“terceira mulher”. Nessa adaptação, observamos Branca de Neve com sinais

evidentes da mulher moderna, ela mostra-se como líder dos anões, como uma

princesa que não apenas é nobre, mas herdou o direito ao trono, visto que sua sede

de vingança da rainha não se dá apenas por ter perdido seu pai, mas também por

estar em busca do que é seu de direito, seu trono. Branca de Neve, portanto, não

faz, nessa adaptação, um papel da mulher frágil e que necessita de um provedor,

ela faz sim o papel de uma mulher decidida e que luta para atingir seus objetivos e

não necessita do amparo afetivo de um homem.

Ainda em Branca de Neve e o caçador, podemos destacar várias outras

relações em que Branca de Neve aparece com essa personalidade forte e

determinada, como no seu enfrentamento com a rainha, que, por conseguinte,

também se mostra determinada e de personalidade forte. Cabe destacar também o

perfil de liderança de Branca de Neve em sua relação com o duque, antigo amigo de

seu pai, e com a população que lhe dá suporte, por ver nela a evidente presença de

uma líder, motivadora e idealizadora.

É evidente, que o papel da Branca de Neve nas variadas versões do conto

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79

apresenta mudanças de carácter social em relação à mulher. Entretanto, em Branca

de Neve e o caçador entendemos que esse papel é desempenhado de forma a

afirmar a independência feminina em nossa sociedade dos dias atuais.

Em Espelho, Espelho Meu, o perfil da terceira mulher aparece novamente,

pois Branca de Neve no decorrer da trama vai se tornando decidida, independente,

líder, brava e valente. Nessa adaptação, observamos Branca de Neve com sinais

evidentes da mulher moderna, ela mostra-se como líder dos anões, como uma

mulher que foi em busca da magia dentro de si, acreditou em si mesma, na ânsia de

encontrar seus potenciais, permitindo-se ver o quão era capaz de lutar pelos seus

ideais.

Sendo assim, os desígnios da personagem Branca de Neve estavam no

desejo de reencontrar o pai, o rei, já que esse ausentou-se devido a uma magia

negra lançada sobre o reino. Herdou o direito ao trono, visto que sua sede de

vingança da rainha não se dá apenas por ter perdido seu pai, mas também pelas

injustiças cometidas pela Rainha contra seu povo, e ainda por estar em busca do

que é seu de direito, seu trono. Branca de Neve, portanto, não faz, nessa

adaptação, um papel de mulher frágil e que necessita de um provedor, ela faz sim o

papel de uma mulher decidida e que luta para atingir seus objetivos e não necessita

do amparo afetivo de um homem. Embora Branca de Neve tenha se interessado

afetivamente pelo príncipe e, mais tarde, tal interesse tenha levado-os ao altar, cabe

destacar que essa união ocorreu pelo interesse afetivo da princesa, o que surgiu

aos poucos, no decorrer da trama, visto que, em um primeiro momento o objetivo da

princesa era retomar o reino, e reaver o trono e não necessitava de amparo

masculino para realizar tais objetivos. Diferentemente dos interesses da rainha que

era casar-se com um homem rico que pudesse pagar seus luxos, Branca de Neve

uniu-se ao príncipe por interesse afetivo e assim torna-se amiga e parceria de seu

esposo. Portanto, o perfil de Branca de Neve, em relação ao príncipe e com os

anões, é o de uma mulher de liderança, valente e idealizadora.

Assim, em Espelho, Espelho Meu, tal qual em Branca de Neve e o Caçador,

entendemos que o papel da Branca de Neve é desempenhado de forma a reforçar o

caráter de independência das mulheres na sociedade dos dias atuais.

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80

5.3 DISPUTA PELO PODER

As relações entre vaidade, beleza e poder também são colocadas em

evidência em algumas passagens do conto Branca de Neve. Assim, tratamos desse

tópico, a fim de avaliarmos o contexto social no qual essas questões estão

inseridas.

Em Branca de Neve e o Caçador, a rainha Ravenna subjuga o povo em prol

de seu poder e da vontade de manter sua juventude. Exemplo disso é a cena em

que Ravenna toma banho com o mais puro leite e alimenta-se com o coração e as

entranhas dos animais, o que mostra o quão poderosa é, sobretudo no que se refere

à posse de dinheiro, deixando evidente que seu esbanjamento contrasta com a

pobreza e o descontentamento extremo do povo. O filme, portanto, nos traz um

questionamento ético, à medida que o outro é prejudicado em prol de um desejo

pessoal, conforme observamos nas Figuras 18 e 19.

Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Figura 18 – A rainha Ravenna em ritual de beleza banha-se no leite

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Fonte: Adaptação fílmica Branca de Neve e o caçador, 2012.

Ainda em Branca de Neve e o Caçador, podemos destacar a forma como

Ravenna persuade o caçador a se embrenhar na floresta negra atrás de Branca de

Neve. Como uma forma de comprar os serviços dele, através de promessas que

não pode cumprir, a rainha promete a ele trazer sua esposa de volta à vida.Tal fato

nos instiga a refletir sobre práticas que ainda são comuns na sociedade atual,

quando algumas pessoas buscam atingir seus objetivos a qualquer custo, usando

artifícios, como a mentira que compromete a ética e a lisura.

Questões como essas estão evidentemente presentes em nossa sociedade

atual, pois o dinheiro e o poder norteiam muitas, senão grande parte, das decisões

da sociedade em que vivemos. A gratificação pessoal significa antes de tudo a

posse de bens e a possibilidade de ganhar prestígio social, com ampla cobertura

midiática. O poder do dinheiro parece sempre ter movido os atos humanos,

conforme vemos representado na versão do conto, compilada pelos Grimm, na cena

em que o príncipe tenta comprar os anões, revelando seu desejo de que gostaria de

levar Branca de Neve consigo para o castelo: “por favor, lhe dou muito ouro, mas

desde que deixem levá-la comigo” (GRIMM, p. 367).

Por outro lado, em Espelho, Espelho Meu, a rainha submete o povo a suas

mentiras uma vez que ela é a mulher mais poderosa do reino, e o desejo de manter

sua juventude, assim como manter-se no poder está acima do bem e do mal ou de

qualquer coerência. Exemplo disso é a cena em que a Rainha manda seu súdito

cobrar mais impostos do povo, para manter suas festas e rituais de beleza. Esse

fato ocorre no momento em que a rainha comenta que para enganar o povo, basta

Figura 19 – Ravenna em ritual de beleza banha-se no leite

Page 90: luciele gonçalves da silva interferência de fatores culturais da

82

uma boa metáfora.

Além disso, mostra o quão mesquinha e poderosa é, principalmente em

relação à posse de dinheiro. É notório que seu esbanjamento contrasta com a real

situação do povo, pobre e descontente.

Em Espelho, Espelho Meu, ainda podemos destacar a forma como os anões

agem em relação a suas atitudes, pois estes são ladrões e ao se depararem com

Branca de Neve na casa deles, interrogando-a descobrem que ela é a princesa, e

filha do rei, portanto, a família tem muito dinheiro, e logo seria uma forma fácil de

ganhar dinheiro, já que pensaram em pedir resgate pela princesa. Neste ponto,

vemos uma relação com a realidade da violência atual, principalmente nos centros e

regiões metropolitanas, infelizmente, sem a pitada de comédia que a adaptação

cinematográfica carrega consigo.

Outro ponto a considerar acerca da ética está relacionado ainda com os

anões, os quais roubam do povo que passa pela floresta, povo que se assemelha a

eles, ou seja, pobres miseráveis que mal conseguem se manter.

As questões relativas ao poder trabalhadas no filme são encontradas em

diversas passagens em que observamos a influência da rainha, como de Branca de

Neve e até mesmo a influência exercida dos anões sobre o reino. Tal situação não é

estranha à sociedade contemporânea, na medida em que a vaidade e o egoísmo

estão na raiz dos atos de corrupção e no desejo de domínio de governantes e

políticos que exercem o poder.

Assim, as versões contemporâneas de histórias clássicas como Branca de

Neve podem nos ajudar a compreender e avaliar melhor muitos aspectos da psique

humana, potencializados ou modificados na interação com diferentes condições

sociais e culturais.

Page 91: luciele gonçalves da silva interferência de fatores culturais da

83

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho foram apresentadas as influências de algumas questões

sociais contemporâneas presentes nas adaptações cinematográficas do conto

Branca de Neve, a fim de demonstrar que tais questões sociais são fatores

determinantes na concepção das adaptações cinematográficas atuais. Nesse

contexto, selecionamos como estudo de caso as adaptações cinematográficas

Branca de Neve e o Caçador e Espelho, Espelho Meu.

Visando demonstrar as influências de tais questões sociais contemporâneas,

elencamos alguns temas, tais como vaidade, beleza, poder e papel da mulher

presentes no conto literário da Branca de Neve e nas adaptações selecionadas, com

o intuito de observar como os temas trabalhados nas adaptações relacionam-se

com o contexto social contemporâneo. Nesse sentido, compreendemos que

questões sociais como o feminismo ou afirmação da mulher moderna, por exemplo,

que não estavam presentes na versão literária do conto Branca de Neve, hoje são

questões sociais de destaque em ambas as adaptações cinematográficas avaliadas.

Tal conclusão nos leva a crer que os anseios da sociedade são representados em

adaptações de contos literários como apresentados neste trabalho. Ainda neste

contexto, apresentamos evidências de que questões como vaidade e beleza e até

mesmo poder são apresentadas de forma diferente nas adaptações

cinematográficas modernas em comparação com a versão original do conto dos

irmãos Grimm. Tais diferenças, quando relacionadas com a sociedade européia da

época em que os contos foram coletados e com a sociedade atual, nos comprovam

que a forma de pensar e agir de cada sociedade ao seu tempo está intrinsecamente

presente em cada obra em seu tempo.

Entretanto, mesmo que em ambas as adaptações sejam tratadas questões

sociais em comum, tais questões, na maioria das vezes, são apresentadas de

maneiras diferentes. A afirmação da mulher, por exemplo, é apresentada na

adaptação Branca de Neve e o Caçador, através dos personagens da Branca de

Neve e da rainha Ravenna. No caso da Branca de Neve, podemos encontrar

evidências de tal a partir do amadurecimento da personagem ao longo da trama,

pois no princípio Branca de Neve é apenas uma fugitiva do castelo, e ao final,

depois de diversas provações, ela se torna a líder de um povo que busca destronar

a rainha Ravenna. Com relação à Ravenna podemos exemplificar a sua afirmação

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através da cena em que ela abre mão de seu provedor, o Rei, o esposo, e toma as

rédeas de seu destino matando o seu provedor, e principalmente, destacando

através de sua fala na cena que ela não necessita dele. Nesse contexto, embora as

personagens apresentem razões diferentes, elas demonstram traços de que

desejam se afirmar enquanto mulheres independentes. Quando relacionamos a

afirmação da mulher com o conto literário dos irmãos Grimm, podemos observar que

a presença dos anseios da sociedade da época estão representadas de forma

diferenciada, pois Branca de Neve busca segurança em um provedor, no caso o

príncipe e com relação ao provedor da rainha, este simplesmente desaparece.

Assim, podemos observar, utilizando como exemplo a afirmação da mulher, que tal

questão social apresenta-se apenas nas adaptações cinematográficas atuais, visto

que esse é um anseio da sociedade contemporânea.

Ao relacionarmos a afirmação da mulher com a adaptação cinematográfica

Espelho, Espelho Meu, observamos que esta é apenas representada através do

personagem Branca de Neve. Nessa adaptação, também está presente o fato de

Branca de Neve amadurecer no decorrer da trama, passando de uma menina

dependente e que até mesmo não tinha liberdade de sair do castelo, tal qual na

adaptação cinematográfica Branca de Neve e o Caçador, uma líder, que apoiada

pelo povo do reino, destrona a rainha. Entretanto, nesta adaptação, mesmo que

Branca de Neve apareça como uma líder, ela é apresentada como uma parceira do

príncipe, portanto, mesmo que ela se afirme enquanto mulher, não se apresenta

como independente, mas sim como uma companheira com direitos iguais.

Questões como vaidade, beleza e poder foram apresentadas neste trabalho

de modo a relacionar as diferentes maneiras com as quais elas se apresentam nas

diferentes adaptações. Assim, podemos derivar que, mesmo de maneiras diferentes,

as adaptações convergem na apresentação de questões sociais contemporâneas,

de forma a promover o debate acerca delas na sociedade atual. Por outro lado,

nossa análise também mostrou que, a despeito da atualização da temática do conto

clássico, a estrutura narrativa mantém a forma tradicional, revelando que o cinema

tem muito de uma arte popular, que atinge um grande público com as histórias

contadas e mostradas na tela. Neste contexto, as adaptações cinematográficas

Branca de Neve e o caçador, e Espelho, espelho meu, possuem grande apelo para

as personagens da rainha, visto que as características marcantes de ambas as

rainhas são apresentadas com papel de destaque em ambas as adaptações. Isto

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demonstra a intenção dos adaptadores em destacar tais características através da

figura das rainhas, visto que é possível observar tal intenção, através do figurino,

cenário, como também na caracterização das personagens. Por outro lado, as

personagens das princesas também representam o ponto de vista dos adaptadores,

que em ambas as adaptações resgatam o feminino através da figura das princesas

enquanto essas afirmam-se quanto mulheres no desenrolar das tramas.

Portanto, concluímos que as questões sociais não só estavam presentes

quando a versão literária do conto dos Grimm foi coletada, mas como estas estão

evidentemente presentes nas adaptações cinematográficas contemporâneas. Neste

contexto, encontramos evidências de que as questões sociais contemporâneas

possuem papel de destaque nas adaptações cinematográficas, numa forma de fácil

apreensão ao público. Tal fato justifica a atualização dos contos clássicos de tempos

em tempos, pois esses sempre possuem questões adaptáveis e presentes no nosso

cotidiano. Por exemplo, podemos utilizar como base a questão da afirmação da

mulher analisada em ambas as adaptações e destacarmos que esta questão social

está em voga atualmente em nossa sociedade, visto que hoje encontramos diversos

assuntos relacionados, por exemplo, à liderança da mulher nos diversos setores da

sociedade como o profissional, o familiar, o político, entre outros. Além disso, cabe

destacar, que os contos clássicos são uma aposta certeira dos

adaptadores/cineastas, uma vez que ao adaptar estes contos os adaptadores

consideram o mercado financeiro, em virtude de já serem textos-fontes consagrados

tanto mercadologicamente quanto em relação à censura, e, portanto, já conhecidos

do público/espectador.

Assim, as versões contemporâneas de histórias clássicas como Branca de

Neve nos ajudam a refletir, a compreender e avaliar melhor muitos aspectos da

psique humana, potencializados ou modificados na interação com diferentes

condições sociais e culturais, representando os anseios e as modificações sociais

ao longo dos tempos.

Por outro lado, ambas as adaptações ganham força a partir das personagens

da rainha, uma vez que as características da rainha tanto em Espelho, espelho meu,

quanto em Branca de Neve e o caçador são características marcantes e tornam-se

destaque na adaptação.

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