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Universidade Federal do Rio de Janeiro
MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Luana Machado de Almeida
Munduruku e Pariwat:
Relações em transformação
Rio de Janeiro
2010
Livros Grátis
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ii
Luana Machado de Almeida
Munduruku e Pariwat:
Relações em transformação
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Fausto
PPGAS-MN/UFRJ
Rio de Janeiro
2010
iii
Almeida, Luana Machado de
Munduruku e Pariwat: Relações em transformação. Rio de Janeiro, 2010
162 f.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social/Museu Nacional – Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2010.
Orientador: Prof. Dr. Carlos Fausto
1. Etnologia Indígena 2. Munduruku 3. Transformação
I. Fausto, Carlos (Orient.) II. Universidade Federal do Rio de Janeiro III.
Munduruku e Pariwat: Relações em transformação
iv
Luana Machado de Almeida
Munduruku e Pariwat: Relações em transformação
Banca Examinadora:
______________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto – orientador
PPGAS-MN/UFRJ
______________________________
Prof. Dra. Aparecida Vilaça
PPGAS-MN/UFRJ
______________________________
Prof. Dr. César Gordon
UFRRJ
v
Para meus pais,
Marcos e Elsie.
vi
Agradecimentos
À Capes e ao Acordo Capes/Cofecub (2007-2011), por meio do Projeto “Arte, Imagem e
Memória”.
Ao meu orientador, Carlos Fausto... por ter acolhido meu desejo de estudar etnologia, mesmo
quando esse ainda era tímido e inseguro; pela sugestão de pesquisar os Munduruku; pela
generosidade, orientação e apoio ao longo desses três anos... a ele, um sincero “muito
obrigada”.
Aos professores do PPGAS-MN, especialmente Márcio Goldman e Luiz Fernando Dias
Duarte, pela formação em teoria antropológica; Bruna Franchetto, pelas lições de lingüística;
Eduardo Viveiros de Castro, pelos cursos de etnologia e pelo pensamento instigante; e
Fernando Rabossi, pelas reflexões sobre o trabalho etnográfico.
À Aparecida Vilaça e José Antonio Kelly, pelo acolhimento em seus cursos e pela inspiração
que seus trabalhos representam para mim.
À Fátima Nascimento, responsável pelo Setor de Etnologia do Museu Nacional, por ter me
recebido no acervo e por ter, gentilmente, cedido imagens digitais de objetos da coleção
Munduruku.
Aos Munduruku, de um modo geral, e em particular à Ademir Kaba, Carlos Cosme e família,
Wenceslau Cosme, Antônio Cosme, Venâncio Puxo, Genildo Kaba, Adonias Kaba, Marisa
Kaba, Felista Bõrõ, Lucia Kirixi, Francisco de Assis Akay, Inocêncio Akay, Albino Saw, Luis
Waro e às famílias que residem na aldeia Tamanqueira.
À Irmã Conceição, Irmã Marta e Irmã Mirna, pelo cuidado e pelo carinho com o qual me
receberam.
Àqueles que me acolheram em Jacareacanga, especialmente dona Dé, dona Penha e Minero.
Às técnicas de enfermagem da Funasa, Eloana e Verônica, com as quais dividi a “casa” e dei
muitas risadas.
Ao agente de endemias da Funasa, Antonilson Macário, pela disposição em ajudar sempre
que possível.
vii
À Jayne Colevatti, pelas dicas sobre como tecer meu caminho pelas plagas da Mundurukânia
e pelos comentários sempre oportunos e bem humorados.
Aos meus colegas de turma (ingressos em 2007), pelos momentos compartilhados em sala de
aula e, especialmente, fora dela: Flávia, Orlando, Pedro, Silvia, Ariana, Kleyton, César,
Rogério, Wescisley, Raphael, André, Beatriz. À Leonor, Felipe e Leonardo, pela companhia
até o final do segundo tempo.
Aos demais colegas do PPGAS... é impossível nomeá-los todos.
Aos funcionários da secretaria, Xerox e biblioteca do PPGAS, pela paciência e pela
disposição para resolver qualquer “pepino”.
Aos amigos “de fora”, que acompanharam toda, ou parte, dessa história: Brenda, Márcia,
Karla, Gretha, Janaina, Erika, Yuli, Camila, Chloe, Mariana, Taís, Milena e Henrique.
Aos fiéis companheiros desde a infância, meu irmão, Pedro, e meu primo, Lucas.
Aos excelentes revisores: tio Luis, tia Glacy e Marta Daschieri.
Às minhas queridas avós, por compartilharem comigo o “conhecimento dos antigos” e ao meu
avô Esequiel (in memorium), que deixou saudades.
À Eneida, pelas portas (e braços) sempre abertas no Rio de Janeiro; e à Inês, pelos mimos,
mesmo estando longe.
Aos meus pais, Marcos e Elsie, pelo apoio incondicional e por permitirem que a antropologia
fosse para mim uma escolha.
À Bruno Emilio, pelo amor, carinho, cuidado e amizade; pelo aprendizado que é viver a seu
lado; pela companhia e parceria constantes; pela paciência e pelo tudo que é.
viii
“E haverá outro modo de salvar-se? senão o de criar as
próprias realidades?”
Clarice Linspector
“As in all things, the first step toward wisdom is the awareness
that we really do not know what we are talking about”
Robert Murphy
ix
Resumo
ALMEIDA, Luana Machado de. Munduruku e Pariwat: Relações em transformação.
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010.
Esta dissertação é sobre os Munduruku que residem na região do Alto Tapajós, no estado do
Pará. O objetivo específico é refletir em torno da afirmativa de que estão “virando branco”. A
questão surgiu a partir de um breve trabalho de campo, realizado no final do ano de 2008, no
qual os Munduruku afirmavam com frequência que estavam “virando pariwat (branco)”.
Cinquenta anos atrás, o antropólogo norte-americano, Robert Murphy, já havia registrado esse
mesmo processo, o que nos levou a perceber que não se trata de um movimento
exclusivamente contemporâneo. Sendo assim, tal afirmação suscitou duas perguntas que
vieram a orientar este trabalho: o que os Munduruku poderiam estar dizendo ao falar que
estavam virando pariwat? E, como é possível virar pariwat sem, contudo, deixar de ser
Munduruku? Para responder a essas perguntas, inspirei-me em teorias que buscam pensar as
situações de contato interétnico sob uma ótica alternativa à da aculturação e em trabalhos
etnográficos que analisam a mudança cultural na Amazônia a partir de uma perspectiva
indígena da transformação. Dessa maneira, conciliando informações históricas e dados
etnográficos, as transformações contemporâneas emergem menos como “perda cultural” e
mais como manifestação de um modo característico de ser (e/ou continuar sendo)
Munduruku.
x
Abstract
ALMEIDA, Luana Machado de. Munduruku e Pariwat: Relações em transformação.
Dissertação de Mestrado em Antropologia Social – PPGAS/MN/UFRJ: Rio de Janeiro, 2010.
This dissertation is about the Munduruku living in the Upper Tapajós region of Pará state,
Brazil. The aim is to reflect upon the affirmation that the Munduruku are “becoming white”.
This question emerged out of a brief period of fieldwork at the end of 2008 when the
Munduruku frequently stated that they were “becoming pariwat (white)”. Fifty years ago the
north-american anthropologist Robert Murphy had registered the same process underway; this
leads us away from the assumption that such a movement is exclusively recent. That being the
case, two questions come to orient this work: what could the Munduruku be saying when they
say that they are becoming pariwat? How is it posible to become pariwat whilst remaining
Munduruku? To respond to these questions, I was inspired by theories of interethnic contact
which avoid recourse to acculturation discourses, and by ethnographic works which analyse
cultural change in Amazonia taking off from indigenous perspectives on transformation. Thus,
using both historical and ethnographic data, contemporary transformations emerge less as
“culture loss” and more as manifestations of a characteristic being (and/or continuing to be)
Munduruku.
xi
Sumário
Introdução 1
Capítulo 1: Delineando o problema 9
A perspectiva da aculturação 10
Relações de conflito e dominação 16
O lugar da história 20
O papel da alteridade 32
Corporalidade e políticas de indentidade 35
O desafio da indigenização da modernidade 40
Capítulo 2: Imagens na História 44
Primeiros contatos 45
Os caçadores de cabeça 48
Intensificando relações 54
Missão São Francisco do Cururu 56
A chegada do SPI 60
Capítulo 3: Robert Murphy, um etnógrafo entre os Munduruku 64
Savana versus rio Cururu 66
Patri- versus Matri- 72
Perda e transformação 77
Capítulo 4: Virando branco ou... Devir-pariwat 84
Impressões etnográficas 84
A chegada: Jacareacanga 84
Perdendo a cultura: as aldeias do Cururu 86
A escola na Missão 93
Missa e festa de formatura 95
Virando branco ou... Devir-pariwat 97
Os Wari‟ e a experiência de outro ponto de vista 98
Os Yanomami e o “tornar-se napë” 101
Munduruku: devir-pariwat 106
Considerações Finais 116
Referências Bibliográficas 122
Anexos 133
xii
Anexo I: Relações dos Pólos Base com suas respectivas aldeias e população 134
Anexo II: Região do rio Tapajós 137
Anexo III: Possíveis rotas de migração dos Munduruku – séc. XIX e XX 138
Anexo IV: Região do Alto Tapajós 139
xiii
Lista de Ilustrações
FIGURAS 140
Figura 1: Jovem Munduruku tatuado 141
Figura 2: Mulher e Criança Munduruku 142
Figura 3: Chefe Munduruku 143
Figura 4: Cabeça-troféu Munduruku 144
Figura 5: Cabeça-troféu Munduruku 145
Figura 6: Coifa com cobre-nuca 146
Figura 7: Cinto Munduruku 147
Figura 8: Bandoleiras Munduruku 148
Figura 9: Par de braçadeiras Munduruku 149
xiv
Lista de Ilustrações
FOTOGRAFIAS 150
Foto 1: Residência do Frei Gilberto e “porta de entrada” da Missão 151
Foto 2: “Casa das Irmãs” 151
Foto 3: Habitação indígena – Missão São Francisco 152
Foto 4: Aldeia Missão São Francisco 152
Foto 5: Barco do Careca, o regatão local 153
Foto 6: Distribuição da aposentadoria feita pela Irmã Conceição 153
Foto 7: Luiz Waro, um guerreiro Munduruku 154
Foto 8: Caminho para chegar à Missão Velha 155
Foto 9: Venâncio Puxo, o capitão da Missão Velha 156
Foto 10: O “porto” da Missão Velha 157
Foto 11: Meninas no igarapé 157
Foto 12: Formandos da 8ª série em frente à Igreja 158
Foto 13: Participação na missa de formatura 159
Foto 14: Formandos da 8ª série no barracão da comunidade 160
Foto 15: Formandos da 8ª série 160
Foto 16: Mulheres durante o café da manhã da formatura 161
Foto 17: as meninas... 161
Foto 18: ... e os meninos 162
Introdução
Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma experiência não autorizada por mim, apenas acontecida.
– Clarice Linspector –
Esta é uma dissertação sobre os Munduruku, um povo indígena pertencente à família
linguística munduruku, do tronco Tupi. Sua população atual é composta por cerca de 10.000
pessoas e se encontra dispersa em diferentes regiões nos estados do Pará, Amazonas e Mato
Grosso. A maior parte, contudo, reside no Alto Tapajós, na Terra Indígena Munduruku –
homologada em 2004 e localizada ao sul do município de Jacareacanga, no Pará.1 Um censo
populacional feito pelo DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Rio Tapajós, no primeiro
semestre do ano de 2009, indica 7.280 mundurukus residindo nessa localidade e divididos em
104 aldeias [anexo I].
Apesar de manterem relações pacíficas com os brancos há mais de dois séculos, a
última (e única) etnografia publicada sobre eles data de mais de cinqüenta anos. Trata-se da
tese de doutorado do antropólogo norte-americano, Robert Murphy, o qual, junto com sua
esposa, Yolanda Murphy, esteve na região do Alto Tapajós em meados da década de 50 [anexo
II]. No que diz respeito à produção bibliográfica existe ainda uma rica fonte documental
deixada por cronistas e viajantes no século XIX, e algumas pesquisas de cunho histórico
produzidas recentemente. Em comum com todos esses trabalhos está o fato de os dados
fornecidos se limitarem à década de 60.
A existência de um rico material histórico e etnográfico, aliado à relativa ausência de
dados contemporâneos, contribuiu para a decisão de estudá-los durante o mestrado. Além
deste, dois outros fatores foram fundamentais nessa escolha. Em primeiro lugar, a localização
1 Estimativa fornecida pela Funasa (2002) e retirada do verbete Munduruku, em “Povos Indígenas no
Brasil” – publicação online do Instituto Sociambiental (www.socioambiental.org).
2
geográfica, de acesso relativamente fácil, permitiria fazer uma visita a campo ainda durante o
mestrado.2 Apesar de suas limitações (como a extinção de certos rituais, meu
desconhecimento da língua nativa, o desinteresse dos próprios Munduruku no tema
pesquisado e o pouco tempo disponível para trabalho de campo), acreditava que a experiência
de conhecer pessoalmente uma aldeia Munduruku ajudaria a delinear os rumos da
investigação.
O outro fator que pesou na escolha foi ter conhecido Ademir Munduruku, que na
época estava terminando sua graduação em Ciências Sociais, pela UFPA (Universidade
Federal do Pará). Conheci Ademir por intermédio da lingüista Gessiane Picanço, e trocamos
mensagens eletrônicas durante alguns meses. A família de Ademir reside no Alto Tapajós, mas
ele, na época, morava em Belém. O diálogo com um Munduruku que também fosse
antropólogo (ou vice-versa) parecia-me uma oportunidade intelectualmente fértil. Além do
mais, Ademir era um contato “de dentro” e poderia facilitar a negociação com a comunidade.
Sendo assim, no primeiro semestre de 2008, elaborei um projeto com finalidade de
obter permissão para visitar a Terra Indígena Munduruku e, após submetê-lo à avaliação do
CNPq e da FUNAI, aguardei a consulta que deveria ser feita aos próprios indígenas. Neste
projeto concentrei-me no entrelaçamento entre as práticas rituais e a organização social do
grupo.
A idéia surgiu a partir da leitura da bibliografia, onde se destacavam características
como a tatuagem corporal, o uso de adornos plumários e, em especial, as “cerimônias” em
torno do troféu que era feito com a cabeça dos inimigos. Além dos textos de cronistas e
viajantes, utilizei, em especial, a monografia de Murphy, Mundurucú Religion (1958). Nesta,
encontra-se um extenso registro de práticas rituais, mitologia e xamanismo; em suma, um
conjunto de informações compiladas pelo autor como expressão de uma “religião
2 Para o trabalho de campo, contei com o apoio financeiro do Projeto “Arte, Imagem e Memória”,
desenvolvido no âmbito do Acordo Capes/Cofecub (2007-2011) e coordenado, no Brasil, por meu orientador,
Prof. Dr. Carlos Fausto.
3
Munduruku”. Além disso, a descrição de uma organização social complexa parecia destacar-
se do padrão compartilhado por outros grupos Tupi. A existência de aldeias circulares com
uma casa dos homens no centro, a divisão em metades exogâmicas e a segmentação interna
em múltiplos clãs parecia configurar certo “enigma etnológico”, como sugere Menget (1993:
313).
Sabendo que a situação encontrada não se assemelharia àquela descrita na bibliografia,
e tendo como objetivo suscitar memórias e discussões sobre esses temas, preparei um álbum
com gravuras e fotos de tatuagem corporal, plumárias e cabeças-troféus. Algumas destas
imagens foram retiradas de livros e outras foram fornecidas por Fátima Nascimento,
responsável pelo Setor de Etnologia do Museu Nacional – o qual possui uma rica coleção de
objetos Munduruku. Possivelmente, o álbum provocaria lembranças em meus interlocutores e,
dessa forma, renderia dados interessantes – ou, ao menos, um punhado de boas histórias.
No início de outubro de 2008, cheguei à Jacareacanga, cidade de mais ou menos
20.000 habitantes, localizada às margens da Tranzamazônica e porta de entrada para a
Mundurukânia – conforme designou Aires de Casal (1977 [1817]). Tinha em mãos uma
autorização da FUNAI, contudo, condicional à aceitação dos próprios Munduruku. Como já
aguardava a autorização há alguns meses e esta tardava a vir, orientaram-me a solicitá-la
pessoalmente. Ao chegar, a primeira providência foi entrar em contato com a Associação
Pusuru, organização indígena Munduruku localizada em Jacareacanga. Inicialmente, pedi
permissão para ir à Cabruá, aldeia localizada na região chamada de “campos do Tapajós” e
conhecida ainda hoje como uma das “mais tradicionais”. Conversei com algumas lideranças
da região que, preocupados com as intenções do meu trabalho e apreensivos em permitir meu
acesso ao “conhecimento dos antigos”, negaram meu pedido.
Diante dessa recusa, abandonei a idéia de ir para Cabruá e solicitei autorização para a
Missão São Francisco, aldeia fundada há quase um século por missionários franciscanos.
4
Dessa vez, contei com a ajuda de Ademir, que estava em Jacareacanga e interveio junto a seu
tio, uma liderança importante na Missão. Poucos dias depois, embarquei em uma voadeira
rumo ao rio Cururu, um dos afluentes do rio Tapajós. Permaneci cerca de dois meses na aldeia
e, nesse período, muita coisa mudou no que diz respeito ao projeto inicial.
Quando me questionavam sobre o porquê de estar ali, respondia que desejava saber
como eles viviam, contava-lhes que sabia um pouco sobre os Munduruku, mas eram
informações muito antigas – queria saber o que era importante para eles nos dias de hoje. Os
comentários ao meu discurso bem intencionado eram sempre em tom de lamentação: “ah, não
vivemos mais como antigamente, estamos virando pariwat (branco; não-índio)”. O álbum que
carregava comigo de fato despertou bastante interesse, mas não exatamente da forma
esperada. Nos primeiros dias, era comum que as pessoas se juntassem para olhar as gravuras
e, nesses momentos, faziam muitos comentários, sempre na língua munduruku. No entanto,
em seguida, quando eu perguntava o que haviam dito, costumavam me dizer apenas que “nós
não fazemos mais essas coisas não, isso é tudo coisa dos antigos”.
Esse tipo de afirmação tornou-se constante e o tempo todo ouvia como os Munduruku
estavam perdendo sua cultura, sua língua e seus costumes. “Os jovens só querem saber de
coisas de pariwat”, reclamavam os mais velhos. Contudo, em paralelo a esses comentários,
afirmavam a importância de se conhecer a “tradição”, saber como viviam os antigos, manter a
língua e ensiná-la na escola. O álbum parecia funcionar também nessa direção, pois se tratava
de um registro de como eram as “coisas dos antigos”. Lembro-me de um dia quando, olhando
a foto de um cocar, um grupo de pessoas chegou à conclusão de que o cocar que a maioria dos
homens utiliza nas comemorações dos dias atuais não é “verdadeiramente Munduruku”, pois
tem as penas para cima ao invés de serem rentes à cabeça. Apenas uma pessoa ou outra
possuía o “cocar de verdade”.
5
A partir dessa breve experiência de campo, o interesse da pesquisa direcionou-se
progressivamente para o relacionamento estabelecido entre os Munduruku e o “mundo dos
brancos”, seja através das mercadorias, da escola, dos funcionários da Funasa ou das visitas
periódicas à cidade. Tal preocupação conduziu-me ao outro livro de Murphy, Headhunter´s
Heritage (1978 [1960]), o qual havia deixado em segundo plano por conta do privilégio dado
ao Munduruku Religion. Fruto de sua tese de doutorado, nele o autor aborda o processo de
mudança social e econômica pelo qual os Munduruku vinham passando desde o início do
século XX. Já nessa época, Murphy registrara o mesmo processo de transformação que seria
encontrado cinquenta anos mais tarde, pois, assim como hoje, os Munduruku já afirmavam
estar virando pariwat (1978 [1960]: 147). Essa constatação levou-me a questionar o que os
Munduruku poderiam estar dizendo ao afirmar que estavam “virando branco”, pois não
parecia tratar-se de um movimento exclusivamente contemporâneo e sim de um processo que
se desenrola há pelo menos meio século; um “virar” onde nunca se atravessa efetivamente
para “o outro lado”. Tudo se passa como se “virar pariwat” fosse um modo de ser (e/ou
continuar sendo) Munduruku.
Assim, ao escolher o “virar branco” como tema da dissertação, surgiram outros
questionamentos, tais como: quem é índio e quem é branco? O que é ser índio? Como
identificar uma pessoa ou um grupo como indígenas? Ou ainda, se é possível “virar branco”, é
possível também “virar índio”? Existiriam diferenças e/ou semelhanças entre esses dois
processos? Apesar da pertinência destas questões (especialmente na produção de laudos
antropológicos, processos de demarcação de terra ou assistência governamental), o objetivo
do presente trabalho não é lidar diretamente com elas, muito menos fornecer-lhes uma
resposta. No âmbito desta dissertação, o foco principal foi entender como o processo de
contato poderia ser compreendido a partir do “mundo vivido” Munduruku.
No primeiro capítulo, busquei mapear as principais correntes teóricas que abordaram o
6
contato entre índios e brancos nas terras baixas da América do Sul. A intenção foi expor
diferentes leituras de um mesmo problema e, para isso, reuni uma variedade de autores,
situações etnográficas e interpretações, dando ênfase àqueles com os quais mais me identifico.
De um modo geral, o objetivo desse capítulo foi mostrar a possibilidade de enxergar as
mudanças históricas por um viés da transformação; ou, dito de outra forma, uma tentativa de
entender o processo de mudança a partir das sócio-cosmologias nativas. Essa revisão
bibliográfica, por sua vez, teve a função de fornecer uma base teórica para a discussão
empreendida nos capítulos seguintes.
No segundo capítulo procurei (re)construir uma “história do contato”, ou seja, traçar
um quadro do desenvolvimento histórico das relações de contato. A exploração dos rios
Tapajós e Madeira teve início ainda no século XVII, com as viagens de reconhecimento e a
instalação das primeiras missões jesuítas. No entanto, apenas no século seguinte a região do
Alto Tapajós passou a ser desbravada. Desse período, predominam relatos de cronistas e
viajantes naturalistas, como Spix e Martius (1976 [1817/1820]), Tocantins (1877), Hartt
(1885) e Coudreau (1977 [1897]). Com o boom da borracha, na segunda metade do século
XIX, a ocupação dos brancos acelerou-se mas, ainda assim, uma parte da população
Munduruku permaneceu relativamente “isolada” nas regiões interioranas do Alto Tapajós.
Seguindo o fluxo da colonização, o século XX presenciou uma ocupação progressiva da
região por parte dos brancos e o contato, antes intermitente, consolidou-se em um cenário de
intensas relações interétnicas.
O terceiro capítulo teve como objetivo apresentar ao leitor a obra do antropólogo
Robert Murphy. Além das duas monografias acima citadas (Headhunter‟s Heritage e
Munduruku Religion), o autor publicou artigos sobre temas diversos e um livro, escrito em
parceria com sua esposa, Yolanda Murphy, no qual analisa as relações de gênero na sociedade
munduruku, dando ênfase ao papel das mulheres. O objetivo foi colocar à disposição do leitor
7
um conjunto consistente de informações etnográficas e, simultaneamente, fazer uma leitura
crítica das teses apresentadas pelo autor. Como dito anteriormente, um dos focos da pesquisa
de Murphy foi o processo de mudança pelo qual os Munduruku vinham passando. Cinquenta
anos depois, encontrei–me estudando o mesmo tema, mas buscando conferir novas
interpretações àquele cenário que Murphy havia identificado como sendo de “progressiva
deterioração social” (1978 [1960]: 2)
É necessário salientar que o terceiro capítulo não teve como propósito criticar a obra
de Murphy, tampouco desprezar a preocupação que ele manifestou quanto ao destino do povo
munduruku. Passado tanto tempo, seria fácil e cômodo simplesmente olhar para trás e mostrar
que suas “previsões” estavam erradas – os Munduruku continuam existindo como um grupo
etnicamente distinto e tem, inclusive, apresentado significativas taxas de crescimento
demográfico. Além de pioneiro, o trabalho de Murphy deve ser valorizado pelo que continua
sendo ainda hoje: a fonte de dados etnográficos mais completa e rica sobre os Munduruku. No
entanto, decorridas cinco décadas, é possível fazer uma releitura desse trabalho, apresentando
tanto suas limitações quanto os pontos que poderiam, dado o atual desenvolvimento da
etnologia amazônica, ser analisados sob outra perspectiva.
Sendo assim, no capítulo seguinte, busquei interpretar a relação dos Munduruku com
os brancos a partir da minha experiência entre eles. O capítulo divide-se em duas partes. Na
primeira, há uma breve descrição da viagem que fiz à Mundurukânia, no final de 2008; trata-
se antes de impressões etnográficas que de análises propriamente ditas. O objetivo dessa
descrição é compartilhar com o leitor as razões pelas quais decidi estudar a relação entre
Munduruku e pariwat. Em seguida, analisei os trabalhos de dois antropólogos que,
trabalhando com povos em localizações geográficas e com histórias de contato bastante
diversas, dedicaram-se a compreender a complexidade por trás do “fenômeno” do “virar
branco” (Vilaça 2006; Kelly 2009). Esses trabalhos, aliados à discussão apresentada no
8
primeiro capítulo, serviram de inspiração para tentar compreender a situação atual dos
Munduruku.
Dessa forma, a presente dissertação buscou abrir caminho para outras pesquisas que se
dediquem ao assunto; um tema intelectualmente fascinante e fundamental de um ponto de
vista político. Somente quando entendermos o lugar dos brancos na pluralidade das sócio-
cosmologias indígenas será possível minimizar os equívocos recorrentes, oriundos dessa
relação entre mundos tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes.
Por fim, cabe fazer uma pequena observação. Buscando tornar a leitura mais fluida,
optei por traduzir todas as citações feitas em língua estrangeira. Como em toda tarefa de
tradução, é necessário um esforço para manter o sentido original, mas, inevitavelmente, algo
se perde no caminho. Não há como reproduzir fielmente algo tão subjetivo como o estilo de
escrita de um autor. Sendo assim, e esperando que essa decisão venha a facilitar a vida do
leitor, assumo antecipadamente responsabilidade por qualquer eventual imprecisão.
Capítulo 1
Delineando o problema
O etnólogo deve, entretanto, ter sempre presente no espírito que as instituições primitivas não são apenas capazes de conservar o que existe, ou
de reter provisoriamente os vestígios de um passado que se desfaz, mas
também de elaborar inovações audaciosas, ainda que as estruturas
tradicionais com isso se transformem profundamente
- Claude Lévi-Strauss -
O contato entre povos autóctones e a civilização ocidental é uma questão que está na
pauta da antropologia desde sua instituição enquanto disciplina o que, por sinal, se deu a
partir do encontro entre esses dois “mundos”. Apesar de ter recebido diferentes inflexões
teóricas, uma preocupação acompanha o imaginário antropológico desde seus primórdios: a
idéia dos “primitivos” ou “selvagens” como um “objeto em extinção” (Sahlins 1997).
Lembremos a preocupação expressa por Malinowski em 1922 ao lamentar que, “embora
atualmente ainda se encontre um bom número de comunidades nativas disponíveis ao estudo
científico, dentro de uma ou duas gerações essas comunidades ou suas culturas terão
praticamente desaparecido” (Malinowski 1976: 15).
De fato, não foram poucos aqueles que sucumbiram ao “encontro”, mas ao observar
essas relações estritamente sob a ótica da extinção e da dominação, os povos ditos tribais se
viram muitas vezes restritos a recipientes inertes de um processo – violento, sem dúvida –
sobre o qual não teriam o menor domínio. Preocupada, com razão, com o destino desses
povos, boa parte da produção antropológica até a década de 80 acabou por tratá-los como
espectadores de uma história que os engloba e os determina, uma história que se restringe à
malfadada “história do contato”.
A chegada dos europeus e as mudanças subsequentes – como o abandono de práticas
tradicionais e a incorporação de mercadorias e valores capitalistas – foram, frequentemente,
10
encaradas como um processo de deterioração progressiva, ou seja, um movimento de perda
cultural. O contato representava uma marcha, sem volta, rumo à civilização. Tal movimento,
aliado à recorrente preocupação com a destruição do Outro, acabou por “negar qualquer
autonomia cultural ou intencionalidade histórica à alteridade indígena” (Sahlins 1997: 52).3
No entanto, ao menos no que diz respeito às populações indígenas no Brasil, as últimas
décadas tem nos mostrado que a história não seguiria caminhos tão previsíveis. Diversos
grupos fadados à extinção persistem nos dias atuais como coletividades diferenciadas, e não
são raros os casos em que uma população reduzida a poucas famílias vem experimentando um
crescimento demográfico. Por sua vez, os antropólogos tentaram acompanhar as diferentes
configurações que essa relação foi assumindo, e diversas abordagens foram desenvolvidas
para dar conta dos cenários encontrados.
A perspectiva da aculturação
O modelo da aculturação desenvolvido nos Estados Unidos foi a principal orientação
teórica, até pelo menos o início da década de 50, utilizada para lidar tanto com o processo de
mudança causada pela conjunção de dois, ou mais, sistemas culturais, quanto com a adaptação
seletiva de sistemas de valores em processo de integração. Muita tinta foi gasta buscando
definir o conceito e as maneiras de aplicá-lo, não sendo poucas as controvérsias. As
abordagens variaram desde a necessidade de coleta e documentação dos elementos
considerados puros até o fenômeno da difusão. Apesar dos enfoques distintos, alguns pontos
3 Apesar da preocupação com as consequências desastrosas para os povos nativos diante do contato
com a civilização ocidental, a antropologia tornou-se semelhante ao colonialismo que, justificadamente,
condenava. “A antropologia é talvez a única disciplina fundada no princípio da coruja de Minerva: ela começou
como uma disciplina profissional justamente quando seu objeto de estudo já ia desaparecendo. Mesmo se nem
todos os assim chamados povos primitivos estavam fisicamente morrendo, suas culturas exóticas estavam
certamente se desintegrando (por “aculturação”) sob o assédio da ordem capitalista mundial. Parecia que logo
nada mais restaria a contemplar senão versões locais da “civilização” ocidental. Nesse sentido, a antropologia
originalmente partilhava com os senhores coloniais a mesma crença na inexorabilidade do progresso, ainda que
eventualmente a lamentasse.” (Sahlins 1997: 42, grifo meu).
11
unificavam estas pesquisas: uma “crença” na inexorabilidade da civilização e uma
necessidade de identificar os elementos culturais de uma dada sociedade como autênticos e
genuínos, ou fruto de alterações e empréstimos.
Uma das tentativas de elaborar um esquema teórico para o “fenômeno da aculturação”
foi o seminário organizado pelo Social Science Research Council em 1953.4 Neste, os autores
demonstram as nuances envolvidas no processo de mudança aculturativa, revelando uma
formulação mais complexa que a idéia de uma mera transposição dos elementos culturais de
um sistema a outro. Um dos pontos centrais é a constatação da mudança como algo
permanente em qualquer sistema cultural. A existência de um estado de equilíbrio, ao invés de
indicar uma estrutura social enrijecida, apontaria para o fato de que as mudanças são
governadas por uma dinâmica própria. Desta maneira, as modificações induzidas pelo contato
não seriam a transferência de um estado estático para um ativo, e sim uma alteração de
direção na qual as mudanças ocorrem; dito de outra forma, as mudanças passam a ser
orientadas por forças externas, não mais internas (Siegel et all 1954: 984).
Segundo os organizadores do seminário, a dimensão criativa envolvida no processo de
aculturação não permite tratá-lo como uma simples absorção passiva de um sistema por outro,
pois a incorporação de elementos externos ocorre simultaneamente à produção interna de
novos elementos. A aculturação é vista, então, como um processo criativo, mesmo quando
suas conseqüências são um declínio no número e na variedade de elementos pré-existentes
(Siegel et all 1954: 985). Contudo, conforme o processo se desenrola, estes mecanismos
criativos acabam bloqueados e o sistema termina por perder sua autonomia. Mesmo sem uma
conotação fatalista, as conseqüências dessa dinâmica acabam sendo mais destrutivas que
criativas, não sendo raros os casos de sistemas que são conduzidos a uma completa
desintegração.
4 “Acculturation: an exploratory formulation”, American Anthropologist, 1954, pp. 973-1000 –
organizado por Barnett, Broom, Siegel, Watson, Vogt.
12
No cenário brasileiro, o paradigma da aculturação exerceu forte influência nos estudos
das populações indígenas. Numa fase pioneira, destacam-se as publicações de Baldus (1937),
Oberg (1949), Altenfelder Silva (1949) e Wagley e Galvão (1961 [1949]), sendo este último
considerado um dos estudos mais completos sobre aculturação de um grupo indígena
brasileiro (Schaden 1964).
Wagley e Galvão (1961 [1949]) identificaram os Tenetehara como uma cultura em
transição, uma cultura que há muitos anos vinha atravessando um processo gradual de
assimilação e que, dentro de algumas gerações, acabaria completamente incorporada àquela
circundante. Uma situação recorrente no encontro entre diferentes sociedades, quando a
distância cultural existente a princípio diminui progressivamente, até que uma seja
completamente absorvida pela outra. Os Tenetehara seriam a expressão de um processo de
mudança cultural resultante do contato entre duas tradições culturais distintas, as quais
reagem, absorvem elementos que não lhe são próprios e os readaptam em harmonia ao seu
todo cultural (Wagley & Galvão 1961 [1949]: 9). Seguindo uma metodologia comum aos
estudos de aculturação, os autores sugerem a identificação de traços culturais que indiquem
mudança e/ou continuidade com práticas do passado – lê-se, pré-contato. No entanto, não
possuindo registros da cultura dos Tenetehara de outrora, acabaram utilizando dados de outros
grupos tupi para tecer suas comparações entre um “antes” e um “depois”. Na ausência de
documentação, a história que se atribui aos Tenetehara é tomada emprestada aos registros
feitos sobre os Tupinambá no século XVI, utilizados como espécie de arquétipo dos
Tenetehara antigos.
Ainda assim, Wagley e Galvão (1961 [1949]) destacam que, apesar das modificações
sofridas, os Tenetehara mantiveram padrões tradicionais que permitiam distingui-los enquanto
cultura e sociedade distintas. No entanto, como também foi assinalado em outros trabalhos da
época, os autores previram que o desenvolvimento de novos meios de comunicação, aliado ao
13
crescimento da população brasileira, resultaria em uma intensificação do contato e uma
aceleração progressiva da assimilação; o que resultaria, inevitavelmente, no desaparecimento
dos Tenetehara no espaço de uma ou duas gerações. A transformação dos índios em caboclos
integrados à população rural era vista como um processo inexorável, no qual o destino destes
povos se via restrito a dois caminhos: extinção ou civilização.
Outra pesquisa pioneira que procurou entender as condições e as consequências do
contato entre índios e brancos foi realizada pelo antropólogo norte-americano Robert Murphy,
junto aos índios Munduruku. Segundo Schaden (1964: 54), esta é “talvez a investigação mais
metódica e completa das transformações sofridas por uma cultura indígena do Brasil em
virtude do convívio com representantes da civilização”. Em um de seus livros, Murphy (1958)
analisa as mudanças ocorridas na esfera da religião em sua inter-relação com a estrutura
social, mostrando como a desintegração da organização tradicional e das práticas religiosas
ocorreram paralelamente. Um movimento no qual as instituições que garantiam a coesão do
grupo – como a guerra, o xamanismo e os rituais coletivos – deram lugar a práticas mais
individuais, incrementando o potencial disruptivo interno das aldeias.
Em outro trabalho, no qual examina mais a fundo o processo de aculturação, Murphy
(1978 [1960]) relaciona as transformações ocorridas na estrutura social com uma esfera sócio-
econômica mais ampla – a indústria de extração da borracha. Conjugando dados históricos
com uma análise funcionalista, o autor investiga a dinâmica das mudanças internas e sua
interdependência com a sociedade envolvente (Murphy 1978 [1960]: 178-180). Assim, um
dos méritos de Murphy estaria em buscar entender as mudanças culturais em sua base
estrutural e, ao mesmo tempo, elucidar as condições socioeconômicas que as geraram, ou que
aconteceram paralelamente.
Como sugere Schaden (1964: 153-154), a pesquisa empreendida por Murphy é um
exemplo de como as transformações em um sistema social indígena ocorrem primeiramente
14
pela eliminação interna de elementos tradicionais, e não pela adoção de instituições externas.
Nesse sentido, as mudanças tenderiam a se suceder muito mais de dentro para fora do que de
fora para dentro. Numa situação de contato interétnico, a sociedade indígena veria as bases de
sua estrutura e sua coesão social solapadas, ao mesmo tempo em que experimentaria uma
ampliação de seu horizonte social e cultural. Ao invés de viverem fechados em si mesmos,
tais grupos passariam a interagir com a sociedade nacional e a responder às exigências de um
mercado que força o estabelecimento de vínculos e produz uma abertura para o mundo
exterior. Dito isto, uma das principais transformações sofridas pelos grupos ameríndios em
contato com as frentes econômicas nacionais seria a passagem da condição de sociedades
fechadas para a de sociedades abertas, sendo as mudanças uma decorrência deste processo
(Schaden 1964).
Em um artigo escrito para a Cultural Anthropology, Alcida Ramos (1990) sugere que,
ao ser transposta para o cenário brasileiro, a orientação aculturativa recebeu uma inflexão
política. Derivada, em parte, da preocupação com o destino das culturas indígenas que vinham
sendo violentamente excluídas do mapa devido ao avanço das frentes de expansão da
sociedade nacional. A ênfase no contato e nas relações interétnicas refletiria, assim, um
contexto histórico de compromisso político com a defesa dos direitos dos povos estudados,
mesclando atuação política e pesquisa acadêmica.
Um dos expoentes dessa corrente foi o antropólogo Darcy Ribeiro, o qual, seja como
antropólogo, indigenista, funcionário do SPI ou político, sempre atuou em defesa dos povos
indígenas e expressou uma preocupação com o destino dessas populações. Um dos maiores
méritos de seu trabalho foi a publicidade conferida à questão indígena, bem como a
capacidade para sensibilizar um público mais amplo quanto à valorização e à preservação de
tais culturas. O trabalho com diversos grupos, em diferentes condições e com diferentes graus
de interação com a sociedade nacional, possibilitou-lhe observar, ao longo de décadas, o
15
impacto da civilização sobre as populações indígenas no Brasil e, dessa forma, elaborar uma
teoria geral a respeito dos processos de mudança sociocultural. Influenciado pelo neo-
evolucionismo e pelos estudos de aculturação norte-americanos, Ribeiro (1982 [1970])
estabeleceu uma classificação para as populações indígenas brasileiras de acordo com o grau
de contato com a sociedade nacional: isolados, contato intermitente, contato permanente e
integrados.
No entanto, Ribeiro (1982 [1970]) recusou a idéia de que a evolução ao longo dessas
etapas conduziria a uma integração absoluta, pois o impacto da civilização desencadearia uma
transfiguração étnica e não uma assimilação plena. Por transfiguração étnica entenda-se o
processo pelo qual as populações tribais em contato com sociedades nacionais persistem
enquanto entidades étnicas, apesar das sucessivas alterações: “um processo geral de passagem
dos grupos indígenas da condição de isolamento à de integração, com todas as suas
consequências de mutação cultural e social e de redefinição do ethos tribal” (Ribeiro 1982
[1970]: 15). Em suma, trata-se de uma transformação que os conduz da condição de índios-
tribais à de índios-genéricos. Uma barreira étnica os condena a permanecerem índios, no
entanto, “índios civilizados”; ou seja, passam a participar da vida nacional, mas mantêm
traços distintivos de uma identidade étnica genérica. Assim, enquanto parte dos estudos de
aculturação se concentra em examinar a difusão e a adoção de elementos culturais, Ribeiro
(1982 [1970]) ressalta a necessidade de se analisar a relação entre as estruturas tribal e
nacional, bem como a maneira pela qual uma se introduz na outra.
De modo semelhante à análise de Schaden, Ribeiro (1982 [1970]) propõe a existência
de um engajamento compulsório que conduz as sociedades indígenas a uma situação de
subordinação, passando de um sistema fechado e auto-suficiente para outro mais aberto, do
qual se torna dependente. No entanto, como bem colocou Sahlins (1997: 54), ao depositar
demasiado peso na presença de forças destruidoras, a variedade de respostas locais se viu,
16
muito frequentemente, “dissolvida pelo pessimismo sentimental em uma aculturação
universal”.
Relações de conflito e dominação
Uma alternativa à teoria da aculturação foi proposta por Roberto Cardoso de Oliveira,
que buscou pensar cenários de contato por meio do conceito de fricção interétnica. Crítico das
abordagens culturalistas, Cardoso de Oliveira (1964) desenvolveu um projeto de pesquisa
sobre as relações entre índios e brancos, no qual estas são descritas e analisadas como
relações conflituosas que emergem de um encontro entre duas populações com interesses
opostos, ainda que interdependentes. Sob tal ótica, o contato se apresenta como uma situação
competitiva, na qual imperam interesses contraditórios entre grupos tribais e segmentos da
sociedade brasileira. As configurações de tais situações variam conforme a natureza
socioeconômica das frentes de expansão. Cardoso de Oliveira (1988 [1979b]) denominou-as
como “fricção interétnica”, por se tratarem de sistemas de relações sociais que tem como
essência um conflito estrutural, latente ou manifesto, entre as etnias que o compõem.
Conferindo ênfase às relações sociais, o modelo desenvolvido por Cardoso de Oliveira
(1964: 104) sugere a existência de uma estrutura étnica sob uma estrutura de classes, nas
quais as diferenças da primeira seriam amenizadas na medida em que as diferenças sociais se
tornassem mais agudas. Dessa forma, o processo de contato percorreria diversas etapas, cada
qual manifestando uma determinada consciência de classe. No decorrer desse percurso, os
índios acabariam completamente assimilados pela sociedade envolvente, deixando de
pertencer a uma categoria étnica para ocupar uma posição numa estrutura de classes
(seringueiro, camponês, proletário, etc.). As relações de fricção interétnica seriam assim “o
equivalente lógico (mas não ontológico) do que os sociólogos chamam de „luta de classes‟”
17
(Cardoso de Oliveira 1978 [1967]: 85). Na mesma direção, o autor sugere que este processo
conduz a uma progressiva alienação dos índios; o que é, na verdade, apenas um capítulo de
uma alienação mais geral (Cardoso de Oliveira 1964). Apesar de inseridos na ordem nacional,
os índios permanecem considerados membros ilegítimos pela sociedade regional – situação
alterada apenas com a destruição de sua identidade étnica.
Cardoso de Oliveira (1978 [1973]) sugere ainda que a mudança dos sistemas
socioculturais admitiria certas regras, o que permitiria elaborar modelos para diagnosticar
situações e prever, com grau variável de precisão, o desenvolvimento do contato entre índios e
brancos no Brasil. Na tentativa de examinar os rumos desse desenvolvimento, o autor
elaborou um projeto de pesquisa para mapear áreas de fricção interétnica em território
brasileiro e identificar “potenciais de integração” presentes nesses contextos de contato
(Cardoso de Oliveira 1978 [1967]). Esse modelo teria como finalidade identificar os
elementos responsáveis pela integração, além de oferecer esquemas classificatórios capazes
de descrever e analisar a interação entre populações distintas em termos de um sistema de
relações sociais.
Além de mapear as áreas de fricção interétnica, Cardoso de Oliveira (1988 [1979a,
1979b]) demonstrou preocupação quanto ao modo de gerir esse processo; ou seja, o modo de
impedir (ou ao menos amenizar) que as populações indígenas sofressem os efeitos desastrosos
do contato com a sociedade nacional. Para esse fim, o Estado deveria intervir nas relações
entre índios e brancos através de órgãos competentes, regulamentando as relações interétnicas
de forma a garantir a sobrevivência e a perpetuação das populações indígenas, preservando-as
do processo de dominação que as transforma em minorias dependentes e oprimidas. Esta seria
a função tutelar do Estado, na época considerada a única maneira de exercer proteção e
assistência aos povos indígenas, sem com isso pôr em risco a posse coletiva e o usufruto
permanente das terras que ocupam. No entanto, para atingir tais objetivos, a prática da tutela
18
deveria assegurar a autonomia e a autodeterminação desses povos, ou seja, minimizar ao
máximo sua intervenção no interior das sociedades indígenas e evitar a imposição de medidas
e parâmetros “civilizatórios” (Cardoso de Oliveira 1988 [1979a]: 44).
O trabalho desenvolvido por João Pacheco de Oliveira Filho veio, de certa forma, dar
continuidade ao projeto de pesquisa de Roberto Cardoso de Oliveira. Sua tese de doutorado,
escrita a partir de pesquisa desenvolvida com os índios Ticuna, no Alto Solimões, teve como
eixo central a relação entre os órgãos indigenistas (SPI e FUNAI) e o grupo indígena (Oliveira
Filho 1988). Sua investigação concentrou-se na função tutelar e na ação protecionista do
Estado brasileiro, bem como nas consequências da implantação de um processo de assistência
e de dominação das populações indígenas. Em seu trabalho, Oliveira Filho (1988: 14)
constatou que a presença de uma proteção oficial do Estado contribuiria para a constituição de
um modo de ser característico dos grupos tutelados, uma indianidade que seria construída e
atualizada em situações históricas específicas. Dessa forma, sua análise do contato interétnico
considera, por um lado, o caráter central do conflito nas relações sociais e, por outro, os
fundamentos internos da dominação como processo social que articula instituições nativas e
coloniais.
Igualmente crítico dos estudos de aculturação, Oliveira Filho (1988) argumenta que
estes, ao se preocuparem apenas com as trocas culturais, com as aquisições e com os
empréstimos existentes em situações de contato interétnico, acabaram ocultando o fenômeno
da dominação. Novamente nos deparamos com a crítica de que, sob essa perspectiva, a
mudança cultural apresenta uma direção geral e única que, no caso das sociedades indígenas
brasileiras, se manifesta como uma progressiva descaracterização cultural decorrente da
absorção de crenças e costumes dos brancos. “Limitando a atenção a focalizar o grupo tribal e
suas reações, ignorando-se as suas potencialidades, suas elaborações e sua capacidade de
interferir e reinterpretar uma situação de contato, tal tipo de antropologia se enclausura em
19
rígido esquema analítico” (Oliveira Filho 1988: 32).
No entanto, nos anos 90 configura-se um novo cenário. Grupos indígenas
considerados extintos – pois haviam “completado” o processo de aculturação, virando
caboclos ou camponeses – começaram a ressurgir e a protagonizar um interessante processo
de reivindicação étnica. Localizado majoritariamente no Nordeste, esse movimento abrange
tanto a emergência de novas identidades como a reinvenção de etnias já conhecidas, além de
mostrar a inadequação do paradigma da aculturação e da “perda cultural” para a compreensão
de fenômenos contemporâneos.5 “A 'etnologia das perdas' deixou de possuir um apelo
descritivo ou interpretativo e a potencialidade da área, do ponto de vista teórico, passou a ser
o debate sobre a problemática das emergências étnicas e da reconstrução cultural” (Oliveira
Filho 1998: 53). Um cenário que impõe novas questões e exige o desenvolvimento de nova
abordagem.
Dessa maneira, baseado nos estudos sobre contato interétnico de Roberto Cardoso de
Oliveira e inspirando-se em bibliografias inglesa e norte-americana sobre etnicidade e
antropologia política, Oliveira Filho (1998) é pioneiro na abertura dessa nova frente de
estudos para a etnologia brasileira. No entanto, o autor chama atenção para o fato de que não
deseja com isso empreender um tipo de etnologia específica (“etnologia dos índios do
Nordeste” ou “etnologia dos índios misturados”) como contraponto ao modelo dos
americanistas. Seu interesse é buscar caminhos para o desenvolvimento de uma antropologia
histórica, ou seja, empreender análises que situem as sociedades e culturas indígenas do Brasil
em sua dimensão histórica e na condição de sujeitos históricos plenos, inseridos em eixos
espaço-temporais e relacionados a conjuntos específicos de atores, com valores e estratégias
sociais bem determinados (Oliveira Filho 1999).
5 Chamo atenção para o fato de que Oliveira Filho (1998) considera problemática a utilização de termos
como “etnogênese”, “novas etnicidades”, “índios emergentes”, “emergência étnica”, pois estes costumam
incorporar uma metáfora biológica, com seu respectivo ciclo de nascimento e morte. Dessa forma, tem-se a falsa
impressão de que apenas nessas situações existiria um processo de formação de identidade, quando, na realidade,
tal processo é fruto de um desenvolvimento histórico sempre em curso.
20
O lugar da história
Escrevendo sobre “o estilo brasileiro de se fazer etnologia”, Ramos (1990) aponta a
existência de duas tendências principais. Em uma delas, a preocupação com o contato e suas
consequências é atribuída a uma geração de pesquisadores que estariam, simultaneamente ao
trabalho acadêmico, preocupados com os efeitos políticos das relações interétnicas (ver
Baldus 1937; Cardoso de Oliveira 1964, 1978; Galvão 1959, 1979; Ribeiro 1982 [1970]). A
outra tendência, por sua vez, teria privilegiado os aspectos internos, como organização social,
xamanismo, parentesco, guerra, entre outros (ver Carneiro da Cunha 1978; Da Matta, 1976;
Overing Kaplan 1981; Rivière 1984; Seeger, Da Matta & Viveiros de Castro 1979). No
entanto, as pesquisas dedicadas a descrever e compreender o funcionamento de sociologias e
cosmologias nativas, mesmo sem dar destaque às relações interétnicas, foram fundamentais
para uma geração de trabalhos mais recentes que imprimiram novo tom à antiga questão do
contato (Albert 1992; Gordon 2006; Gow 1991, 2001; Kelly 2005, 2009; Lasmar 2006; Vilaça
2000, 2006).
De um modo geral, podemos dizer que a perspectiva histórica adotada pelos estudos
de aculturação desconsiderou a capacidade de agência daqueles envolvidos no processo de
mudança sociocultural. Um olhar que acabou dificultando aos antropólogos enxergar a
criatividade e o dinamismo presente nas sociedades que estavam estudando. A sensibilidade
frente às ameaças sofridas por essas populações, aliada à angústia de vê-las extintas em um
futuro próximo, tornou-se dominante, restringindo a complexidade de suas vidas à luta pela
sobrevivência.
Já nos estudos do contato interétnico, a ênfase na dominação política e na perspectiva
do Estado e dos órgãos indigenistas acabou deixando uma lacuna quanto ao conhecimento de
como funcionavam os sistemas sociais nativos; ou seja, o funcionamento da organização, da
21
estrutura social e da cosmologia indígena permaneceu relativamente inexplorado (Viveiros de
Castro 2002a: 156-167). Além disso, a dimensão histórica acabou sendo considerada apenas
parcialmente, ou seja, como “história do contato”. Conforme ressaltou Ortner (1982), a
história foi, “frequentemente, tratada enquanto algo que chega, assim como um navio, de fora
da sociedade. Dessa forma, nunca conhecemos de fato a história de uma sociedade, mas tão
somente o impacto da (nossa) história sobre ela”. Ou, como lembrou Viveiros de Castro
(2002d: 341), é preciso estar atento para o fato de que a história destes povos não começou
em 1492 – ao contrário, em muitos casos ela terminou ali.
No entanto, a partir da década de 80, inspirado especialmente pela abordagem de
Sahlins (2008 [1981]) no que diz respeito às relações entre estruturas sócio-culturais e
transformação histórica, o tema do contato interétnico recebeu uma nova possibilidade de
interpretação antropológica (Viveiros de Castro 2002a: 128). Investigando noções de
temporalidade nativa – bem como sua inscrição na prática, seja ritual, discursiva, cotidiana,
ou outra – e evitando projetar as próprias idéias de história aos povos estudados, começaram a
se produzir etnografias que não apenas contestam, mas também apresentam alternativas à
antiga divisão entre sociedades “puras” e “aculturadas”. Com maior conhecimento sobre
sociologias e ontologias nativas, muitos americanistas buscaram compreender,
etnograficamente, as transformações contemporâneas enfrentadas pelos povos indígenas nas
terras baixas da América do Sul. Invocando Sahlins, podemos considerar que
o problema agora pertinente é o de explodir o conceito de história pela
experiência antropológica da cultura. A história, até há pouco tempo obscura,
de ilhas remotas, merece o seu lugar ao lado da autocontemplação do passado europeu – ou da história das civilizações – por contribuições
próprias e notáveis a uma compreensão histórica. Assim, multiplicamos
nossos conceitos de história pela diversidade de estruturas e assim, de repente, há um mundo de coisas novas a serem consideradas (2003 [1987]:
94).
Apesar de não tratarmos aqui de um grupo homogêneo, dois pontos me parecem unir
esses pesquisadores: uma tendência estruturalista, inspirada na obra de Lévi-Strauss, e uma
22
sensibilidade relativa aos diferentes regimes de historicidade. Dito de outra forma, uma nova
visão (ou uma expansão) do conceito de história, aliada à noção de transformação estrutural
proposta por Lévi-Strauss, contribuiu para evidenciar a mudança como intrínseca às
sociedades indígenas e não simplesmente “fruto” do contato (Fausto & Heckenberger 2007).
As transformações que experimentam nos dias atuais podem ser distintas daquelas de outras
épocas, mas, ainda assim, interessa o fato de que as mudanças tem ocorrido ao longo de todo
seu desenvolvimento histórico. Segundo Viveiros de Castro (2002d: 339), dois fatores
contribuíram para uma modificação na forma de conceber as sociedades indígenas: por um
lado, estas deixaram de ser vistas como atualizações mecânicas de princípios estruturais
atemporais; por outro, a mudança social deixou de ser entendida como resultado inexorável de
determinações externas.
Conforme mencionado acima, a obra de Sahlins (2008 [1981], 2003 [1987]) foi
marcante nesse movimento. Partindo do episódio da chegada dos europeus nas ilhas do Havaí,
o autor analisou a relação entre estrutura e história, demonstrando como um evento
aparentemente inesperado poderia ser absorvido pela cultura que o recebe como algo já
previsto na própria cosmologia; algo presente no pensamento mítico. Em estruturas como a
maori ou a havaiana, tudo se passa como se ocorresse um colapso do tempo e do
acontecimento, no qual o passado produz o presente e este reproduz o passado. Percebemos a
existência de uma concepção de tempo não-linear, uma estrutura em constante atualização que
coloca em prática eventos vividos, ou ao menos prefigurados, na arena cosmológica (Sahlins
2003 [1987]).
Contudo, com isso não devemos supor que o sistema seja invulnerável à mudança,
mas sim que se reproduz de maneira flexível, incorporando contingências em uma estrutura
aberta e dinâmica, e percebendo relações míticas em ações históricas (Sahlins 2008 [1981]).
Enquanto o pensamento ocidental postula um antagonismo radical para uma série de
23
oposições – como estático x dinâmico, ser x devir, estado x ação, condição x processo –, a
experiência havaiana mostra que estrutura e história, por exemplo, não são alternativas
mutuamente exclusivas. Transpondo sua análise para a ordem cultural, Sahlins argumenta que
a mudança prática é também uma reprodução cultural, que “a cultura funciona como uma
síntese de estabilidade e mudança, presente e passado, diacronia e sincronia” (2003 [1987]:
180).
Ou, em outras palavras, um evento não é somente um acontecimento no
mundo. É a relação entre um acontecimento e um dado sistema simbólico. E
apesar de um evento enquanto acontecimento ter propriedades “objetivas” próprias e razões procedentes de outros mundos (sistemas), não são essas
propriedades, enquanto tais, que lhe dão efeito, mas a sua significância, da
forma que é projetada a partir de algum esquema cultural. O evento é a
interpretação dos acontecimentos e interpretações variam (Sahlins 2003 [1987]: 191).
Dessa forma, se por um lado a experiência humana implica uma continuidade das
categorias culturais, por outro, existe sempre o risco de que estas adquiram novos valores
funcionais e, estabelecendo novas relações, transformem a própria estrutura. Compõe-se,
assim, um jogo no qual mudança e reprodução se implicam reciprocamente; em que a
transformação de uma cultura também é um modo de sua reprodução.
Segundo Sahlins (2008 [1981]), existe uma “estrutura da prática”, ou uma “estrutura
da conjuntura”, na qual as relações e as categorias culturais são postas em xeque e podem
afetar percepções e condutas dos indivíduos, uns em relação aos outros. “Uma alteração nas
relações entre categorias dadas afeta suas possíveis relações com outras categorias. A
estrutura, como conjunto de relações entre relações, é transformada” (Sahlins 2008 [1981]:
75). Dito de outra forma, as pessoas agem conforme seus pressupostos culturais, mas, na
prática, as categorias adquirem novos valores e são redefinidas funcionalmente, o que faz com
que aquilo que começou como reprodução termine em transformação (Sahlins 2008 [1981],
2003 [1987]).
Outro autor que conjugou as noções de estrutura e transformação foi Lévi-Strauss
24
(1976 [1960], 2004 [1964]). No entanto, ao preocupar-se com estruturas universais (e
imutáveis) do pensamento humano, o autor acabou alvo de críticas que o acusavam de negar a
história dos povos nativos. Ao concentrar-se nos processos inconscientes de ordenação da
experiência, o método estrutural acabaria relegando o evento histórico a um papel secundário.
Assim, ao privilegiar a sincronia em detrimento da diacronia, o estruturalismo desconsideraria
um elemento central para a compreensão do comportamento e do pensamento humano: seu
desenvolvimento histórico, ou seja, o modo como sociedades e culturas se transformaram no
decorrer do tempo, até se tornarem o que são hoje.
A distinção feita por Lévi-Strauss entre sociedades “quentes” e “frias” parece ter
alimentado boa parte dessas críticas, e algumas leituras acabaram por equacioná-la a uma
divisão entre povos “com história” e povos “sem história”. Temos, por exemplo, a coletânea
organizada por Hill (1988) com objetivo de desconstruir o que caracteriza como “mito das
sociedades frias”; um mito que, segundo o autor, teria criado uma imagem de tais sociedades
como estruturas a-históricas e resistentes à mudança. Na introdução, Hill (1988: 4) ressalta a
importância de pesquisas que buscam mostrar a inexistência de algo como sociedades frias,
sem história, ou quentes, que progrediram para além do mito.
No mesmo volume, Turner (1988) argumenta que falar em sociedade frias, ou
“míticas”, é ignorar sua dinâmica e sua capacidade de mudança, bem como os eventos
históricos presentes na formação e reprodução dessas sociedades. Buscando desvincular-se do
formalismo e da perspectiva sincrônica da abordagem estruturalista, os autores da coletânea
enfatizam a dimensão política e performática da vida social indígena (Fausto & Heckenberger
2007). Segundo Turner (1988), os mitos não seriam simplesmente mecanismos passivos para
classificar e dar sentido aos eventos históricos, mas instrumentos de orientação social e
política, voltados para a ação histórica.
No entanto, a constatação de que as sociedades incorporam as mudanças em sua
25
prática ritual e narrativa não contradiz o argumento lévi-straussiano, já que este baseia-se na
idéia de transformação estrutural e não em noções de estabilidade ou rigidez. Como nos
mostram Fausto e Heckenberger (2007), essa mesma distinção inspirou discussões e reflexões
quanto ao modo pelo qual a temporalidade ou os regimes de historicidades nativas estruturam
tanto o trabalho dos antropólogos como a vida dos povos que estudam (ver Overing Kaplan
1977). Conforme Overing Kaplan (apud Fausto & Heckenberger 2007: 9) sugeriu no
Simpósio de 1976 – Time and Social Space in Lowland South America –, a representação do
tempo para os indígenas na Amazônia implicaria na negação, não do tempo em si, mas das
mudanças ocorridas ao longo deste.
O que talvez seja importante perceber é que, ao realizar tal distinção, Lévi-Strauss não
proclama que os povos ditos primitivos não sejam afetados pelo desenvolvimento histórico (e
como poderiam não ser?), mas chama atenção para o fato de que reagem de forma muito
diferente a esta comum condição.
(…) algumas a aceitam de bom ou de mau grado e, pela consciência que
disso tomam, amplificam suas consequências (para elas mesmas e para as
outras sociedades) em enormes proporções; outras (que por este motivo chamamos primitivas) querem ignorá-la e tentam, com uma habilidade que
subestimamos, tornar tão permanentes quanto possíveis estados que
consideram os “primeiros” de seu desenvolvimento (Lévi-Strauss 1970: 269).
Vistas nestes termos, sociedades quentes, como a nossa (euro-ocidental), tendem a
conceber a si próprias através de um desenvolvimento progressivo no tempo enquanto as
frias, como aquelas baseadas no “pensamento mítico” (sociedades indígenas), funcionam de
modo a “anular” a sucessão de eventos históricos.6 Nestas últimas, os acontecimentos
6 Segundo Albert (1992: 151), “as representações de contato abrem um campo privilegiado para a
antropologia, por constituírem uma dimensão crucial da reprodução cultural das sociedades que as elaboram”.
Sendo assim, o autor considera que a história do contato e suas representações devem ser analisadas de maneira
indissociável. Os Yanomami, por exemplo, tiveram que adaptar seu mito de origem dos estrangeiros para integrar
nele a criação dos brancos, o que não se trata tanto de uma transformação mítica, mas sim de hipóteses em
experiência. Através de uma análise dos mecanismos de “incorporação histórica” entre os Yanomam, Albert
(1992: 183) mostra como estes buscam “reproduzir culturalmente eventos e mudanças enquanto atualizações de
um modelo pré-existente, absorvendo-os no movimento aparente de um ciclo de transformações lógicas”.
26
históricos são incorporados a sua estrutura de forma que pareçam sempre ter estado ali, o que
é diferente de dizer que elas os “ignoram” ou os rejeitam (Lévi-Strauss 1970: 268).7
Essa famosa distinção remonta à outra, também bastante polêmica, entre história
cumulativa e história estacionária, apresentada em Raça e Historia (Lévi-Strauss 1976 [1952]:
344-349). Apesar de a terminologia permitir tal entendimento, não se trata de estabelecer que
determinadas sociedades, ícones do progresso, mudam no decorrer do tempo enquanto outras
permanecem estáticas. Ao invés disto, o autor questiona se a atribuição de imobilismo a
determinadas sociedades não seria fruto de nossa ignorância quanto aos seus valores e
interesses. As culturas que nos parecem mais ativas são aquelas que se deslocam no sentido da
nossa, enquanto as estacionárias são as que possuem uma orientação divergente.
Segundo Goldman (1999), ao fazer tais distinções, é possível pensar que Lévi-Strauss
“não apenas dirige um ataque verdadeiramente epistemológico ao evolucionismo social (…)
como elabora uma crítica mais profunda ao imperialismo da história em geral”. Assim que, ao
contrário de “excluir” a história, podemos ver na obra do autor um longo diálogo com ela,
seja para diferenciar o método etnológico do método histórico (Lévi-Strauss 1973 [1949]),
seja para reivindicar, paralelo à diversidade sociocultural, a existência de diferentes regimes
de historicidade. De acordo com Viveiros de Castro (1993a), estes regimes diferenciais de
historicidade estariam implicados na divisão entre historicidades frias e quentes. Por regime
de historicidade entenda-se, “os modos concretos de estar no tempo de cada forma sócio-
cultural, e que são tributários de seu modo de produção e reprodução, de sua estrutura
morfológica, de sua cosmologia, sua filosofia da história e de sua 'cultura' em sentido mais
amplo” (Viveiros de Castro 1993a: 25).
7 Em uma entrevista, Lévi-Strauss diz “que as sociedades que o etnólogo estuda, comparadas à nossa
grande sociedade moderna, são um pouco como as sociedades 'frias' em relação às sociedades 'quentes', como os
relógios em relação às máquinas a vapor. Estas sociedades produzem extremamente pouca desordem, aquilo que
os físicos chamam 'entropia', e tem uma tendência a se manter indefinidamente em seu estado inicial, o que nos
explica porque elas nos parecem como sociedades sem história e sem progresso” (Charbonnier 1961: 38, grifo
meu).
27
Dessa forma, uma das contribuições de Lévi-Strauss seria justamente pensar a história
do ponto de vista da antropologia, ou seja, da diversidade (Goldman 1999).8 Por sua vez, os
diferentes tipos de historicidade e as distintas formas de habitar o tempo não devem ser
considerados desvinculados de uma determinada estrutura social. Sem se mostrar indiferente
aos processos históricos, a etnologia deve buscar atingir,
(...) além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam
de seu devir, um inventário de possibilidades inconscientes, que não existem
em número ilimitado; e cujo repertório e relações de compatibilidade ou de incompatibilidade que cada uma mantém com todas as outras fornecem uma
arquitetura lógica a desenvolvimentos históricos que podem ser
imprevisíveis, sem nunca ser arbitrários (Lévi-Strauss 1973 [1949]: 39)
Outra contribuição importante introduzida pelo pensamento lévi-straussiano foi a
aplicação do método estrutural à análise mítica. Na tetralogia que forma o conjunto das
Mitológicas, Lévi-Strauss reúne inúmeros mitos de diferentes tribos localizadas no continente
americano, com objetivo de mostrar como se estrutura o pensamento mítico. Dessa forma, o
autor elabora um esquema onde a idéia de transformação e o conceito de estrutura se
implicam mutuamente.9 Separando-os em “grupos de transformação”, Lévi-Strauss (2004
[1964]) demonstra as elaboradas operações de inversão e oposição envolvidas na
transformação de um mito a outro. Não existe uma versão original ou verdadeira, pois um
mito é sempre um desdobramento de outro, de forma que os menores detalhes se mostram
relevantes – oposições e inversões, contradições e repetições, presenças e ausências.
Utilizando o método de transformação estrutural, Gow (2001: 287) demonstra como a
8 Malinowski e Radcliffe-Brown excluíram a análise histórica do pensamento antropológico por não a considerarem propriamente científica, já que lida com um objeto extinto – o passado –, e um dos méritos de
Lévi-Strauss teria sido justamente reintroduzir a importância da história, enquanto método e/ou objeto, na
antropologia. “Se o funcionalismo e o estrutural-funcionalismo haviam excluído da antropologia certo tipo de
história, como condição necessária para estabelecê-la como uma ciência séria, o próximo passo era desenvolver
uma conceitualização especificamente antropológica da história. No meu entendimento, foi isto o que fez Lévi-
Strauss” (Gow 2001: 13). 9 De fato, em sua aula inaugural no Collège de France, Lévi-Strauss (1976 [1960]: 25-26) já havia
chamado atenção para a existência de “uma relação bem estreita entre a noção de transformação e a de
estrutura”. Nesta mesma conferência o autor define estrutura como um sistema regido por uma coesão interna,
coesão que não é revelada em análises isoladas e sim no estudo das transformações, o qual permite encontrar
propriedades similares em sistemas aparentemente diferentes.
28
obliteração do tempo, característica do pensamento mítico, é um modo específico de lidar
com a temporalidade. Enquanto, por exemplo, Turner (1988) argumenta que história e mito
são formas complementares de consciência social, a leitura de Lévi-Strauss feita por Gow
(2001: 11) busca mostrar como os mitos são, em si, objetos históricos, “apesar de serem de
um tipo curioso: são objetos históricos cujo propósito é negar a história”.
Em outras palavras, os mitos não podem ser tratados como se fossem “objetos”
estáveis até o advento desestabilizador da (nossa) história. Ao contrário, eles existem
justamente em função da história, existem para anular os efeitos perturbadores que ela
provoca e, dessa forma, manter a coerência e o significado do mundo. A aparência de
estabilidade e a ilusão de serem a-temporais e inabaláveis pelas mudanças do mundo ocorrem
devido ao seu modo de operar transformações incessantemente.10
“Para que o mito possa
'obliterar o tempo' e fornecer a ilusão quente de uma estabilidade fria, ele deve estar em
contínua transformação, sendo, por definição, um objeto histórico que pode ser interrogado
enquanto tal” (Souza & Fausto 2004).
A pesquisa de Peter Gow (1991, 2001) com os Piro é um exemplo de como uma
sensibilidade relativa a diferentes regimes de historicidade oferece um olhar diferenciado para
examinar um cenário de intensas relações interétnicas. Formado na tradição malinowskiana de
trabalho de campo, Gow (1991) aplica um método primordialmente etnográfico para uma
abordagem da história. Se tivesse optado por um método histórico teria, de modo geral, que
buscar informações sobre o passado do grupo para elucidar aspectos de sua organização
contemporânea. Ao invés disto, concentrou seu esforço nos acontecimentos considerados
pelos Piro como significativos para se tornarem o que são, agirem da maneira como o fazem e
viverem a vida que vivem. Evitando abordar a história dos Piro sob a ótica da aculturação ou
do contato interétnico, Gow (1991: 15) preocupou-se em descobrir o que as pessoas ali
10 Chamo atenção para o fato de que os mitos não apenas operam através de transformações, pois um
mito é sempre transformação de outro, mas são eles próprios histórias sobre transformação, histórias de um
tempo no qual homens, animais e plantas comunicavam-se entre si.
29
pensavam ser os processos e os eventos significativos da sua história.
Tal postura metodológica permitiu-lhe questionar uma visão de história que divide os
povos nativos em tradicionais e aculturados. Tendo como “objeto” um grupo “aculturado”,
Gow (1991: 284) segue uma orientação teórica voltada para o estudo de povos “tradicionais”,
ou seja, busca encontrar coerência e integração ao invés de incongruências e decomposição –
consideradas fruto da mudança histórica. Segundo o autor, o problema central de análises
como a da aculturação ou a do contato interétnico é justamente a prioridade analítica dada à
história. Nessas orientações, o foco recai sobre a transformação de uma cultura ou sociedade
tradicional sob o impacto de uma cultura ou sociedade estrangeira, e a história desses povos
acaba se resumindo a esse processo (Gow 1991: 14). Pouca atenção é dedicada a explicar
porque as pessoas falam e agem da forma como o fazem, sendo comum atribuir às falas dos
nativos uma espécie de “falsa consciência”, como se não soubessem de verdade o que está
acontecendo.
Servindo-se da análise lévi-straussiana dos mitos, Gow argumenta que “novas
estruturas são transformações de estruturas anteriores, logo, a história não tem um começo. A
própria noção de um ponto único a partir do qual a mudança histórica teve início é uma
ilusão” (1991: 17). Coloca-se a questão de qual seria o significado de história para os Piro, ao
invés de redigir uma história sobre eles. Considerar a historicidade implicada em narrativas
míticas e performances rituais, por exemplo, pode conduzir à descoberta de modos
propriamente indígenas de habitar o tempo. Sendo assim, Gow (1991) propõe que a história
seja incorporada nas análises antropológicas não apenas enquanto fonte documental, ou por
meio do impacto da nossa história nos sistemas sociais nativos, mas enquanto possibilidade de
ver surgir novas concepções de história e historicidade.11
11 Em trabalho mais recente, Fausto e Heckenberger (2007) apontam também para a necessidade de se
compreender os diferentes modos de produzir transformações, os regimes de historicidade que os acompanham,
as maneiras pela qual a mudança e seus agentes são concebidos e a forma como narrativas do passado são postas
para a construção do presente.
30
Quando chegou pela primeira vez na comunidade de Santa Cruz, Gow (1991) sabia
que não encontraria um grupo “tradicional”, devido ao longo tempo de contato com os
brancos. Porém, ao invés de buscar resgatar um passado, ou encontrar um fundo original por
debaixo de uma aparente aculturação, o autor dedicou-se a saber como o Piro mantiveram sua
identidade étnica diante do contato – especialmente dado o alto número de casamentos
interétnicos que haviam sido reportados pelos missionários (Gow 1991). De fato, sua pesquisa
mostrou como o casamento entre diferentes grupos estaria relacionado a uma identidade Piro,
pois a união entre pessoas diferentes é o que os constitui como tal. A história, para eles, é o
próprio processo de “tornar-se civilizado”, o modo pelo qual vieram a se tornar o que são:
gente de sangre mezclada (Gow 1991: 252).
Com o idioma do sangue misturado (“of mixed blood”) os Piro demonstram que o
parentesco é produto da história, pois a história é o movimento incessante de contato e
casamento entre diferentes “tipos de pessoa”. História é parentesco, pois tanto a forma quanto
o conteúdo da narrativa histórica são os laços de parentesco.
Meu argumento de que os nativos (Native People) identificam as mudanças
históricas com a criação de parentesco se torna manifesto através do idioma
das “pessoas misturadas” (of 'mixed people'), o qual afirma que o parentesco é em si um produto da história. Concebido como um conjunto de relações
baseadas no casamento e na criação dos filhos, o parentesco é identificado
com as contingências da história e com o contato entre diferentes “tipos de pessoa”. (…) História e parentesco deixam de se relacionar enquanto
domínios separados. Para os nativos (Native People), história é parentesco
(Gow 1991: 204).
Tal identificação entre história e parentesco, segundo Gow (1991: 204), sugere que os
povos indígenas podem experimentar a mudança histórica como central no processo de sua
vida social. Aspectos importantes na vida dos Piro, como narrativas míticas ou xamanismo,
somente fariam sentido no contexto de noções como parentesco ou história, pois estes se
implicam mutuamente e não podem ser considerados campos separados. Não existe um
processo histórico desvinculado da constituição dos laços de parentesco. Em um livro mais
recente, Gow comenta que
31
uma coisa ficou clara da análise feita em Of Mixed Blood: os povos
indígenas na Amazônia podem fazer mais coisas com a história, e na
história, do que costumamos imaginar. (…) Eles não apenas se submeteram, sobreviveram ou resistiram. Eles deram a volta por cima e inventaram um
novo modo de viver, coerente com suas experiências históricas recentes e
que lhes parece ser intelectual e emocionalmente satisfatório (2001: 9).
Inicialmente, o autor ficou surpreso pois, ao falarem do seu passado e de como se
tornaram dependentes dos patrões da borracha, os Piro não expressavam a dimensão
desastrosa implicada nessa transição. Segundo ele, era como se uma amnésia coletiva tivesse
apagado de suas memórias toda a exploração sofrida. Ao invés de saudar nostalgicamente o
tempo perdido, os Piro demonstravam desprezo pelo fato de os antigos não saberem “viver
bem” (viviam na floresta, brigando entre si, sem os parentes) e valorizavam a chegada dos
patrões da borracha, pois foi a partir de então que eles começaram a casar-se entre si e
tornaram-se civilizados. Esta situação permitiu ao autor perceber que havia algo importante na
maneira como os Piro habitam o tempo: um modo de estar no mundo que é inerentemente
transformacional e que, tudo leva a crer, está presente antes mesmo do contato com os agentes
coloniais.
Seguindo por esse caminho, Gow (2001: 26-27) emprega o conceito de “mundo
vivido” (“lived world”) para dar conta desse sistema em constante transformação. Tal
conceito lhe permite escapar de noções como cultura ou sociedade enquanto entidades
transhistóricas, ou seja, alheias aos processos pelos quais as pessoas atribuem significado a
suas vidas.12
O “mundo vivido” Piro, expresso neste processo de transformação contínua,
permite conceber um sistema que não está preocupado com transmissão da tradição ou auto-
reprodução idêntica ao longo do tempo. Existiria uma dimensão de continuidade implícita
nesse processo, mas uma continuidade encontrada exatamente em seu aspecto
12 O conceito de “mundo vivido” foi retirado do livro de Nancy Munn, The Fame of Gawa, e denota
uma aproximação com os estudos de fenomenologia. Ao ser utilizado pelo autor, ele expressa uma determinada
postura etnográfica. Não se trata de um estudo sobre “a cultura Piro” ou “a sociedade Piro”, mas um estudo feito
a partir da observação e convívio com um grupo de pessoas, em algumas comunidades Piro, durante um período
que, em uma perspectiva histórica, é bastante curto (Gow 2001: 26).
32
transformacional. Por estarem sempre mudando, os Piro continuariam sendo “os mesmos”.13
Ou, como diz o velho ditado francês, plus ça change, plus c‟est le même chose.
Para os Piro, as diferenças experimentadas ao longo do tempo (como no vestuário, no
xamanismo ou na vida ritual) não implicam um problema de continuidade ou mudança, pois
eles sabem que se trata de “transformações de transformações”. “Por exemplo, 'as roupas dos
antigos' e 'as roupas dos brancos' são certamente diferentes, mas elas são versões
transformacionais da mesma transformação que todas as roupas operam” (Gow 2001: 309).
No entanto, tais transformações não fariam sentido caso se postulasse a existência de uma
cultura ou sociedade Piro que fosse estável, no passado, e tivesse começado a se transformar
somente por conta de uma interferência externa, a chegada dos brancos. Reconhecer o caráter
dinâmico destes sistemas implica considerar que sua dimensão criativa não surgiu a partir do
encontro com os brancos. Não existe uma tradição autêntica, pura ou imutável, que
permaneça idêntica a si mesma até o advento desestabilizador da chegada dos europeus e o
começo de uma “era” de mudanças e transformações (Santos-Granero 2009: 492). Assim, ao
invés de conceber um sistema reproduzindo-se ao longo do tempo, e que teria sido
desestabilizado com o contato, deparamo-nos com estruturas sociais marcadas por extrema
abertura e labilidade.
O papel da alteridade
Em um artigo escrito em 1943, The social use of kinship terms, Lévi-Strauss ressaltou
a importância da relação de cunhados (brother-in-law relatioship) entre os ameríndios. Porém,
foi apenas a partir do final da década de 60 que a literatura etnológica passou a extrair as
consequências presentes na intuição do autor, ou seja, a idéia de que o cunhadio ameríndio
13 Isso não significa que, por experimentarem a mudança como inerente ao funcionamento do sistema,
os Piro sejam indiferentes a elas. A sugestão é simetricamente oposta, pois o que esse caráter transformacional
implica é justamente a mudança enquanto necessidade para constituição do “mundo vivido”.
33
“funcionaria como dispositivo de abertura do universo do parentesco, servindo para
estabelecer relações sociais mais amplas” (Souza & Fausto 2004: 98). Inicialmente, a
categoria de afinidade surgiu como mecanismo interno de constituição de grupos locais (ver
os trabalhos de Rivière 1969 e Overing Kaplan 1975). No entanto, ela foi, progressivamente,
ganhando espaço enquanto mecanismo relacional que se estende para além do grupo local
(ver Albert 1985) e do conceito de humanidade (ver Viveiros de Castro 1996 e Lima 1996).
Uma série de estudos sobre fenômenos como guerra e canibalismo vieram imprimir à
alteridade e à inimizade uma posição-chave na constituição dos universos ameríndios. Nesse
movimento, o Outro surge como determinação positiva e necessária à constituição e ao
funcionamento dos sistemas sócio-cosmológicos indígenas (Souza & Fausto 2004).
Podemos considerar que esse status conferido à alteridade fortaleceu-se especialmente
a partir da intuição lévi-straussiana de que o pensamento ameríndio opera com base em uma
“abertura ao outro”. Partindo da associação entre um mito tupinambá e um mito Jê sobre a
origem do branco, Lévi-Strauss (1993 [1991]) demonstrou como essa abertura se manifestou
no episódio da chegada dos europeus. Apesar do pouco tempo de contato, os brancos foram
rapidamente incorporados à mitologia indígena, sugerindo que já houvesse ali um lugar que
lhes fosse próprio.14
A criação dos índios pelo demiurgo, por exemplo, teria tornado
automaticamente necessária a criação dos não-índios – uma interpretação que remonta ao
velho problema do dualismo ameríndio, elaborado extensamente pelo autor (ver Souza &
Fausto 2004).
Ainda na mesma obra, o autor analisou uma série de mitos, da costa norte-americana
ao Brasil Central, e verificou a recorrência de um motivo comum: a recusa à gemelaridade, ou
seja, a impossibilidade de uma igualdade entre pares (Lévi-Strauss 1993 [1991]). Partindo
14 Em uma conferência intitulada O eterno retorno do encontro, Ailton Krenak (1999) comenta que
diversas narrativas indígenas previam a chegada dos brancos como o retorno de um irmão que há muito tempo
tinha ido embora. Morando em terras distantes, estes teriam aprendido novas tecnologias e novos modos de se
organizar, mas um dia iriam acabar voltando pra casa.
34
deste ponto, constatou que a relação entre identidade e diferença seria bastante distinta nos
pensamentos ameríndio e europeu. O fato de uma metade ser sempre superior à outra indicaria
a existência de “um dualismo em perpétuo desequilíbrio (…) que se expressa de modo
coerente, ora na mitologia, ora na organização social, ora em ambas” (Lévi-Strauss 1993
[1991]: 215). Um “desequilíbrio” que garante o bom funcionamento do sistema e o impede de
cair num estado de inércia; que, em suma, “coloca em movimento a máquina do universo”
(Lévi-Strauss 1993 [1991]: 65-66).
Dessa forma, entender a noção de identidade no pensamento indígena como um estado
provisório e revogável, uma posição inalcançável, marcaria a diferença entre uma etnologia
amazônica de ênfase estruturalista e aquela inspirada por uma antropologia da identidade
(Souza & Fausto 2004: 116-121). Enquanto os europeus estavam preocupados com questões
de identidade (seriam os índios gente como eles?) e buscando fazer do diferente um igual
(vejam-se as inúmeras tentativas de conversão), os índios se mostravam interessados na
relação com a alteridade, na oportunidade de capturar elementos e forças exógenas para
tornarem a si mesmos algo novo e mais potente. Surge assim a possibilidade de entender
como elementos “externos” e “desestabilizadores” podem ser incorporados aos sistemas
indígenas, justamente por fornecerem o dinamismo que lhes é necessário.
Viveiros de Castro (1993b: 184-192) denominou este sistema sócio-cosmológico de
economia simbólica da predação, pois nele “a predação do exterior surge como condição da
produção do corpo social em sua dimensão local, como o elemento de construção das
diferenças e dinamismos internos (sexuais, etários, estatutários)”. Sistemas nos quais as
relações de produção são englobadas pelas relações de predação, ou seja, em que a economia
política do casamento e da alocação de recursos produtivos se submete a uma economia das
trocas simbólicas ligadas à criação e à destruição de componentes humanos (Viveiros de
Castro 1993b: 186).
35
Nesse sentido, baseado em uma concepção de sociologia indígena na qual a dimensão
do parentesco se vê englobada por outros circuitos de troca simbólica, o autor distinguiu
diferentes aspectos da afinidade nos sistemas amazônicos, separando-a em três manifestações
básicas: “1. a afinidade efetiva ou atual (os cunhados, os genros, etc.); 2. a afinidade virtual
cognática (os primos cruzados, o tio materno, etc.); 3. a afinidade potencial ou sociopolítica
(os cognatos distantes, os não-cognatos, os amigos formais, etc.)” (Viveiros de Castro 1993b:
167). Esta última, a afinidade potencial, seria a categoria definidora do socius, a alteridade ou
exterioridade que lhe é “interna” e instituinte. Como afirmou Viveiros de Castro,
(...) a afinidade potencial, coletiva ou genérica, abre a introversão localista
do parentesco ao comércio com a exterioridade: no mito e na escatologia, na
guerra e no rito funerário, nos mundos imaginários do sexo sem afinidade ou da afinidade sem sexo. Ela se 'reduz' a uma pura relação, que articula termos
justamente não-ligados por casamento. O verdadeiro afim é aquele com
quem não se trocam mulheres, mas outras coisas: mortos e ritos, nomes e
bens, almas e cabeças(1993b: 179).
Nessa fórmula, os afins potenciais seriam aqueles que fornecem os elementos
essenciais para o estabelecimento de relações simbólicas e político-rituais. Segundo o autor,
configura-se assim uma teoria geral da socialidade amazônica a partir de seu conceito de
parentesco, em que a figura da alteridade desempenha um papel constitutivo na definição das
identidades coletivas (Viveiros de Castro 2002d, 2002e). Seja por meio do xamanismo, da
guerra ou do casamento, o Outro (jaguar, inimigo, mortos, grupos vizinhos ou os brancos) se
apresenta como essencial para a constituição da sociedade (Chaumeil 1985; Taylor 1985,
1993, 1994; Menget 1993, 1996; Viveiros de Castro 1986; Descola 1993; Fausto 1999, 2001;
Vilaça 1992, 2006).
Corporalidade e políticas de identidade
Partindo de sua pesquisa entre os Wari‟, e munida da idéia de corpo como locus do
36
ponto de vista, Vilaça (2000) sugere que a transformação experimentada pelos indígenas na
Amazônia se dá mais nos termos de uma metamorfose corporal do que de uma mudança
cultural. Segundo Viveiros de Castro (1996), nas cosmologias amazônicas, as operações de
identificação e de diferenciação se expressam no corpo, por meio de um processo gradual de
adoção de novas disposições corporais, novos hábitos, novos acessórios, nova alimentação,
nova linguagem.15
Sendo assim, ao invés de “aculturação” ou “fricção”, Vilaça propõe uma
“fisiologia do contato interétnico”, pois nesses contextos a mudança operaria, pela
convivialidade e comensalidade, uma transubstanciação (2000: 65-66).16
A adoção de hábitos oriundos do mundo dos brancos não seria uma perda cultural ou
um abandono da tradição, mas sim uma oportunidade de experimentar outro ponto de vista,
assim como ocorre na prática xamânica. Dessa forma, Vilaça nos apresenta uma leitura da
relação dos Wari' com os brancos por meio da metamorfose corporal e do xamanismo. A
capacidade de transformação dos xamãs lhes permite comunicar e estabelecer relações com
outros seres (como animais e espíritos) de forma que, ao “trocar de roupa”, o xamã adquire a
capacidade de transitar livremente entre diferentes esferas do mundo. De maneira similar,
quando os Wari' usam a roupa e adotam a comida dos brancos, não estão, necessariamente,
operando um corte radical. Ao invés disso, Vilaça (2000) sugere tratar-se da expressão de um
modo indígena de “ser Branco” já que, para relacionar-se com eles, é preciso ter “corpo de
branco” – assim como o xamã, ao se relacionar com o jaguar, veste uma roupa-jaguar.
Outra perspectiva para o mesmo problema foi desenvolvida por uma antropologia
centrada em questões de autenticidade e política de identidade. Conklin (1997), assim como
Vilaça (2000), não vê na adoção de vestimenta ocidental um problema de aculturação ou
15 De acordo com o autor, “a metamorfose corporal é a contrapartida ameríndia do tema europeu da
conversão espiritual”, de forma que a experiência indígena da “aculturação” parece relacionar-se mais a “uma
incorporação e encorporação das práticas corporais ocidentais (alimentação e vestimenta, acima de tudo) que à
assimilação espiritual” (Viveiros de Castro 1996: 139). 16 Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979: 22) chamaram atenção para esse ponto ao propor que “a
sócio-lógica indígena se apóia em uma fisio-lógica”; a sociologia indígena seria antes de tudo uma fisiologia
(Vilaça 2000).
37
perda de integridade cultural. Para Conklin, que também estudou os Wari', o uso de roupas ou
o abandono de ornamentos nativos deve ser compreendido como uma “adaptação estratégica”,
uma maneira de lidar com as adversidades do contato. “Ao invés de acelerar a destruição da
autonomia cultural indígena, a vestimenta não-nativa pode auxiliar a preservá-la” (Conklin
1997: 717). Apesar de adotarem o uso de roupas em praticamente todas as ocasiões, incluindo
os rituais, os Wari' mantêm alto grau de coesão social e integridade cultural, não possuindo
nenhuma dúvida ou confusão quanto a sua identidade indígena, comenta Conklin (1997).
Uma preocupação semelhante, mas inversa, diz respeito à adoção de roupa
“tradicional” e outras imagens corporais (cocares, colares, pinturas, etc.) como marcadores de
indianidade. Como sugere Conklin (1997), a crescente inserção dos indígenas em um cenário
político, nacional e internacional, torna-os mais vulneráveis às idéias de autenticidade cultural
impostas de fora. É comum, por exemplo, encontrar líderes indígenas que se apresentam (e
representam) usando adornos nativos, cocares e plumárias, para agradar a um público
ocidental. Conscientes dos efeitos de sua aparência frente a um público global, líderes
indígenas passaram a evitar aparecer em público com vestimenta ocidental ou outros
elementos que façam com que sejam vistos como inautênticos. No entanto, Conklin adverte
que a concepção de uma imagem de indianidade que tenha na estética seu marcador de
autenticidade pode acabar revertendo contra a própria causa indígena. Por conta disso, a
autora não se concentra nos significados que as imagens corporais assumem para os índios,
mas nas consequências políticas que podem advir do fato de determinado visual ser adotado
para se conformar à expectativa de “pessoas de fora” (outsiders como Ongs, políticos,
organizações multilaterais, opinião pública, etc.).17
Jackson (1995a) expressa uma preocupação semelhante ao analisar o processo pelo
qual os Tukano, no Noroeste Amazônico, constroem uma imagem sobre “ser índio”, baseada
17 Ver Conklin (2002), sobre as tensões e contradições associadas à internacionalização dos movimentos
indígenas no Brasil; e ver também Jackson (1995b), sobre o esforço de revitalização cultural empreendido por
um grupo de professores Tukano, influenciados por um movimento pan-indígena internacional.
38
em critérios provenientes de não-índios. A autora identifica um movimento em que noções
próprias de história e cultura são modificadas para corresponder a uma imagem específica de
indianidade e alcançar maior aceitação por parte dos órgãos governamentais e de outras
instituições. Dessa forma, agentes não-indígenas seriam poderosos catalisadores de mudança,
mas estas não devem ser vistas em termos de autenticidade ou não. Uma cultura não é um
sistema monolítico de pressupostos que são reproduzidos e transmitidos, mas sim um sistema
dinâmico onde as pessoas agem e interagem para se adaptarem à realidade em que vivem.18
Segundo Santos-Granero (2009), tais abordagens (conhecidas sob o rótulo de
“políticas da identidade”) teriam o mérito de reconhecer a agência dos povos nativos nos
processos de mudança. No entanto, o foco nas implicações políticas e no impacto que noções
de indianidade (e autenticidade) fabricadas pelos brancos teriam nas populações indígenas
acabou negligenciando um entendimento de como concepções nativas operam na promoção
das transformações. Compõem-se uma imagem de que os índios agem sempre em resposta a
uma demanda dos brancos, calculando o efeito que determinados comportamentos possam ter
e buscando adaptá-los para satisfazer a uma expectativa externa.
Esforçando-se por escapar dessa abordagem, Santos-Granero (2009) observa que a
adoção de roupas e adornos corporais entre os Yanesha, no Peru, não seria um indicativo de
tradicionalização ou modernização, mas sim um marcador de transformações no “modo de
ser”. A própria idéia de um vestuário “tradicional” esconde uma longa história de interação
com outros grupos. A adoção, ou a rejeição, de uma estética “dos brancos” seria a
manifestação de um princípio híbrido que se encontra, de forma mais ampla, no modo
Yanesha de incorporar elementos externos para se constituir como tal. Dessa maneira, o autor
18 A autora propõe enxergamos a cultura como algo dinâmico, que as pessoas usam para se adaptar às
mudanças. “Pode ser útil olhar para a cultura menos como a pele de um animal e mais como um repertório de um
músico de jazz: as peças individuais são extraídas da tradição, mas sempre ocorre uma improvisação. As
escolhas do músico em uma performance particular levam em consideração as propriedades acústicas do salão,
as qualidades do(s) instrumento(s) tocado, e as (deduzidas) inclinações de outros músicos e do público” (Jackson
1995a: 18).
39
reivindica uma imagem dos ameríndios que, ao invés de empobrecidos ou decepcionantes
(pelo fato de terem perdido sua “tradição”), os vê como agentes socialmente ativos, que
utilizam as ferramentas à disposição para manter sua identidade étnica e sua autonomia
política.19
Em uma coletânea organizada por Albert & Ramos (2002), diversos americanistas
também buscaram, a partir de casos específicos, analisar a criatividade simbólica e política
presente em “situações de contato”. Na introdução do volume, Albert (2002: 10) nota que,
“além de reavaliar a diversidade interna das interpretações dos brancos e de seus feitos pelas
sociedades indígenas” é preciso construir um quadro coerente que integre “as dimensões
histórica (processo colonial), política (estratégias de reprodução social) e simbólica (teorias da
alteridade), embutidas tanto nas ações quanto nas interpretações do contato”.
No entanto, os “caminhos” pelo qual uma pacificação às avessas é empreendida
podem variar. Em alguns casos, esta se exprime por meio de uma apropriação dos objetos dos
brancos, que são recontextualizados através de trocas e usos ritualizados (ver especialmente
Howard 2002 e Van Velthem 2002). Em outros, esta é expressa nos discursos políticos e na
construção de imagens de auto-representação (ver, por exemplo, Erickson 2002, Gallois 2002
e Albert 2002). De modo geral, trata-se de apreender o fenômeno da “canibalização do
encontro colonial” para além da noção de resistência – já que esta acaba supondo a existência
de algo como uma “submissão cultural”.
Conforme Albert (2002: 17-18) nos mostra, dentre as principais lições extraídas da
19 Ao analisar a intensificação do contato dos Kayapó com a sociedade nacional e com o capitalismo,
Turner (1993) também enfatiza a capacidade agentiva dos indígenas, mostrando que esta vem acompanhada da
tomada de uma autoconsciência étnica e cultural. Segundo o autor, o desenvolvimento das relações com a
sociedade brasileira trouxe consigo uma nova consciência social – os kayapó passaram a se conceber como
agentes de sua própria história e “a perceber a „cultura kayapó‟ como algo essencial para sua existência como
uma sociedade, como algo que eles devem lutar para defender contras as pressões assimiladoras da cultura
brasileira” (Turner 1993: 62). Uma “nova visão de mundo” que não pode ser vista como simples
“transformação” da cosmologia tradicional, pois, segundo o autor, “isto tende a obscurecer as mudanças
ocorridas na natureza desta consciência social, e em particular a transformação no nível de percepção histórica e
política que acompanhou as mudanças estruturais” (Turner 1993: 63).
40
coletânea está a possibilidade de refletir sobre as situações sócio-históricas de contato a partir
das concepções indígenas de tempo, alteridade e mudança, bem como a constatação de que o
campo etnográfico da “indigenização da modernidade” (Sahlins 1997) tem se tornado cada
vez mais abrangente. Este pode abarcar desde a apropriação dos recursos e discursos do
mercado e das instituições de desenvolvimento até os próprios conceitos antropológicos e
escritos etnográficos.
O desafio da indigenização da modernidade
Vimos como as abordagens para entender a relação entre índios e brancos podem
variar conforme as escolhas teóricas, epistemológicas e políticas de cada pesquisador. Sem
pretensão de esgotar todas as possibilidades, busquei apresentar um panorama que oferecesse
diferentes visões sobre um mesmo problema, dando ênfase a autores e leituras com as quais
me identifico. Um dos pontos centrais é a recusa em olhar para a “situação de contato”
enquanto absorção passiva de uma cultura dominante, além de chamar atenção para uma
necessidade de se investigar “as variantes indígenas da digestão do mundo não indígena”
(Fausto 2006: 28).
A idéia de sociedades isoladas, que por muito tempo vigorou no imaginário
antropológico, caiu por terra com o desenvolvimento dos estudos sobre contato entre
sociedades nativas e deixou claro “que o imperialismo não está lidando com amadores nesse
negócio de construção de alteridades ou de produção de identidades” (Sahlins 1997: 133). Ao
abranger diversos registros (sociológicos, cosmológicos, corporais, narrativas míticas, rituais,
entre outros) é possível apreender o processo de transformação como algo endógeno a tais
sociedades, em operação desde antes da chegada dos brancos. A mudança, social ou cultural,
não pode ser atribuída exclusivamente ao contato. Sendo constante, também não deve ser
41
entendida como transposição de um estado a outro (“puro” e “aculturado”, por exemplo), mas
sim como um processo de renovação e inovação pelo qual essas sociedades se tornam o que
são.
Contudo, não se trata de ignorar os efeitos e as consequências que a chegada dos
brancos (com seu “mundo” a tiracolo) acarretou na vida dessas sociedades. Trata-se, na
verdade, do oposto: buscar compreender como diferentes formas de se relacionar com a
alteridade contribuíram para a (re)invenção de novos modos de vida. Ou, como bem colocou
Sahlins, perceber que a mudança cultural pode ocorrer “induzida por forças externas, mas
orquestrada de modo nativo” (2003[1987]: 9). Nesse sentido, busca-se ler as transformações
pelas quais esses povos vem passando como parte de seu funcionamento dinâmico, onde as
mudanças se dão – em certa medida pelo menos – em continuidade com um modo de ser e
estar no mundo.
Cabe ainda lembrar que, ao reconhecer essa “autonomia nativa” não devemos
imaginar que os grupos indígenas vão (ou deveriam) manter sua especificidade cultural por
meio de um retorno à condição prévia ao contato com o ocidente e com o capitalismo. Deve-
se notar, por exemplo, que além do desejo pelas mercadorias (como motores de popa, carro,
geradores, eletrodomésticos, roupas, alimentos, etc.), existe um desejo de utilizá-las conforme
sua própria vontade e para atingir seus próprios objetivos (na maior parte das vezes, diversos
daqueles que lhe atribuímos, a priori).20
No entanto, perceber como estes povos encontram diferentes maneiras de lidar com as
forças “globais” não implica ignorar que estas existam. Opressão, violência e preconceitos – e
inúmeras outras infelicidades – compõem um idioma e uma faceta presentes, em algumas
situações de forma mais brutal que outras, nos cenários de interação interétnica. Todavia, no
20 Ao lidar com a incorporação de mercadorias em cenários muitas vezes degradantes (como o uso de
embalagens de pão e armações de guarda-chuva feito pelos Mendi [Lederman apud Sahlins 1997]), cabe ao
antropólogo colocar seus conceitos em jogo, ou seja, estar atento para o fato de que objetos que lhe são
demasiado familiares podem não ter o mesmo significado quando inseridos em outros sistemas.
42
âmbito deste trabalho, esses não são os aspectos a ser destacados – apesar de implicitamente
presentes). Como bem colocou Sahlins:
A tarefa da antropologia agora é a indigenização da modernidade. (...) O que
se segue, portanto, não deve ser tomado como um otimismo sentimental, que
ignoraria a agonia de povos inteiros, causada pela doença, violência, escravidão, expulsão do território tradicional e outras misérias que a
“civilização” ocidental disseminou pelo planeta. Trata-se aqui, ao contrário,
de uma reflexão sobre a complexidade desses sofrimentos, sobretudo no caso
daquelas sociedades que souberam extrair, de uma sorte madrasta, suas presentes condições de existência (Sahlins 1997: 53, grifo meu)
No entanto, há que se questionar os limites deste modelo. Como conceitualizar
situações de rupturas radicais, ou o encontro entre sociedades com estruturas diferentes?
Como não cair na armadilha de, ao buscar valorizar as populações estudadas, dotando-as de
agência, consciência histórica, dinamismo ou outro tema atual, repetir o antigo procedimento
de projetar em outros povos nossas próprias noções culturais (Fausto & Heckenberger 2007)?
Conforme Gordon (2006) demonstrou em sua análise sobre o “consumismo xikrin”, o fato de
haver uma continuidade no funcionamento de um sistema social – a incorporação de dinheiro
e mercadorias como transformação de princípios que regem relações mais amplas no universo
social mebêngôkre, por exemplo – não elimina os efeitos inquietantes dessas mudanças.
Utilizando a metáfora culinária, onde as mercadorias desempenhariam uma função comida
(ao contribuírem para a constituição de uma identidade xikrin), Gordon (2006) aponta a
existência de um “risco do canibalismo” – ou seja, quando a incorporação de um alimento,
não mais dessubjetivado, implica ficar demasiado parecido com o que se come (“o mundo dos
brancos”), corre-se o risco de não reconhecer os parentes e não mais saber viver junto com
eles.
Desta maneira, a busca pelos modos indígenas de produzir transformação escapa da
perspectiva de contaminação ou de perda cultural – a qual atribui a estes povos uma posição
passiva, de vítima –, mas corre o risco de cair num pólo oposto, considerando-os como uma
“máquina lógica capaz de digestão infinita do sistema não indígena” (Fausto 2006). Ao
43
comentar a pesquisa de Gordon sobre os Xikrin, Fausto marca a relevância dessa questão,
afinal, “como bem sabem os índios, aquilo que você come acaba por transformá-lo –
transformá-lo em parente, em membro de um determinado coletivo humano, mas também
transformá-lo em espírito, em porcos, em inimigo, em jaguar” (2006: 30).
Em suma, este é, a meu ver, um dos maiores desafios para análises que buscam
entender transformações contemporâneas, como o fenômeno do “virar branco”, sob uma
possível perspectiva indígena (ver Kelly 2005, 2009). Seriam esses sistemas capazes de se
transformar continuamente, canibalizar o outro (mundo) infinitamente, sem nunca tornar-se
parte dele? Sem ambição de esgotar a complexidade do problema, retomarei essa questão no
último capítulo, ao analisar o “caso Munduruku”.
.
Capítulo 2
Imagens na história
É a tribu mais numerosa, mais guerreira e que melhor trabalha em ornatos
de penas (...) Torna-se ainda notável pela tatuagem bárbara que usa, apesar
de ser a que mais se enfeita nos seus dias festivos
- João Barbosa Rodrigues -
As primeiras informações sobre a presença dos brancos na região dos rios Tapajós e
Madeira datam do início do século XVII. Tratam-se das viagens de reconhecimento, as quais
tinham como objetivo abrir caminhos para a expansão colonial e aprisionar índios para serem
utilizados como mão-de-obra escrava. Consta também que, na segunda metade do século
XVII, os jesuítas instalaram suas primeiras missões na região. No entanto, a exploração
restringiu-se aos cursos inferiores destes rios e as informações que temos sobre o período são
escassas. Somente nas primeiras décadas do século XVIII o rio Tapajós passou a ser
desbravado. Houve uma maior penetração na região interiorana e nas cabeceiras do rio – um
processo que se intensificou no decorrer do século XIX. Dessa época, temos os registros feitos
por missionários, agentes do governo e expedições científicas.
As crônicas e os relatos de viajantes deste período, somadas às pesquisas de caráter
histórico realizadas recentemente, permitem-me apresentar, em linhas gerais, uma história do
contato entre os Munduruku e os brancos. Buscarei mostrar como uma representação dos
Munduruku foi sendo construída, e modificada, conforme o período histórico e as
informações coletadas. Devo advertir, entretanto, que essa história de contato não se estende
até os dias atuais. Existe uma lacuna de informações a partir da segunda metade do século
XX. Mesmo as investigações mais atuais, como Arnaud (1989), Colevatti (2006) ou Ramos
(2000), restringem suas análises até meados da década de 60.
45
Primeiros contatos
Nos relatos de viajantes e exploradores dos séculos XVII, XVIII e XIX, encontramos
o registro de inúmeros grupos indígenas na região dos rios Tapajós e Madeira, demonstrando
um amplo povoamento e intenso contato intertribal. Dentre aqueles que se destacam na
literatura temos os Kawahiwa, Apiaká, Mawé e Munduruku, todos pertencendo ao tronco
linguístico Tupi e ainda presentes nos dias atuais (Menéndez 1981/82). A predominância dos
Munduruku na região levou Aires de Casal (1976 [1817]) a designar como Mundurucânia o
território confinado entre os rios Juruena, Amazonas, Madeira e Tapajós. De fato, boa parte do
rio Tapajós e interflúvios entre este e o rio Madeira estava povoada por esses índios, que por
conta da ocupação progressiva dos brancos acabaram se refugiando na região do alto Tapajós,
onde permanecem majoritariamente até os dias atuais (Menéndez 1981/82).
A primeira menção que temos dos Munduruku data de 1768, feita pelo então vigário
geral do Rio Negro, José Monteiro de Noronha, que registrou a existência dos “Muturucu” na
região intermediária entre o rio Tapajós e o rio Madeira (Horton 1948). Passados dois anos,
Ribeiro Sampaio assinalou a presença destes nas proximidades do Tapajós, e em seguida
Ricardo de Almeida Serra (1797) registrou-os como a “nação Mondruci, uma das mais
valorosas e atrevidas de todo o sertão do Amazonas” (apud Menéndez 1981/82: 332). De fato,
os primeiros viajantes parecem ter se impressionado com o tamanho e com a aparência da
guerreira “nação Munduruku”. Conforme relatou Tocantins (1877: 81), a pintura corporal
conferia-lhes efeito de verdadeiros guerreiros vestidos em rigorosos uniformes. De acordo
com o engenheiro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
É notável o pronunciado espírito de sociabilidade, ou antes de nacionalidade,
que, ligando fortemente entre si os indivíduos e as aldêas d‟esta tribu, tem
conservado n‟aqueles desertos fora do contacto e da influencia de nossa civilização, ousarei dizer, a autonomia da republica Mundurucu (Tocantins
1877: 111).21
21 Poderíamos entender a atribuição de um “espírito de nacionalidade” como mero fruto de uma visão
46
Esses temidos guerreiros travaram guerra com inúmeros povos vizinhos.
Exterminaram os Jumas e os Jacarés, influenciaram no deslocamento dos Parintintin e dos
Kawahiwa em direção aos rios Juruena e Teles Pires, perseguiram incansavelmente os Mura,
além dos conflitos registrados com os Maués, Arara e Apiaká (Bates 1944 [1852]; Coudreau
1997 [1897]; Hartt 1895; Leopoldi 1979; Murphy 1957; Nimuendajú 1948; Spix & Martius
1976 [1817/1820]; Tocantins 1877). Menéndez (1981/82: 368) aponta para o fato de que
muitos grupos da região se encontravam numa “rede de relações em que comércio, alianças,
situações de denominação-subordinação, guerra e expansão territorial constituíam uma
constante”, e que, portanto, é dentro deste contexto de intensas relações interétnicas e de
mobilidade territorial que se deve considerar a entrada dos brancos na região.
Almeida Serra mencionou que, em 1797, os Munduruku já eram “amigos” dos
portugueses. No entanto, antes de se estabelecer tal “amizade”, houve inúmeras reações à
penetração dos colonizadores. Consta que os Munduruku empreenderam uma série de ataques,
como a investida de 1793 a diversos estabelecimentos coloniais, cobrindo uma área que ia
desde os rios Xingu e Tocantins até os cursos dos rios Madeira e Tapajós (Murphy 1957;
Leopoldi 1979). De acordo com Spix e Martius,
os mundurucus, mundrucus (muturicus), antes do ano de 1770, mal eram
conhecidos no Brasil pelo nome; mas, daí em diante, irromperam em numerosas hordas, ao longo do Rio Tapajós, destruíram as colônias e
tornaram-se tão temíveis que foi necessário mandar contra eles tropas, às
quais se opuseram com grande audácia (1976 [1817/1820]: 263)
Conforme o relato de Leopoldi (1979), em 1795 o então Governador da Capitania do
Rio Negro, Manoel da Gama Lobo d'Almada, conseguiu por um fim às hostilidades e
estabelecer relações pacíficas com os Munduruku. Conta-se que, sem homens suficientes para
etnocêntrica, vinculada às categorias do Estado-Nação, mas esta também nos permite perceber que, mesmo
diante da alta mobilidade e do tamanho da população, existia uma organização social “forte” o suficiente para
garantir uma unidade. Tal fato contraria uma constatação que vigorou durante décadas, a respeito de uma
“fragilidade Tupi” frente ao impacto do contato (Viveiros de Castro 1984/85). Podemos inclusive especular que
foram tais características (uma suposta “nacionalidade” e um hipotético “imperialismo”) que possibilitaram a
perpetuação do grupo, quando muitos de seus vizinhos foram extintos.
47
encarar os temidos indígenas, o Governador enviou um grupo de soldados que capturaram
dois índios e os mantiveram por quatro meses presos na fortaleza da Barra do Rio Negro,
atual cidade de Manaus. Ali eles foram muito bem tratados e receberam inúmeros presentes.
Reconhecendo a boa vontade dos captores, os dois índios teriam se comprometido a retornar
e avisar aos outros que os brancos não eram seus inimigos.
As notícias rapidamente se espalharam entre os Mundurucu, de forma que
estes começaram a se aproximar pacificamente (...). Centenas de índios
foram visitar o Governador Almada, sendo que alguns deixavam seus filhos e voltavam, de tempos em tempos, para visitá-los (Leopoldi 1979: 100). LEOPOLD
O interesse em reproduzir este relato não se deve unicamente ao fato de ser uma
“versão oficial” sobre como os Munduruku foram pacificados. Passados quase dois séculos,
encontramos em Murphy (1978 [1960]) a seguinte narrativa:
Nos tempos antigos nossos avôs eram bravos e lutavam contra os brancos.
Estes costumavam subir nossos rios em suas canoas, mas nós sempre os
combatíamos. Um dia, em uma dessas brigas, nossos homens foram embora, mas deixaram para trás dois jovens que haviam sido feridos. Eles foram
capturados e levados para longe. Na próxima vez em que os brancos vieram,
nós estávamos prontos para atacar quando os dois homens capturados levantaram-se da canoa e nos disseram para não fazer nada contra eles,
pois eram nossos amigos. Eles então se aproximaram e nos mostraram
roupas, facas, machados e muitas outras coisas boas que os brancos haviam lhes dado. Os dois índios disseram que se nós déssemos borracha e farinha
para os brancos, também receberíamos todas essas coisas boas. Os mais
velhos decidiram fazer isso e desde então nos tornamos amigos (Murphy
1978 [1960]: 27, grifo meu).
A partir de então, os conflitos teriam cessado e os Munduruku tornaram-se aliados dos
brancos, passando inclusive a operar como força militar para contatar e pacificar outros
grupos indígenas – situação que nos remete ao fenômeno conhecido na literatura como ethnic
soldiering (Ferguson & Whitehead 1999).22
O estabelecimento desta aliança atraiu muitos
22 Ferguson e Whitehead (1999) notam que a intrusão dos estados nacionais nas “zonas tribais”
influenciou na condução das guerras indígenas – tanto intra- quanto inter- étnicas. Os autores não assumem que
tais conflitos não existissem antes do contato com o “ocidente”, tampouco sugerem que este seja “culpado” pela
eclosão das guerras tribais. Ao invés disso, Ferguson e Whitehead (1999) buscam reconhecer que estes conflitos
foram transformados e, frequentemente, incitados e intensificados pelo contato. Neste contexto, ethnic soldiering
seria o uso da força guerreira indígena para atingir interesses geo-políticos coloniais, situação que muitas vezes
teria vindo ao encontro dos interesses nativos.
48
índios e possibilitou a construção de vilas e missões.23
Os Munduruku ainda participaram
como colaboradores do governo na Cabanagem (1835-1840) – revolta na qual índios, negros
e mestiços se insurgiram contra a elite política que comandava a cidade de Belém e a
província do Grão-Pará (Hartt 1885; Leopoldi 1979; Menéndez 1992). Como conseqüência
dessa aliança houve uma intensificação nas relações de trocas comerciais, mas apenas com o
boom da borracha, na segunda metade do século XIX (que teve seu auge entre 1879 e 1912),
o processo de ocupação do alto Tapajós acelerou-se e a presença dos brancos se fez definitiva.
É preciso enfatizar que essa aliança não foi sempre recebida de forma pacífica. Se por
um lado ela contribuiu para a expansão do grupo e o denso povoamento na região do Tapajós,
por outro lado, em diversas ocasiões foi conduzida à revelia dos próprios índios que, frente à
ameaça de serem recrutados para trabalhos forçados, refugiavam-se no interior das matas
(Spix & Martius 1976 [1817/1820]: 248).
Os caçadores de cabeça
Como já mencionado, todo o curso do rio Tapajós encontrava-se densamente povoado
pelos Munduruku. Nos relatos dos cientistas alemães, Spix e Martius (1976 [1817/1820]),
encontramos descrições sobre a pintura corporal, a qualidade do trabalho plumário,24
os
modos de guerra e o preparo da cabeça-troféu – além de uma estimativa da população como
23 Segundo Menéndez (1981/82: 361), “a aliança que os Mundurukú realizaram com o branco, a partir
de 1795, fez com que se produzisse uma re-orientação no seu processo de expansão e, a partir daquela data, muitos dos deslocamentos e confrontos levados a cabo foram a soldo de seus aliados portugueses, passando
assim a ser a „vanguarda‟ para a ocupação de todo o setor norte da área Tapajós-Madeira”. 24 A qualidade do trabalho plumário dos Munduruku seria tamanha que, ao lado dos maués, figurariam
como “os mais perfeitos artistas no trabalho de penas” (Spix & Martius 1976 [1817/1820]: 250). Muitos destes
objetos foram adquiridos por viajantes e cientistas e encontram-se atualmente espalhados em museus ao redor do
mundo. O Setor de Etnologia do Museu Nacional, Rio de Janeiro, possui uma ampla coleção de objetos
Munduruku. O acervo dispõe de cerca de 250 peças coletadas em épocas e circunstâncias distintas, sendo a
maior parte proveniente da expedição Langsdorff em 1829 (Nascimento 2009). Para o leitor interessado no
assunto, remeto à tese de Fátima Regina Nascimento (2009), intitulada a “A formação da coleção de indústria
humana no Museu Nacional, século XIX”. Neste trabalho, a autora analisa a formação da coleção etnográfica do
Museu Nacional, integrando-a ao meio social no qual foi coletada, preservada e divulgada.
49
algo entre 18.000 e 40.000 índios. Nessa época, encontrava-se em funcionamento uma missão
carmelita, fundada em 1811, que atendia cerca de 1.000 índios Munduruku.25
Segundo os
autores, desde o ano de 1803 “toda a tribo firmou a paz com os brasileiros; várias de suas
grandes aldeias se transformaram em missões e exploram o comércio com os brancos” (1976
[1817/1820]: 264). Na Corografia Brasílica do Pe. Manuel Aires de Casal (1977 [1817]),
encontramos a seguinte descrição:
Os Mundrucus, que costumam tingir o corpo de negro com tinta de
genipapo, são numerosos, apessoados, guerreiros, e temidos de todas as
outras nações, que lhes dão o apelido de Paiquicé, que significaria corta-cabeça; porque costumam cortá-la a todo o inimigo que lhes caiu em poder;
e sabem embalsamá-los de sorte, que se conservam largos anos com o
mesmo aspecto do momento em que foram cortadas. Ornam as suas toscas, e
mesquinhas cabanas com estes horrendos troféus. Aquele que mostra dez, está habilitado para poder ser eleito chefe da horda (Aaires de Casal 1977
[1817]: 325)
Um dos traços que parece mais ter chamado a atenção dos cronistas no século XIX é a
elaborada ornamentação corporal dos Munduruku. Hartt (1885) relata que homens e mulheres
tinham o corpo inteiro tatuado em linhas finas, com a presença de figuras romboidais na parte
superior do peito, além de pintarem (nesse caso apenas os homens) o rosto todo de negro, com
jenipapo [figuras 1 e 2]. A tatuagem era realizada periodicamente ao longo de mais de uma
década (Agassiz & Agassiz 2000 [1865-1866]). Tinha início por volta dos seis anos e sua
conclusão era um indício de que a pessoa estava na idade de casar (Hartt 1885). “Causa
admiração a minúcia com que o doloroso embelezamento é praticado da cabeça aos pés”,
comenta von Martius (Spix & Martius 1976 [1817/1820]: 249). Nos relatos da expedição
Langsdorff (1821-1828) encontra-se referência a uma série de adornos de dança que foram
retratados minuciosamente por Hércules Florence: gorro de plumas, bandoleira, cinto,
25 Presentes na região desde a metade do século XVII, os jesuítas foram expulsos na segunda metade do
século XVIII, após a criação do Diretório dos Índios, lei colonial que regulamentava os aldeamentos indígenas
da província do Grão-Pará. Segundo Almeida (1997), o Diretório foi simultaneamente um plano de civilização
dos índios e um programa de colonização, que tinha um propósito evangelizador. Dentre os objetivos do
Diretório estava a substituição dos missionários por funcionários civis e militares, a criação de escolas para
ensino da língua portuguesa e a transformação dos índios em trabalhadores nacionais.
50
braceletes e um bastão de pluma usado pelo chefe [figura 3] (Manizer 1967).
O engenheiro, naturalista e botânico, João Barbosa Rodrigues, também deu destaque à
plumária, tatuagem corporal, trajes rituais, além de uma breve descrição das chamadas “festas
de guerra” (Barbosa Rodrigues 1882: 45). Uma delas seria o pariau-á, cerimônia em honra
aos guerreiros que trouxessem a cabeça de um inimigo. A outra, chamada de pariuate-ran, era
realizada algum tempo depois, quando um cinto confeccionado com os dentes do inimigo
seria entregue, segundo o autor, aos feridos em guerra ou às viúvas dos mortos em combate.26
A terminologia expressa por Barbosa Rodrigues (pariuate = inimigo, ran = cabeça do
inimigo) desperta interesse. Sabemos que pariwat significa inimigo (Murphy 1957; Gomes
2006), além de ser o termo utilizado para designar “estrangeiro”, “não-munduruku” e brancos
(Murphy 1978), enquanto 'a quer dizer cabeça (Crofts 1985; Gomes 2006). Sendo assim,
podemos sugerir que a festa de pariua-á seja uma possível inscrição de pariwat'a, ou seja,
“cabeça do inimigo”. Bates (1944 [1852]) também menciona que os Munduruku se
mostravam temerosos de ataques dos parauatés, que o naturalista entendeu como sendo “uma
tribu de selvagens com quem sempre os Mundurucús estiveram em guerra”. No entanto, a
semelhança que esta denominação guarda com pariwat nos remete à idéia de que não se
tratava necessariamente de uma tribo específica, mas sim de um inimigo genérico.
O ataque aos inimigos tinha um duplo objetivo: capturar suas cabeças e trazer cativos.
Mulheres e crianças de tribos inimigas eram tratadas como Munduruku natos – pintados “à
moda da casa”, as mulheres recebiam maridos e as crianças pais adotivos (Aires de Casal
1976 [1817]; Horton 1948). Tocantins (1877) menciona que, ao sair para o combate, os
guerreiros declaravam a necessidade de capturar uma mulher para se casar, ou trazer um filho
para a irmã, mãe ou esposa. No entanto, era em torno da cabeça-troféu que se desenrolava o
extenso ciclo ritual. No decorrer do ataque os habilidosos guerreiros cortavam a cabeça do
26 Os dados relacionados ao destino do cinto contrastam com aqueles fornecidos por Murphy (1958), no
qual consta que este permanecia guardado na casa do guerreiro que o havia confeccionado.
51
inimigo com uma faca de bambu e seu preparo começava ainda no campo de batalha.
Retiravam-lhe o cérebro e as partes moles, deixavam de molho em óleo de andiroba e, por
fim, colocavam-na para secar durante vários dias, ao sol ou exposta à fumaça (Bates 1944;
Tocantins 1877). Elaborada cuidadosamente, o guerreiro carregava-a sempre consigo presa no
topo de um cajado do qual não se desvinculava nem para dormir (Hartt 1885). Era enfeitada,
recebia pintura facial e ornamentos de penas [figuras 4 e 5]; os dentes eram retirados e com
eles se confeccionava um cinto. Ao “conquistar” uma cabeça, o matador e sua esposa eram
obrigados a seguir procedimentos rituais rigorosos e manter uma série de abstinências
(Murphy 1957).
Menget (1993) comenta que essas restrições configuram o ritual como uma “super-
couvade” – além da abstinência sexual, o guerreiro, Dajeboiši (“mãe do queixada”), não podia
caçar, nem sua esposa podia cozinhar. O aspecto curioso é que não havia, aparentemente,
nenhuma criança envolvida, fato que permitiu ao antropólogo tecer uma interessante análise
sobre a associação entre o troféu e a reprodução do grupo.
A cabeça decorada acompanhava a captura de crianças que eram adotadas,
mas também transferia a potência fecundante do matador para o grupo, da
mesma maneira que favorecia a reprodução da caça (agradando à 'Mãe dos espíritos de caça') (Menget 1993: 316).
Através de uma ligação entre cabeças dos inimigos, espíritos e animais de caça, os
homens se tornariam “mães” – num contexto ritual cuidavam de seus troféus como se fossem
filhos e, dessa maneira, asseguravam o sucesso na caça de seus companheiros. “A relação de
geração espiritual (mãe/filho) atravessa todo o campo das representações mundurucu. Existem
assim Mães dos animais (de caça): Mães da anta, Mães do queixada, Mães do veado, Mães do
macaco, Mães do peixe” (Menget 1993: 318).
A importância da cabeça-troféu, bem como o tratamento especial que recebia, é
marcada no relato de Tocantins (1877). Em 1875 o engenheiro partiu de Belém e,
atravessando Santarém e Itaituba, adentrou na região do Alto Tapajós. Acompanhado por
52
alguns índios Maués, outrora inimigos dos Munduruku, o engenheiro seguiu até o rio Cadiriri.
Ali, deixaram as canoas e seguiram por terra até uma das aldeias localizadas no interior,
considerado na época como habitat tradicional dos Munduruku.
Ao chegar à aldeia Necodemos, Gonçalves Tocantins conta que foi recepcionado por
cerca de oitenta guerreiros, todos bastante curiosos e receptivos.27
A aldeia, localizada no alto
de uma colina, na região de campina, contava com uma casa dos homens no centro (eksa),
onde o engenheiro foi acomodado, e cinco casas ao redor, onde habitavam as mulheres e as
crianças. Ali, Tocantins recebeu de presente, em troca de uma espingarda e outros utensílios, a
cabeça mumificada de uma mulher Parintintin – tidos como os inimigos “preferenciais” dos
Munduruku.28
Este presente não lhe foi entregue sem remorso, pois conforme relata, seu dono
estava como louco pela cabeça Parintintin. Não a deixava um só momento.
Quando chegou a occasião de eu retirar-me de Necodemos, como adiante
direi, elle, bem como doze outros índios, acompanhou-me durante oito dias de viagem, através das matas, até as cabeceiras do Caderery. Durante este
trajecto, quando se approximava a noite e tinhamos de pousar, o índio
fincava em terra, junto á sua rede, uma haste que trazia expressamente para
isto, e sobre ella suspendia a cabeça, como em um cabide, cobrindo-a cuidadosamente com uma toalha que eu lhe havia dado. Ao amanhecer, seu
primeiro olhar era para ella: punha-a sobre o collo, penteava-lhe com os
dedos os longos cabellos e acariciava-a, como se fosse uma filha querida. É singular, porém, a extrema ternura com que o bárbaro tratava a cabeça de sua
inimiga (Tocantins 1877: 84-85)
27 A imagem de selvagens vivendo isolados num “estado de natureza” era amplamente difundida entre
os pesquisadores do século XIX. Podemos ver a expressão desse tipo de convicção quando Tocantins comenta,
ao visitar a aldeia Necodemos, que “realizava, enfim, um dos maiores desejos que sempre tive, isto é, vêr uma
tribu selvagem em seu estado primitivo, exactamente como devêra estar antes da descoberta do Brasil, vivendo a
lei da natureza, sem contacto algum de idéia com outros povos, que lhe alterasse as crenças e tradições” (1877:
81). Necodemos seria, de acordo com Coudreau (1997 [1897]), a aldeia Decodemos, considerada na cosmologia
como o primeiro local criado pelo herói mítico, Karusakaibö. 28 A cabeça recebida por Tocantins (1877: 84) tinha cabelo comprido, a fronte raspada até a metade
superior do crânio, e uma mexa circular no meio [figura 10]. No entanto, o autor registra que não havia o costume de se cortar as cabeças das mulheres, sendo que esta havia sido pega por engano. Este dado não confere
com aquele fornecido por Murphy (1957: 1023), no qual consta que cortavam as cabeças dos inimigos, fossem
eles homens ou mulheres. Ao analisar questões relacionadas à caça de cabeças na mitologia Munduruku, Menget
(1993: 314) percebeu que, nas narrativas, as vítimas mais freqüentes são mulheres que recusam uma proposta
sexual. Contudo, na prática, os guerreiros Munduruku teriam preferência pela cabeça dos homens, deixando as
mulheres e as crianças para serem levadas como cativos. Outro aspecto interessante analisado pelo autor diz
respeito à socialização da cabeça enquanto Munduruku e enquanto homem, ou seja, apesar de ser propriedade do
matador, a cabeça era coletivizada e recebia um padrão de pintura facial e um corte de cabelo tipicamente
masculinos (Menget 1993: 315). Lucia Van Velthem analisou a procedência de uma série de troféus Munduruku
em coleções francesas e brasileiras e concluiu que estas pertenciam especialmente aos Parintintin, Apiacá e
Maué, não havendo nenhum registro de caça às cabeças dos brancos (ver Menget 1993: 314).
53
Ainda no momento da partida, e buscando retribuir a hospitalidade recebida, o
engenheiro convidou alguns índios a acompanharem-no, ou ao menos enviar seus filhos para
que fossem educados junto aos brancos. Eles não aceitaram. Ao invés disto, contaram-lhe a
história de Teiu Burubê, um índio Munduruku que, após ter vivido entre os brancos, retornou
à aldeia natal, mas acabou morrendo – demonstrando a existência de uma ligação entre
feitiçaria, enfermidade e o mundo dos brancos.29
Teiu Burubê era um Mundurucú que desapparecêra das aldêas ha muitos
annos, e apos longa ausencia regressára. Apresentou-se na maloca de Cabroá
elegantemente vestido à nossa moda. Os parentes o receberam com extrema satisfação. Então contou que se baptizára no Rio de Janeiro, que se ficára
chamando Martinho de Alcantara, e que S. M. o Imperador lhe servira de
padrinho e de protector. Encontrou na maloca de Cabroá parentes, e
particularmente uma irmã, que o tratou com extrema dedicação. Quando deixou a aldêa natal, ainda muito moço, fôra acompanhado por um irmão, e
ambos desceram pelo rio Canumá. Este Mundurucú descrevia com vivas
côres as vantagens da vida civilisada, sem comtudo mover os seus parentes a abandonarem a vida selvagem. Por fim estranhou a mudança de regimen e
cahiu doente de violentas febres. Dizendo-se na maloca que estava
enfeitiçado por causa dos elegantes vestidos que possuia, a irmã, indignada, reuniu-os no terreiro e lançou-lhes fogo. Convalescendo, ainda em maiores
privações se achou, pois estava nú. Por fim falleceu; a irmã, que não o
abandonára um só momento, enterrou-o embaixo de sua propria rede
(Tocantins 1877: 99, grifo meu).
Em sua expedição, Tocantins (1877: 135-145) conta que passou pela Missão Bacabal,
estabelecimento fundado em 1872, mas extinto poucos anos depois. A razão para seu rápido
declínio foi o conflito estabelecido com os comerciantes do município de Itaituba. Estes
reclamavam que o missionário responsável pela Missão, Fr. Pelino Castrovalva, explorava o
trabalho indígena e se ocupava mais com o comércio do que com a catequese dos índios. O
missionário, por sua vez, se queixava de abusos cometidos pelos regatões. Ainda assim, em
1876, Fr. Pelino Castrovalva foi destituído do posto e a Missão teve suas atividades
encerradas. No entanto, veremos que o conflito em torno das trocas econômicas com os índios
29 No caso Yanomam descrito por Albert (1992), podemos ver a associação entre xamanismo, contato
interétnico e doenças. O autor explora como a identificação dos brancos e dos objetos manufaturados a poderes
patogênicos configurou uma concepção etiológica do contato, reelaborada de acordo com a intensidade das
relações com o mundo dos brancos. Desde os primeiros contatos, os brancos foram identificados com as
epidemias que assolaram o território e as comunidades Yanomam, e associados a espíritos maléficos que
atacavam enviando uma fumaça-patogênica (“epidemia-fumaça”).
54
viria a se perpetuar até pelo menos a segunda metade do século XX.
Intensificando relações
Mesmo com as viagens mencionadas acima, por muitas décadas a região do Alto
Tapajós permaneceu relativamente preservada e seus habitantes praticamente isolados. As
cachoeiras que ali se encontram dificultavam a navegação de forma que, apenas
esporadicamente, os índios recebiam a visita de regatões que subiam o rio carregados com
mercadorias. Estas eram trocadas por borracha e outros produtos silvestres, mas os indígenas
eram mantidos sob o jugo de uma eterna dívida: por mais que pagassem, nunca conseguiam
quitá-la (Tocantins 1877: 149).30
É notável o fato de que boa parte dos relatos de cronistas e
viajantes da época menciona o desenvolvimento das trocas comerciais na região e um
progressivo envolvimento dos índios nessas negociações. Como veremos, o encanto pelas
mercadorias foi a principal explicação para a atração que o “mundo dos brancos” exerceu
sobre os Munduruku.
Leopoldi (1979) menciona que, no início do século XX (pouco mais de um século
após os primeiros contatos), os Munduruku se encontravam diferenciados em três grupos.
Havia aqueles que, vivendo no curso do rio Madeira e no baixo Tapajós, mantinham relações
mais intensas com a população regional e tiveram boa parte dos hábitos “tradicionais”
modificados. Já os que permaneceram na região do alto Tapajós diferenciavam-se em dois
“grupos”: havia aqueles que se mudaram para a beira dos rios (para ter acesso mais frequente
aos brancos e suas mercadorias), e aqueles que ficaram na região dos campos, onde puderam
30 Ao descrever o sistema de habilitación no Peru (o equivalente ao sistema de aviamento, no Brasil),
Gow (1991) chama atenção para o fato de que a dívida interminável opera com o estabelecimento de um vínculo
entre patrão e empregado, constituindo um sistema de dependência mútua. “O sistema de habilitación foi
frequentemente representado sob uma ótica da exploração, o que de fato é. No entanto, seria um erro imaginar
que os nativos (native people) do Baixo Urubamba são vítimas passivas de um sistema sob o qual não tem
nenhum controle” (Gow 1991: 107). Segundo o autor, os Piro estão cientes de que os patrões são enganadores e
mentirosos, mas também estão cientes de que os patrões precisam do trabalho deles da mesma forma como eles
precisam do dinheiro e das mercadorias.
55
preservar suas práticas culturais e organização social.
Como veremos no capítulo seguinte, na década de 50 havia uma divisão bastante
marcada entre os habitantes da savana e os habitantes das margens do rio Cururu, um dos
afluentes do Tapajós (Murphy 1978 [1960]). De acordo com o censo realizado por Murphy
(1978 [1960]), a população Munduruku nos anos de 1952/53 atingia um total de 1.250
pessoas, das quais 360 viviam na savana, 700 nas margens do Cururu e outros 200 no rio
Tapajós e seus afluentes.31
Segundo o autor, aqueles que viviam às margens do Tapajós já haviam abandonado
diversos elementos da cultura tradicional e residiam em agrupamentos pequenos, com uma ou
duas famílias apenas. Já no rio Cururu, a manutenção da vida em comunidade (através da
reunião de diversos núcleos familiares) e o relativo isolamento geográfico (o acesso ao rio
Cururu exige atravessar um trecho encachoeirado do rio Tapajós) colaboraram para a
preservação da cultura munduruku, apesar das modificações drásticas na organização e na
estrutura social. Em contrapartida, os que ficaram na savana se mantiveram relativamente
autônomos e menos influenciados pelas mudanças derivadas do contato, o que não significa
dizer que permaneceram inalterados.
No decorrer do século XX, as transformações pelas quais os Munduruku vinham
passando em função do contato com os brancos intensificaram-se. A guerra com intuito de
caçar cabeças, apesar de já ter diminuído com o avanço das frentes de contato, só chegou ao
fim por volta de 1912-1914 (Murphy 1957, 1978 [1960]).32
A população que habitava a
31 As estimativas de Tocantins (1877) para o ano de 1875 eram de aproximadamente 18.910 Munduruku
na região do alto Tapajós. Este número, conforme sugere Coudreau (1997 [1897]), parece ter sido
superdimensionado ou sofrido uma drástica diminuição, pois duas décadas depois o autor registrou algo em
torno de 1.429 pessoas. 32 “Em 1912-1914, a diminuição da população, as demandas da economia da borracha, o declínio das
tribos inimigas na região e a influência dos missionários contribuíram para o fim da guerra. Este foi um grave
golpe para a cultura nativa, que viu desaparecer um de seus elementos centrais. Um dos principais valores
atribuídos a um homem Mundurucu era a aquisição de troféus e a captura de cativos, sendo que as maiores
cerimônias tribais se desenrolavam em torno das cabeças dos inimigos. Esta perda é sentida nos dias atuais pelos
mais velhos, os quais olham ceticamente para o futuro e nostalgicamente para o passado” (Murphy 1978 [1960]:
44).
56
região interiorana se viu drasticamente reduzida, tanto por conta dos efeitos desastrosos
provenientes da disseminação de doenças (sarampo, gripe, infecções respiratórias), como pelo
abandono das malocas tradicionais e a crescente migração para as margens dos rios. Como
veremos a seguir, o fim da guerra coincidiu com o declínio da exploração da borracha (devido
à queda de preços no mercado internacional) e com o estabelecimento de uma missão nas
margens do rio Cururu.33
Missão São Francisco do Cururu
No ano de 1908, os padres alemães Hugo Mense, Luís Wand e Crisóstomos Adams
iniciaram a exploração do rio Tapajós com o intuito de fazer contato com os índios da região
e escolher um local adequado para estabelecer uma missão entre eles (Colevatti 2006).34
Em
1910, frei Hugo alcançou o rio Cururu e conheceu João Wako'po, chefe da aldeia Capikpik.
Esta era uma residência temporária para a época de seca (conhecida como verão na
Amazônia), pois permitia melhor acesso aos seringais e facilitava manter contato com os
regatões. Ali o frei encontrara o lugar ideal para estabelecer a primeira sede da missão
franciscana no alto Tapajós. Para auxiliar na catequização, a Ordem das Irmãs Missionárias
da Imaculada Conceição enviou três freiras que seriam responsáveis pela educação das
meninas. Em 1917, frei Plácido Toelle foi designado para substituir frei Luíz Wand, que havia
se retirado por motivos de doença.
33 Conferir Rubenstein (2007) para uma análise interessante da circulação das tsantsas (cabeças-troféus reduzidas pelos Shuar, popularmente conhecidos como Jivaro), uma vez inseridas num contexto de troca com os
brancos. Ver também Steel (1999) com relação às mudanças históricas na “guerra Jivaro”, em decorrência da
introdução de bens manufaturados, como machados e espingardas. Ambos os autores registram um aumento na
caça de cabeças em função do envolvimento com o governo colonial e da aquisição de armas de fogo. As
tsantsas tornaram-se progressivamente objetos valiosos também no mundo não-indígena e passaram a ser
procuradas especialmente por colecionadores de museus europeus – onde muitas se encontram atualmente. 34 Para aquele interessado especificamente na atuação dos missionários franciscanos entre os
Munduruku, remeto à dissertação de Jayne Colevatti (2006), Ide, pois e fazeis discípulos: estudo sobre a Missão
São Francisco do Rio Cururu, na qual somos apresentados a uma rica documentação histórica abrangendo a
chegada dos primeiros padres e a maneira como uma imagem da população Munduruku foi sendo construída
através de crônicas e investigações missionárias.
57
Desde o início, as relações foram pacíficas. Os missionários dedicaram-se a aprender a
língua nativa para que pudessem exercer mais efetivamente seu trabalho de conversão.
Contudo, a localização e o isolamento no qual se encontravam levou-os a desenvolver
também outras atividades, com objetivo de tornar a missão um empreendimento auto-
sustentável. Uma das alternativas encontradas foi a venda de serviços religiosos (como
batizados, crismas, casamentos e primeira comunhão) à população local (Colevatti 2006: 41-
42). Estes eram oferecidos durante as chamadas viagens de desobriga, as quais tinham como
intuito atender os caboclos e os seringueiros de comunidades próximas, além dos Munduruku
que se encontravam em outras aldeias – nos campos ou ao longo do Cururu.35
Outra iniciativa
que os padres tiveram foi iniciar a criação de gado, um empreendimento que custou a morte
de vários animais antes de começar a dar bons resultados.
No entanto, esse primeiro estabelecimento (atualmente conhecido como Missão
Velha) apresentava algumas dificuldades. Apesar de próximo a um pequeno igarapé,
encontrava-se distante cerca de 3 a 4 km da margem do Cururu. Durante a estação das
chuvas, o caminho ficava alagado e tornava difícil a locomoção dos padres, o transporte de
mantimentos e as idas ao rio para pescar (Colevatti 2006: 43). Tendo em vista essa situação,
frei Hugo iniciou uma campanha junto à Prelazia de Santarém com o objetivo de arrecadar
dinheiro para construir uma nova sede para a missão. Em 1923, com a ajuda de frei Plácido,
conseguiram transferi-la para um novo local: na margem oposta à antiga localização e mais
próximo ao Tapajós (Colevatti 2006: 47-48).
A influência missionária foi tornando-se mais efetiva na medida em que cresceram as
relações de troca com os indígenas (Murphy 1978 [1960]). Antes da chegada dos padres, o
comércio era dominado por regatões que subiam o rio esporadicamente e pelos patrões que
monopolizavam o trabalho de extração da borracha. Com a aproximação dos missionários, os
35 Colevatti (2006: 65) sugere que as viagens de desobriga permitiram aos missionários estabelecer uma
esfera de influência bastante abrangente, constituindo uma territorialidade que extrapolava os limites da missão.
58
índios perceberam que podiam receber mais em troca de seus produtos. Os vínculos com eles
foram se estreitando de forma que, na década de 50, era comum que índios de diferentes
aldeias fizessem visitas nos finais de semana, quando aproveitavam para assistir à missa
(Murphy 1958: 8).
Colevatti (2006), através da análise da ideologia franciscana, sugere uma outra
interpretação para a atuação da missão e o envolvimento no comércio com os índios. Em
primeiro lugar, a atividade dos padres e freiras abrangia outras esferas da vida indígena que
não somente as trocas comerciais. A agricultura tinha um papel central no trabalho
missionário, pois permitia a auto-subsistência e a sedentarização dos índios. Além do cultivo
das roças, a criação de escolas indígenas e o investimento na educação de meninos e meninas
(tanto aprender a ler e escrever, como o ensino de ofícios técnicos como carpintaria,
marcenaria, costura, bordados, culinária, etc.) foram fundamentais para levar adiante a tarefa
de conversão. Direcionada especialmente às crianças, a escola funcionava como uma ponte
entre os missionários e os adultos da aldeia (pais dos alunos), conseguindo ampliar a esfera de
influência e atraindo estes para participar das outras atividades religiosas. As festas do
calendário religioso, como Natal e Páscoa, congregavam inúmeros índios na Missão. Murphy
(1958: 9) sugeriu que estas ocasiões funcionavam como equivalentes das extintas cerimônias
coletivas feitas em honra aos espíritos mães da caça.
Os padres consideravam-se os únicos capazes de conduzir os Munduruku na transição
de um estado primitivo para a civilização, o que na concepção missionária era sinônimo de
“bom cristão” (Colevatti 2006: 121). Dessa maneira, os missionários buscavam administrar o
contato protegendo os índios dos males da civilização, como a exploração econômica, o
egoísmo, o comportamento sexual imoral, o consumo de cachaça, etc. A atuação dos
franciscanos teria, por um lado, a intenção de preservar traços da cultura Munduruku,
valorizando instituições e crenças nativas que fossem compatíveis com o ideal cristão. Por
59
outro, pregava a necessidade de eliminar os traços que consideravam reprováveis, como a
guerra, o nomadismo, os conflitos internos ou qualquer outra manifestação de “selvageria”
(Colevatti 2006: 100). O problema era que os índios pareciam aderir a tudo que lhes era
ofertado, e de forma nada seletiva.
(A)deria-se às festas de santo, mas também aos bailes, à cachaça e às
mercadorias que lhes eram oferecidas em troca de suas mulheres, de modo
que o interesse dos índios não estava somente na cristandade, mas também naquilo que lhes era oferecido pelos brancos (Colevatti 2006: 75).
36
A década de 40 trouxe dificuldades para a Missão por conta da construção de um
Posto Indígena nas margens do Cururu, pouco abaixo de onde esta se localizava. O
relacionamento entre os padres e o inspetor responsável foi marcado por conflitos,
especialmente no que diz respeito às trocas econômicas realizadas com os índios. No entanto,
a década de 50 viria se mostrar menos problemática. Um acordo firmado com a Força Aérea
Brasileira (FAB) passou a garantir a reposição de mantimentos e mercadorias, o envio da
borracha coletada pelos índios e o transporte dos padres até Santarém. A pista de pouso que
foi construída na Missão São Francisco era estratégica para o exército brasileiro, pois se
encontrava em região intermediária entre a cidade de Jacareacanga e a Serra do Cachimbo,
locais onde se encontravam duas bases de monitoramento militar.37
36 Analisando as narrativas dos primeiros jesuítas no Brasil, Viveiros de Castro (2002b) identifica um tema recorrente: a dificuldade em converter os nativos. Os índios aceitavam a mensagem cristã e a atuação dos
missionários sem, contudo, abrir mão de suas práticas, vistas pelos padres como “degeneradas” – canibalismo,
nudez, guerra de vingança, bebedeiras, etc. Viveiros de Castro (2002b: 183-190) sugere que a instabilidade no
comportamento ameríndio se deve ao modo como essas sociedades se relacionam com a alteridade e, dessa
forma, constituem a si próprias. Na analogia utilizada pelo autor, o comportamento dos indígenas se assemelha
às estátuas de murta, as quais necessitam ser constantemente remodeladas, e não às estátuas de mármore que, uma vez esculpidas, conservam-se sempre iguais a si mesmas. Segundo o autor, “o problema, portanto, é
determinar o sentido desse misto de volubilidade e obstinação, docilidade e recalcitrância, entusiasmo e
indiferença com que os Tupinambá receberam a boa nova. É saber o que eram essa 'fraca memória' e essa
'deficiência da vontade' dos índios, esse crer sem fé; é compreender, enfim, o objeto desse obscuro desejo de ser
outro mas, este o mistério, segundo os próprios termos” (Viveiros de Castro 2002b: 195) 37 No final do ano de 2008, em uma conversa com Sr. Inocêncio Akay, residente da Missão e um dos
professores Munduruku mais antigos, ouvi suas recordações dos tempos da FAB como uma época melhor. Nesse
tempo, um avião fazia visita semanal, toda quinta-feira, e trazia muita mercadoria (açúcar, sal, café, facão, anzol,
linha, chumbo, roupas) encomendada pelos padres e comercializada na cantina que eles administravam. Os
produtos eram pagos com a borracha que os índios coletavam e, segundo me disse, era uma época na qual as
pessoas tinham dinheiro para comprar as coisas, além da facilidade de transporte, pois frequentemente pegavam
60
A chegada do SPI
No ano de 1941, a 2ª Inspetoria Regional do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) no
Pará fundou, nas proximidades do rio Teles Pires, o Posto Indígena Alto Tapajós – posto de
atração para índios arredios, Apiaká e Kayabi, que perambulavam pelos arredores. No ano
seguinte, 1942, um novo posto foi construído nas proximidades, adentrando o rio Cururu, um
dos afluentes do rio Tapajós. O local escolhido foi a então aldeia Apompê, que atualmente se
chama Waro Apompo, mas é popularmente conhecida como Posto Munduruku. Este ficou sob
administração do inspetor João Batista Chuvas, figura que se tornou lendária na região.
Condizente com as primeiras décadas de atuação do SPI, marcadas por uma orientação de
assistência e proteção, o Posto Indígena Munduruku buscava auxiliar no processo de
assimilação dos índios à sociedade brasileira. Considerava que estes viveriam um “estado
transitório” e, devidamente tutelados, tornar-se-iam aptos a serem, futuramente, incorporados
ao contingente de trabalhadores nacionais (Ramos 2000: 131-134).38
Além de incentivar (e
controlar) a participação dos Munduruku na economia local, o posto contou com a instalação
de uma escola que tinha como objetivo ensinar o português em detrimento da língua indígena,
além de disseminar o sentimento de nacionalidade através de símbolos patrióticos.39
Dessa
forma, junto com o ensino da língua nacional, a “Escola Infantil Apompê” fornecia uma
carona nos aviões. Hoje em dia tudo é mais difícil, contou, pois quem não tem um emprego (como agente de
saúde, professor ou aposentado) fica sem fonte de renda e não pode comprar o que precisa. Sr. Inocêncio também
comentou que depois da borracha muitos se envolveram no garimpo, mas não foi tão bom quanto nos “tempos
da borracha”. Dessa forma, o professor nos apresenta uma visão alternativa ao período da borracha como uma
época de exploração e demonstra que, de uma perspectiva indígena, este foi um período de fartura e fácil acesso aos bens necessários. 38 Segundo Colevatti, “nesse ponto que podemos observar a diferença nos projetos de inserção dos
missionários e do SPI: ao passo que os primeiros constituíram-se como uma instância final de contato entre os
índios e o mundo dos brancos, o posto, por outro lado, apoiou-se em um modelo de atuação no qual exercia o
papel de agente de mediação e controle da mão de obra e da produção indígena” (2006: 131) 39 Em um de seus relatórios, o inspetor registra que “os mundurucús são nacionais, porque nasceram no
Brasil, mas não que tenham os sentimentos de brasilidade que deviam ter. Quando junto dos missionários da
Missão Católica aleman, não falam portuguez, sempre de preferência tratam de seus negócios, falando na gíria,
isto porque os padres assim preferem. E quando em contato com os negociantes, estes também falam a gíria,
fazendo contudo que falem alguma coisa em portuguez, motivo por que alguns deles falam algumas palavras na
nossa língua” (J. B. Chuvas apud Ramos 2000: 143).
61
educação militar baseada em modos de disciplina e hierarquia da qual as mulheres (tanto
professoras como alunas) estavam excluídas (Ramos 2000: 143).
Uma das preocupações de Chuvas era monitorar o comércio da região, especialmente
no que dizia respeito à Missão São Francisco e à empresa seringalista José Antunes & Cia.
Rapidamente o posto adquiriu funções comerciais e engajou-se na comercialização da
borracha. Sua atuação equiparava-se a dos patrões locais e suas atividades não se restringiam
aos índios, estendendo-se aos habitantes regionais (Arnaud 1989: 239). Durante a Segunda
Guerra Mundial houve um novo boom da borracha e, vendida a altas cifras no mercado
internacional, os índios se envolveram ainda mais no trabalho de extração e comercialização
do látex.
Desde a instalação do posto, a relação travada entre o inspetor e os missionários foi
conflituosa, especialmente por ocasião da Segunda Guerra Mundial, tendo em vista a
nacionalidade alemã dos padres.40
A presença estável de uma missão religiosa incomodava o
administrador do posto e opunha-se à proposta do órgão indigenista, que era de integrar os
índios ao Estado Nacional (Ramos 2000: 133). Além dos franciscanos, Chuvas envolveu-se
em conflitos com os seringalistas locais. Em uma acusação enviada pela empresa Alto
Tapajós S.A. à 2ª Inspetoria Regional, registrava-se a queixa de que o posto estaria
negociando com seus fregueses e estabelecendo-se como concorrente comercial na região
(Arnaud 1989: 239-241).
Em 1956, o SPI passou por reestruturações internas, as quais acarretaram no
afastamento de Chuvas da administração do Posto Munduruku. Uma inspetoria para verificar
as condições do posto apontou-o como estando demasiado envolvido com a comercialização
40 Tanto a Missão quanto o Posto Indígena, enxergavam um ao outro como explorador comercial que
atuaria nos moldes dos seringalistas e regatões locais, enquanto concebiam a si próprios como os mais
qualificados para a proteção dos índios. Para uma visão de ambos enquanto empresas comerciais, remeto o leitor
à dissertação de André Ramos (2000), “Entre a cruz e a riscadeira: catequese e empresa extrativista entre os
Mundurukú (1910-1957)”. O autor também chama atenção para o fato de que, embora tivessem modelos de
atuação diferentes, ambas as instituições colocavam em prática seu projeto de civilização por meio da idéia de
trabalho.
62
de borracha com os não-índios, ao invés de buscar estreitar as relações com os índios.
Aqueles que habitavam as regiões dos campos, por exemplo, não recebiam qualquer
atendimento. No entanto, os agentes que assumiram o lugar de Chuvas não conseguiram
manter o funcionamento do posto e este “entrou em rápida decadência, tanto no aspecto
comercial como assistencial” (Arnaud 1989: 247). Em 1962, Chuvas retornou ao Tapajós e
restabeleceu seu funcionamento também como estabelecimento comercial, mas após dois
anos se aposentou e afastou-se definitivamente do cargo.
Como vimos anteriormente, a disputa entre a Missão e o Posto Indígena,
especialmente no que diz respeito ao comércio com os índios, era acirrada. No entanto,
Ramos (2000: 182) chama atenção para o papel dos próprios Munduruku nesse fogo cruzado.
A partir de sua experiência enquanto chefe de posto na aldeia Waro Apompo, o autor sugere
que os pariwat ali presentes disputavam a condição de protetores, enquanto os índios
estabeleciam relações conforme seus próprios interesses, movendo-se frequentemente entre
os dois núcleos de civilização – a Missão e o Posto Indígena (Ramos 2000: 183).
Baseado em diversas entrevistas, Ramos (2000) apresenta uma “versão” Munduruku
para a mudança do campo para a beira dos rios. Enquanto os relatos que vimos até agora
atribuíram esse movimento migratório ao fascínio exercido pelas mercadorias, os
entrevistados do autor afirmaram que as novas aldeias foram criadas na medida em que os
chefes morriam. Na ausência de um “capitão forte” para continuar cuidando da comunidade,
era preciso encontrar outro lugar pra morar – foi assim, por exemplo, que surgiu a aldeia Sai
Cinza.41
Coincidência, ou não, Chuvas registrou que, por conta da epidemia de sarampo que
assolou a região no ano de 1942, quatro chefes de aldeias do campo morreram.
Vemos assim que a atração exercida pelo “mundo dos brancos” não residia apenas em
41 A aldeia Sai Cinza fica localizada no rio Tapajós, entre os rios Cadiriri e Cabitutu, na margem direita.
Ramos (2000) conta que havia ali um seringal controlado por um famoso patrão, Maneco Pereira. Quando este
faleceu, o local foi ocupado pelos índios, os quais formaram uma nova aldeia. Existe uma missão batista
instalada em Sai Cinza, mas não obtive dados sobre o trabalho desses missionários.
63
um interesse pelas mercadorias. Biboy Kabá, por muitos anos capitão da aldeia Cabruá e atual
“cacique geral dos Munduruku”, conta que quando ainda garoto seus pais o levaram para
fazer uma visita à Missão São Francisco. Conforme o mesmo contou para Ramos (2000:
215), essa viagem fazia parte do seu processo de educação, sendo prática comum aos
Munduruku do campo viajar até a Missão com intuito de conhecer os pariwat.
Dessa forma, podemos perceber como a relação entre Munduruku e pariwat assumiu
diversas configurações ao longo dos séculos. Inicialmente inimigos, os brancos rapidamente
tornaram-se aliados dos Munduruku. No decorrer do século XIX a presença do branco na
região se intensificou. Diversas expedições científicas penetraram nas regiões interioranas e
no curso superior do rio Tapajós (Spix & Martius 1976 [1817/1820]; Bates 1944 [1852];
Tocantins 1877; Coudreau 1997 [1897]). Destaca-se também a presença dos missionários na
região e um aumento do comércio com os comerciantes locais. O boom da borracha, na
segunda metade do século, efetivou a presença do branco na região e engajou os índios
compulsoriamente num circuito de trocas comerciais local.
A imagem construída dos Munduruku nesse período é a de índios bravos, guerreiros,
tatuados e enfeitados com elaboradas plumárias. A caça de cabeças, sua “marca registrada”,
fez fama pela região. No entanto, a partir do século XX esta entrou em declínio. A penetração
cada vez maior de regatões e exploradores da borracha, aliada à instalação da Missão São
Francisco e, posteriormente, do Posto do SPI, incentivou um movimento migratório para a
beira dos rios. Se anteriormente estes haviam se refugiado no interior do território para fugir
dos brancos, como sugere Tocantins (1877: 155), no século seguinte o movimento se
inverteu. Muitas famílias se mudaram com objetivo de estarem mais próximas dos pariwat
que, progressivamente, adentravam na região. Neste processo, muitas práticas se perderam e
muitos costumes foram modificados. Veremos a seguir as principais alterações sofridas pelos
Munduruku do Alto Tapajós até por volta da metade do século XX.
Capítulo 3
Robert Murphy: um etnógrafo entre os Munduruku
Mesmo os melhores textos etnográficos – ficções verdadeiras, sérias – são
sistemas, ou economias, de verdade. Poder e história atravessam-no de
maneira que o próprio autor não pode controlar. Assim, as verdades etnográficas são inerentemente parciais
- Clifford Geertz -
Apesar de estarem presentes nos relatos de cronistas e viajantes nos séculos XVIII e
XIX, e serem bastante conhecidos entre os antropólogos, existem poucos estudos detalhados
sobre os Munduruku. A fonte de dados etnográficos mais rica e extensa é a obra do
antropólogo norte-americano, Robert Murphy, que junto com sua esposa, Yolanda Murphy,
realizou uma pesquisa de campo no Alto Tapajós na década de 50. Na época, Murphy era
estudante de doutorado na Universidade de Chicago e sua tese, posteriormente publicada com
o título Headhunter's Heritage (Murphy 1978 [1960]), teve como objetivo analisar o processo
de mudança social e econômica entre os Munduruku.
Em seu trabalho podemos entrever a existência de duas influências principais: os
estudos de aculturação e a teoria da ecologia cultural. De acordo com Murphy (1976: 7-8), o
tema da mudança social e cultural dominou a antropologia norte-americana, especialmente
após a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se, segundo o autor, de uma imposição etnográfica e
não de uma escolha teórica, já que as populações que vinham sendo estudadas passavam
então por transformações profundas. Por outro lado, a abordagem da ecologia cultural, com
sua ênfase na relação entre meio-ambiente e sociedade, também foi bastante difundida nos
Estados Unidos, especialmente por intermédio dos trabalhos de Julian Steward (Murphy
1976: 10-11).
Para estudar o processo de mudança entre os Munduruku, Murphy (1978 [1960])
dividiu sua estadia em duas etapas: cinco meses em uma aldeia mais “conservadora” (Cabruá,
65
localizada na savana)42
, e cinco meses em uma aldeia mais “modificada” (Missão Velha,
localizada nas margens do rio Cururu)43
. Essa decisão possibilitou-lhe observar diretamente
aspectos relacionados à mudança na organização social, pois considerava que o modo de vida
na savana seria o mesmo praticado, no passado, pelos habitantes do rio Cururu (Murphy 1978
[1960]: 26).
Essa marcada distinção entre aldeias da savana e aldeias da beira do rio permitiu a
Murphy (1978 [1960]) fazer o que chamou de uma “comparação controlada”. Tal abordagem
foi inspirada no texto de Fred Eggan, “Social Anthropology and the Method of Controlled
Comparison”, publicado na American Ethonologist, em 1954. Neste, Eggan defende o uso do
método comparativo de forma controlada e aplicado em pequena escala, oferecendo como
exemplo os Hopi, uma tribo norte-americana que então se encontrava dividida em inúmeras
comunidades, diferentes entre si quanto aos padrões sócio-culturais e o grau de contato
(Eggan 1954: 758). Para expor seu modelo, o autor apresenta duas linhas de
desenvolvimentos dentro da antropologia: os estudos com ênfase na história e no processo
cultural, característicos da antropologia norte-americana; e aqueles com ênfase nos conceitos
de estrutura e de função social, típicos da antropologia social britânica. Eggan (1954) busca
conciliar as duas tendências mostrando que a incorporação dos conceitos da antropologia
social britânica permitiria um avanço nos estudos dos processos de mudança sócio-cultural.
De forma semelhante, alguns anos depois, Murphy publicou um artigo intitulado
Cultural Change (1967), no qual chamaria atenção para a necessária conexão entre estudos de
estrutura e de mudança social. Na impossibilidade de fazer uma revisão de um campo tão
vasto como o dos estudos de mudança social, o autor buscou, no referido artigo, ilustrar as
preocupações e as diferentes abordagens do problema através de quatro livros considerados
42 Murphy chama as aldeias localizadas no interior do território Munduruku de “aldeias da savana”, mas
atualmente os Munduruku costumam referir-se a elas como “aldeias do campo”. Como estou apresentando os
dados oferecidos por Murphy, utilizarei a terminologia por ele proposta. 43 Missão Velha é a aldeia na qual os franciscanos estabeleceram sua primeira sede, por volta de 1910,
tendo transferido-se alguns anos depois para uma aldeia rio acima, a atual Missão São Francisco do Rio Cururu.
66
por ele como exemplares.44
De acordo com Murphy (1967), a partir das críticas ao evolucionismo, muitos
antropólogos concentraram-se na análise de micro-mudanças como parte de um processo
histórico e não como evolução em uma escala única de desenvolvimento. Ao considerar que a
mudança poderia resultar de processos autônomos e ser produto de uma criatividade interna
ao sistema, esses estudos passaram também a recusar os postulados do difusionismo – os
quais explicavam as mudanças com base nos empréstimos e na irradiação de elementos de
uma cultura para outra.
A seguir veremos como, partindo de uma análise da estrutura social munduruku,
Murphy sugeriu que as aldeias da savana representariam um momento anterior no
desenvolvimento das aldeias do rio Cururu e, dessa maneira, construiu sua tese relacionada à
mudança social entre os Munduruku. De fato, a própria escolha do grupo deveu-se ao fato de
considerá-lo um caso privilegiado para realizar tais investigações. Na época, tinham
aproximadamente 150 anos de contato e enfrentavam mudanças importantes, derivadas
especialmente da transferência de habitat.
Savana versus rio Cururu
Desde o boom da borracha, na segunda metade do século XIX, era comum que os
habitantes da savana construíssem residências temporárias próximas aos rios. No entanto,
especialmente a partir de 1920, com o estabelecimento da Missão São Francisco (ver capítulo
2), esse processo de migração tornou-se definitivo. Tal movimento acarretou modificações
permanentes na organização social e no modo de vida: a pesca tornou-se a principal fonte de
subsistência, em detrimento da caça; a arquitetura das casas e a disposição espacial da aldeia
44 Os livros escolhidos foram: The American Indian: perspectives for the study of social change, de Fred
Eggan (1966); Tonalá: conservatism, responsibility and authority in a Mexican town, de Mary Diaz (1966);
Agricultural involution, de Clifford Geertz (1963); e The evolution of urban society, de Robert Adams (1966).
67
foram alteradas; a casa dos homens (eksa) deixou de ser construída; os rituais coletivos foram
extintos.
Como vimos no capítulo anterior, uma das principais razões atribuída à mudança para
a beira dos rios foi a facilidade de acesso às mercadorias dos brancos. Murphy (1978 [1960])
corrobora essa interpretação ao constatar que o desejo pelos bens materiais impulsionou
muitas famílias a abandonar as aldeias da savana. Contudo, apesar do aumento progressivo no
fluxo migratório, muitos Munduruku permaneceram residindo nas regiões interioranas,
situação que criou uma dicotomia acentuada entre os habitantes da savana e do rio Cururu.
Segundo o autor, aqueles que moravam nas margens do rio menosprezavam os campineiros
(habitantes da savana) por não terem roupas, serem preguiçosos, deixarem a casa suja e
dormirem com fogo sob a rede à noite.45
Simultaneamente, os moradores do Cururu nutriam
uma atitude de respeito em relação àqueles da savana, pois consideravam que estes possuíam
maior conhecimento da cultura tradicional – além de serem temidos como poderosos
feiticeiros. Por sua vez, os habitantes da savana sentiam-se desapontados por serem tratados
com indiferença pelos moradores do Cururu e a estes se referiam como pariwat, por viverem
como a população local.
As aldeias da savana, descritas por Murphy como tradicionais, eram compostas por
uma casa dos homens localizada no pátio central e cerca de três a cinco habitações ao redor,
nas quais ficavam as mulheres e as crianças. A casa dos homens era um espaço masculino,
onde os meninos passavam a residir a partir dos 12 anos (Murphy 1978 [1960]: 119). Devido
ao regime matrilocal, os homens mudavam-se para a aldeia de suas esposas ao casar e
estabeleciam-se em sua respectiva eksa. Nas aldeias da savana, portanto, homens e mulheres
constituíam universos sociais separados (Murphy 1978 [1960]; Murphy & Murphy 1974).
Contudo, com a transferência para o rio Cururu a casa dos homens deixou de ser construída e
45 De acordo com Murphy (1978 [1960]), os missionários teriam influenciado a adoção de muitos desses
estereótipos e, com isso, persuadido os habitantes do Cururu a abandonar suas práticas “tradicionais”.
68
as residências passaram a ser constituídas basicamente por famílias nucleares, as quais se
tornaram a base econômica em detrimento da família estendida da savana. Esta nova
disposição alterou profundamente a organização do trabalho na aldeia.
Com a extinção da eksa, os homens passaram a residir junto com suas esposas e
contribuir para a execução das tarefas domésticas, como a manufatura da farinha e a limpeza
da roça. Murphy e Murphy (1974: 138) relatam que tais mudanças foram muito bem
recebidas pelas mulheres, as quais consideravam a vida melhor às margens do Cururu.
Por mais triste que seja para o antropólogo, e por mais insatisfeitos que
fiquem os homens Mundurucú, as mulheres preferem a vida nas aldeias do
Cururu em detrimento daquela que levavam nas comunidades da savana (...) suas razões para essa preferência são simples e diretas: os homens na savana
são preguiçosos, não ajudam suas mulheres e nem compram coisas para elas
(Murphy & Murphy 1974: 187)
A perspectiva das mulheres quanto às mudanças sofridas toca num ponto importante:
enquanto os homens mais velhos mantinham uma atitude nostálgica frente às alterações,
lamentando que os jovens não demonstrassem interesse em perpetuar os ensinamentos e as
práticas tradicionais, nenhuma mulher manifestou queixa semelhante.
Os homens Mundurucú se alegravam ao lembrar-se do passado como um
tempo de valor e de força, onde a vida era mais abundante, onde os homens
se relacionavam com os espíritos protetores e estes influenciavam na vida da
comunidade. As mulheres, por outro lado, nunca tinham nada a dizer a respeito dos “bons e velhos tempos”; de fato, elas raramente falavam sobre o
passado. Eram os homens quem lamentavam o fim dos ciclos rituais, o
esquecimento dos mitos e das histórias, e a passagem para um futuro dominado por forças estrangeiras. Muitos aceitavam essa situação como
inevitável, poucos como desejável. As mulheres, ao contrário, nunca nos
exprimiram o menor ressentimento com relação à perda dos costumes
antigos (Murphy & Murphy 1974: 180-181)
Vemos que, além de não demonstrar a mesma inclinação conservadora dos homens, as
mulheres foram importantes agentes na promoção das mudanças (Murphy & Murphy 1974:
202).46
O contato com os brancos trouxera consigo o acesso a um mundo de mercadorias, que
46 No livro Women of the Forest (1974), Robert e Yolanda Murphy analisam o papel das mulheres na
sociedade Munduruku. O tema central é a disparidade entre uma ideologia masculina da dominação e a maneira
69
parecia exercer fascínio ainda maior sobre as mulheres do que sobre os homens. Estas
passaram a estimular seus maridos a mudar para as margens dos rios, onde teriam acesso mais
fácil a esses bens, além de poderem se engajar efetivamente na coleta da borracha – na época,
a principal forma de obter os objetos que desejavam.
Contudo, a assunção de que as mudanças em andamento nas margens do Cururu
seriam o “futuro” das comunidades da savana é questionável. Na medida em que põe em jogo
uma noção de passado e futuro como duas etapas estabelecidas em um processo único e
determinado, o autor nos apresenta uma concepção linear da história e do processo de
transformação social. Murphy (1978 [1960]) argumenta não ter utilizado um método de
análise comum aos estudos de aculturação, ou seja, comparar o antes (prévio à chegada dos
brancos) e o depois (estado atual). No entanto, vemos que sua estratégia acabou substituindo
esse esquema comparativo diacrônico por uma análise comparativa sincrônica – aldeias da
savana versus aldeias do Cururu.
Ainda assim, detendo-nos na análise de Murphy, veremos que não se trata de um típico
estudo de aculturação. Influenciado pelo estrutural-funcionalismo por um lado, e pelo
marxismo, por outro, sua percepção era de que “a direção da mudança havia sido
profundamente influenciada pela estrutura da sociedade Mundurucú” (Murphy 1978 [1960]:
180). De acordo com o autor, o estabelecimento de relações com a sociedade envolvente
constituiu uma de suas principais fontes de mudança. No entanto, ao supor que estas seriam
fruto exclusivo do contato, a perspectiva aculturativa teria se limitado a relatar maneiras pelas
quais elementos culturais externos foram aceitos e incorporados por povos nativos (Murphy
como efetivamente se estrutura a relação entre homens e mulheres na vida diária. “A ideologia da dominação dos
homens sobre as mulheres perpassa os ritos e os mitos, mas não é evidente no cotidiano” (Murphy & Murphy
1974: 160). Segundo os autores, essa disparidade ocorreria por tratar-se de uma sociedade que valorizava as
habilidades masculinas, como a caça e a guerra, mas depositava nas mulheres o controle da vida familiar, a
distribuição da comida, o cuidado com as crianças, entre outros. “As mulheres vêem a si próprias como
separadas dos homens, e elas tem um forte senso de sua identidade enquanto mulher” (Murphy & Murphy 1974:
139). Dessa maneira, através do trabalho coletivo e dos laços de solidariedade (fortalecidos pelo regime de
matrilocalidade) os vínculos de cooperação estruturariam a vida das mulheres como um universo distinto do
masculino.
70
1978 [1960]: 191).
Para o autor, não basta constatar que houve modificações. É preciso apreender o
processo, a dinâmica de mudança própria a cada sociedade, o que, por sua vez, exige
considerar a dimensão histórica e estrutural envolvida nesse movimento. Segundo Murphy, “o
sistema social Mundurucú passou por grandes transformações, e é impossível entendê-lo
completamente até que se tenha algum conhecimento do que foi no passado, ao menos no que
diz respeito às suas principais instituições” (1978 [1960]: 178). Dessa forma, o autor
estabelece a necessidade de conhecer o passado do grupo para explicar aspectos de sua
organização atual.
No entanto, para atingir tal objetivo, Murphy confere uma idéia de autenticidade ao
passado, como se este abrigasse a essência de um modo de ser Munduruku. Comentando
sobre aqueles que permaneceram residindo em aldeias na savana, o autor diz que “mantêm um
modo de vida que é distintivamente Mundurucú: uma cultura modificada, uma estrutura social
modificada, mas geneticamente enraizada no passado Mundurucú” (Murphy 1978 [1960]:
148). Dessa maneira, ao assumir que as aldeias da savana são tradicionais, pois permaneceram
relativamente inalteradas face ao contato, Murphy reitera a divisão entre tradicional e
aculturado.
Apesar de ser inegável que, na época em que Murphy esteve no Alto Tapajós, a
presença dos brancos era muito mais intensa do que nas décadas anteriores, parece que o autor
não atribuiu a devida importância ao fato de que os Munduruku já travavam relação com os
brancos desde o final do século XVIII. Como vimos, no século XIX essa relação intensificou-
se e, no século XX, a presença dos brancos na região tornou-se permanente. Se as mudanças
já estavam em curso há décadas, torna-se difícil pensar na existência de um habitat que pode
ser tido como “tradicional”.47
47
Em uma breve passagem, Murphy menciona que os Munduruku da savana não podem ser tidos como
representantes de uma “cultura aborígene”, pois estes também foram afetados pelo contato com os brancos. O
71
Conforme mencionado no capítulo anterior, a concentração dos Munduruku na região
do Alto Tapajós é relativamente recente (séc. XIX) e fruto do avanço das frentes de expansão.
No mapa etno-histórico elaborado por Curt Nimuendajú (1944), notam-se diversos registros
dos Munduruku, feitos ao longo do século XIX e XX, espalhados por uma vasta região entre
os rios Madeira e Tapajós [anexo III]. As datas nas quais foram assinalados indicam um
deslocamento progressivo em direção às cabeceiras do rio Tapajós. No entanto, Murphy
sugere um movimento inverso:
os Mundurucú eram originalmente uma tribo autônoma que tinha pouca, ou
nenhuma, relação política com outros grupos nativos. No final do século
XVIII, quando foram primeiramente contatados pelos brancos, ocupavam o território a oeste do rio Tapajós [a região descrita como tradicional
atualmente]. A penetração no baixo curso dos rios Madeira e Tapajós foi
resultado de uma migração que ocorreu após o contato (1978 [1960]: 7).
A intensa mobilidade descrita pelos cronistas e viajantes também atesta a dificuldade
em delimitar um território tradicional que fosse habitado pelos Munduruku. Tocantins (1877),
por exemplo, nota que este correspondia à savana mas, por outro lado, registra que aqueles
que permaneciam vivendo nas aldeias do interior faziam-no para evitar contato com os
brancos. Uma informação que nos permite pensar que o confinamento nessa região, hoje
descrita como tradicional, é na verdade fruto de um processo histórico de deslocamento
territorial.
Esses dados são importantes, pois ressaltam as dificuldades envolvidas na afirmação
de que a organização das aldeias na savana seria tradicional, espelho de um passado
Munduruku. De fato, nessas aldeias Murphy encontrou características que remetem a um
modo de vida mais antigo. No entanto, isso não implica que esta tenha sido, desde sempre, a
organização de uma aldeia Munduruku. A existência de uma aldeia circular com casa dos
homens no centro, por exemplo, lança dúvida sobre a idéia de que essa seria uma
autor reitera que as aldeias na savana certamente não são as mesmas que há cento e cinquenta anos, mas ainda
assim estão mais próximas de uma identidade Mundurucú do que as aldeias do rio Cururu (Murphy 1978 [1960]:
11). Dessa forma, Murphy dá a entender que existiriam certos Munduruku mais autênticos que outros.
72
característica imemorial do grupo, já que esse tipo de composição espacial não é comum entre
grupos Tupi.
Outra peculiaridade a ser mencionada é a existência do conjunto de flautas sagradas
(karökö) associada à casa dos homens. Segundo Chaumeil (2007), a área de distribuição
destes aerofones se concentra no noroeste da Amazônia (desde a região do Putumayo-Caquetá
até o alto Rio Negro), no médio Orinoco, e, distante dali, no Alto Xingu. O fato de existirem
flautas sagradas no seio da comunidade Munduruku, localizada no sudoeste do Pará, nos
permite questionar se itens tidos como tradicionais não seriam, na verdade, produto de uma
série de transformações e contatos inter-tribais que viriam ocorrendo desde antes da chegada
dos brancos.
Por fim, considero que a tese principal de Murphy (1978 [1960]), na qual consta que,
no passado, os Munduruku teriam sido patrilocais e patrilineares, constitui outro argumento
que contraria a idéia de que as aldeias da savana representariam a organização tradicional da
sociedade. A própria hipótese do autor aponta para um sistema em constante movimento e
transformação, inviabilizando cristalizar a essência da sociedade Munduruku em um passado
tradicional. Conforme sugere Fausto (2001: 175), uma forma social não é uma constante
estática, mas uma construção histórica particular. A seguir, veremos como Murphy construiu
seu argumento a respeito da mudança no regime de residência na sociedade munduruku.
Patri- versus Matri-
Uma das características que mais chamou a atenção de Murphy (1956, 1978 [1960])
foi a existência de um regime “cruzado” de descendência patrilinear com residência
predominantemente matrilocal.48
Segundo o autor, os Munduruku dividiam-se em 38 clãs
48 A única exceção ocorria na família do chefe, pois seus filhos, tanto homens quanto mulheres,
costumavam permanecer na aldeia após o casamento. Tal fato os colocava em uma posição diferenciada frente
73
patrilineares, os quais se distribuíam em duas metades exogâmicas (os vermelhos e os
brancos).49
Os membros da metade oposta eram chamados de iboiwatitit, e com eles se
mantinha um comportamento especial, marcado pela jocosidade e por prerrogativas rituais.50
Murphy (1978 [1960]) também registrou que cada clã possuía um “espírito ancestral”
homônimo e referido como tübo.
O regime de residência matrilocal, por sua vez, acarretava uma dispersão dos homens
pelo território, o que teria impossibilitado a constituição dos clãs como unidades políticas
autônomas. Por outro lado, tal configuração contribuiu para um fortalecimento dos vínculos
intercomunitários (Murphy 1957, 1978 [1960]). Dito de outra forma, a convivência na casa
dos homens teria colaborado para manter a coesão social, reforçando a solidariedade
masculina, ao mesmo tempo em que teria inibido a manifestação de conflitos internos.
Segundo o autor,
os Mundurucú da savana não brigam entre si e mantêm a aparência externa
de solidariedade e cooperação. Mas sua sociedade é extremamente
vulnerável ao faccionalismo e à hostilidade; a coesão social é precária e aborrecimentos são motivos importantes para mudar-se da aldeia (Murphy
1978 [1960]: 131).
aos outros homens da aldeia, o que, por sua vez, propiciava o surgimento de rivalidades, e, em situações de
conflitos internos, era comum que a família do chefe fosse alvo de acusações de feitiçaria (Murphy 1956: 426). 49 Murphy (1956: 418) listou 38 clãs, sendo que 16 pertenciam à metade vermelha e 22 à metade branca.
Tratava-se de nomes epônimos de plantas, animais ou pássaros, com os quais não se mantinha nenhuma relação
especial. Já Barbosa Rodrigues (1882: 28) menciona a existência de três “divisões ou famílias” que se
distinguiam entre si pelas cores dos trajes. Estas seriam, segundo o autor, as famílias: Ipapacate (vermelha),
Aririchá (branca) e Iasumpaguate (preta). “Na primeira, nos seus enfeites, predomina a côr vermelha; na
segunda, a amarella, e na terceira, a azul, cores das pennas de varias espécies de araras, que para esse fim criam”
(Barbosa Rodrigues 1882: 28). Apesar de não haver menção a essa terceira divisão nos trabalhos de Murphy, o
dado parece relevante. Nas imagens dos objetos Munduruku armazenados na coleção etnográfica do Museu
Nacional [figuras 6, 7, 8, e 9] podemos perceber a utilização de plumária nas cores vermelha, amarela, preta e
azul, permitindo-nos questionar se, em um passado remoto, não teriam existido outras divisões significativas no seio da sociedade Munduruku (ver Nascimento 2009: 73). 50 Murphy & Murphy (1974: 138-139) mencionaram a existência de uma hostilidade entre os sexos, a
qual se tornava aparente nas relações jocosas estabelecidas em muitos rituais, como a prática de jogar água um
no outro durante a pesca com timbó ou a captura de um membro da metade oposta nas danças rituais. O
iboiwatitit também representava um papel importante nos rituais funerários. Quando um guerreiro era morto, por
exemplo, seu iboiwatitit tinha obrigação de enterrá-lo, mesmo que simbolicamente. Na impossibilidade de
resgatar o corpo, trazia-se de volta o úmero do morto. Já as mulheres, quando se tornavam viúvas, tinham os
cabelos cortados por um homem da metade oposta e observavam um luto que se estendia por vários meses
(Murphy 1958). Murphy aponta para a existência de um “antagonismo ritual entre metades” (1958: 53). No
entanto, tais exemplos mostram que os papéis representados pelas metades não eram simplesmente de rivalidade
e oposição, como sugere o autor, mas também de complementaridade.
74
Para Murphy (1957), a ausência de mecanismos internos de liberação de tensão teria
contribuído para o desenvolvimento da guerra. Em suas palavras, a guerra funcionaria como
uma “válvula de escape”, um mecanismo de preservação e de fortalecimento da unidade tribal
(Murphy 1957: 1032). A conjunção de descendência patrilinear com residência matrilocal
seria a explicação para esse cenário.
Nem todos os grupos matrilocais reprimem a agressão na mesma medida em
que o fazem os Mundurucú; tampouco são igualmente guerreiros. A ênfase
na coesão social e o direcionamento externo da agressão provêm da persistência de clãs patrilineares em uma sociedade matrilocal. (...) A guerra,
podemos concluir, é um meio especialmente efetivo de promover coesão
social, pois se trata de uma ocasião na qual os membros de uma sociedade se
unem, apesar das diferenças faccionais, em função de um objetivo comum (Murphy 1957: 1034)
Contudo, para Murphy (1956, 1957, 1978 [1960]), essa combinação seria algo recente
na história do grupo, pois no passado os Munduruku teriam sido patrilineares e patrilocais.
Com esta hipótese em mente, o autor propôs que o engajamento progressivo nas trocas
comerciais com os brancos teria conduzido a uma reestruturação interna e alterado
profundamente os padrões de organização social. O consumo crescente de farinha por parte da
população local teria valorizado a mão de obra feminina e feito com que as famílias
mantivessem suas filhas em casa para fortalecer a unidade produtiva – situação que teria
terminado por conduzir à adoção da matrilocalidade (Murphy 1978 [1960]: 81). Vejamos seus
argumentos.
Em primeiro lugar, Murphy (1978 [1960]) constatou a existência de subdivisões
internas a cada clã, as quais chamou de subclãs. Segundo o autor, este dado indicaria que, no
passado, os Munduruku passaram por um processo de expansão populacional, o qual teria
acarretado uma segmentação interna. Esse processo, por sua vez, seria possível apenas em
sociedades nas quais houvesse clãs coesos e localizados geograficamente, o que se daria
apenas se os Munduruku fossem patrilocais. Além disto, Murphy (1978 [1960]: 74) alega que
o fato do termo para clã (diwat) ser traduzido como “habitantes do rio” indicaria que os clãs
75
eram, originalmente, entidades situadas em um determinado local, ao invés de grupos
dispersos entre as aldeias.
Outro argumento fornecido pelo autor diz respeito às flautas sagradas karökö.
Composto por três flautas, cada conjunto abrigava as seguintes “classes de espíritos”: o tubö,
espírito ancestral do clã da pessoa que o fabricou, o ibiunbök, a alma,51
e os karökö ejewot,
um conjunto de espíritos companheiros das flautas (Murphy 1978 [1960]: 75). Esses espíritos
tinham que ser alimentados e os instrumentos deviam ser tocados com frequência,
especialmente ao cair da noite. Antigamente eram tocados diariamente, mas Murphy (1958)
conta que durante sua pesquisa esta era uma prática presente apenas nas aldeias da savana, e
mesmo ali o emprego dos karökö se dava cada vez com menos regularidade.52
Os instrumentos eram considerados posse do clã da pessoa que o fabricou, pois
abrigavam o mesmo tubö. No entanto, devido à estrutura dispersa dos clãs, acabavam sendo
propriedade da aldeia e podiam ser tocados por qualquer homem que assim o desejasse. “Essa
anomalia”, diz Murphy (1978 [1960]: 76) “só poderia ser resolvida caso o clã fosse uma
unidade localizada, ou tivesse um núcleo geográfico”. Segundo o autor, na época em que a
residência era patrilocal, clã e aldeia coincidiam em uma mesma unidade e ambos recebiam a
proteção do karökö. Com a mudança de regime, a proteção teria passado a se direcionar
unicamente para a aldeia, não mais para o clã ao qual o próprio instrumento pertenceria. Em
suma, para Murphy, “a indicação de posse do karökö por parte dos clãs e a localidade
implícita na palavra designada para clã sugerem que a regra de residência matrilocal não é tão
antiga e foi precedida pela patrilocalidade” (1978 [1960]: 76).
51 Segundo Murphy (1958), os Munduruku acreditavam que todos os humanos, animais, peixes e plantas
domesticadas possuíam uma alma – ibiunbök. Quando um animal morria, por exemplo, sua alma seguia para a
“terra da caça” onde se transformava e passava a viver como gente. Já os humanos possuíam dois tipos de
ibiunbök: uma “alma verdadeira” e uma que é a sombra ou o reflexo da pessoa (Murphy 1958: 12-28, 61-63). 52 Os instrumentos ficavam guardados em um compartimento especial na casa dos homens e não
podiam, em hipótese alguma, ser vistos pelas mulheres. No mito de origem, consta que foram descobertos pelas
mulheres, mas os homens os usurparam e desde então elas são proibidas de vê-los. De acordo com Murphy
(1958), no passado, realizava-se anualmente uma grande festa para os espíritos do karökö. Havia comida e
bebida em abundância e os instrumentos eram tocados durante toda a noite.
76
Apesar das justificativas apresentadas, essa teoria mostrou-se frágil. Murphy não
possui nenhum relato de informante ou registro histórico que corrobore sua hipótese.
“Matrilocalidade era o único modo de residência que mesmo o Mundurucú mais velho podia
se lembrar, e não havia nenhuma memória tradicional de uma patrilocalidade prévia”
(Murphy 1978 [1960]: 80). Segundo suas estimativas, a mudança da patrilocalidade para a
matrilocalidade teria ocorrido na primeira metade do século XIX, e só poderia ser entendida
como um resultado das mudanças decorrentes do contato (Murphy 1956: 414; 1957: 1031;
1978 [1960]: 80).
A ousadia da interpretação suscitou polêmica na época (ver Brown 1957 e Wilson
1958). Anos mais tarde, Alcida Ramos (1978) retomou o trabalho de Murphy para
desconstruir seus argumentos. A combinação de patrilinearidade com matrilocalidade não
seria uma exclusividade dos Munduruku, alega Ramos. Esta mesma composição seria
encontrada, por exemplo, entre os Parintintin, Xavante, Tapirapé, ou Sanumá – estes últimos
estudados pela própria autora (Ramos 1978: 679). Além do mais, segundo Ramos (1978:
678), o fato do termo para clã (diwat) ser traduzido como “habitantes do rio” não implica que
estes tenham sido entidades localizadas geograficamente, como sugeriu Murphy. Ao invés
disto, este fato indicaria a condição dos Munduruku enquanto índios que habitam as margens
dos rios. Conforme Lévi-Strauss (apud Ramos 1978:678) já havia dito, sistemas de
nominação são códigos classificatórios e não representam, necessariamente, uma descrição da
realidade. Sendo assim, Ramos sugere que os nomes dos clãs estariam, provavelmente,
relacionados à mitologia do grupo e não à ocupação histórica de determinadas localidades.
Já a hipótese de que haveria subdivisões internas aos clãs é difícil de ser sustentada,
pois dentre os trinta e oito clãs, Murphy (1978 [1960]: 77) constata a existência de duas
seções em apenas quatro. Tampouco existiriam evidências concretas de que os direitos de
posse sobre o karökö pertenceriam ao clã e não à aldeia, pois o próprio autor afirma que “os
77
instrumentos era tocados por homens, de qualquer clã ou metade, que vivessem na aldeia, ou
por qualquer homem Mundurucú que estivesse de passagem” (Murphy 1978[1960]: 75).
Dessa forma, Ramos (1978: 679) sugere que a informação relevante é o fato de que “as
flautas deveriam ser tocadas e alimentadas por homens (ao invés de mulheres)”. Contrariando
a interpretação de Murphy, a autora sugere que não há nenhuma anomalia no fato do karökö
abrigar os espíritos ancestrais de um determinado clã, mas ficar sob os cuidados de homens
de outros clãs. Trata-se “de uma possibilidade perfeitamente lógica e prática”, diz (Ramos
1978: 679).
A autora também refuta a interpretação de que vínculos de consangüinidade
facilitariam o trabalho cooperativo entre as mulheres e fortaleceriam a aldeia enquanto
unidade produtiva. Segundo ela,
o argumento de que a eficiência na produção econômica aumenta pelo fato
dos grupos de trabalho serem constituídos por indivíduos relacionados por
vínculos de consanguinidade é insuficiente porque o leitor não sabe muito sobre a natureza da relação entre consangüíneos e afins entre os Munduruku
(Ramos 1978: 679).
Por fim, tampouco haveria razões para supor que a harmonia encontrada nas aldeias
Munduruku seria função de um antagonismo reprimido. De fato, o próprio poder bélico dos
Munduruku parece derivar da combinação de residência matrilocal com descendência
patrilinear. Como vimos anteriormente, Murphy alega que a mudança para a matrilocalidade
teria atribuído uma nova função à guerra, a qual teria se tornado um importante mecanismo de
coesão social e contribuído para a sobrevivência do grupo mesmo após mais de um século de
contato (Murphy 1957: 1031-1032).
Perda e transformação
Até aqui, vimos como Murphy buscou compreender as mudanças relacionadas à
78
organização social (a transferência de habitat e a hipótese da mudança no regime de
residência) em continuidade com a estrutura social Munduruku. Tais modificações foram lidas
como transformações de um sistema que opera em interação com o exterior e conforme uma
dinâmica interna própria. No entanto, os aspectos relacionados às práticas rituais tiveram um
tratamento diferente. Na análise de Murphy, estes foram descritos como uma esfera da vida
Munduruku que estaria se perdendo definitivamente, descartando possibilidades de criações
e/ou reinvenções. Ao conjecturar a respeito do futuro das aldeias do rio Cururu, Murphy
previu uma inevitável incorporação à sociedade envolvente. Segundo ele, nestas aldeias, “as
bases tradicionais de integração já se perderam e a mudança social não tem outra direção”
(Murphy 1978 [1960]: 177).
Dos inúmeros rituais praticados pelos Munduruku, boa parte havia sido abandonada na
época de Murphy. Contudo, apesar de se encontrarem há mais de quatro décadas em contato
com os missionários franciscanos, o autor sugere que as modificações observadas não eram
resultado dessa influência, mas sim reflexo de mudanças estruturais mais gerais – como a
substituição da caça pela pesca, o fim da guerra, a diminuição da população, o abandono das
aldeias na savana, a adoção de uma produção econômica individualizada, entre outras.
Ainda que os missionários tivessem enorme prestígio entre os índios, o esforço no
sentido de catequizá-los teria encontrado pouca acolhida. “Uma característica interessante dos
Mundurucú que habitam as aldeias no Cururu é a indiferença generalizada que manifestam
frente às crenças cristãs, apesar de não haver nenhum problema em aceitar a Missão como
instituição”, comenta Murphy (1958: 9).53
Dessa forma, deparamo-nos com uma situação na
qual crenças nativas e cristãs coexistem sem contradição. O xamanismo, ou as acusações de
feitiçaria, por exemplo, continuavam amplamente operantes mesmo no contexto de convívio
53 Os dados coletados por Murphy (1958) são ricos para pensar o tema da conversão indígena. Noções
como pecado original ou inferno, por exemplo, não eram consideradas válidas para um indivíduo Munduruku.
“Eles raramente duvidam do que os padres falam, já que estes são considerados homens sábios e sinceros. No
entanto, seus ensinamentos são dos brancos e, portanto, válidos apenas para estes” (Murphy 1958: 10).
79
com os missionários. Além das curas xamânicas, Murphy (1958: 133-135) teve oportunidade
de presenciar as cerimônias das flautas sagradas e as cerimônias para recuperação das almas
roubadas.54
Os demais rituais foram reconstruídos a partir da memória dos informantes.
No entanto, da mesma forma pela qual Murphy buscou entender as mudanças na
organização social, a documentação dos rituais pode contribuir para pensar o “mundo vivido”
Munduruku como um sistema de transformações (ver Gow 2001). Se olharmos atentamente,
veremos que boa parte dos rituais envolvia um processo transformacional. Na cerimônia de
iniciação masculina (o Duparíp), por exemplo, jovens garotos eram enfeitados como jacamins
e levados para a casa dos homens, de onde só podiam sair após o encerramento do ciclo ritual.
Nestas ocasiões, xamãs poderosos transformavam pessoas em animais, como a anta ou o
veado. Aqueles que passavam pela temida experiência tornavam-se pessoas importantes
devido ao vínculo estabelecido com o reino dos animais (Murphy 1958: 52-53).
A transformação de homens em animais também ocorria durante o Dajearuparip,
ritual realizado com propósito de agradar os espíritos mãe da caça.55
Baseado nas informações
coletadas, Murphy (1958: 58-61) sugere que o Dajearuparip durava cerca de dez dias e teria
desaparecido por volta de 1945. Durante vários dias, um grupo de cinco homens, cobertos
com folhas de buriti, dançava e cantava ao redor da aldeia, enquanto o restante permanecia na
54 Segundo Murphy (1958), apesar do destino da alma após a morte ser considerado agradável, pois lá se
vivia como antigamente, antes da chegada dos brancos, os Munduruku não pareciam se importar com isso. A
verdadeira preocupação dizia respeito aos caminhos trilhados pela alma em vida, já que esta era bastante
vulnerável a ataques e raptos. Assim, conforme nos relata o autor, quando uma pessoa adoecia, corria o risco de
que sua alma deixasse o corpo e saísse vagando por aí, o que constituía fonte de ameaça para outras pessoas na
aldeia. Ou ainda, os espíritos mãe da caça poderiam roubá-la e a única forma de trazê-la de volta era através de
um ritual xamânico. Este era presidido por quatro xamãs e acompanhado por dois homens que tivessem recebido determinadas canções através de sonhos. A alma roubada passava de um animal para outro e apenas retornava ao
corpo da pessoa doente quando entoassem a canção específica para o animal que tivesse a posse da alma. Esse
processo poderia demorar muito tempo, já que nem o xamã nem os cantores sabiam qual animal estava com a
alma roubada. 55 Uma das principais relações com o “mundo dos animais” se dava com o putcha ši, espírito mãe da
caça. Boa parte dos rituais consistia em alimentar esses espíritos e, dessa forma, garantir o bem-estar da
comunidade com uma provisão adequada de animais de caça. Todos na aldeia deviam demonstrar respeito e
cuidar para não agredir esses espíritos, do contrário eles se vingariam enviando objetos malignos, causando
acidentes e roubando a alma dos humanos. Além do putcha ši, cada animal de caça possuía um espírito-mãe
próprio que deveria ser alimentado e respeitado: biú ši (mãe da anta), daje ši (mãe do pecari), rapsem ši (mãe do
veado) e taué ši (mãe do macaco-prego) (Murphy 1958: 14-17).
80
casa dos homens, entoando canções relacionadas aos animais. O auge da cerimônia era a
convocação dos espíritos. Uma série de crânios de animais era disposta ordenadamente, em
uma fileira, dentro da casa dos homens. Em uma das pontas da fila ficava uma cabeça de anta
e, de frente para ela, duas cabeças de macaco-coatá. Um homem que conhecesse as canções
dedicadas a cada animal sentava-se diante dos crânios enfileirados. Quando os espíritos
chegavam, os xamãs sopravam fumaça de tabaco nos crânios dos animais e, inserindo um
tubo de bambu em cada um, retiravam as flechas que haviam sido alojadas por caçadores. Em
seguida, ofereciam uma bebida de mandioca aos espíritos que, apaziguados, partiam
devidamente alimentados.
Após a visita dos espíritos, os participantes permaneciam três ou quatro dias dançando
e conduzindo atividades para agradar aos animais de caça. Uma delas consistia em selecionar
dois homens que, besuntados com barro branco na testa, se comportavam como macacos
coatás. Outros homens esfregavam o barro nas bochechas e nas mãos e, dessa forma, viravam
pecaris. Eles então se organizavam em fila, estando os dois macacos na frente, e entravam na
aldeia, cada qual emitindo sons e adotando comportamentos característicos de sua espécie (os
macacos roubavam comida e faziam bagunça enquanto os pecaris grunhiam e batiam com a
“pata” no chão). Toda essa performance era acompanhada pelos cantos das mulheres que, no
final, atacavam e capturavam os homens-animais para queimá-los no fogo.
No último dia, um grupo de homens imitava a anta, pintavam-se com urucum e
jenipapo e, ao amanhecer, fugiam para a floresta. Durante todo o dia os membros do Biuši
(mães da anta), uma das sociedades masculinas munduruku, perseguiam seus iboiwatitit, os
quais, uma vez capturados, passavam a fazer parte desta sociedade. A atividade terminava ao
cair da noite, quando todos retornavam à aldeia. Nesse momento, as mulheres se escondiam e
evitavam vê-los, do contrário, seus filhos poderiam nascer com feição de anta. Na última
noite, antes dos convidados partirem, novos animais eram imitados, como a tartaruga
81
terrestre, o gafanhoto e o tucano.
Do mesmo modo, ao analisar o extenso ciclo ritual em torno da cabeça-troféu,
veremos a transformação como elemento constitutivo (Murphy 1958: 53-58). O ritual
completo durava três estações chuvosas e desenrolava-se em torno da cabeça e de seu “dono”,
que recebia o título de Dajeboiši (mãe do pecari).56
Durante todo esse período, o Dajeboiši,
bem como sua mulher, tinha que observar uma série de restrições, alimentares e sexuais, e
evitar contato com outros membros do grupo. Recluso, ele passava boa parte do dia deitado
na rede e olhando para cima, para evitar cruzar seu olhar com os demais. Tornava-se uma
pessoa poderosa e, junto com seu troféu, era responsável por agradar os espíritos mãe da caça.
Tinha a função de ir, acompanhado da cabeça, até a entrada da floresta quando uma expedição
estivesse saindo para caçar. Ao fim do ciclo ritual, o Dajeboiši podia retomar sua vida normal,
a cabeça perdia sua “eficácia mágica”, mas o guerreiro, contudo, mantinha seu título
distintivo.
Vemos, assim, como a cabeça do inimigo se transformava em um objeto poderoso e
acarretava modificações no cotidiano da aldeia. De modo semelhante, ao analisar a mitologia,
também encontraremos uma série de “histórias” que falam de transformações de homens em
animais, e vice-versa.57
56 A preparação do troféu começava ainda no retorno para casa: retiravam o cérebro, as partes moles e os
dentes da cabeça; ferviam e deixavam secar ao fogo para conservar a pele; inseriam uma corda passando pela
boca e pelo nariz e preenchiam as cavidades oculares com cera de abelha [figuras 8, 9 e 10]. O ritual dividia-se
em três fases. A primeira, chamada de Inyenborotaptam (a decoração das orelhas), tinha início assim que a
expedição retornava à aldeia. Na próxima estação chuvosa, o Dajeboiši convidava as aldeias vizinhas para a
segunda fase do ritual, o Yašegon (retirada da pele da cabeça), na qual se removia a pele e deixava o crânio
pendurado num canto da casa dos homens. Na estação seguinte vinha a terceira e última fase, o Taimetoröm (pendurar os dentes), a mais elaborada e demorada de todas. Na terceira fase, os dentes que haviam sido
extraídos da cabeça eram costurados num cinto de algodão que ficava guardado cuidadosamente na casa do
guerreiro. Durante essa fase ocorria uma importante comemoração do Darekši (mães do arco), uma “associação
de homens” cujos membros se organizavam de acordo com seu status guerreiro. No dia da chegada dos
convidados, um membro da “sociedade Muchacha” (um grupo composto por antigos Dajeboiši) dava o sinal
para que os meninos, devidamente tonsurados e pintados, fugissem para a floresta. Em seguida, os membros do
Darekši saíam em sua captura, sendo que cada um deveria capturar um garoto da metade oposta, seu iboiwatitit.
Ao retornar à aldeia todos iam para a casa do Dajeboiši, onde lhes eram servidos bebida e comida à vontade.
Após terminarem, dirigiam-se à casa dos homens, onde celebravam os feitos de guerra até o amanhecer (Murphy
1958: 53-58). 57 No livro Munduruku Religion (1958), Murphy nos apresenta um conjunto de 58 mitos. Apesar de
82
A mitologia está repleta de relatos de um tempo no qual os animais tinham
forma humana. A origem de muitas espécies é contada com base nesta
metamorfose. A situação reversa também pode ser vista, como no caso da conversão de pessoas em animais durante a cerimônia do Duparip (Murphy
1958: 133).
Segundo Murphy (1958), o cerne das crenças religiosas e dos rituais Munduruku
encontrava-se na relação dos humanos com os animais. Esta era evidenciada na importância
em alimentá-los e agradá-los, seja através da cabeça-troféu, das flautas sagradas ou das
cerimônias para recuperar almas roubadas. Os rituais eram responsáveis pela vitalidade da
cultura Munduruku e indispensáveis à integração de sua sociedade (Murphy 1958).
Existe uma consciência profunda e nostálgica entre os Mundurucú mais
velhos de que eles estão testemunhando o desaparecimento do seu modo de
vida. Todos sabem que a maior parte dos homens sábios e espertos da tribo estão mortos e os poucos que ainda persistem irão morrer em um futuro
próximo. (...) Pouco esforço tem sido feito para reinstalar aquilo que se
perdeu, pois eles vêem essa deterioração como progressiva e irreversível (Murphy 1958: 51)
De fato, as perdas foram irreparáveis. No entanto, é necessário buscar outras maneiras
de pensar a situação atual que não seja a nostalgia do passado. Conhecer costumes de um
tempo que passou é essencial, mas considerá-lo como reduto de um estado original e como
detentor de uma tradição genuína é arriscado. Conforme Fausto chamou atenção, é preciso
“pensar a transformação a partir dos próprios modos indígenas de produzir a transformação”
(2001: 29) – e os rituais praticados pelos Munduruku no passado parecem funcionar nesse
sentido.
Tendo em vista tais considerações, encerro este capítulo com alguns questionamentos.
É possível pensar o elemento transformacional, que ocupava um lugar central na vida ritual,
em outros aspectos da vida Munduruku? Como utilizar o conhecimento sobre o passado para
entender o presente? Ou ainda, o que permite, nesse processo de intenso contato com os
tratar-se de um rico material, optei por não incluí-lo neste trabalho, pois desde o início da pesquisa concentrei-
me em compreender o complexo ritual Munduruku. Espero, em ocasiões futuras, ter oportunidade de acrescentar
dados relativos à mitologia.
83
brancos, permanecer sendo Munduruku? A seguir, proponho alguns elementos para pensar
essa situação sob uma ótica alternativa à da aculturação e à da perda de identidade.
Capítulo 4
Virando branco ou... Devir-pariwat
Os Munduruku sentem que seu modo de vida só pode ser levado adiante
satisfatoriamente nas aldeias localizadas na savana. Abandonar essas
comunidades é tornar-se quase um estrangeiro
- Robert Murphy -
No presente capítulo, faço uma releitura do “caso Munduruku”, tendo como ponto de
partida a breve incursão a campo realizada no final do ano de 2008. Para tanto, irei apresentar,
em linhas gerais, elementos que me chamaram atenção durante a estadia de aproximadamente
dois meses em uma aldeia Munduruku. Foi essa experiência que despertou a curiosidade e o
desejo de estudar a relação com os brancos. Devo advertir, entretanto, que se trata antes de
uma narrativa pessoal do que uma descrição propriamente etnográfica. Em seguida, retomo a
discussão a cerca do contato entre índios e brancos sob uma ótica da transformação,
utilizando tanto o trabalho de Murphy sobre os Munduruku quanto teses de americanistas que,
de alguma forma, abordaram o mesmo tema. O objetivo é fornecer elementos para pensar uma
assertiva que, apesar de difundida na Amazônia, apenas recentemente alcançou o status de
“problema antropológico”, ou seja, a afirmativa de que “estamos virando branco”.
Impressões Etnográficas
A chegada: Jacareacanga
Quando cheguei a Jacareacanga, tinha em mãos uma autorização da FUNAI que
permitia meu ingresso na Terra Indígena Munduruku, porém, condicionada à aceitação dos
próprios índios. “Jacaré”, como é localmente conhecida, é a porta de entrada da
85
Mundurucânia. Trata-se de um pequeno município localizado às margens da Transamazônica,
no sul do estado do Pará, a cerca de 400 km de Itaituba.58
Cheguei no início do mês de
outubro, logo após o resultado das eleições municipais de 2008. O agito das campanhas e a
movimentação política ainda ressoavam pela cidade.
A primeira providência foi contatar a Associação Pusuru, organização indígena
Munduruku, com sede em Jacareacanga, criada em 1991 com objetivo de fortalecer as
reivindicações pela demarcação da terra, além da defesa de outros interesses da população
(como educação, saúde e defesa do meio ambiente).59
Minha intenção inicial era ir para a
aldeia Cabruá, localizada na região de savana, onde o casal Murphy havia estado e que,
conforme fui informada, continuava sendo uma das aldeias mais “tradicionais” [anexo IV].
No entanto, após uma delicada situação na qual me vi frente a um grupo de líderes indígenas,
preocupados com as intenções do meu trabalho e apreensivos em permitir meu acesso ao
“conhecimento dos antigos”, o pedido foi negado. Tive que me contentar com a afirmação de
que não queriam nenhum pariwat em suas aldeias, muito menos “pesquisador”. Como
alternativa, pedi autorização para ir à Missão São Francisco, aldeia às margens do rio Cururu,
na qual o casal Murphy também havia estado. Nesse caso, o processo foi mais rápido e menos
conflituoso por conta do apoio que recebi de Ademir Kaba, o qual interveio junto a uma
importante liderança da Missão, seu tio Antonio Cosme.60
58 Nas últimas décadas, com o avanço das fronteiras econômicas, a região tem experimentado muitas
mudanças. Por volta dos anos 50, uma base militar foi instalada na localidade de Jacareacanga, na época um
pequeno vilarejo. No entanto, foi a partir da década de 70, com a abertura da Transamazônica, e mais
enfaticamente na década seguinte, com a “febre do ouro”, que a região passou a atrair grande número de imigrantes. A queda do preço da borracha no mercado internacional, a instalação de balsas e a abertura de
garimpos ao longo dos rios Tapajós, das Tropas, Cabitutu, Cadiriri e Teles Pires, levaram muitos indígenas a se
envolver na extração aurífera. Em toda a região do Alto Tapajós, parece que o único rio que permaneceu
inexplorado foi o Cururu. Em 1991, Jacareacanga foi promovida à categoria de Município, o que impulsionou
ainda mais o desenvolvimento na região e lhe conferiu autonomia política. 59 http://pib.socioambiental.org/pt/povo/munduruku/801 60 A ajuda que recebi de Ademir foi fundamental nessa fase inicial. Desde o início, quando decidi
estudar os Munduruku, mantivemos contato por meio eletrônico e tive a sorte de encontrá-lo assim que cheguei a
Jacareacanga. Fiquei bastante impressionada com sua trajetória de trânsito entre os universos pariwat e
Munduruku. Ademir nasceu na aldeia Santa Cruz, próxima à Missão, e em 1992, quando tinha 14 anos, foi morar
na casa de um tio em Belém, permanecendo mais de 15 anos por lá. Na capital, concluiu seus estudos, fez
86
Durante os quinze dias que permaneci em Jacareacanga apreendi diferentes imagens
sobre os Munduruku veiculadas pela população local. Tive oportunidade de conversar com
diversas pessoas e cada um tinha uma opinião distinta a respeito dos índios que iam à cidade
com frequência. Muitos comentavam que o atual prefeito só havia sido eleito por conta da
intensa campanha feita em área indígena, demonstrando que a política local se encontra
fortemente vinculada à participação dos índios. Outros comentavam que os índios eram
bravos e se organizavam para reivindicar seus direitos, como aconteceu em ocasiões nas quais
a prefeitura atrasou os salários ou a Funasa não atendeu seus pedidos. Havia ainda aqueles
que reclamavam indignados pelo fato de os índios receberem assistência governamental,
como bolsa-escola, salário maternidade e aposentadoria, e gastarem com coisas que julgavam
não haver necessidade na aldeia – como eletrodomésticos, por exemplo.
Perdendo a cultura: as aldeias do Cururu
Cheguei à Missão São Francisco no dia 23 de outubro de 2008, pouco antes de uma
nuvem negra cobrir o céu e uma forte chuva contribuir para a elevação dos rios. Era o início
do chamado inverno na Amazônia; época de cheia, na qual os rios tornam-se facilmente
navegáveis, mas, em compensação, os peixes migram para os igarapés, causando dificuldades
alimentares para uma população que tem na pesca sua principal fonte de proteína. As crianças
que foram receber a voadeira no “porto” me conduziram à casa das Irmãs – uma construção
faculdade de Ciências Sociais e se formou antropólogo. Após mais de 10 anos sem ver sua família, Ademir
retornou para uma visita. A memória da vida na aldeia permanecia muito forte e ele me contou ter sentido
necessidade de “trabalhar pelo seu povo”. No início de 2008, Ademir voltou a viver com sua família e, desde
então, realiza uma pesquisa sobre mitos e cosmologia Munduruku. Sempre que possível, coleta as histórias dos
antigos, pois conforme afirmou, “não dá para conhecer os Munduruku sem conhecer os mitos; são eles que
dizem como se relacionar com a natureza e qual a origem das coisas”. Ademir foi o primeiro a me alertar para o
fato de que os Munduruku “mudaram muito nos últimos 10 anos, estão dependentes da civilização, só querem
saber de DVD, salgadinho e coca-cola”; dos costumes antigos preservam somente a língua, o parentesco e a
crença em feitiçaria, me contou. No entanto, nas conversas que tivemos, o que me intrigou foi perceber certa
angústia existencial, uma dificuldade em se situar – estava entre a vida na cidade e a vida na aldeia, o mundo dos
brancos e o mundo dos parentes.
87
com traços de arquitetura alemã, erguida há quase um século pelos primeiros missionários que
ali se estabeleceram.
Trata-se de uma casa grande, com dois andares, na qual, além da residência das freiras,
encontra-se uma ampla cozinha, um refeitório, a farmácia da aldeia e um alojamento para
visitantes. Nesses, ficam hospedados os pariwat que estão de passagem pela Missão, bem
como enfermeiros e técnicos da Funasa. Além da Irmã Conceição (Irmã Conci), que mora na
aldeia desde 1975, e do frei Gilberto (o paim), que está ali há cerca de 20 anos, o
estabelecimento contava no ano de 2008 com mais duas freiras, Irmã Marta e Irmã Mirna,
ambas professoras na escola da aldeia. No entanto, o fluxo de padres e, principalmente,
freiras, é grande – alguns residem muitos anos enquanto outros permanecem apenas curtas
temporadas. Parte da formação missionária das Irmãs da Imaculada Conceição é fazer um
estágio de imersão, o que exige que vivam por dois anos no seio de uma cultura diferente,
podendo ser um país na África, como a Nigéria, ou um povo indígena (o único atendido no
Brasil é os Munduruku).
Uma das maneiras que utilizei para me aproximar das pessoas na aldeia foi carregar
comigo um álbum com gravuras retiradas de livros e imagens de objetos Munduruku que hoje
se encontram em museus, com destaque para a coleção etnológica do Museu Nacional, RJ
[figuras 6, 7, 8 e 9]. Quando questionada sobre o porquê de estar ali, contava-lhes que tinha
interesse em aprender sobre os Munduruku; queria saber como viviam nos dias de hoje, já que
havia conhecido um pouco sobre eles nos livros, mas tratava-se de informações muito antigas.
A resposta ao meu discurso bem-intencionado era sempre em tom de lamentação: “ah, hoje
em dia não se vive mais como os antigos”; “os Mundurukus estão mudando, querem usar
coisa de pariwat, colocar brinco e tatuagem”; “os Munduruku só querem saber de assistir
televisão e estão esquecendo os cantos e danças dos antigos”; “hoje em dia se usa muitas
palavras em português, os Munduruku estão esquecendo a própria língua”.
88
Para Francisco de Assis Akay, professor de alfabetização na Missão, é muito
importante ensinar a língua munduruku na escola, pois muitos estão esquecendo os nomes das
plantas, das frutas e dos animais.61
O professor contou-me que, em outros lugares, como as
aldeias do rio Tapajós ou do Teles Pires, quase não se fala mais em munduruku. Segundo ele,
no rio Cabitutu já não existe peixe ou caça, e em Coatá-Laranjal (AM) já perderam tudo –
sobrenome, clã, língua... O Cururu seria o local onde ainda se preserva a língua e a cultura;
afirmação que parece interessante contrastada ao fato de que, na época em que Murphy fez
seu trabalho, as aldeias do Cururu protagonizavam a mudança de forma mais intensa.62
Por
fim, o professor ressentiu-se do fato de hoje em dia os Munduruku utilizarem muitas palavras
“emprestadas” do português, e arriscou uma ousada previsão de que, “no futuro, acho que em
2010, não vão nem ser mais índios, vai ser tudo pariwat”.
Tais constatações eram expressas em paralelo à afirmação sobre a importância de
conhecer a “tradição” e saber como viviam os antigos, preservar a língua, aprender sobre a
própria cultura e, sobretudo, estudar... para se relacionar com o pariwat sem ser enganado.
Assim, desde a primeira semana em que cheguei na Missão, chamou-me a atenção o processo
de transformação pelo qual os Munduruku vinham passando: estavam virando pariwat,
diziam... Mas, com o desenrolar dos dias, pude perceber não se tratar de um processo
61 Uma preocupação evidenciada no discurso de diversos Munduruku com quem conversei é a
incorporação de palavras “estrangeiras” no vocabulário indígena, ou seja, o uso corrente do português para se
referir a elementos tão diversos como: colher, garfo, banco, manga, melancia, escola, trabalho, associação, assembléia, capitão. Muitos alegam ter “esquecido” a pronúncia destas palavras na própria língua, o que faz com
que hoje, por falta de opção, tenham que recorrer à versão pariwat. A preocupação com a perda da língua é
interessante, pois, se por um lado incorporaram muitas palavras do português, por outro, comunicam-se entre si
majoritariamente na língua munduruku. A maioria dos homens consegue se comunicar em português, mas o
utiliza apenas para falar com pariwat, enquanto boa parte das mulheres entende o português, mas raramente o
fala.
62 Durante minha estadia na Missão São Francisco, Irmã Conceição contou-me que os padres sempre buscaram conscientizar os índios a respeito dos malefícios do garimpo, alertando-os para não permitir a entrada
das balsas de extração, pois estas iriam poluir as águas e contaminar os peixes. Parece que, realmente, as águas
do Cururu foram preservadas, a despeito do que ocorreu, por exemplo, com o rio das Tropas ou o rio Cabitutu,
os quais se encontram contaminados por mercúrio e possuem altos índices de malária – sem contar as
dificuldades alimentares por conta da escassez de peixe. Ramos (2000) também menciona que, desde o início do
século XX, pelo menos, os Munduruku dominavam o Cururu, impedindo que seringueiros não-índios
adentrassem o território e permitindo acesso apenas aos regatões com os quais tinham acordos prévios.
89
homogêneo, pois uns pareciam ser mais pariwat que outros. Foi o que apreendi da fala de
Albino Saw, capitão e pajé da aldeia Boca da Estrada, ao mencionar que a Missão era uma
aldeia muito modificada, que ali o consumo de bebida alcoólica era frequente e que se vivia
como pariwat.63
Segundo ele, havia rumores de que em breve a Missão se tornaria município,
tão grande estava. Contou-me ainda que, na época do SPI, tentaram ensinar português aos
Munduruku. No entanto, ao invés de, com isso, serem integrados à sociedade brasileira, esses
se tornaram ainda mais guerreiros, pois passaram a entender melhor os pariwat.
O mesmo tema retornou em uma conversa com o capitão da Missão Velha, Venâncio
Puxo, na qual ele me contou a importância da escola para aprender o conhecimento dos
pariwat, de modo a não ser enganado. “Os pariwat são muitos espertos”, disse.64
Venâncio
estudou até a 4ª série na escola da Missão, quando então se casou e mudou de aldeia. Só mais
tarde, quando já estava com 40 anos, voltou a estudar. Fez curso com o CIMI, em Belém;
trabalhou com os missionários do SIL, em Porto Velho; e se formou na primeira turma
Munduruku de magistério indígena.
Foi nessa época que começou a pesquisar sobre a cultura dos antigos e estudou com o
velho Biboy (considerado o cacique geral dos Munduruku), o qual lhe ensinou muitos cantos.
Boa parte desses cantos tinha como objetivo atrair e garantir a existência dos animais, mas
havia também cantos de guerra e cantos para enfraquecer pariwat, os quais, segundo ele, são
utilizados apenas em ocasiões especiais, como a Assembléia Geral Munduruku. Preocupado
63 A aldeia Boca da Estrada fica localizada próxima à fronteira da T.I. Munduruku, na região da Serra do
Cachimbo. É uma aldeia que havia sido abandonada, mas que, recentemente, após o processo de demarcação das terras, foi reativada como medida de fiscalização. Nela reside Albino Saw e sua esposa, seus filhos e netos.
Próximo dali, na região de campos e no limite do território, está a aldeia Pista Velha, onde vive apenas um dos
filhos de Albino. Geograficamente é uma aldeia mais isolada, de acesso difícil. Em uma visita que acompanhei,
ouvi os moradores se queixarem de que não recebiam apoio da comunidade, da Funasa ou da Funai.
Reivindicaram estar ali para proteger o território, já que havia rumores de avanço de madeireiros e construção de
estrada, mas se diziam abandonados pelos próprios parentes. Alguns recebiam auxílio do governo, mas não
tinham como ir periodicamente à cidade receber e fazer compras. 64 Em uma ocasião, conversando com Venâncio, mostrei-lhe o livro que trazia comigo, Munduruku
Religion, e falei sobre os rituais dos antigos que eu conhecia, porque estavam escritos ali. Ele ficou
impressionado que eu soubesse o nome daquelas festas, mas também bastante desapontado, pois havia recebido
ordens por rádio para não falar comigo sobre o “conhecimento dos antigos”.
90
com a transmissão desses cantos, Venâncio, que também é professor, os ensina na escola, para
que as crianças não se esqueçam dos antigos, pois do contrário, “os velhos morrem e tudo se
acaba, eles perdem a cultura”. A recorrência do paradigma da “perda cultural” na fala de
Venâncio é digna de nota. Segundo ele, os Munduruku já perderam a sua cultura e agora
vivem a cultura dos brancos.
Tal preocupação se expressa, por exemplo, no que diz respeito à relação entre os
clãs.65
“Antes só se casava com pessoas do outro clã, mas hoje em dia ninguém respeita mais,
e irmão casa com irmã”, disse ele. No entanto, quando o questionei sobre alguma união desse
tipo, pensou bastante e só mais tarde se lembrou que havia um casal de jovens, ali na aldeia
mesmo, ambos do “clã” vermelho, que moravam juntos. E acrescentou que “o filho deles,
coitado, vai ser assim, como pariwat”. Venâncio também me mostrou um desenho que fez do
primeiro pariwat que entrou nas terras dos munduruku, o qual identificou como sendo
Antonio Tocantins, e disse que “foi quando ele chegou que os Munduruku perderam a sua
cultura, ele deu cachaça e falou que a cultura do Munduruku não prestava, que a do pariwat
era melhor. Foi aí que a gente perdeu nossa cultura”.
Venâncio contou-me que, quando um Munduruku se casa com não-índio, é proibido
viverem juntos na aldeia “porque o pariwat é muito sabido para colocar as coisas na cabeça
dos outros, para dizer o que presta e o que não presta”. Esse comentário me deixou intrigada
com relação a um caso de pariwat que casou com uma índia Munduruku e foi plenamente
incorporado à comunidade, tendo inclusive um sobrenome bastante difundido entre a
população da Missão: Cosme. Estevão Cosme nasceu na Missão, em 1926, filho de um
paraibano. Seu pai mudou para lá na época da construção, pois como os índios “não sabiam
trabalhar”, os padres precisaram trazer muitos brancos para fazer os serviços especializados
(carpinteiro, pedreiro, marceneiro). Estevão foi criado na aldeia, a primeira língua que
65 Os clãs aos quais os Munduruku se referem são as metades exogâmicas, vermelho e branco.
Curiosamente, a palavra clã foi incorporada ao vocabulário cotidiano, mas ao fazê-lo, adquiriu novo significado.
91
aprendeu foi munduruku, e desde pequeno estudou com as Irmãs residentes na Missão; casou-
se com Maria de Lourdes Akay, irmã do antigo chefe, Francisco Akay.
Estevão e Maria de Lourdes tiveram nove filhos. Dentre estes, destacam-se duas
figuras atuantes na Missão: Antonio Cosme, forte liderança, e Wenceslau Cosme, piloto da
Funasa. Um de seus netos, Carlos Cosme, é agente de saúde na Missão e foi quem, desde o
primeiro dia, ficou “responsável” por mim. Carlos me levou com sua família a todos os
lugares e, sempre disposto a ajudar, se mostrou um verdadeiro anfitrião. Antonio esteve
ausente parte do tempo em que permaneci na aldeia, mas quando presente sempre ia me
visitar, conversar e saber como “andavam as coisas”. Wenceslau é o piloto com quem cheguei
à Missão e sempre que tinha uma visita a fazer em aldeias vizinhas me convidava para
acompanhá-lo.
Dessa forma, os vínculos mais estreitos que desenvolvi em campo foram com os
membros da família Cosme, pois esses se mostraram mais abertos que o restante dos
moradores da aldeia, os quais pareciam bastante receosos em entreter longas conversas ou me
dar demasiada atenção. Além da família Cosme, outros pariwat parecem ter sido plenamente
incorporados, como os Paleci (Apiaká), Manhuari (peruanos), ou a família do professor
Rainério Ferreira, cujo avô foi contemporâneo do pai de Estevão.66
A presença constante e o relacionamento contínuo com os pariwat foram
progressivamente atraindo minha atenção. O fluxo de brancos que passa pela missão é
relativamente grande, especialmente se comparado às outras aldeias no Cururu. Além dos
residentes (como o frei e as Irmãs), passavam periodicamente por lá as técnicas de
enfermagem, enfermeiras, agentes de saneamento, agente de endemias, Careca (o regatão que
faz uma visita mensal à comunidade) e, ocasionalmente, técnicos da operadora telefônica,
engenheiro, pedreiros, linguísta, prefeito, funcionários da Funai, professores e... antropólogos.
66 Não consegui descobrir como, ou por que, mas recentemente Rainério mudou seu sobrenome para
Paygõ, sobrenome que é o mesmo da mãe de sua esposa.
92
Por outro lado, o fluxo de indígenas para Jacareacanga também é elevado, seja para
receber o salário (agentes de saúde e professores), vender algum produto ou fazer compras
(além de namorar, beber e dançar, como fiquei sabendo na minha “despedida”). Boa parte dos
moradores com quem conversei demonstrava interesse em passear na cidade, o que fazia das
caronas algo disputado, afinal, poucos tinham as condições (barco, motor e combustível) de
fazê-lo. Nos dias que antecedem o pagamento dos salários, o movimento de pessoas de outras
aldeias também é grande. Muitas famílias, residentes em aldeias rio acima, param na Missão
para conversar com a Irmã Conci, tomar café com bolacha, dar algum presente e, às vezes,
pernoitar no barracão da comunidade.
A exceção parecem ser os aposentados, os quais abrangem parcela significativa da
população da Missão. Atualmente, o responsável por recolher a aposentadoria é Careca, o
regatão local, que trabalha no Cururu há mais de dezessete anos. Careca tem o cartão de todos
os aposentados, retira o dinheiro e leva no barco, junto com as mercadorias. Irmã Conceição é
responsável pela divisão, momento muito esperado pelos mais velhos, e que pude presenciar
logo no meu segundo dia na aldeia. Na véspera de chegada do “barco do Careca” todos se
mostram ansiosos e comentam a respeito; passam o dia monitorando, através das conversas de
rádio, a altura do rio em que ele está, onde pernoitou, a que horas partiu. O dia em que chega
é uma verdadeira festa. O porto se transforma em um grande mercado, com grupos de pessoas
dentro do barco e no entorno, garantindo o acesso aos bens de que necessitam.
Careca vende “de um tudo”, de mantimentos básicos (sal, sabão, açúcar, café) a
roupas, botijão de gás, óleo de motor, pulseira de relógio, chinelos e redes; aceita encomendas
e é enfático ao afirmar que “adora seu trabalho e se dá muito bem com os Munduruku”. Após
dois dias, Careca parte e leva consigo, além de um barco lotado de índios que vão passear na
cidade, boa parte do dinheiro que havia trazido para os aposentados, os quais, sem muitas
opções, fazem suas compras ali mesmo. Além do Careca, outras fontes para obter mercadorias
93
dentro da aldeia são uma pequena venda instalada na casa de um morador e a visita mensal de
um funcionário da Funasa que, além de trazer encomendas, comercializa anzol, cartucho,
linha, chumbo, faca.
A escola na Missão
Como meu projeto inicial focaliza-se nos rituais, uma das primeiras coisas que
procurei saber foi a respeito das “festas”, porém, não demorei a comprovar que não havia
nada que se assemelhasse às descrições que havia lido nos livros. Por um lado, tratava-se de
algo esperado, afinal, havia passado cinquenta anos e, mesmo naquela ocasião, muitos rituais
já tinham caído em desuso. As comemorações nos dias de hoje, conforme pude observar,
estão vinculadas principalmente à escola e à igreja. A mais importante e mais “tradicional”,
pelo que me contaram, é a festa do Dia do Índio. Além desta, no calendário de festas da
Missão inclui-se a comemoração de Sete de Setembro e a formatura da oitava série, ambas
organizadas pela escola. No que diz respeito às festas religiosas, destacam-se a primeira
comunhão, as festas de santos, finados, Natal e ano-novo. Irmã Conceição relatou,
emocionada, que algumas semanas antes da minha chegada houve uma bonita festa de
primeira comunhão, na qual quarenta crianças receberam a eucaristia, vestidas com “roupa
tradicional” e carregando seus arcos e flechas.
No início do mês de dezembro tive a oportunidade de participar da comemoração de
formatura da oitava série, porém, antes de descrevê-la, gostaria de apresentar alguns dados
sobre a escola da Missão. A maior parte das aldeias Munduruku tem uma escola administrada
por professores indígenas e vinculada à Secretaria de Educação do município. Todas possuem
turmas até a quarta série, sendo que apenas as escolas da Missão, Posto Munduruku, Katõ, Sai
Cinza e Teles Pires oferecem ensino de quinta a oitava. É muito comum que pessoas de outras
94
comunidades residam temporariamente nessas aldeias para prosseguir com os estudos, sendo
que boa parte daqueles que frequentam os níveis mais altos são adultos, em sua maior parte
casados e com filhos. A maioria dos estudantes de fora costuma morar na casa de parentes.
Ao menos no que diz respeito à escola da Missão, o calendário busca incluir atividades
que contemplem as necessidades da aldeia, como um período de “trabalho de campo” no qual
os estudantes se dedicam ao plantio e à limpeza da roça. No ano de 2008, o quadro de
funcionários da escola contava com treze professores indígenas (dentre os quais havia apenas
uma mulher), duas professoras pariwat (as Irmãs), um secretário Munduruku, quatro pessoas
para serviços gerais e dois vigilantes.67
Esse quadro muda a cada ano, e com ele altera-se o
fluxo de pariwat na aldeia.68
Diversos professores indígenas contaram-me que gostavam do
trabalho das Irmãs, mas não gostavam dos outros professores pariwat, os quais, segundo
disseram, não permanecem tempo prolongado na aldeia; “quando vão para Jacareacanga
receber o salário, demoram muitos dias para voltar”, reclamavam.
O ensino segue os moldes de uma educação diferenciada, o que permite um reajuste da
grade curricular conforme as necessidades da comunidade. Além de matérias como
matemática, português, ciências, geografia e história, os alunos tem aulas de língua
munduruku, cultura e identidade, artesanato e estudos amazônicos. Disciplinas como essas
são recentes (criadas no ano de 2005), e surgiram da iniciativa de professores que, tendo
concluído o ensino fundamental, sentiram necessidade de ensinar as pessoas a ler e a escrever
na própria língua, valorizar as histórias dos antigos e resgatar elementos da cultura que
estavam se perdendo. A escola conta também com um grupo de alfabetização para jovens e
adultos que contempla o ensino até a quarta série.
67 Lucimar Manhuari foi contratado em 2007 para monitorar a área da escola, pois as crianças andavam
fazendo muita bagunça e pintando as paredes, disseram. Luis Waro é um senhor aposentado, o único Munduruku
que encontrei que se apresentava como guerreiro, andava armado com seu arco e flecha e prestava serviço
voluntário à escola e à aldeia, fazendo rondas periódicas para assegurar que tudo estivesse em ordem. 68 Em 2009, por exemplo, uma das Irmãs já não estava mais lá, dois professores indígenas mudaram para
Jacareacanga, e duas professoras de Itaituba estavam residindo na Missão.
95
Um evento que mobilizou boa parte dos moradores da aldeia durante o período que
estive por lá foi a realização de um dos módulos do “Projeto de Ensino Médio Integrado” que
deveria ocorrer na Missão, no mês de outubro, mas acabou sendo adiado para o final de
novembro, na aldeia Sai Cinza.69
Desde o dia em que cheguei na aldeia falava-se sobre o
curso, visto que na Missão há muitos estudantes que completaram o ensino fundamental e
estavam ansiosos por continuar os estudos e obter um diploma.70
Missa e festa de formatura
No dia sete de dezembro de 2008 foi comemorada a formatura da oitava série na
Missão São Francisco. Os preparativos começaram algumas semanas antes e todo o evento foi
capitaneado pelas Irmãs-professoras. A primeira providência foi organizar uma reunião com
os formandos e os pais, a fim de conversar sobre os preparativos para o dia da festa. Estive
presente na reunião e, apesar do esforço das Irmãs para que os participantes se manifestassem
dando suas opiniões, eles pareciam contentes em aceitar as propostas que elas faziam.
Decidiram que os formandos iriam se apresentar com a “roupa tradicional” e preparar a
69 O Projeto Ibaorebu tem como objetivo “implantar o ensino médio integrado à educação profissional
garantindo a educação básica, de acordo com as especificidades sócio-culturais, econômicas, históricas e
lingüísticas do povo munduruku, atendendo as necessidades diante do mundo do trabalho e suas relações
conforme o contexto da região em que se encontra esse povo” (informação disponível no site http://munduruku-
pusuru.blogspot.com). Outro evento bastante comentado no decorrer da minha estadia foi a realização da XX
Assembléia Geral Munduruku, que deveria ter ocorrido no mês de setembro, na Missão São Francisco. O atraso
nas negociações adiou a realização da Assembléia, que só veio a acontecer no final do mês de março, em 2009.
Numa conversa eletrônica com um funcionário da Funasa que esteve presente no encontro, fiquei sabendo que “a
reunião foi tensa”. Segundo ele: “branco não teve chance nessa Assembléia, os índios só falaram na língua deles
e não deixaram pariwat falar. Nem o prefeito teve voz. Os agentes da Funasa, que iam apresentar seus trabalhos sobre saneamento, foram vetados, chegando inclusive a se tornar reféns dos índios por algum tempo”. Quando
perguntei o porquê da “prisão” temporária ele respondeu-me que “foi para chamar atenção”. O funcionário, que
trabalha há muitos anos com os Munduruku, contou-me ter participado de outras assembléias, mas não tinha
presenciado uma que fosse tão “tensa e polêmica” como essa, pois “dessa vez eles não abriram espaço para os
brancos mesmo”, disse. 70 Dentre os professores da escola no ano de 2008, poucos concluíram o ensino médio, a maioria havia
estudado até a oitava série e feito um curso de magistério indígena. Apenas Mariza Kaba e Genildo Kaba
terminaram os estudos, mas ambos frequentaram escola de pariwat. Mariza morou desde os 12 anos no convento
das Irmãs, em Santarém, e Genildo, filho de um importante chefe que faleceu em 2003, estudou na cidade de
Itaituba.
96
comida para servir no café da manhã. As Irmãs ficaram responsáveis por ensaiar os cantos e
organizar a missa. Na véspera da comemoração fizeram um mutirão na aldeia para capinar as
áreas centrais, limpar o barracão e enfeitá-lo.
No dia da festa o sino da Igreja soou no horário habitual, às 6 da manhã, mas, diferente
de outros domingos, neste a igreja estava lotada.71
Os formandos estavam sentados nos
bancos à frente, vestidos “à caráter”, trajando roupas de palha e pintados com jenipapo. A
missa foi animada, com muita música na língua munduruku e em português. Como nas outras
celebrações, frei Gilberto conduziu a missa, mas os Munduruku participaram em diversos
momentos, lendo trechos da Bíblia, normalmente na própria língua, tocando os instrumentos e
cantando. Nessa missa, o principal assunto foi a educação; um momento de celebrar a
conquista daqueles que tinham chegado até ali e simultaneamente incentivar aos demais para
continuar buscando o conhecimento. Os formandos levaram alguns objetos tradicionais (arco,
flecha, paneiro, colares, cocares, etc.) até o altar e, durante o sermão, frei Gilberto discorreu
sobre a importância de preservar e valorizar a cultura Munduruku.
Após a missa, serviram o café da manhã no barracão. As famílias dos formandos
haviam ficado responsáveis pela comida e prepararam muito beiju com castanha e garrafas de
café. Em seguida, teve início a cerimônia de entrega dos boletins. Organizaram uma mesa
com as “celebridades” locais: o frei, as Irmãs, enfermeira, professores, o guerreiro, o pajé
“forte” da aldeia vizinha, líderes e capitães da Missão e de outras aldeias. Após cada um fazer
um breve discurso, no qual invariavelmente mencionavam a importância da educação e a
alegria em ver mais uma turma completando o ensino fundamental, foram entregues os
71 Frequentei a missa todos os domingos em que estive na Missão e os únicos dias em que esteve
realmente lotada, com pessoas sentadas no chão e em pé, do lado de fora, foram a formatura e a missa de
finados. Nessas ocasiões todos se encontravam vestidos “para festa”, visivelmente ornados com suas melhores
roupas, de banho tomado e com enfeites nos cabelos. Nos outros domingos não havia muita novidade; a igreja
relativamente vazia contava com uma presença maior de mulheres do que de homens. Um aspecto interessante
na missa é a divisão de gênero que opera dentro do salão: a igreja é composta por quatro fileiras de bancos, de
um lado as mulheres e de outro os homens – e, em cada lado, os solteiros separados dos casados. Segundo a Irmã
Conceição, essa divisão ocorreu espontaneamente; fato que condiz com o comentário de Murphy a respeito de
homens e mulheres constituírem grupos sociais bem delimitados. “É comum entre os Munduruku relaxar na
companhia de membros do próprio sexo e sentar-se separado em reuniões coletivas” (Murphy 1978 [1960]: 109).
97
diplomas. Ao final da cerimônia as pessoas foram pouco a pouco se dispersando, a tempo de
escapar de uma forte chuva que formou pequenos desaguadouros nas “ruas” da aldeia. À noite
voltei ao barracão para o famoso “xep-xep” – nome que dão às festas que fazem na aldeia,
onde tem música e dança. O estilo musical que faz sucesso é uma variação do “brega” local,
conhecido como “lambadão”. Homens e mulheres ficam de lados opostos e eles, de maneira
nem sempre gentil, puxam elas para dançar. Ao término da música cada um retorna para seu
canto. Disseram que, há algum tempo, todos os sábados tinha “xep-xep” no barracão, mas nos
últimos meses andavam desanimados – o que não foi o caso nesse dia, pois, quando me
retirei, o barracão continuava lotado e, pelo visto, a festa não iria parar tão cedo...
Virando branco ou... Devir-pariwat
A breve experiência de campo relatada acima – na qual os brancos, as mercadorias e as
visitas à cidade aparecem como elementos importantes na vida cotidiana dos Munduruku com
os quais convivi – despertou o interesse para a relação com os pariwat e levou-me a
questionar se haveria algo “a mais” na afirmação recorrente de que estavam virando branco. O
que poderiam os Munduruku estar dizendo ao me contar que as coisas estavam muito
mudadas, que agora se vivia “quase como pariwat”?72
Sem dúvida o impacto do convívio
com o “mundo dos brancos” é crescente, mas parece significativo que essa “mudança” seja
expressa justamente nos momentos em que eu demonstrava meu interesse em um “modo de
vida Munduruku”. Também considero significativo que, paralelo a tal afirmação, houvesse
uma inquietação com a “perda da cultura”, demonstrando preocupação quanto à preservação
de um “modo de ser” Munduruku.
72 Importante notar o uso do advérbio “quase”, pois este denota um processo que não se completa e
indica o “virar” como um movimento de aproximação que nunca é de fato consumado. Não é à toa que a
afirmação é expressa, na maior parte das vezes, no gerúndio: “estamos virando pariwat”.... dando a entender que
ainda não viraram definitivamente.
98
Como comentou Viveiros de Castro (2006), a assertiva de que “estamos virando
branco”, aparentemente banal e comum entre vários grupos indígenas, esconde uma
complexidade que apenas há pouco tempo tornou-se objeto de reflexão. Levar a sério quando
os índios dizem que estão virando brancos implica questionar, a partir do universo ameríndio,
o que é “virar” e o que é “ser branco” (ou, “ser índio”).
A noção de “virar branco”, como se sabe, está presente em vários mundos
indígenas. Ela não quer dizer necessariamente o que nós achamos que quer dizer; ao contrário, o que ela quer dizer é justamente um dos problemas mais
complexos com que se defrontam os antropólogos. Há todo um complexo
sistema de pressuposições recíprocas em jogo, com pelo menos quatro posições ou orientações típicas: virar branco, virar índio, pacificar o branco,
pacificar o índio. Os brancos “pacificam” os índios, os “índios” pacificam os
brancos, os índios dizem que estão “virando branco”, há “muitos brancos” querendo virar índio. Uma situação muito interessante (Viveiros de Castro
2008: 157)
No entanto, a curta duração do trabalho de campo não me permite oferecer respostas
para essa questão, a partir de uma perspectiva indígena. Trata-se antes de delinear um
problema e, com base em outras pesquisas, sugerir uma linha de investigação a ser
aprofundada. Dessa forma, antes de partir para a análise da situação Munduruku, farei uma
breve incursão pelo trabalho de dois antropólogos que, trabalhando com povos em
localizações geográficas e com histórias de contato bastante diversas, se dedicaram a
compreender a complexidade por trás do “fenômeno” de “virar branco”.
Os Wari‟ e a experiência de outro ponto de vista
Em sua etnografia sobre os Wari', grupo indígena localizado no estado de Rondônia,
fronteira com a Bolívia, Vilaça (2006) aborda o encontro com os brancos à luz da teoria do
perspectivismo (Lima 1996; Viveiros de Castro 1996). Os Wari' tiveram seu primeiro contato
99
pacífico com os brancos no final da década de 50, mas desde o início do século XX
mantinham relações ocasionais com os “inimigos de corpo branco” – relações marcadas
majoritariamente pelo idioma da guerra. Divididos em vários subgrupos e espalhados por
extenso território, a aproximação se deu gradativamente, com distintas etapas de contato.
De acordo com Vilaça (2006: 30), o modo como os Wari' se relacionam com a
diferença foi central neste processo. Segundo a autora, dentre as diferentes figuras de
alteridade que povoam esse universo estão os estrangeiros e os inimigos. Estrangeiros são
parentes distantes, que pertencem a outro subgrupo, mas que podem ser consanguinizados
com a proximidade física e o casamento. Inimigos (wijam) são aqueles que efetuaram um
deslocamento espacial e deixaram de estabelecer relações de troca ou convivialidade – comer
junto, partilhar festas e trocar mulheres. Os wijam foram originariamente Wari‟, que sofreram
um processo de “inimização” (Vilaça 2000: 64). Visto sob essa perspectiva, tais categorias
não denotam seres ontologicamente distintos e sim posições intercambiáveis, reversíveis, que
se alteram conforme o contexto relacional no qual estão inseridos.
O fato de que “o inimigo não é um estranho total, mas um estranho parcial; é aquele
que foi Wari' e que pode voltar a sê-lo” (Vilaça 2006: 424), foi determinante no contato com
os brancos. Os Wari‟ viram nos inimigos recém-chegados seres que, no fundo, eram como
eles. Esse ponto é importante para entender a aproximação dos Wari‟ com os brancos, um
movimento que foi, antes de tudo, “em direção à sociedade Wari', à vida social, que havia sido
desorganizada e mesmo interrompida com a invasão dos brancos” (Vilaça 2006: 484).
Os motivos que os levaram a viver ao lado desses inimigos são muitos. É evidente que os bens materiais os atraíam, ainda mais porque os brancos
mostravam-se excessivamente generosos como anfitriões: ofereciam comida,
davam muitos presentes. Talvez os Wari' também soubessem que, se não permanecessem aliados dos brancos, não poderiam levar adiante a vida
social que sentiam ser possível retomar. A guerra excessiva os estava
obrigando a fugir constantemente, a viver com medo. Se não haviam
interrompido as festas, elas provavelmente eram menos frequentes, mesmo porque durante o luto não há festas, e estavam perdendo seus parentes em
100
quantidade. Sem querer minimizar as condições de ordem prática, não penso
que elas expliquem tudo. Teriam ficado dependentes do metal, do açúcar e
dos remédios, tendo então certeza de que nada mais voltaria a ser como antes? Estavam ainda desorganizados e apavorados com a morte de mais da
metade de sua gente? Isso é verdade. Mas por que se arriscaram mais a
morrer para chegar perto dos brancos, e por que dizem hoje que estão
virando brancos? (2006: 488-89)
Os brancos ainda são chamados pelos Wari' de wijam, no entanto hoje eles são
conterrâneos, vivem próximo e se visitam. A guerra também não é mais o modo de relação
dominante, apesar de uma guerra simbólica continuar sendo empreendida por meio da atuação
dos xamãs (Vilaça 2006: 496). Mas, como entender que, para além de viver com o inimigo, os
Wari' hoje vivem como os inimigos e afirmam que estão “virando brancos”? A solução
encontrada por Vilaça indica que os Wari' experimentam “no contato com os brancos, a
possibilidade de viver uma experiência análoga a de seus xamãs, aquela de um duplo ponto de
vista: são brancos e são Wari‟ simultaneamente” (Vilaça 2006: 503).
Do mesmo modo como os xamãs podem ser simultaneamente wari' e karawa (animal
de determinado tipo), os Wari‟ se dizem wari‟ e wijam (Vilaça 2006: 502). Em ambos os
casos, sugere a autora, a experiência se realiza em seus corpos, pois esse é o locus do ponto de
vista; “o modo de ser e de agir é definido pelo corpo” (Vilaça 2006: 504). Assim como o xamã
precisa passar por uma transformação corporal para se relacionar com seus afins animais, os
Wari' precisam usar roupas manufaturadas e saber manusear objetos para se relacionar com os
brancos. “(O)s Wari' dizem estar virando brancos, explicam que hoje comem arroz e
macarrão, usam shorts e se lavam com sabão, do mesmo modo que um xamã-onça se sabe
animal quando tem pêlos em seu corpo, come animais crus e anda em companhia de outras
onças” (Vilaça 2006: 506). Contudo, para além de um instrumento que permite a
comunicação, a roupa é parte de um conjunto de hábitos constitutivos. Para virar branco, não
basta usar roupa de branco, é preciso adotar certo tipo de comportamento.
No entanto, se os Wari' gostam tanto das “coisas de branco” (como machados,
101
remédios, gravadores, teclados eletrônicos, jogos de futebol e “filmes de porrada”), por que
não se casam com eles e passam para o outro lado de vez, transformando-se definitivamente
em brancos?73
Uma resposta possível seria pensar que os Wari' querem viver com os brancos
e como os brancos, o que não significa que isso seja exatamente aquilo que nós imaginamos.
Segundo Vilaça (2006: 515), eles querem ser brancos sem deixar de ser Wari' – situação
possível em um mundo onde o interesse pela identidade (um “ser” idêntico a si próprio) é
eclipsado pela importância atribuída à diferença. Virar branco nessas circunstâncias
aproximar-se-ia antes a um modo Wari' de experimentar a transformação e a diferença do que
a um “ser” branco, análogo ao que somos nós.
Os Yanomami e o “tornar-se näpe”
Partindo de sua experiência junto aos Yanomami do Alto Orinoco, na Venezuela, Kelly
(2005, 2009) desenvolve um modelo para pensar o “fenômeno” do “virar branco” que escapa
das perspectivas de perda cultural ou contaminação. Segundo o autor, essa transformação
adquire sentido apenas quando referida ao universo social e simbólico habitado por um
determinado grupo, no caso, os Yanomami. Ao concentrar sua pesquisa na articulação do
sistema de saúde venezuelano com as comunidades yanomami, Kelly percebeu a existência de
um modo específico de se relacionar com os brancos que se manifestaria em outras esferas da
vida social. De uma perspectiva indígena, os médicos não eram apenas agentes de saúde, mas
eram napë (brancos), enquanto os índios, para além de pacientes, eram... Yanomami. Uma
constatação aparentemente simples, mas que permitiu ao autor perceber as nuances
envolvidas neste cenário. Entender a relação com os médicos exigiria inseri-la num contexto
mais amplo da socialidade Yanomami, percebendo como as articulações existentes em torno
73 Segundo Vilaça (2006: 501-03), os dois caminhos que efetuam uma transformação definitiva são: o
casamento e a predação, pois ambos exigem a apropriação de um lugar relacional específico e inviabilizam
adotar um “duplo ponto de vista”.
102
de uma esfera sócio-política de relação com diferentes graus de alteridade. 74
Ao falar que estão “virando branco”, os Yanomami se referem, simultaneamente, a um
processo de transformação histórica e uma trajetória a se desenrolar no futuro; uma
metamorfose que utiliza elementos da cultura dos brancos para a reprodução da própria
sociedade. Com intuito de entender esse processo, Kelly (2009) articula dois “contextos”
diferentes, que identifica como sendo: um “espaço convencional Yanomami” e um “eixo
transformacional em napë”. O primeiro se refere a um movimento sociocêntrico Yanomami,
que funciona através do idioma do parentesco (consanguíneos/afins) e permite identificar co-
residentes, amigos/aliados e inimigos. O segundo diz respeito ao deslocamento ao longo de
uma linha imaginária que une dois pólos (Yanomami e napë), sob a qual os indígenas podem
transladar, se aproximar ou se distanciar, conforme o contexto relacional.75
Para desenvolver um modelo com base na articulação desses dois contextos, Kelly
(2009) partiu de um quadro teórico cujos principais componentes são: o modelo da afinidade
potencial de Viveiros de Castro (1993b, 2002b),76
a teoria do simbolismo de Roy Wagner
(1981), e a descrição do espaço sócio-político yanomam empreendida por Bruce Albert
(1992).
Segundo Roy Wagner, a sociedade se estrutura por meio da articulação entre um reino
74 Bruce Albert (1988) analisou de que forma a existência de uma esfera sócio-política com diferentes
graus de alteridade influenciou nas representações de contato formuladas pelos Yanomami. O aparecimento dos
brancos, a aquisição de mercadorias e as epidemias que os acompanharam foram percebidas de acordo com a
configuração de um espaço sócio-simbólico intercomunitário (indo do grupo local até os inimigos
desconhecidos). Neste, as representações do contato foram progressivamente reformuladas conforme o contexto
histórico e prático. Trata-se, segundo o autor, de “um sistema de transformações que explora sistematicamente as
configurações permitidas pela teoria etiológica yanomam” (1992: 161). 75 Residente na maior parte do tempo na comunidade de Ocamo, Kelly (2005: 204) teve oportunidade de
acompanhar os médicos em visitas a comunidades mais distantes. Nestas viagens, o autor observou a existência de diferentes graus de troca com o mundo dos brancos, além da atribuição de diferentes níveis de civilização –
quanto mais distante do vilarejo, maior o grau de “Yanomami-dade”. 76 Viveiros de Castro aponta que, na Amazônia indígena, a relação definidora do socius é a afinidade
potencial, “a alteridade ou exterioridade que é interna e instituinte” (2002b: 150). Segundo o autor, o afim
potencial é um elemento exterior ao socius (como os inimigos, as pessoas distantes, os não-humanos, por
exemplo) e representa a fonte primordial de recursos simbólicos que asseguram a reprodução de grupos e
pessoas. Nesse sentido, é possível associar afinidade e canibalismo, pois ambos se manifestam como relações de
predação, na qual a aquisição de uma potência externa é determinante na produção da dimensão interna do corpo
social (Viveiros de Castro 2002b: 164-168). Nessa economia simbólica da predação, conforme denominou o
autor, o Outro surge como elemento ambíguo – ao mesmo tempo poderoso e perigoso –, mas ainda assim,
necessário.
103
da convenção (inato/dado) e um reino da inovação (agência humana/fabricado), sendo que
“todas as sociedades atribuem uma parte do todo fenomenológico ao reino do inato ou do
dado, e outra, necessariamente, ao que fica disponível à agência humana” (apud Kelly 2005:
207). Assim, cada sociedade demonstra, de um modo geral, uma tendência ora à
“convencionalização”, ora à “diferenciação”.
Essa configuração, articulada com o modelo da afinidade potencial de Viveiros de
Castro (1993b), compõem um “espaço (sociopolítico) convencional ameríndio” (Kelly 2005,
2009) onde a afinidade é dada (o outro é necessário) e a consanguinidade é construída. 77
Somando-se a esse quadro, temos o trabalho de Albert (1992), o qual situa historicamente os
brancos em diversas esferas sociopolíticas – de fantasmas e feiticeiros a inimigos ou aliados –
e mostra de que modo a caracterização como um “outro” específico está relacionada ao
processo histórico de contato e suas consequências. Na medida em que os brancos são
“domesticados”, a distância social se vê reduzida e estes passam a fazer parte do “reino da
humanidade”.
Concentrando-nos no “eixo de transformação em napë”, percebemos que as noções de
Yanomami e de branco são relacionais, variáveis de acordo com a intensidade das trocas
interétnicas. Conforme o autor coloca, “esse 'eixo' deve ser entendido como um contexto: um
conjunto de conceitos e práticas que constitui uma rede de relações convencionais, a qual
reúne ou separa, contextualmente, diferentes categorias de Yanomami e de brancos” (Kelly
2005: 209). Temos, então, a relação entre brancos e Yanomami como um processo
inerentemente transformacional, permitindo que o contato interétnico seja visto sob uma ótica
da metamorfose; uma transformação que não tem início ou fim, pois é sempre transformação
77 Na linguagem da convenção/inovação, os “povos tribais” considerariam a cultura (entendida como
conjunto de regras, moralidade, linguagem, convenções) enquanto parte do reino do inato/dado. No entanto,
existiria também uma tendência à diferenciação. No caso dos Yanomami, esta se manifesta por intermédio de
dois processos: “virar branco” e “domesticar o branco”. O primeiro diz respeito à transformação produzida sobre
uma condição inata (ser Yanomami é o que coletiviza e ao mesmo tempo diferencia dos brancos), enquanto o
segundo busca remover uma alteridade inata, neutralizar o aspecto inimigo e adquirir uma moralidade Yanomami
(Kelly 2005: 207-10).
104
de outra transformação (ver Gow 2001). A respeito disto, Kelly comenta que “(d)iversos
antropólogos observaram que o mundo vivido ameríndio aponta para um constante „tornar-se‟
ao invés de uma estabilidade do „ser‟ (...) Quando diferenciação é o nome do jogo,
transformação é o que „acontece‟ ao longo do tempo” (2009: 156).
Dessa maneira, o autor identifica um ser dual que permite “tornarem-se civilizados” ao
mesmo tempo em que permanecem Yanomami, ou seja, uma dualidade que permite
incorporar o corpo/habitus e o conhecimento dos napë, sem abandonar a prática de uma
moralidade própria àquele que é humano.78
Essa dualidade, por sua vez, pode conduzir a um
entendimento da idéia de “virar branco” enquanto alienação, deterioração ou manipulação,
pois de acordo com as concepções de essência e de identidade próprias ao pensamento
ocidental, “ser ambos [índio e branco] é inautêntico, irresponsável ou simplesmente confuso”
(Kelly 2009: 245). Vemos assim que, para entender esse processo de transformação, é preciso
questionar noções como cultura e identidade. Segundo Kelly, existe “um ser dual
Yanomami/napë”‟, mas ele evitou chamá-la de “identidade dual” porque, “no contexto de
„transformação em napë‟, „Yanomami‟ e „napë‟ são posições significativas adotadas para
efetuar uma diferenciação dos outros, ao invés de uma correspondência a si mesmo” (2009:
147).
Sendo assim, os Yanomami buscam controlar esta ambiguidade sem, contudo, eliminá-
la. “Ao tornar-se napë, ou civilizado, os Yanomami não estão virando mestizos ou querendo
ser assimilados aos Brancos; ao contrário, a relação deve permanecer, pois as pessoas devem
ser capazes de alternar de uma posição significativa para outra” (Kelly 2009: 317). Donos e
78 Dito de outra forma, uma dualidade que permite usar roupas, comer comida de branco, adquirir
objetos, falar espanhol, mudar os padrões de habitação, ser contaminado por novas doenças, aprender a não ser
enganado ou explorado pelo branco, sem, contudo, deixar de falar yanomami, morar junto, compartilhar comida,
casar com afins, participar dos rituais funerários, ter parentes. Segundo Kelly, “napëprou [tornar-se napë] é
resultado tanto de um desejo Yanomami de tornar-se Outro (...) quanto da necessidade de extrair o máximo das
condições históricas nas quais se encontram (...). Se por um lado napëprou é subserviente a um desejo por
diferenciação, por outro é subserviente a um desejo de permanecer Yanomami, ou seja, permanecer humano e
criar comunidades de pessoas que vivam de acordo com a „moralidade de ser humano‟” (2009: 146).
105
distribuidores de mercadorias, criadores e disseminadores de doença, exploradores, mas
também aliados (médicos e missionários), os napë precisam ser dominados, domesticados,
para que sua potência possa ser utilizada em prol da perpetuação dos Yanomami, e não de sua
destruição.
Segue-se que, quando os Yanomami falam em tornar-se napë, não se trata daquilo que
os brancos entendem como tal. Acompanhando a interação entre Yanomamis e médicos, Kelly
(2009: 280-318) constatou que o sistema de saúde está imerso em um processo histórico que
opera com a sobreposição de projetos diferentes. De maneira geral, o que une, e ao mesmo
tempo separa, esses projetos são as noções de “virar branco” e o “projeto de civilizar”. Kelly
sugere “que a junção desses projetos parcialmente sobrepostos envolve ao mesmo tempo um
interesse mútuo e um desentendimento entre Yanomami e Brancos”, e argumenta que está é,
de fato, a “característica central na relação entre Índios e Brancos em toda a Amazônia”
(2009: 155). Ao lidar com expectativas diversas, surgem equívocos, mal-entendidos e relações
conflituosas.
Os médicos querem ser apenas médicos, ao invés de provedores de objetos e
afins potenciais. Eles querem que as visitas rio acima sejam viagens com
finalidade unicamente médica, ao invés de motivadas também por questões políticas, econômicas e familiares. Eles querem controlar seus pacientes e a
comunidade, ao invés de serem objetos de controle. Eles querem agir
institucionalmente, ao invés de serem envolvidos na dinâmica de uma política interna Yanomami. Em suma, os médicos resistem aos significados
derivados de sua posição napë e à contribuição que prestam para o „tornar-se
napë‟ dos Yanomami (Kelly 2009: 204).
Os brancos buscam incessantemente “construir uma sociedade” onde acreditam haver
desordem e caos e com isso esbarram no projeto Yanomami de “tornar-se napë” – já que este
não implica em seguir regras, padrões e normas de funcionamento dos napë, trabalhar em
horários determinados ou respeitar vínculos institucionais em detrimento das relações de
parentesco. Enfim, tornar-se napë não significa “civilizar” nos mesmos termos que os brancos
esperam que seja. Ao colocar em interação diferentes sistemas de referência, a relação entre
106
brancos e índios emerge como um cenário propício para o surgimento de equívocos e
confusões.
Munduruku: devir-pariwat
Há cinquenta anos, Robert Murphy registrou que os Munduruku passavam por
intensas mudanças em função do engajamento progressivo na indústria de extração da
borracha. No entanto, podemos conjecturar que essas mudanças, talvez menos intensamente,
vinham se desenrolando desde os primeiros contatos com os brancos. De fato, ao abandonar a
idéia de que existiria uma forma social estável, que se reproduz identicamente ao longo do
tempo, podemos sugerir que as mudanças sempre estiveram presentes no seio da sociedade
Munduruku. Como vimos anteriormente, alguns elementos reiteram esta hipótese – tais como
a existência de aldeias circulares com casa dos homens no centro ou a organização social
complexa, composta por metades exogâmicas e inúmeros clãs (ver capítulo 3).
Entretanto, no âmbito desse trabalho, destacamos o fato de que, já na época de
Murphy, os Munduruku reivindicavam estar virando pariwat. A constatação de que, cinco
décadas depois eles ainda não viraram brancos “de vez”, mas continuam “virando”, nos leva a
questionar esse processo. Trata-se de uma transformação imposta, frente a qual eles não tem
escolha e sobre a qual não tem controle? Onde se localiza o “desejo” de se aproximar do
mundo dos brancos? Existem outras formas de entender o “virar pariwat” que não seja a idéia
de “perda cultural”, como os próprios Munduruku mencionaram em nossas conversas? Ou
ainda, o que entender quando eles dizem estar “perdendo a cultura”? Trata-se de esquecer o
“conhecimento dos antigos” e/ou adotar novos hábitos de vida (comer outro tipo de comida,
trabalhar para ganhar dinheiro e poder comprar coisas, frequentar a escola, ter uma
profissão)? Ou a preocupação com “a cultura” seria mais um elemento proveniente do mundo
107
dos brancos?79
Em suma, este conjunto de questões levou-me a pensar esse processo de
transformação em branco... pois não me pareceu que, ao virar pariwat, alguém ali estivesse
querendo deixar de ser Munduruku.
É possível então pensar um ser dual Munduruku/pariwat, como Kelly (2009)
identificou para os Yanomami? Ou virar pariwat seria uma possibilidade de experimentar
outro ponto de vista, outra perspectiva, à maneira dos xamãs Wari'? Inclino-me a pensar que
sim, que “virar pariwat” não implica deixar de ser Munduruku, contudo, tampouco implica
continuar sendo Munduruku “à moda dos antigos”. Ao considerar a diferença e a alteridade
como elementos centrais na constituição do pensamento ameríndio (Lévi-Strauss 1993
[1991]; Viveiros de Castro 1993b, 2002b), podemos apreender melhor o lugar dos brancos na
rede de relações que compõe o universo Munduruku... tudo se passa como se fosse preciso
existir pariwat para que continue existindo Munduruku. Sugiro que a história de relação com
os pariwat nos permite olhar nessa direção.
Sabemos que os pariwat com quem os Munduruku se relacionam hoje em dia são os
brancos, mas sabemos também que há muitos séculos eles se relacionam com pariwat, pois
era assim que chamavam os inimigos, aqueles de quem cortavam a cabeça. Segundo Murphy,
“os pariwat são inimigos e, em tempos idos, eram o objeto da guerra” (1978 [1960]: 127).
Não tenho intenção de supor que houve “substituição” de um pelo outro (de tribos inimigas
pelos brancos), mas que em algum plano existe uma continuidade que permite aos
Munduruku continuar se relacionando com pariwat. Conforme Murphy (1978 [1960]) já
79 Em seu excelente livro chamado Um copo de cultura, Ingrid Weber busca compreender o processo de
constituição e o significado da escola para os Kaxinawá (2006: 218). Trabalhando precisamente com os
moradores do rio Humaitá, Weber identifica uma preocupação crescente com a “cultura”. “Até meados da
década de 90, as escolas no Humaitá estavam voltadas, basicamente, para o ensino da matemática e do
português, pois tinham como propósito uma maior aproximação e adaptação ao mundo dos nawa (branco)”
(2006: 150). No entanto, recentemente tem havido um interesse maior pela “cultura”, refletido na preocupação
em dominar a língua indígena, realizar as brincadeiras, cantos e danças tradicionais, conhecer as músicas e as
histórias dos antigos. Os Kaxinawá estariam assim empenhados em “resgatar a cultura”, pois sem ela não são
“valorizados” como índio, pelos brancos, e não conseguem apoio, nem projetos. Dessa forma, Weber nota que,
“apesar de aparentemente contraditório, o discurso da „cultura‟, hoje, é também um meio de aproximação ao
mundo nawa” (2006: 153).
108
havia alertado, é necessário apreender as dinâmicas de mudança para entender a constituição
da sociedade Munduruku.
Assim, é possível pensar que pariwat, para além de inimigo e/ou branco, seja uma
posição relacional que permite compor esse sistema em constante transformação. Como
vimos, o modo característico dos ameríndios se relacionarem com a alteridade (condensado na
célebre expressão Lévi-straussiana da “abertura ao outro”) envolve riscos constantes. O outro
(seja ele inimigo, jaguar ou branco) se apresenta como figura necessária e desejada, elemento
constituinte do cosmos, mas também ambíguo e ameaçador. Viver em um mundo onde a
alteridade possui tal estatuto é arriscado. Porém, mais arriscado seria um mundo onde ela não
existisse.
A “cabeça do pariwat”, por exemplo, era usada para construir objetos poderosos que
desempenhavam importante papel na reprodução da sociedade – seja como pivô dos rituais
que constituíam a vida coletiva, seja pela “fertilidade simbólica” tão bem analisada por
Menget (1993). Contudo, participar de expedições guerreiras e “caçar a cabeça dos inimigos”
era tarefa de guerreiros preparados, afinal, estes lidavam com o perigo permanente de
sucumbir no campo de batalha. Dotada de ambiguidade semelhante, a relação com os animais
ocupava lugar central nos ritos e mitos Munduruku. Na cerimônia do Duparip, por exemplo,
os xamãs transformavam pessoas em animais; uma experiência temida, após a qual aqueles
que tivessem se aventurado tornavam-se figuras importantes (ver capítulo 3). Da mesma
forma, a proximidade que os xamãs mantinham com o “mundo dos espíritos” e “o mundo dos
animais” tornava-os figuras ambivalentes frente ao resto da aldeia. A possibilidade de usar seu
poder tanto para curar quanto para causar danos indica uma instabilidade inerente à posição
xamânica.
Outro ponto a ser levantado é a centralidade histórica que a guerra possui entre os
Munduruku, pois por meio dela podemos entrever um modo próprio de se relacionar com a
109
alteridade. Partimos das análises de Fausto (2001) sobre a guerra ameríndia enquanto
consumo produtivo, ou seja, uma relação de predação onde o gasto e a perda, a destruição de
corpos e subjetividades inimigas, são postos em função da construção da pessoa e da
fabricação de corpos. A guerra não seria assim uma forma de canalizar agressividade
reprimida, como colocou Murphy (1978 [1960]), mas um processo produtivo fundado na
aquisição e familiarização de princípios de subjetivação, uma predação familiarizante (Fausto
2001). Uma relação de predação que não é mera identificação, assimilação ou negação do
outro, mas sim um movimento que transforma e altera um sujeito através da experiência de
outro, ou com um outro. Este “modo da relação” indicaria uma tendência centrífuga (Viveiros
de Castro 1986; Fausto 2001) que acredito ainda hoje estar presente entre os Munduruku,
através do desejo pelo “mundo dos brancos” – seja pelas mercadorias, educação, visitas à
cidade ou relações de aliança com políticos locais. Um voltar-se para fora, uma necessidade
incessante de capturar elementos externos para a reprodução da sociedade.
No entanto, diferente dos Araweté ou Tupinambá – povos tupi-guarani cuja dinâmica
centrífuga foi analisada por Viveiros de Castro (1986) –, que tem como característica a
ausência de segmentações internas, os Munduruku possuem uma organização social dividida
em metades exogâmicas e múltiplos clãs. Esses, como vimos, estavam implicados nos rituais
relacionados à cabeça-troféu e às flautas sagradas karokö (ver capítulo 3). Tal fato nos permite
questionar se, conjugado a essa vertigem centrífuga, existiria uma tendência centrípeta de
acumulação e transmissão interna de bens e atributos que teria contribuído para a perpetuação
dos Munduruku enquanto unidade social coesa, mesmo após tanto tempo de contato.
Enquanto entre os Wari' e os Yanomami o estabelecimento de relações pacíficas com
os brancos é relativamente recente, com os Munduruku ela data de mais de dois séculos –
como vimos anteriormente, a aliança com os portugueses se estabeleceu no final do século
XVIII. A previsão de que a intensificação do contato conduziria os índios a serem
110
progressivamente assimilados à sociedade envolvente não se concretizou entre os Munduruku
– ao menos não inteiramente, pois segundo fui informada, as aldeias Munduruku na região de
Itaituba (T.I. Praia do Índio) ou em Coatá-Laranjal (AM) se encontram em situação bastante
distinta dos Munduruku no Alto Tapajós (T.I. Munduruku).80
Podemos assim nos perguntar onde se localiza a capacidade de, mesmo após tanto
tempo de contato e tendo incorporado tantos elementos do “mundo dos brancos”, manter uma
unidade sociológica diferenciada? Que elementos mantêm a “coesão” e permitem a
perpetuação dos Munduruku? Como bem colocou Gordon a respeito dos Xikrin, é “preciso se
perguntar onde se enraíza um mesmo ponto de vista (ou uma perspectiva) coletivamente
compartilhado, de modo que os Piro, os Xikrin, uma aldeia, uma comunidade, um grupo
doméstico, possam se enunciar como um “nós” que muda e se transforma” (2006: 412).
Gordon sugere para os Xikrin, semelhante ao que Kelly (2009) propõe para os Yanomami,
que a continuidade talvez resida em uma moralidade que ateste o mútuo reconhecimento da
humanidade de pessoas que pretendem viver juntas.
No entanto, além de se perguntar onde se enraíza um ponto de vista coletivamente
compartilhado, precisamos também nos perguntar como garantir esse ponto de vista. Vimos
no caso dos Wari' que este é assegurado evitando o casamento com os brancos (Vilaça 2006),
enquanto no caso analisado por Peter Gow, é o casamento entre diferentes tipos de gente que
garante a constituição de pessoas de “sangue misturado”, de pessoas Piro (Gow 1991, 2001).
O casamento, logo, o idioma do parentesco, é um fator preponderante. Contudo, não haveria
outras maneiras de passar, permanentemente, para o “outro lado”? O consumo de mercadorias
e a necessidade crescente (e permanente) de elementos do “mundo dos brancos” não trariam
80
No que diz respeito à região do Alto Tapajós, verifica-se um crescimento demográfico significativo
nos últimos cinquenta anos. Enquanto Murphy (1978 [1960]) estimou uma população de 1.250 Mundurukus, o
censo da Funasa de 2009 indica algo em torno de 7.000 indígenas nas T.I. Munduruku e T.I. Sai Cinza [anexo I].
Esse crescimento se deve, em parte, à política nacional e internacional de reconhecimento e luta em defesa dos
direitos indígenas. Contudo, estas não são garantia contra violência, invasão de território, exploração de recursos
e mão-de-obra, preconceitos, e tantos outros males que ainda afligem as populações indígenas em todo o Brasil e
a população Munduruku, em particular.
111
consigo a armadilha de se ver envolto num sistema, não mais canibalizável, mas
canibalizante? Afinal, o canibalismo, ao mesmo tempo em que representa uma fonte de
captação de recursos externos, materiais e simbólicos, envolve uma ameaça constante: tornar-
se demasiado parecido com aquilo/aquele que é ingerido. Como bem colocou Gordon, “esse
consumo traz consigo o risco do „canibalismo‟, isto é, de não conseguir o cozimento e a
dessubjetivação do que é incorporado e começar a virar branco” (2006: 403).
Haveria, dessa forma, certa ambigüidade nesse processo; virar branco é ao mesmo
tempo desejável e perigoso – pois já não se pode mais viver sem roupa, sal, gasolina, enfim,
dinheiro para comprar “coisas”, mas ao se aproximar demais do mundo dos brancos corre-se
o risco de esquecer a língua, os costumes e a “cultura”. Compartilho da inquietação de
Gordon (2006: 413): o que acontece quando, nesse processo, os parentes começam a se
estranhar, a não mais se reconhecer?
Diferente daqueles que afirmam estar virando branco, os Xikrin demonstram receio,
não querem virar branco, pois não querem ser esse “outro tipo de gente”. Por isso, é preciso
sempre reinstalar a distância entre os Mebêngôkre e os kubē, os brancos (Gordon 2006: 414).
Já os Yanomami, como demonstra Kelly (2009), querem virar brancos, adotam um
corpo/habitus e conhecimento de napë, mas rejeitam a socialidade, a moralidade dos brancos.
Aos olhos dos Yanomami, “os brancos são seres superculturais mas ao mesmo tempo
infrasociais (...): possuidores de poderes e objetos fabulosos, eles no entanto não sabem como
se comportar enquanto verdadeiros seres humanos” (Kelly 2009: 325).
E quanto aos Munduruku? Virar pariwat seria um modo de dizer que desejam
elementos do “mundo dos brancos”, mas não o desejam por inteiro, não querem ser brancos
“como nós”? Acredito que sim, mas não devemos supor que se resuma a isso. O que posso
afirmar é que a ausência de uma resposta levanta a possibilidade (e necessidade) de pensar a
relação entre os Munduruku e os brancos sob uma ótica que não seja da aculturação ou da
112
deterioração. Conforme Vilaça indicou, interessa “a possibilidade das transformações radicais
poderem ser percebidas por seus agentes como positivas, embora, do nosso ponto de vista,
mais pareçam desastres culturais” (2006: 45). Ou ainda, nas palavras de Gow:
O presente estudo teria atingido muito pouco se tudo o que tivesse feito fosse sugerir que aquilo que os Piro fizeram foi reagir historicamente à expansão
colonial européia que os atingiu. Ao invés, é necessário demonstrar que as
formas específicas das sucessivas situações coloniais surgiram do modo como os Piro constituem a si mesmos. Isto não ocorre porque, na linguagem
das teorias da resistência, os Piro não são vítimas passivas da exploração,
brutalidade e injustiça, em situações onde não tinham nenhuma forma de se
expressar e poucos meios de resistir, e seria grotesco da minha parte pretender que as coisas foram diferentes. Ao contrário, a razão pela qual é
necessário demonstrar que as formas específicas das sucessivas situações
coloniais surgiram do modo pelo qual os Piro constituem a si mesmos é porque os Piro são feitos por outros Piro, e não têm nenhuma escolha que
não seja constituir o mundo ao seu redor de maneira que lhes seja
intrinsecamente significativa. E, por pior que seja reconhecer, isto é verdade
até mesmo com relação ao fato de que tiveram que viver como vítimas passivas da exploração, brutalidade e injustiça. Como disse Marx, „os
Homens fazem sua própria história, mas eles não a fazem da maneira como
desejam; eles a constroem sob circunstâncias que selecionam, mas circunstâncias que já existem, que são dadas e transmitidas do passado‟
(2001: 303).
Seguindo um caminho semelhante, Weber (2006) nota a recorrência de termos como
“perda” e “resgate” ao analisar o “discurso da cultura” entre os Kaxinawá. Se, do ponto de
vista da antropologia, esses não fazem muito sentido (pois a cultura não é vista como um
somatório de traços diacríticos), da perspectiva Kaxinawá, a perda e o resgate estão de fato
acontecendo. “No [rio] Humaitá, a língua kaxinawá tem cada vez um menor número de
falantes, enquanto os cantos rituais, que a maioria já havia esquecido, estão sendo
reaprendidos pelas crianças” (Weber 2006: 186). Sahlins (1997) defende que a cultura, tal
como conceitualizada pela antropologia, não deve ser vista como um “objeto em vias de
extinção” (ver capítulo 1). No entanto, Weber sugere que, se partimos da “cultura”, tal como
vem sendo concebida pelos Kaxinawá, perceberemos que determinados aspectos correm sério
risco de desaparecer: “uma língua morre junto com seu último falante – ela não se reinventa,
se recria ou se transforma (à la Sahlins)” (Weber 2006: 186). O “resgate”, por outro lado vem
113
adquirindo novo sentido, “para além do desejo e necessidade de ajuste a uma demanda
externa” (Weber 2006: 187). As “brincadeiras da cultura” permitem aos índios marcar sua
diferença, são “índios Kaxinawá”, e tocam em um ponto importante.
Apesar de certamente recortados e quiçá folclorizados, esses fragmentos
rituais remetem a um passado que durante tantos anos foi motivo de
vergonha. Se hoje há espaço para se „praticar a cultura‟, ainda que em decorrência de uma demanda externa e em nome de uma idéia
„antropologicamente incorreta‟ de „resgate cultural‟, isto, me parece, tem
gerado efeitos (positivos) (Weber 2006: 187).
Trabalhando com os Kuikuro, no Alto Xingu, Fausto comenta que a particularidade do
“virar branco” é que não existe um contexto específico para ocorrer, “está-se virando branco o
tempo todo e em todo lugar” (2009: 18). Contudo, a diferença entre os processos
contemporâneos de mudança e aqueles do passado – os Kuikuro mantêm relações pacíficas
com a sociedade nacional há mais de 100 anos – seria a ausência de um frame ritual no qual a
transformação possa ocorrer. Segundo Fausto (2009: 16), a vida social xinguana gira em torno
dos rituais, pois é por meio desses que se opera uma mediação sociopolítica entre humanos e
uma mediação cosmopolítica entre humanos e não-humanos. A base desse sistema está em um
conhecimento musical cujo processo de transmissão tem enfrentado dificuldades e deixado os
mais velhos preocupados. Através dos rituais se manifesta o ügühütu
(costume/cultura/tradição) Kuikuro, e sem ele não é possível continuar sendo xinguano
(Fausto 2009: 15-16).
Os rituais são também o único lugar onde, atualmente, os índios não estão “virando
branco”, além de serem a garantia de que podem “virar índios” novamente. Conforme
demonstra Fausto (2009: 19), o “cheiro dos brancos” – metáfora evocada pelos Kuikuro para
indicar a ameaça oriunda da proximidade com o “mundo dos brancos” – provoca uma doença
crônica, para a qual o ritual emerge como terapia; uma atividade que permite,
simultaneamente, “virar índio” para os índios e para os brancos. O “cheiro dos brancos”
parece, assim, caracterizar os dilemas enfrentados atualmente por boa parte dos grupos
114
indígenas, algo “que não pode ser pego mas os pega, que tem materialidade mas é intangível”
(Fausto 2009: 22). De forma parecida, Viveiros de Castro menciona que parece ser preciso
“continuar a ser índio para poder continuar a virar branco. E parece também que virar branco
à moda dos índios não é exatamente a mesma coisa que virar índio à moda dos brancos. Até
que se vire” (Viveiros de Castro 2008: 158). E, como dito alhures, “o problema é que jamais
se sabe de antemão quais os limites de uma transformação” (Fausto 2006: 30).
Seguindo essa vertente, me pergunto... se os Munduruku estão “virando branco”, mas
não o fazem de vez, seria porque existem situações (e/ou características) que permitem
continuar “virando índios”? Como vimos, mesmo diante de tantas alterações, existem certos
elementos distintivos que parecem permanecer, como a regra de casamento entre as metades
exogâmicas, o uso da língua munduruku ou a existência de xamãs e feiticeiros, por exemplo.
Vimos também que, no passado, os rituais ocuparam uma dimensão fundamental na vida
social Munduruku, reguladores de uma ordem sociocosmológica na qual os inimigos e os
animais apareciam como elementos centrais. Mas, e nos dias de hoje, existe alguma dimensão
da vida social que opera de maneira semelhante?
Penso que sim, e sugiro que uma análise do papel da escola nas aldeias Munduruku
nos permitiria olhar nessa direção.81
Através dela se absorve o conhecimento dos inimigos e
se aprende a maneira de se relacionar com eles. Mas é também por meio da escola que se
realizam boa parte das festas contemporâneas, como a formatura ou a comemoração de Sete
de Setembro. Dessa maneira, a escola emerge como um ambiente no qual se aprende,
simultaneamente, “a cultura dos brancos” – por meio de aulas como português, matemática,
81 Esse dado me parece ainda mais interessante se observarmos as narrativas sobre a “pacificação” (ver Leopoldi 1979: 100 e Murphy 1978 [1960]: 27) apresentadas no segundo capítulo. Nestas, vemos a importância
atribuída ao conhecimento e à educação (não restrita ao ensino formal). Não foi apenas através das mercadorias
que os Munduruku “se renderam”. Em ambas narrativas consta que houve o rapto de dois garotos, os quais
foram criados e educados pelos brancos. Algum tempo depois eles retornaram e compartilharam com os parentes
o conhecimento adquirido, mostrando que os pariwat não eram, necessariamente, inimigos.
115
saúde ou agrofloresta; e a “cultura dos índios” – nas aulas de artesanato indígena, língua
munduruku, cultura e identidade, ou nos cursos de ensino médio que reúnem estudantes de
diversas aldeias e parecem funcionar, em parte, como as antigas cerimônias responsáveis pela
integração social do grupo.
Considerações Finais
Cada um tem seu destino, e o da gente é diferente do destino dos pariwat. É
importante que a gente mantenha nossos valores frente ao mundo dos
brancos. É preciso continuar os estudos, é! Mas do jeito que a gente precisa, de acordo com nossas necessidades, nossos interesses. Ninguém precisa de
rapaz e moça que estuda na cidade e acaba não sabendo fazer nada na
aldeia
– Rafael Manuhari, professor indígena Munduruku –
82
As páginas que se seguem tem o objetivo de encerrar o presente trabalho. No entanto,
antes que conclusivas, tratam-se de reflexões suscitadas ao longo dessa pesquisa e que
gostaria de retomar – menos a título de fechamento e mais como abertura para investigações
futuras. Para tanto, irei retomar, em linhas gerais, a trajetória que me levou a escolher o
processo de “virar branco” como tema da dissertação e, em seguida, irei tecer alguns
comentários sobre o mesmo.
Quando fui a campo, estava familiarizada com a bibliografia disponível a respeito dos
Munduruku. Havia elaborado um projeto sobre rituais e organização social, e minhas
expectativas do que iria encontrar foram moldadas por essas informações. No entanto, não
demorei a constatar que as descrições que havia lido eram muito distantes da situação atual
dos Munduruku no Alto Tapajós. Constatação algo óbvia – afinal, o último trabalho escrito
sobre eles data de mais de cinqüenta anos –, mas fundamental para direcionar os rumos
posteriores da pesquisa.
Durante a estadia na aldeia Missão São Francisco, no rio Cururu, chamou-me atenção
a relação estabelecida entre os Munduruku e o mundo dos brancos. Com freqüência, as
pessoas com quem conversava afirmavam estar virando pariwat (branco). Essa afirmação, por
sua vez, suscitou duas perguntas que vieram a orientar este trabalho: o que poderiam os
82 Essa declaração foi extraída do blog que contêm informações sobre o Projeto Ibaorebu de Ensino
Médio Integrado do Povo Munduruku, publicado em 23 de dezembro de 2008, disponível em http://munduruku-
pusuru.blogspot.com.
117
Munduruku estar dizendo ao falar que estavam virando pariwat? E, como é possível virar
pariwat sem, contudo, deixar de ser Munduruku?
Para iluminar essas indagações, utilizei um conjunto de autores cujos trabalhos,
desenvolvidos recentemente, nos permitem pensar as situações de contato interétnico sob uma
ótica alternativa à da aculturação. Dentre os temas relevantes nesses trabalhos está o
reconhecimento de diferentes historicidades e um modo próprio de se relacionar com a
alteridade (Albert 1992; Fausto 1999, 2001; Gow 1991; Lévi-Strauss 1993 [1991]; Sahlins
2003 [1987], 2008 [1981]; Taylor 1985; Viveiros de Castro 1986, 1993b, 1996; Vilaça 1992).
Trabalhando com temas “tradicionais”, como xamanismo, parentesco, mitologia e rituais, os
referidos autores imprimiram novas interpretações aos cenários de contato entre índios e
brancos. Inspirei-me especialmente em trabalhos etnográficos que buscaram analisar a
mudança cultural entre os povos indígenas na Amazônia a partir de uma perspectiva indígena
da transformação (Gow 1991, 2001; Kelly 2005, 2009; Vilaça 2000, 2006; Gordon 2006).
Dessa forma, tendo como foco os Munduruku que habitam a região do Alto Tapajós, o
objetivo específico foi compreender como é possível, para um determinado coletivo,
continuar existindo como unidade sociologicamente diferenciada, mesmo diante das
mudanças drásticas que vem enfrentando ao longo de tantos anos. No caso em questão, o
impacto do contato se faz sentir diretamente há pelo menos dois séculos. Nesse sentido, a
afirmação de estar “virando pariwat” pareceu-me, de certa forma, um caminho possível para
melhor compreender os próprios Munduruku.
Como Viveiros de Castro (2008) bem notou, a afirmação de que estão “virando
branco” parece trivial, mas esconde uma complexidade que apenas recentemente passou a ser
questionada. De fato, o “fenômeno” em si não é exclusivamente contemporâneo, mas apenas
nos últimos anos parece ter se tornado uma questão antropológica. Em um artigo intitulado
“Notas para uma teoria do „virar branco‟”, Kelly (2005) sugere que o “problema do virar
118
branco” obrigou-nos a cruzar duas “teorias” que por muito tempo caminharam em separado:
por um lado, teríamos os estudos centrados em temas “clássicos”, como parentesco,
xamanismo e guerra; por outro, teríamos aqueles que privilegiaram o envolvimento de povos
indígenas com seus respectivos Estados nacionais. Para o autor, trata-se de uma oportunidade
de conferir aos “cenários modernos” (os quais envolvem um contato interétnico diversificado,
abrangendo missionários, políticos, sistemas educacional e de saúde, redes econômicas, etc.)
uma leitura que leve em consideração os “traços particularmente amazônicos das relações
mantidas ao longo das redes que incluem diferentes categorias de índios e brancos” (Kelly
2005: 202).
No que diz respeito à vida amazônica contemporânea, o autor nos convida a “pensar
não tanto em termos de mudança histórica, mas sobre o que permanece constante na medida
em que a história se desdobra” (2005: 218). Ao analisar as transformações pelas quais passam
os povos indígenas na região com base em temas clássicos da etnologia, torna-se possível
escapar das interpretações de perda cultural ou de contaminação, comumente empregadas
para contextos nos quais os próprios índios afirmam estar "virando branco". De modo
conciso, esse foi um dos objetivos desta dissertação.
Para atingir tal propósito, baseei-me especialmente no trabalho de Robert Murphy,
sobretudo por tratar-se de uma rica fonte de dados etnográficos. É preciso ainda notar que,
cinco décadas atrás, o autor já havia registrado que eles estavam “virando pariwat”. Como
vimos, em sua tese de doutorado Murphy (1978 [1960]) dedicou-se a entender o processo de
mudança social e econômica que os Munduruku vinham enfrentando naquele período. O autor
registrou a existência de uma forte dicotomia entre os habitantes da savana e os moradores do
rio Cururu – uma divisão sociológica que lhe permitiu construir sua tese sobre mudança
social.
Dessa forma, Murphy atribuiu aos moradores das regiões interioranas um status
119
“tradicional”, enquanto aqueles que haviam migrado para as margens do rio estariam
“perdendo sua cultura”. De fato, a mudança da savana para o rio Cururu implicou alterações
profundas na organização social: as residências e a disposição espacial da aldeia foram
modificadas, a alimentação passou a depender da pesca (em detrimento da caça) e, com isso,
muitos costumes e práticas desapareceram – especialmente pelo fato de boa parte da vida
cerimonial Munduruku estar relacionada com o “mundo dos animais”.
De fato, as perdas ocorreram e foram muitas. Murphy (1958) nos deixou uma
excelente documentação a respeito da mitologia, práticas xamânicas e rituais – muitos dos
quais, já naquela época, não eram mais realizados. Não se trata, portanto, de ignorar as perdas
progressivas, pois elas são reais e irreparáveis. No entanto, se adotarmos uma perspectiva que
busque resgatar, nos processos de transformação contemporâneos, certas continuidades com
um modo específico de ser e estar no mundo, torna-se possível olhar para o presente sem a
nostalgia do passado. O conhecimento sobre os modos de vida e costumes passados é
fundamental, não por tratar-se da representação fiel de um estado “mais puro” ou “autêntico”
e sim porque, por meio dele podemos entender a complexidade da vida contemporânea.
Afinal, como Sahlins já nos havia alertado, “aqueles povos que sobreviveram fisicamente ao
assédio colonialista não estão fugindo à responsabilidade de elaborar culturalmente tudo o que
lhes foi infligido”, mas, ao contrário, eles “vem tentando incorporar o sistema mundial a uma
ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema de mundo” (1997: 52).
Sabemos que o relacionamento com os pariwat não é algo recente. No segundo
capítulo, vimos que pariwat era o termo usado para designar os inimigos, aqueles de quem
cortavam a cabeça. Quando “surgiram”, os brancos foram designados pelo mesmo nome, o
qual se manteve após o estabelecimento de relações pacíficas, no final do século XVIII. Não
suponho com isso que exista uma “substituição” direta (das tribos inimigas pelos brancos),
mas chamo atenção para o fato de que os Munduruku se relacionam com os pariwat desde
120
muito antes da chegada dos brancos. Vemos assim que se trata de uma relação que envolve
riscos constantes, pois seja com os inimigos com quem guerreavam, ou com os brancos com
os quais se relacionam atualmente, existe sempre o risco da perda... perda da cultura, da
língua, dos rituais, ou da própria vida – como no caso dos guerreiros que não retornavam das
expedições guerreiras. Esse estatuto da alteridade, figura ao mesmo tempo necessária e
desejada, ambígua e ameaçadora, condiz com o modo relacional característico dos povos
amazônicos, condensados no modelo da afinidade potencial de Viveiros de Castro (2002b).
Pelas descrições de Murphy (1958) a respeito dos rituais praticados no passado
sabemos também que “virar outro” era uma prática comum. Refiro-me especificamente às
transformações de homens em animais durante o Duparip (ritual de iniciação masculina) ou o
Dajearuparip (ritual realizado com propósito de agradar os espíritos mãe da caça). Como nos
lembra Murphy (1958: 53), essa era uma experiência temida e aqueles que por ela passavam
tornavam-se pessoas importantes. De modo semelhante, o autor destaca que na mitologia
encontramos relatos de um tempo no qual os animais tinham forma humana, sendo a origem
de muitas espécies contada com base nessa metamorfose (Murphy 1958: 133).
Tais constatações colocam-nos duas questões. Temos, por um lado, dois tipos de
transformação, “virar branco”, de uma forma geral, e “virar animal”, em um contexto ritual.
Certamente não se trata da mesma coisa, mas é interessante notar que ambos os processos são
expressos em um idioma da metamorfose, no qual está envolvida a idéia de tornar-se outro.
Por outro lado, vimos que “virar branco” não é um processo exclusivamente contemporâneo,
pois os Munduruku já o fazem há mais de cinquenta anos – o que nos leva a questionar quais
seriam as particularidades da situação encontrada nos dias de hoje. O fato de que, cinqüenta
anos depois eles não viraram brancos de vez, mas continuam “virando”, exige nossa atenção.
No entanto, ainda que tenha buscado entender as transformações contemporâneas em
continuidade com a sócio-cosmologia Munduruku, permanece uma incerteza com relação aos
121
limites do sistema. Qual a especificidade envolta na relação com os brancos que faz com que
surja um incômodo, mesmo quando sabemos não se tratar de “mera” dominação, exploração
ou aculturação? Haverá um ponto a partir do qual a transformação se torna irreversível?
Gordon (2006: 411-12) questiona se, ao buscar enxergar um modo indígena de apropriação e
experiência da “modernidade” e do “capitalismo”, não acabaríamos ignorando que, do ponto
de vista indígena, “virar branco” possui efeitos problemáticos e potencialmente destrutivos,
não apenas criativos ou inventivos. Como o autor alerta, existe sempre um risco de que, ao
adotar um corpo/habitus de branco, os índios se tornem parecidos demais com eles. No
entanto, prossegue:
O que sabemos, eles e eu, é que para continuar virando e fazendo-se
Mebêngôkre precisam continuar virando brancos. Viver nesse mundo em que
se pode virar Outro o tempo todo, e que é preciso virar Outro para constituir-se, sempre foi perigoso. Se os limites nunca estão no mesmo lugar, os
desafios de continuar existindo, todavia, permanecem. E tudo que vira,
quiça, desvira (Gordon 2006: 415).
Saber em que medida é possível continuar virando pariwat sem deixar de ser
simultaneamente Munduruku é uma questão que, por hora, permanece sem resposta. Tudo o
que podemos afirmar no momento é a necessidade de continuar investigando os meios
encontrados por aqueles considerados “vítimas” do contato para “virar o jogo” – seja virando
jaguar, virando branco ou virando índio...
122
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133
ANEXOS
134
Anexo I: Relação de Pólos Base com suas respectivas aldeias e população
Fonte: DESI Tapajós/Censo populacional (2009.01)
N.º P. Base Jacareacanga Res. Fam. Pop.
1 Nova Karapanatuba 46 77 351
2 Boca do Rio das Tropas 7 20 106
3 Jacaré Velho 10 16 84
4 Fazendinha Rio Tapajós 4 4 25
5 Jacarezinho 5 9 56
6 Prainha do Jacaré 6 6 48
7 Terra Preta RTP 6 10 43
8 Buritituba 3 4 22
9 Barro Branco 2 3 14
10 Fazenda Sai Cinza 3 4 17
11 Nova Vida 1 2 14
12 Waretobi 2 3 12
13 Mutum 1 1 9
14 Barro Vermelho Rio Tapajós 1 1 3
15 Muiçuzinho 4 4 25
16 Castanheira do Muiçuzão 7 7 45
Total 108 171 874
N.º P. Base Restinga Res. Fam. Pop.
1 Restinga 9 14 97
2 Samaúma 10 17 104
3 Patauazal 7 15 77
4 Prainha 7 9 60
5 Piquiarana do Rio Tapajós 4 4 41
6 Primavera 5 8 36
7 Pesqueirão 4 7 32
8 Santa Cruza 2 4 28
9 Laginha Rio Tapajós 4 5 24
10 Vista Alegre Rio Tapajós 2 4 26
11 Campinho Rio Cururu 3 4 18
12 Igarapé Preto 1 1 14
13 Escondido 1 1 8
14 Maracati 4 4 17
15 Boca do Anipiri 1 1 4
16 Pesqueirinha 1 2 6
17 Nova Tapajós 2 3 18
Total 67 103 610
N.º P. Base Sai Cinza Res. Fam. Pop.
1 Sai Cinza 65 148 813
2 Jardim Kaburuá 10 17 91
3 São Lourenço 8 14 71
4 Boca das Piranhas 6 9 53
5 Campinho do Igarapé Kadiriri 1 3 15
6 Ariramba 3 6 26
7 Monte Alegre 2 5 29
8 Banco 2 4 19
9 Mangueira 2 6 29
135
10 Terra Preta Rio Tapajós 2 2 12
Total 101 214 1158
N.º P. Base Teles Pires Res. Fam. Pop.
1 Teles Pires 28 40 234
2 Bom Futuro 7 11 72
3 Papagaio 4 12 61
4 Posto Velho 3 3 20
5 Vista Alegre 3 3 20
6 Caroçal Teles Pires 1 1 9
Total 46 70 416
N.º Caroçal RTP Res. Fam. Pop.
1 Rio das Tropas 29 38 211
2 Aldeia P.V. 3 7 47
3 Bananal Rio das Tropas 5 9 45
4 Boca do Caroçal RTP 3 4 27
5 Boca do Igarapé Preto 3 5 32
6 Nova Esperança 5 6 38
7 Maloquinha Rio das Tropas 1 6 35
8 Laginha Rio das Tropas 1 4 13
9 Akuter 2 5 22
10 Castanheira 1 1 5
Total 53 85 475
N.º P. Base Kato Res. Fam. Pop.
1 Kato 33 78 413
2 Biriba 10 20 106
3 Kaburua 12 22 96
4 Porto 5 14 64
5 Taperebá 4 10 52
6 Fazendinha Rio Kabitutu 2 5 27
7 Aldeia Nova 6 9 48
8 Estirão das Cobras 4 8 43
9 Maloquinha Rio Kabitutu 7 8 40
10 Pedrão 2 5 31
11 Dhecojemo 1 3 16
12 Barro Vermelho Rio Kabitutu 2 4 23
13 Kabitutu 3 5 28
14 Cachoeirinha Rio Kabitutu 1 2 13
15 Fazendo Kaburua 1 3 16
16 Parawariti 2 3 14
17 Kintiliano 2 3 14
Total 97 202 1044
N.º P. Base Missão Cururu Res. Fam. Pop.
1 Missão São Francisco 82 132 645
2 Missão Velha 21 41 227
3 Pratati 8 17 66
4 Cajual 7 14 70
5 Anipiri Terra Preta 6 8 56
136
6 Wareri 6 14 76
7 Pista Velha 3 9 51
8 Tamanqueira 1 4 25
9 Maloquinha Rio Cururu 1 1 10
10 Boca da Estrada da M. Cururu 3 3 22
11 Bom Jardim 1 3 10
12 Castanhal 1 1 6
Total 140 247 1264
N.º P. Base Waro Apompo Res. Fam. Pop.
1 Waro Apompo 27 46 228
2 Caroçal Rio Cururu 18 32 149
3 Morro do Careca 9 18 92
4 Morro do Kurap 8 13 91
5 Boca da Estrada 1 2 13
Total 63 111 573
N.º P. Base Santa Maria Res. Fam. Pop.
1 Santa Maria 20 38 187
2 Muiuçu 14 27 129
3 Aiperep 7 13 57
4 Bananal do Rio Cururu 5 13 68
5 Kreptcha 1 1 5
Total 47 92 446
N.º P. Base Itaituba Res. Fam. Pop.
1 Praia do Índio 14 24 114
2 Praia do Mangue 10 18 79
3 Laranjal 12 16 78
4 Sawre Km 43 3 8 35
5 Muybu 18 20 108
6 Tucunaré 1 1 6
Total 58 87 420
N.º Pessoas em trânsito Res. Fam. Pop.
1 em trânsito 24 24 89
N.º Novo Progresso (Kayapó) Res. Fam. Pop.
1 Baú 13 42 206
2 Kubenkoke 41 143 734
3 Pykany 20 51 235
Total 74 236 1175
População indígena 8544 7280
Total de Famílias 1642 1382
Total de Residências 878 804
Total de Aldeias 107 104
Total de Pólos Base 11 10
Etnias 4 Munduruku
137
Anexo II: Região do rio Tapajós
Fonte: Munduruku Religion (Murphy 1958)
138
Anexo III: Possíveis rotas de migração dos Munduruku – séc. XIX e XX Fonte: Mapa Etno-Histórico Curt Nimuendajú (1981)
139
Anexo IV: Região do Alto Tapajós
Fonte: desenho próprio (dezembro 2008)
140
LISTA DE ILUSTRAÇÕES:
FIGURAS
141
Figura 1: Jovem Munduruku tatuado Aquarela pintada por Hercules Florence (1825 a 1829)
142
Figura 2: Mulher e criança Munduruku
Aquarela pintada por Hercules Florence (1825 a 1829)
143
Figura 3: Chefe Munduruku
Aquarela pintada por Hercules Florence (1825 a 1829)
144
Figura 4: Cabeça-troféu Munduruku
Fonte: http://www.vanishingtattoo.com/tattooed_warriors_of_the_amazon_jungle.htm
145
Figura 5: Cabeça-troféu Munduruku
Acervo do Museu Nacional (MN)
146
Figura 6: Coifa com cobre-nuca Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE )
147
Figura 7: Cinto Munduruku Acervo do Museu Nacional (MN)
148
Figura 8: Bandoleiras Munduruku
Acervo do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE)
149
Figura 9: Par de braçadeiras Munduruku Acervo do Museu Nacional (MN)
150
LISTA DE ILUSTRAÇÕES:
FOTOGRAFIAS
151
Foto 1: Residência do Frei Gilberto e “porta de entrada” da Missão São Francisco
Xipat Eyju Dodom – Seja bem-vindo!
Foto 2: “Casa das Irmãs”
152
Foto 3: Missão São Francisco I
Foto 4: Missão São Francisco II
153
Foto 5: Barco do Careca, o regatão local
Foto 6: Distribuição da aposentadoria feita pela Irmã Conceição
154
Foto 7: Luiz Waro, um guerreiro Munduruku
155
Foto 8: Caminho para chegar à Missão Velha
156
Foto 9: Venâncio Puxo, o capitão da Missão Velha
157
Foto 10: O “porto” da Missão Velha
Foto 11: Meninas no igarapé
158
Foto 12: Formandos da 8ª série em frente à Igreja
159
Foto 13: Participação na missa de formatura
160
Foto 14: Formandos da 8ª série no barracão da comunidade
Foto 15: Formandos da 8ª série
161
Foto 15: Mulheres durante o café da manhã da formatura
Foto 16: as meninas...
162
Foto 17: ... e os meninos
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